2 Atualmente é comum ouvir que “a culpa é dos pais, da sociedade, do governo
3 etc.” E por que é tão comum culpar os outros? Arranjar um culpado, um bode expiatório, 4 significa poder transferir o sentimento de culpa. 5 O bode expiatório surgiu de uma antiga tradição judaica na qual todos os 6 pecados de Israel eram transmitidos a um bode que era abandonado para morrer no 7 deserto livrando assim as pessoas de seus pecados. Hoje, bode expiatório é uma 8 expressão usada para definir uma pessoa ou grupo sobre a qual recaem as culpas 9 alheias. 10 Ao longo da história, o bode expiatório foi um recurso muito utilizado para 11 solucionar crises. Os judeus foram o bode expiatório de Hitler que os culpou por todos 12 os problemas da Alemanha (incluindo a crise econômica), o que resultou na morte de 6 13 milhões de pessoas. No Brasil, Tiradentes foi o único culpado pela Conjuração mineira, 14 sendo executado e esquartejado enquanto seus companheiros foram inocentados. 15 E porque assumir a culpa se podemos passá-la aos outros? Transferir a culpa é 16 atestar a imaturidade por não entender ou saber lidar com sentimentos como fracasso, 17 frustação e angústia. Embora esses sentimentos pareçam negativos, são essenciais pois 18 por meio deles se dá o crescimento pessoal, mesmo que de forma dolorosa, uma vez que 19 eles nos ensinam a ser mais flexíveis e resilientes, fortalecendo-nos a cada dificuldade. 20 Em última análise, arranjar um bode expiatório é eximir-se da responsabilidade 21 pelos próprios atos. Deixar de ser responsável é abrir mão do poder de escolha 22 colocando-se na posição de vítima de condições externas. Isso constitui uma tentativa 23 inútil de enganar a si mesmo porque mesmo que fatores sociais, metafísicos, históricos 24 ou até inconscientes influenciem alguma decisão, o como agir concerne apenas ao 25 próprio indivíduo constituindo seu livre-arbítrio. Em suma, transferir a culpa não livra 26 ninguém dela. Tal como escreveu Sartre: “o homem está condenado a ser livre. 27 Condenado porque não criou a si próprio; e, no entanto, livre porque, uma vez lançado ao 28 mundo, é responsável por tudo o que fizer”. 29 30 31 Aparentemente não há prejuízo nisso porém o preço é pago independente de se 32 estar consciente dele ou não.
33 Como vimos, não há determinismos que possam eximir o homem da sua
34 condição ontológica de liberdade. Contudo, na tentativa de livrar-se da 35 angústia trazida pela responsabilidade que a liberdade carrega consigo, o 36 homem refugia-se na má-fé. Sartre admite que a má-fé pode ser 37 compreendida como o ato de mentir para si mesmo, mas um mentir que não 38 comporta a dualidade do enganador e do enganado, pois, aqui, aquele que é 39 enganado é também consciente da verdade que deseja suprimir. Porém, a 40 má-fé tem por sua natureza mesma a característica de negar-se como má-fé, 41 sendo um processo de constante e frustrado esforço, uma vez que, para que 42 se possa fugir de algo que se faz presente na própria consciência, é 43 necessário que se pense constantemente nesse algo; isto é, o projeto da má- 44 fé consiste em encarar certo aspecto do ser com a pretensão de dele fugir, 45 num só movimento; obviamente, na consciência, tal objetivo é impossível 46 de ser realizado e, por ser impossível, a má-fé nunca se encerra em seu 47 objetivo. 48 Basicamente, podemos compreender a má-fé como a tentativa de transferir 49 responsabilidades que concernem unicamente ao indivíduo; ou seja, ao 50 atribuir exclusivamente a fatores sociais, metafísicos, históricos ou até 51 inconscientes o fundamento e as responsabilidades de sua escolha, o 52 indivíduo se encontra no estado de má-fé, pois tais fatores exercem 53 influência na sua decisão ao determinarem as possibilidades de escolha; 54 contudo, cabe somente a ele optar, por meio de sua liberdade, por qual 55 possibilidade lhe é mais adequada. Aqui, não há como fugir; só há espaço 56 para a subjetividade do sujeito, ou seja, para o seu próprio nada de ser, e 57 qualquer tentativa de preencher este espaço vazio será aqui denominada de 58 má-fé.