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HUNGER – O EXEMPLO DE BOBBY SANDS

Há, de facto, algo que o homem é e tem de ser, mas este algo
não é uma essência, não é propriamente uma coisa: é o simples
facto da sua própria existência como possibilidade ou
potência.1

Hunger apresenta-se-nos como uma força de resistência de


corpos encarcerados e regulados no interior de uma instituição
prisional.
A prisão de Maze recebe os elementos detidos das forças
revolucionárias do IRA, que não cooperando com o uso de roupas
prisionais e aderindo às greves da sujidade e do cobertor em
luta pelo estatuto de preso político, são sujeitos a formas de
punição, das quais, se pertencendo ainda a sistemas
disciplinares da conduta, igualmente se infere uma lógica de
regulação e dominação dos corpos insubmissos e convulsivos.
Corpos que são alimentados, obrigados a práticas de
higienização com as quais não cooperam, fazendo frente à
gestão de um política que assegura a higiene silenciosa de uma
sociedade ordenada2 – assim são também os mendigos, os doentes,
os loucos, todos aqueles que põem em risco o património
biológico da sociedade -, e em cujo processo sofrem
individualmente espancamentos, dos quais posteriormente são
curados. Fazer viver a todo o custo, mas mediante uma contínua
fragilização dos processos de recriação da vida enquanto
potência.
Inegavelmente nos meios de comunicação são mostrados actos
de violência, ditados como meros actos de terrorismo e
criminalidade pela inflexibilidade de um Governo que se lhes
nega atribuir qualquer direito político ou mesmo jurídico.
“Não existe tal coisa como assassinato politico,

1
Giorgio Agamben, A Comunidade que Vem, Editorial Presença, Lisboa, 1993, p. 38.
2
Michel Foucault, “É Preciso Defender a Sociedade”, Editora Livros do Brasil, Lisboa, 2006, p. 94.

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bombardeamento politico ou violência política, existem apenas
crimes de assassinato, crimes de bombardeamento, crimes
violentos”, diz Thatcher. Apenas actos criminais, informes e
incompreensíveis, inscritos no corpo da nação por seres
contaminadores e desviantes. Directivas investidas por
aparelhos de saber, que constituem deste modo linhas
discursivas ideológicas, integradas num corpo social que deixa
que o defendam de corpos virais, contaminadores,
biologicamente perigosos e que reúnem um certo número de
mecanismos de recusa e de exclusão da parte do Estado.3 A
guerra que se faz surdamente e que coloca na prisão de Maze os
corpos biológicos perigosos, legislando o seu direito à vida,
incluindo estados-limite de exclusão da vida face à norma, que
fica suspensa, permitindo a demarcação de uma zona de
indistinção entre lei e vida, isto é, um estado de excepção4,
em que o direito é jogado como elemento que permite a
dominação e a sujeição daqueles a quem lhes é suspenso ou
retirado5 e em que a violência é aplicada sobre o próprio
direito com o nome do poder6. Tudo em prol da defesa da
sociedade. Prisão como visão última de correcção, toldada pelo
medo inscrito subtilmente no corpo social, de reduto de todos
aqueles que no seu exterior vêem no Outro o louco, o
criminoso, o delinquente. Mecanismo de exclusão cujos muros
protegem dois lados em estado combativo, em estado de guerra
crua permanente, calada e subtil, pois sem batalhas, mas
acometida de uma constante tensão entre forças de dominação e
sujeição, entre luta e submissão, cuja repressão é a medida de
actuação dessas forças e cuja relação gera uma contínua
mutação entre o papel do dominador e o papel do sujeitado.8 No

3
Cf. Op. cit., p. 99. Citação referente à raça judia, que serve de enunciação ao racismo de Estado e de
demarcação da raça biologicamente perigosa à nação.
4
Giorgio Agamben, O Poder Soberano e a Vida Nua, Editorial Presença, Lisboa, 1998, p. 64. Ainda
da formação dos estados de excepção face à norma, cf. Op. cit., pp. 27-31.
5
Cf. Michel Foucault, op. cit., p. 41.
6
Cf. Giorgio Agamben, op. cit., p. 69. Atentando nesta afirmação é necessário reter que o poder -
como nos diz Foucault - nunca é possuído aqui ou além, nunca está nas mãos de alguns, nunca é
possuído como uma riqueza ou um bem. O poder funciona. (...) o poder transita pelos indivíduos, não
se aplica a eles. (Michel Foucault, op. cit., p. 43.)
8
Cf. Op. cit., pp. 30-31. Já não será a batalha no sentido guerreiro, mas a luta no sentido biológico:
diferenciação de espécies, selecção do mais forte, conservação das raças melhor adaptadas, etc. (...)

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caso de Hunger, o estado de guerra manifesta-se na exigência
contínua do estatuto de preso político pelos elementos do IRA
face à posição indemovível de Thatcher, no qual tais elementos
disruptivos, acidentais, no interior de uma sociedade de
integração, se digladiam numa lógica semelhante à lógica da
conquista e da colonização, aquando da não aceitação da
permanência do invasor no seu sistema político e
governamental, aquando da necessidade de não integração num
sistema de direito, cuja auto-pressuposição natural remete
para o soberano invasor – a soberania do Estado.9 Direito
retido, suspenso ou excluído numa zona que configura “um
espaço delimitado, livre e vazio”, entendido como “âmbito
temporal e espacial da suspensão de todo o direito”10.
O que é dado a ver em Hunger através da insurreição nas
prisões face ao governo homogenista de Thatcher é a sublevação
de vários membros do povo irlandês pertencentes a uma frente
revolucionária, que depositam nas diferentes tácticas de
resistência um gesto de insubmissão, que por sua vez, num
movimento de insurreição dos saberes subjugados11 conta a
história dos vencidos, a história das derrotas,
convenientemente camuflada entre actos criminosos e
assassinos, de índole outra que não a de uma força política e
civil. Trata-se do movimento de uma nação como sujeito-objecto
da nova história12 – a história da luta das raças, que longe de
ser um ritual inerente ao exercício, ao desenvolvimento, ao
reforço do poder, ela não é só a sua crítica mas também o
ataque e a reivindicação contra ele.13

uma sociedade que será, (...) biologicamente monista. Ela ver-se-á ameaçada apenas por um certo
número de elementos heterogéneos, mas que não lhe são essenciais (...) que serão de certo modo,
acidentais. (Op. cit., p. 92.)
9
Cf. Op. cit., p. 113. Sobre o mascaramento dos procedimentos de disciplinarização e dominação
através da democratização da soberania e da instauração de um direito público que daí adveio, cf. Op.
cit., p. 51. Ainda da auto-pressuposição do ser-em-potência do direito elaborado pela teoria em que o
estado de natureza está incorporado na sociedade, cf. Giorgio Agamben, op. cit., p. 43.
10
Cit. por Giorgio Agamben, op. cit., p. 44.
11
Cf. Michel Foucault, op. cit., p. 21. (...) essa nova forma de discurso que aparece precisamente no
final da Idade Média, na verdade até no século XVI e no início do século XVII. O discurso histórico
deixará de ser o discurso da soberania, ou até da raça, e passará a ser o discurso das raças, do
confronto entre raças, da lutas das raças através das nações e das leis. (Op. cit., p. 81.)
12
Op. cit., p. 154.
13
Op. cit., p. 84.

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(...) a lei funciona cada vez mais como uma norma e que a
instituição judicial se integra cada vez mais numa
continuidade de aparelhos (médicos, administrativos, etc.)
cujas funções são sobretudo reguladoras.14

Em Hunger, a prisão surge como espaço que pretende gravar no


corpo de quem lá se encontra mecanismos de correcção e de
observação da actuação do poder, através da separação e
distribuição espacial dos indivíduos, da supressão do máximo
de tempo e forças vivas, da uniformização das suas roupas, da
codificação contínua do seu comportamento, da observação
permanente e total em conjunto com o registo e anotação da
evolução dos modos de agir dos indivíduos, constituindo uma
forma de saber centralizado em torno da prisão como
15
instituição punitiva. São instrumentos efectivos de formação
e abrangência do saber, são métodos de observação, técnicas de
registo, procedimentos de investigação e de pesquisa, são os
aparelhos de verificação.16 Diria ainda, de verificação em
relação ao como controlar, regular, docilizar o comportamento
de um indivíduo sujeito à acção subtil de um poder que,
justamente, o que concebe é a formação e identificação de
indivíduos com um corpo, um gesto, um discurso. Pois que o que
é o indivíduo é um efeito do poder.17
Contudo, a prisão de Maze enquanto lugar no qual cada um dos
presos se nega a usar as mesmas roupas prisionais, ocupar o
mesmo lugar de um comum criminoso social, encerra no seu
interior uma série de contra-condutas extremas necessárias à
afirmação dos indivíduos enquanto seres singulares. No
epicentro da incontida necessidade de reivindicar os seus
direitos, de não mais permanecer em estado de suspensão e
indecidibilidade política e civil, de punição incontida e

14
Idem, A Vontade de Saber, Relógio D’Água Editores, Lisboa, 1994, p. 146.
15
Cf. Idem, Surveiller et Punir, Éditions Gallimard, 2008, p. 267.
16
Idem, “É Preciso Defender a Sociedade”, op. cit., p. 47.
17
Op. cit., pp. 43-44.

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atroz, estados relativos à constituição de um poder punitivo
cada vez menos do lado jurídico e que se vai estabelecendo a
um tempo institucional, físico, regulamentar e violento nos
aparelhos efectivos de punição18, os presos de Maze, habitantes
dos espaços celulares e quadriculados característicos das
instituições disciplinares, espaços de neutralização e
silenciamento, fragmentam estes mesmos espaços na sua
homogeneidade, na sua monocromia, singularizando-os através de
restos de comida, dejectos, toda uma matéria cromática e
moldável que, mais do que contrariar uma higiene civilizada,
opera uma passagem do neutro e neutralizador ao vivo e
afectante. No gesto de transformar os espaços onde estavam
encarcerados, no gesto de resistirem, os presos de Maze tomam
em si o ser qualquer, “o ser que seja como for não é
indiferente”19, o ser do devir, que acolhe formas várias de
resistir através do corpo, que encontra processos de
subjectivação, de recriação da vida nas suas diversas
possibilidades. Fragmentando espaços inócuos, recusando a
uniformização (o uso de uniformes prisionais) e a provável
erradicação da diferença no interior do sistema prisional,
rompendo o silêncio inerte através de gritos emergenciais, os
revolucionários do IRA, os alegados criminosos, afirmam-se
assim como seres singulares, seres que se inscrevem na
diferença.
Medidas preventivas e humilhantes que pretendem a perda de
comunicação entre os presos, aliadas a investidas de castigo
físico violento e organizado com a devida elisão de toda e
qualquer forma de identificação dos presos (os papéis com os
dados de cada um à entrada das celas), os cuidados aplicados e
retirados quantas vezes o necessário numa espécie de tortura
indefinida que ensaia dar a morte não ao corpo biológico, pois
este é tratado, feito sobreviver, mas ao corpo singular, ao
corpo ferido, ao corpo que se inscreve insistentemente e se
faz gravar pelo sangue e pela voz nos muros estanques da
prisão. Marcar com a morte o corpo do sujeito em desacordo com

18
Op. cit., p. 42.
19
Giorgio Agamben, A Comunidade que Vem, op. cit., p. 11.

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o poder vigente e com as normas instituídas, encarcerar o
corpo que não é dócil, cujos ritmos não são controláveis, nem
a vida produtivamente organizada. Marcar o corpo de todo
aquele que atentando contra o poder, já não o corpo simbólico
do soberano, mas a figura disciplinar e ao mesmo tempo
dominadora, organizadora de um povo convertido em população,
se converte, perante a suspensão da lei, em algo na ordem da
decisão soberana e faz da figura do Outro Homo Sacer20, vida
nua. O que se nos apresenta é a dimensão do biopoder numa
dupla asserção: poder sobre a vida e poder da vida.
Manter o corpo a todo o custo, fazendo os presos suportar
momentos de extrema violência, de violência ensurdecedora,
para que de seguida sejam curados e lançados naturalmente nas
respectivas celas. Encerrá-los em unidades celulares
indiferenciadas e recuperar essa monotonia perversa ensaiando
o apagamento de todo o tipo de inscrições, traços de
insubmissão, gestos outros não passíveis de uma circunscrição.
Oferecer um falso diálogo em virtude de um apaziguamento
ilusório, cujo movimento é o de ridicularização e menorização
dos gestos até aí realizados. Ensaiar a docilização, o
enfraquecimento contínuo de recriação de linhas de fuga,
desterritorializações, possibilidades de potenciar a vida.
Todas estas são estratégias próprias a um poder pertencente a
uma racionalidade política, cuja reconfiguração constante dos
seus mecanismos e técnicas actua indiscriminadamente sobre a
vida no intuito da segurança e protecção da população.

Nem particular nem universal, o exemplo é um objecto


singular que, digamos assim, se dá a ver como tal, mostra a
sua singularidade.21

A greve de fome eclodiu. Bobby Sands tornou-se o exemplo.


Não o exemplo como fixação e monumento de circulação nos
grandes anais da história, não como fabricação de um modelo de

20
Cf. Idem, O Poder Soberano e a Vida Nua, op. cit., p. 83.
21
Idem, A Comunidade que Vem, op. cit., p. 16.

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heroísmo épico a seguir,22 mas exemplo como conceito que difere
opondo-se ao conceito de excepção. A manifestação de uma
passagem de um corpo de excepção, exclusão inclusiva,
pressuposição da referência jurídica na forma de suspensão23,
ao corpo do exemplo, inclusão exclusiva, pertença de um grupo
de que se desvia, e cuja acção assim se coloca em evidência.24
Bobby Sands incluindo-se no grupo de sujeitos sobre os quais
recai um poder que exerce controlo, dominação, regulação dos
corpos biológicos, que os expõe à morte, exclui-se dele na
medida em que faz brotar no interior de um espaço inóspito e
vazio uma força de vida, deixando que o seu corpo biológico
(zoé) seja continuamente ferido, rompido, quebrado pela acção
degenerativa dos tecidos carnais mal nutridos, em prol de um
corpo discursivo irredutível (bîos), cujo clamor silencioso
ressoa, reverbera em cada canto das celas prisionais, da ala
hospitalar, dos gabinetes de detenção e interrogação, em cada
espaço da instituição prisional, vibrando como corpo
resistente que enuncia a possibilidade de uma impossibilidade
de separação total de viver (zên) do viver bem (eu zên), de
vida nua da vida politicamente qualificada.25 Ainda que, não
sendo o campo, pelo facto de o direito carcerário não estar
fora da ordem normal, sendo um particular do direito penal,26
como Agamben enunciou, na prisão de Maze coloca-se em estado
de excepção cada um dos indivíduos que nela se encontram, no
simples gesto de elidir a sua identificação, de punir e curar
continuamente até ao ensaio de infligir no outro a perda
completa da capacidade de sonhar, de imaginar possibilidades
várias de ser, até à quase espectralidade dos corpos de
discurso. Bobby Sands é o exemplo, o nome como intensidade
primeira de uma série de outros que votaram os seus corpos à
resistência, à insubmissão, à inamissibilidade de uma força de
vida. Não a individuação de uma coisa, de uma pessoa, de um

22
Cf. Michel Foucault, op. cit., p. 79.
23
Giorgio Agamben, O Poder Soberano e a Vida Nua, op. cit., p. 29.
24
Op. cit., p. 31.
25
Cf. Op. cit., p. 16.
26
Op. cit., p. 29.

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sujeito, mas a individuação de um acontecimento.27 É um modo
intensivo e não um sujeito pessoal. É uma dimensão específica
sem a qual não se poderia nem superar o saber nem resistir ao
poder.28 Pois já não se trata do indivíduo das tecnologias do
eu, do indivíduo do vínculo com uma identidade e uma
consciência e, por conseguinte, com um poder de controlo
exterior.29 Mas do nome próprio – Bobby Sands – como força,
acontecimento, movimento.30 Não se trata da primeira pessoa,
mas de nomear potências impessoais, físicas, mentais, num
afrontamento, num combate, num processo que se nos revela o
seu fim a partir do caminho de si mesmo. O próprio Ser é
político.31 Bobby Sands exemplo é o gesto no desconhecimento do
a vir, insistindo, rompendo, oferecendo o seu corpo como
hospitalidade ao Outro radical. Processo de subjectivação,
transmutação entre modos de existência, possibilidades de vida
várias; relação de força consigo (enquanto o poder era relação
de força com outras forças), trata-se de uma “dobra” da
força32, em que antes mesmo de ser eu próprio, e quem sou,
ipse, é necessário que a irrupção do outro tenha instaurado
essa relação de mim a mim próprio.33
Bobby Sands chefe de guerra, homem infame, homem comum,
homem qualquer, bruscamente exposto à luz por um caso do dia
(...) É o homem confrontado com o Poder, instado a falar e a
fazer-se ver.34 É a manifestação de liberdade, cuja ferocidade
se revela num corpo exausto que insiste ainda em correr. É a
decisão enquanto gesto de continuar o imponderável, apesar de
contínuas investidas no sentido de menorizarem ou
enfraquecerem uma certeza solicitada. É, então, a revolução
como acontecimento, que é auto-referencial ou goza de uma
autoposição que se deixa apreender num entusiasmo imanente sem

27
Cf. Gilles Deleuze, Conversações, Fim de Século - Edições, 2003, p. 44.
28
Op. cit., p. 137.
29
Cf. Giorgio Agamben, op. cit., p. 14.
30
Cf. Gilles Deleuze, op. cit., p. 55.
31
Op. cit., p. 123.
32
Op. cit., p. 129.
33
Jacques Derrida, Sob Palavra, Instantâneos Filosóficos, Fim de Século – Edições, Lisboa, 2004, p.
61.
34
Gilles Deleuze, op. cit., p. 148.

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que nada nos estados de coisas ou no vivido o possa atenuar,
nem sequer as decepções da razão.35
Perante a recusa de qualquer tipo de alimentação, a
pormenorizada descrição médica de toda uma anatomia do corpo
em degenerescência: os tecidos corporais, os órgãos vitais, a
estrutura óssea, enfraquecem continuamente. Porque é o corpus
o sujeito da biopolítica. Não a afirmação do homem livre, com
as suas prerrogativas e os seus estatutos,36 mas a solicitação
de um corpo a expor. A fragilidade de um corpo cuja força de
vida enfrenta o próprio processo de fazer sobreviver num plano
de visibilidade extrema e a todo o custo o corpo biológico,
processo inscrito numa lógica perversa de sacralização da vida
humana e da consequente missão biopolítica de preservação da
espécie, e portanto, da politização da vida. Ao lado da cama
onde o corpo repousa é colocada comida, que pode dar a ver um
acto medical de inscrição ainda na mesma lógica perversa
anterior, ligada também a uma expressão de vontade absoluta, a
uma expressão de soberania do homem vivo sobre a sua própria
existência37, um suicídio, um acto de insanidade, de anomalia
num corpo continuadamente exposto ao castigo. Contudo,
apresentando-se na sua contingência, na sua fragilidade, tal
corpo contém em si um excesso, uma vontade outra, cujo sentido
inscreve no corpo o próprio gesto de dar a possibilidade de
recriação ao Outro, ao que vem. A revolução é a
desterritorialização absoluta no ponto exacto em que esta
38
apela à nova terra, ao novo povo.
Bobby Sands, exemplo, pertença do homines sacri, desvio do
ser singular; nome como intensidade primeira, que lança linhas
várias de discursividade, possibilidades múltiplas de
recriação para além do bem e do mal, personagem conceptual
como aptidão do pensamento em ver-se e desenvolver-se através

35
Gilles Deleuze, Félix Guattari, O que é a Filosofia?, Editorial Presença, Lisboa, 1992, p. 90.
36
Giorgio Agamben, op. cit., p. 119.
37
Op. cit., p. 131. A teoria é de Binding, à qual Agamben faz referência como ponto de partida para
analisar a questão da decisão do valor da vida e das investidas jurídicas e politicas que advieram desta
problemática de distinção entre uma vida indigna de ser vivida e uma vida digna de ser vivida.
38
Gilles Deleuze, Félix Guattari, op. cit., p. 90.

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de um plano que atravessa o sujeito, devir.39 Imagem viva dos
presos de Maze, que pertencendo à história dos vencidos,
produzem na imanência do devir a possibilidade do gesto de
criação.

São assim as revoluções e as sociedades de amigos,


sociedades de resistência, pois criar é resistir: puros
devires, puros acontecimentos num plano de imanência. O que a
História capta do acontecimento é a sua efectivação nos
estados de coisas ou no vivido, mas o acontecimento no seu
devir, na sua consistência própria, na sua auto-posição como
conceito, escapa à História.40

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39
Cf. Op. cit., p. 59.
40
Op. cit., p. 99.

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