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Argumentação e Falácias
2.1 Argumentos
Pode até ser surpreendente para alguns, mas argumentação é o objetivo principal
de todo trabalho acadêmico e de boa parte da carreira profissional de qualquer
um com formação superior. Em geral seus professores vão assimir que você já
sabe disso e não se preocuparão em explicar sua importância dentro da sala de
aula. Seus professores também vão esperar que você seja capaz de argumentar
de forma lógica em tudo que escrever ou debater.
A maioira do material a qual você terá acesso durante seus anos na univer-
sidade, ou durante sua vida, já foi debatido por alguém. Mesmo que o material
que você vier a ler ou ouvir a respeito for apresentado como simples informação
ou fato, é provável que se trate da interpretação de alguém sobre um outro
conjunto de fatos e informações. Quando for escrever ou debater, em geral,
será necessário questionar esta interpretação, defendê-la , refutá-la ou mesmo
oferecer uma visão própria sobre o tema. Você precisará fazer muito mais do
que simplesmente apresentar a informação que coletou ou regurgitar informação
decorada. Será necessário que você seja capaz de escolher um ponto de vista e
fornecer evidência que dê forma e conteúdo à sua interpretação.
Se você, por acaso, acredita que são os ”fatos”e não os argumentos que regem
o raciocı́nio, considere os seguintes exemplos. No passado as maiores mentes da
civilização européia acreditavam piamente que a Terra era plana (na verdade
há gente que mesmo hoje em dia acredita nisso ! Procure na internet por
The Flat Earth Society). Argumentos sobre o quão óbvio era este ”fato”foram
cosntruı́dos. Hoje em dia você pode discordar disso porque houve pessoas no
passado que foram capazes de demonstrar que estes argumentos eram falsos.
O conhecimento humano evolui através de discussões a partir de pontos de vista
diferentes. Especialistas, como seus professores, passam suas vidas em torno de
discussões sobre o que é ”verdadeiro”, ”real”ou ”correto”em suas respectivas
áreas de estudo. Da mesma forma, nos cursos que fará, será exigido de você que
treine sua capacidade de raciocı́nio crı́tico e argumentação em um nı́vel mais
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16 CAPÍTULO 2. ARGUMENTAÇÃO E FALÁCIAS
2.1.1 Proposições
Afinal, o que é um argumento? Usualmente um argumento é composto por uma
idéia central, chamada ”tese”ou ”proposição”, apoiada por evidências organi-
zadas de forma lógica. Em 99% das situações você terá que fazer algum tipo
de afirmação, coletar e organizar evidências que apoiem sua tese. É essa habili-
dade de organizar as evidências para demonstrar uma tese que evitará que seus
trabalhos sejam meras coleção de fatos e detalhes redundantes. Nos trabalhos
até o ensino médio era comum que fosse dado um tópico e você pudesse escr-
ever qualquer coisa sobre ele, inclusive colagens desconexas de textos copiados
da internet (aliás, o plágio é o pior dos crimes intelectuais, sempre que utilizar
idéias dos outros você deve citar a fonte de forma bem clara). Esta época ter-
minou, agora espera-se que você seja capaz de defender as afirmações que fizer,
espera-se que você tome posições e prove porque uma pessoal racional deveria
concordar com elas.
Proposições podem ser bem simples como ”os prótons têm carga positiva
e os elétrons têm carga negativa”com evidências do tipo: ”Neste experimento,
prótons e elétrons se comportaram de tais e tais formas, que são conseqüência
direta de suas cargas com sinais opostos que convencionamos chamar de ’posi-
tiva’ e ’negativa”. Proposições também podem ser bastante complexas tal como
”o final do regime do apartheid na África do Sul era inevitável”utilizando, para
demonstração, raciocı́nio e evidência tal como: ”Toda revolução de sucesso na
era moderna ocorreu após o governo no poder dar e depois retirar pequenas
concessões ao grupo revoltoso”. Em ambos casos, o restante de seu trabalho
seria detalhar as razões e fatos que o levaram a acreditar na proposição.
Ao começar a compor uma argumentação pergunte-se ”Qual é minha idéia
central?”. Por exemplo, a idéia central desta seção é transformar você em
alguém mais hábil em argumentação, para isso estamos argumentando que um
passo importante no processo é entender o próprio conceito de ”argumentação”.
Se seus argumentos não têm uma idéia principal, o que, exatamente, você dis-
cutirá? Seus ensaios, em particular aqueles escritos na universidade, devem:
provar que você entendeu o material coberto e, mais importante, demonstrar
sua habilidade para usar ou aplicar o material aprendido para além do que você
leu ou ouviu. Esta segunda parte pode ser atingida de várias formas: você pode
criticar o material, aplicá-lo a algo diferente ou explicá-lo de uma forma difer-
ente. Para ser capaz disso, no entanto, você deve escolher um ponto central
para criticar, manipular ou aplicar.
2.1. ARGUMENTOS 17
2.1.2 Evidência
Ter identificado uma proposição central é apenas parte do trabalho. É necessário
encontrar evidência que dê suporte a esta proposição. A força das evidências
apresentadas e o uso que você fizer delas farão toda diferença entre o sucesso e o
fracasso de sua linha argumentativa. Certamente este tipo de uso de evidências
não deve ser novo para você, lembre-se da última vez que tentou convencer
alguém, seu chefe a te dar um aumento ou seus pais a te emprestarem o carro.
Pense a respeito do que tipo de argumentação e o tipo de evidência que utilizou.
Cada área do conhecimento apresenta requisitos diferentes para o que se-
riam evidências aceitáveis. É, necessário, portanto, familiarizar-se primeiro
com as evidências utilizadas em trabalhos no campo de interesse. Para isso
é necessário estudar o trabalho de outros autores (não esquecendo de citá-los
em seu próprio trabalho). Evite utilizar qualquer ”evidência”que você goste
mais, preste atenção nos livros texto relevantes e nas aulas de seus professores e
procure aprender com eles o que é considerado aceitável e o que não é. O mesmo
tipo de evidência que satisfaz um professor de Literatura, pode não satisfazer
um de Sociologia, o mesmo tipo de evidência que satisfaz um Fı́sico pode não
satisfazer um Matemático. Procure aprender o que conta como demonstração
em cada área do conehcimento, se estatı́stica, lógica, se é a forma que algo
funciona ou algum atributo estético.
Após treinar o suficiente você estará pronto para decidir por conta própria
e até criticar a aceitabilidade de evidências propostas por outros. Na carreira
acadêmica este domı́nio é conquistado aos poucos, o grau de independência
tende a aumentar conforme avançamos, da graduação para o mestrado, para o
doutorado, para a livre docência e, finalmente, para a titularidade.
Procure fazer uso consistente de sua evidência. Cada evidência apresentada
deve ser apropriada para a particular afirmação que se deseja demonstrar, uti-
lize, se necessário, evidências de vários tipos (histórica, estatı́stica, lógica, etc...)
no mesmo texto. Mantenha a argumentação organizada e sem detalhes irrel-
evantes para demonstração da tese central. Assim se quiser demonstrar, por
exemplo, que ”a organização escravocrata das relações de trabalho brasileiras é
responsável pelos altos juros” não continue o texto, por exemplo, listando es-
tatı́sticas mundiais de renda, o mais apropriado seria fazer um resumo histórico
18 CAPÍTULO 2. ARGUMENTAÇÃO E FALÁCIAS
2.1.3 Contrargumentos
Uma forma de fortalecimento de sua argumentação é antecipar e discutir con-
trargumentos ou objecções que possam surgir. Considerando também aquilo
que pessoas que discordam de você poderiam argumentar você demonstra pro-
fundidade na discussão e identifica quais seriam as razões para que sua possı́vel
audiência resistisse a suas idéias.
Você pode construir contrargumentos refletindo sobre o que uma pessoa que
discorda de você diria sobre cada ponto que apresentado na argumentação. Se
você achar difı́cil imaginar uma posição contrária a sua tente as seguintes es-
tratégias: pesquise e procure autores com posições contrárias, converse com seus
colegas ou professores. Outras pessoas podem imaginar objeções que você não
vislumbrou. Pense na conclusão e nas premissas de sua argumentação e imagine
alguém que nega ambos. Por exemplo, se seu argumento for: ”Gatos são os mel-
hores bichos de estimação porque são independentes e limpos”, pode-se imaginar
alguém afirmando o contrário: ”Gatos não são os melhores bichos de estimação
pois são sujos e dependentes”. A partir disso é mais fácil perceber onde está
a fragilidade do contrargumento. Você poderá então, antecipadamente, elabo-
rar sua resposta: você pode, por exemplo, aceitar que seu oponente tem certa
razão e explicar o motivo pelo qual mesmo assim o seu argumento é correto
ou você pode rejeitar totalmente o argumento de seu oponente e explicar onde
está o erro. De qualquer forma, a idéia é mostrar para sua audiência que seu
argumento é mais forte que os contrargumentos apresentados.
Ao apresentar contrargumentos procure fazê-lo da forma mais neutra e obje-
tiva possı́vel. A idéia é mostrar o mérito de seu argumento baseando-se apenas
nas evidências e na razão. Em geral, prefira analisar um ou dois contrargu-
mentos de forma profunda a muitos de forma superficial. Certifique-se de que
suas respostas são consistentes com seu argumento inicial, se após a análise de
um contrargumento você mudar de posição, será necessário rever seu argumento
original de maneira apropriada.
2.1.4 Audiência
Diferentes argumentos funcionam em diferentes situações. Reflita a respeito
das preferências de sua audiência. Estatı́sticas podem funcionar muito bem
com um cientista polı́tico e muito mal com um diretor de teatro. É certamente,
razoável esperar que na universidade sua audiência seja constituida por pes-
soas suficientemente inteligentes para entender seus argumentos mas que não
necessariamente concordam com seus pontos de vista. Não basta que você ex-
presse uma opinião, é necessário prová-la (nada de ”opiniões pessoais não se
discutem”!). Também não suponha que sua audiência seja genial e que não seja
necessáriomostrar evidências de forma clara. Em resumo, seja o mais explicito
e claro possı́vel sem ser óbvio e redundante.
2.2. FALÁCIAS 19
2.2 Falácias
É frustrante quando apenas conseguimos perceber de forma vaga que aquilo
que acabamos de ouvir é um completo absurdo sem sermos capazes de dizer
exatamente o porquê. Ser capaz de analisar argumentos requer raciocı́nio claro
e cuidadoso o que requer certo rigor que, por sua vez, só pode ser obtido com
um pouco de disciplina e prática. De fato, antes de sermos capazes de utilizar
nosso próprio raciocı́nio de forma livre mas eficaz, é interessante que adquiramos
conhecimento sobre as possı́veis armadilhas às quais mentes despreparadas estão
expostas. Dessa maneira a idéia central deste texto é evitar os absurdos argu-
mentativos pelo conhecimento das armadilhas que podem contê-los.
Comecemos nosso trabalho listando alguns princı́pios bastante gerais que
condensem a forma como a maioria das pessoas tende a pensar e responder a
argumentos. Em geral as pessoas:
5. não são boas ouvintes, tendendo a ouvir de forma seletiva e apenas prestar
atenção naquilo que têm interesse;
13. freqüentemente não dizem aquilo que gostariam de dizer e não querem
dizer aquilo que dizem.
Aos princı́pios acima poderı́amos ainda adicionar quatro outros (J.A.C. Brown,
Techniques of Persuasion): (1) a maioria das pessoas prefere acreditar que os
assuntos são simples e não complexos; (2) desejam que seus preconceitos sejam
confirmados; (3) gostam de se sentir parte de um grupo, implicando que os
outros não pertencem ao mesmo grupo e (4) precisam eleger um inimigo a quem
possam culpar por suas frustrações .
Os comentários acima podem parecer duros e crı́ticos com relação à natureza
humana. Podem até mesmo parecer parte de uma linha de argumentação que
se encaixaria perfeitamente no item 3 da lista adicional do parágrafo anterior.
No entanto sua intenção é apenas listar sem julgamento a inclinação natural da
espécie humana à ser subjetiva ao invés de objetiva. É enfatizar que a mente
humana, quando não treinada, tenderá a seguir o caminho de menor resistência
que raramente é um caminho que passa pela Razão.
2.2. FALÁCIAS 21
São pelo menos três as observações que poderiam ser feitas a respeito dessa
linha argumentativa: (1) ninguém, em princı́pio, tem o direito de controlar
nossos estados emocionais; (2) na ausência de evidências não há motivos para
acreditarmos que deverı́amos nos sentir culpados por nosso conforto; (3) mesmo
que existissem evidências de conexões entre a miséria mundial e nosso conforto e
que moralmente acreditassemos que deverı́amos nos sentir cupados por isso, não
há garantias, apenas pelo anúncio, de que nosso dinheiro irá de fato ao combate
à miséria.
Ainda outro exemplo: “Se eu não passar em sua disciplina, não me formarei
este ano e perderei meu emprego”. Nessa linha argumentativa há a tentativa
de responsabilizar o professor, fazendo-o se sentir culpado por uma eventual
perda de emprego. A responsabilidade pela aprovação, dados os parâmetros da
avaliação, é, no entanto, do aluno.
O apelo ao medo (argumentum ad mentum) tenta assustar o interlocutor
para convencê-lo a aceitar uma ação ou crença especı́fica. “Se você não atingir
o inimigo primeiro, ele irá destruı́-lo”. Ou ainda,“Se o senhor insistir em fechar
a fábrica por causa da poluição que causa, centenas de eleitores seus ficarão sem
emprego”.
Apelo à esperança. “Se fizer X, Y poderá ocorrer, portanto, se quer que
Y ocorrá, faça X”. Aqui a tentativa é de convencer o interlocutor a fazer X,
oferecendo a possibilidade de Y, mas não há garantias de que Y ocorrerá. Por
exemplo, uma propaganda de loteria poderia afirmar: “Você pode ser o próximo
ganhador”. A ênfase em nossa esperança pode fazer com que julguemos de forma
equivocada o grau de improbabilidade do evento Y dado o evento X.
Apelo à vaidade. Elogios pessoais podem gerar sentimentos positivos com
relação à pessoa que argumenta que podem se confundir com o significado real
daquilo que ela diz. Esta é uma estratégia comum para minimização de oposição
à idéias.
Apelo ao status. A aparência de quem argumenta pode influenciar na
aceitação do argumento. Por exemplo: um orador chega em um carro caro
e trajando ternos de grife cara tende a ser levado mais a sério que outro orador
que não utiliza estes recursos.
Apelo à confiança. “Como você não concorda comigo, você não confia em
mim”. Ou ainda: “Ou você está do meu lado ou está contra mim”. Esta linha
de argumentação é particularmente injusta. O fato de não concordarmos com
um particular argumento de alguém nada tem a ver com nosso sentimento geral
com relação a esta pessoa.
Apelo à sinceridade. Este tipo de estratégia é bastante efetiva e comumente
utilizada por polı́ticos e vendedores. A pessoa adota um tom honesto, sincero e
modesto. A pessoa aparenta estar falando do fundo do coração. Ela frequente-
mente pausa e escolhe as palavras que utiliza. A pessoa dá impressão de que
seus sentimentos são tão profundos que são difı́ceis de traduzir em palavras.
Ela frequentemente repete palavras para dar ênfase a certas idéias e se utiliza
de advérvios tais como: realmente, genuinamente, verdadeiramente, absoluta-
mente. Esta forma tenta convencer o interlocutor de que o que está sendo dito é
o que quem argumenta crê com sinceridade. No entanto, a sinceridade de quem
2.2. FALÁCIAS 23
2.3 Exercı́cios
1. Releia de forma crı́tica este capı́tulo. Comece seu ”diário intelectual”
conforme apresentado na seção 2.1.5.. Tente utilizá-lo em todo curso de
TADI.
2. Construa um argumento como alguém que seja a favor do vegetarianismo
por razões éticas. Construa o mesmo argumento como alguém contrário
ao vegetarianismo por razões éticas. (Caso tenha interesse particular por
essa questão leia: Peter Singer, Liberação Animal, Ed. Lugano, 2004.)
3. Construa um argumento como alguém que seja a favor da publicação de
charges de Maomé em nome da liberdade de imprensa. Construa o mesmo
argumento como alguém contrário à publicação por razões éticas. Esta
argumentação será utilizada como atividade em sala de aula,
portanto, procure escrever sua argumentação e pensar na con-
trargumentação e audiência.
4. Procure em jornais e revistas um exemplo de linguagem emocional. À
luz do texto acima, comente as falácias encontradas no exemplo. Estes
exemplos serão requisitados em aula e valerão bonus de participação.
5. Experimente utilizar os estratagemas de Schoppenhauer com seus colegas
ou familiares.
2.4 Referências
Parte deste capı́tulo (seção 1) foi adaptada de:
• Arguments are everywhere...,
http;//www.unc.edu/depts/wcweb/handouts/argument.html,
University of North Caroline at Chapel Hill, UNC-CH Writing Center
(2005).
Parte deste capı́tulo (texto inicial, seções 2.2.1 e 2.2.2) foi adaptada do seguinte
livro:
• Gula R.J., Nonsense: A Handbook of Logical Fallacies, Axios Pr, 2002.
Para saber mais sobre Lógica Informal:
• Walton, D.N., Informal Logic: A Handbook for Critical Argumentation,
Cambridge University Press, 1994.
Sobre falácias leia também:
• Frankfurt H.G., Sobre Falar Merda, Intrı́nseca, 2005.
O ensaio de Schopenhauer citado está em:
• Schopenhauer A., A Arte de Ter Razão, Martins Fontes, 2005.
28 CAPÍTULO 2. ARGUMENTAÇÃO E FALÁCIAS