Tema 3 - A constituição da ordem senhorial e as relações de poder no mundo feudal
A construção de uma ideia de um passado feudal remonta ao “Renascimento”.
Nos séculos XV e XVI, juristas comentavam a compilação de leis lombardas Libri feodorum, composta no século XII, com versões com recensões do século XIII. O conjunto foi composto num contexto de retorno ao direito romano, tendo nesse a sua fonte de autoridade. Foi justamente esse vínculo estabelecido que possibilitou com que essa compilação se tornasse objeto de estudo nos séculos XV e XVI. Giacomo Alvarotto, em seu tratado De feudis, argumentava que o poder aristocrático era regulado por um mesmo corpus legal, a despeito de variações regionais. O jurista francês Fraçois Hottman apontava para o caráter vago e maleável da definição de “feudo”, o que tornava o Libri feodorum ambíguo: por um lado, havia uma autêntica base romana, porém, que foi deturpada pelo péssimo trabalho de copistas; por outro, possuía uma base nas antigas leis germânicas. Propunha-se no tratado De feudis commentatio tripartita uma análise desses elementos bárbaros, para a compreensão da trajetória do código jurídico sobre o feudo. A historicidade do feudo era então, portanto, circunscrita ao aspecto legal do direito sobre a terra, não tendo o seu caráter socioeconômico considerado. Kathleen Davis, em seu estudo Periodization and Sovereignty, demonstra como os escritos de juristas como Hottman foram produzidos num momento de debate sobre a reorganização e reordenação dos códigos jurídicos dos Estados no Ocidente. A finalidade era educativa, mas também política: o Direito Romano foi escrito tendo em vista a realidade específica da Roma antiga, não tendo aplicabilidade direta às realidades locais. Hottman, em particular, advogava em favor de um código jurídico especificamente francês pois, sendo ele calvinista, era contra as pretensões universalistas do Papado e do Império. Davis argumentou que o debate sobre a história do código feudal emergiu num momento de construção de impérios coloniais e de reclames por soberania, sendo essa busca pelas origens jurídicas locais a base para reivindicação de territórios e para argumentos políticos. Hottman adotou, para tanto, os argumentos de um jurista anterior, Charles Du Moulin, que reivindicava uma origem franca para leis presentes no Libri feodorum. Na narrativa histórica legal do século XVI, o tempo em que se vivia não era entendido como a superação da jurisprudência feudal, mas na sua culminância, em termos que o “absolutismo” monárquico e o escravismo eram entendidos em termos feudais. A abrupta ruptura entre o medieval e o moderno não estava posta para esses intelectuais. Foi com o Conde de Boulainvilliers que o feudalismo foi compreendido, pela primeira vez, como um “sistema”. Em seu tratado Historie de l´Ancien Gouvernement de France, em meados do século XVII, posicionou-se no debate conhecido como “Querela das Duas Raças”, em que os apoiadores da centralização monárquica reivindicavam a origem romana do governa na França (romanistas), enquanto os seus detratores reivindicavam a incompatibilidade da continuidade dessa centralização o caráter superior da nobreza francesa, que seria de origem germânica (germanistas). Para Boulainvilliers, os francos foram os libertadores da Gália, conquistada ilegitimamente pelos romanos. A repartição das terras da Gália entre os francos era legítima pelo direito do conquistador. Como proprietários independentes de perfil guerreiro, a elite franca estabeleceu relações de reciprocidade com os camponeses, em que os primeiros assegurariam a proteção e os segundos trabalhariam. Disso, explicava a origem, o apogeu e o funcionamento desse sistema feudal. Em contrapartida, o abade Dubos, em seu ensaio História crítica do estabelecimento da monarquia francesa na Gália, adotava uma postura romanista favorável à realeza. Segundo os argumentos do autor, os francos não eram conquistadores da Gália, mas aliados de Roma que adentraram na Gália com o consentimento imperial. Como eram minoria, os francos tiveram que adotar uma postura moderada no trata com os galo-romanos – o que implicaria que os guerreiros nunca obtiveram a dominação na região. A partir de tais inferências, Dubos apontava para o direito de soberania do rei, que deveria prevalecer sobre os nobres, tendo em vista que a função de executar o assentamento na Gália foi delegada pelo Império Romano. O feudalismo, em que os nobres teriam amplos direitos sobre suas terras, consistiria numa usurpação do legítimo poder régio. Os debates em curso no século XVIII sobre a questão feudal estavam norteados por um ambiente intelectual de oposição à monarquia e aos privilégios nobiliárquicos. O direito feudal era então entendido como um sistema de exploração dos camponeses derivados da ausência de um Estado e da detenção do poder por indivíduos privados. O termo “feudalidade” era então utilizado em alusão aos privilégios e prerrogativas da nobreza, que não poderiam ser justificadas pela razão ou pela justiça. Montesquieu, no Espírito das Leis, e Voltaire defenderam tal postulado. A abolição do “regime feudal” pela Assembleia Nacional (1789) no início do processo revolucionário francês aprofundou o feudalismo como pauta de polêmica intelectual, afinal, era necessária a compreensão do que consistiria esse regime o qual se pretendia abolir. Alain Guerreau atestou que foi justamente no século XVIII que se procedeu uma dupla fratura conceitual, que criou impeditivos de compreender a lógica feudal de mundo, dada a ruptura em relação aos esquemas mentais que estruturavam aquele contexto: o dominium e a ecclesia. Enquanto o primeiro se referia a uma relação de poder que compreenderia homens e terras de forma indissociável, o segundo remetia à uma instituição que sacralizava a ordem social constituída e, por esse motivo, era a espinha dorsal. Essa fratura decorreria do surgimento da propriedade privada e da ideia de religião como escolha pessoal. As primeiras formulações que sublinhavam a dimensão econômica do feudalismo se deram nos trabalhos de Adam Smith e James Stewart. Em seu The wealth of nations, Adam Smith cunho o termo “sistema feudal” para descrever uma forma de produção governada não pelas forças do mercado, mas pela coação e pela força dos senhores. A exploração dos camponeses pelos seus senhores nesses termos resultaria numa sociedade marcada pela pobreza, brutalidade e grades desníveis entre ricos e pobres. No decorrer do século XIX, as investigações históricas sobre o feudalismo estavam intrinsecamente relacionadas aos debates sobre a História, particularmente quanto às formulações no campo da Filosofia da História. Os diversos trabalhos historiográficos do período que abordavam o tema ressaltavam o caráter agrário, aristocrático e militar das relações feudais. Sendo a História compreendida como um processo evolutivo com racionalidade própria, as concepções do lugar da Idade Média e de seu sistema feudal estavam atreladas à compreensão de história e do ofício do historiador do seu autor. Nomes como François Guizot, Fustel de Coulanges, Jacques Flach e Charles Mortet empreenderam esforços investigativos para definir o feudalismo a partir das referências intelectuais em voga no momento em que escreveram. Ainda acerca dos oitocentos, cabe destacar as reflexões de Karl Marx sobre o tempo. Na verdade, Marx não privilegiou o estudo do feudalismo, fazendo apenas apontamentos esparsos em seus escritos a esse respeito, sendo o seu posicionamento variante conforme o objetivo de cada texto. De todo modo, sua definição de feudalismo era similar às propostas dos estudiosos liberais que lhe eram contemporâneos, salientando os privilégios econômicos e jurídicos desfrutados por uma aristocracia que detinha as terras e subordinava os camponeses. Sua maior contribuição, que teria muita influência nos debates subseqüentes, seria a definição do feudalismo como um modo de produção que constituiria um estágio histórico entre o escravismo antigo e o capitalismo moderno. No que concerne aos estudos sobre o feudalismo no decorrer do século XX, tradicionalmente agrupa-se as abordagens para a caracterização do feudalismo em três categorias. A primeira delas é a corrente institucionalista, que teve na obra do historiador belga François-Louis Ganshof seu mais influente adepto. Em 1944, em seu livro O que é o feudalismo?, definia o feudalismo a partir da ênfase no feudo, nos senhores e nas relações de vassalagens. Para o medievalista, o feudalismo era um conjunto de instituições em que um homem livre (o vassalo) estabelecia um compromisso de obrigação e serviço (principalmente de caráter militar) com outro homem livre (o suserano), recebendo em troca proteção e forma de sustento (o feudo). Esse conjunto de instituições que estabelecia uma rede de relações entre nobres, que teriam no serviço de cavalaria seu cerne, resultaria do colapso da autoridade central e da concentração de poderes jurídicos e políticos nas mãos de aristocratas que detinham imunidades e direitos banais. Outros adeptos dessa corrente foram Joseph Strayer, Stenton e Carl Stephenson. Cabe salientar que foi entre os estudiosos de língua inglesa que a corrente institucional teve maior adesão. Sublinho, aqui, que tal concepção já havia sido anteriormente postulada por Max Weber, principalmente nas páginas de Economia e Sociedade. O sociólogo alemão sublinhou o aspecto político do feudalismo, ou seja, compreendia o fenômeno como uma forma de organização de governo. Em sua tipologia das formas de dominação, o feudalismo seria tradicional, tendo seu fundamento nas prerrogativas jurídicas e na identidade militar do grupo dominante. Também bastante influentes foram os estudos marxistas, que sublinhavam os aspectos socioeconômicos do feudalismo. Segundo os adeptos dessa corrente, o feudalismo poderia ser considerado um modo de produção em que uma casta militar detentora das terras exploraria economicamente uma massa de camponeses, cobrando- lhes uma série de encargos. Uma perspectiva de Adam Smith sobre o tema, também presente na obra de Marx, seria recorrentemente adotada: a de que o feudalismo seria avesso ao desenvolvimento do mercado. Entre os historiadores marxistas, houve intensos debates a respeito das transições entre modos de produção – aspecto fundamental na Filosofia da História desenvolvida por Marx e Engels.