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Walther von Loewenich

A TEOLOGIA
DA CRUZ
DE LUTERO

Tradu$äo:
Walter O. Schlupp
llson Kayser

i
WEditora
r Sinodal
1988
Traduzido do original alemão Luthers Theologia crucis, 6. edição inalte­
rada, 1982, (c) 1967 Luther-Verlag, Bielefeld, República Federal da Ale­
manha.

Os direitos para a língua portuguesa pertencem à

EDITORA SINODAL, 1987


Rua Epifânio Fogaça, 467
93030 - São Leopoldo - RS
Tel. (0512)92-6366

Tradução: pp. 5-102 : W alterO. Schlupp


pp. 103ss e notas: llson Kayser

Série: Teologia histórico-sistemática

Publicado sob a coordenação da Comissão de Publicações Teológicas da


Escola Superior de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana
no Brasil.

Capa

ISBN: 85-233-0127-5

Impressão:
SUMÁRIO

Prefácio ....................................... , ..................................................... 5


Introdução .............................................................................................. 7
PARTE I
O Programa da Teologia da Cruz no Debate de Heidelberg ......... 14
PARTE II
O Desdobramento do Programa da Teologia da Cruz ..................... 21
Capítulo I - A doutrina de Lutero a respeito do Deus abscôndito 21
A - O debate de Heidelberg ................................................... 22
B - Da vontade cativa ..................................................... .. 25
C - Preleção sobreIsaías ...................................................... 33
Capítulo II - A doutrina de Lutero a respeito da fé .................. 44
A - Delimitação crítica do conceito de fé ............................ 46
1. Fé e sindérese ............................................................ 46
2. Fé e intelecto ............................................................... 54
3. Fé e razão ................................................................. 62
4. Fé em oposição à experiência ................................... 74
5. Fé e experiência ........................................................... 86
B - Dando conteúdo positivo ao conceito de fé .................. 88
1. Fé como experiência ................................................... 90
2. Caracterização da fé em termos de conteúdo ......... 97
C - A unidade das duas determinações do conceito de fé . 104
PARTE III
A Vida sob a Cruz ............................................................................... 111
A - A abscondicidade do estado cristão .............................. 113
B - O estado cristão como discipulado do sofrimento . . . . 117
C - Descrição do conceito da cruz em pontos concretos . . 124
D - Humildade, tentação, oração .......................................... 129
1. A humildade ................................................................. 129
Excurso sobre o conceito de humildade em Bernardo 133
2. Tentação ...................................................................... 136
3. Oração .......................................................................... 141
PARTE IV
Teologia da Cruz e Mística ................................................................. 146
I - Preliminares sistemáticos ................................................... 147
II - Análise histórica ................................................................... 149
A - Tauler .......................................................................... 150
B - Teologia Alemã ............................................................ 158
C - Devoção Moderna ........................................................ 163
Conclusão ............................................................................................ 169
Posfácio à 4- edição .......................................................................... 170
Bibliografia .......................................................................................... 177
Prefácio à 5 - edição

A 4- edição do meu primeiro trabalho a ser publicado, Luthers


Theologia crucis, (1929) saiu pelo Christian Kaiser Verfag em 1954. O
adendo a essa nova edição de 1954 fala das reservas relativas a tal ree­
dição, bem como das razões que finalmente induziram editor e autor a
dar aquele passo. Já há mais de cinco anos que também essa reedição
está esgotada. A presente edição, em apresentação externa diferente, se
deve à grande procura especialmente da parte de teólogos mais jovens
por esse livro. Também desta feita desisti de uma revisão completa; as
razões para tal já constam no adendo à reedição de 1954. Para mim elas
continuam igualmente válidades hoje. Devo chamar a atenção do leitor
da presente edição para as retratações e considerações críticas ali apre­
sentadas. Complementando, gostaria de lembrar meu relato sobre Die
Luíherforschung in Deutschland em Lutherforschung Heute (editado por
Vilmos Vajta, Lutherisches Verlagshaus, Berlin 1958, p. 150ss.), bem co­
mo meu livro Luíher und der Neuprotestantismus (Luther-Verlag, Witten
1963). A interpretação de Lutero que ali dei no capítulo 3 não significa
que eu deixasse de professar a permanente causa da teologia da cruz, de
Lutero (cf. sobretudo §§ 29-32). Parece que no posicionamento frente à
teologia da cruz mais uma vez ocorre nos dias de hoje uma separação
dos espíritos - dentro da própria teologia evangélica e no diálogo entre
as confissões. Aquilo que sucedeu após o final da Primeira Guerra Mun­
dial, a nova eclosão de cristianismo da Reforma, deveria continuar vivo
também na geração de hoje.
Se é que a presente reedição de “Lutero e sua Teologia da Cruz”
pode contribuir para tal, ela terá cumprido a sua finalidade.
Erlangen, julho de 1967.

Walther von Loewenich

5
Prefácio à 6- edição

O prefácio à 5- edição dá conta dos motivos e considerações que


levaram a uma reedição a minha obra "Lutero e sua Teologia da Cruz“.
Não cabe complementar aqui a bibliografia científica cada vez mais am­
pla. Lembremos, porém, Bernhard Lohse, Martin Luther. Eine Einführung
in sein Leben und Werk (Beck'sche Elementarbücher, Munique, 1981) e
minha biografia de Lutero Martin Luther. Der Mann und das Werk (List
Verlag, Munique, 1982). O Luther-Jahrbuch da Luther-Gesellschaft apre­
senta anualmente, desde 1957, uma bibliografia completa de todas as
novas publicações.
Erlangen, 1982

Walther von Loewenich

6
Introdução

Por mais que divirjam as opiniões a respeito da chamada “teologia


dialética”, por mais que a considerem carente de complementação e cor­
reção, por mais que alguém decididamente se distancie da mesma, em
todo caso será preciso adm itir que de modo geral é ela que dita à teolo­
gia de hoje o seu enfoque. Problemas que, já há mais tempo do que al­
guns representantes da “teologia dialética” gostariam de admitir, mexiam
com certos grupos de teologia cristã, mas não eram ouvidos direito em
meio ao barulho reinante na teologia de então, esses problemas de re­
pente se tomaram centrais, viraram foco do interesse geral. E alguns gos­
tam de pensar que agora nos encontraríamos em plena virada da teologia
do século XIX e início do século XX, determinada por Schleiermacher.
Efetivamente nossa situação atual se caracteriza por maior insegurança
face a posições tradicionais, do que a geração anterior a nós certamente
conheceu. Sintoma disso é a pergunta tão discutida hoje: "Que é teolo­
gia?”
Uma coisa já se pode constatar agora como resultado da crise do
momento: hoje sabemos melhor que antigamente o que distingue a teo­
logia de outras áreas do espírito humano. Hoje não há mais sequer um
teólogo de renome que pense seriamente em substituir “teologia” por
ciência da religião. Acontece que hoje enxergamos com demasiada clare­
za as diferenças entre o cristianismo e o mundo das religiões. Justamen­
te em função desse resultado negativo temos uma dívida de gratidão pa­
ra com o trabalho prestado pela escola histórico-religiosa. Mas o que hoje
se nos apresenta com maior nitidez que antigamente não é só a peculia­
ridade da matéria a ser tratada pela teologia; também voltamos a apren­
der que essa matéria especial exige um método especial. Para aquele
que está de fora, teologia pode parecer uma insustentável fórmula de
compromisso entre história, filologia e filosofia; o teólogo de hoje está
novamente consciente de que presta um trabalho cognitivo de natureza
própria e bem determinada. Hoje voltamos a falar com ênfase maior de
um pensamento “teológico".
Mas em que consiste esse método teológico especial? Ele consis­
te em que a teologia, em nenhum dos seus enunciados, deixa fora de
consideração o fato de ela falar exclusivamente com base na revelação

7
ocorrida em Jesus Cristo. Teologia cristã é teologia de revelação. Mas is­
to não representa apenas um critério formal. Não é só o “fato” da revela­
ção, mas também seu conteúdo e sua forma têm importância c o n s titu ti­
va. Em termos concretos: o logos ao qual toda teologia precisa repor­
tar-se é “palavra da cruz” . Talvez alguém objete que isto seja uma restri­
ção arbitrária. Com a ênfase unilateral sobre a cruz a teologia protestante
teria barrado a si própria o caminho para a plenitude da mensagem neo-
testamentária, com todas as funestas conseqüências. Não vamos exami­
nar aqui o histórico direito de se fazer essa objeção: apenas indagamos:
Será que realmente se acredita chegar àquilo que é crucial na mensagem
neotestamentária, dando a volta ao redor dessa palavra da cruz? Mas no
momento em que se leva em consideração o fato da cruz, logo se mostra
que inesperadamente ela passa a ocupar o lugar central. Pois em ne­
nhuma outra parte a peculiaridade da mensagem neotestamentária se
mostra com tanta clareza como nesse fato. A “palavra da cruz" foi, por­
tanto, a característica que decididamente afastou o protocristianismo do
sincretimo reinante no mundo religioso de então.1
Portanto não foi nenhum acaso, mas algo profundamente enraiza­
do na causa em si, que levou o primeiro teólogo cristão a caracterizar de
“palavra da cruz” a mensagem que lhe foi incumbida (1 Co 1.18). Para
o judeu Saulo a cruz foi a grande pedra de tropeço. A partir da cruz é que
se abriu para o cristão Paulo um conceito de Deus totalmente novo. Co­
nhecimento de Deus e palavra da cruz para ele estão profundamente vin­
culados. É claro que a palavra da cruz é "tolice”, mas somente na tolice é
que Deus pode manifestar sua sabedoria. Esta foi a grande nova intuição
de Paulo. O fato de o crucificado ser o Messias - algo inaudito para ou­
vidos judeus - abriu-lhe os olhos para a lei sob a qual se encontra a re­
velação de Deus. Deus se revela de forma velada: a sabedoria de Deus
se apresenta às pessoas humanas como tolice; a força de Deus vem a se
consumar na fraqueza; a glória de Deus pode ser contemplada na humil­
dade; a vida de Deus se toma poderosa na morte de seu Filho. Isto signi­
fica, além disso, que para o ser humano é impossível o conhecimento di­
reto de Deus. Em sua sabedoria o mundo não conheceu a Deus, a divin­
dade e força eterna de Deus lhe ficaram ocultas. Revelação, conhecimen­
to de Deus somente há na “tolice da mensagem”. Por isso a “tolice de
Deus” é mais sábia que a sabedoria humana, a “fraqueza de Deus” mais
forte do que a força humana. A partir da cruz resulta uma inversão de to­
dos os valores. Justamente o que é inferior no mundo, o que nada é, isto*2

1 Cf. HOLL, Urchristentum und Religionsgeschícnte, 1925 (agora: "Gesammelte Aufsätze” v.


2, pp. 1-32).

8
Deus escolheu. Mas na comunhão com Cristo somente entra quem parti­
cipa de sua morte. A vida dos cristãos está oculta com Cristo em Deus.
Na cruz, portanto, Paulo vê tanto a lei que rege a revelação de Deus,
quanto a lei que rege o conhecimento de Deus e a vida do cristão. Todo
o pensamento de Paulo é dominado pela idéia da cruz, é teologia da
cruz.
Não houve teólogo na igreja cristã que tenha feito ressuscitar, co­
mo Lutero, essas idéias de Paulo. Foi Lutero quem, em Heideiberg, na
primavera de 1518, contrapôs expressamente seus “Paradoxos” teológi­
cos como “teologia da cruz”, à “teologia da glória”, isto é, à teologia ecle-
sial dominante. Evidentemente ele se serviu dessa formulação porque
nela encontrou a caracterização mais sucinta e certeira da peculiaridade
do evangelho, a contrastar com a teologia oficial. É a herança de Paulo
(observe as citações WA 1,361,34; 362,5,9s.), que Lutero levanta com sua
teologia da cruz contra uma igreja que se tomara segura e saciada.
Que significa essa fórmula em Lutero? Esta é a questão que deve­
rá ser esclarecida com a análise abaixo. Mas de saída precisamos fazer
uma observação preliminar. Na pesquisa hodierna está convencionado de
um modo geral que sob "teologia da cruz” em Lutero se deve entender a
teologia pré-reformatória do mesmo. Entretanto são raras as definições
claras do que seria propriamente “teologia da cruz".2 Geralmente essa2

2 Oferecemos aqui um resumo em ordem cronológica sobre as definições de conceitos de


“ teologia da cruz” na literatura até agora publicada. (Para indicações bibliográficas exatas
consulte a bibliografia.)
Theodosius HARNACK, Luthers Theologie, 1862, menciona o termo “ teologia da cruz" ape­
nas de passagem sob indicação do Debate de Heideiberg (v. 1, p. 41 da nova edição de
1927). No entanto, ele observou de forma correta que aqui se trata da questão do método
teológico e não apenas de uma questão prático-ética. Para ele o termo é uma abonação para
a atitude cristocêntrica anti-especulativa da teologia de Lutero (“ De baixo para cima!’! . Ele
não é colocado em relação especial com o Lutero jovem. Também é de se observar o mote
(Operationes in psalmos 6,11) que Hamack coloca no início de seu livro, ainda que o mesmo
não deva ser entendido aqui exatamente no mesmo sentido que em nosso trabalho. Ao colo­
car no centro da teologia de Lutero a doutrina da reconciliação, também os interesses da
teologia da cruz estão representados. Esta observação sugere um estudo sobre a relação
entre teologia da cruz e a doutrina da reconciliação (em especial a da ortodoxia). Hermann
HERING, Die Mystik Luthers, 1879, contém um capitulo especial sobre “ cruz e teologia da
cruz” (pp. 86-90). No entanto, para ele a cruz tem apenas significado ascético. Ele não re­
corre ao Debate de Heideiberg. "Cruz” significa “ ser aniquilado” , resume-se na “ mortifica­
ção". A isso corresponde analogamente quando Hering enxerga na teologia da cruz nada
mais que uma herança da mfetica “ germânica" (Tauler). Vô-se uma diferença entre Lutero e
a mfetica, é verdade (p. 89), mas não há aproveitamento critico. (Cf. sobre Hering nosso ca­
pitulo ‘Teologia da cruz e mfetica” l) Hering desconhece um significado da idéia da cruz.
Siegfried LOMMATZCH, Luthers Lehre, 1879, pp. 631ss. A cruz e o sofrimento tomam um lu­
gar preponderante, decisivo na ética de Lutero. "Destarte, a ética do Reformador é a teologia
da cruz, a qual ele contrapõe à doutrina romana." (p. 105.) Lutero aprecia a cruz primeiro no
sentido ético-pedagógico, segundo como martírio. A cruz prende-se, da forma mais íntima, a
esperança A tendência negativa da ética criticada como sendo deficiente, é atribuída à ten-

9
fórmula aparece como algo que dispensa maior discussão. Mas, ao que
parece, as ocasionais manifestações tacitamente pressupõem, na maioria
dos casos, que "teologia da cruz” representa o estágio pré-reformatório da
teologia de Lutero. Otto Ritschl foi quem expressou com maior clareza
essa tese, ao dedicar capítulo próprio a essa teologia da cruz pré-reforma-
tória de Lutero em sua Dogmengeschichte des Protestantismus, v. II, 1.

dência da mística quietista. Também é tangida uma relação entre a doutrina do Deus abs-
cóndito (segundo Lommatzsch, igualmente "mística") e a da cruz (p. 105).
August Wilhelm DIECKHOFF, Lulhers Lehre m ihrerersten Gestalt, 1887, estabelece a tese:
"A doutrina da cruz em sua relação com o arrependimento coloca-se, ao lado da doutrina da
lé, no centro das idéias doutrinárias de Lutero." (p. 142.) Na prática, porém, ela só encontra
lugar sob o capitulo "A santificação” , portanto, bastante à margem das idéias doutnnárias de
Lutero, onde a me ma é ricamente abonada, abonações estas que, todavia, apenas enfatizam
o significado ascético-prático da cruz.
Julius KÕSTLIN, Luthers Theologie, 1901, não oferece nenhum esclarecimento sobre o con­
ceito da teologia da cruz; sequer o menciona em sua (curta) análise do Debate de Heidelberg
(v. I, p. 184).
Karl BAUER, Die Heidelberger Disputation Luthers, 1901, oferece mais as relaçóes históricas
das teses de Heidelberg do que uma exposição coesa de seu conteúdo doutrinário. (Quanto
a seu juízo sobre a relação entre teologia da cruz e mística, veja nosso capítulo "Teologia da
cruz e mística".) Sua opinião sobre a teologia da cruz veja à p. 323; "As explanações sobre a
teologia da cruz, por mais evangélico que seja seu cerne, no entanto, correspondem muito
mais ao ambiente de fuga do mundo no catolicismo do que à intervenção ativa no curso das
coisas, como corresponde ao cristianismo evangélico."
KÕSTLIN-KAWEFtAU, Martin Luther, 1903, menciona a teologia da cruz (p. 174), não ofere­
cendo, no entanto, nenhuma definição conceituai positiva.
Friedrich LOOFS, Leitladen, 1906, pp. 723ss., compreende o conceito da teologia da cruz a
partir do Debate de Heidelberg. Ele vê no programa da teologia da cruz a rejeição por parte
de Lutero da mística especulativa de Dionfsio, mas também de Agostinho, sendo neste pro­
grama acentuada a exclusiva relação com o Cristo histórico. Todo reconhecimento de Deus
está encerrado no Cristo encarnado. A humildade do Cristo histórico é centro de revelação.
Com isso Lutero vai além de toda mística, inclusive além de Bernardo, e, sem qualquer co­
nhecimento histórico-dogmático do antigo modalismo religioso, retoma a esse círculo de
pensamentos. Teologia da cruz versus teologia da glória significa teologia histórico-salvltica
contra teologia especulativa. Para nós é especialmente intessante na exposição de
Loofs o fato de ele apontar para a contraposição entre teologia da cruz e mística. É bem ver­
dade que ele tem em mente a mística ’ omântica. Quanto à influência da mística alemã sobre
Lutero, veja pp. 709s. (Ali não apare;i o termo “ teologia da cruz".)
Wilhelm BRAUN, Die Bedeutung dar Concupiszenz in Luthers Leben und Lehre, 1908, de­
nomina como a primeira das ‘três grandes experiências interiores que constituem a experiên­
cia monástica de Lutero" (p. 65) “ o antigo ideal monástico da humildade" (p. 50). No entanto,
não lhe ocorre o conceito da teologia da cruz que se lhe deveria ter oferecido neste contexto.
Otto RITSCHL, Dogmengeschichte des Protestantismus, 11,1,1912, dedica à teologia da cruz
um capitulo especial sob o significativo título: “ O pensamento pré-reformatório de Lutero co­
mo teologia da cruz" (pp. 40-84). Sob teologia da cruz entende Ritschl a teologia monástiéa
do Lutero. São citados como precursores de Lutero nesta teologia Agostinho, Bernardo,
Tauler e a "Teologia Alemã" (p. 83). Mesmo assim é admitido “ o cunho particular" da teolo­
gia da cruz de Lutero (/£>.) Quanto ao conteúdo, ela está determinada pelo ideal da humildade
que, uma vez mais, é atribuído aos precursores supramencionados (p. 48). Justamente nisto
revela-se o carácter monástico da teologia da cruz. Ritschl ioi o primeiro a dedicar à idéia da
teologia da cruz um estudo aprofundado. Ele vem abonado por uma abundância de citações.

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Segundo diz, essa teologia da cruz apresenta característas tipicamente
monásticas, representando bem por isso estágio preliminar ao Lutero
propriamente dito.
Em contrapartida defendemos a seguinte tese: A teologia da cruz
é princípio de toda a teologia de Lutero; ela não pode ser lim itada a um

Consideramos, porém, um prejuízo o fato de esta descrição náo vir precedida de uma defini­
ção de conceito. O Debate de Heidelberg, que há de servir como ponto de partida para este
fim, é citado, mas náo explorado suficientemente. O que se oferece è um corte transversal
pelos primórdios da teologia de Lutero, sendo que o ponto de vista, sob o qual ela é colocada
pelo titulo, náo é elaborado com suficiente nitidez. Isso, porém, se explica pelo fato de Ritschl
náo usar, em primeira linha, o conceito da teologia da cruz como caracrerística de determina­
da atitude mas de forma puramente histórica, como denominação de determinado período no
desenvolvimento de Lutero. Este se tomou reformador justamente pela superação da teologia
da cruz. ‘ Elevada ao clímax, esta monjaria mais refinada praticada por Lutero (a teologia da
cruz) teve que virar no contrário." (p. 84.) De acordo com esta frase, parece ser a opiniáo de
Ritschl como se a teologia reformatória de Lutero não apenas fosse sucessora de sua teolo­
gia da cruz, mas como se também estivesse em oposição a ela em termos de conteúdo ("no
contrário” ). A isso, porém, se contrapõem outros enunciados em que a teologia da cruz é de­
nominada “ o dote positivo" do monge Lutero à teologia e à igreja protestante, como “ o ta­
lento com o qual usurou incansavelmente em seus melhores anos e que também jamais foi
consumido por completo" (p. 84). Inclusive os “ interesses e diretivas da vida” posteriores “ de
modo algum negam sua procedência da teologia da cruz" (/£>.). No entanto, náo é modificada
somente a afirmação de uma contraposição da teologia reformotória e da teologia da cruz de
Lutero, no que diz respeito a seu conteúdo, mas também ao menos é restringida sensivel­
mente à tese básica' “ Teologia da cruz é teologia pré-reformaiória monástica de Lutero” -
quando se lê: “ Tal como a teologia da cruz, também a exaltação da humildade se estende
para bem longe dentro do período pré-reformatório de Lutero." (p. 50.) Essas observações
mostram que, antes de tudo, é preciso uma reflexão sobre o conceito de teologia cruz. Neste
caso, é daro, não se poderá manter a restrição do conceito à teologia pré-reformatória, o que
o próprio Ritschl não fez.
Reinhold SEEBERG, Die Lehre Luthers, 1917 (Dogmengeschichte IV, 1), traz, no § 75, um
capitulo próprio sobre a “ doutrina de Lutero em sua forma original", mas nem sequer men­
ciona ali o conceito da teologia da cruz (veja, porém, pp. 101,130).
Emanuel HIRSCH, Initium theologiae Lutheri, 1920 in: Festgabe für Kaftan, pp. 150ss.,
aponta para a explicação de Lutero do Salmo 4.4, em WA 111,62,36-63,9 e LVI,377,12ss., e
crê que este versículo se constitui para Lutero “ na chave para a teologia da cruz" (p. 162, n.
1). No entanto, não oferece uma explanação detalhada desse pensamento. (Essa contribui­
ção está reproduzida em HIRSCH, Lutherstudien II, 1954, 9ss. A citação: p. 24, n. 2.)
Karl HOLL, Luther, 1923, não traz o conceito teologia da cruz, no entanto, mostra claramente
(p. 91 s.), ainda que apenas em largos traços, a relação Interior de “ cruz", tentação, fé e con­
ceito de Deus (Deus abscôndito, “ Deus contra Deus").
Heinrich BÖHMER, Der Junge Luther, 1925, p. 142, aponta para o fato de que, nos anos ao
redor de 1517, Lutero preferia denominar sua teologia de teologia da cruz. Pela mística, Lu­
tero teria tido "chamado a atenção com especial ênfase” para o artigo de fé cristão-antigo da
graça do sofrimento inocente ou da cruz, que, para Lutero, sempre teria feito parte direta do
evangelho; no entanto, este artigo de fé teria, desde cedo, tomado outras feições em Lutero
do que nos místicos. O significado cognitivo-crltico-teológio da cruz não é discutido em Böh­
mer.
Georg MERZ, Der vorreformatorische Luther, 1927, apenas toca de passagem no conceito da
teologia da cruz. Menciona a tribulação como característica desta teologia (contrariando H.
Thomas, p. 166) e a auto-acusação (p. 249).

11
período particular de sua teologia. Pelo contrário, como também no caso
de Paulo, essa fórmula apresenta uma característica de todo o seu pen­
sar teológico.3 Nossa investigação não descreverá certa etapa de desen­
volvimento, e sim tratará de esclarecer um princípio de pensamento teo­
lógico de Lutero.
Quais observações nos levam à tese que acabamos de levantar?
Em primeiro lugar achamos que o único método correto na defini­
ção de um conceito será ater-se àqueles enunciados em que o conceito
procurado recebe sua especificação mais clara. O que Lutero quis fosse
entendido sob "teologia da cruz” ele expressou com toda a nitidez dese­
jável no Debate de Heidelberg3a (com o que ainda se poderia comparar,
por exemplo, a definição apresentada nas "Explicações” de 1518 WA*
l,522ss.). Que resulta daí para nós?
1. Antes de mais nada não vejo por que razão e com que direito
se aloca o Debate de Heidelberg (1518!) ao Lutero pré-reformatório. O
Debate de Heidelberg está entre as manifestações mais claras e funda­
mentais que possuímos de Lutero.
2. Então nossa tarefa primeira será, necessariamente, analisar a
fundo as manifestações que Lutero ali faz, se é que pretendemos obter
uma imagem mais ou menos correta do conceito “teologia da cruz”. Cau­
sa estranheza que esta tarefa tão pouco tenha sido enfrentada até agora.
Por esta razão colocamos à frente do nosso trabalho uma descrição des­
se programa da teologia da cruz, como o Debate de Heidelberg realmen­
te pode ser chamado.
3. Resulta, então, que na teologia da cruz de forma alguma nos
achamos diante de paráfrases do ideal monástico de humildade, e sim
diante de um princípio de cognição teológica muito peculiar, que tem seu
correlato exato na teologia da cruz do apóstolo Paulo. Uma vez reconhe­
cido isto, e lendo-se então algum escrito posterior de Lutero, por exemplo
De servo arbítrio ("Da vontade cativa”), percebe-se que o mesmo princípio
cognitivo é aplicado também ali consciente ou inconscientemente, aberta
ou veladamente.
Nossa investigação propôs-se verificar a importância desse princí­
pio cognitivo no pensamento de Lutero. Esperamos então, em primeiro
lugar, contribuir para a eliminação de uma lacuna na pesquisa de Lutero

3 Cf. o estudo programático de P. ALTHAUS, “ Die Bedeutung des Kreuzes in Luthers Denken".
In: Vierteljahresschrift der Luthergesellschaft, 1926, cad. 4, mas também já Th. Hamack.
3a Veja Martinho Lutero, Obras selecionadas, São Leopoldo e Porto Alegre, 1987, v. 1, pp.
35ss.
Todas as citações de Lutero säo estrafdas da Edição de Weimar (WA). Por isso indicaremos
apenas o volume, a página e a linha das abonações, omitindo a observação WA. (N. do E.)

12
desenvolvida até agora. A apresentação terá que mostrar ela própria se
nossa abordagem fica aprovada como princípio heurístico fecundo. Pois
cremos que lançará nova luz sobre determinadas áreas, e que certas coi­
sas até agora pouco notadas ganharão em importância.
Além disso não vamos ocultar que esse trabalho é sustentado pela
suposição de que Lutero ainda tem relevância na viva discussão atual.
Justamente com sua teologia da cruz! Afinal, não estamos presenciando
hoje uma inversão semelhante, de uma teologia da glória para uma teo­
logia da cruz, como a vemos em Lutero? Portanto nosso trabalho é moti­
vado por interesse muito vivo. Se alguém por isso achar que lhe falta
postura científica, não vamos ficar discutindo a respeito com ele. Entre­
tanto duvidamos que saiba algo de ciência autêntica. Objetividade cientí­
fica nunca consiste em neutralidade, menos ainda quando se trata de co­
nhecimento teológico. Ora, com esta afirmativa já nos colocamos no chão
da teologia da cruz.4

4 1. Queremos já a esta altura rejeitar a opiniáo como se nós não soubéssemos também que a
teologia da cruz de Lutero aparece de forma mais marcante em seus primórdios. Também
seja admitido tranquilamente que ali temos que constatar, vez por outra, traços monásticos.
Sobre as eventuais fontes medievais da teologia da cruz, veja o capitulo sobre “ Teologia da
cruz e mística” ! Em geral chamamos a atenção para mudanças características no pensa­
mento de Lutero no próprio texto. No entanto, não é correto querer restringir a teologia da
cruz de Lutero aos primeiros tempos de sua atuação teológica. (Veja ne 3!)
2. Nossas abonações para o pensamento do Lutero velho são extraídas com muita frequên­
cia da preleção sobre Gênesis (WA XLII - XLIV). Isso, porém, tem a desvantagem de a edi­
ção não ser do próprio punho de Lutero. As seguintes reflexões, no entanto, justificam assim
mesmo seu aproveitamento:
a) Em primeiro lugar podemos, em geral, confiar na confiabilidade dos apontamentos (cf.
também a opinião de BORNKAMM In: Vierteljahresschríft der Luthergesellschaft, 3, 1927, p.
60, n. 1).
b) Em segundo lugar contrapõem-se às restrições também grandes vantagens; em parte a l­
guma dispomos de tal abundância de pensamentos dogmáticos e éticos do Lutero velho do
que na preleção sobre Gênesis.
c) As idéias da teologia da cruz são uma característica decisiva para a diferença entre Lutero
e seus epígonos. Se essas idéias retornam ao primeiro plano de modo especialmente acen­
tuado justamente na preleção sobre Gênesis, trata-se, nesta tendência, de acordo com todas
as regras da dedução, não do trabalho da redação, mas confrontamo-nos aqui com o Lutero
“ autêntico” . No mais, não nos furtaremos de, repetidas vezes, colocar, nos detalhes, a per­
gunta a critica.
3. O fato de termos preferido apoiar-nos mais em preleções e comentários [bíblicos] de Lu­
tero do que em suas prédicas decerto não necessita de justificativa especial. (Veja também
Otto RITSCHL, v. 11,1, Prefácio, p. VI.)

13
PARTE I

O PROGRAMA DA TEOLOGIA DA CRUZ NO DEDATE


DE HEIDELBERG

A igreja de Lutero em todas as épocas gloriou-se da cruz. Sua


preocupação especial sempre foi, afinal, a busca da certeza da salvação.
Se nela o conhecimento da natureza corrupta do ser humano aparece
com ênfase maior que na igreja católica, para ela também será mais ur­
gente a busca por um meio de salvação. Na cruz de Cristo temos a re­
denção, ali, e em nenhuma outra parte; esta verdade a igreja evangélica
inscreveu em sua bandeira. Sua posição relativa à morte sacrificial de
Cristo ainda hoje é senha para todos os luteranos autênticos. Sem som­
bra de dúvida a igreja luterana pode reportar-se ao próprio Lutero em sua
conceituação da morte de Cristo. Para Lutero, Cristo é o mediador entre
Deus e as pessoas humanas, o único mediador. (Cf. 11,521,28ss.;
XL,1,451,15; 503,5ss.) Ele o é por seu sangue. Através de sua morte ele
efetua conciliação objetiva entre Deus e os seres humanos.5 Pois para
Lutero a ira de Deus é uma realidade que vem a ser anulada somente em
Cristo. O “por causa de Cristo” (propter Christum) tem para ele importân­
cia fundamental, como mostraremos mais tarde. A doutrina da obra de
Cristo também para ele constitui o âmago sacrossanto da teologia.
Mesmo assim não é isto que Lutero quer dizer, quando, em seu
período inicial, ele caracteriza sua teologia como teologia da cruz. Para
Lutero a cruz não é mero objeto da teologia, e sim a marca de toda teo­
logia Ela não só faz parte da doutrina da satisfação vicária, mas constitui
momento integral de todo conhecimento cristão. Teologia da cruz não
é capítulo da teologia, mas é determinada maneira de fazer teologia. A
cruz de Cristo ali é importante não só para a busca de redenção e certeza
da salvação, e sim é o centro da perspectiva de todos os enunciados
teológicos. Ela, portanto, faz parte da doutrina a respeito de Deus tanto
quanto da doutrina sobre a obra de Cristo. Inclusive nem é possível ima­
ginar algum tópico dogmático cujo foco de perspectiva ela não fosse.
Neste sentido é que a teologia de Lutero quer ser teologia da cruz. E ago-

5 Isto o evidenciou convicentemente Th. HARNACK.

14
ra é preciso dizer: Por mais fiel que tenha sido a igreja luterana em ater-
se ao “por causa de Cristo”, ela não obstante abandonou muito cedo a
teologia da cruz de Lutero. A teologia da glória combatida por Lutero en­
trou triunfalmente também em sua igreja. Poder-se-ia perguntar, inclusive,
se também a doutrina da cruz não teve que pagar seu tributo a essa teo­
logia da glória.
Que significa o programa da teologia da cruz de Lutero no Debate
de Heideiberg de abril de 1518?6
As setenças decisivas para nós encontram-se nas teses 19 e 20:
Quem é que com razão se chama de teólogo? - pergunta Lutero, ao que
ele responde:
“ Não se pode designar condignamente de teólogo quem enxerga as coisas
inisíveis de Deus compreendendo-as por intermédio daquelas que estão
feitas; mas sim quem compreende as coisas visíveis e posteriores de
Deus enxergando-as pelos sofrimentos e pala cruz.” (1,354,17ss.)
Trata-se da questão da cognição de Deus. O caminho que prima­
riamente se oferece para chegar a ela é o de simplesmente buscar os
vestígios deixados por Deus na criação. Pois a criação fala linguagem
imponente. As coisas invisíveis de Deus nela transparecem, quais sejam
força, sabedoria, justiça, bondade de Deus, etc. (1,361,35). Certamente
não estaremos nos afastando do sentido dessa tese ao colocar em lugar
de “aquilo que está feito” nossos modernos conceitos natureza, história e
personalidade; mas passaremos a enxergar com clareza maior as suas
consequências. Por um desses três caminhos o homem moderno preten­
de conhecer a Deus. Quer se perceba a glória de Deus na contemplação
das eternas leis da natureza ou na silenciosa adoração e admiração da
inesgotável abundância de vida na criação, quer se identifique a história
como revelação manifesta do eterno, quer seja que o segredo da perso­
nalidade convença a pessoa da certeza do incondicional, em todos esses
casos se procura chegar ao conhecimento de Deus pelo caminho da cria­
ção. Lutero não rejeita totalmente esse caminho (tese 24,1,354,27). A ri­
gor deveria haver intuição de Deus "a partir das obras” (ex operibus - ;
1,354,23). Deveria ser assim, mas efetivamente não é assim. Lutero apro­
va sem restrições o parecer do apóstolo em Rm 1.22. A intuição da es­
sência invisível de Deus a partir das obras da criação não proporciona
sabedoria “O conhecimento disso tudo não toma digno nem sábio.”
(1,361,36.) Prova: "Isto fica evidente através daqueles que fizeram isso e
que, não obstante, são chamados de tolos pelo apóstolo em Rm 1.22.”

6 WA 1,350-374; STANGE, “ Die ãlteschen Disputationen Luthers". In: Quellenschrilten zur


Geschichte des Protestantismus, 1, Leipzig, 1904. - Karl BAUER, Die Heldelberger Disputa-
Üon Luthers, 1901.

15
(1(36134&) Baseados no fracasso desse caminho do conhecimento, Lutero
infere que ele na prática é imprestável. Embora esta ilação não seja logi­
camente forçosa, ela convence de imediato. A teologia da glória seguiu
esse caminho cognitivo; na opinião de Lutero ela com isto já pronunciou
sentença. Ela não é teologia “legítima”. Teólogo legítimo é "aquele que
compreende as coisas visíveis e posteriores de Deus vistas através dos
sofrimentos e da cruz". Isto é dito em nítida antítese à tese 19. Em lugar
das “coisas invisíveis” surgem “as coisas visíveis e posteriores", em lugar
de “aquilo que está feito”, aparece "através dos sofrimentos e da cruz”,
sendo que “enxerga... através da compreensão” corresponde ao “com­
preende. .. vistas”. Que significará isto?

1. Para o teólogo da cruz a questão não é ficar meditando sobre o


ser de Deus. Ele não se interessa por uma doutrina a respeito das quali­
dades de Deus, por exemplo, que em lugar de atos vivos coloque abstra­
ções estáticas; ele inclusive a considera extremamente perigosa. Deus
não quer ser reconhecido em suas “coisas invisíveis”, e, sim, em suas
“coisas visíveis”. Teologia legítima precisa estar plenamente consciente
de ser teologia de revelação. Deus falou, por isso podemos falar a respei­
to de Deus. Deus mostrou-se, por isso sabemos para onde olhar.

2. Mas esta revelação naturalmente é revelação indireta; tal qual


Moisés, o homem de Deus, vemos Deus apenas por detrás (“posteriores”:
ver também o capítulo sobre “Deus abscôndito”). Intuição direta, contem­
plação da face de Deus não nos são dadas.

3. Isto significa concretamente que reconhecemos a Deus não “a


partir das obras”, mas “através dos sofrimentos e da cruz” . Que "obras"
são essas? Na contextura das teses 19 e 20 elas somente podem ser en­
tendidas como as obras de Deus na criação. Pois não é correta a opinião
de Stange de que Lutero teria interpretado Rm 1.20 tropologicamente.7 É
verdade que no mais, na "Demonstração” das teses, "obras" sempre é
usado como designação do desempenho moral da pessoa. O termo aqui
sofre de certa ambiguidade. Esta, porém, pode estar nos apontando o
caminho para importante intuição. Para Lutero as obras morais e as obras
da criação, na medida em que entram em cogitação como caminho para
Deus, caem na mesma categoria. Lutero rejeitou não só o caminho das
“obras”, mas também o caminho da cognição. Em sua luta contra a teo-

7 Veja HIRSCH, "Randglossen zu Luthertexten” . In: Studien und Kritiken 91, 1918, pp. 135ss.

16
logia da glória ele pôs a nu a raiz comum de moralismo e racionalismo. É
com razão que Althaus diz ser esta descoberta "uma das mais profundas
na teologia de Lutero".8 Especulação religiosa e santidade de obras9 são
apenas dois efeitos do mesmo anseio na pessoa humana, do anseio por
trânsito integral e direto com Deus. Ética e teoria epistemoiógica não são
áreas estanques, mas se condicionam reciprocamente. Mas justamente
esse anseio por trânsito integral com Deus é para Lutero teologia da gló­
ria Para o teólogo da cruz há conhecimento apenas “através dos sofri­
mentos e da cruz”. “ Deus somente pode ser encontrado no sofrimento e
na cruz.” (I,362,28s.) Podemos observar aqui a mesma ambiguidade co­
mo acima no termo “obras”. “Cruz” e “sofrimentos” representam em pri­
meiro plano o sofrimento e a cruz de Cristo. Ao mesmo tempo, porém,
Lutero pensa na cruz do cristão. A cruz de Cristo e a cruz do cristão são
por ele vistas em conjunto. A cruz de Cristo para ele não é fato histórico
isolado, para com o qual a vida do cristão tivesse apenas relação de cau­
salidade (cf. 1,219.30), mas na cruz de Cristo tomou-se evidente a situa­
ção reinante entre Deus e a pessoa humana. De um só lampejo esclare­
ceu-se neste ponto o caráter último da realidade. Por isso não há trânsito
honesto com Deus que pretenda remontar a algo anterior a esta evidên­
cia (cf. tese 21, WA 1,354,21 s.). Acontece, porém, que esta evidência nem
pode ser apreendida em mera contemplação. Pois justamente pelo fato
de ali ter-se revelado o caráter global da realidade, foi tomada uma deci­
são sobre a minha existência. Se eu quiser que essa evidência realmente
tenha validade, terei de afirmá-la com toda a minha existência; isto é, à
cruz de Cristo corresponde a cruz do cristão. Reconhecer a Deus “através
dos sofrimentos e da cruz”, isto é, conhecimento de Deus surge na cruz,
cujo sentido somente fica manifesto àquele que se encontra em cruz e
sofrimento ele próprio. É neste um ponto. O teólogo da glória vê Deus
“presente em toda parte” (1,614,9). O teólogo da cruz sabe: “no Cristo cru­
cificado estão a verdadeira teologia e o verdadeiro conhecimento e Deus”
(1,362,18s). Buscar a Deus em outra parte seria “pensamento volátil”
(“volatilis cogitatus", ib., linha 16). Quando Filipe, em Jo 14.8, “segundo a
teologia da glória” (1,362,15) pede a Cristo: "Senhor, mostra-nos o Pai”,
Cristo logo aponta para a sua pessoa: "Filipe, quem me vê a mim, vê o
Pai” (I, ib.). A “sabedoria das coisas invisíveis”, que do mesmo só "entufa,
cega e endurece” (1,354,24), Deus a rejeitou em favor da “sabedora das
coisas visíveis”.

8 Veja ALTHAUS, Die Bedeutung des Kreuzes im Denken Luthers und Th. Harnack, v. I, p. 58,
em clma.
9 Cf. a rejeição conjunta de "sabedoria” e "justiça da came” na preleção sobre Romanos, em
muitas passagens, p. ex., LVI, 157ss.; 171,14ss., e além disso 11,613,37s.: V,293,24ss.

17
4. Mas quais são as "coisas visíveis de Deus”? Lutero cita "natu­
reza humana, fraqueza, tolice”. Justamente naquelas coisas que sentimos
como a contrapartida do divino é que Deus se tomou visível.10 Isto nos faz
voltar ao ponto dois. Ali dissemos que para o ser humano só pode haver
conhecimento indireto de Deus. Aqui nos é dito o porquê: Deus somente
pode revelar-se na velação, em "rebaixamento e vergonha da cruz”
(l,362,12s.). Por isso não há conhecimento direto de Deus, porque a pró­
pria revelação de Deus é revelação indireta “De modo que agora não
basta nem adianta alguém conhecer a Deus em glória e majestade, caso
não o conheça no rebaixamento e na vergonha da cruz.” (1,362,11ss.) Pois
Deus é o Deus abscôndito justamente na qualidade de Deus da revela­
ção. “Deveras abscôndito es tu, ó Deus.” (Is 45.15; 1,362,14.) Para revelar-
se ele se ocultou sob sofrimento e cruz, “para que assim os que não ado­
raram ao Deus manifesto a partir das obras, adorassem-no oculto nos so­
frimentos" (i,362,9s.). Desta forma a formulação na tese 20 “compreen­
de. .. enxergando” parece muito bem refletida, à diferença daquela na te­
se 19. “Ver” quer dizer Deus revelou-se, ele nos fez ver suas “coisas visí­
veis”; apenas precisamos olhar para o Cristo “crucificado". O “compreen­
de" acrescenta o complemento dialético. Claro, revelação está aí, mas
apenas de forma velada. Revelação apela, portanto, para a fé. Acontece
que em seu período inicial Lutero chama o órgão cognitivo da fé de “en­
tendimento” (ver abaixo!). Teologia da cruz é teologia da fé.11 “Vivemos
no ocultamento de Deus, exclusivamente na confiança na sua misericór­
dia.” (1,357,3.)

5. A isto corresponde, por fim, que para a teologia da cruz o sofri­


mento adquire significado todo especial. Lembramo-nos mais uma vez da
ambigüidade dos termos "obras” e “cruz". À intuição de Deus a partir das
obras da criação contrapôs-se aquela que surge na cruz de Cristo, ao
passo que à santidade por obras se opõe a idéia do sofrimento. “Pela
cruz são destruídas as obras e é crucificado Adão, o qual prefere ser edi­
ficado pelas obras.” (I,362,30s.) Por isso ele não foge dos sofrimentos, tal
qual o teólogo da glória, mas considera-os o tesouro mais valioso
(l,613,23ss.). A tudo que é baixo e insignificante ele se dedica em amor;
este é o “amor da cruz, nascido da cruz, que se dirige não para ali onde

10 Cf. III,463,15ss.: “ Por essa razão é chamado de juízo de Deus, porque é o contrário do juízo
dos homens; pois condena o que os homens escolhem, e escolhe aquelas coisas que os
homens condenam. E este juízo nos é exposto aos olhos na cruz de Cristo."
11 Veja P. ALTHAUS, "Theologie des Glaubens". In: Zeitschrift für systematische Theologie
2,2, 1924, pp. 281-322.

18
encontra o bem, para que se deleite, mas para onde faça bem ao que es­
tá mal e carente” (1,365,13). Pois na qualidade de quem é “reduzido a na­
da por cruz e sofrimentos” (1,363,29) ele sabe: "Os pecadores são atraen­
tes por serem amados, e não amados por serem atraentes." (1,365,11.)
Este seria em traços gerais o programa de Lutero para um teologia
da cruz. Cinco momentos ali nos parecem fundamentais.
1. Teologia da cruz na qualidade de teologia de revelação está em
rigorosa aposição à especulação.
2. Revelação de Deus é revelação indireta, velada
3. Revelação de Deus por isso não é reconhecida nas “obras”,
mas nos “sofrimentos”, onde se deve observar o duplo sentido desses
termos.
4. Este conhecimento de Deus que está velado em sua revelação,
é assunto da fé.
5. A natureza do conhecimento de Deus reflete-se na idéia prática
de sofrimeno da teologia da cruz.
Está claro que com essas idéias Lutero se revela fiel discípulo de
Paulo. Juntamente com este, ele repudia o caminho de conhecimento de
Deus descrito em Rm 1 e professa a “pregação tola” de 1 Co 1. Paulo é o
pai da teologia da cruz de Lutero. Entretanto o discipulado de Lutero não
está condicionado apenas exteriormente, surgindo quiçá de mera lealda­
de para com a autoridade da escritura. Não, nessas idéias Lutero vê uma
expressão de sua propriíssima causa. Toda a divergência em relação à
teologia até ali vigente ele consegue reduzir à fórmula de que nela a sa­
bedoria da cruz não mais foi ouvida
E essa sabedoria da cruz e nova significação das coisas não só é
desconhecida, mas é de longe também a coisa mais terrível, mesmo para
os chefes da igreja. E não é de admirar, depois que abandonaram as sa­
gradas escrituras e passaram a ler funestas constituições humanas e ba­
lancetes financeiros. (V,42,8ss.)
Explicam-se assim também todas as deploráveis condições exter­
nas e internas na igreja, que despertaram o clamor pela reforma na cabe­
ça e nos membros. (Cf. também V,300,1 ss.) Mas enquanto ficarmos vi­
vendo seguros, não teremos ouvidos para a “pregação tola”, uma vez que
ela efetivamente implica uma inversão de todos os valores e estruturas, a
qual necessariamente será um tropeço para o ser humano natural.12 Não
causa surpresa, por isso, que a sabedoria da cruz seja praticamente des­

12 Cf. “ Pois o evangelho destrói as que sáo, confunde as coisas fortes, confunde as coisas sá­
bias e as reduz a nada, em fraqueza, em estultícia, porque ensina a humildade e a cruz.”
10ss.: “ Na verdade, têm horror a esta regra da cruz todos os que se agradam das coisas ter­
renas e de suas próprias, dizendo: É duro este discurso. Por isso náo admira que seja odiado

19
conhecida: “A sabedoria da cruz hoje está oculta em mistério profundo."
(V,84,40.) Quando ela não mais é entendida, também a escritura perma­
nece um livro trancado, pois a cruz de Cristo é a única chave para ela.
(1,52,15ss.: a cruz de Cristo como fonte da qual se haure a compreensão
da escritura.) Por isso coincidem para Lutero sabedoria da cruz e doutrina
legítima (V,372,30s.).
Para evitar repetições desnecessárias, limitar-nos-emos inicialmen­
te a este rápido esboço programático. Nossa tarefa será mostrar a im­
plementação deste programa na concepção de Lutero a respeito do
“Deus abscôndito”, da fé e da vida sob a cruz. Somente então estaremos
em condições de verificar até que ponto o próprio Lutero permanece fiel à
sua teologia da cruz. Encerramos este capítulo com uma justaposição su­
cinta das teologias da cruz e da glória, que o próprio Lutero apresentou
com a maior clareza desejável em suas Explicações sobre o valor das in-
dulgências12®, de 1518.
A partir disso, vê agora se desde a época em que começou a teologia
escolástica - isto é, ilusória (pois esse é seu sentido em grego) - a teolo­
gia da cruz não está esvaziada, e todas as coisas estão completamente
pervertidas. O teólogo da cruz (ou seja, o que fala do Deus crucificado e
abscôndito) ensina que penas, cruzes e morte são o tesouro mais precioso
de todos e as relíquias mais sagradas, que o próprio Senhor dessa teologia
consagrou e bendisse, não apenas através do toque de sua santfssima
carne, mas também através do amplexo de sua vontade supersanta e divi­
na, deixando-as aqui como [as relíquias] que, em verdade, devem ser bei­
jadas, buscadas, abraçadas. Sim, bem-aventurado e bendito é quem pare­
cer a Deus digno de que lhe sejam dados esses tesouros das relíquias de
Cristo. (1,613,21 ss.)
O teólogo da glória, porém (isto é, que não conhece, com o apóstolo,
tão-somente o Deus crucificado e abscôndito, mas, com os gentios, vê e
fala do Deus glorioso, de suas [coisas] invisíveis a partir das visíveis, [do
Deus] onipresente e onipotente), aprende de Aristóteles que o objeto da
vontade é o bem e que o bem é digno de amor, o mal, contudo, digno de
ódio, razão pela qual Deus é o sumo bem e sumamente digno de amor. Daí
que, dissentindo do teólogo da cruz, define que o tesouro de Cristo são re­
laxações e isenções de penas, sendo estas as piores coisas e as mais
dignas de ódio. O téologo da cruz, pelo contrário, [afirma que] o tesouro de
Cristo são imposições e obrigações de penas, sendo estas as melhores
coisas e as mais dignas de amor. (1,614,17ss.)
ao extremo o discurso de Cristo para aqueles que desejam ser alguma coisa, os que querem
ter sabedoria, poder perante si e das pessoas, e se julgam os primeiros." (1,617,7ss.) Cl.
I,70,5ss. e 11,613,37ss.
12a Veja texto português em Martinho Lutero, Obras selecionadas, S3o Leopoldo e Porto Alegre,
1987, v. 1,pp. 55-198.

20
PARTE II

O DESDOBRAMENTO DO PROGRAMA DA TEOLOGIA DA CRUZ

Capítulo I: A doutrina de Lutero a respeito do Deus abscôndito

A teologia da cruz rejeita a especulação como caminho para o co­


nhecimento. Metafísica não conduz à intuição do verdadeiro Deus.13 Para
Lutero especulação religiosa é teologia da g ló ria O que o faz condenar
esta teologia é a inegável impressão de que nela não é devidamente re­
conhecido o significado fundamental da cruz de Cristo para todo pensa­
mento teológico. A cruz de Cristo deixa claro que para o ser humano não
há conhecimento direto de Deus. O pensamento cristão precisa estacar
diante do fato da cruz. Daí resulta necessariamente a experiência de se
proceder a uma investigação das bases desse pensamento. Será que ele
considerou esse fato ao colocar as suas bases? Em caso negativo, há
apenas duas possibilidades: ou ele o ignora e vira teologia da glória, ou
ele resolve reformular as suas bases e passa a ser teologia da cruz. Pois
a cruz não se deixa instalar num andar superior da estrutura do pensa­
mento.
Que representa a cruz para a idéia de Deus? Dissemos que ela
proíbe toda e qualquer tentativa de cognição direta de Deus. A essência
de Deus não pode ser simplesmente depreendida das obras da criação.
Conhecimento de Deus precisa abrir-se-nos na cruz de Cristo. Porém, jus­
tamente ali nada vemos de Deus, inicialmente. Para começar, o enigma
da cruz apenas nos deixa claro uma coisa: Deus é um Deus abscôndito.
“Verdadeiramente tu és misterioso.“ (Is 45.15.)
A doutrina do Deus abscôndito em Lutero é um tema controverti­
do. Que significa ela? Será o Deus abscôndito idêntico com o Deus re-

13 C. STANGE, Die ältesten ethischen Disputationen Luthers, p. 68, n. 1, recusa-se a aceitar


que na tese 20 do Debate de Heidelberg esteja sendo rejeitada a metafísica. Sem dúvida, há
que se concordar com Stange que a tese 20 náo contém nenhuma “ teoria científica” ; no en­
tanto, náo tem que “ a experiência amadurecida da pessoa piedosa" rejeitar a metafísica co­
mo caminho para o reconhecimento de Deus, táo logo ela, pensando, adquire clareza a res­
peito de si mesma?

21
velado, ou deverá ele ser identificado com o Deus absoluto da escolásti­
ca? Estará ligado com a idéia do Deus abscôndito um interesse de fé?
Ou será ela produto da especulação? Será ela um expediente ao qual Lu-
tero teve que recorTer devido a uma polêmica por demais ousada, ou es­
tará ela intimamente ligada às idéias centrais de Lutero? Finalmente, se­
rá que esta idéia permanece a mesma em seu conteúdo, no curso da
evolução teológica de Lutero e de suas confrontações diversas, e como
se poderá conjugar a polêmica posterior de Lutero contra ela com sua
constante valorização do escrito contra Erasmo? Uma elucidação siste­
mática dessas questões somente será possível demorando-nos numa in­
vestigação histórica. Pois de forma alguma me parece ponto pacífico que
Lutero, por exemplo, no Debate de Heidelberg, tenha usado esse concei­
to de forma exatamente igual àquela usada em “Da vontade cativa” {De
servo arbítrio) ou em sua grande preleção sobre Gênesis. Antes será con­
veniente analisar em separado a teologia inicial de Lutero, depois “Da
vontade cativa”, e, finalmente, a época após 1525, para então se chegar
a um resultado global.

A. O Debate de Heidelberg
Tomamos por ponto de partida o Debate de Heidelberg. A idéia do
Deus oculto apresenta-se ali em rigorosa ligação intrínseca com o pro­
grama da teologia da cruz. A teologia da cruz é teologia de revelação. A
“sabedoria das coisas invisíveis” é expressamente rejeitada. A rigor, as
“coisas invisíveis de Deus" deveriam transparecer nas obras da criação
para as pessoas humanas. Nessas obras Deus se manifestou. Deveria
haver algo como cognição natural de Deus. Para tal o paganismo é a
melhor prova. Um conhecimento de Deus (notitia Dei) que não se enten­
de muito bem a si próprio, é a raiz de toda idolatria.14 Efetivamente, po­
rém, não existe cognição natural de Deus. As pessoas humanas abusa­
ram da “cognição de Deus a partir das obras”. Por culpa das pessoas o
caminho direto mostrou ser incapaz de levar ao alvo. O “Deus manifesto”
não foi reconhecido. A revelação de Deus na criação não cumpriu sua fi­
nalidade; para o ser humano ele deixou de ser revelação, para, muito an­
tes, ocultar a essência e a vontade de Deus. Deus, porém, quer ser reco­
nhecido, a essência de Deus exige revelação. Mas como haverá Deus de
se revelar de modo que sua revelação realmente se torne revelação para

14 Cf. LVI, 174,18ss.; 177,25ss.

22
a pessoa humana? Ao Deus manifesto em suas obras os seres humanos
não adoraram. Por isso Deus agora toma outro caminho para se lhes re­
velar. A cruz então passa a ser a revelação de Deus.15
Mas o que é que vemos, ao ver a cruz? “Fica, porém, patente, en­
tão, nada mais senão vergonha, privação, morte e tudo que nos é mos­
trado no Cristo sofredor.” (V,108,1ss.) Ora, tudo isso são coisas que
em nossa opinião nada têm de divino, mas que antes apontam para a
aflição, miséria e fraqueza humanas. Justamente ali ninguém de per si
procuraria revelação de Deus. Num ocultamento desses é que Deus entra
para se revelar. O Deus manifesto precisa virar Deus abscôndito para que
ocorra revelação de Deus. Deus se torna "abscôndito no sofrimento”16. Ao
ocultar-se Deus, vêm à luz as "coisas visíveis de Deus: humanidade, fra­
queza, estupidez” (tese 20 do Debate de Heidelberg). Deus, portanto, se
tornou visível ao ocultar-se, e somente neste ocultamento é que ele se
torna visível. “De modo que a ninguém basta nem adianta conhecer a
Deus em glória e majestade, a menos que o conheça na baixeza e ver­
gonha da cruz.” Portanto, mesmo supondo que a “teologia da glória” che­
gasse a alguma cognição de Deus, ela não teria valor algum. Deus so­
mente quer ser reconhecido “na baixeza e vergonha da cruz”.17
Quando o próprio Deus está "abscôndito no sofrimento”, fica claro
que também as obras de Deus, nas quais sua atuação se nos apresenta,
mostram o mesmo caráter. As "obras de Deus” sempre são “deformadas”
(1,353,21). Elas estão tão profundamente ocultas que somente aparecem
“sob aspecto contrário” (sub contraria specie LVI,376,31ss). A força de
Deus revela-se em fraqueza (111,301,35ss.). A ajuda de Deus permane­
ce invisível à pessoa humana; esta inclusive acredita estar mais abando­
nada por Deus no momento em que a ajuda de Deus lhe está mais pró­
xima (lll,302,20ss.). A sabedoria de Deus não deixa de ser sabedoria, mas
ela nos parece tolice, ela é “sabedoria de Deus no abscôndito, sabedoria
que está nas coisas escondidas” (LVI,237,20ss.). Como tal é que preci­
samos procurar conhecê-la, precisamos de sensibilidade para o caráter
oculto das qualidades e obras divinas; pois ele jamais se abrirá a uma

15 " . . . em Deus que está latente sob a cruz, e não é encontrado em nenhum outro lugar.”
(V,418,34s.)
16 Isso não vaie apenas para o “ homem natural", como acha KAUENBUSCH, Deus abscondi-
tus bei Luther, p. 204, n. 29.
17 Sobre o uso do termo deus absconditus na preleção sobre Romanos, veja F. W. SCHMIDT,
\ “ Der Gottesgedanke in Luthers Römerbriefvorlesung", terceiro caderno dedicado a Lutero
in: Theologische Studien und Kritiken, 1920/21, p. 185-190. Só podemos declarar-nos de
acordo com a opinião teológica ali expressa.

23
contemplação “metafísica" direta.18 “Sabedoria da cruz” precisa ser dada
gratuitamente à pessoa, para que eia não se perca nesta questão
(V,84,36ss.). Para o mundo, entretanto, essa sabedoria é estupidez: por­
que “quem quer ficar sábio, não procure avançar rumo à sabedoria, mas
tome-se tolo, procurando retroceder para a to lice ... Esta sabedoria é
aquela que é tolice para o mundo” (1,363,1 Oss.).
Que resulta de tudo isso para o significado do Deus abscõndito na
teologia de Lutero antes de seu tratado contra Erasmo?

1. A idéia do Deus abscõndito encontra-se em estreitíssima liga­


ção com a teologia da cruz de Lutero, sendo de fundamental importância
na mesma Não é mero acidente que este conceito, mesmo que em for­
ma de citação bíblica, apareça justamente no Debate de Heidelberg, o to-
cus classicus da teologia da cruz.19 Teologia da cruz implica cognição in­
direta de Deus; o Deus abscõndito é o Deus cuja essência e obra somen­
te podem ser conhecidas “sob aspecto contrário”.

2. O Deus abscõndito não é outro senão o Deus revelado. Deus é


abscõndito em função da revelação. Revelação somente é possível em
ocultamento, o Deus revelado precisa, como tal, ser abscõndito.20 Disso
apresentamos ainda algumas abonações, na medida em que já não te­
nha ficado claro com base no que foi exposto. Numa prédica de
24/02/1517 (l,138,13ss.) encontra-se a seguinte explicação para o ocul­
tamento de Deus: “A pessoa humana oculta o que é seu para negá-lo,
Deus oculta o que é seu para revelá-lo... na abscondicidade ele não faz
outra coisa senão remover os empecilhos da revelação, qual seja, a so­
berba" De acordo com isso a abscondicidade deveria ser considerada
obra alheia que, aliás só é realizada por causa da obra própria.21 O local

18 “ Por acaso não pregamos em toda parte que é grande e maravilhoso o poder de Deus, sua
sabedoria, bondade, justiça e misericórdia, e nào a entendemos? Porque entendemos meta­
físicamente, isto é, de acordo como nós as entendemos, a saber, como coisas aparentes e
não abscónditas, visto que ocultou seu poder nada menos do que sob a fraqueza, a sabedo­
ria sob a estultícia, a bondade sob a austeridade, a justiça sob os pecados, a misericórida
sob a ira. Resulta daf que não entendem o poder de Deus quando enxergam a fraqueza,
etc." (LVI,380,31ss.)
19 A passagem mais antiga em Lutero encontra-se em 111,124,29ss. A referência a Dionfsio pa­
rece estar a favor da tese de LOMMATZSCH: a doutrina do Deus abscõndito em Lutero seria
alguma herança da mfstica. No entanto, logo em seguida vem a referência à abscondicidade
de Deus na humanidade, o que não pode ser denominado místico. Mas a encarnação se re­
laciona justamente sempre de novo à abscondicidade de Deus. Cf. IV,648,27ss.
20 A encarnação é como tal velação. Cf. "sabedoria encarnada e por isso abscôndita"
(LVI.237,21.)
21 Para a conhecida doutrina da “ obra alheia" cf. a definição em WA l, 112.1 Oss.

24
próprio de tal ocultamento de Deus, que sucede em função da revelação,
sim, que bem por isso é revelação, é a cruz de Cristo. Isto nos conduz de
volta ao ponto 1. O Deus abscôndito não é outro senão o Deus crucifica­
do. Quem é teólogo da cruz? ‘Teólogo da cruz, isto é o que fala do Deus
crucificado e oculto" (V. acima), ao passo que a definição do teólogo da
glória reza: “isto é o que não conhece, como o Apóstolo, exclusivamente
o Deus crucificado e abscôndito” (l,614,17ss.). “Exclusivamente o crucifi­
cado e abscôndito" - isto deixa plenamente claro que o Deus abscôndito
não pode ser uma hipóstase em ou por detrás de Deus, mas é o próprio
Deus vivo, oculto e revelado na cruz de Cristo.

3. Resulta daí que o Deus abscôndito não é produto de especula­


ção. Muito pelo contrário, culmina nesta idéia justamente a tendência an­
ti-especulativa da teologia incipiente de Lutero. O conceito de Deus abs­
côndito deve, a bem dizer, ser entendido em sentido estritamente cristo*
cêntrico (“ao ignorar a Cristo, ignora o Deus abscôndito no sofrimento",
sc. o teólogo da glória 1,362,23). Numa hipérbole radical, o discurso da
onipresença e da onipotência de Deus é atribuído à teologia da glória
(1,614,17ss.). O Deus abscôndito, em contrapartida, é Deus crucificado.
Aqui na cruz, neste um ponto, e revestido da mais extrema fraqueza é
que ele se torna visível. Por isso Lutero não se cansa de advertir contra o
"pensamento volátil" de buscar a Deus alhures, em vez de buscá-lo no
Cristo crucificado. A especulação que pretende descobrir Deus na reali­
dade se coloca acima de Deus; é evidente que, a partir do conceito de
revelação da teologia da cruz, ela precisa ser rejeitada.22

B - Da vontade cativa
O tratamento mais pormenorizado que Lutero deu ao significado
do Deus abscôndito está em seu escrito contra Erasmo: “Da vontade ca­
tiva” (XVIII,600,687).23 Primeiramente verificaremos em que contexto apa­
rece ali este conceito. Pois o escrito contra Erasmo não tem por objeto
principal o problema do Deus abscôndito, mas, como também diz o seu
título, com o problema da vontade livre respectivamente escravizada A
expressão “ Deus abscôndito" inclusive se acha ali expressamente apenas
duas vezes. Para reforçar sua tese da vontade livre, Erasmo recorrera a
passagens bíblicas. Entre outras, ele apelou para a conhecida passagem

22 Quem especula sobre Deus não lida com Deus de outra forma do que o sapateiro com o
couro. (LVI,185,25ss.)
23 Cf. a análise do escrito de ZICKENDRAHT, Der Streit zwischen Erasmus und Luther über die
Willensfreiheit, Leipzig, 1909. As citações que seguem sáo todas de WA XVIII, quando náo
houver outra observação.

25
de Ezequiel: “O Senhor não tem prazer na morte do perverso mas antes
deseja que o pecador se converta e viva.” (Ez 18.23.) Erasmo ajeita a seu
modo a passagem: Se Deus se entristece com a morte do pecador, não
pode ser ele quem provoca a morte do pecador. Muito antes, a causa da
morte do pecador é única e exciusivamente sua própria vontade livre.
Como é que Lutero reage?

1. Em primeiro lugar, diz Lutero, a Diatribe mais uma vez ignora a


diferença entre lei e evangelho. Acontece que essa passagem de Eze­
quiel é “palavra evangélica e dulcíssimo conforto para os miseráveis pe­
cadores” (683,11). Não houvesse tais promessas de Deus, como é que o
pecador não desesperaria (683,24s.)? Mas de forma alguma se poderá
provar a vontade livre com base em tais promessas. Acontece que agora
a Diatribe estaria fazendo dessa “palavra evangélica” uma “palavra da
lei”, assim estragando tudo. O que consta não é: “ Não quero o pecado do
ser humano”, conforme interpreta a Diatribe, mas sim “ não quero a morte
do pecador” . Ao pecador que sente seu pecado e sofre com o mesmo, é
que a palavra evangélica se dirige dando conforto e apoio, e não à pes­
soa que tem pecado, mas não se preocupa com o mesmo. Assim sendo,
esta passagem de Ezequiel ê, segundo a interpretação de Lutero, justa­
mente uma prova contundente contra a vontade livre: “ Pois aqui fica ca­
racterizado como é o livre arbítrio e o que ele pode fazer pelo pecado,
quando este é reconhecido, ou por sua própria conversão; ou seja, nada
senão cair em situação pior e acrescentar desespero e impenitência aos
pecados, caso Deus não viesse logo em socorro e não chamasse de volta
e reerguesse pela palavra de promissão.” (684,15ss.) O evangelho está
para a vontade livre como o fogo para a água.

2. Em segundo lugar, entretanto, o raciocínio de Erasmo ainda


não é desqualificado pelo fato de se constatar nele a confusão entre lei e
evangelho. Na verdade a dificuldade propriamente dita está num ponto
bem diferente. É que o peso maior da argumentação de Erasmo estava
no seguinte: Será concebível que o Deus que chora a morte do seu povo,
provoque esta morte? Tal consequência inaceitável para Erasmo é forço­
sa quando se nega a livre decisão da pessoa humana. Se esta não tem
decisão livre, então, segundo Erasmo, ela tampouco pode ser responsa­
bilizada pelos seus pecados. Não ela, mas o próprio Deus é o causador
do pecado humano. Deus provoca a morte do pecador justamente ao ser
ele propriamente o “autor do pecado”; como se coadunaria com isto a pa­
lavra: “ Não tenho prazer na morte do pecador?” De duas, uma. Assim
Erasmo formula o problema, solucionando-o com auxílio de sua concep­
ção da vontade livre da pessoa humana.

26
Como é que Lutero dá conta do recado? Chegamos então ao se­
gundo ponto que Lutero apresenta com respeito à interpretação de Eras­
mo. Neste contexto surge então o conceito em razão do qual nos interes­
sa todo esse confronto: o conceito do Deus abscôndito. Lutero distingue
um Deus pregado, revelado, adorado, de um Deus que não é tudo isso.
Sobre esses dois é preciso falar de modos diferentes. Essa distinção não
é invenção de Lutero; para tal ele se reporta a Paulo, 2 Ts 2.4.

É preciso falar de Deus ou da vontade de Deus anunciada, revelada,


oferecida, cultuada de uma forma, e do Deus não anunciado, não revelado,
não oferecido, não cultuado de outra forma. Por conseguinte, que Deus se
oculta e quer ser ignorado por nós, não é da nossa conta. Aqui, na verda­
de, vale: as coisas acima de nós não são de nossa conta. E para que esta
distinção não seja minha, sigo a Paulo que escreve a respeito do anticristo
aos tessalonicenses (2 Ts 2.4) que ele exaltará a si mesmo acima de todo
deus pregrado e cultuado, isso significa manifestamente que alguém pode
ser elevado acima de Deus, da forma como é pregado e cultuado, isto é,
acima da palavra e do culto por meio do qual Deus nos é conhecido e tem
“comércio” conosco; acima de Deus, porém, como ele não é cultuado e
pregado, tal como ele é em sua natureza e majestade, nada pode ser ele­
vado, mas todas as coisas estão debaixo de sua potente mão. (685,3ss.)
Na linha 21 esse “Deus não pregado” é designado por "Deus abs­
côndito”. Mostramos assim o contexto no qual a expressão "Deus abs­
côndito” aparece em “Da vontade cativa”. Duas coisas devem ser obser­
vadas.

1. Lutero apela para a doutrina do Deus abscôndito numa dificul­


dade exegética. Evidentemente, em termos puramente exegéticos, Eras­
mo se acha em vantagem. Como é que Lutero pode sustentar sua intui­
ção religiosa contra a letra da escritura? A doutrina do Deus abscôndito
se lhe oferece como saída- Perguntamo-nos: Será que para Lutero essa
doutrina se resume em mero expediente nessa polêmica, ou será ela
ponto pacífico para ele, idependentemente de qualquer finalidade polêmi­
ca?

2. Lutero introduz a doutrina do Deus abscôndito como algo co­


nhecido. Isto já constitui argumento contra uma compreensão exclusiva­
mente polêmica dessa doutrina. Por outro lado levanta-se então a ques­
tão de como a noção do Deus abscôndito se coaduna com a noção de
Deus em outras passagens de Lutero e com o conceito de fé que lhe está
correlacionado em "Da vontade cativa”.
Qual a relação do Deus abscôndito com o Deus revelado? O que

27
salta aos olhos em primeiro lugar é a diferença entre os dois. "Deve-se
discutir de modo diferente” sobre o Deus abscôndito e o revelado. À Dia­
tribe é preciso atribuir "ignorância” (685,25), pelo fato de não levar em
conta essa diferença fundamental. Deus se nos apresenta em primeiro
lugar em sua palavra. Em sua palavra Deus nos é “conhecido”, ele tem
“negócios" conosco (commercium 685,11,12), nela ele se nos ofereceu
(oblatus). Nós dependemos da revelação de Deus na palavra. Não con­
seguiríamos captar o “ Deus nu”, mas seríamos esmagados e aniquilados
diante de sua majestade; pois Deus é fogo que consome. Por isso Deus
se reveste de sua palavra. Ele passa a ser “Deus vestido”. Somente com
este podemos ter “ negócio”. Deus precisa revestir-se da palavra para po­
der revelar-se a nós. O “Deus revelado” é o “Deus vestido”. O “Deus re­
velado” inclusive não é outra coisa senão a palavra de Deus (685,26). A
palavra de Deus, entretanto, reza com muita clareza: “Não quero a morte
do pecador.” O “Deus revelado” é vontade salvífica incondicional. O
“Deus pregado” quer que todas as pessoas recebam ajuda e cheguem ao
conhecimento da verdade. Ali (Mt 23.27) ele está falando sério (686,7s.).
Esse Deus não pode ser causador dos pecados. Com razão dizemos: “O
Deus pio não chora a morte do povo, a qual ele opera no mesmo, mas
chora a morte que ele encontra no povo e procura remover.” (685.18s.) A
morte do povo não pode ser atribuída ao “Deus pregado”. Sua obra não é
matar, mas vivificar. Ele é o médico que faz sarar as feridas do povo
(685,19ss.). Evangelho é nova feliz a respeito do Deus que cura e salva.
Será que isso é tudo que precisa ser dito a respeito de Deus? Não,
responde Lutero, ao tratar do “ Deus revelado” não se deve esquecer o
“Deus abscôndito”. Deus de fato se revelou em sua palavra, mas ele é
maior que sua palavra. Deus não se prendeu às limitações de sua pala­
vra A característica suprema de Deus é a liberdade. Não podemos abu­
sar dessa liberdade, nem mesmo reportando-nos à palavra. “ Pois ali ele
não se delimitou a si próprio através de sua palavra, e sim manteve-se li­
vre acima de todas as coisas.” Deus não se esgota em sua palavra, razão
por que precisamos destinguir entre a “palavra de Deus” e “ Deus ele
mesmo” (685,26). Pois: “ Deus faz muitas coisas que ele não nos mostra
através de sua palavra. Ele também quer muitas coisas que ele não de­
monstra querer através de sua palavra” (685,27ss.). Na medida em que
Deus não se nos revela em sua palavra, entretanto, ele permanece oculto
para nós. Sua vontade é inescrutável (685,29). Seu agir é colocado em ní­
tida antítese àquele agir do Deus revelado. Ele impera “em sua majesta­
de e natureza” (685,14), entre ele e o ser humano não há nenhum “tratar”
(685,15), não pode haver nenhum “negócio”. Mesmo assim, embora seu
agir fique oculto para nós, ele não deixa de ser aquele que tudo opera e

28
tudo cria, “opera vida, morte e tudo em tudo" (685,22).24 No que tange a
ele, não tem validade o enunciado: “Não quero a morte do pecador”, por
mais que tenha validade para o Deus revelado. “Assim, ele não quer a
morte do pecador, segundo a sua palavra; mas ele a quer segundo
aquela (sua) inescrutável vontade." (685,29) “O Deus abscôndito em ma­
jestade nem chora nem tira a morte.” (685,21s.) Esse Deus abscôndito é
o Deus da dupla predestinação. Ele endurece o faraó, ele repudiou Esaú
antes de o menino vir a existir. “ Vontade inescrutável", até mesmo "to­
talmente inescrutável e incognoscíve!” (685,32s.)! Ao acreditar que se po­
de demonstrar a necessidade da vontade livre através da passagem de
Ezequiel, Erasmo engana-se: ele não levou em conta o Deus abscôndito.
Assim sendo, o Deus abscôndito e o Deus revelado são rigirosa-
mente diferenciados. O que vale para um, não pode ser afirmado a res­
peito do outro, e vice-versa Os dois conceitos inclusive parecem achar-se
numa relação até oposta. Poder-se-á então, todavia manter ainda a uni­
dade da imagem de Deus? Não terá ele caído irremediavelmente em fu­
nesto dualismo? Será que então ainda se pode afirmar que a imagem
que Lutero faz de Deus seria “não só a mais viva e definida mas tam­
bém a mais refletida e clara jamais gerada pela teologia cristã”25? Será
que assim a revelação não ficou ilusória? Afinal, sobre ela repousa toda a
teologia Deverá ela degenerar e lim itar-se a algumas precárias indica­
ções do incognoscível? Além disso, onde é que fica ainda para o ser hu­
mano alguma certeza se é que ele constantemente precisa levar em con­
ta uma vontade abscôndita de Deus, oposta à vontade revelada? Para
responder estas perguntas, precisamos entrar mais uma vez na investiga­
ção do conceito de Deus oculto em “Da vontade cativa”. Isto porque a
questão decisiva da relação entre o Deus abscôndito e o Deus revelado
somente podemos tentar solucionar, se apontarmos as relações entre o
conceito de Deus abscôndito e o conceito de fé em Lutero, o qual ele
formulou em sentenças decisivas justamente em “ Da vontade cativa".
“ Portanto, que Deus se oculta e quer ser ignorado por nós não é
de nossa conta Aqui na verdade vale: as coisas acima de nós não são de
nossa conta" (685,5ss.) O Deus abscôndito não quer ser reconhecido por
nós. Ele não só é um Deus abscôndito mas é um Deus que se ocul­
tou.26 “ Não é de nossa conta" não significa que como tal ele não nos in­
teressa, mas que não temos nenhum negócio (commercium) com ele.

24 Justamente por isso Hamack identifica o Deus abscôndito com o Deus criador; de modo se­
melhante R. Seeberg.
25 Veja E. HIRSCH, Luthers Gottesanschauung, 1918, p. 3.
26 Sobre a diferença entre ocultar e esconder veja KATTENBUSCH, loc. c it, p. 183, n, 14.

29
Deus não o deseja (685,15). Sobretudo não devemos ficar mexendo na
vontade inescrutável de Deus com nossas perguntas humanas (686,2s.).
Ficar perguntando muito não conduz ao alvo (686,11).
Será então que o Deus abscôndito é um Deus que nem entra em
cogitação para a comunhão com as pessoas humanas, um Deus para si
próprio (Deus a se)? É o que quase parece, ao ouvirmos: “Deve-se, por­
tanto, deixar Deus em sua majestade e natureza, pois tal como nós nada
temos a tratar com ele, assim ele tampouco quer que tratemos com ele."
(685,14s.) Lutero nos aconselha a nos atermos à palavra, portanto ao
Deus revelado, e não ficar matutando sobre os mistérios do Deus abs­
côndito (685,30s.). Mas não acaba Lutero, com esta exigência, chegando
ao mesmo resultado que Erasmo? Afinal de contas também Erasmo ad­
mite que a Escritura contém doutrinas obscuras. E precisamente sua
obscuridade estaria a indicar que elas não seriam necessárias. Por isso
não se deveria fazê-las chegar ao povo, como Lutero estaria fazendo,
uma vez que ali somente poderiam causar confusão. Acontece, porém,
que Lutero já rejeitou vigorosamente esta concepção de Erasmo
(632,21 ss.). Portanto não é no sentido de Erasmo que ele formula “não é
de nossa conta.’ Antes deve-se saber que há o Deus abscôndito. Em
prejuízo seu, Erasmo nada sabe dele. Ora, mesmo que a pessoa humana
não possa compreender a vontade inescrutável de Deus, não obstante
deve temer e adorá-la (686,3). Portanto Lutero certamente terá mais do
que interesse polêmico no Deus abscôndito. Ao Deus abscôndito é devi­
da a adoração; portanto esse conceito não pode ter sentido especulativo
ou polêmico, ali. Olhando mais de perto, notamos que apesar da manifes­
tação aparentemente contrária de Lutero, a idéia do Deus abscôndito não
é marginal na teologia de Lutero, mas apresenta estreitos laços com sua
concepção de fé, atingindo portanto o centro de sua teologia
Que é fé? Ao longo de toda a sua vida, para Lutero Hb 11.1 con­
serva praticamente o valor de uma definição. “A fé é de coisas não apa­
rentes.” (633,7.) Com isto está dado o pré-requisito indispensável para to­
do possível objeto da fé. “Assim sendo, para que haja um lugar para a fé,
é preciso que tudo que é crido, seja oculto. Entretanto não pode estar
mais profundamente oculto do que sob um objeto, uma percepção e ex­
periência contrária." (633,7ss.) A fé somente pode dirigir-se a algo oculto;
para que algo venha a ser objeto da fé, precisa estar oculto, encoberto de
modo a ficar irreconhecível e até contrário. Se antes vimos que, segundo
as teses de Lutero em Heidelberg, revelação somente é possível no ocul-
tamento, deparamo-nos com o outro lado da questão, de que fé somente
pode dirigir-se a algo oculto, encoberto, invisível. Lutero desenvolve esta
tese de modo consequente em "Da vontade cativa". Na medida em que a

30
igreja é objeto da fé, e mesmo que conste "creio numa santa igreja cató­
lica”, ela não é visível para o olho exterior. "A igreja é abscôndita, os san­
tos estão latentes.” (652,23.) Aquilo que se costuma chamar de igreja
muito pouco tem a ver necessariamente com a igreja verdadeira; é até
provável que ali onde se estabelece a igreja oficial, não se encontre a
igreja de Deus. “Quem sabe outra coisa senão que, em todo o curso do
mundo desde a sua origem, o estado da igreja de Deus sempre foi tal
que eram chamados povo e santos de Deus aqueles que não o eram,
mas havia entre eles outros remanescentes que eram o povo ou os san­
tos, sem assim serem chamados, conforme o mostra a história de Caim e
Abel, Ismael e Isaque, Esaú e JacóT (650,27ss.) Abscondicidade é carac­
terística dos objetos da fé. Insinua-se, porém, desta forma a seguinte
consequência: Para que a fé se dirija a Deus, também ele precisa ser
abscôndito. Assim Lutero de fato exige que a justiça divina necessaria­
mente seja incompreensível para que se lhe atribua o predicado “divina”.
“Pois se a sua justiça fosse tal que pudesse ser julgada justa pelo enten­
dimento humano, ela claramente não seria divina e em nada diferiria da
justiça humana Mas como ele é o Deus vero e uno, além de totalmente
incompreensível e inacessível à razão humana, é apropriado e até neces­
sário que também sua justiça seja incompreensível.” (784,9ss.) Chega­
mos à seguinte conclusão: Para que o Deus revelado realmente esteja
presente para a fé, ele também precisa ser Deus abscôndito. Então o
Deus revelado não seria outro senão o Deus abscôndito.
Só que agora recém nos enredamos nas dificuldades propriamente
ditas. Avançamos para o reconhecimento de que o conceito de fé de “Da
vontade cativa" exige um Deus abscôndito. Não que a fé então tivesse
por objeto uma ficção. Como poderíamos ter a ver com o Deus verdadeiro
se não na fé? “A fé se caracteriza por não enganar.” (652,7.) Portanto, o
Deus abscôndito necessariamente é o mesmo que o Deus revelado. En­
tretanto, opõe-se aqui a clara distinção que Lutero, baseado na passagem
de Ezequiel, fez entre o Deus abscôndito e o Deus revelado. Simples­
mente não se pode dissimular (como o faz Kattenbusch, Deus abscondi-
tus, p. 205, n. 31) que Lutero aqui praticamente estabelece uma relação
antagônica entre as duas grandezas. De um lado, o Deus abscôndito co­
mo consequência do conceito de fé, de outro lado, porém, a vigorosa se­
paração entre o Deus abscôndito e o Deus revelado; como se resolve es­
ta contradição?
Parece-me que a idéia do Deus abscôndito aqui não é exatamente
a mesma que lá. O Deus abscôndito da linha da fé, por assim dizer, lem­
bra inteiramente o Deus abscôndito do Debate de Heidelberg. O caráter
de abscondicidade ali se orienta na revelação, ao passo que aqui ele se

31
orienta na fé. Ao se colocar revelação respectivamente fé, coloca-se tam­
bém abscondicidade. O Deus abscôndito e o Deus revelado são comple­
tamente idênticos. O caráter de fé na cognição de Deus fica preservado
pelo fato de revelação e ocultamento serem ligados como dois momentos
inseparáveis num mesmo ato. Na interpretação da passagem de Ezequiel
isto ocorre advertindo-se contra uma argumentação demasiadamente se­
gura com noções de Deus, como o faz Erasmo. Aqui a idéia do Deus
abscôndito expressa que também no Deus revelado há mistérios que não
perscrutamos. O dualismo de roupagem mitológica, entre o Deus abs­
côndito e o Deus revelado, não existe para a fé. Justamente diante do
Deus revelado é que a fé sabe do Deus abscôndito. Revelação dirige-se
ao crer, não ao ver.27 Não à razão observadora. Esta naturalmente só po­
de constatar um dualismo. Através do Deus revelado a fé avança para o
Deus abscôndito, sem por isso topar com um segundo Deus atrás ou ao
lado do Deus revelado.28 Entretanto somente a fé consegue isso. Por ou­
tro lado, por causa de si própria a fé precisa da idéia do Deus abscôndito.
Esta idéia sempre volta a lembrá-la de que crer no Deus revelado é um
ato de ousadia.29 Assim, por exemplo, a idéia do amor de Deus jamais
pode tornar-se uma verdade genérica. Somente na constante repetição
deste ato é que a fé é o que ela é. Portanto também aqui existe uma re­
lação intrínseca entre a idéia do Deus abscôndito e o conceito de fé. Pre­
cisamente em consideração à fé Lutero precisa fazer aqui a distinção
aparentemente metafísica e estática entre o Deus abscôndito e o Deus
revelado. A diferença entre as duas linhas pode ser sintetizada do seguin-

27 Por isso o pleno conhecimento de Deus só e possível “ à luz da glória". "O u não achas que
então a luz da gloria poderá resolver com a maior facilidade a questão que é insolúvel à luz
da Palavra ou da graça, visto que a luz da graça resolveu com tanta facilidade a questão in­
solúvel à luz da natureza? Põe diante de mim as três luzes: a luz da natureza, a luz da graça,
a luz da glória, como é costume e de boa distinção. Â luz da natureza é insolúvel que seja
justo que a pessoa boa seja flagelada e que a pessoa má vá bem. Isso, porém, o resolve a
luz da graça. À luz da graça é insolúvel como Deus condena aquele que não consegue, por
nenhuma de suas forças, fazer outra coisa do que pecar e ser réu. Aqui tanto a luz da nature­
za quanto a luz da graça ditam que a culpa não é da pessoa miserável, mas do Deus iníquo;
pois não conseguem fazer outro juízo de um Deus que coroa de graça e sem méritos uma
pessoa ímpia, enquanto não coroa, mas condena outra pessoa talvez menos ou então não
mais ímpia. A luz da glória, porém, dita outra coisa, e em seguida mostrará que Deus, cujo
juízo é um tipo de justiça incompreensível, é de uma justiça justíssima e manifestfssima, tanto
que neste meio tempo devemos crê-lo, munidos e confirmados pelo exemplo da luz da graça
que performa semelhante milagre à luz natural.” (785,23ss.) Deduzimos daí o quanto o con­
ceito de fé de Lutero é determinado escatologicamente. A mesma atitude escatológica se ex­
pressa na doutrina do Deus abscôndito. Essa doutrina não faz parte da metafísica mas da es-
catologia! E a atitude escatológica é uma característica da teologia da cruz.
28 “ Visto, porém, que é Deus verdadeiro e único, por conseguinte é totalmente incompreensível
e inacessível à razão humana." (784,11s.)
29 Cf. XVIII, 719ss.

32
te modo: No primeiro caso a idéia do Deus abscôndito significa que re­
velação em princípio somente é possível no ocultamento, e no segundo,
que mesmo no Deus revelado persistem mistérios. As duas linhas cru­
zam-se no conceito de fé.
Não estivesse Lutero fam iliarizado com a idéia do Deus abscôndi­
to a oartir de sua concepção da fé, ele certamente não a teria usado po­
lemicamente contra Erasmo. Mas, conforme vimos, esta idéia sofre certo
deslocamento. Antes de tomarmos uma posição a respeito desse deslo­
camento, acompanharemos a evolução posterior dessa idéia em Lutero.

C. Preleção sobre Isaías


Em sua preleção sobre Isaías (1527-30) Lutero explica Is 45.15 da
seguinte maneira:
Estas são palavras do profeta, depois de já ter predito estas consola­
ções; ele já está arrebatado num transe da palavra de Deus, como que a
dizer: "Deus amado, quão estranho é teu procedimento para conosco!”
Trata-se de algo incompreensível, que não está ao alcance da razão. Não
é esta uma redenção maravilhosa prometer-se a restauração de Jerusa­
lém, do templo, etc.? Ali a carne nada enxerga, e conclui: Nada vem do na­
da, e mesmo assim enxergamos neste nada, através da palavra de con­
solação, que tudo está por vir. Assim enxergamos a Deus e seus desíg­
nios incompreensíveis. Assim estamos encarando na palavra o evanço da
igreja de Deus contra o poder e os desígnios de todos os tiranos. Uma vez
que a fé sinaliza a convicção (argum entum ) de coisas não aparentes, o
oposto é o que deve aparecer. (XXXII 2,364,21 ss.)
Que significa aqui o “Deus abscôndito”? Infelizmente justo aqui o
conceito não se apresenta de modo muito claro. Toda a discussão conti­
da em “Da vontade cativa” não é tocada aqui. Deus abscôndito aqui sig­
nifica tanto quanto Deus prodigioso, incompreensível, as obras de Deus
não são acessíveis para a razão. A atuação de Deus ocorre na abscondi-
cidade. A "carne” nada enxerga da mesma. Somente a fé como “convic­
ção de coisas não aparentes” reconhece no oposto os caminhos de Deus.
Esta é uma idéia que Lutero não se cansa de repetir desde os seus pri­
mórdios.
Se a interpretação dessa passagem não apresenta novidade al­
guma, a preleção sobre Gênesis, de 1535-154530, revela-se uma mina
tanto mais rica para se conhecer o pensamento do Lutero antigo a respei­
to do Deus abscôndito. A li Lutero também se reporta conscientemente a
“Da vontade cativa”. Assim sendo, as explanações concernentes na pre-

30 Veja XLII até XLIV. Quanto à questão da autenticidade, veja n. 4,2.

33
■ r (V
leção fornecem boa orientação para o entendimento das idéias desdo­
bradas no tratado. Entretanto poderia ser que essa interpretação autênti­
ca estaria condicionada por interesses históricos e polêmicos, razão por
que seu valor precisa ser questionado. Afinal jamais se deve esquecer
que tudo o que Lutero diz, é dito em situação bem específica. A questão
se o Lutero mais velho se interpretou corretamente a si próprio, somente
pode ser resolvida analisando-se o assunto.
O quanto vejo, na preleção sobre Gênesis igualmente voltamos a
encontrar duas linhas referentes às idéias sobre o Deus abscôndito, como
também as distinguimos acima em “Da vontade cativa”. Portanto não
tem cabimento afirmar, como em geral ainda se faz, que Lutero mais tar­
de não mais tivesse professado sua idéia do Deus abscôndito, mas antes
tivesse apenas advertido veementemente contra a mesma. Essa afirma­
ção desconsidera a duplicidade de linhas em que Lutero desenvolve esse
pensamento. Demonstremo-lo item por item!
Deus não é cognoscível sem véu (XUI,11,28ss.). Como véu são
mencionadas a palavra e as obras (XLII,11,25). Eis novamente a fam iliar
idéia; ao querer revelar-se, Deus precisa velar-se.31 Para Lutero faz parte
da essência de Deus que ele se revele. Porém, se ele não pode fazê-lo
sem velar-se, também isto faz parte da essência de Deus. É isto que quer
dizer o enunciado de Lutero: "Deus é aquele que está abscôndito. Isto é
uma propriedade sua.” (XLIV.110,23ss.) Mais ainda do que a idéia de que
Deus está oculto sob o véu da palavra, salienta-se aquela outra, de que
ele está oculto em suas obras. Palavra e obras foram citadas acima como
as duas maneiras como Deus se vela. A formulação “abscôndito nos so­
frimentos” do Debate de Heidelberg recebe aqui uma interpretação rica e
concreta. A “obra própria” de Deus se toma visível para nós como “obra
alheia”. “Por isso o profeta o chama de ‘Deus abscôndito’: é que sob a
maldição está oculta uma bênção, sob a consciência do pecado, justiça,
sob a morte, vida, sob a aflição, o consolo." (XL1I1.140,28ss.) Deus está
oculto de forma tão profunda que ele se apresenta como puro nada.

Por esta razão, nada no mundo parece mais falaz que a palavra de
Deus e a fé, nada mais vão que a esperança da promissão. E finalmente,
nada parece ser mais nada que o próprio Deus; portanto este é um conhe­
cimento dos santos e um mistério oculto para os sábios e revelado aos pe­
queninos. O papa e os turcos crêem com facilidade, porque entre eles há
tanto sucesso e eles tanto prosperam em poder, sabedoria, aparência de

31 Cf. “ Na Escritura o Deus conhecido é chamado de Deus do culto. 2 Ts 2 diz; Ele não é mani­
festo nem tem relações conosco em termos absolutos, mas ele é encerrado em alguma for­
ma.” (XXXI,2,77,21ss.)

34
santidade, religião, que nada há que [os] supere. (Xüli,392,16ss.) Deus
simplesmente é incompreensível e não é ninguém em todas as suas obras.
(XLIII,395,18ss.)
Também para o que ora Deus não faz excessão; ele esconde dian­
te do mesmo a sua face (XLIV,192,27ss.). Deus nos aparece sob a más­
cara de um diabo terrível. “Saibamos, pois, que Deus se oculta sob a apa­
rência do pior diabo.” (XLIV,429,24s.) Explanação semelhante encontra-se
no tratamento da história de tentação de José pela mulher de Potifar. A
maldade triunfa, José é atirado na cadeia.32 Mas por que Deus se oculta
tão profundamente, por que são tão opostos a todo pensamento humano
os seus caminhos? Resposta plena encontraremos apenas na “luz da gló­
ria”. Por ora sabemos que crer contra a aparência é a “sabedoria dos san­
tos”.33 Para que aprendamos o que significa crer e finalmente despeça­
mos nossa razão nestes assuntos, Deus subtrai-se aos nossos olhares
(XLIII,395,13ss.).
Todas estas são idéias que encontramos em Lutero desde cedo.
Só que agora elas se apresentam um tanto modificadas. A relação de
simultaneidade de abscondicidade, e ser revelado virou uma relação su­
cessiva. A melhor maneira de se mostrá-lo será talvez no conceito das
“costas de Deus” (posteriora Dei). Já nos deparamos com ele no Debate
de Heidelberg, tese 20. Essa imagem provém de Êx 33.18ss. Nenhum
mortal pode ver a face de Deus, mesmo Moisés somente pode ver Deus
pelas costas. Deixando de lado a figura: conhecimento direto de Deus
não é concedido ao ser humano. Este nada reconhece se não se satisfa­
zer com o conhecimento indireto. É assim que se deve entender aquele
conceito no Debate de Heidelberg. Conhecimento de Deus significa co­
nhecimento das “costas de Deus”. As “costas de Deus" são o verdadeiro
semblante de Deus. A questão se também haveria algo como “frente de
Deus” (anteriora Dei) nem chega a ser tratada ali. O teólogo da cruz não
pergunta por ela, para ele a essência de Deus se mostra na cruz e nos

32 “ O início da operação divina é tal que ele desvia sua lace, e náo se pode reconhecer que é
Deus, mas o diabo. Assim, na presente história, sua face está voltada para a meretriz e o tira­
no, e só a estes se dedica, ficando José negligenciado. Assim também lamenta Jeremias: T u
estás perto da boca deles.* [Jr 12.2]. Por isso se jactam de que Deus lhes é propicio e que os
sustenta. 'Aqui mora Deus', gritam eles. José, Jacó, Abraáo, porém, náo têm esta face voltada
para si próprios. Af vale: Aqui mora o diabo. ‘Meu rosto náo verás’, etc. Porque é assim que
Deus costumou conduzir e governar os seus." (Cf. também 3 7 6 ,15ss.; XLIV,376,1ss.)
33 “ Naquele dia, quando todos os inimigos estiverem sujeitos debaixo de seus pés, reconhece­
mos por que ele [Deus] se esconde desta forma. Enquanto Isso, creiamos e esperemos. Pois
se fosse possível vê-lo já agora diante de nossos olhos, náo haveria necessidade da f é . . . "
Linha 16: “ Porque esta é a sabedoria dos santos: crer na verdade contra a mentira, na ver­
dade abscóndita contra a verdade manifesta, na esperança contra a esperança."
(XLIII,393,9ss.)

35
sofrimentos. Na preleção sobre Gênesis o conceito reaparece, e várias
vezes. Ali ele está relacionado com o so frim e n to e a provação do pie­
doso. “Quando está presenta a aflição, enxergamos as costas de Deus."
(XLIII,599,29ss.) “As costas de Deus é nada sentir senão aflições e incer­
tezas.” (ib.) Este "ver Deus pelas costas” simplesmente é necessário pa­
ra o piedoso, conforme se mostrará mais detalhadamente na descrição
da concepção de Lutero sobre a provação. Ninguém tenha a presunção
de ter experimentado algo a respeito de Deus, que não se tenha depara­
do com essas "costas de Deus”. Mesmo agora Lutero ainda pode afirmar
que no fundo as “costas de Deus" seriam o verdadeiro semblante de
Deus. “Uma vez passada a provação, torna-se evidente que Deus, pelo
simples fato de nos mostrar as costas, mostrou-nos sua face, não repu­
diou, mas apenas desviou um pouco seus olhos.” (ib.) Entre a “frente" e
as “costas” há, portanto, uma relação de simultaneidade. Na preleção so­
bre Gênesis, entretanto, Lutero a etende principalmente como relação su­
cessiva.34 “ ‘Ver-me-ás pelas costas’, diz o Senhor a Moisés, quando este
lhe pediu que mostrasse sua face, isto é, depois de ocorrido o evento dis­
tinguirás os meus pensamentos." (XLIV.601,18ss.)35
Exatamente a mesma coisa podemos observar ao analisar a rela­
ção entre o Deus abscôndito e o revelado. Da mesma forma como ainda
na preleção de Gênesis Lutero identifica as “costas” e a “frente” de Deus,
para ele o conhecimento do Deus abscôndito pode coincidir com o co­
nhecimento do Deus revelado. “Deus é aquele que está abscôndito. Esta
é sua propriedade. Ele é deveras abscôndito, e mesmo assim não é abs­
côndito. Isto porque a came nos impede de enxergá-lo... 33 Porém na fé,
na palavra, no sacramento ele é revelado e enxergado." (XLIV,110,23ss.)
Mas também aqui prepondera a relação sucessiva “Se crês no Deus re­
velado, e aceitas a sua palavra, aos poucos ele também revelará o Deus
abscôndito.” (XLIII,460,26ss.) E se perseverarmos na oração e não duvi­
darmos da promessa de Deus, mesmo que não percebamos nem sinal de
que estamos sendo ouvidos: “nessa perseverança de oração e fé Deus
nos aparece do oculto, confortando e fazendo o que queremos”
(XLIV,192,27ss.).
Diante de tudo isso deve ter ficado claro que Lutero não abando­
nou a idéia do Deus abscôndito após 1525. Ele nem poderia abandoná-la
sem abandonar também sua concepção de fé. Pois esta exige um Deus

34 Cf. também já LVI,377,24ss.


35 “ Pois Deus conduz ao Inferno e reconduz." [1 Sm 2.6.] “ Agora o vês pelas costas, e Deus
parece estar-te averso. Um pouco depois, porém, o verás pela frente, verás sua face. E está
claro que ele ama aqueles aos quais castiga. Este amor deve ser aprendido pela experiência,
e náo se deve tugir ou averter-se ao castigo.” (XLIV, 113,20ss.)

36
abscôndito - apesar, e até por causa do significado que Cristo tem para
ele. Lutero mantém resolutamente o Deus abscôndito da linha da fé tam­
bém na preleção de Gênesis, sua última obra de vulto. Além da relação
simultânea ou de identidade entre ocultamento e revelação, Deus abs­
côndito, e Deus revelado, entrou em cena a relação sucessiva; mas isto
nada altera na importância constitutiva da doutrina do Deus abscôndito
para o conceito de fé. Entretanto também existem, ao lado disso, enun­
ciados que rejeitam expressamente a idéia do Deus abscôndito. Mais cla­
ramente não se poderia fazê-lo. Considerando a nossa concepção do as­
sunto, como deveremos entender esses enunciados?
Quando da interpretação de Gn 26, o velho Lutero dirige, em tom
profético, palavras a seus jovens estudantes, nas quais manifesta como
ele quer ver entendido o seu tratado "Da vontade cativa” .36
Depois que eu morrer, muitos publicarão meus livros e dali provarão er­
ros de todo tipo e suas próprias alucinações. Entre outras coisas, escrevi
que tudo é absoluto e necessário; porém ao mesmo tempo acrescentei que
é preciso olhar para o Deus revelado, conforme cantamos no salmo: 'E r
h e isst Jesu C hrist, der H ERR Zebaoth, und is t kein ander G ott', ‘Jesus
Cristo é o Senhor dos exércitos, e não há outro Deus’; e em muitas outras
passagens. Mas eles passarão ao largo de todas elas e pegará) somente
as que tratam do Deus abscôndito. Vocês, portanto, que agora me ouvem,
deverão lembrar-se que ensinei isto: não se deve inquirir a respeito da pre­
destinação do Deus abscôndito, mas contentar-se com o que é revelado
através da vocação e do ministério da palavra. (XUII,463,3ss.)
Lutero adverte que não devemos entregar-nos a elucubrações a
respeito do Deus abscôndito. Deve-se observar, isto sim, que com ne­
nhuma palavra sequer ele retira a doutrina do Deus abscôndito. Ele ape­
nas adverte contra especulações referentes a ele. O mesmo vale para as
numerosas outras passagens que aqui entram em questão. Sempre é re­
pudiada como procedimento perigoso e até diabólico a especulação so­
bre a soberana majestade de Deus, sendo, ao invés, Cristo exaltado co­
mo único caminho seguro para o Pai. O “Deus nu” é para o ser humano
um fogo cosumidor, suas obras são “terríveis”. Cristo é o "caminho para
Deus”. Se não quisermos enveredar por este caminho para Deus, caímos
no desespero. (Vide preleção de Isaías, XXXL,2,38,21 ss.)37 Particularmen­

36 Aqui, sem dúvida, deveria ser feita a pergunta pela autenticidade.


37 “ Sempre adverti os teólogos mais jovens e ainda hoje os advirto de que devem estudar as
sagradas letras de tal maneira que nôo tentem perscrutar a majestade divina e suas terríveis
obras. Não é assim que Deus quer ser apreendico por nós, não podes associar nu com nu.
Mas Cristo é o caminho a Deus. Os especuladores a respeito da majestade são oprimidos
e levados ao desespero por satanás." (XXXI,2,38,21ss. Cf. especialmente as linhas 33ss.)

37
te no grande comentário de Gálatas Lutero não se cansa de apontar re­
petidamente para Cristo como único mediador da revelação. O "Deus em
sua natureza” é insuportável para a pessoa humana. Por isso, ao pen­
sarmos sobre Deus, precisamos começar na manjedoura (XL 1,77,11ss.).
Cristo é a “figura amável” na qual enxergamos a Deus (XL 1,79,20; Cf.
93,23ss. e 602,20ss.). E finalmente reencontramos este pensamento
na preleção de Gênesis. Lutero lembra uma velha história que adverte
contra a especulação teológica. Nisto ele também pronuncia uma palavra
áspera contra a contemplação e meditação conventuais.38 A verdadeira
"vida especulativa” é bem diferente, é renúncia à razão e imaginação, é
vida “exclusivamente pela palavra de Deus” (XLIV,193,37ss.). Por isso Lu­
tero tira de Gn 6.5 a lição: evite perguntas “que nos transportem para o
trono da majestade suprema” (XLII,293,29ss.).
Em todas essas declarações Lutero combate, portanto, um concei­
to de Deus isolado da fé, conseguido por especulação. O “Deus nu” é o
Deus dos filósofos (XLIII,240). Lutero contrapõe-lhe o Deus revelado.
Com isto ele está fazendo o mesmo que fez desde o começo. Acima já
constatamos a tendência anti-especulativa da teologia da cruz. Vimos
também que esta tendência culmina na idéia do Deus abscôndito. Ao re­
pudiar agora, na preleção de Gênesis, do ponto de vista da teologia da
revelação, como diabólica a reflexão sobre o Deus abscôndito (XLIII,
458,36ss.), isto de modo algum pode atingir aquela versão do conceito de
Deus abscôndito que se nos apresentou na teologia da cruz do Debate
de Heidelberg e na idéia de fé de “Da vontade cativa” . Nessas passagens
o Deus abscôndito deve ser antes identificado com o Deus nu, o Deus
em sua própria natureza.
Com isto já respondemos implicitamente a pergunta por que Lute­
ro agora adverte contra a idéia do Deus abscôndito, considerando que ele
próprio a introduziu em “Da vontade cativa”. Será que ele próprio está
admitindo que foi levado para o caminho errado no calor da polêmica?
Mas já constatamos acima que com nenhuma palavra sequer ele retira
essa idéia. Ele adverte apenas contra mau uso da mesma. Em nossa
análise de “Da vontade cativa” vimos que também o Deus abscôndito da
segunda linha precisa ser entendido a partir do conceito da fé. Na reali­
dade, porém, na passagem em questão (XVlll,685), isto não fica bem evi­
dente. A passagem leva a interpretações errôneas, principalmente quan­
do se as isola do todo do tratado. Então não mais se percebe com clare-

38 "Está certo, portanto, aquele eremita ao advertir “ Se enxergares um jovem monge subir ao
céu, disse ele, e já quase pondo um dos pés no céu, puxe-o imediatamente de volta; pois se
colocar ali os dois pés, verá que nâo está no céu mas no inferno.” (XUI,647,11ss. A mesma
passagem se encontra em XLIII,72,4; cf. além disso XUII,72,9ss.)

38
za que: 1? o conceito do Deus abscôndito está posto justamente em fun­
ção da fé; e 2° em "Da vontade cativa” as duas linhas se cruzam no con­
ceito da fé, ou seja, o conceito do Deus abscôndito não aparece por aca­
so, mas está intrinsecamente ligado a idéias centrais da teologia de Lute-
ro. A desconsideração dessas conexões se sugere ainda mais pelo fato
de o conceito somente aparecer nominalmente nessa uma passagem (e
mesmo ali apenas duas vezes!!). Chega-se então à interpretação errônea,
metafísica, desse conceito, à qual corresponde do outro lado o mal-en­
tendido determinista-mecanicista da vontade escrava. O próprio Lutero
deve ter sentido que aquela passagem poderia causar mal-entendidos.
Somente assim se explica que, ao mesmo tempo em que ele considera
“Da vontade cativa" um de seus melhores escritos, ele não obstante ad­
verte contra a idéia do Deus abscôndito. É muito fácil distorcerem senti­
do metafísico a contraposição entre Deus abscôndito e Deus revelado. A
oposição polarizada dos dois enunciados a respeito do mesmo Deus,
dentro da qual ocorre o movimento da fé, se transformaria assim numa
co-existência rígida e estéril de duas hipóstases. Contra isto se volta com
toda a razão a polêmica posterior de Lutero. Pois ficaria revogada nada
menos do que a bem-entendida idéia do Deus abscôndito. (Debate de
Heidefberg, “linha da fé”, XLIII,460,26ss.; XLIV.f 10,23ss.) Em favor do
Deus abscôndito Lutero precisa atacar o ídolo "Deus abscôndito”. Por is­
so precisamos avaliar da seguinte maneira a relação entre as duas linhas
em "Da vontade cativa": a segunda lin h a , isolada, é suscetível de mal­
entendido; ela sempre precisa receber crítica e fundamentação a partir da
primeira linha. Acreditamos ter deixado claro agora que ambas estas coi­
sas ocorrem nas respectivas explanações apresentadas na preleção de
Gênesis.
Procuramos entender a idéia do Deus abscôndito no complexo da
concepção de Lutero a respeito da fé. O quanto sabemos, Kattenbusch
foi o primeiro a empreendê-lo.39 Sua tese (p. 183) reza: “Precisamos con-

39 KATTENBUSCH, Deus absconditus bei Luther. A defictéhda deste escrito consiste, entre­
tanto, no fato de ele restringir-se quase que exctusivamente ao escrito contra Erasmo. Daf re­
sulta, a meu ver, um prejuízo duplo:
1. A exposição teria ganho em poder persuasivo se tivesse sido mostrado como aquilo que
denominamos a “ primeira linha" em "D a vontade cativa” está em continuação direta dos
pensamentos dos primórdios de Lutero, integrando, portanto, os reconhecimentos da teologia
da cruz.
2. Neste caso, decerto teria visto com mais nitidez que em "D a vontade cativa" de fato corre
uma segunda linha paralela à primeira. Náo é possível liquidar a explicação de Lutero da
passagem de Ezequiel com a simplicidade oom que está sendo feito aqui na p. 205, n. 31.
Justamente por não ser tomada suficientemente a sério a dificuldade que a passagem apre­
senta, não se impõe a referência ao Debate de Heidelberg, na p. 204, n. 29, referência esta,
aliás, no mais, muito valiosa. Quando Kattenbusch menciona, à p. 203, como sentido do

39
siderar a idéia de Lutero referente ao Deus abscôndito totalmente como
uma idéia positiva e muito peculiar de fé, caso contrário não lhe faremos
justiça." Conforme ficou mostrado em nossa exposição, só podemos
mesmo concordar com isto. Não resta dúvida que o debate sobre o Deus
abscôndito foi colocado sobre nova base através de Kattenbusch.
A interpretação de A. Ritschl40 certamente é hoje por todos rejeita­
da. Segundo ela, a idéia do Deus abscôndito seria uma recaída no nomi­
nalismo.41 Em sua polêmica contra Erasmo, Lutero teria se refugiado no
Deus occamista do arbítrio puro, no “Deus fora da lei". Entretanto uma
tentativa de explicação que se lim ita a constatar contradições e inconse-
qüências no pensamento de um grande homem já é insatisfatória por
uma questão de método. Neste caso, porém, ela também é impossível
em termos objetivos. Com muito acerto Kattenbusch (p. 196) lembra que
a frase “ele é Deus, cuja vontade não tem causa nem razão” (XVIII,
712,32) tem uma continuação que não pode ser ignorada. A vontade de
Deus não tem causa e razão “que seja prescrita como norma e medida
para aquela” . Pois então a frase não significa que a atuação de Deus é
puro arbítrio, mas apenas que ela não precisa submeter-se a nenhuma
norma advinda de fora Fica preservada portanto, a liberdade de Deus.
Mas Lutero jamais concebe esta liberdade como moralmente indiferente.
Que Deus é justo mesmo ao condenar inocentes e eleger culpados, é al­
go que agora naturalmente só podemos aceitar na fé; na “luz da glória" a
justiça de Deus revelar-se-nos-á em todo seu brilho. Não há necessidade
de se interpretar em sentido nominalista a afirmação de que "não é por­
que assim ele deve ou devia querer, que é correto aquilo que ele quer
mas pelo contrário, porque ele próprio assim o quis é que precisa ser cor­
reto aquilo que acontece” (XVIII.712,35ss.); ela também pode ser entendi-

“ Deus abscôndito” : “ Deus é tão grande, tão sublime que nem pode revelar-se inteiramente
às pessoas", e quando, logo em seguida, â p. 204, n. 29, aponta para o lato de que no De­
bate de Heidelberg o Deus encarnado é qualificado como tal de Deus abscôndito, não fica
claro que ambos os pensamentos não são a mesma coisa. O enunciado de que também no
Deus revelado permanecem mistérios derradeiros não congrui com aquele outro: que revela­
ção, em princípio, só é possível na velação. Cremos fazer maior justiça à critica de Th. Har-
nack e A. Ritschl a “ Da vontade cativa” - crítica que, sem dúvida, tem que ser tomada a sério
- por meio de nossa diferenciação das duas linhas, do que Kattenbusch o pode, sem que
com isso tenhamos que abrir mão do que está correto em sua exposição.
Não há necessidade de nos ocuparmos com o primeiro trabalho de KATTENBUSCH, Luthers
Lehre vom freien Willen und von der Prädestination nach ihren Entstehungsgründen
Untersucht, Göttingen, 1875, visto que o próprio autor não se identificou mais com ele. Veja
p. 178 n. 11.
40 “ Geschichtliche Studien zur christlichen Lehre von Gott” . In: Jahrbuch für deutsche Theologie
XIII, 1868, 2, artigo, p. 67ss. Reproduzido em: Gesammelte Aufsätze, NF 1896, p. 65ss.
41 De Igual modo, segundo A. HARNACK, Dogmengeschichte III, 4. ed., p. 148; originalmente
(1875) também KATTENBUSCH defendia esta opinião (veja p. 17,93,95).

40
da (vide Hirsch, loa cit. p. 24) como "vigorosa expressão da certeza da
fé” na bondade de Deus, mesmo que ela esteja totalmente oculta “sob
apecto contrário”. E, para completar, seguindo a perspicaz exposição de
Heim42, a novidade na concepção de Lutero está precisamente na síntese
paradoxal entre a trascendência da vontade salvífica de Deus e a expe­
riência subjetiva da imprevisível dupla vontade por um lado, e a transcen­
dência da absoluta dupla vontade e a experiência subjetiva da vontade
salvífica incondicional por outro. Excluindo-se com RitschI da concepção
fundamental de Lutero aquela sequência de pensamento, por ser nomi­
nalista, a outra sequência de pensamento, qual seja a objetivação da
isolada vontade de amor de Deus, acaba virando uma repetição de idéias
medievais, por exemplo, de Abelardo.
Enquanto a concepção de RitschI sofre rejeição bastante generali­
zada43, aquela de seu contemporâneo e antípoda Theodosios Hamack44
pode, com boas razões, reinvindicar para si alto grau de consideração.
Hamack apresenta vasto material original, baseado no qual ele apresenta
sua tese sobre o Deus abscôndito em toda a obra de Lutero. Embora de
forma um tanto modificada, ela também serve de base para a exposição
de Seeberg em sua história dos dogmas.45
Hamack distingue dois tipos de conhecimento de Deus em Lutero.
Um sucede pela razão, sendo portanto conhecimento natural de Deus.
Lutero também pode chamá-lo de conhecimento através da lei. Para ele
a lei de Moisés e a razão têm seu lugar conjuntamente ao lado do ser
humano natural. Esse conhecimento, entretanto, somente chega até ao
Deus como criador do mundo. Além disso, tendo as pessoas humanas
abusado dele, ele se transformou em fonte de toda idolatria; também o
diabo tem esse conhecimento. Por isso ele não pode ser salvrfico; pois
ele apenas sabe da majestade de Deus, porém não tem a menor noção
de sua misericórdia Entretanto é justamente esse últim o aspecto que
importa para o pecador. Esse conhecimento “fora de Cristo” não é objeti­
vamente inverídico, porém mostrou-se insuficiente. Contrapóe-se-ihe o
conhecimento de Deus em Cristo, conhecimento este que traz consigo o
conforto do perdão. Este duplo conhecimento corresponde à dupla rela­
ção em que Deus se acha para com o mundo, ou seja, como seu criador

42 Kart HEIM, Das Gewissheitsproblem in der systematischen Theologie bis zu Schleiermacher,


Leipzig, 1911, cap. XI.
43 Também é errada a interpretação que STANGE faz do Deus abscôndito: “ Deus absconditus
als abstrakter Begriff, als vorzeitliche Ursache der Welt", in: Theologische Aufsätze, 1905, p.
46.
44 Th. HARNACK, Luthers Theologie, v. I, cap. II e III, ed. de 1927.
45 V. V ,1 ,§ 7 7 .

41
e como seu redentor. Hamack vê nesta dupla relação o esquema básico
do qual se pode deduzir toda a teologia de Lutero. Por isso é neste es
quema que também se insere a doutrina do Deus abscôndito e do Deus
revelado. O Deus abscôndito é Deus em sua relação de criador, o Deus
revelado é Deus como redentor. O Deus abscôndito é Deus “fora de Cris­
to", o Deus revelado é Deus “em Cristo”. Em termos concretos, com refe­
rência à humanidade pecadora, isto significa distinguir entre o Deus da
ira (p. 96) e o Deus da graça. Nesta distinção deve-se manter, entretanto,
a indentidade de Deus; trata-se apenas de duas relações distintas (p.
94).46
Acontece, porém, que já se pode fazer ressalvas contra a distinção
de Harnack entre Deus criador e Deus redentor. Para Lutero, a fé no
Deus criador representa de forma alguma uma etapa preliminar extracris-
tã da verdadeira fé em Deus (XIII,439s.). Ele pode ver todo o conhecimen­
to cristão de Deus compreendido na fé no criador ele chega até a dizer
Se (os pagãos) tivessem mantido esta percepção e dissessem: Veja,
quem quer que seja esse Deus ou essa divindade, sabemos que se ca­
racteriza por ser imortal, potente e por atender aos que o invocam, vamos
então cultuá-lo e adorá-lo, e não dizer que é Júpiter ou semelhante a isto ou
aquilo; vamos simplesmente cultuá-lo, etc., quem quer que ele seja (ele ne­
cessariamente existe de qualquer maneira)', sem dúvida teriam sido sal­
vos, mesmo que não o reconhecessem como criador do céu e da terra ou
de qualquer outra obra sua em particular. (LVI,177,18ss.)
Portanto não se deve forçar a diferença entre o Deus criador e o
Deus redentor. Em todos os casos ela não se presta como fundamento
da doutrina do Deus abscôndito e revelado. Afinal, no Debate de Heidel-
berg Lutero justamente contrapõe ao “Deus manifesto a partir das obras”,
portanto ao “Deus criador", o “Deus abscôndito nos sofrimentos”, e este
Deus abscôndito é para ele o Deus revelado. Também Hamack percebeu
que Lutero “chama o próprio Deus revelado de oculto” (X,1,144,5ss.). Mas
esta observação não o preocupou muito. “Nisto Lutero não se refere ao
conteúdo, mas à forma da revelação, e assim a contribuição anula-se por

46 POHLMANN, Die Grenze für die Bedeutung des religiösen Erlebnisses bei Luther, Gütersloh,
1918, segue a Th. Hamack. O que 6 preciso dizer contra este aplica-se, por isso, também a
Pohlmann. Em conseqOáncia de seu "método psicológico-genético” ele vai além de Hamack
com o resultado de que o Deus abscôndito seria o Deus pré-reformatório e que no paralelis­
mo do Deus abscôndito e Deus revelado se refletiria o desenvolvimento interior de Lutero (p.
48). Isto, porém, já o dissera antes dele, sem método psicológico-genético, A. Ritschl que,
por sua vez, foi posto de lado por Pohlmann algumas linhas antes. A confusão aumenta, no
entanto, quando o conhecimento do Deus abscôndito é denominado o resultado teológico
das lutas de Lutero no convento. Se é que náo se ficou desconfiado do “ método psicológico-
genético" já antes (cf. especialmente p. 11), entáo se há que ficá-lo necessariamente em fa­
ce de tais asserções.

42
si mesma.” (p. 110.) É claro que aqui se trata em primeiro lugar da forma
da revelação; mas será tão simples distinguir entre forma e conteúdo?
Será a forma da revelação porventura acidental ou não será ela altamen­
te característica para o conteúdo da revelação? Será Cristo apenas forma
indiferente da revelação, não está o objeto da revelação em boa parte
contido no modo da revelação? A distinção irrefletida entre forma e con­
teúdo da revelação levaria, no que tange à doutrina da pessoa de Cristo,
a conseqüências que ninguém repudiaria mais resolutamente que o pró­
prio Hamack. O fato de Harnack passar aqui tão rapidamente por cima
desse problema surpreende ainda mais, já que ele próprio chega a dizer
(p. 95): “Na qualidade de Deus revelado, Deus é o Deus oculto, para que
ele não obstante seja e permaneça Deus e como tal seja por nós temido
e adorado; e na qualidade de Deus oculto ele é o Deus revelado, para
que possa ser nosso Deus e por nós captado como tal na fé.” A partir daí
falta, afinal, apenas um passo para reconhecer que a idéia do Deus abs-
côndito deve ser associada ao conceito de fé de Lutero. Hamack inclusive
dá esse passo ao dizer (p. 103) que Deus, não fosse ele também o Deus
oculto e absoluto, “não só não poderia ser por nós temido”, mas que nes­
te caso “também fé, esperança e amor não teriam lugar dentro de nós”;
isto é, nós então, aí sim, “estaríamos e viveríamos sem Deus”
(V,175,4ss.). Mas ao invés de perseguir esses nexos, ele logo subordina
o Deus abscôndito (p. 86) a seu esquema básico de Deus criador e Deus
redentor, obstruindo assim a própria constatação do caráter revelado do
Deus oculto.47
Quem o faz de forma ainda mais decisiva clara é Seeberg.48 Se­
gundo ele a doutrina do Deus abscôndito apenas fornece o quadro meta­
físico científico geral para a idéia cristã do amor de Deus. Em sua opi­
nião, Lutero aqui simplesmente adota a combinação fixada pela escolás­
tica, que coloca no centro de um quadro metafísico geral a idéia cristã do
amor divino (p.148). A novidade em Lutero, entretanto, seria que ele “des­
taca muito o elemento especificamente cristão da revelação positiva do
amor, atribuindo-lhe exclusivamente toda força e importância religiosa” (p.
148). Aqui vemos claramente como o trilho conduz de Harnack novamen­
te para Ritschl.49 Caso fosse correta a interpretação de Hamack, não se

47 Cf. F. W. SCHMIDT, toe. c it, p. 187, n. 2, com cujo jufzo sobre Hamack concordamos.
48 Quanto a isso cf. HIRSCH, Die Gottesanachauung Luthers, n. 15.
49 Na p. 147, SEEBERG menciona três razões por que Lutero náo abandonou por completo a
idéia do Deus abscôndito:
1. Para o conhecimento teórico de Deus como amor, toda discussão científica necessita da
moldura metafísica da supramundanldade e do absoluto.
2. Em consideração do irracional no mundo, tem que ser colocado um querer na "causa ori-

43
justificaria teologicamente a idéia do Deus abscôndito. Ritschl ficaria com
a razão. A idéia do Deus abscôndito somente é sustentável ao se com­
preendê-la como idéia positiva da fé. Já apontamos o germe desta em
Hamack, mas ele não sai da forma embrionária. Em última análise o
Deus abscôndito fica pertencendo mesmo à teologia natural.*50
Ao invés, acreditamos ter mostrado que o chão original deste na
teologia da cruz de Lutero. A partir dali é preciso tentar entender a versão
especial do conceito em “Da vontade cativa”. Vê-se então que seu senti­
do ali não é especulativo metafísico, embora motive tal interpretação.
Bem por isso Lutero mais tarde adverte contra essa idéia, embora eia
ainda permaneça ao mesmo tempo um conceito fundamental em seu
pensamento teológico. A fim de assegurar o verdadeiro objetivo dessa
idéia, ele adverte contra o “Deus abscôndito” mal-entendido em sentido
especulativo. Lutero portanto se manteve fiel às suas concepções iniciais.
Pequena alteração da idéia original podemos constatar a partir do concei­
to "costas de Deus”. Entretanto essa leve mutação ocorre nas bases da
teologia da cruz. Portanto já podemos constatar aqui, num ponto decisivo,
que a teologia da cruz de Lutero não deve ser considerada como estágio
incipiente da teologia de Lutero, como o quer Otto Ritschl, rnas antes
constitui momento integrante de toda a teologia de Lutero.

Capítulo II: A doutrina de Lutero a respeito da fé

Mostramos acima que a idéia do Deus abscôndito em Lutero se


origina de seu conceito de revelação e fé. Na contrapartida daquilo que
sabedoria humana chama de divino e eterno, Deus faz ver sua verdadeira

ginal (slc!) que não se resume nem parece resumir-se na fórmula do amor” .
3. A introdução do querer metaffsico de Deus estaria oferecendo a Lutero um “ argumento
puramente racional” contra Erasmo em favor da não-liberdade da vontade. Será que Ritschl
se teria deixado comover por estes motivos a uma revisão de seu jufzo segundo o qual se de­
veria ver na doutrina do Deus abscôndito nada mais do que um resfduo de filosofia escolásti­
ca? Cf. SEEBERG, loc. c it, p. 147, n. 3.
50 Julius KÕSTLIN, Luthers Theologie, 2® ed., 1901, traz a doutrina do Deus abscôndito no v. I,
p. 359 e v. 2, p. 71ss. Porém, sua exposição neste ponto não passa de um puro relatório; ele
não conseguiu elaborar a problemática da idéia; cf. também a opinião de KATTENBUSCH,
Deus absconditus, p. 172, n. 1.
Johannes GOTTSCHICK, "Luthers Theologie” , in: Zeitschrift íür Theologie und Kirche,
24, 1914, 1® caderno complementar, enfatiza com razão que Lutero associa à doutrina do
Deus abscôndito um interesse diretamente religioso (p. 44). A doutrina é expressão da ve­
neração de Deus. Gottschick não vê a relação com o conceito de revelação. Isso também po­
de ser devido ao fato de ele identificar imediatamente o Deus abscôndito com o Deus deter­
minante, predestinador. Nossa exposição se absteve intencionalmente de ocupar-se com a
questão da predestinação. A doutrina do Deus abscôndito não deve ser reduzida a eia.

44
essência. Deus se oculta “sob aparência contrária”. Somente através da
“obra alheia” ele chega à "obra própria”. Revelação não pode ser sim­
plesmente lida na história. Assombrosa é esta idéia de Deus na teologia
da cruz. Embora criador do mundo, Deus se acha em nítida contraposição
a tudo que se chama de mundo. Pois este mundo está determinado pelo
pecado. A santidade de Deus lhe é oposta. Por isso, quando ocorre um
encontro entre Deus e este mundo, acontece uma inversão radical de to­
das as hierarquias e condições. E na qualidade de criador do mundo,
Deus se evidencia como aquele que impera neste mundo em soberana
liberdade. Não há leis com que pudéssemos comprometer a Deus (XVI-
ll,32s). Com este Deus de modo algum podemos "calcular”. Mesmo sobre
o Deus revelado paira um mistério último, cujo véu se levantará apenas
na “luz da glória”. A referência a esta “luz da glória”, na qual a fé passará
a ser visão, é, afinal, a razão última em “ Da vontade cativa”. O Deus
oculto sob a contraposição, o Deus que, sendo absolutamente livre, es­
capa a todo cálculo, este é o Deus da teologia da cruz.
Já dizíamos acima que as duas idéias de Deus que descobrimos
em “Da vontade cativa” e que não são totalmente idênticas, confluem na
idéia da fé. Mas que quer dizer “fé”? Esta palavra tão singela suscita
questões bastante difíceis. Será que da parte da pessoa humana pode
haver algo que corresponda a uma idéia de Deus como a descrita acima?
Será que ainda se pode compreender de algum modo esse Deus que, re­
velado, é o Deuc oculto? Será que no ser humano pode haver órgão que
compreenda esse Deus, uma vez que ele se acha em contradição a tudo
que se chama de mundo? Ou haveria algum órgão humano que não pre­
cisaria ser considerado pertencente ao mundo? Afinal, aqui não surgem
apenas aquelas perguntas que constituem o problema fundamental de
toda religião séria e cuja expressão clássica em solo cristão está nas
Confissões de Agostinho. O âmago do problema não é a questão como é
que o ser finito poderia participar do ser infinito, ou como a criatura pode­
ria ser vaso para o conteúdo divino, e sim a questão se é possível haver
um ponto de conexão no ser humano para a atuação do Deus que se
comporta de maneira tão oposta ao mundo. Como é possível atribuir ca­
ráter de realidade à fé, quando o Deus crucificado representa o grande
“não” à realidade? Ao que tudo indica, a fé também precisa ser uma ne­
gação de todas as idéias humanas a respeito de Deus, mas onde está
então o seu lugar? Como se pode formar no lado humano a analogia do
“sob aparência contrária” da idéia de Deus, sem com isto abandonar toda
reivindicação de realidade? Se é que o conceito da fé somente pode ser
definido negativamente, como escaparemos do perigo do “niilism o” reli­
gioso? Mesmo assim, segundo a teologia da cruz, não existe caminho re-

45
tilíneo algum que parta de alguma qualidade humana rumo a Deus. Se a
teologia da cruz implica o abandono de toda e qualquer posição humana,
como então ainda chegaremos a enunciados positivos a respeito da rela­
ção entre Deus e ser humano? Entretanto sem tais enunciados positivos
a teologia deixa de ser teologia. Aqui nos deparamos com o ponto em
que a pergunta pela possibilidade da fé tange a pergunta pelo direito da
teologia.
Depois de termos tratado a idéia do Deus abscôndito como idéia
decisiva de Deus na teologia da cruz, o desenrolar natural de nossa aná­
lise conduz-nos à seguinte pergunta: Como fica o lado humano? Com
que responde a pessoa humana à revelação do Deus oculto? Como se
poderá descrever mais detalhadamente a resposta da fé, uma vez que
outra não pode haver? Nós o faremos primeiramente delimitando-a, para
então nela buscar os aspectos positivos e finalmente perguntar se é pos­
sível encontrar uma categoria teológica que o sintetize.

A. Delimitação crítica do conceito de fé

1. Féesindérese
Será que existe um ponto de conexão do divino no ser humano?
Como se sabe, a escolástica constatou expressamente tal ponto em sua
doutrina da sindérese. Uma vez que também Lutero manteve inicialmente
essa doutrina, precisamos ocupar-nos brevemente da mesma.
Seu surgimento ainda não está suficientemente elucinadado.51 Ele
também nos interessa menos que seu conteúdo. Jerônimo descreve a
sindérese como a “centelha da consciência, que não se apagou no peito
de Adão mesmo depois de expulso do paraíso, e pela q u a l... sentimos
que estamos pecando”. Esta aptidão a Bíblia também chamaria de “espí­
rito" (Rm 8.26). Com esta descrição combina muito bem a designação
sindérese = preservação, contanto que se aceite como correta esta leitu­
ra do termo, como o fez a escolástica. No mais, a sindérese aqui parece
ser distinta da “consciência" através da caracterização "centelha da cons­
ciência". É nesta direção que se desenrolou posteriormente a história
deste conceito. Diferente da consciência, a sindérese é entendida como
consciência moral. A doutrina está fixada desde Alexandre de Hales. A

51 Quanto a isso, cf. F. NITZSCH, Uber die Entstehung der scholastischen Lehre von der
Synteresis", in: Jahrbuch für protestantische Theologie, 5, 1879, p. 492ss.; M. KÄHLER, arti­
go “ Gewissen” , f t £., 39 ed., 6, pp. 646-654; WETZER e WELTE, Kirchenlexikon, 2® ed., v.
V p. 564. O termo synteresis é usual no grego tardio e significa tanto quanto “ preservação",
"observação". Como termo técnico aparece em JERÔNIMO, Comentário a Ezequiel, livro I,

46
sindérese, a consciência moral, permaneceu com o ser humano também
após a queda. O ser humano sabe o que é bom e o que é mau. Na apli­
cação ao agir individual, entretanto, começam os erros. Tomás de Aquino
caracteriza a sidérese como "hábito", ao passo que a consciência, ou se­
ja, a aplicação ao individual, como "ato” (Summa theologiae I, qu 79). "Os
princípios práticos que nos são dados naturalmente não pertencem a um
poder especial, mas a um hábito natural especial que chamamos de sin­
dérese. Por isso também se diz que a sindérese incita para o bem e
murmura sobre o mal, na medida em que através dos princípios primor­
diais avançamos para o descobrimento e julgamos o descoberto. Fica
evidente, portanto, que a sindérese não é uma faculdade, mas um hábito
natural.” (I, qu. 79 art. 12). “Entretanto a sindérese não considera opostos,
mas inclina-se apenas para o bem. Portanto a sindérese não é um po­
der.” (ib.) Sindérese é inteleto prático. "A sindérese é chamada de lei do
nosso intelecto, na medida em que é o hábito que contém os preceitos
da lei natural que são os princípios primordiais das obras humanas.” (II, I
qu 94 art. 1.) A consciência, por sua vez, é um “ato”. Sua relação com a
sindérese mostra-se na frase seguinte: “Agora, embora sejam muitos os
hábitos dos quais é formada a consciência, todos eles não deixam de ter
eficácia a partir de um princípio primordial, qual seja, do hábito dos prin­
cípios primordiais, o qual se chama de sindérese.” (I qu 79,13.) Como
“princípio primordial” da consciência a sindérese decerto também é cha­
mada ela própria de consciência. “Por esta razão especialmente este há­
bito é por vezes chamado de consciência." (ib.) Segundo Gabriel Biel a
sindérese, embora não seja nenhum “ato ou hábito na vontade”, não dei­
xa de ser uma capacidade cognitiva moral infalível. “A sindérese é algo
que necessariamente orienta, ao menos de um modo geral, para uma
atuação justa e reta.” (Collect II dist. 39 quaest. VII art. 2 concl. 1.) Tam­
bém para ele ela é uma “centelha inextinguível: portanto não pode deixar
de inclinar-se para o bem, de modo que necessariamente inclina-se para
o bem” (ib.).

cap. I. (Teor veja em Nitzsch, p. 499.) Jerônimo interpreta a visão do chamado de Ezequiel
alegoricamente nos detalhes. Trata-se aqui em especial dos quatro seres com quatro rostos
cada um. Três deles, o rosto da pessoa humana, o do leão e o do touro, são interpretados,
segundo Platão, como as três forças da alma, ou seja, como o logikon, thymikon e epithymi-
kon (o lógico, o passional e o desejo). Resta o quarto rosto. Ele tem a configuração como o
rosto de águia. De acordo com Jerônimo, os gregos denominavam a quarta força da alma de
synteresis. Não sabemos como Jerônimo chegou a estas afirmações contraditórias à verda­
de. Nitzsch é da opinião de que estamos diante dum texto corrupto. Originalmente teria
constado ali syneidesis. De acordo com sua opinião, não contradiz a isso o fato de synteresis
estar sendo circunscrito por scintilla conscientiae (centelha da consciência). E scintilla cons-
dentiae não significaria outra coisa que a própria consciência. De acordo com isso dever-
se-ia atribuir a doutrina escolástica da sindérese a um erro ortográfico.
Segundo esta doutrina existe, portanto, no ser humano um órgão
para o divino. A pessoa humana está em princípio capacitada a reconhe­
cer e querer o bem. Ela somente precisa produzir os atos que correspon­
dam a esse hábito. Se ela muitas vezes não o consegue, isto em nada al­
tera a possibilidade em princípio. Embora a pessoa humana tenha caído,
a consciência moral, pensada em seu teor, a “inclinação para o bem”,
permaneceu com ela. A corrupção pelo pecado original assim fica consi­
deravelmente atenuada; ela não está no centro, mas na periferia da pes­
soa A doutrina da sindérese é bem semipelagiana. No mais ela é muito
característica para o jeito teológico da escolástica. Em princípio atribui-se
à pessoa humana algo decisivo, a “inclinação para o bem como hábito",
mesmo do ser humano caído; só depois vêm as restrições, os atos indivi­
duais não são isentos de falha: mesmo assim o ponto de partida é man­
tido sem o menor questionamento. Fica-se resguardado para os dois ia-
dos; com o maior cuidado evita-se qualquer enunciado radical. Este car­
regar sobre dois ombros, porém, trai no fundo uma consciência pesada
(veja, por exemplo, também a doutrina do "mérito de congruidade" e do
“mérito da condignidade"; cf. XVIII,769). Em vista dessas distinções muito
bem arquitetadas, pelas quais na verdade é afastada uma decisão objeti­
va, pode-se entender o escárnio e a raiva de Lutero face à terminologia
escolástica (XVIII, 769ss.; 617ss.; e ainda LVl, 382,21-383,24).
É claro que Lutero teve que rejeitar a doutrina da sindérese por
causa de suas conseqüências semipelagianas. Ela não combina com as
idéias da teologia da cruz. “Pela cruz ficam destruídas as obras”, é o que
ouvimos. Conhecimento verdadeiro a pessoa humana possui não em
consequência de um hábito, mas apenas como conhecimento “reduzido a
nada pela cruz e pelo sofrimento". Mesmo assim Lutero não se libertou
logo dessa doutrina, e sim procurou combiná-la com suas novas intui­
ções.
Nos Dictata super Psalterium, de 1513-1519, encontramos várias
vezes esse conceito.52 A sindérese é “desejo natural” na pessoa humana.
Esse anseio inato pelo bem, por Deus, não pode ser extinto, embora mui­
tas vezes seja reprimido por outros impulsos (111,238,11 ss.). Por isso até a
pessoa mais réproba ainda pode orar em seu distanciamento de Deus,
porque nela ainda arde a centelha da sindérese. Lutero deixa isto claro na
parábola do filho pródigo (111,617,25s.). A sindérese não deixa a pessoa
sossegar, ela não pode ignorar constantemente sua voz admoestadora
(lll,94,13ss.,21ss.;624,32.). Neste caso a sindérese é igual à consciência,
portanto. Na provação em que a pessoa desespera de Deus, a sindérese

52 Além das passagens citadas, ct. ainda III, 535,36; 603,33; IV,253,24.

48
é purificada e fortalecida (111,93,35:44,1785.). O anseio natural por Deus é
reforçado pela prova espiritual, pelo aparente distanciamento de Deus.
Nisso tudo Lutero ainda é bom católico. As passagens não nos aprensen-
tam novidade. Mas a longo prazo Lutero não pôde manter essas doutri­
nas sem topar com dificuldades. Podemos até observá-lo em detalhe.
O tratamento mais pormenorizado de Lutero sobre a sindérese en­
contra-se no sermão "sobre a própria sabedoria e vontade", sermão con­
ventual que a edição de Weimar data para 26 de dezembro de 1514 (l,30-
37). E interessante ver como ali o velho e o novo no pensamento de Lute­
ro se acham lado a lado, a exigir uma solução.53
Podemos dividir em quatro partes os enunciados de Lutero a res­
peito da sindérese neste sermão.

a) O ser humano de fato dispõe dessa faculdade. Por natureza ele


quer ser salvo, ele abomina a condenação. Isto sempre permanecerá as­
sim. A sindérese é um resto da natureza original do ser humano tal qual
ela fora criada por Deus, não se perdendo mesmo após a queda. Ela está
orientada para uma vida boa e bem-aventurada (1,32,2), assim como o
sindérese da razão está orientada para o conhecimento do bem, do ver­
dadeiro e reto. Assim ela é comparável com a centelha que arde em bra­
sa sob a cinza e que só precisa ser reacesa; ou à semente que, profun­
damente enterrada, não deixa de portar em si o germe de nova vida, ou
mesmo à matéria que só aguarda a forma pela qual chega à sua finalida­
de (1,32,1ss.). Não ficasse preservada a sindérese da pessoa humana,
nada mais teria restado de sua natureza original. A passagem Is 1.9: “Se
o Senhor não nos tivesse deixado semente, seriamos como Sodoma” re­
cebe interpretação moral: “Se (o Senhor) não tivesse mantido a sindérese
e os resquícios da natureza, ela se teria perdido totalmente” (1,32,1 Os.). A
sindérese é portanto o ponto no qual fica visível a continuidade entre o
ser humano caído e o criado.

b) Entretanto é difícil demostrar esta continuidade na prática. Na


realidade faltam ao hábito da sindérese os atos correspondentes. Não
chega a haver uma atuação que lhe corresponda. A problemática está na
implementação prática da intuição cognitiva. Entre Deus e pessoa huma­
na não há discordância sobre o alvo, mas sobre o caminho para este al­
vo. “todo o conflito gira em torno dos meios para o fim .” (1,30,31ss;

53 Quanto a este sermão, veja DIECKHOFF, loc. c it, p. 41ss.; HERING, loc. c it, p. 75ss.;
KÖSTLIN, loc. c it, v. 1, 51 ss. e F. KROPATSCHECK, Die natürlichen Kräfte des Menschen
in Luthers vorreformatorischer Theologie, 1898, p. 34ss.

49
XXXIi,39s.) A vontade original para o bem, embutida no ser humano, não
chega a se efetivar; a “sabedoria da carne” está a impedi-lo (l,32,36ss.).
Tanto assim que é preciso distinguir rigorosamente entre a sindérese da
vontade e a vontade em si, bem como entre a sindérese da razão e a ra­
zão em si. Entre a sindérese da vontade e a vontade de Deus existe a
mesma conformidade como entre a sindérese da razão e a sabedoria de
Deus; em contrapartida há um contraste radical entre a vontade da pes­
soa humana como tal e a vontade de Deus, entre a razão humana e a
sabedoria divina Embora vontade e razão do ser humano, por causa da
sindérese, sejam “tírg'ãosD para a compreensão das “coisas invisíveis e
ocultas” de Deus, na realidade elas se mostram imprestáveis para tal, in­
clusive oferecendo resistência. Isto se refere à razão e à vontade como
um todo; não é assim que nestas restariam partes que fossem exceção à
regra. Sindérese e vontade, portanto, não estão uma para a outra como
vontade superior e inferior, e sim à sindérese opõe-se a “vontade toda”
respectivamente a razão toda” (1,36,11 ss.).

c) Assim sendo, a sindérese evidencia-se infrutífera na prática. A


“inclinação para o bem" está dada com ela, mas não chega a realizar-se.
Mas com isto se torna questionável o caráter de realidade da sindérese.
Pode-se compará-la com a “coisa em si” entendida em sentido fenome-
nológico. Só que aqui o fenômeno contradiz intrinsecamente à hiposta-
siada coisa em si. Então a sindérese acaba reduzindo-se a mero postula­
do. Esta concepção já é reforçada pelas passagens acima indicadas, nas
quais a sindérese é comparada com a semente, com a acendalha e a
matéria. Pois daí Lutero tira a seguinte conseqüência: "Portanto a nature­
za é ressuscitável." (1,32,14.) A graça encontra um ponto de conexão no
ser humano. Tal ponto de conexão é considerado necessário por Lutero.
Ele usa a figura do enfermo. Embora o enfermo não esteja são, ele pos­
sui a “sindérese da saúde". As forças da natureza não estão totalm ente
mortificadas nele, elas estão presentes e em princípio querem ativar-se,
só que no momento não são capazes disso. Mas caso essa sindérese da
saúde não mais estivesse presente, não haveria mais perspectiva de res­
tabelecimento (l,37,3ss.). Esta comparação mostra que Lutero considera
necessária uma “semente da natureza a ser ressuscitada e restaurada”,
para que a graça de Deus possa efetuar sua obra na pessoa humana
Nisto é que está o significado positivo da sindérese para Lutero. Usando
o caminho alternativo da força vivificadora da graça de Deus, ela volta a
vigorar na vontade e na razão do ser humano. Uma coisa condiciona a
outra: a sindérese é condição para a efetividade da graça, e a graça é
condição para a efetividade da sindérese. A efetividade de ambas, por

50
sua vez, destina-se a uma efetividade adequada de vontade e razão. Fe­
cha-se assim o círculo (1,36,37ss.).

d) A sindérese é condição para a efetividade da graça, mas tam­


bém pode constituir empecilho para a efetividade da graça. As considera­
ções até aqui feitas voltam-se contra si mesmas. A sindérese vira des­
graça para o ser humano quando este se atribui algum crédito em virtude
dela. Se a pessoa humana quiser saltar fora em algum ponto do círculo
sindérese-graça-boa vontade, então ele perde as três. Não adianta usar a
sindérese contra a graça. Isto é o que fazem aqueles que se fiam na sin­
dérese (1,32,14ss.). Quem possui a sindérese da saúde, nem por isso já
estará são (i,37,7ss.). No momento em que a pessoa se fia na sindérese,
ela veda o acesso à graça. Em formulação hiperbólica: somente podemos
contar com a realidade da sindérese, quando não contamos com ela.54
Com isto ela perde virtualmente todo significado prático.
Lutero, porém, vai mais longe. A sindérese pode acabar em perdi­
ção para o ser humano não só pelo fato de este depositar nela a sua con­
fiança, isto é em sua própria qualidade, em vez de depositá-la na graça,
mas Lutero também tem reservas contra a sindérese em si. É que ele
identifica “boa vontade” com “vontade de salvação" (l,32,29ss.). Por cau­
sa da sindérese o ser humano deseja ser salvo, ele execra a condenação.
Aí é que está o tormento propriamente dito do inferno: no fato de o ser
humano não se livrar também ali de sua sindérese55, a qual anseia por

54 Isso lembra a posição de Lutero frente à indulgência; cf. tese 4 9 ,1, 253,34s.
55 Este pensamento Lutero também o pôde encontrar em Tauler (edição VETTER, p. 350, 28s.).
Tauler o expõe no sermão “beati oculi” que Lutero leu cornprovadamente. (Veja
IX,103,31ss.) As notas marginais de Lutero a Tauler datam de 1516, a WA data o sermão ci­
tado para 1514. A evidente semelhança com a passagem de Tauler não exige uma redata-
ção. A idéia, uma vez expressa, não tem que necessariamente ter chegado a Lutero pela via
direta da influência literária
Quando, porém, HERING, foc. ciL, p. 6 7 a , se opõe â suposição de uma relação com idéias
da mística no que diz respeito ao termo “ sindérese" em Lutero, sua demonstração rui por
terra, uma vez com sua opinião contestada pela pesquisa mais recente de que mística e es­
colástica constituíssem contraposições rigorosaa A “ centelhazinha" mística e a sindérese es­
colástica têm sua origem no mesmo conceito. Cf. SIEDEL, Die Mystik Taulers, 1911, p. 61,
que oferece citações de Tomás, nas quais sindérese e centelha são equiparadas, e M.
GRABMANN, Thomas von Aquin, 1926, p. 134. Lutero traduz a "Lutere blosse substancie
der selen" (a pura e mera substância da alma) de Tauler (Vetter, p. 21,11) com “ mente ou
ápice da mente, ou seja, sindérese", com referência expressa à Mística theologia de Gerson
(IX,99,40).
Por outra, Hering, a meu ver, interpreta erradamente a frase WA l,32,4s., quando quer en­
tender a sindérese como parte da natureza corrupta. Muito antes a ênfase está em “ descen­
dente", e “ natureza" não descreve a natureza corrupta, mas a natureza original, como mostra
claramente a justaposição de "d a natureza a ser restaurada". E finalmente o termo (escolásti­
co) aqui usado combina muito bem com a "centelhazinha". Portanto, em nenhuma hipõtese

51
salvação e na realidade está entregue à condenação e ao tormento56.
Mas o que há com esse anseio da pessoa humana pela salvação, dado
com a sindérese? Será que realmente se pode aceitá-lo irrestritamente
como suprema aptidão na pessoa humana? Neste ponto Lutero faz uma
descoberta que desfere o golpe mortal a todo o sistema católico.57
Nosso anseio humano por salvação pode estar em conflito com a
vontade de Deus. Nós nos esquivamos do castigo e buscamos tranqüili-
dade e salvação, entretanto a vontade de Deus para nós talvez seja cas­
tigo e sofrimento. Lutero aqui ainda não avança para sua formulação pos­
terior, de que salvação é querer a vontade de Deus, mas fica bem daro o
rompimento com a concepção católica vulgar de salvação. Entendida as­
sim, nossa sindérese serve a nossa condenação. Justamente na vontade
que Deus também tem para nós, isto é, na vontade de salvação, é que
consiste então o nosso castigo, porque não compreendemos que salva­
ção não é cumprimento dos nossos desejos, e sim unificação da nossa
vontade com a vontade de Deus, a qual também encerra contente aceita­
ção de castigo e sofrimento (l,32,28ss.).
Descrevemos com isto o pensamento de Lutero a respeito da sin­
dérese tal qual se apresenta nesse sermão. Vimos que Lutero tentou
manter a doutrina da sindérese. Ela afinal também corresponde às idéias
de Agostinho. A conversão de Agostinho, como ele a descreve em suas
Confissões era, na época, modelo exemplar de confissão para Lutero.58
Portanto é natural que Lutero se ateve à doutrina da sindérese não só por
fidelidade eclesial exterior, mas também por sua relação interior com e la

pode tratar-se do lato de que Lutero abandonasse o termo escolástico "sindérese" sob a in­
fluência da mística; muito antes, este passo de Lutero significa rejeição de um conceito co­
mum à mística e à escolástica. Sobre as supostas razões por que Lutero critica o aproveita­
mento pelagiano da sindérese sé na escolástica e não também na mística, veja BRAUN, loc.
d L , p. 300.
56 “ Por conseguinte, a natureza é ressusdtável quando náo se lhe opõe nenhum óbice nem se
resiste à graça, o que fazem os fmpios, confiados em sua sindérese e que por causa de sua
vontade e sabedoria própria náo querem ser renovados, mas consideram-se a si mesmos
sadios. Por isso esta parte da vontade está presente de forma tão radical que ainda nos con­
denados é a única causa de quase todo o inferno, porque o náo querem, e com inestimável
violência querem uma salvação contrária. Pois assim diz Santo Agostinho: A dor é a dissen-
çáo da alma naquilo que acontece aos que não querem, por outro lado, alegria e gozo é o
consenso da alma naquilo que acontece aos de boa vontade. Por isso os fmpios procuram
etemamente fugir da condenação e se afastam dela, e assim mesmo comem a seu encontro
constantemente." (1,32,14ss.)
57 Evidentemente topamos na mística com a exigência da resignação até ao inferno. Cf.
TAULER (Vetter, p. 108,16), STAUPITZ (Knaake, p. 81), Theologia deutsch, cap. 11 (Uhl, p.
16). Sobre a diferença que assim mesmo existe entre Lutero e a mística, veja nosso capitulo
"Teologia da cruz e mística” .
58 FreqOentes citações nos Dictata super Psalterium extraídos do 89 livro das Confissões, que
narra a conversão de Agostinho.

52
Não obstante, paralelamente também ja brotaram as intuições reformado­
ras, o reconhecimento da corrupção radical da natureza humana e da efe­
tividade exclusiva da graça. Uma vez implantado este reconhecimento, a
doutrina da sindérese fica em maus lençóis. Vemos aqui, portanto, um
conflito entre duas idéias não conciliadas. Lutero por um lado acentua a
realidade e o valor da sindérese, mas por outro ele a torna inefetiva na
prática e inclusive põe a descoberto a subreptícia motivação do egoísmo,
latente nessa indestrutível inclinação para o bem. Isto no fundo elimina a
doutrina inteira. Mas Lutero ainda hesita em tirar essa conseqüência. Daí
se explicam as contradições. No ponto de partida Lutero não quer aban­
donar a doutrina, mas ao desdobrar o assunto, ele anula o ponto de parti­
da. Por isso mais tarde também nada mais ouvimos de Lutero a respeito
dessa doutrina Mas como resultado desta pesquisa já podemos consta­
tar o seguinte:
Para Lutero a sindérese não pode ter a significação de um órgão
divino no ser humano. É inconcebível que algo semelhante se enquadre
numa teologia da cruz. O “reduzido a nada" é levado a sério, mais ainda
que na mística. Isto porque o místico, uma vez tomado um nada, se depa­
ra com algo sumamente positivo em seu íntimo, ou seja, com a “centelha
da alma”. Neste sentido a teologia da cruz não conhece nenhum "órgão”
para o divino. Também para ela o ser humano naturalmente não é ne­
nhum cadáver totalmente indiferente em relação àquilo que Deus nele
quer operar. Também segundo ela o ser humano realmente é arrebatado
pela graça, também segundo ela existe experiência religiosa (veja abai­
xo), e Lutero jam ais cogitaria negar o “fizeste-nos para ti”. Portanto tam ­
bém a teologia da cruz admite duas coisas: 19 - o ser humano é predis­
posto, ou melhor, criado para a comunhão com Deus; e 2^ - ela naiural-
mente não quer contestar que também o conhecimento de Deus e a fé
têm um lado psicológico. Nada que afete nosso íntimo pode furtar-se à
intermediação psicológica. Entretanto, mais importante é para a teologia
da cruz enfatizar que essa "predisposição" nunca é algo dado, algo que a
pessoa simplesmente poderia incluir em sua conta em relação a Deus.
Ela não só é dádiva mas também acusação. Ela não é a rocha sobre a
qual se pudesse construir a nossa casa. Trata-se antes reafmente de “ser
destruído", de demolição radical e total reconstrução dos fundamentos.
Por ter obscurecido este fato, a doutrina da sindérese não tem cabimento
na teologia da cruz. A divisa realmente precisa ser “meia-volta”, e não
"voltar para dentro de si”, “além", e não "para dentro". E para chegar logo
ao segundo ponto (veja ainda abaixo capítulo II, ponto 4): naturalmente
também a meia-volta tem intermediação psicológica, mas nisto o psico­
lógico não desempenha mais que uma função técnica. Uma vez que a

53
doutrina da sindérese em últim a análise acaba proclamando o “caminho
direto”, ela é rejeitada pela teologia da cruz.59

2. Fé e intelecto
Na teologia incipiente de Lutero acha-se em relação particularmen­
te estreita com o conceito da fé o conceito do intelecto. Isto nos faz per­
guntar, em segundo lugar, se a fé, no final das contas, não pode ser defi­
nida realmente como uma função posta na consciência humana. Que
significa o intelecto? Será ele o órgão desejado, com o qual o ser huma­
no poderia apreender o divino? Como fonte para esta pesquisa entram
em consideração principalmente os Dictata super Psalterium de
1513-1516 e a preleção sobre a Epístola aos Romanos, de 1515-16.
Esta questão nos conduz de imediato para um complexo mais
amplo. O que há com o “neoplatonismo de Lutero”? Como se sabe, Hun-
zinger60 levantou este problema. Segundo ele, a teologia de Lutero nos
Dictata somente pode ser entendida com base numa doutrina ontológica
neoplatônica. Enunciados que inicialmente se quereria tomar ingenua­
mente em sentido religioso moral, na verdade teriam sentido metafísico.
Historicamente esse neoplatonismo derivaria diretamente de Agostinho.
A influência de Agostinho sobre Lutero naquele período é fato confirmado
(cf. já os comentários marginais sobre os opuscula de Agostinho em WA
IX). Acontece que em toda a sua vida Agostinho não eliminou o fermento
neoplatônico.
A idéia fundamental que Lutero adotou do neoplatonismo agostia-
niano é a distinção entre dois mundos. De um lado está o mundo das
“coisas invisíveis, espirituais, compreensíveis, interiores”, do outro as
“coisas visíveis, corpóreas, sensíveis, exteriores". Os dois mundos se
acham em rigorosa contraposição recíproca. Esta, entretanto não é en­
tendida em sentido dualista ou emanatista, mas em termos criacionais. A
manutenção da idéia da criação é a estreita linha que separa essa teoria
dos dois mundos do neoplatonismo puro. O mundo das “coisas invisíveis”
se caracteriza por sua generalidade, simplicidade, indivisibilidade, imuta­
bilidade, ao passo que o das “coisas visíveis”, por sua individualidade,
multiplicidade, divisão e mutabilidade. Já esta comparação dá a entender
que Deus se acha do lado das “coisas invisíveis”, embora por outro lado

59 Cf. ainda LVI,275,19ss.; 355,28ss.; Il,184,12ss.; I,356,5ss.; V ,119,12.


60 HUNZINGER, "Luthers Neuplatonismus und die Psalmenvorlesung von 1513 bis 1516” , in:
Lutherstudien, 1. Heft, Leipzig, 1906. Mas cf. quanto a isso, do mesmo autor: “ Luther und die
Deutsche Mystik", in N. K. Z. 19, 1908, p. 972ss.; sobre os Dictata super Psalterium em ge­
ral, cf. Heinrich BOEHMER, Luthers erste Vorlesung, Leipzig, 1924.

54
ele também se lhes depare como seu Senhor. Essa ambiguidade se ex­
plica pelo fato de não ser abandonada a idéia cristã da criação, mas tam­
bém, por outro lado, ser mantido o conceito filosófico de Deus como ser
puro por excelência: “Tu, porém, és o mesmo, sempre imutável, não pas­
sas, mas simplesmente és.” (IV,146,8.)
O ser humano - assim chegamos ao nosso tema - encontra-se
entre esses dois mundos. A rigor ele não pertence a nenhum dos dois por
inteiro, mas por outro lado participa de ambos. Nele se dá o encontro de
espírito e carne, alma e corpo. Com sua natureza superior ele faz parte
do mundo das coisas invisíveis, com sua natureza inferior, das coisas vi­
síveis. De sua natureza inferior não faz parte apenas o organismo corpó­
reo, mas também toda a área das aptidões anímicas inferiores, ou seja
também a atividade cognitiva na medida em que ela se baseia na sensa­
ção. Com sua natureza inferior o ser humano está orientado para as coi­
sas visíveis; na medida em que seu impulso cognitivo age apenas nas
coisas visíveis, ele não pertence à natureza superior do ser humano. Co­
nhecimento do supra-sensorial, das coisas invisíveis, somente é atributo
do ser humano na medida em que ele é espírito.
Deste complexo faz parte o conceito do “intelecto”. Intelecto e von­
tade, aos quais ainda se acrescenta a memória, constituem as duas apti­
dões anímicas superiores. Graças ao intelecto o ser humano possui co­
nhecimento das coisas invisíveis. No intelecto então se localiza também
o conhecimento de Deus.61 Teríamos diante de nós a concepção de que
a pessoa humana, baseada em forças naturais, pode conhecer a Deus; is­
to porque o intelecto está dado ao ser humano com sua natureza superior
desde a criação. Só que aqui precisamos ter cautela. É verdade que o ser
humano por natureza está equipado com o intelecto, mas toda a capaci­
dade anímica superior do mesmo está enfraquecida em alto grau pelo
pecado original. O pecado está em que, com sua natureza superior, o ser
humano afastou-se das "coisas invisíveis" para as “coisas visíveis”. Cor­
rompeu-se assim a capacidade que o intelecto tem de conhecer coisas
transensoriais. Ela só pode ser restaurada pela graça. Com isto Lutero
rompe uma segunda vez e num ponto decisivo o esquema neoplatônico.
“fntelecto das coisas invisíveis" somente é possível onde houver fé. A fé
entretanto, aponta para a graça. Na medida em que o intelecto está liga­
do à fé, ele se desloca da esfera puramente ontológica para uma esfera
religiosa. Por isso Lutero também distingue rigorosamente entre fé e

61 Também Gerson denomina a capacidade cognitiva superior de “ inteligência" em diferencia­


ção à “ razão” e “ sensibilidade". Veja H. HERMELINK, Die theologische Fakultät in Tübingen
vor der Reformation, 1477 bis 1534, Tübingen, 1906, p. 125, n. 1.

55
conhecimento filosófico, colocando-a inclusive em oposição a toda e
qualquer cognição natural.62 O intelecto chega a ser uma função teológi­
ca. Somente quem tem o espírito de Cristo chega a conhecer as “coisas
invisíveis". Teologia crístocêntrica e idéias ontológicas gerais se mesclam
de maneira curiosa. "Assim sendo, portanto, entender a respeito de Cristo
é ter conhecimento das coisas invisíveis nele, as quais não há em ne­
nhum outro ser humano.” (Ill,230,25ss.) A cognição das “coisas invisíveis”
depende da cognição da pessoa de Cristo. A cognição dos "universais”
resplandece neste ponto contingente da história. “ Portanto o intelecto
vem do Senhor exclusivamente, conforme ele diz: ‘Serão todos ensinados
por Deus’ . Por isso não é nem dos filósofos nem natural esse intelecto
através do qual especulamos sobre as coisas invisíveis, e sim teológico e
gratuito, pelo qual contemplamos pela fé as coisas não aparentes.”
(IV,324,1ss.) Embora a filosofia também tenha a ver com as "coisas invi­
síveis”, ela somente o faz “especulando”, não “contemplando”. Aqui é
preciso considerar que Lutero - também em sua preleção sobre os Sal­
mos (contra Hunzinger!) - é occamista, em termos filosóficos. Cognição
puramente abstrata, separada da percepção, não existe. Todo "pensa­
mento” precisa partir da percepção. Entretanto a percepção sempre tem a
ver com o fenômeno individual concreto. Se a filosofia, não obstante,
chega a abstrações, isto somente lhe é possível através de inferências
deduzidas das percepções, portanto não pela via direta como na antiga
filosofia ontológica de Agostinho e Anselmo, através de um “cheirar” ou
“tocar” .63 “A filosofia sempre fala de coisas visíveis e aparentes, ou ao
menos de coisas deduzidas das aparências, ao passo que a fé não é de
aparências, nem é deduzida de aparências: na verdade ela é do céu, uma
vez que das aparências sempre se deduz antes o contrário da fé, como é
evidente." (Ill,508, i ss.) A filosogia chega a conhecer as coisas invisíveis
apenas por inferências, ao passo que a teologia vê o invisível. É isto o
que quer dizer a distinção entre "especular” e “contemplar”.
Vemos, portanto, que o intelecto e fé estão ligados. Qual é mais
precisamente a relação entre essas duas grandezas?

62 “ Este processo de compreensão, porém, não acontece de acordo com a sabedoria humana,
mas de acordo com o espfrito e a mente de Cristo, da qual trata, de forma bela, o apóstolo em
1 Corlhtios 2, de acordo com o que somente as pessoas espirituais e crentes tém tal compre­
ensão. Em resumo, é o seguinte: entender nada mais do que as coisas celestes, eternas e
espirituais e as invisíveis, o que acontece somente pela fé, a saber, aquelas coisas que o
olho não viu, nem o ouvido ouviu, nem entraram no coração do homem, as quais nenhum fi­
lósofo e nenhum humano, nenhum príncipe deste século conheceu. Pois esta é a sabedoria
abscôndita no mistério e oculta na velação da fé.” (Ill,l71,32ss.) A “ filosofia” é o occamismo.
63 Na verdade, também Lutero pode falar em tais termos (IV,268,18).

56
a) Já vimos que somente a fé capacitará o intelecto para a sua
atuação propriamente dita como “intelecto das coisas invisíveis”. É ver­
dade que o conceito de intelecto oscila um pouco; inicialmente ele é sim­
plesmente uma aptidão inata da natureza superior da pessoa humana,
sendo porém como tal enfraquecido pelo pecado até a incapacidade; as­
sociado à fé, entretanto, ele chega a ser uma aptidão religiosa, efetivado
somente pela graça. Sem fé não há “intelecto das coisas invisíveis”. Por
isso Lutero professa enfaticamente o princípio de que “a fé precede o in­
telecto”. “O conhecimento não ocorre a não ser a partir da fé pré-existen-
te.” (IV.289,15) Nisto o ouvir tem preferência em relação ao ver (IV,95,1s.)
A fé como ouvir precede o conhecer como ver.64 Nisto Lutero, entretanto,
não pensa no ouvir da “palavra exterior”, mas no ouvir da “palavra inte­
rior'’ (IV,10,28ss.). O caminho para “o intelecto das coisas invisíveis" é,
por isso, o voltar-se para o próprio íntimo (IV,11,1). Não cabe a nós, no
presente trabalho, analisar as dificuldades em que se rrçjte Lutero ao
manter, apesar dessa acepção de palavra interior, a ligação entre palavra
exterior e interior. Para nós é suficiente constatar que a aptidão do “inte­
lecto das coisas invisíveis” é posta em dependência da fé. Esta é uma
afirmação dara em meio ao nebuloso emaranhado de linhas disparatadas
que, no mais, se encontram nos Dictata super Psalterium. A fé é condi­
ção prévia da cognição.

b) Ela é ao mesmo tempo meio de cognição. A finalidade da fé é


cognição (111,172,19); pela fé chega-se ao “entender” . Como caminho para
o intelecto, entretanto, a fé tanto é condição prévia quanto meio para o
fim. A formulação “através da fé" ocorre com frequência.65 Também a
passagem IV,94,33 mostra muito bem como a fé é condição prévia e
meio para a cognição.

c) O lado intelecutal da fé é muito enfatizado, portanto. Por isso


não nos surpreende que a fé, embora em seu aspecto subjetivo, psicoló­
gico, esteja fundamentada na vontade (veja Hunzinger op. cit. p. 62), seja
finalmente identificada com a cognição: fé - intelecto . Se, por um lado, a
formulação “intelecto da fé" (111,176,3; IV,149,33; 290,21) designa o caráter
de fé inerente ao intelecto, inversamente é expressamente confirmado o
caráter cognitivo da fé, pela frase: "F é ... não é uma cognição sensorial
nem tampouco oriunda de (percepções) sensoriais, e sim uma cognição

64 Ouvir é a capacidade voluntatlva da alma. Assim Lutero pode afirmar inclusive que, de início,
a fé se volta contra o intelecto (IV,356,l7ss.).
65 Cf. 111,173,11; 176,1,12; 204,36; 229,1; 230,22; 321,22; fV.109.3; 300,20; 304,8.

57
intelectual exclusivamente de cima.” (111,474,1485.) “Intelecto” e “fé” mui­
tas vezes são utilizados indistintamente (por exemplo lll,367,34ss.;
IV,81,12ss.). Em diversas passagens encontramos uma identificação en­
tre fé e “intelecto".66
O material da preleção sobre a Epístola aos Romanos, de
1515-16, de que Hunzinger ainda não dispunha, não apresenta nenhuma
novidade importante que vá além do já apresentado. Voltamos a encon­
trar ali a identificação entre intelecto e fé67 (LVI,238,28ss.). Vemos ainda,
que o intelecto é função especificamente religiosa; é dito expressamente
que ele tem a ver com aquilo “que o ser humano não pode saber a partir
de si próprio”. Mas há certo avanço em relação aos Dictata: As “coisas
invisíveis" são definitivas aqui como a “sabedoria encarnada e por isso
oculta” (LVI,237,20ss.). O conceito metafísico das “coisas invisíveis” é,
portanto, identificado com o conceito teológico da "sabedoria encarnada”.
Dá-se aqui o encontro entre mística e teologia da revelação.68 Ocorre o
seguinte paralelo interessante: “A sabedoria encarnada e por isso abs-
côndita não é atingível senão pelo intelecto, assim como Cristo não é
cognoscível senão pela revelação.” (ib.) De um lado isto é mística pura
(aparece inclusive o termo “atingir", específico da antiga escola francisca-
na), de outro, ele se reporta à revelação. É verdade que certa bilateralida-
de (no sentido de Heim) é traço constante na teologia medieval, porém
notável nesta passagem é que aqui a bi lateralidade está explícita e não
precisa primeiro ser reconhecida a muito custo através de pesquisa sis­
temática. Veremos ali como Lutero atribui de repente a esses termos mís­
ticos neoplatônicos, que inicialmente sao de cunho puramente on­
tológico, um sentido rigorosamente teológico, transformando-os assim em
algo totalmente diferente, para abandoná-los apenas mais tarde - fenô­
meno este que ainda observaremos em diversas ocasiões. A condição
prévia para o intelecto é a revelação. Por isso não chegam a “entender"
nem aqueles que se apegam ao mundo dos sentidos exteriores, nem

66 Cf. 111,150,28; 185,35$.; 231,28,400,5s.; IV,276,13. - O fato de Lutero conhecer também o


estar fora de si, o arrebatamento, o êxtase (p. ex., IV,265,30; 273,14ss.), não interessa a
nossa questáo. Pois este êxtase não conduz além da fé (IV,267,16ss.). Não há menção de
um êxtase místico que se eleve acima da fé. Cf. 111,185,35ss. Além disso, cf. Otto SCHEEL,
Die Entwicklung Luthers, p. 171, e E. WOLFF, loc. d l , p. 150s., ru 1
67 Não posso entender como FICKER , p. LXXXII, chega a afirmar que já não existe mais o co­
nhecer no sentido místico.
68 O fato de Lutero não ver nisto nenhum problema, recomenda cautela em relação à tese de
Hunzinger.

58
aqueles que se fiam em sua própria capacidade espiritual.69 É que o in­
telecto é justamente intelecto da fé.70
Face ao material apresentado, insinuam-se com insistência duas
perguntas. Primeiro: o que há com o “neoplatonismo” de Lutero? E esta
pergunta conduz à segunda: será “ intelecto" o desejado “órgão” humano
para percepção do divino? A resposta da primeira pergunta determinará a
direção que tomará a resposta da segunda.

1. O que há com o neoplatonismo de Lutero? Hunzinger tem o


mérito de ter enxergado este problema. Sabe-se, no entanto, que ele pró­
prio não manteve suas teses em toda a sua uni lateralidade. Ao passo
que em seus Lutherstudien ele reduz todo o mundo de idéias dos Dictata
super Psalterium ao denominador comum do neoplatonismo, dois anos
mais tarde71 ele ali distingue, mais cautelosamente, quatro linhas. Em
primeiro lugar neoplatonismo agostiniano, em segundo, doutrina agosti-
niana sobre pecado e graça, em terceiro, semipelagianismos escolásticos,
em quarto, teologia monástica bernardina. De fato, a tese do neoplato­
nismo72 precisa ser rejeitada, por unilateral, apesar de ser válida a colo­
cação do problema. Para manifestar de antemão nossa objeção básica:
Hunzinger não enxerga ao menos não suficientemente, três coisas:

a) que realmente existe parentesco em muitos pontos entre enun­


ciados neoplatônicos e neotestamentários;

b) que também o nominalismo jamais se livrou inteiramente de


elementos ontológicos, os quais Lutero, portanto, adotou juntamente com

69 Cf. LVI,237,23ss.; 239,5ss.; 238,177ss. Por meio desta passagem recebe interpretação au­
têntica a obscura expressão: “ Consideram somente sua própria opinião” de LVI,239,7.
70 Vimos acima que o afeto precede ao intelecto, e o ouvir ao ver. A isso contradizem aparente­
mente certas asserções da preleção sobre Romanos; cf. LVI.238,15ss. Neste caso o compre­
ender é requisito para o procurar, para o afeto, o saber requisito para o querer fazer. A con­
tradição, porém, é apenas aparente. Na verdade, trata-se de duas questões bem distintas: ali
se trata da questão de como surge o compreender, aqui, da questão de como se torna ativo.
Sem dúvida, também aqui não é a opinião de Lutero que o intelecto, que é colocado como si­
nônimo de fé, surge pela via puramente teológica. Evidentemente, porém, este intelecto, sur­
gido pela “ atração do Pai para o filho" (LVI,239,3), estaria tão morto sem a constante movi­
mentação do “ afeto” , do querer e do amor (LVl.239,11) como é morta a fé sem obras
(LVI,238,21ss.). Um conhecimento que pudesse ser fixado exclusivamente pela teoria sequer
mereceria este nome, de acordo com Lutero (LVI,239,10ss.).
71 “ Luther und die deutsche Mystik", in: N. K. Z. 19, 1908,973ss.
72 Também LOOFS, loc. c it, p. 292s. aderiu a ela.

59
o occamismo e que nele foram reforçados pela leitura de Agostinho e
Boaventura;73

c) que na adoção de idéias com que Lutero sentia afinidade, ele


procedeu mais despreocupadamente do que é permitido ao teólogo mo­
derno treinado em história (veja também Schmidt op. cit. p. 211, n. 2).
Assim, por exemplo, a polaridade “carne” e “espírito” é bem neotestamen-
tária. Mas também o conceito das “coisas invisíveis” está radicado no
Novo Testamento. Sabemos que Hb 11.1 continuou sendo a definição
fundamental de fé para Lutero, mesmo numa época para a qual o próprio
Hunzinger não mais haverá de sustentar influência neoplatônica. Embora
se deva atribuir ao neoplatonismo agostiniano o fato de Deus ser descrito
como puro ser, esta noção não deixa de ter valor permanente para além
dos seus limites neoplatônicos, como expressão da inefável majestade
de Deus. Não obstante ainda se pode ficar em dúvida sobre o que é de­
cisivo aqui, a idéia neotestamentária ou sua roupagem m etafísica Afinal,
o próprio Lutero se reporta ao areopagita (111,124,32). Mas já no curso de
nossa pesquisa deparamo-nos com enunciados nos quais tal dúvida não
é mais possível. Vimos que a cognição das “coisas invisíveis” está vin­
culada à cognição de Cristo (lll,230,25ss.; 285,36); afinal é por isso que o
“intelecto das coisas invisíveis” é claramente distinguido de toda cogni­
ção filosófica. "A filosofia infere o mundo invisível, a teologia o contem­
pla.” (Hunzinger, op. cit. p. 47.) Essa constatação também causa dificul­
dade a Hunzinger. isto porque ela exige de fato uma correção de sua te-

73 Disso se vale HEINI, foc. c it, p. 233, contra Hunzinger. Neste ponto ele se identifica com
Hermelink. Segundo HERMELINK, toe. c it, p. 124, deve-se procurar a fonte para o "neopla­
tonismo" de Lutero na teologia occamista, em especial no Collectorium de BieL (cf. a conhe­
cida frase de Melanchton: “ Ele era capaz de citar quase que literalmente de menória a Ga­
briel e ao Cameracense" (sc. Pedro de Ailley - Corp. Ref. VI, p. 159). Hermelink distingue
três conceitos básicos divergentes no occamismo: 1 - o conceito de Deus scotista-indetermi-
nista; 2 - a cosmovisão platônica-agostiniana; 3 - a doutrina da liberdade aristotélica-“ mo-
dema". Estes três elementos sáo unidos pelo concerto de fé (fé como contraposição da expli­
cação racional, dependente de revelação positiva). Por conseguinte Lutero teria adotado a
doutrina de Deus e das idéias agostiniano-platônicas do occamismo. Além disso, a diferen­
ciação occamista-luterana entre mundo das aparências e do verdadeiro ser é algo bem dis­
tinto do que a dotrina platônica das graduações progressivas do ser. Pois entre estes dois
mundos não existe mediação. Somente a fé apreende as coisas invisfveis.
Hermelink ao menos admite que nos Dictata super Psalteríum Lutero segue a terminologia da
literatura mística (Areopagital) e da Bíblia; assim, por exemplo, delimita seu conceito de inte­
lecto expressamente contra o conceito occamista. Cf. quanto a isso o artigo sobre Boaventu­
ra, in RE, 3S ed., v. III, p. 284,38 e 286,35. Com isso Hermelink reconheceu o direito do
questionamento de Hunzinger (que, no entanto, em muitos casos leva a "distorções e exa­
geros", p. 123, n. 2). Na verdade, porém, muito do que Hunzinger considera neoplantônico é
bem occamista. No entanto, é exagero a afirmação de SCHEEL, Die Entwicklung Luthers, p.
172, que "de neoplatonismo não haveria nem vestfgio", opinião por sua vez adotada por
SCHUBERT, Luthers FrOhentwicklung, p. 31.

60
se. "Cabe muito bem duvidar que a contraposição das duas modalidades
de cognição seja perfeitamente compatível com os princípios ontológicos
de Lutero. Enquanto isso, quanto mais clara a divisória que ele traça en­
tre ambas, tanto mais ele se aproxima de uma concepção puramente re­
ligiosa do ‘entender'. Isto, entretanto, não pretende implicar que Lutero
teria chegado à mesma dentro do presente raciocínio." (ib.) Mas Lutero
chegou a tal concepção (lll,376,3ss.). O conceito de “intelecto” tal qual se
apresenta aqui, rompe o quadro metafísico. Chegamos assim à segunda
questão.

2. Será que temos no intelecto o desejado órgão humano para o


divino? Será o intelecto a faculdade do ser humano com a qual ele al­
cança o divino? Teremos nele um precursor da “intuição intelectual” do
idealismo? Será ele uma participação direta no espírito absoluto, o ponto
fixo de união entre o ser de Deus e o da pessoa humana? Em síntese,
pode-se responder o seguinte a essas perguntas:

a) Se Hunzinger tivesse razão irrestrita com sua tese, de fato te­


ríamos que adm itir que naquela época Lutero ainda não estaria defen­
dendo as intuições de sua teologia da cruz. No neoplatonismo a aptidão
anímica superior da pessoa humana é, em si, uma potência divina. Esta­
ria aberto o caminho de uma competência humana para Deus. O conceito
do “intelecto” estaria ligado à teologia da glória.

b) Vimos, porém, que o neoplatonismo foi rompido no ponto cru­


cial. Não é o intelecto em si, mas apenas “o intelecto da fé” que chega à
verdadeira cognição de Deus. Isto, entretanto, pressupõe uma metanóia
no sentido estrito, algo totalmente diferente de mera reflexão retrospecti­
va. Fé remonta à revelação. Com isto entra em cena algo total mente no­
vo, que simplesmente se acha fora do âmbito de possibilidade humana.
O conceito “intelecto da fé” pertence ao complexo da teologia da cruz.
Vemos, portanto, duas coisas: Em primeiro lugar a fé se impõe na
realidade da pessoa. Ela não só é negação da possibilidade humana,
mas é ao mesmo tempo seu çumprimento. Fé leva à cognição. Mas, em
segundo lugar, jamais se deve esquecer o caráter de fé que esse cum­
primento tem. Isso quer dizer: esse cumprimento ocorrido não pode ser
transformado em ponto de partida de um sistema que repousa em si
mesmo. Por mais certo que em todos os enunciados é preciso contar
constantemente com a revelação, cujo correlato é a fé, de modo algum
pode-se “contar” com ela, uma vez que assim ela ficaria privada do seu
caráter transcendente. O intelecto certamente é potência, isto ainda não

61
implica que se tome poder. Pois nâo é o intelecto em si, mas apenas o
intelecto da fé que se comprova como órgão cognitivo da fé.

3. Fé e razão

Os dois conceitos sindérese e intelecto desempenham certo papel


apenas no período inicial de Lutero. Lutero logo reconheceu que eles não
eram sustentáveis no esquema de sua teologia, acabando por abando­
ná-los. O “ exclusivam ente pela fé” não pode ser abalado por eles. Tor­
na-se supérfluo para ele continuar ocupando-se com os mesmos. Entre­
tanto naturalmente não deixa de persistir de alguma forma o problema
por eles colocado. Ele é enfrentado no últim o confronto de Lutero com a
razão. Na pergunta - "Fé e saber?’ - concentra-se mais uma vez tudo
aquilo que tratamos acima. Nesta forma o problema conserva importância
perene, não só para Lutero, mas para a teologia em si. Toda a teologia
medieval gira em tomo da relação de autoridade e razão; esta é que de­
termina seu desenvolvimento histórico. O mesmo problema tem sua con­
tinuidade na escolástica protestante, inclusive induzindo-a a se interessar
pelos antigos métodos escolásticos e a operar amplamente com os
mesmos. Ele é novamente colocado diante da ortodoxia encalhada em
premissas filosóficas antiquadas, pelo racionalismo e idealismo, e empur­
ra uma teologia que somente a muito custo ainda consegue manter o
contato com as correntes filosóficas contemporâneas, em direção a uma
apologética um tanto dúbia, por vezes. E mesmo uma teologia que não
se acha mais apenas na defensiva, a longo prazo não poderá furtar-se
impunemente ao confronto com esta questão.
Neste aspecto Lutero já se acha ao final de longa evolução. A
questão de autoridade e razão fora submetida na Idade Média às mais
sagazes investigações. A contribuição de Lutero para as mesmas recebeu
avaliação diversa. Para formar um parecer, precisamos ter presente a po­
sição filosófica de Lutero. Desde que Denifle apontou para a importância
das premissas medievais de Lutero, a pesquisa protestante trabalhou
muito nesta área. Aqui teremos que nos restringir à apresentação de al­
gumas linhas básicas, para ver então o que poderemos aproveitar para
nosso enfoque específico.
Lutero veio da escola occamista. Por isso sua teologia precisa ser
entendida e avaliada a partir do occamismo. Tentativas mais recentes de
negá-lo revelaram-se, ao que tudo indica, insustentáveis.74 Se Stange
(Theologische Aufsätze n9 8) é da opinião de que as manifestações de

74 STANGE, Theologische Aufsätze Nr. 8 e HUNZINGER, Lutherstudien, cad. I.

62
Lutero sobre os representantes mais conhecidos do nominalismo, princi­
palmente Occam e Biel, seriam "tão preponderantemente formulados em
tom da mais acirrada polêmica, e dificilm ente se poderia cogitar colocá-lo
de alguma maneira em relação positiva com a escola de Occam”, isto é
contrariado pelo fato bem claro de que Lutero recebeu sua formação filo­
sófica da via moderna em Erfurt.75 Além disso a polêmica de Lutero con­
tra o occamismo não visa condenar o occamismo como um todo. O que
ele, a partir de suas intuições obtidas a partir de Agostinho e Paulo, com­
bate no occamismo dominante, é sua doutrina do pecado e da graça. Em
termos de filosofia ele permaneceu a vida interia adepto da via moderna.
Ainda nos anos da mais acirrada luta contra Roma e a doutrina escolásti­
ca, ele está sendo sincero, embora em tom jocoso, ao se reportar à sua
ligação com o partido occamista (VI,195,4; 195,17; 600,11). Conforme
Stange a formação teológica de Lutero se explica a partir da tradição
teológica da ordem agostiniana. A influência decisiva sobre ele promana­
ria de Gregório de Rimini (falecido em 1358). Dele teria aprendido tanto o
nominalismo quanto a doutrina agostiniana do pecado. Quanto a isso há
duas coisas a dizer, em primeiro lugar, também Gregório era adepto de
Occam no campo da filo so fia Lutero teria sido occamista mesmo se a li­
nha de tradição passasse diretamente por Gregório, o qual ele, no mais,
também conhecia ou pôde conhecer nas citações do Comentário de Sen­
tenças de Biel. Em segundo lugar, embora Stange apresente uma série
de passagens nas quais Lutero menciona expressamente Gregório, con­
ferindo-lhe posição privilegiada diante de todos os demais dogmáticos,
essas passagens remontam, quando muito, a 1519. Portanto Lutero cer­
tamente leu Gregório apenas por essa época. Mas ele já chegara, então,
a um ponto tal que Gregório não mais podia exercer influência decisiva
sobre ele.76 Assim sendo, a investigação de Stange nada altera no fato
de que, em termos de escola, Lutero deve ser localizado no occamismo.
Como se configura o problema “razão e fé" no occamismo? Para
entendê-lo, é preciso ter presente a posição do occamismo na história da
filosofia medieval. Comumente se encara da seguinte maneira a evolu­
ção da escolástica: após breve ascensão, ela teve seu apogeu em Tomás
de Aquino, para já com Duns Scotus decair rapidamente, desembocando
no estéril formalismo lógico do occamismo. Este quadro, entretanto, o
qual pesquisadores católicos naturalmente conservarão com boas razões,

75 Cf. a descrição detalhada da estrutura universitária de Erfurt in O. SCHEEL, Luther, v. I, 2,


ed., p. 121-234.
76 Veja BOEHMER, Der junge Luther, p. 136.

63
sem sombra de dúvida carece de uma correção.77 Mesmo que historica­
mente não se pudesse sustentar a evolução esboçada por Heim, confir­
mado está que o occamismo representa um desdobramento consequente
do tomismo tanto quanto do scotismo. Portanto de forma alguma se pode
falar de uma decadência; quando muito pode-se dizer que as dificuldades
latentes no sistem a tom ista ficaram m an ifesta s no occamismo. Os
elementos neoplatônicoagostinianos do tomismo foram eliminados no
occamismo em favor dos elementos aristotéiicos, com exceção de alguns
resquícios insignificantes. O principal avanço em relação ao scotismo é
que no occamismo cai fora a questionável grandeza chamada “forma in­
teligível". Esta coisa intermediária entre o universal e o objeto é elimina­
da por Occam. Somente assim se toma possível uma distinção límpida
entre cognição intuitiva e abstrativa Toda cognição parte da percepção
sensorial; percebida é a coisa individual, a res singularis. Os universais,
que aliás na qualidade de coisas individuais na mente não precisam ter
negados a sua realidade, têm apenas o papel de termos no juízo. O juízo
lógico, ao qual exclusivamente cabe valor científico, pressupõe portanto a
percepção sensorial. Que resulta daí para a cognição de Deus?
Como o universal somente entra em cogitação como parte inte­
grante do juízo, não mais se pode atribuir a Deus, como antes, existência
universal. Em vez de “ente supremo", precisamos falar de Deus como a
mais individual das coisas. Agora falta, porém, a base intuitiva para a
cognição dessa mais individual das coisas. Onde não há cognição intuiti­
va, tampouco é possível cognição abstrativa. A rigor, portanto, uma cog­
nição de Deus ficaria excluída em princípio. Esta consequência, entretan­
to, Occam (bem como Biel) somente tira no que tange à certeza dos
enunciados a respeito de Deus, mantendo, no entanto, em contradição às
suas premissas epistemológicas, uma infraestrutura racional da teologia,
até certo ponto. Apesar dessa infraestrutura, entretanto, os enunciados da
fé a respeito de Deus se tomam extremamente incompreensíveis em
termos de lógica, em consequência das bases epistemológicas. Pois to ­
dos os enunciados a respeito de Deus são combinações de termos, sendo
porém que a coissa suposta nos termos não está dada intuitivamente. E
quanto menos a razão é capaz de conhecer a Deus, tanto maior a neces­
sidade de autoridade. Esta é dada na revelação positiva Já Duns Scotus
muito enfatizara a autoridade da escritura dentro do complexo da cogni­
ção de Deus, ao passo que no caso de Occam já se pode falar até de um

77 Veja HEIM, Gewissheilsprobleme, p. 220ss. Quanto a todo este capítulo, cf., além disso,
Clemens BAEUMKER, Philosophie des Mittelalters, 35 ed., Leipzig-Berlin, 1923.

64
princípio da escritura.78 Embora não teoricamente, para ele a autoridade
da escritura acaba coincidindo na prática, com a da igreja. Ela não se
deixa demonstrar logicamente; a "fé infusa” é a inclinação sobrenatural
de aceitar a revelação. Na prática, porém, essa suposição supralógica da
“fé infusa” passa para um segundo plano em relação à “fé adquirida", que
é o acreditar na autoridade das verdades de fé reveladas na Bíblia. Che­
gamos, portanto, de um lado, à mais radical concentração do caráter su-
pralógico da certeza de fé, quando justamente isto conduz, por outro lado,
à proclamação do crédito vulgar na autoridade. Esta é a solução que o
occamismo conseguiu dar ao problema de autoridade e razão.
Lutero pertence à escola dos occamistas. Também na questão de
razão e fé ele certamente não terá negado esta sua ligação. Pergunta-se,
entretanto, se Lutero teve boa formação filosófica. Heim o contesta. No
entanto há enunciados de Lutero nos quais ele manifesta seu orgulho de
ter recebido formação especificamente occamista.79 Sabemos também
que já como estudante Lutero era temido por sua habilidade no debate. E
mesmo em suas disputas posteriores ele utiliza com muita destreza fór­
mulas de escola. Ele jamais negou a formação que recebeu em Erfurt.
Portanto não tem cabimento considerar Lutero um leigo em termos de fi­
losofia Correto é, no entanto, que o peso maior de seu interesse jamais
esteve na filo so fia Isto já se mostra na famosa carta dirigida a Braun, de
1509 (Br. I,17,42ss.). Assim sendo, mais tarde não lhe resta senão escár­
nio para a burilação intelectual do escolaticismo.808
1
Mas por que Lutero combate a filosofia, por que Aristóteles é para
ele o grande corruptor da cristandade?8’ O que se manifesta nessas acu­
sações não é antiintelectualismo; é, isto sim, o protesto apaixonado con­
tra uma praxe teológica em que o principal virou algo secundário, e o se­
cundário tomou-se o principal. De tanto ocupar-se com a filosofia, a teo­
logia ficou cega para a revelação. A filosofia destituiu a Bíblia. Ela nada
quer saber do “caminho de Deus”; a cruz de Cristo, a grande negação de
toda obra humana, de todo critério próprio, escandaliza-a. Por isso ela si­
lencia a respeito (V.107,5ss.). Por isso Lutero ataca a "cátedra da pesti­
lência” (V.32,6ss.). Ele encara essa luta contra a filosofia, em prol da Bí-

78 Cf. KROPATSCHKECK, Occam und Luther, p. 43ss.


79 Cf. VI,195,17; LVI.371. Além disso, o sermSo de 25/12/1514, l,20ss., especialmente
29,27ss.; veja quanto a isso Hans PREUSS, Die Entwicklung des Schrittprinzips bei Luther
bis zur Leipziger Disputation, p. 17. Contra Heim, cf. SEEBERG, Dogmengeschichte IV, l, p .
241, n . 1.
80 Que em tais casos nSo se esforça muito por uma compreensão afetuosa, isso o mostra
LVI,383,11ss.; XVIII,617ss.
81 Cf. F. NfTZSCH, Luther und Aristoteles; all existe também uma coleção da matéria.

65
blia, como uma missão divina. Para tal ele se presta muito bem como
teólogo de formação filosófica plena. Parece-lhe ter chegado a grande vi­
rada dos tempos: o abandono da filosofia para voltar-se para Cristo, o
crucificado! (LVI,371,17ss.). Ora, isto não significa outra coisa senão o
abandono da teologia da glória para voltar-se para a teologia da cruz!
Pois justamente as características acima enumeradas da teologia da gló­
ria reencontramos aqui como características da filosofia eclesiástica. Ela
seduz a pessoa humana para a ilusão do farisaísmo no pensar e fazer
(“comparecer reto perante Deus”) e lhe ensina a desprezar a cruz de Cris­
to e fugir dela como de algo que ela sente voltada contra si, contra sua
segurança (V.107,5ss.). Como a teologia da glória, essa filosofia tampou­
co se importa com a grande ruptura que perpassa a criação.
Nesse trecho (LVI,371ss., sobre Rm 8.19) Lutero faz interessantes
observações sobre como deveria ser uma "filosofia sacra”, na sua opi­
nião. Paulo lhe parece um filósofo autêntico. A filosofia autêntica seria
uma inversão total da filosofia até ali praticada. Ao passo que a filosofia
habitual se ocupa do ser das coisas, à "filosofia apostólica” isto parece
uma abordagem tola. O verdadeiro ser das coisas nem estaria em sua
existência e condição, mas em sua finalidade. Portanto essa filosofia é
escatológica de fora a fora (LVI,371,1ss.). Isto porque a filosofia não conta
com a “expectativa da criatura”. Bem por isso ela não chega a compreen­
der a verdadeira realidade. No que tange à cognição do mundo, ela é tão
inepta quanto um servente ignorante na manufatura de tendas, que, em­
bora veja cada uma das partes, não reflete como elas são combinadas e
utilizadas (LVI,371,28ss.32ss.). A filosofia não tem ouvidos para os gemi­
dos e suspiros na natureza. Também como haveria? Ela nada sabe de
uma necessidade de redenção. Ela é, de fora a fora, a visão da "pessoa
moral”. Tal como a teologia da glória prefere as obras aos sofrimentos, a
glória à cruz, poder à fraqueza, a sabedoria à tolice, a filosofia prefere in­
vestigar as essências e ações das criaturas, em vez de atentar para seus
suspiros e suas expectativas (LVI,372,22). Nisto ela nem percebe que as
próprias coisas sofrem sob suas essências. Seu orgulho de investigadora
acha-se em estranho contraste com o anseio por redenção que palpita no
mundo criatural (LVI,372,7ss.). Verdadeira metafísica deveria partir do
princípio de que criaturas são criaturas, não devendo absolutizá-las em
seu ser. Elas não repousam em si próprias. Isto passa desapercebido da
filosofia. Ela é cega para a realidade genuína (ib. 18ss.).
Os pensamentos de Lutero ali são particularmente profundos. Ao
que eu saiba, ele não os desenvolveu mais. Pode-se naturalmente consi­
derar diletante toda essa abordagem. A filosofia jamais poderá escapar
da “observação das coisas presentes”. Não obstante deve-se levar a sério

66
os comentários de Lutero. Depende do que se espera da filosofia. Se é
que realmente dela se espera cognição última, não será possível ignorar
totalmente as idéias de Lutero. Elas inclusive nos parecem muito fam ilia­
res e recentes. Afinal de contas a escatologia passou a ocupar lugar cen­
tral na reflexão teológica. E por outro lado ouve-se o desejo cada vez
mais insistente por uma “filosofia sacra”. Os dois extremos da teologia
hodierna aqui se acham sintetizados por Lutero. A escatologia está posta
a serviço da filosofia. Entretanto Lutero não reflete aqui como se poderia
realizar praticamente essa “filosofia sacra”. Ela, afinal, geralmente tende
a tornar-se o grande atípoda da escatologia. E, inversamente, até agora
uma escatologia forte sempre rompeu o enquadramento numa “filosofia
sacra”. Será que existe realmente uma síntese neste ponto? Esta me pa­
rece ser a grande pergunta dirigida à nossa situação religiosa e teológica.
Ao que tudo indica, Lutero ali considera possível tal síntese. Este é
o sentido último de seus comentários sobre Rm 8.19. Mas esta é uma
passagem isolada. Ela ficou neste ponto embrionário. Lutero não o de­
senvolveu. Infelizmente - é o que podemos dizer. Pois ao longo da histó­
ria da teologia justapõe-se à falta de interesse nessas questões da parte
da nossa teologia orientada na Reforma um interesse igualmente vívido
da parte de elementos heterodoxos. Tanto que hoje nos achamos, por um
lado, na curiosa posição de poder relembrar sistemas dignos de respeito
nesta questão, surgidos no passado, nos quais, em compensação, vemos
abandonadas importantes intuições da Reforma; enquanto isso, enxer­
gamos do outro lado muito bem preservadas essas intuições da Reforma,
ao passo que nada encontramos no que tange a essa questão. Apenas a
partir da geração passada é que essa situação talvez tenha mudado.
Como podemos, então, sintetizar a posição de Lutero frente à filo ­
sofia?

a) De formação, Lutero é occamista. Ele também não negou essa


escola mais tarde. Não existe razão contundente para duvidar da solidez
de sua instrução filosófica.

b) Entretanto o interesse de Lutero desde o início não está voltado


para a filosofia, mas para a teologia. Mesmo assim sua polêmica contra a
filosofia não tem o sentido de repúdio absoluto, mas apenas de delim ita­
ção. Da mesma forma deve-se entender sua avaliação muito variada de
Aristóteles.82 A idéia de uma “filosofia sacra" é encontrada apenas como
embrião transitório.

82 Veja NITZSCH, Luther und Aristoteles.

67
Depois de assim termos mostrado, em rápidas linhas, a posição de
Lutero frente à filosofia, podemos voltar-nos à questão que nos deve
ocupar propriamente aqui: Como fica o problema da razão e fé em Lute­
ro, no contexto de sua teologia da cruz? Esta questão se subdivide de
imediato em duas subquestões que precisamos manter bem distintas por
uma questão de clareza:
a) Que é mero legado occamista neste ponto?
b) Acaso teria Lutero algo próprio a dizer, e onde se deveria bus­
car esta eventual contribuição própria?
Hermelink (op. cit. p. 98) enfatizou que “a chave para os sistemas
do occamismo" deveria ser "procurada na rigorosa delimitação entre as
áreas da fé e do conhecimento”. Embora esta afirmação, assim formula­
da, não seja correta, confirmado está que essa divisão rigorosa das áreas
é característica do occamismo. Como ele chega a tal, já desenvolvemos
acim a Agora só precisamos ainda tirar as consequências disso a mostrar
como Lutero é bom occamista neste aspecto. Se é que as duas áreas
devem ser separadas com tamanho rigor, então é claro que a razão nada
manda em questões de fé. A validade da lógica ali deixa de existir. Os
enunciados da fé estão radicados em fundamentos supralógicos. À razão
eles se apresentam anti-racionais. Mas como se baseiam na revelação
positiva e portanto têm que ser verdadeiros, segue-se daí que as regras
lógicas devem ser dispensadas neste ponto. Isto Lutero também sabe.
Ele professa a linha mais rigorosa do occamismo ao apresentar as se­
guintes teses em seu "Debate contra a Teologia Escolástica" de 1517
(l,224ss.). Tese 46: “Em vão se elabora uma lógica da fé, uma suposição
feita sem termo e medida." Tese 47: “Nenhuma forma silogística é válida
para termos divinos." Tese 49: “Se uma forma silogística é válida em
questões divinas, o artigo da Trindade será sabido, e não crido.” Portanto
não se pode abordar os enunciados da fé com a lógica silogística. Essa
tese precisa ser inteiramente vista em ligação com o problema epistemo-
lógico occamista. O que aqui se manifesta não é irracionalismo moderno,
mas sim criticismo filosófico a operar com os métodos rigorosos da lógi­
ca. Com essas teses Lutero não está apresentando novidade alguma; sob
aspecto filosófico, Lutero nada contribui para o problema de razão e fé.
Observando, porém, a maneira como Lutero costuma externar-se a
respeito da razão, obtém-se uma impressão completamente diferente.
A increpação contra a "prostituta razão” não parece guiada por considera­
ções filosóficas. As manifestações de Lutero podem causar a impressão
de que ele nem quer saber nada de filosofia.83 Em contrapartida topamos

83 Às vezes aproxima-se do sacrifício do Intelecto, p. ex., WA VI, 5 1 1 ,18ss.

68
com passagens em que ele desiníbidamente se reporta à razão. Isto ele
faz por exemplo na famosa resposta mocha de Worms. Ou em "Da von­
tade cativa” (XVIII,718,15) ele chega a caracterizar a atuação universal de
Deus como exigência da razão. Como se deve entender essa sua variada
conceituação da razão? Em sua análise da fórmula de Worms84, Preuss
constatou três maneiras de Lutero usar o conceito “razão”:
1. Razão como raciocínio lógico.
2. Razão como fator cultural, a operar em todas as coisas secula­
res, como premissa de todo trabalho cultural humano.
3. Razão em sentido religioso metafísico, como princípio da cos-
movisão.
Neste terceiro sentido a razão é rispidamente repudiada, ela se
equipara à lei. Lei e razão, ambas são obra humana. Acontece que obra
humana quer jactar-se opondo-se à obra Deus. Por isso Lutero combate a
razão na medida em que ela pretende ser princípio da cosmovisão. Como
fator cultural Lutero deixa valer a razão. Lutero não desprezou a cultura
humana Neste contexto, mesmo o "pagão” Aristóteles tem o seu mérito.
No que tange finalmente à razão como raciocínio lógico, Lutero não hesi­
ta em servir-se da mesma. (Confira as abonações em Preuss op. cit. p.
74ss.) Neste sentido é que deve ser entendida a fórmula autoridade e ra­
zão em Lutero. A razão não constitui segundo fundamento ao lado da au­
toridade, mas como raciocínio formal para se chegar a conclusões ela en­
sina o uso correto da autoridade, mostra como construir em cima desse
fundamento. Para tal a razão é muito útil e deve ser tolerada. Preuss ex­
plica a conceituação diversa a partir desses três sentidos diferentes de
razão.
No entanto, Heim (op. cit. p. 239, n. 1) chamou a atenção para o
fato de que, dependendo das circunstâncias, Lutero não deixa valer a ra­
zão nem mesmo como raciocínio lógico.85 Lutero conhece casos em que
as premissas estão corretas, mas a conclusão formalmente correta leva a
um resultado falso. No Debate de 11 de janeiro de 1539, sobre Jo 1.14,
encontramos as seguintes teses (XXXIX,2,p.3-5):
Tese 18: “Este silogismo comum é bom: o Pai é toda a essência
divina. O filho é essência divina. Portanto o Filho é o Pai.”
Tese 19: “ Entretanto as premissas são verdadeiras e a conclusão
é falsa, e aqui o verdadeiro de modo algum concorda com o verdadeiro.”

84 H. PREUSS, Was bedeutet die Formel "Convictus testimoniis scripturarum aut ratione evi­
dente" in Luthers ungehörnter Antwort zu Worms? p. 62ss.
85 Cf. quanto a isso L IHMELS, Die christliche WahrheitsgewissheiL

69
Tese 20: "Realmente não por falha da forma silogística, mas por
força e majestade da matéria, que não pode ser encerrada nas estreituras
da razão ou dos silogismos.”
Tese 21: "De modo que a matéria na verdade não está contra,
mas fora, dentro, acima, abaixo, aquém e além de toda verdade dialéti-
n
ca.
Tese 26: "Nestes e em semelhantes silogismos a forma está óti­
ma, mas ela nada tem a ver com a matéria.”
Tese 27: "Portanto, em artigos de fé deve-se apelar para outra
dialética e filosofia, a qual se chama palavra de Deus e fé."
Tese 28: “Aqui é preciso ficar firm e e considerar os argumentos fi­
losóficos que concluem o contrário um coaxar de sapos.”
Tese 42: "Em artigos de fé deve-se praticar o afeto da fé, não o in­
telecto filosófico.”
O que é posto em dúvida aqui é a validade do raciocínio lógico
nos enunciados de fé, mesmo quando ambas as premissas são verdadei­
ras. Fica, assim, rejeitada a razão também naquele terceiro sentido. Teo­
logia e filosofia são duas áreas isoladas que não mais podem ser mistu­
radas. O que vale numa, não precisa valer na outra, e vice-versa. Fica ex­
pressamente repudiada a sentença da Sorbonne de que “a verdade é a
mesma na filosofia e na teologia” (tese 4).86 Se a filosofia entra em con­
tradição com à teologia, ela deve ser considerada “coaxar de sapos”.
Existe, portanto, uma área na qual o princípio da contradição pode ser
dispensado, na qual as "razões claras” nada significam.
Mas por que Lutero se julga no direito de invalidar as regras da ló­
gica? Ele se reporta à “força e majestade da matéria”. Esta me parece
ser a diferença entre Lutero e os occamistas. Cabe portanto focalizar mui­
to bem este ponto. No resultado, Lutero coincide com o occamismo rigo­
roso, mas a abordagem é diversa nos dois. Os occamistas partem de
Considerações críticas sobre a cognição para chegar à teologia, ao passo
que Lutero, partindo da teologia, critica os meios de cognição. Os occa­
mistas fazem as mais sutis investigações sobre a capacidade cognitiva
do ser humano, chegando, a partir da reflexão filosófica, ao resultado de
que cognição de Deus em sentido estrito não é possível. Lutero, por sua
vez, acha-se totalmente sob a avassaladora impressão da “majestade da
matéria". Isto para ele é o primário, e não a reflexão filosófica. O objeto é
grande demais para se forçá-lo a caber nas estreitas regras da razão hu­
mana. Esta intuição Lutero expressa, então, nas fórmulas da escolástica
occamista. Elas se lhe oferecem, e ele as adota, sem se preocupar com o

86 Cf. o estudo de HEIM, Z u r Geschichte des Satzes von der doppelten Wahrheit

70
fato de elas formarem o ponto final de uma história resultante de interes­
ses bem diferentes dos seus. Isto, finalmente, também deveria ser dito
mais uma vez contra Ritschl no que tange à utilização da fórmula “Deus
abscôndito”.
Hoje em dia existe a praxe de desfazer-se de todos os paradoxos
na teologia de Lutero por se considerá-los elementos oriundos de sua
formação. Contrariando isto, é preciso ressaltar com toda ênfase:

a) Mesmo que Lutero simplesmente tenha recebido da tradição


esses paradoxos, eles não deixam de constituir uma parte muito séria de
sua teologia, a quai não é menos séria do que aquilo que se poderia
chamar nele de “linha da experiência".87

b) Ao invés, precisamos tentar entender esses paradoxos a partir


do âmago da teologia de Lutero. Pois é dali que eles vêm, e não de refle­
xão filosófica Em outras palavras: tentamos compreender essas idéias
de Lutero como expressão de sua teologia da cruz, e com isso julgamos
estar agindo mais corretamente em termos de método, e ao mesmo tem­
po dispor de uma abordagem inicial mais frutífera do que uma pesquisa
de Lutero que, em parte, ainda continua sob a influência de A. Ritschl. Is­
to porque uma pesquisa que acaba reduzindo o mundo de idéias de um
grande personagem em elementos históricos disparatados, não pode ter
um método satisfatório, por mais perspicaz que seja. Embora não reste
dúvida que no problema de razão e fé Lutero está influenciado historica­
mente pelo occamismo, não devemos descansar diante dessa constata­
ção. Acontece que a doutrina da teologia da cruz já se nos comprovou
como princípio heurístico quando da descrição da concepção de Deus de
Lutero. Precisamos tentar ver também o problema de razão e fé no con­
texto dessa teologia.
Ouvimos que, para a teologia da cruz é na cruz de Cristo e do cris­
tão que se mostra o sentido mais profundo da ação de Deus junto ao
mundo. Na cruz se frustra toda concepção fictícia de Deus. “A cruz põe
tudo à prova.” A cruz é o juízo sobre todas as idéias e obras humanas de
escolha própria Face à situação real do ser humano, ela representa a in­
versão radical de todas as suposições humanas. O que é tolo, é sábio, o
que é fraco, forte, o que é vergonha, é glória, o que parece odioso ao ser
humano, é desejável e digno de amor em altíssimo grau. Não será uma
consequência bem natural ouvirmos que a incompreensão é a compreen­

87 Quanto a este termo, cf. Torsten BOHLIN, Luther, Kierkegaard und die dialektische Theolo­
gie.

71
são correta perante Deus (1,171,29s.)? Ao nos afundarmos na incompre­
ensão, estamos seguindo o caminho da cruz. Como se explica esta
equação? O que temos aqui não é antiintelectualismo. Nem se trata aqui
da contraposição intelecto-sentimento ou intelecto-vontade. A razão tem
validade no seu âmbito, entretanto ela é obra humana. Por isso a senten­
ça a seu respeito está pronunciada. Pois a cruz é o juízo de toda glória
humana. Neste aspecto a via crucis significa, por isso, desistir de toda gló­
ria humana para afundar-se na incomprensão. Quem percebeu algo da
sabedoria da cruz, sabe que a razão é “coisa perigosa” (IX,187,5ss.).
Mas será que essa sabedoria da cruz não entra em conflito com a
fé no Deus Criador? Não é assim que Deus criou a razão no ser humano,
que justam ente por ela este se distingue das outras criaturas? Não existe
uma “luz da natureza" que lhe mostre o caminho correto para o conheci­
mento? Sem dúvida - responde Lutero - a “natureza” sabe de Deus. Ela
sabe da existência de um ente divino.88 Mas nem por isso ela já terá real
conhecimento de Deus. A razão brinca de cabra cega com Deus, em sua
cegueira ela tateia para lá e para cá, não encontrando a Deus, do qual
ela apenas sabe que existe (XIX,20,3). Contra a “luz da graça", a “luz da
natureza” é trevas. Não adianta reportar-se simplesmente à ordem cria-
cional de Deus. Pois entre ela e nós está a queda no pecado. Este fato
não se pode deixar fora. E precisamente a “luz da natureza” está intima­
mente ligada a ele. Foi a serpente quem disse: “Sereis como Deus”
(LVI,356,18ss.). O apelo para a “luz da natureza”, portanto, de nada
adianta. Não é a teologia da cruz que leva o conflito para dentro da or­
dem criacional, e sim ele está ali pelo pecado humano. Mas a teologia da
cruz o põe a descoberto. “O teólogo da cruz diz as coisas como elas são.”
Como a lei, tampouco a razão não leva a Deus. Acima já se mostrou a
afinidade interior entre o caminho da especulação e o da justiça pelas
obras. Razão e lei são os dois sustentáculos a suportarem a estrutura da
teologia da glória. Por isso ambas são derrubadas pela teologia da cruz.
Por esta razão “não há no mundo inteiro quem mais lute contra a cruz do
que eles” (os sábios) (1,164,19s.). Isto porque a cruz é o juízo daquilo de
que se orgulham. Em glória própria, nada consegue persistir diante da
cruz (11,613,37ss.). Sabedoria89 e justiça apresentam-se lado a lado como

88 Cf. a opinião sobre o paganismo, WA LVI, 176s.


89 Quanto ao uso léxico de sapientla (sabedoria): Muitas vezes sapientia é sinônimo de natio
(razão). Neste caso, sapientia é simplesmente expressão geral para a faculdade cognitiva
humana. O vocabulário não tem conotação religiosa (WA LVI,212,30ss.). No entanto, ainda
não se extinguiu por completo a lembrança do antigo sapere (saber - cf. LVI,361,5ss.). Dife­
renciação semelhante Lutero também faz entre sapientia (sabedoria) escientia (clôncla), com
base na tradição (LVI,440,10ss.). Em ambos os casos ainda se revela o tom ontológico de
sapientia.

72
aquelas aptidões da pessoa humana que ela acredita isentas do julga­
mento de Deus. Paulo pensa de outra forma; afinal o escopo de sua Epís­
tola aos Romanos é acabar com esta ilusão (LVI,157,1 ss.)- Tal como na
morte de Cristo a kenosis humana alcança o seu ponto mais baixo, cabe
também a nós depor a “forma de Deus” (11,606,1 Oss.; LVI.171,8s.), e não
buscar “sabedoria e piedade fora de Cristo" (11,113,26).90 Isto porque nos­
sa sabedoria própria é “sabedoria da carne”, que resiste à vontade de
Deus (1,32,36). Nossa sabedoria está apaixonada por si própria, é como
um doente que não quer que o médico lhe ajude (LVI.217,88s.;
217,28ss.).
Nossa sabedoria se escandaliza com a palavra de Deus; ela se irri­
ta com a cruz de Cristo. Mas Lutero sabe que é assim mesmo que tem
que ser (V.263,15). No momento em que a proclamação eclesial deixa de
ser uma pedra de tropeço para o povo, isto é sinal de que ela traiu o
evangelho (11,601,25). A cruz de Cristo contesta violentamente o senso
natural (lll.367,36ss.). Pois nela nada se enxerga senão baixeza, vergonha
e ignomínia, caso não se reconheça sob esta cobertura a vontade de
Deus, sim, o próprio Deus (V,108,1ss.). Aliás este é em princípio o jeito
das obras divinas, de a razão por elas ser desenganada e por isso ficar
desesperada (V,615,17ss.; XIX, 195,31 ss.). Assim o evangelho vira pedra
de tropeço, escândalo. No escândalo, porém, é que está o “poder do
evangelho”. O evangelho não só é escandaloso, mas é um escândalo ele
próprio (XXXI,2,500,9ss). Estamos vendo que a incapacidade da razão em
coisas espirituais é fundamentada principalmente com a idéia do escân­
dalo. A razão não quer conformar-se com o caráter paradoxal do agir divi­
no.91
Resumindo, pode-se dizer o seguinte sobre o problema de razão e
fé em Lutero:
1. A formação occamista de Lutero de saída já lhe sugeriu a sepa­
ração rigorosa entre fé e saber, fé e razão.

90 Cf. além disso 1,32,36; 34,4ss.; 36,37ss.; 138,13ss.; XXXI,2,412,27; LVI,217,8ss.,28ss. No


Sermo de própria sapientia et voluntate a sabedoria da carne é definida como "sensualidade”
(l,34,1ss.).Com isso não se quer transferir a vitória do pecado (neoplatonicamente) para a
sensualidade, em contraposição ao intelecto. Isso o mostra a explicação específica: " . . . isso
é, quando a razão sabe e dita o que lhe parece correto e bom." Também a razão visa ao ver,
e neste sentido faz parte da sensualidade que, portanto, não deve ser entendida no sentido
sexual.
91 Em vista do irrevogável fato da morte, que para Lutero era uma palavra de Deus, a razão se
lança ou no sentido do desprezo ou no caminho da blasfêmia (XL,3,537,18). Ou então arre­
mete com sua pergunta Incrédula pelas razóes, e nem vê o quanto é tola sua iniciativa
(Vl,291,8ss.). Quando, porém, inclusive o cristão crente é tentado a perguntar pelo porquê,
ele não deverá admitir tais tentações (WA XXXI,2,361,19ss.).

73
2. As manifestações de Lutero a respeito da razão, entretanto, de
um modo geral não dão a impressão de terem sido motivadas por refle­
xões filosóficas.
3. Na realidade elas nem são explicáveis o suficiente a partir de
sua formação filosófica. Muito antes elas lhe vêm da impressão da “ma­
jestade da matéria".92 Não é o occamismo de Lutero, e sim sua teologia
da cruz a mola propulsora em sua luta contra a razão.
4. Isto fica confirmado pela importância da idéia do escândalo na
teologia de Lutero. E esta se encontra no centro da teologia da cruz.
5. Ao tratar o problema de razão e fé não podemos dar-nos por
satisfeitos, portanto, com a constatação de uma dependência histórica,
mas precisamos tentar valorizá-lo como preocupação da teologia de Lute­
ro suscitada pelo próprio assunto. Como já foi o caso na doutrina do
Deus oculto, nesta tarefa a teologia da cruz demonstra mais uma vez o
seu valor como princípio heurístico.

4. Fé em oposição923 à experiência

Até aqui delimitamos a fé em relação à sindérese, ao intelecto e à


razão. A fé é algo diferente da consciência moral inata, ela entra em ten­
são com toda a capacidade cognitiva natural. Absolutamente nova, ela
está à parte de tudo que é dado. Ela é precisamente aquilo que o teor do
consciente em si não contém. No sentido de Lutero seria no mínimo pas­
sível de malentendido definir a fé como “unidade de experiência" subjeti­
va".93 Antes é assim que a fé sempre de novo excede a unidade de expe­
riência, por mais que, por outro lado, a crie. Já dissemos que a oposição
entre razão e fé nada tem a ver com antiintelectualismo. Isto se confirma
indiretamente quando tentamos mostrar agora como existe a mesma
oposição também entre fé e sentimento, inclusive entre fé e experiência
como tal.

92 Um paralelo Interessante a Isso oferece a comparação do princfpio escriturfstico de Lutero


com o de Occam. Veja KROPATSCHECK, Occam und Luther. e PREUSS, Die Entwicklung
des Schriftprinzips bei Luther. Para Occam a Escritura tem autoridade formal, independente
de seu conteúdo. O elemento novo em Lutero, para o qual a Escritura também tem autoridade
formal, é a descoberta do conteúdo. Por levar ao extremo a questão teórico-cognitiva, Occam
chega à exigência da autoridade formal da Bíblia, enquanto que para Lutero é novamente a
majestade da matéria na qual, em última análise, se baseia seu "biblicismo” . Nesta diferença
está o motivo por que, não para Lutero, mas para Occam, a autoridade da Escritura congrul
praticamente com a Igreja.
92a N. do T.: “ Gegensatz" significa “ contraste” , "oposição” , "antagonismo” , “ contraposição” ,
termos estes que usaremos conforme o contexto o sugerir, sempre como tradução de "Ge-
gensatz".
93 Veja BRUNSTÃD, Idee der Religion, p. 157.

74
O fato de a experiência pia e o sentimento de beatitude não pode­
rem ser transformados em critério da fé já fica demostrado ao se encarar
os sinais exteriores do surgimento da fé. Pode-se falar de fé numa pes­
soa, quando ela renunciou a tudo que ela possui como valor próprio,
quando ela abandonou tudo isto perante a face de Deus. Quando se quer
falar de uma postura da fé, ela só pode consistir no fato de a pessoa re­
conhecer o descabimento de sua postura perante Deus, por mais irrepre­
ensível que pareça aos olhos dos outros e diante de sua própria cons­
ciência. O primeiro passo dado pela fé, o qual, entretanto, não pode ser
dado de uma vez por todas em caráter fundamental, mas sempre precisa
ser dado de novo, é por isso a “renúncia de nós mesmos”, a eliminação
radical de toda glória própria (lll,282,29ss.; XLIII,209,23s.). O "transe” pre­
cisa “abalar” (1,160,12), para que a pessoa experimente em si própria a
ajuda e a mão salvadora de Deus. Fé significa voltar-se para a morte.
“Cristo diz em Jo 3.7: ‘Importa-vos nascer de novo’. Para nascer de novo
é preciso, portanto, primeiro morrer e ser exaltado com o Filho do ho­
mem. Morrer, digo eu, é: sentir presente a morte.” (I,363,35ss.) Em sua
pregação de epifania de 1517 Lutero apresenta a total renúncia de si pró­
prio como sentido tropológico do sacrifício da m irra Precisamos tomar-
nos nada, ao ponto em que antes da criação nada éramos (l,123,38ss.).
Esta é a “via curta” de Lutero, é o caminho da cruz (ib.). Não resta outra
saída senão viver “em desnuda confiança em sua misericórdia” (sc. de
Deus, 1,357,3). Se quiséssemos reportar-nos a quaisquer valores próprios,
estaríamos empreendendo a vã tentativa de nos anteciparmos a Deus
(VI,375,31ss.). Mas nada devemos saber nem ter, senão exclusivamente
a Deus, e “mesmo este de nenhuma outra forma senão na fé” (XVIII,
484,16ss.). O que haveríamos de ter em nós mesmos, de que pudésse­
mos orgulhar-nos? “Não há em nós aspecto nem beleza alguma, mas
nossa vida está oculta em Deus (isto é, vivemos em desnuda confiança
em sua misericórdia), tendo em nós a resposta do pecado, da tolice, da
morte e do inferno.” (I,357,3s.)94 Isto tem que ser assim. Inferir diretamen­
te de nossas qualidades que elas agradariam a Deus, não seria fé. A fé
precisa passar pela negação. Pois em questões de fé toda posição está
oculta sob a negação. Numa linguagem no mínimo influenciada pela mís­
tica, Lutero expressa essa idéia básica de sua teologia da cruz numa
passagem de sua preleção sobre Romanos (LVI,392,28ss.). Claro que tal
renúncia da fé não é fácil (V,446,1ss.); mas quem não se repudia a si
próprio, é repudiado por Deus (XVIII,504,17ss.). Confessar-se culpado é a
primeira coisa que a fé faz. A confissão é “a obra principal da fé”

94 Cf. I,357,9s.; LVI.423,23: X,3,180,1.

75
(LVI,419,21ss.). E confessar significa morrer, significa “renúncia de si
mesmo” (ib.). Por isso a nova vida da fé é uma “vida da cruz, isto é, da
morte, e esta somente em sua forma mais torpe” (V,444,26s.).
A vida nova surge, portanto, na experiência da velha vida. A fé não
tem início na beatífica experiência da proximidade de Deus, e sim no ter­
ror suscitado pelo distanciamento de Deus. Ela se incende, portanto, nu­
ma experiência contrária Mas que forma toma a relação entre fé e expe­
riência, quando a fé então cresce e amadurece? Será que sempre fica
nessa tensão entre fé e experiência?
De fato foi opinião de Lutero até o final de sua vida que fé e expe­
riência muitas vezes se excluem mutuamente. Crer e ver encontram-se
em nítida oposição. Aquilo que se pode ver, de que a pessoa pode con­
vencer-se pelo caminho natural, não pode ser objeto da fé. Por sua natu­
reza, o objeto da fé necessariamente tem que ser oculto, não pode ser
acessível de per si, quer à percepção sensorial, quer ao pensamento ra­
cional, quer a qualquer empatia anímica; caso contrário deixará de ser
objeto da fé. Isto se vê cíaram ente expresso na famosa definição de fé
já citada, em “Da vontade cativa" (XVIII,633,7ss.). A mesma idéia encon­
tra-se em inúmeras variações em Lutero. Particularmente nos primeiros
escritos pode-se encontrá-la quase a cada página. Limitar-nos-emos a al­
gumas das abonações mais importantes. Que a fé se acha em crassa
oposição à percepção sensorial já está ressaltado nos Dictata super Psal-
teríum (cf. 111,474,14ss.). A intenção não é negar que a fé seja atribuível à
aptidão anímica inferior da percepção sensorial, para então atribuí-la a
uma aptidão intelectual superior. Isto já esclarecemos acima. Antes a fé
provém diretamente “do céu”; de modo algum pode ela ser fixada psico­
logicamente. Por esta razão a cognição da fé sempre entra em contradi­
ção com os outros métodos epistemológicos. Ela deles se distingue fun­
damentalmente não só por sua natureza, mas também chega a intuições
que os outros métodos necessariamente consideram absurdos (III,508,
1ss.). Isto se liga ao fato de não serem as coisas visíveis o objeto da fé,
mas as invisíveis. Hb 11.1 é para Lutero a definição clássica da fé. Se­
gundo ela, na fé não temos a ver com uma "coisa”, mas apenas com um
“argumento de coisas não aparentes”, assim como nesta vida, em princí­
pio, nem temos em mãos “a coisa ela mesma” , apenas os “testemunhos
das coisas" (l!l,279,30ss.). O conceito de fé é mantido, portanto, em sen­
tido acentuadamente escatológico. Afinal as coisas invisíveis são aquelas
que ainda não possuímos, que não vemos, das quais não podemos dis­
por, que ainda não são atuais, mas futuras. Assim sendo, à diferença do
saber, a área própria da fé é o futuro, não o presente e o passado. (Veja o
ponto 5!) Fé e esperança quase viram sinônimos. E mais uma vez se

76
mostra a rigorosa oposição entre fé e saber (IV,322,20s).
Explanações semelhantes voltam a aparecer na preleção de Lute-
ro sobre Romanos. A fé se dirige às “coisas ocultas” e é expressamente
distinguida de percepção e experiência. Assim sendo, a fé é o comporta­
mento adequado à vida atual, ao passo que a experiência e a percepção
se justificam apenas na “vida futura”. Pois só a fé não tem a ver com as
“coisas visíveis”, mas com a palavra. A correlação entre fé e palavra, a
qual, aliás, já encontramos nos Dictata, fica bem nítida aqui
(LVI,424,27ss.). Repetidas vezes encontramos a definição de fé. segundo
Hb 11.1, em sua forma mais clara e detalhada em LVI, 409,8ss. Como
“argumento de coisas não aparentes” a fé afasta o crente de tudo que é
visível, e na qualidade de “substância das coisas a serem esperadas" ela
o faz voltar para as “coisas eternas, as quais, entretanto, não são presen­
tes, mas futuras. É isto que faz da fé uma “coisa árdua e difícil”: o fato de
ela colocar-se em oposição a todas as aparências (LVI,48,18ss.), para se
satisfazer exclusivamente com a palavra de Deus (LVI,231,14). Isto a dis­
tingue da “sabedoria do mundo”, que lida com coisas visíveis
(LVI,453,1ss.) bem como da razão (LVI,356,18s.;465,3s;) e da ciência
(LVI,440,11s.). Por isso o saber autêntico está presente ali onde se sabe
que nada se sabe (LVI,414,8ss.). A pessoa deve empenhar-se por Deus
“em pia ignorância e escuridão mental”, deve esperar pela ação de Deus
“sem saber, sentir e pensar" (LVI,413,22). Pois a fé é expectância, não
posse que permita à pessoa descansar, não é opinião na qual pudesse
fincar o pé. “A situação desta vida não é de ter, mas de buscar a Deus.”
(LVl,239,14s.;441,15ss.) A cada passo, portanto, a oposição à objetivação
da fé! Mesmo o amor a Deus é mui rigorosamente distinto de toda expe­
riência. Pois ele se eleva acima de tudo que é visível e abarca o Deus in­
compreensível, inescrutável (LVI,307,4ss.). Hofl (Luther, 2. ed. p. 136, nota
2) já lembrou que a seriedade de tais enunciados não pode ser eliminada
historicamente pelo julgam ento negativo de que aqui se trataria de místi­
ca95, mas que Lutero antes está apresentando material próprio na lingua­
gem da mística. Apenas acreditamos que a maneira como entendemos o
Deus obscôndito ilumina estas e outras passagens semelhantes de ma­
neira algo diferente que ali (loc. c it). Pode-se compreender muito bem a
partir de sua teologia da cruz que também nessas expressões da mística
Lutero apresenta idéias positivas próprias sobre a fé. Isto nada pretende
dizer a respeito da origem histórica de tais formulações (as quais encon­
tramos em grande número nas Operationes in psalmos), mas apenas

95 SCHEEL, Die Entwicklung Luthers, p. 193.

77
S F M iN A R in n n iu r riR m ii
despertar compreensão para seu justificado aparecimento na teologia de
Lutero.96
A mesma separação da fé de toda espécie de percepção, como na
preleção sobre Romanos, encontramos numa prédica do ano de 1516
(Sermo Die S. Andreae 30 de novembro de 1516). Para que ocorra fé, a
premissa é nada ver, nada sentir. O pender da cruz, para Lutero, vira me­
táfora da fé: é uma posição em que fica impossível firm ar o pé no chão
em confiança. Lembramos aqui esta passagem por causa dessa peculiar
imagem; em termos de substância ela não apresenta novidade
(1,102,3958.).
A idéia da fé cega recebe grande ênfase na interpretação dos sal­
mos penitenciais, de 1517. Mas ao passo que os enunciados tratados até
aqui têm caráter mais formal, eles agora recebem uma coloração bem
específica através de sua aplicação concreta. Neste primeiro escrito de
Lutero em língua alemã, no qual ele se dirige não aos eruditos, mas a
seus “sexões indoutos”97, transparece em toda parte o tom poimênico
que logo faria de Lutero um homem do povo. Aí não se fala das “coisas
invisíveis” de um modo geral, às quais a fé te ria que se voltar. Antes a
fé ali se comprova bem praticam ente na confiança na providência divi­
na. Nisto ela tem oportunidade abundante de manifestar-se como "ar­
gumento das coisas não aparentes". Pois é bem verdade que Deus dirige
nossa vida, só que tantas vezes nada percebemos dessa direção. Cabe
então conseguir ter a fé que nada vê, tom ar o caminho escuro em vez de
preferir a luz da razão (1,217ss.). Caso contrário, seremos iguais a cavalos
e mulas (SI 32.11), que só acham o caminho certo quando sentem a mão
do condutor (l,122,20ss.). Abraão é o grande modelo da fé, que abre mão
do seu conhecimento para render-se ao conhecimento de Deus e assim
ser conduzido como um cego no caminho certo (l,171,29ss.). O olho de
Deus sempre está voltado para os piedosos; por isso devem fechar os
olhos (1,172,1 Oss.). O quanto essa fé, do ponto de vista do mundo, é uma
postura irrealizável, a qual a rigor somente pode ser entendida escatolo-
gicamente, vem expressar-se na imponente figura que Lutero nos apre­
senta em alusão ao salmo 102:
Vigiar é prender-se ao bem eterno, buscá-lo e por ele ansiar. Mas nisso
ele está só, e ninguém com ele, pois dormem todos. E ele diz “ no telhado” ,
como se desse a entender: ‘O mundo é uma casa na qual todos dormem e
estão encerrados; somente eu, entretanto, estou fora da casa, sobre o te-

96 Cf. nosso capitulo sobre Teologia da cruz e mística.


97 Veja a carta a Schmerl, WA Br 1,93s.

78
Ihado, ainda não no céu, nem tampouco no mundo; o mundo, tenho-o de­
baixo de mim, e o céu, acima de mim, portanto pairo entre a vida do mundo
e a vida eterna, solitário na fé. (1,199,1 ss.)
Garimpo inexaurível da concepção de fé em Lutero são as Opera-
tiones in psalmos de 1519 até 1521. Se, no parecer de Hirsch {Luthers
Gottesanschauung, p. 4), “o próprio (Lutero) não superou” a expressivida­
de e vividez com que ele fala de Deus nessa interpretação dos salmos,
pode-se dizer também que aqui o vemos pronunciar palavras particular­
mente ousadas a respeito da fé. Afinal, esta interpretação é obra de um
homem que, saindo do silêncio conventual, repentinamente se vê coloca­
do na luta com o mundo e precisa contar com o martírio diariamente.
Aqui se faz teologia em face da morte. Largam-se todos os sustentáculos
que não resistem ao extremo. Por isso não nos surpreende que aqui a fé
é, com particular paixão, colocada em oposição a todo sentir humano e a
toda percepção humana (V,86,33ss.). Deve-se encarar como tentação de
Satã quando a pessoa julga seguro aquilo que ela sente dentro de si. A
fé não pergunta por este sentimento, ela chega a ser "insensibilidade”
(V,623,36ss.). Naturalmente não deixa de ser grande maravilha o fato de
a pessoa que não sente outra coisa senão seu abandono de Deus, não
obstante poder crer no Deus misericordioso. Mas a fé vive neste milagre
(V,270,17ss.). Pois as “palavras da fé lutam contra a aparência”
(V,137,37). Nisto consiste o poder da fé, de se abster da aparência para
voltar-se para Deus e a ele se prender impavidamente (V,53,31ss.). Por
isso encarar um objeto “na presença do objeto” ou “na fé”, são dois mo­
dos de ver mutuamente excludentes (V,36,31; 252,35). Também aqui a
cognição da fé é distinta da filosóficâ.
Este, entretanto, não é o entendimento a respeito do qual conjeturam os
filósofos, e sim a própria fé que na prosperidade e na adversidade conse­
gue ver aquilo que não se vê. Por isso, em vez de mostrar o que deveriam
entender, ele diz em termos absolutos: ‘Entendei’ (Salmo 2.10), isto é, fazei
com que sejais pessoas que entendem, procurai ser crentes. Pois não têm
nome nem aspecto aquelas coisas que a fé entende.. . (Linha 29): pois a fé
reúne a alma com a palavra invisível, inefável, inominável, eterna e impen­
sável de Deus, ao mesmo tempo em que a separa de todas as coisas visí­
veis, e esta é a Cruz e a Páscoa do Senhor, na qual ele prega este enten­
dimento necessário. (V,69,20ss.)
Por conseguinte este “entender" da fé a rigor nem pode ter objeto
que tenha nome, pois objeto exclusivo da fé são as “coisas invisíveis”.
Essa compreensão da fé é "aquela entrada na escuridão na qual é engo­
lido tudo que a percepção, a razão, a mente e o intelecto da pessoa hu­
mana podem compreender” (ib.). Lutero, portanto, mais uma vez se serve

79
aqui da linguagem da m ística “Entrar na escuridão, nas trevas” são ima­
gens tomadas da m ística (Cf. V,45,30; 507,7ss.)
De fato é de se perguntar se Lutero, neste ponto, não deve sim­
plesmente ser enquadrado historicamente como místico e por isso rejei­
tado em substância98 Ouçamos, por exemplo, a seguinte passagem das
Operationes, na qual não só se fala do "entrar na escuridão”, mas tam­
bém aparece a formulação da experiência especificamente mística da
“condução” (ductus) e do “arrebatamento" {raptus).
Finalmente as outras virtudes têm a ver externamente com aspectos
crassos e corporais, ao passo que essas têm a ver com a pura palavra de
Deus, internamente, pela qual a alma não capta, mas é captada, isto é, ela
é despojada de sua túnica e calçados, de todas as coisas e fantasias, e é
arrebatada pela palavra (à qual ela se apega, a qual inclusive a agarra e
conduz maravilhosamente) para a solitude, para o invisível, para o seu cu­
bículo, para a cela do vinho. Mas esta condução, esse arrebatamento, es­
se polimento a atormenta miseravelmente. Pois é um caminho árduo e es­
treito abandonar todas as coisas visíveis, ser despojado de todos os senti­
dos, afastado de todos os hábitos; afinal, isto é morrer e descer para o in­
ferno. Pois ela própria tem a impressão de sucumbir totalmente, enquanto
lhe é tirado tudo em que se sustinha, com que tinha a ver, a que se apega­
va; pois não toca nem a terra nem o céu, não sente nem a si própria nem a
Deus, e diz: “Anunciai a meu amado, porque estou lânguida de amor”
(Cantares 5.8), como se dissesse: “ Fui reconduzida para o nada e não o
sabia; tendo entrado nas trevas e na escuridão, nada vejo, vivo exclusiva­
mente pela fé, pela esperança e pela caridade, e estou fraca, isto é, sofro,
pois quando estou fraca, então sou forte. (V, 176,16ss.)
Ora, isto parece mística de estilo puro. Mas só parece. A razão de
esta pasagem ser tão particularmente instrutiva é que Lutero ali, por um
lado, atinge a maior aproximação terminológica à mística encontrada nas
Operationes, para então tomar posição explícita, embora com reservas,
frente à mística. É que ele continua assim:
Esta condução os teólogos místicos chamam de ‘entrar nas trevas’,
'ascender acima do ser e não-ser*. Entretanto não sei se eles compreen­
dem a si próprios, caso o atribuam a atos induzidos, em vez de acredita­
rem que isto antes denota os sofrimentos da cruz, da morte e do inferno.
Exclusivamente cruz é nossa teologia. (V,176,29ss.)

Lutero portanto acredita entender melhor os místicos do que estes


se entendem a si próprios, ou seja naturalmente, ele os interpreta no sen­

98 Cf. quanto a isso p. 146ss.

80
tido dele. Ele os reinterpreta segundo sua própria convicção, vendo neles
confirmadas suas próprias idéias. Ele lê os místicos com os olhos do
“teólogo da cruz”, para neles encontrar muitos elementos afins. Mas ele
professa solenemente a teologia da cruz; ‘‘Exclusivamente a cruz é nossa
teologia” Mesmo que a teologia da cruz esteja historicamente sob in­
fluência da mística, certo é também que, inversamente, Lutero intepretou
a mística no sentido de sua teologia da cmz. Isto, porém, é o que importa:
levar a sério a intenção de Lutero em seu programa da teologia da cruz e
não esquecer diante das relações históricas aquilo que é novo e decisivo
em termos de substância. Em nosso caso; o conceito de fé sem dúvida
lembra fórmulas místicas, mas não pode ser suficientemente explicado a
partir das mesmas.
Qual é, na passagem em questão, a objeção crucial contra a mís­
tica? Lutero volta-se contra uma piedade que transformou o “entrar na
escuridão” numa técnica, num exercício religioso de própria escolha. Isto
lhe tira a seriedade última. Acaba virando obra humana e permanece sob
o juízo da cruz. O “entrar na escuridão” de que fala a teologia da cruz é
um ser tragado para dentro do evento que se nos revela na cruz de Cris­
to. Não é, portanto, uma ação voluntária, mas nos sobrevém como ato de
Deus para conosco. Não tende para a atemporalidade, mas está orienta­
do numa história. Com tudo isto, não é teologia da glória, mas teologia
da cruz.
Os diversos enunciados que até aqui vimos a respeito da natureza
da fé tão contrária a toda experiência, são todos eles do Lutero jovem.
Entrementes é praticamente ponto pacífico que o Lutero amadurecido
nas lutas em prol do evangelho e enriquecido de experiência teria trocado
esse conceito negativo de fé por um positivo. De acordo com isso Lutero
destacou na fé mais a posse presente que a expectativa de bens futuros.
Os aspectos quietistas da fé dão lugar aos ativistas, os elementos de fu­
ga do mundo às forças formadoras do mesmo. Objeto da fé não é mais o
invisível em geral, mas concretamente a palavra. A “via régia”, ainda ca­
tólica, do cristão, a qual mantém o adequado caminho do meio entre te­
mor e esperança, teria sido substituída pela certeza serena e contente do
perdão dos pecados. Esta virada é explicada principalmente pelo cresci­
mento interior do Reformador, que em luta com seus adversários se liber­
tava cada vez mais interiormente de suas idéias católicas. No tocante ao
conceito de fé, entretanto, aponta-se ainda para um fato determinado e
de grande interesse. Sabemos que para Lutero Hb 11.1 manteve por toda
a sua vida o valor de uma definição da fé. Acontece, porém, que mais
tarde alterou sua exegese desta passagem conseguida com apoio em Je-
rônimo, motivado por um estímulo filológica de Melanchthon. O próprio

81
Lutero relata o fato em seu comentário sobre Galátas, de 1519." En­
quanto antes para Lutero a fé era idêntica à esperança, ele agora enxerga
sua essência na fidelidade à promessa de Deus. Pode-se dizer que o
momento escatológico passou para um segundo plano em relação ao so-
teriológico. A palavra tomou o lugar das “coisas invisíveis”.
Esse deslocamento de ênfase ocorreu sem dúvida. Como deve­
mos aquilatá-lo? Face à nossa posição moderna frente à escatologia, tal­
vez sintamos maior afinidade com o “Lutero jovem”, pode ser que ele nos
toque mais. Mas será que isto não nos toma pensativos em relação à
nossa posição moderna? Teremos realmente o direito de nos deter no
“Lutero jovem”, ou quiçá nossa renovação “reformadora” moderna da
teologia na verdade apresenta cunho pré-reformador? Em muitos pontos
o Lutero da preleção sobre o Epístola aos Romanos poderá ser mais au­
dacioso, arrebatador e até mais erudito, porém o Lutero amadurecido, em
todos os casos, é aquele do Comentário aos Gálatas. Sem duvida, muita
coisa pode ter ficado mais estreita, no Lutero pós 1525 (cf. Steinlein,
Auslegung der dritten B itte); mesmo assim é de importância fundamental
para a recuperação hodierna da posição reformadora a questão se pode­
mos ou não dar o passo do Lutero jovem para o Lutero amadurecido. Isto
não é advogar uma renascença de Lutero. Justamente quando pudermos
compreender interiormente a paulatina virada em Lutero é que nos reser­
varemos nossas perguntas a Lutero. Por mais errônea que pareça na si­
tuação de hoje a crítica de A. Hamack aos “restos católicos” de Lutero,
não deixa de ser assim que a reflexão que já praticamos como algo muito
natural em relação à ortodoxia, terá que ser feita também em relação a
Lutero em grau maior do que ocorre no momento. Só que não se pode9

99 Veja também O. RITSCHL, loc. c it, p. 105. “ A fé a qual S. Jerônimo entende como sendo
aquela que é descrita pelo apóstolo, em Hb 11, como a substância das coisas a esperar. Sob
substância ele entende a possessão, dizendo: Porque o que possuímos pela fé, esperamos
que virá. Também eu fui desta opinião por muito tempo, porque observei que nas sagradas
letras a palavra ‘substânciar é usada quase em toda parte em lugar de faculdades e posses­
são, em especial desde que tenho para tanto a abonaçâo dessa passagem de Jerônimo. Por
que se há de revisar o que os sentenciários compilaram sobre a substância?" - Linha 18:
“ Depois que meu querido Filipe Melanchton, porém, um jovem ainda, mas um venerável an­
cião de barbas grisalhas em questões de inteligência, que me serve de consultor no grego,
não me permitiu entendê-lo desta maneira, mostrando-me que, quando substância significa
faculdades, não se diz hypostasin em grego (palavra usada pelo apóstolo em Hebreus 11),
mas usia, broton ou hyparxis, eu então mudei de idéia e admito que, conforme meu entendi­
mento, hypostasis ou substância significa propriamente a subsistência e a substância pela
qual qualquer coisa subsiste em si mesma, como Crisóstomo o entende. Ou também significa
uma promissão, um pacto, mas sobre isso não podemos discutir por mais tempo de momento,
ou uma expectação, significados que admitem o sentido e a propriedade da palavra de que
se deriva hypostasis. Mas podes também aceitar, não sem razão, nesta passagem ‘fé1' por
verdade, ou fidelidade, ou simplicidade, que não engana a ninguém.” (11,595,12ss.)

82
fazê-lo naquela forma insustentável de jogar o "Lutero jovem" contra o
"amadurecido”.
Mas, quem sabe, estejamos fazendo o contraste entre o Lutero jo­
vem e o posterior maior do que ele realmente é. Vejamos nossa questão
específica! Dissemos que ocorre um deslocamento. Ao posso que ini­
cialmente Lutero define a fé mais como oposição à experiência, mais tar­
de seu interesse se volta mais para o conteúdo da fé do que para essa
definição formal. Em vez do “ater-se às coisas invisíveis”, passa a ocupar
o centro da atenção o “confiar na promessa”100. Mesmo assim não passa
de uma questão de grau. Assim como desde o início está presente em
Lutero a correlação entre fé e palavra, por outro lado, a negação de toda
experiência objetiva permanece um elemento constitutivo do conceito de
fé, até o fim. Fé só pode estar voltada para algo invisível; pelo fato de se
enxergar a igreja do papa, ela não pode ser a vera igreja, a qual somente
pode ser crida (WA Vl,300,37ss.). Invisibilidade é, portanto, exigência pri­
meira do objeto da fé, ainda agora. Por esta razão a fé se acha em rela­
ção interior mais estreita com o sofrimento que com as obras. Justamen­
te no “Sermão sobre as Boas Obras” é preciso ouvir este tom. No sofri­
mento temos a ver com o Deus oculto. Acontece, porém, que a idéia do
Deus abscôndito se nos abriu a partir da idéia da fé (Vl,208,6ss.). Não
sentir, mas crer: esta é também a contraposição na interpretação do
M agnificai (Vll,586,11ss.). Quando nada sentimos ou percebemos do
amor de Deus, sem dúvida tendemos a desesperar. Mas é preciso reco­
nhecer na fé o “braço” de Deus. Por isso precisam "estar fechados os
sentidos e a razão” (Vll,587,8ss.). A fé mora nas trevas. Lutero compara
espírito, alma e corpo da pessoa humana com os três compartimentos da
antiga tenda da aliança.101
Neste modelo está representado um cristão. Seu espírito é o ‘santo dos
santos’, a morada de Deus nas trevas da fé sem luz, pois ele crê o que não
vê, nem sente, nem entende. Sua alma é o ‘santo’; ali estão sete luzes, ou
seja: toda espécie de entendimento, discernimento, ciência e intuição das
coisas corpóreas, visíveis. Seu corpo é o ‘átrio’, está aberto para todo
mundo, para que se possa ver o que ele faz e como vive. (VII, 551,19ss.)
Mais uma vez, portanto, a delimitação da fé frente a todo tipo de
experiência verificável, psicológica e empírica. E mesmo nos sermões
dessa época, nos quais Lutero fala de um modo geral em termos mais
"positivos” do que, por exemplo, em suas preleções, encontramos a

100 Cf. Rodolf OTTO, Die Anschauung vom Heiligen Geist b e i Luther, p. 31ss.
101 Cf. TAULER, Ausgabe Vetter, Predigt 65.

83
mesma concepção (X,3,130,34ss.). E na “Postila Eclesial” a vida de fé
nos é descrita bem no estilo dos Dictata super Psalterium 'neoplatôni-
cos". "Assim nossos olhos estão fechados para as coisas mundanas, visí­
veis, e têm a esperança de coisas eternas, invisíveis; tudo isso faz a gra­
ça através da cruz, para a qual nos leva a vida divina, insuportável para o
mundo.” (X,1,1,43,18ss.)
O quanto é ilícito isolar uma da outra as duas linhas acima traça­
das, ou jogá-las uma contra a outra, mostra uma passagem da famosa
prédica sobre a mulher cananéia. A palavra à qual a fé se agarra em con­
fiança, tem aqui justam ente o sentido de nos libertar do nosso sentir e
pensar. Ambas as linhas, a negativa e a positiva, por assim dizer, estão
reunidas aqui. Ao se prender na palavra, a fé renuncia ao que está dado
objetivamente, professando as "coisas invisíveis” (XVII,2,203,29ss.). Que
a palavra efetivamente tem, ao lado de sua significação de conteúdo,
também esta significação que acabamos de mostrar, evidencia-se com
toda a clareza numa passagem da preleção sobre Isaías (XXI,2,445,33ss.;
cf. linha 36 “pôr as coisas aparentes fora do alcance dos olhos. Isto ocor­
re somente com a palavra”). Confiar de olhos fechados na condução de
Deus por um caminho desconhecido, isto significa fé (XXXI,2,320,26ss.).
Assim sendo, não nos causa surpresa, finalmente, reencontrarmos essas
idéias também na últim a grande obra de Lutero, na preleção sobre Gêne­
sis, e isto nem tão raramente, e com a maior clareza Fé cega é a exi­
gência também aqui, e em dois sentidos: na conduta prática frente à pro­
vidência tanto quanto na aceitação dos artigos supremos da fé. Em am­
bos os casos não é lícita a verificação (XLIV,378,3ss.). Se a história teve
seu início ao se nos abrirem os olhos, todo nosso empenho se volta, en­
tão, no sentido de revogar essa evolução falha desde a origem
(XLII,672,12ss.). Aquele primeiro abrir dos olhos naturalmente tem certa
razão de ser. Pois efetivamente fomos criados para chegar à contempla­
ção. Porém o momento em que ela nos será concedida, está nas mãos
de Deus. Dela a pessoa humana não pode apoderar-se. Aí é que está a
tentação satânica, de a própria pessoa humana tomar para si aquilo que
Deus lhe quer dar de presente, justamente deixando de consegui-lo por
isso. A fé, por sua vez, não pretende antecipar-se à ação de Deus. Ela
sabe que ainda não veio a ser contemplação agora, mas antes se encon­
tra no mais crasso contraste para com esta (XUII,393,9ss.). Por isso a fé,
a qual também aqui é mais uma vez definida segundo Hb 11.1, é uma ar­
te elevada. Não obstante, quem não a aprendeu, quem portanto não con­
seguiu dar, ou melhor, não volta sempre a dar a jovial negativa a toda
experiência e percepção, não é um cristão (XLIV,751,36ss.). Este conceito
de fé passa a ser para Lutero a chave para a história dos patriarcas; sob

84
este aspecto, traça impressionante perfil principalmente da figura de
Abraão. O conceito paulino “contra a esperança em esperança” forma o
pano de fundo sobre o qual são vistos todos os detalhes
(XLIV,655,1ss).102
Portanto também aqui fé e experiência formam rigorosa oposição:
de duas uma - ou fé, ou experiência. Mas além dessa relação disjuntiva
encontramos justamente na preleção sobre Gênesis, com grande fre­
quência, uma relação sucessiva. Assim sendo, o conceito de fé é formado
analogamente à concepção de Deus, tal como a mostramos no conceito
das “costas de Deus” na preleção sobre Gênesis. Também ali pudemos
constatar como característica dessa obra esta idéia de sucessão; agora
mais uma vez topamos com ela. Além da oposição excludente entre fé e
experiência, aparece a oposição temporal. Aquilo que inicialmente, em
contraposição a toda experiência, é acessível somente à fé, confirma-se
mais tarde também face à experiência. A atuação de Deus atravessa es­
sa oposição; enquanto ela permanece na oposição, vigora o “exclusiva­
mente pela fé". Apenas em retrospecto é que ela se torna compreensível
(XLIV,300,3ss.). Somente pela humilhação é que passa o caminho para a
exaltação (XLIII,567,36ss.). Esperar, quer dizer: não ter em mãos, não po­
der reportar-se a experiência alguma, mas, não obstante, saber de um
sentido da espera.
Será lícito dizer que por esta idéia do “esperar por Deus”, que cor­
responde à idéia das “costas de Deus”, tampouco lá como cá se abando­
nou a posição básica de Lutero.103 Isto porque a fé que espera tem seu
lugar justamente ali onde falta a experiência. Mas no que tange à signifi­
cação positiva desse pensamento em si, há duas coisas a dizer

1. A teologia de Lutero sempre tem caráter poimênico. E em sen­


tido poimênico este pensamento é valiosíssimo.
2. Em sua teologia Lutero nunca se enrijece num esquema. A
oposição entre fé e experiência corre o risco de virar um esquema que
perde toda a concretude. Para que tal não aconteça, é de grande valia
justamente a idéia do “esperar por Deus”. A teologia de Lutero não é um
jogo dialético de oposições absolutas, e sim expressão de quem se viu
interpelado bem concretamente pelo Deus vivo.
102 Cf. XUI,385,27ss.; 385,39s.; além disso XLIV.751.36ss.: “ Táo grande e maravilhosa arte é
crer e esperar. E a fé é definida de modo mais adequado pelo autor da Epístola aos Hebreus:
*É a substância das coisas que se esperam e a prova das que nâo aparecem’, do que recen­
seia muitos exemplos. Noé creu que seria preservado da ira no dilúvio, vendo com seus pró­
prios olhos como o mundo inteiro era submerso e destruído. E o que não conhece taI arte nâo
ó cristão, e nâo será herdeiro das coisas que sáo oferecidas aos crentes na Palavra.”
103 O mesmo pensamento se encontra já em LV!,377,24ss.

85
5. Fé e esperança
Vimos com quanto rigor Lutero isola a fé de toda e qualquer expe­
riência objetiva. Isto nos leva a um ponto último. Podemos dizer que o
conceito de fé de Lutero apresenta caráter acentuadamente escatológi-
co.104 Sempre já foi assim: quanto mais entendo a teologia como descri­
ção de circunstancialidades humanas, tanto menos haverá nela lugar pa­
ra uma escatologia. E esta, inversamente, adquire importância tanto
maior, quanto maior for o rigor com que traço as linhas de separação en­
tre telogia e psicologia. Se for possível deduzir a "essência da religião”
das funções psicológicas do sujeito religioso, fica exduída a escatologia.
Se a teologia enxergar sua função numa psicologia descritiva, ela nem
chegará a constatar o espaço vazio que todos os nossos enunciados
teológicos precisam deixar. E inversamente, quanto mais reconheço a in­
suficiência de uma descrição psicológica da função da fé, quanto mais eu
sentir a tensão entre aquilo que significa fé e a circunstancialidade empí­
rica da "pessoa crente”, tanto mais escatológicos soarão de per si meus
enunciados teológicos. Por isso não nos deve surpreender que assim os
ouvimos em Lutero.
No caso de Lutero em seus primórdios, isto está dado sem mais
com a definição de fé segundo Hb 11.1, tal como a entendia então e que
era normativa para ele. Se a fé é em primeiríssimo lugar um não-ver, ela
encontra sua realização no contemplar; este, porém, faz parte da “luz da
glória". A fé está predisposta em direção a esta meta, está, portanto,
orientada escatologicamente, em sua oposição ao contemplar. A antítese
é enfatizada em função da síntese. Por esta razão, no período inicial em
Lutero, fé e esperança são quase idênticas. Pois também a fé se volta
principalmente para o futuro; nisto é que ela difere do saber, que tem a
ver com o presente (IV,323,20s.). Mas o que caracteriza a esperança é
que ela se acha em oposição à realidade que nos cerca. Esperança
(spes) e re a lidade (res) são dois elementos de uma relação disjuntiva
(111,301,11s.).105 Isto é expresso com muita clareza na preleção sobre Ro­
manos, LVI,520,5ss. Quão constitutiva é a esperança para todo o ser cris­
tão fica evidente em outra passagem da preleção sobre Romanos, na
qual o “Deus da esperança", é contrastado aos falsos deuses, os "deuses
do objeto”, como o Deus verdadeiro (LVI,522,9s.). Nessa esperança, na
"esperança desnuda", há que se ressaltar, em primeiro lugar, não o as­

104 Cf. H. PREUSS, Luthers Frömmigkeit, p. 71: “ O fator escatológico faz parte do ceme de sua
piedade."
105 Sobre a diferença entre esperança humana em geral e esperança cristã, cf. a importante pas­
sagem em LVI,295,14ss.

86
pecto positivo, mas o negativo: esperança náo é realidade. A realidade
que nos cerca e a esperança estão em conflito uma com a outra
(LVI,465,9ss.). O aspecto positivo da esperança é, como na fé, a certeza
dos bens futuros (!V,332,27ss.). Sim, em certo sentido pode-se reaimente
falar já de uma posse dos bens futuros: “Pela esperança residimos no
céu.” (111,389,34.) O que aqui se proclama não é niilismo, apesar do posi­
cionamento radical frente à realidade. Não se contrapõe à profissão da
realidade a fuga para o nada mas a fé numa realidade outra, mais eleva­
da, que é a realidade propriamente dita. Os cristãos são “idealistas” ape­
nas aparentemente, na verdade eles professam um “realismo mais ele­
vado” (IV, 355,29ss.). Entretanto isto não deve fazer esquecer o aspecto
negativo contido na esperança. Ele inclusive se faz notar muito mais que
o positivo. Naturalmente é preciso constatar que ninguém de nós possui
essa esperança pura, pois todos ainda não deixamos de depositar de al­
gum modo, nossa confiança nas criaturas; não queremos arriscar-nos
apenas com Deus (1,359,20ss.).
Portanto está confirmado o caráter escatológico do conceito de fé
de Lutero em sua primeira fase; ele está dado com a maneira em que Lu-
tero entende Hb 11.1. Porém mesmo depois de consumada a metamor­
fose acima descrita, na compreensão de Lutero dessa passagem funda­
mental para ele, não desaparece esse traço escatológico. Não se deve
exagerar a importância dessa metamorfose, embora não tenha sido ela
acidental nem tenha ficado sem consequências. Alteram-se algumas ên­
fases em Lutero; mas sua teologia da cruz ele jamais abandonou. A ver­
dade dessa afirmação demonstramos na doutrina do Deus abscôndito,
vim o-la confirmada nos diversos pontos de nossa delimitação critica do
conceito de fé, e ela agora se nos mostra mais uma vez. Só que neste
ponto colocaremos, com Otto Ritschl, a guinada na época do comentário
a Gálatas de 1519, e não como fizemos acima, em tomo do ano de 1525.
Mas quão relativo é falar-se aqui de uma guinada vemos no momento em
que voltamos nossa atenção para os detalhes.
Assim encontramos mais uma vez nas Operationes in psalmos
a justaposição típica de fé e esperança. Sua função é de colocar todas as
criaturas em segundo plano; fé e esperança proporcionam cidadania no
céu. Há um “tocar” a Deus, entretanto, como logo se acrescenta, preci­
samente apenas "pela fé e esperança". Esse "tocar” não implica exclusão
da escatologia (V,54,9ss.). Por isso a esperança permanece “coisa árdua”.
Pois esperança em sentido estrito sempre é um "esperar o contrário”, es­
tá sempre contestando a realidade ao nosso redor (V,589,5ss.).
O fato de Lutero não poder renunciar a esse aspecto em seu con­
ceito de fé elucida-se também a partir de sua concepção da justificação.

87
ccnniMAum cnniriíunu.
Esta não é a ocasião de se entrar em detalhes sobre este ponto. Para a
nossa questão nem é tão importante que lado tomamos na disputa sobre
a doutrina de justificação de Lutero. Pois tanto na concepção da graça
justificante como naquela da graça justideclarante, o processo de justifi­
cação fica incompleto sem a idéia da esperança. Esta parte da teologia
da cruz está por demais integrada com o pensamento central de Lutero,
para jamais poder ser abandonada. "Nossa justiça não está na realidade
concreta, mas na esperança.” (XL,2,24,6s.) Nesta acepção, em todos os
casos, permanece de pé a contraposição entre esperança e realidade
concreta. Destarte o pensamento escatológico mantém seu lugar central,
ao passo que a expectativa da volta de Cristo, mais tarde cada vez mais
acentuada em Lutero, tem menos significado teológico do que emocional
(cf. XL 1,646,35ss.). A vinculação entre "justiça” e “esperança” constitui a
concepção escatológica propriamente dita do Lutero posterior. Neste pon­
to sempre se lhe evidenciou a grande tensão entre o invisível e o visível,
tensão esta que também não pode ser inteiramente resolvida por palavra
e sacramento. Assim também a vemos expressa na grande preleção so­
bre Gênesis (XLII,147,22ss.). Mas também está presente a idéia mais ge­
nérica da esperança, praticamente idêntica à fé que nada vê. Abraão,
como já se mostrou acima, é o grande modelo de semelhante fé, de tal
esperança. As histórias de Abraão são para Lutero nada menos que uma
ilustração da idéia de fé (XUI,463,12ss.). Assim sendo, também neste úl­
timo ponto podemos constatar que Lutero não abandonou as intuições
decisivas de sua teologia da cruz, apesar de alguns deslocamentos de
ênfase. O Abraão da preleção sobre Gênesis é o mesmo da preleção so­
bre Romanos.106

B. Dando conteúdo positivo ao conceito de fé


A primeira parte de nossa investigação em tomo do conceito da fé
já concluímos. Nosso propósito ali foi mostrar como é preciso delim itar
criticamente esse conceito. Em Lutero a fé não é sem mais nem menos
uma função da alma. E ela não o é sob dois aspectos:

1. Sob o aspecto de seu surgimento, ela tem seu ponto de partida


não numa aptidão anímica dada. Mostramo-lo nos conceitos “sindérese”,
“intelecto” e “razão”. Todos eles não se evidenciaram como ponto de co­
nexão desejado. Não foi possível achar um caminho direto de uma dessa
funções do espírito para um ato da fé.

106 Seria uma tarefa atraente comparar o quadro de Abraão da preleção sobre Romanos com o
da preleção sobre Gênese, devendo-se ainda consultar o de Kierkegaard.

88
2. Também no que tange à sua condicionalidade a fé não se clas­
sifica entre as demais funções psíquicas. Ela contém um elemento con­
traposto a toda experiência objetiva. Ela se acha em constante conflito
com a percepção. Seu objeto não é perceptível, visível, mas é a contra­
partida do perceptível e visível. Justamente isto implica seu caráter esca-
tológico, conforme vimos por último.
Esta caracterização negativa, crítica do conceito da fé corresponde
de modo excelente à idéia de Deus, a idéia do Deus abscôndito somente
é compreensível com base no conceito da fé. Em conjunto elas consti­
tuem as duas colunas principais da teologia da cruz. O programa dessa
teologia da cruz, apresentado no “Debate de Heidelberg” e nas "Explica­
ções” encontra seu desdobramento na idéia de Deus e no conceito de fé.
Perguntar-se-á, porém, agora será que está completa a descrição
até agora havida do conceito da fé? Não será ela uma colossal distorção
daquilo que a fé representa para Lutero? Não será muitíssimo unilateral o
quadro esboçado? Não trai ele demasiadamente a influência da teologia
mais recente, para poder reivindicar credibilidade histórica? Será que não
se trata de uma construção forçada, mesmo que em seu favor se possa
apelar para razoável número de abonações em Lutero?
De fato precisamos considerar essas interrogações. Precisamente
quando há interesse atual, ocorre o perigo de distorção. Neste sentido há
duas coisas a dizer1

1. Continuamos convictos de que aquilo que apresentamos na de­


limitação crítica do conceito de fé não recebeu até agora a devida aten­
ção. A pesquisa mais antiga sobre Lutero, de orientação confessional
(talvez com excessão de Th. Hamack, ao qual, entretanto, necessaria­
mente faltava nosso enfoque moderno), ainda não podia ter a visão para
tal. Por um lado, por razões exteriores: não haviam sido descobertos ain­
da documentos decisivos do período inicial de Lutero; por outro lado, esta
pesquisa enxergava Lutero por demais na linha da ortodoxia, a qual não
deixa de portar em si boa dose de teologia da glória, de modo que não
poderia acentuar a teologia da cruz de Lutero. A pesquisa iniciada por A.
Ritschl, entretanto, suspeitava resquícios católicos nessas coisas que não
combinavam direito com sua própria dogmática adequada à época. Já
vimos que, para explicar a concepção de Deus de Lutero, costuma-se
apelar para o accamismo. E para o conceito de fé, recorre-se de preferên­
cia à mística. Isto é esquivar-se da gravidade do pensamento através de
uma classificação histórica. A convicção que sustenta nossa pesquisa é
de que isto não pode acontecer, apesar de todas as questões genéricas
de detalhe que também não subestimamos. Nossa posição somente fica-

89
ria abalada caso se demostrasse claramente que a caracterização negati­
va da fé, acima apresentada, apenas se encontraria na fase incipiente de
Lutero. Entretanto acreditamos ter mostrado claramente que este não é o
caso, tampouco o alegado desaparecimento da idéia do Deus abscôndito
após 1525. No entanto esses pensamentos da teologia da cruz não po­
dem mais ser ignorados, mesmo que, como é o caso, não apareçam mais
tarde na mesma medida como inicialmente.

2. Entretanto a caracterização negativa do conceito de fé de fato


não basta. Isto, entretanto, não pretende atenuar o que dissemos no pon­
to 1. É preciso observar meticulosamente a delimitação crítica do concei­
to da fé ao apontarmos agora os elementos positivos nele contidos. Pois
estes somente podem ser colocados depois de firmado o fundamento cri­
tico. Eles somente podem ser corretamente avaliados à luz da linha críti­
ca. Ignorando-se a mesma, cria-se uma impressão totalmente falsa. For­
ma-se então aquela imagem infelizmente ainda popular de Lutero como
aquele homem que insiste em sua Bíblia e cuja fé não se distingue fun­
damentalmente da teimosia tipicamente alemã. Mas esta imagem é fal­
sa. Nos enunciados de Lutero jamais devemos esquecer seu pano de
fundo sombrio e sério. Errado também seria suprimir os aspectos positi­
vos de seu conceito de fé. Precisamos agora passar à sua descrição. An­
tecipamos que neste ponto não importa verificar detalhes - volumosa
pesquisa poderia ser feita em torno da questão fé e palavra, por exemplo;
trata-se, antes, de justapor à delimitação negativa do conceito de fé os
elementos positivos em linhas gerais, completando assim o quadro.

1. Fé como experiência
a) De modo algum é assim que a fé exclui toda e qualquer expe­
riência. Afinal de contas a fé não é uma hipóstase pairando no ar, mas
uma realidade. Eu creio - somente nesta relação de sujeito é que se po­
de falar de fé. Mas isto pressupõe algum tipo de experiência A fé não
pode ser algo puramente transubjetivo, se é que ela deva realizar-se
como ato no sujeito. Por enquanto deixamos em aberto de que tipo é es­
sa experiência. Certo é que, já nos escritos da primeira fase, fé e expe­
riência aparecem como par intrinsicamente interligado. Assim, por exem­
plo, na preleção sobre Romanos, LVI,246,16ss. Encontramos exatamente
a mesma concatenação nas Operationes in psalmos (V,36,15ss.). A “ex­
periência” ali até parece idêntica à "fé”. Lutero ali conhece um “saber”
dos objetos da fé. "Saber” , entratanto, é a antiga expressão para a cons­
cientização direta (V,285,29ss.). Há, portanto, uma experiência do não-
experimentável. Sim, Lutero Jnclusive_oúde- defender o termo “sentir'1
ICSP - G!'? - i O i E C A
90
(V,387,40ss.). Pode-se “perceber e sentir” a confiança e a fé
(VI,217,25ss.). Pode-se perfeitamente sentir e experimentar “a graça de
Deus; “eia é oculta, mas suas obras são inocultas” (X,1; 1,115,4ss.). Atra­
vés da fé cria-se um "dulcíssimo afeto do coração” (VI,515,29ss). O amor
que sucede à fé (s/c!), é visto aqui sob o aspecto de que a fé é suscetível
de ser experimentada. A fé que se concretiza na experiência é amor.
Esta “linha da experiência" (Bohlin) atravessa todos os escritos de
Lutero. Com particular clareza ela se expressa no mais belo escrito de
Lutero, a interpretação do M agnificai Ali a experiência é denominada de
escola do Espírito Santo.
Ninguém poderá compreender direito a Deus nem a palavra de Deus a
não ser que o tenha diretamente do Espírito Santo. Ninguém, entretanto,
pode tê-lo do Espírito Santo sem experimentá-lo, prová-lo e senti-lo, e nes­
sa experiência o Espírito Santo ensina como que em sua própria escola, fo­
ra da qual nada se ensina senão palavras ilusórias e conversa fiada.
(Vll,546,24ss.)
O contraste está claro: a ênfase sobre a experiência volta-se con­
tra uma fé puramente racional.107 Experiência significa que a pessoa in­
teira foi atingida. Mas guardaremos um parecer sobre esses pensamentos
para mais tarde e continuaremos primeiro a descrever o material. Fica­
mos conhecendo a Deus somente através do Espírito Santo. Mas como
sua escola o Espírito Santo utiliza a experiência. Consoantemente, a ex­
periência é o caminho legítimo para a pessoa conscientizar-se de Deus. A
experiência traz consigo o afeto. Espírito Santo, experiência e afeto pas­
sam a ocupar a mesma linha (Vll,548,4ss.). Onde houver fé pessoal, legí­
tima, necessariamente haverá experiência. A experiência vira até critério
da fé. Mas será que neste ponto Lutero já não sabe mais que a fé habita
o “santo dos santos”, onde reina profunda escuridão? Sem dúvida, Lutero
conhece uma fé que não pergunta se vê ou sente algo da proximidade de
Deus. A noiva autêntica de Cristo louva e ama a bondade de Deus, tanto
faz se experimenta ou não algo da mesma. Porém Lutero logo acrescenta
que a última hipótese é impossível. Não existe fé genuína que se depare
constantemente com um nada (V!l,557,28ss.). Na interpretação do profeta
Jonas, de 1526, Lutero fala da oração de petição. Uma oração sincera
muito cedo sentirá algo do amor de Deus (XIX,222,12ss.). A oração da fé
precisa sentir que está "atingindo” a Deus (XIX,224,23ss.). Pois segundo
a famosa definição do comentário a Gálatas, a fé não é "qualidade ocio­
sa ou casca vazia” (XL,1,228,31), isso é, ela exige concretização. E assim

107 Cf. 1,419,2s.eXL,3,542,31s.

91
ela entra na área da experiência. Aqui também cabe a expressão tão fre­
quente em Lutero: "Quanto crês tanto tens” (por exemplo, XL,1,444,14). A
fé é sem dúvida algo positivo, não uma negação inócua, ela opera expe­
riência, cria posse. Naturalmente pode dem orar,até que surja a expe­
riê n cia ; mas a quem pode perseverar, ela não faltará (XLIII,367,35ss.). À
diferença da especulação, somente a experiência é capaz de conhecer a
bondade e o poder de Deus (XLIV,429,24ss.). Em todos esses casos apa­
rece a vinculação entre fé e experiência. Ao passo que acima ainda tive­
mos que constatar rigorosa oposição entre fé e experiência, topamos aqui
com sua coordenação, as vezes até com sua identificação.

b) Neste sentido também vai a definição da fé como confiança.


Embora também exista confiança que renuncia a todo e qualquer funda­
mento experiencial, o tom mais terno que aqui ouvimos mostra que neste
pensamento nos achamos na “linha da experiência”. Cedem os crassos
paradoxos. Intenso imbuimento pessoal toma o lugar das radicais for­
mulações de fé como náo-ver, não-sentir, etc. Em toda parte sentimos
impor-se o calor da experiência A relação da fé com o sujeito exprime-se
com muita beleza justamente na idéia da confiança Enquanto que pela
delimitação crítica do conceito de fé o peso maior era dado, por natureza
à “fé que se cré”, agora passa a vigorar plenamente a “fé pela qual se
crê”. O momento subjetivo da fé revela-se como confiança. Na medida
em que a fé quer mostrar-se efetiva no sujeito como oposição a toda ex­
periência objetiva, ela toma a forma concreta da confiança Na confiança
temos o ponto em que se cruzam fé e experiência.
O fato de Lutero entender fé como confiança não precisa de de­
monstração detalhada através de abonações. Todo mundo conhece a ex­
plicação do primeiro mandamento no Catecismo Menor e Maior. Conhe­
cidas o bastante são também as famosas palavras sobre a “confiança
certa do coração” no grande comentário a Gálatas (XL,1,228,31ss.). A in­
terpretação do primeiro mandamento no Sermão das Boas Obras lembra
quase que textualmente o Catecismo Maior (Vl,209,27ss.). Pois "Deus
não quer de nós outra coisa senão uma fé autêntica e ingênua, e firme
confiança, fidúcia e esperança” é o que consta na explicação dos salmos
de contrição de 1517 (l,172,15ss.).

c) Ao se expressar a relação da fé com o sujeito, não ficaremos


surpresos ao ouvir falar de diversos graus da fé. Claro, fé é fé. A fé como
tal se apresenta como algo absolutamente novo ao lado das demais fun­
ções da pessoa humana. No que tange à fé, perante Deus não há grau
maior ou menor, mas apenas: ou sim, ou não. Da perspectiva do sujeito,

92
entretanto, posso muito bem falar de diversos graus da fé. Aparecem en­
tão diferenças de nível muito claras. O fato de Lutero fazer também es­
ta consideração mostra que para ele a fé encerra um momento de expe-
rimentabiiidade. Pois somente neste caso tal maneira de encarar é possí­
vel. Assim sendo, alguns apenas chegam a uma débil “fé informe” que fi­
ca inócua na vida, e por isso é objeto de lamentação de Lutero (III,
490,26ss.; aqui Lutero ainda usa o conceito fides informis sem reservas,
cf. 111,495,14). Outros, como por exemplo os mártires, mostram sua fé num
cristianismo “de caráter heróico” (Vl,286,36ss.). No sermão sobre Jo
4.46ss., de 1516, Lutero distingue 3 graus de fé (l,87s.): a fé incipiente, a
progressiva e a perfeita. A primeira é fé em função de sinais e prodígios,
a segunda está destituída desses sustentáculos exteriores e voltada ex­
clusivamente para a Palavra, e a terceira, a fé perfeita, também não de­
pende mais do “verbo externo”, mas é constante disposição interior de
fazer a vontade de Deus. Não obstante há uma diferença entre a fé que
Lutero recomendou à mulherzinha de Torgau (XLIII,4S0,15ss.) e o “grau
supremo da fé”, dirigido para o Deus abscôndito e que consegue captar a
“obra própria (de Deus) na obra alheia” (XVIII,633,10ss. Cf. XLJII,
367,33ss.). A prova suprema e mais difícil da fé é quando Deus não só
deixa esperar por sua ação, mas ainda a oculta “sob aspecto contrário”.

d) Na medida em que a fé se mostra na experiência, pode-se falar


também de uma posse da fé. Aquilo que experimento, eu possuo. Quan­
do algo entra no meu consciente, passa a ser minha propriedade espiri­
tual. Como a fé está vinculada a determinado teor, esse teor passa a ser
posse minha. Na medida em que a fé é compreendida mais como espe­
rança, também esta posse será uma posse de bens futuros. Nesta forma
encontramos este pensamento principalmente na fase inicial de Lutero,
por exemplo em IV, 271,29ss. O conceito de posse aqui é dialético. Trata-
se de uma posse, porém de uma posse de coisas não possuídas. Diferen­
te é o pensamento na glosa a Romanos 5.4 (LVI,50,16ss.). Ali a fé im pli­
ca posse, embora oculta, de paciência, experiência, etc. Não entra em
questão a perspectiva futura. Ao passo que ali se trata de posse de bens
da esperança, trata-se aqui da posse latente de coisas presentes. Nesta
direção se desenvolve o pensamento. O quanto crês, tanto tens - esta é
agora a fórmula (V,578,38ss;XL, 1,444,14). A fé, portanto, implica posse
real, naturalmente posse somente para a fé, não obstante, uma posse.
Por isso esses pensamentos fazem parte da “linha da experiência”.

e) A fé entra na experiência como posse. Por isso ela pode mos­


trar-se como poder. A melhor ilustração deste pensamento é a vida do

93
Reformador, pensamento o qual novamente pode ser acompanhado des­
de os escritos primeiros até os últimos.108 Mas gostaríamos de lembrar
mais uma vez que ela só não é abusada enquanto for vista sobre o pano
de fundo das caracterizações negativas da fé.

f) Finalmente neste contexto a fé pode ser definida como atitude


fundamental, da qual se originam todas as manifestações autênticas da
piedade cristã. A fé é o ponto de unidade de sua diversidade. Neste sen­
tido pode-se então entender a fé como "unidade do eu”.109 Essa unidade
do eu, entretanto, não é um dado psicológico; ela não pode ser conhecida
em termos objetivos. A fé como tal foge à experiência objetiva, porém se
impõe em atos acessíveis à experiência. Ela é o ponto invisível de unida­
de que mantém unida a diversidade visível. Ela não é nem a soma de
suas manifestações, nem pode ser identificada com qualquer uma delas,
mas é seu ponto de referência comum a todas. Ao passo que as diversas
manifestações são psicologicamente constatáveis, a fé somente é cons-
tatável indiretamente, porque jamais idêntica a elas. A fé não é experiên­
cia, mas é experimentada. Porém sempre de forma imperfeita! Ou seja,
na linguagem de Lutero: as obras originam-se da fé, mas obra alguma é,
como tal, obra da fé. É que nunca ocorre uma identidade direta entre fé e
obras, razão por que não existe experiência perfeita da fé. Inversamente
não há fé que não esteja relacionada com a experiência. Fé sempre exige
expressão e configuração; esta configuração entretanto, pertence ao âm­
bito da experiência. Por esta razão atribuímos a fé como “atitude funda­
mental” à “linha da experiência" na teologia de Lutero, não como se ela,
como tal, pudesse ser psicologizada, mas em função de sua realização
no âmbito da experiência. Mas deixemos falar o próprio Lutero! Já nos
Dictata super Psalterium encontramos este pensamento em roupagem
alegórica, porém claramente expresso (111,532,13ss.). A própria fé é “obra"
e “poder de Deus", portanto jamais é um dado psicológico. Em última
análise seu sujeito nem é a pessoa humana, mas o próprio Deus (“na fé,
onde não é o ser humano quem vê, mas Deus", lll,542,34s.). Mas nessa
qualidade de “poder" inconcebível, não objetivo, a fé cria todos os "pode­
res", sem entretanto identificar-se especificamente com nenhum desses
“poderes”, formando isto sim, como “obra de Deus” , o momento de rela­
ção existente em cada “poder'1.

108 Cf. Ill,543,10ss.; LVI,411,1ss.; Il,690,34ss.; V,377,34ss.; Vll,554,6ss.; XVIII,652,2;


XIX.219.2ss.; XLIII,219,28ss.
109 Cf. BRUNSTÃD, toc. c it, p. 157. Também Brunstâd diferencia o “ eu" do “ próprio” da pessoa
dado empiricamente.

94
A mesma concepção encontramos nas Operationes in psalmos
(V,395,9ss.).110
A mais bela e profunda manifestação de Lutero sobre a relação
entre fé e obras está em seu Sermão das Boas Obras. A interpretação
dos três primeiros mandamentos que ele dá ali é algo do mais precioso
que jam ais escreveu. O pensamento básico já nos é fam iliar. Tudo gira
em torno do enunciado central; todas as obras precisam originar-se da fé,
mas a fé em si não é obra. A fé também é mais que a simples soma das
boas obras (Vl,215,13ss.). Por isso ela também não pode ser eliminada
por algo muito negativo. Ela não obstante mantém seu vigor. Embora
queira verificar-se na área da experiência, ela não depende da experiên­
cia. Afinal, ela é o “antes” de toda experiência (Vl,206,18ss.; 204,25;
204,31s). Isoladas de seu ponto de unidade invisível, as obras, como tudo
relacionado à experiência, ficam sujeitas à crítica, neste caso à crise. Por
isso toda ação precisa partir desse centro (Vl,206,8ss.; 4ss.; 217, 34ss.).
Exclusivamente a fé é o fundamento que possibilita as boas obras. Por
isso as obras dependem da fé, e não a fé das obras (Vl,207,12s.). Razão
por que em momento algum se pode perder de vista a fé. Toda a diversi­
dade está fundamentada nesta unidade (Vl,212,32ss.). Por isso “a primei­
ra, suprema e mais nobre boa obra é a fé em Cristo” (Vl,204,25ss.). Mas
a últim a coisa que Lutero nos tem a dizer sobre este complexo, ele a ex­
prime no fim do terceiro mandamento ao fazer uma retrospectiva dos
primeiros três mandamentos (VI,249 11 ss.). Essa passagem ainda nos
ocupará em outro contexto. Por ora o mais importante ali (linhas 33ss.) é:
“Assim ela (a fé) sai para as obras e volta pelas obras para si própria, tal
como o sol se levanta até o ocaso e volta para o levante. Por isso a escri­
tura associa o dia com a vida em paz nas obras, e a noite com a vida so­
frida na adversidade, de modo que a fé vive e atua, sai e entra em am­
bas.” Ponto de partida e alvo neste movimento é, portanto, a fé. Nas

110 “ A f é . . . é a cabeça, vida e força de todas as demais obras e de modo mais verdadeiro
aquele real universal queé um em tudo, de sorte que nenhuma obra obra seja boa a náo ser a
que foi operada pela fé; sim, a nãoserque foi totalmente imbufdae permeada pela fé, como por
fermento novo.” Essa passagem é especialmente interessante por causa dos dois termos "u -
niversal” e "real". A fé como ponto de unidade (um em tudo) e o real universal. Para o nomi­
nalista o conceito é uma abstração, para o termlnista, o conceito no julgamento. Por meio do
conceito a coisa individual é elevada a pensamento, no conceito, portanto, ela é elevada a
uma unidade superior. No entanto, este universal pelo qual primeiro acontece conhecimento,
é denominado aqui, em diferença ao nominalismo, como sendo o real. Seria dito demais se
enxergarmos nisto um principio, na verdade não aplicado, para uma nova doutrina do conhe­
cimento? Ou retoma Lutero, consciente ou Incoscientemente, talvez com intenções jocosas,
os antigos argumentos ontológicos? não é a fé premissa para tudo que há de concreto justa­
mente em sua não-concreticldade? Em todos os casos ó preciso rejeitar qualquer equipara­
ção da fé com as virtudes e obras; pelo contrário, a fé lhes ó superior em sentido rigoroso,
como o todo é superior às partes.

95
obras a fé chega a si mesma. As obras são a auto-realização da fé. A fé
não é uma "qualidade ociosa”, não é uma qualidade isolada entre outras.
Ela o seria caso em sua caracterização nos restringíssemos à sua delim i­
tação crítica. Justamente ao colocar a fé em oposição puramente negati­
va à experiência, erro o alvo que estou visando. Pois assim acabo colo-
cando-o na mesma categoria com a experiência objetiva. Uma delim ita­
ção positiva somente obtenho ao pô-la acima da experiência, como aca­
bamos de fazer, como fundamento e princípio de toda experiência. Da fé
decorre a experiência, a qual novamente desemboca na fé.

g) A partir daí ainda se torna necessário um adendo ao problema


de fé e razão. Mostramos acima que para Lutero existe grande tensão en­
tre fé e razão. Fé e saber divergem como duas áreas de natureza distinta.
Mostramos que essa concepção se origina da teoiogia da cruz de Lutero.
O que foi dito acima tem sua razão de ser e não deve ser atenuado de
maneira alguma. Entretanto o quadro ficaria incompleto caso ocultásse­
mos o outro lado da questão. Também neste problema pode-se constatar
a linha da experiência. Lutero conhece uma gnose cristã. Não que ela
fosse muito enfatizada. Em evidência fica o tema "fé e obras”, ao passo
que permanece um torso o tema “fé e conhecimento” , que lhe é análogo.
A analogia é desenvolvida apenas na antítese. De modo igualmente
apaixonado como no caso das obras, também é combatido o saber no se-
tido da razão natural. Mas enquanto que a nova síntese de religião e mo­
ral forma o ponto alto do pensamento de Lutero, tal síntese falta na ques­
tão “fé e conhecimento”. Como se sabe, Rothe enxergou nisto a deficiên­
cia crucial da teologia reformadora. Neste ponto seremos mais cautelo­
sos. Em todos os casos a gnose de Richard Rothe não é mais teologia
da cruz. A ligação entre fé e gnose não é mais tão estreita como a de fé
e amor. Por isso a simples analogia dos problemas não nos adiantará. O
próprio Lutero fornece poucos subsídios para que pudéssemos traçar li­
nhas claras.
Certo é que o problema de gnose aparece duas vezes no curso do
pensamento teológico. A primeira vez, como gnose do ser humano natu­
ral, ainda não tocado pela revelação. Nesta qualidade ela é “prudência da
carne”, isto é, nos termos secos da preleção sobre Romanos: “pecado”
(LVI,359,1). Contra esta gnose volta-se a teologia da cruz, e sob esse juí­
zo cai para ela também a razão especulativa da teologia da glória, se­
gundo vimos. Mas o problema da gnose ainda aparece em outra passa­
gem. Também a fé é conhecimento e busca conhecimento. O que há
com a gnosis pisteos? Lutero não ignorou por completo esta questão.
Nesta direção já pudemos observar algumas abordagens embrionárias.

96
Cabe aqui o conceito do “entendimento da fé", a profunda reflexão sobre
a filosofia apostólica referente a Rm 8.19. Complementando, apresenta­
remos ainda algumas passagens em que igualmente podemos perceber
um parecer positivo sobre uma gnose cristã. Assim sendo, “prudência"
pode ser utilizado numa acepção na qual ela não é outra coisa que a
compreensão da obra de Deus com a pessoa humana (LVI,379,17ss.).
Mas sobretudo a “sabedoria” (ver nota 89) muitas vezes é usada como
órgão cognitivo da fé, ao lado do “intelecto” (LVI,262,22). A verdadeira
sabedoria só é possível quando se renuncia à sabedoria própria
(V,250,30ss.). Por isso a “humildade perfeita é sabedoria perfeita”
(LVI,346,19ss.). Assim fica claro que essa sabedoria não tem a ver com a
pessoa humana natural. A ela só chega quem, na fé, rompeu com a sa­
bedoria natural. “Sabedoria perfeita" é "espiritualidade perfeita”
(LVI,346,21). Irreconciliadas defrontam-se a “sabedoria do espírito” e a
“sabedoria da carne” (V,545,10ss.). É verdade que existe uma “razão ilu­
minada pela fé" (XL,1,442,12), mas a “sabedoria da cruz” continua uma
“sabedoria oculta em mistério” para os “perfeitos” (XVIII,638,24ss.).
Vemos que aqui só podemos operar com alusões esparsas. Elas
têm pouco peso contra as radicais antíteses que acima tivemos que colo­
car a este respeito. Mas elas mostram que, como também na questão “fé
e experiência” de um modo geral, temos que nos precaver contra uma re­
dução.

2. Caracterização da fé em termos de conteúdo


Do momento positivo do conceito da fé faz parte, em segundo lu­
gar, sua característica em termos de conteúdo. A fé não se resume numa
negação, mas, antes, vive de conteúdos bem determinados. Em Lutero a
“fé pela qual se crê” não é concebível sem a “fé que se crê”. Apoiando-se
na famosa formulação de Kant, pode-se perfeitamente dizer no sentido
de Lutero: A fé pela qual se crê fica vazia sem a fé que se crê, e a fé que
se crê sem a fé pela qual se crê é cega. Para a fé importa não só o fato,
mas também o teor da revelação. A caraterística de conteúdo é constitu­
tiva para o conceito de fé. Ela tem dois aspectos. Segundo Lutero estão
vinculadas:
a) fé e palavra,111
b) fé e Cristo.
Também aqui precisamos ser sucintos. Ambas as coisas não fa­
zem propriamente parte do nosso tema, mas, pelas razões acima expos­
tas, não podem ser omitidas por inteiro aqui.

111 Cf. IHMELS, Wahrhaftigkeitsgewissheit, p. 20: "F é e palavra são correlatas inseparáveis."

97
a) Já vimos acima que a definição da fé como “argumento de coi­
sas invisíveis” não exclui a idéia de relação com a palavra. Muito pelo
contrário, ela já é salientada nos Dictata super Psalterium. A tese de
Hunzinger não pode derrubar este fato. Lutero conhece, em seu período
inicial, um “apegar-se à palavra”, inclusive um tornar-se uno com a pala­
vra (IV,695,34ss.). Neste caso a evolução de Lutero é a refutação mais
segura da tese unilateral de Hunzinger. Todo o seu desenvolvimento está
orientado na palavra Na experiência da palavra é que surge para ele a
força de crer contra a sua experiência (Vl,519,12ss.; Vll,785,3ss.; XVIII,
495,36ss.). Na palavra incende-se a experiência do amor de Deus. Porque
palavra é evangelho. Mas essa palavra somente é verdadeira para a fé
(XL,1,217,6ss.), a qual, no entanto, é mais que mero acreditar
(X,1;l,71,3ss.). A fé histórica não justifica, mas sim a fé especial
(ll,458,20ss.).
Qual a diferença entre fé especial e fé histórica? A fé histórica
mantém distância do seu objeto, sob dois aspectos: Ela não supera o hia­
to histórico existente entre nós e a época de Jesus, ela encara esses
acontecimentos de modo puramente contemplativo. A fé especial, por
sua vez, relaciona essas histórias com seu efeito, isto é, não as encara
de modo neutro, mas sente-se altamente envolvida nas mesmas. Ela se
dá conta de que: isto me diz respeito. Pois esse evento a que se dirige a
fé, não é histórico no sentido de um evento concluído, no passado, mas
que é novo diariamente na fé (XL,1,523,30ss.). Portanto pode-se dizer,
certamente, que, à diferença da fé histórica, a fé especial inclui um mo­
mento de experiência. Contanto que é salientada a relação com o eu, não
há como não seja afetado o eu. Mas todo afetar suscita um afeto. Con­
tanto que a fé especial ressalta o afeto, ela envolve um momento de ex­
periência. É com boa razão, portanto, que ela foi mencionada neste con­
texto. Naturalmente deve-se acrescentar de imediato: esta experiência é
experiência da fé, estando portanto sempre em certa tensão com a expe­
riência natural. O momento experiencial da fé especial não a toma mais
fácil, e, sim, mais difícil. Pois justamente desta maneira é que a pessoa é
colocada diante da decisão, é arrancada de sua postura contemplativa
(XL,1,86,2ss.;484,2ss.). A experiência da fé especial é experiência de tipo
especial.
Com isso damos um passo à frente em nosso entendimento da
relação entre fé e palavra. Vimos a vinculação recíproca de fé e palavra
sob o ponto de vista da experiência. Mas tal como na descrição da idéia
da fé especial nos demos conta das duas facetas do problema fé e expe­
riência, o mesmo ocorre no tema fé e palavra. Podemos encará-lo sob o
seguinte ângulo: a fé não é vazia, na palavra nasce experiência. Ou en­

98
tão, conforme de passagem já vimos acima, podemos entender a palavra
justamente çomo momento da não-experimentabilidade. Ao se remeter a
fé única e exclusivamente à palavra - "temos somente a palavra” - pro­
clama-se justamente a renúncia a toda experiência, ou, em termos mais
cautelosos, a toda experiência objetiva. Esta é precisamente a importân­
cia da palavra, por exemplo na provação: de peia palavra sermos liberta­
dos de toda auto-observação angustiante, libertados da valorização de
experiências e sentimentos piedosos próprios, libertados, em última aná­
lise, de nosso eu empírico. A palavra revela-se como afiada espada de
dois gumes, que rompe todos os grilhões que querem prender a fé à nos­
sa circunstancialidade empírica. Tão certo como, no sentido de Lutero,
não tem cabimento definir a fé apenas formalmente como um não-ver,
como antítese a toda experiência, e por mais importante que seja sua
relação de conteúdo com a palavra, tampouco se deve cair na ilusão de
ignorar que justamente essa relação com a palavra representa o estado
de abstração de toda experiência objetiva, e que esse estar cheio de con­
teúdo tem caráter exclusivo.112
Recapitulamos então: Fé e Palavra se inter-relacionam. A fé não é
negação, e, sim, um estar tomado. Ela não vive da negação, mas da
afirmação. Por estar voltada para a palavra, a fé não fica sendo tabula
rasa. Por outro lado, a palavra isola a fé de toda experiência objetiva A
palavra entra em oposição a todas as realidades que nos cercam. Preci­
samente por estar cheia de conteúdo é que a fé nega outros conteúdos.
O fato de a palavra determinar o conteúdo da fé toma questionável para
nós a contraposição acima, de “fé em oposição á experiência" e “fé como
experiência”. Algo parece incorreto nessa contraposição. No problema de
fé e palavra se nos esclarece a direção que deverá tomar nossa investi­
gação.

b) Mas antes de enveredarmos por este caminho, demorar-nos-


emos por um momento na segunda determinação de conteúdo da fé: fé e
Cristo são inseparáveis. Lutero não pode falar da fé sem pensar a Cristo.
Assim como Lutero não consegue conceber a idéia de Deus sem Cristo,
ele tampouco conhece uma fé cujo conteúdo não esteja determinado por

112 Para tanto mais algumas abonações: XVll,2,202,2ss. Com a mesma clareza deparamos com
a idéia da exclusividade da palavra em relação a todos os objetos externos na preleção sobre
Gênese, p. ex., XUII,395,13ss. O retomo à palavra significa nada menos que “ ser reduzido
ao nada” (WA XLIV,270,10ss.). E até que ponto a fé na palavra da promessa congrui com
aquilo que chamamos de esperança, mostra novamente Abraão, “ modelo da fé” (WA
XLII,463,12ss.).

99
SEMINÁRIO CONCORDlA
Cristo.113 Cristo é base e conteúdo da fé.114 É preciso dizer ambas as coi­
sas: "através de Cristo” "através da fé". Não se pode separar uma coisa
da outra (LVI,298,21 ss.; 299,17ss.). Portanto não podemos apresentar-nos
a Deus "exclusivamente pela fé". Antes a fé principia por Cristo (VI
216,26ss.). A consumação final dessas idéias acha-se no grande comen­
tário a Gálatas. Ali se descreve em três graus a relação entre fé e Cristo:

1. Cristo é o único objeto da fé. A fé pode, é verdade, dirigir-se a


outras coisas; mas acontece que nelas ou ela se refere a Cristo, ou não
está “em sua função própria" (XL,1,164,7). Pois somente em Cristo é que
há consolo para a consciência atribulada (XL,1,164,10ss.). Daí a eminente
importância do “por causa do Cristo" (XL,1,576,1ss.). Esse “por causa de
Cristo” constitui o fundamento de nossa filiação divina. E esta é também
a única fonte da certeza para a pessoa uma vez aceita por Deus
(11,497,15ss.; XL,1,408,2s.,15s.). E tem inclusive significação epistemoló-
gica. Não é possível separar fé e Cristo (XL,1,233,2ss.,16ss.).

2. A significação do “por causa de Cristo” para a fé recomenda


formular com maior precisão a relação entre Cristo e fé. Cristo não só é o
principal objeto da fé, mas também o fundamento que a possibilita. Só is­
to já indica tratar-se de mais que mera relação de objeto. Cristo é tam­
bém a enteléquia da fé. Cristo está para a fé como a forma está para a
matéria. A matéria alcança sua determinação somente pela forma, a fé
tem seu alvo em Cristo (XL,1,228,30115; XL,1,229,9). Sem Cristo a fé não
pode tomar-se aquilo que ela deve ser, para o qual ela está destinada.
Por isso Cristo e fé estão intrinsecamente ligados.

113 Cf. IHMELS, Das Dogma in der Predigt Luthers, e id., Das Christentum Luthers in seiner Ei-
genart, p. 32s.
114 “ Por meio do qual temos acesso pela fé. O apóstolo junta de modo mais proveitoso as duas
expressões 'por meio de Cristo' e 'pela fé', como também fez anteriormente na frase: ‘justifi­
cados pela fé por meio de nosso Senhor1. Esta colocação se volta em primeiro lugar contra os
presunçosos que crêem terem acesso a Deus sem Cristo, como se lhes bastasse terem crido
somente pela fé, nSo por meio de Cristo, mas ao lado de Cristo, como se depois nâo neces­
sitassem de Cristo, uma vez recebida a graça da justificação.” (LVI,298,21 ss.) “ Assim, ao
pôr-se o sol, desaparecem seu brilho e luz. Aquele, pois, que é sábio não tem a luz em tão
alta conta que já não precisa mais do sol, e, sim, deseja ter o sol e a luz ao mesmo tempo.
Aqueles que chegam [a Deus] pela fé e não também simultaneamente por meio de Cristo, na
verdade retrocedem." (LVI,299,13ss.)
Em segundo lugar [esta colocação se volta] contra aqueles que, demasiadamente seguros,
andam por meio de Cristo e não pela fé, como se devessem ser salvos por Cristo de tal modo
que eles nada precisam fazer, que nada precisam mostrar por meio da fé. Estes têm uma fé
exagerada, ou, na verdade, nenhuma. Por isso é preciso que as duas coisas aconteçam:
'pela fé', ‘por meio de Cristo’." (LVI,299,17ss.)
115 Cf., porém, quanto a isso SEEBERG, Dogmengeschichte IV,1, p. 241, n. 1, n. 19

100
3. Lutero ainda vai mais longe. A ligação entre fé e Cristo é tão ín­
tim a que, para descrevê-la, não basta nem o modelo sujeito-objeto, nem
a relação teleológica de matéria e forma.116 Antes, com a fé está coloca­
da a presença do próprio Cristo. “Cristo (é )... objeto da fé, ou melhor,
não objeto, e, sim, por assim dizer, na própria fé está presente Cristo.”
(XL,1,228,34ss.) Embora isto não afirme a identidade de Cristo e fé, ex­
prime da forma mais radical a sua ligação intrínseca. (Cf. XL,1,546,3ss.)
Nenhuma fórmula que exprima a relação de duas grandezas contrapostas
será suficiente aqui.
Trata-se, portanto, de um habitar de Cristo no crente. Lutero o
descreve em imagens que melhor poderemos s in te tiz a r com a expres­
são "união com Cristo”. Cristo e o crente unem-se numa só pessoa.117
Trata-se, porém, de unidade na d ife re n ça “uma coisa" - unum, e não
“uma pessoa” - unus). Nessa união não fica anulado o eu do crente. O
que ocorre não é uma unificação mística entre Cristo e a alma. Sem dú­
vida, “não é o próprio justo quem vive, mas Cristo nele”. Mas em que
sentido? "Porque pela fé Cristo nele mora e (lhe) insufla a graça, através
da qual ocorre que a pessoa é regida não pelo seu (próprio) espírito, mas
pelo de Cristo.” (11,502,12ss.) Já aqui se nos apresenta a pergunta se a
união é algo que transcende a relação de fé e Cristo, ou se apenas se
trata de uma segunda descrição da mesma relação. Deixá-la-emos de la­
do, por enquanto, e continuaremos descrevendo o material. Pela fé tor­
namo-nos “como que uma pessoa” com Cristo (XL,1,285,5; cf. XL,1,
443,23ss.), temos “tudo em comum” com ele (II, 504,6ss.; cf. 1,364,23ss.;
539,19ss.). Lutero descreve essa “união com Cristo" em imagens que ele
conhecia de Paulo e, mais uma vez, da mística.
1. Crer significa vestir a Cristo (ll,535,24s.; 592,30ss.;
XL,1,540,2ss.).
2. Lutero utiliza a figura do corpo com seus membros
(11,531,11;XL,1,282,21 ss.).
3. A figura que encontramos com maior frequência, porém, é a do
matrimônio. Aqui se toma particularmente candente, mais uma vez, a
questão: será que com o conceito da união Lutero não estaria abando­

116 Também a relação causal é considerada Insuficiente (veja 1,219.30ss.).


1 1 7 “ ‘ Eu', como pessoa distante de Cristo, pertenço à morte e ao inferno. Por isso diz; ‘Já não vi­
vo eu, mas Cristo vive em mim.' Ele é minha forma, adornando minha fé como a cor ou a luz
adornam a parede. De modo tão crasso deve ser exposto este assunto. Pois não podemos
compreender espiritualmente que Cristo está apegado e permanece em nós tão proxima­
mente e de modo tão íntimo como a luz ou a caiação adere à parede. Portanto diz: Assim
Cristo está apegado e aglutinado a mim e permanece em mim; a vida que eu vivo é o próprio
Cristo. Por isso, neste ponto, Cristo e eu já somos uma só coisa.” (XL,1,283,24ss.)

101
nando sua teologia da fé? Tem porariam ente Lutero de fato movimen­
tou-se nos pensamentos da mística da noiva (Cantares!), conforme ve­
mos por exemplo numa passagem de sua preleção sobre Romanos
(LVI,379,1ss.). Pelo menos Lutero mantém em grande parte as suas ima­
gens, como nas conhecidas passagens de "A Liberdade Cristã” (cf.
Vll,25,26ss.; 25,26ss.; 25,37ss.;26,6ss.). Em deliciosa apresentação reen­
contramo-las no grande comentário a Gálatas (XL,1,241,1ss., 12ss.; cf.
também XL, 1,214,2,14ss.). Mas naturalmente também essa imagem se
revela insuficiente para a “insólita e inaudita frase” utilizada por Paulo em
Gl 2.20. Isto porque o vínculo entre Cristo e a fé liga muito mais intima­
mente que o vínculo matrimonial (XL,1,285,12ss.; 286,6s.). Essa descrição
suscita em nós duas perguntas:
1. Será que a idéia da união não vai além da relação “fé e Cris­
to”?
2. Como é que a determinação de conteúdo da fé por Cristo se
coaduna com a delimitação crítica do conceito de fé, feita acima?

A d 1. Realmente se pode falar de mística de Cristo em Lutero.118


Mas ainda é de se perguntar o que quer dizer esse termo. A “união” surge
pela fé. Nessa união jamais se pode ignorar a fé. A união não anula a di­
ferença entre as pessoas (“como que uma só pessoa”). Entre Cristo e o
crente ocorre uma “permuta feliz”. Tal coisa somente existe entre duas
pessoas distintas. Lutero sempre teve consciência da distância entre Cris­
to e nós. Não podemos mostrá-lo em detalhes aqui, mas podemos pres­
supor como conhecido que, diante do Cristo “dentro de nós”, Lutero nun­
ca esqueceu o Cristo "fora de nós”. A união com Cristo, portanto, de mo­
do algum é uma identidade estática, mas só é realizável no movimento
da fé. Se é que em algumas das frases acima citadas Lutero parece ter
ido mais longe, isto somente pode ser entendido no contexto como enfá­
tica expressão da ligação intrínseca entre fé e Cristo. A unidade com
Cristo sempre é o Cristo “fora de nós”.119 Portanto podemos dizer que
nos enunciados a respeito da “união com Cristo” recebe sua mais forte
expressão aquele um aspecto do conceito de fé que é a determinação do
seu conteúdo. "Cristo está presente na própria fé.” Não existe uma união

118 Veja HOLL, loc. c it, p. 81. n. 1. Para o fato de a doutrina de Lutero sobre a união com Cristo
ter orientação totalmente diversa do que a da ortodoxia, cf. KOEPP, Wurzel und Urspning der
orthodoxen Lehre der unio mystlca, p. 70, n. 2; p. 157e 164ss.
119 Esta fusão do Cristo, que se funde misticamente com o eu, com o Senhor da Escritura, com o
conteúdo essencial da palavra escriturfstica dada de forma supralógica é, de acordo com
HEIM, justamente o novo na concepção de Lutero [loc. cit., p. 240). No entanto, cf. também,
em oposição a Helm, SEEBERG, Dogmengeschichte IV, 1, p. 234, n. 3.

102
à parte da fé. “Cristo e fé precisam ser integralmente reunidos.” A idéia
da união não vai além da relação entre fé e Cristo, e sim forma seu clí­
max.120

A d 2. Quando da terminação de "fé e Palavra”, já vimos que a de­


terminação de conteúdo da fé de forma alguma está em oposição a sua
delimitação crítica. Antes esta se revelou justamente na determinação de
conteúdo. É de se esperar antecipadamente que aqui cheguemos a uma
conclusão semelhante. Também a pergunta “fé e Cristo” pode ser anali­
sada sob o aspecto duplo acima colocado. Podemos atribuí-la à “linha
experiencial” tão bem quanto considerá-la um caso específico da delim i­
tação crítica, e vice-versa. Pois a inter-relação de fé e escritura mostra
com clareza, por um lado, que a fé não é um salto no vazio. É possível
que tateie no escuro - e justamente aí encontre a Cristo. Ela abandona
toda experiência, e experimenta a Cristo. E Cristo é a posse segura des­
sa fé. Mas justamente - e este é o outro aspecto - abstraindo-se de to­
dos os demais objetos, chega a este objeto. Tanto quanto o inter-relacio-
namento de fé e Palavra, também o de Cristo e fé evidencia a exclusivi­
dade da fé. Com ela está dado o “escândalo” do cristianismo. Dele resul­
ta a rejeição da teologia natural. Pelo seu relacionamento com Cristo, o
cristianismo se delim ita nitidamente contra todas as demais religiões. Em
termos práticos: a fé está relacionada com Cristo, portanto, não com algo
que faz parte da experiência objetiva Na medida em que Cristo, como fa­
to histórico, está ao alcance da experiência objetiva, ele é objeto da “fé
histórica”. O que, porém, importa é a “fé especial”. É nela que Cristo está
presente, não na fé histórica. Estar relacionado com Cristo significa estar
desligado de toda experiência objetiva. Tudo o que foi necessário dizer
na primeira parte deste capítulo sobre a “fé cega” aplica-se também aqui.
O fato Cristo não é um “fato bruto”. Quando Lutero fala de Cristo, ele tem
em mente a cruz. A cruz, porém, é revelação na velação. A teologia da
cruz é o pano de fundo sob o qual deve ser vista a doutrina da "união
com Cristo”. A "união com Cristo" somente se realiza quando nós, de
nossa parte, “somos destruídos e deformados” (ll,548,28ss.).

120 Cf. GOTTSCHICK, Luthers Theologie, p. 82, b. Cf. igualmente WA I, 28,36ss.: “ Pois nem o
Verbo se fez carne de tal maneira que ele abandonou a si mesmo e se fez carne, mas assu­
miu a carne e a ela se uniu, uniSo pela qual não se diz tanto que ele tem carne, mas que é
carne. Assim também nós, que somos carne, igualmente não nos tornamos Verbo de tal ma­
neira que sejamos transformados na substância do Verbo, mas o assumimos e a ele nos uni­
mos pela fé, união pela qual não apenas se diz que temos o Verbo mas que também o so­
mos.”

103
O conceito de “fé e Cristo” constitui, portanto, em vista de nosso
problema, um paralelo exato ao conceito "fé e Palavra”. Em ambos esta­
mos lidando com uma plenitude de conteúdo da fé. Por esse motivo nós
a analisamos em conexão com a “linha experiencial” em Lutero. Mas em
ambos os conceitos também não foi abandonada a delimitação negativa
do conceito de fé, antes pelo contrário, ela está contida neles como sua
premissa. Isso não é uma construção de nossa parte, nem ainda um dis­
parate do qual Lutero não se tivesse apercebido. Isso o mostra a afama­
da definição de fé no grande comentário a Gálatas, onde encontramos
ambos os aspectos imediatamente121 um ao lado do outro. Por isso lhe
abrimos espaço no final dessa discussão:
Por esta razão a fé cristã não é uma qualidade ociosa ou uma vagem
vazia no coração que pode existir em pecado mortal, até que venha o amor
e a vivifique. Mas, se é fé verdadeira, então é certa confiança do coração e
um firme assentimento com o qual Cristo é apreendido de tal forma que
seja o objeto da fé, antes, não o objeto, mas por assim dizer, Cristo está
presente nesta fé. A fé, portanto é uma cognição como que entrevada, que
nada vê. Não obstante, o Cristo apreendido pela fé está sentado nestas
trevas, do mesmo modo como Deus estava sentado no Sinai e no templo,
no meio das trevas. (XL,1,228,31ss.)122

C. A unidade das duas determinações do conceito de fé

As duas determinações de conteúdo da fé, "fé e Palavra” e "fé e


Cristo”, não podem ser subordinadas de todo nem à delimitação negativa
nem à determinação positiva do conceito de fé, como vimos. Não é, po­
rém, só esta observação que sugere a pergunta se essas determinações
do fato se excluem. Também sem ela teria sido nosso dever verificar isso
ainda mais de perto. É impossível satisfazermo-nos com a constatação
de duas correntes de idéias opostas entre si. Temos que tentar ver a con­
vergência das duas contradições numa unidade superior. Não por amor a
tentativas harmonizadoras. Nem pensamos nisso. No entanto, seria fugir
do problema se quiséssemos satisfazer-nos com a colocação, lado a la­
do, de tese e antítese. Se até aqui apresentamos as duas determinações

121 Por isso essa passagem também deu o que fazer especialmente a Denifle. Veja HEIM, toe.
c it, p. 247.
122 Por causa do estilo melhor, reproduzimos aqui a passagem de acordo com a impressão de
1535. Há que se conferir o manuscrito de 1531. Quanto ao conteúdo, não existe diferença
essencial entre ambos.

104
opostas entre si isoladamente, isso foi feito unicamente na intenção de
elaborar com clareza as duas linhas. No entanto, de que forma se deve
conceber a unidade das duas linhas? Pode-se encontrar uma categoria
superior para as duas determinações do conceito de fé? Esta é a tarefa
que temos que atacar agora na terceira parte deste capítulo.

1. É uma observação surpreendentemente simples que aqui, por


ora, nos ajuda a prosseguir. Perguntamos: trata-se da mesma coisa em
ambos os casos, quando se fala em experiência? Na primeira parte ado­
tamos o termo experiência como coletivo para percepção experimental e
sensorial, portanto como soma da capacidade natural da pessoa de cap­
tar os fenômenos do mundo espiritual e sensorial. Este conceito de expe­
riência se encontra na mais aguda contradição com a fé. Pois a fé há que
ser delimitada contra toda capacidade natural, se é que se quer preser-
var-lhe sua peculiaridade. Neste sentido se justifica a contradição entre fé
e experiência. No segundo caso, porém, trata-se de uma experiência qua­
lificada pela fé, como já mostra a comparação de fé e experiência (cf.
LVI,246,14ss.). Na experiência assim compreendida impõe-se a fé. A ex­
periência não está ao lado da fé, mas é consequência dela (XLIII,
367,35ss.).1231
2
4Por isso sua medida depende da medida da fé. "Na medida
em que crês isso, nesta medida o tens.” (XL,1,444,14; cf. V,578,38.) A ex­
periência é órgão da fé e por isso decerto também toma o lugar da fé
(XLIV,429,24ss.). A vida da fé é vida experimentai (11,499,21).
Sem dúvida, a ênfase da experiência na fé se dirige contra a “fé
informe” escolástica. A experiência, portanto, nada mais é do que a indi­
cação incisiva para o elemento existencial da fé. Sendo, porém, a fé cer­
teza somente em atitude existencial, a experiência também designa o
elemento de certeza da fé em contradição às autoridades católicas, papa
e concílio.
Podemos, portanto, dizer Uma vez trata-se de experiência natural,
da outra, de experiência de fé.12* No entanto, a dificuldade consiste no

123 “ A esta fé segue, por si sé, o mais doce afeto do coração, pelo qual o espírito da pessoa é
dilatado e enriquecido (isto é caridade, presenteada peto Espírito Santo em Cristo), de sorte
que é puxado para dentro de Cristo, o tão grande e benigno testador, tomando-se outra pes­
soa e totalmente nova. Quem náo choraria de contentamento quando crê, com fé livre de dú­
vida, que tal inestimável promissão de Cristo lhe pertence?” (Vl,515,29ss.) “ Esta fé (para o
que Deus me queira ajudar!] é capaz de tudo, como diz Cristo; só ela subsiste; ela também
chega a ter a experiência de obras divinas e, por conseguinte, chega ao louvor e canto divi­
no, de sorte que 0 tem em alta estimação e o engrandece.” (Vll,554,6ss.)
124 Cf. IHMELS, Wahrhaftigkeitsgewissheit, p, 17ss. Muito corretamente p. 17: “ Naturalmente
Lutero está por demais despreocupado com toda a terminologia que tivesse ele mesmo
apontado esta diferença entre sentir e sentir, experimentar e experimentar, ou a tivesse prati­
cado de fato conseqüentemente."

105
seguinte: Não é “experiência de fé" uma "contradição em si”? Não é a fé
privada de seu caráter de fé, quando ela coloca uma experiência? Ou an­
tes, ao contrário: que espécie de experiência há que ser esta que combi­
na com a fé, que não transforma a fé em ver? Evidentemente tal expe­
riência tem que cumprir duas condições:

a) Ela tem que ser experiência real, constatável psicologicamente


no sujeito.
b) Mesmo assim, ela não pode ser isolada da fé por um momento
sequer, não pode colocar-se ao lado da fé como fator independente e
dominá-la em sua singularidade.125

Nossa pergunta afunilou-se, portanto, da seguinte forma: Partimos


da contraposição “fé e experiência” e “fé como reverso da experiência", e
procurávamos encontrar para isso uma unidade superior. Nisso constata­
mos que as duas fórmulas se baseiam em conceitos distintos de expe­
riência. Não devemos, porém, crer que com isso resolvemos o problema.
Apenas a dificuldade se deslocou para outro lugar. Ela não consiste no
fato de Lutero ora colocar a fé na mais aguda contradição com a expe­
riência, ora ver fê e experiência inter-relacionadas. A dificuldade consiste
n o singular conceito de experiência de fé. Pois desdobrando-se este con­
ceito em suas partes constituintes, resulta justamente aquela duplicidade
que primeiro nos revelou o problema em forma agudizada. Não haveria
problema nenhum se pudéssemos, simplesmente, operar com o conceito
"experiência religiosa”. Onde não se toma bem a sério a delimitação críti­
ca da fé, não se vê aqui nenhum problema.126 Nós, ao contrário, temos
que perguntar: Como é possível conceber uma experiência de fé apesar
da delimitação crítica do conceito de fé? Com isso estamos novamente
diante da pergunta por uma unidade superior de ambas as linhas, por
uma categoria que faz jus a ambos os aspectos do assunto.

125 Cf. WALTHER, Das Erbe der Reformatíon, cad. II, p. 91: “ Quando Lulero laia de 'certeza da
fé ', ele quer ver esta certeza distinta de todo o outro tipo de percepção conhecido. Na ex­
pressão ‘certeza da fé' tem que se, portanto, pér a ênfase na segunda parte e não na pri­
meira.”
126 Isso também se aplica a SEEBERG que no mais se ocupou com maior intensidade do que
muitos outros com o problema da experiência em Lutero. Cf. na p. 217 as abonações sobre o
uso do termo “ experiência” , e, aliás, todo o valioso capitulo sobre fé e experiência nas pp.
217ss. Seeberg enfatiza a distinção da experiência religiosa de toda empírica natural. Expe­
riência religiosa é "empírica sobrenatural" (p. 222). No entanto, ele não se ocupa em deta­
lhes com o problema que está encerrado nesta fórmula paradoxa. Este não se lhe toma cons­
ciente porque não dá o devido valor à delimitação critica do conceito de lê. Com a introdução
da idéia do Espfrito Santo cremos ir além da exposição de Seeberg.

106
2. O próprio Lutero diz em que sentido quer ser compreendido
quando fala de experiência (Vll,546,24ss., ver acima). A experiência é
chamada de escola do Espírito Santo. A experiência de fé é obra do Es­
pírito Santo. O Espírito Santo foi o mestre sempre que experimentamos
algo da bondade e do amor de Deus, sempre que alguma santa alegria
preencheu nosso coração.127 Com isso está expresso com clareza o cará­
ter sobrenatural desta experiência. Pois o significado do Espírito Santo
pode justamente ser considerado sob este aspecto: com o fato de alguma
coisa ser considerada obra do Espírito Santo, esta coisa é subtraída à ex­
periência puramente empírica (IX,189,32ss.). Por isso "razão” (mas tam­
bém “percepção sensorial”) e Espírito é uma contradição corrente. (Cf.
LVI,185,26ss.; 186,1ss.; XVIII,489,15ss.; XXXI,2,500,9ss.) Não a razão,
mas o Espírito ensina quem é o Deus verdadeiro (XIX,207,3ss.). A verda­
deira sabedoria vem de alhures, não de nós, também ela é um presente
do Espírito (LVI,158,10ss.). A mesma contradição existe entre o que nos
mostra a percepção sensorial e aquilo que vemos com os olhos do Espíri­
to (LVI,445,21ss.). Assim temos que compreender os enunciados da escri­
tura como ditos “no Espírito”, enquanto contradizem a experiência a todo
instante (V,30,16ss.; 42,27ss.; 178,29ss.). “No Espírito”, portanto, é igual a
“no abscôndito” (111,150,27ss.; V, 41,27ss.; 286,31 ss.; cf. tb. 58,38 e
63,28ss.). Reencontramos aqui todas as delimitações críticas que traça­
mos acima em relação ao conceito de fé.
Com isso, porém, não estaria claro até que ponto a idéia do Espíri­
to Santo se deveria revelar como a desejada categoria, à qual queremos
subordinar o conceito da experiência de fé. No entanto, como se sabe, o
Espírito Santo é o criador da nova vida. Isso decerto não precisa ser ex­
posto especialmente.128 A experiência de fé, porém, é uma parte da nova
vida. É a expressão da fé na realidade. E justamente isso é a nova vida,
como também Lutero a denomina ora de criação do Espírito Santo, ora
de consequência da fé. Na medida em que a experiência de fé faz parte
da nova vida, ela é obra do Espírito Santo. A nova vida, porém, é uma
realidade.

127 “ Assim eie (sc. Deus) náo se pode tomar conhecido de outra forma do que por suas obras
produzidas, sentidas e experimentadas em nós. Onde, porém, é experimentado que ele é um
Deus que vê nas profundezas e que só ajuda aos pobres, desprezados, miseráveis, lamentá­
veis, abandonados e aos que nada são, ali ele se torna tão cordialmente querido que o cora­
ção transborda de alegria, salta e pula por causa do grande agrado que recebeu em Deus. E
all está o Espírito Santo que num instante ensinou tal excessivo agrado e prazer pela expe­
riência.” (Vll,548,4ss.)
128 Veja R. OTTO, Die Anschauung vom heiligen Geist bei Luther, p. 25ss.

107
Destarte é o conceito do Espírito Santo que se revela como a ca­
tegoria procurada.129 Nele está colocada, por um lado, de forma rigorosa,
a delimitação crítica da experiência, e, por outro lado, expressa-se nele o
caráter de realidade da experiência de fé. Experiência de fé é experiência
no Espírito Santo. Isso quer dizer de forma alguma esta experiência pode
ser derivada empiricamente, e assim mesmo ela afirma ser experiência
real (XVIII,605,32ss.). Essa duplicidade singular é característica para toda
nova vida realizada pelo Espírito Santo. Sobre isso ainda se há que dizer
o necessário no próximo capítulo. Aqui nos restringiremos a tentar resu­
mir o resultado deste capítulo.
Partimos da pergunta se a teologia da cruz admite, de alguma
forma, falar de uma relação subjetiva da religião. Sendo a teologia da
cruz o não maiusculo a toda tentativa de ascender a Deus a partir das
coisas existentes por natureza, pode ela então alcançara formação de um
conceito de fé? Pois também a fé é uma função do sujeito religioso. Não
nos escapa a realidade da vida religiosa, da vida de fé, se a ação de
Deus sempre só acontece “sob aparência contrária”? Pode-se falar em fé
em vista do Deus abscôndito? Se a revelação só existe na velação, se a
"obra própria” só é realizável pela “obra alheia”, não tem que então tam­
bém a fé aparecer “sob aparência contrária”? No entanto, como seria isso
possível? Como fica a questão de sua realidade?
Para responder a esta pergunta foi necessário primeiro proceder a
uma profunda delimitação crítica do conceito de fé. Pois é da natureza da
teologia da cruz dizer, antes de mais nada, o que a fé não é. Por isso po-

129 Robert WINCKLER, Das Geistproblem, 1926, parece partir de um questionamento seme­
lhante ao existente aqui, ao denominar o Espírito a “ síntese” . Esta aparência, porém, não re­
siste a um exame minucioso. É verdade que também lá se trata da questão da experiência da
íé. No entanto, não é percebida suficientemente a dialética interna desse conceito. Esta não
deveria - como acontece ali (cf. p. 32) - ser confundida com o dilema entre historismo e psi-
cologismo. Porém não podemos aceitar a fórmula: o Espírito é a síntese entre divino e huma­
no (p. 7). Porque, em primeiro lugar, se confunde com isso o caráter de acontecimento da
comunicação do Espírito Santo. No fundo o Espírito outra coisa não é do que consciência re­
ligiosa. O fato de não se poder tratar em Lutero de uma síntese estática, não chega a ser ex­
presso (p. 9s.). Em segundo lugar: sob síntese compreende-se a unidade superior de duas
grandezas antitéticas. De acordo com isso, o Espírito seria a unidade superior entre Deus e a
pessoa humana. Isso, no entanto, não é, de fornia alguma, o sentido da passagem do Cate­
cismo Maior, abundantemente citada por Wincklen “ Deus e a fé forniam um conjunto." Entre
Deus e a pessoa humana não se trata de uma síntese pela qual um Paulo, por exemplo, pode
“ conjugar” o divino e o humano (p. 7), muito antes: Deus dirige-se à pessoa e com isso cria
comunhão. O fato de a pessoa perceber esta interlocução de Deus é obra do Espírito Santo.
Com isso, porém, o Espírito Santo é algo essencialmente diferente do que uma chave de
união entre divino e humano (p. 7). “ A maré alia mística dos dias passados mais recentes"
justamente não se relaciona “ com uma ênfase exagerada da pneumatologia", como pensa
Winckler (p. 6), mas com seu desconhecimento. O fato de Winckler não ter enxergado isso
nos fornece a melhor indicação para a crítica de suas teses.

108
der-se-ia chamar a teologia da cruz, com alguma razão, de "teologia ne­
gativa”. Se é que o conceito de fé deverá ter um espaço na teologia da
cruz, há que se ouvir, antes de mais nada, a negação encerrada na pala­
vra fé. Vimos, e o reiteramos aqui expressamente, que este conceito de
fé não se encontra apenas na fase pré-reformatória da teologia de Lutero;
pelo contrário, tais negações continuam em vigor até os mais tardios es­
critos de Lutero. No entanto, tivemos que colocar ao lado dessa determi­
nação negativa do conceito de fé uma determinação positiva. Fé se ex­
pressa na experiência, fé surge pela experiência. Vimos que nisto conse­
gue expressar-se o elemento existencial da fé contra um conceito de fé
mal-entendido no sentido intelectualista.
Perguntávamos peia relação entre determinação negativa e positi­
va do conceito de fé. Encontramos a idéia do Espírito Santo como cate­
goria superior. Nela as ênfases se equivalem: a delimitação contra toda
causalidade empírica e, ao mesmo tempo, a reivindicação de realidade
da experiência de fé.
Disso, porém, resulta que, de forma alguma, a assim chamada li­
nha experiencial dentro da teologia da cruz tem que agir como um explo­
sivo. Pois sempre se tem em mente “experiência no Espírito”.130 A expe­
riência, o “doce afeto” não é sentimentos religiosos no mais alto grau da
autoconsciência humana, mas efeitos da graça do Espírito Santo. Isso
são duas coisas distintas. O “de alhures” em oposição à realidade exis­
tente é o que se quer expressar quando se denomina algo de efeito do
Espírito Santo. O conceito do Espírito Santo é o protesto alto contra uma
dedução psicológica da fé. Pode-se discutir a forma deste protesto131, não

130 Isto, a meu ver, também T. BOHLIN não o considerou suficientemente quando opõe a linha
paradoxal e a linha experiencial, por mais frutífera que se evidencia esta formulação para
compreender a Lutero e Kierkegaard.
131 Cf. FL OTTO, Die Anschauung vom heiligen Geist bei Luther. A tendência deste escrito é
mostrar que em Lutero, no que diz respeito a seu pensamento sobre o Espírito Santo, corre
paralelamente à linha tradicionalista (Espírito como fator empírico agregado no processo sal-
vffico), ainda outra linha, segundo a qual o processo salvfftco se revela como uma corrente
coesa de causa e motivação (em vez de Espírito: fé e palavra) e que esta segunda linha con­
tém a contribuição genuína de Lutero para o problema do Espírito. Nisso estão corretas duas
coisas.
1. De fato, o Espírito não pode ser enquadrado simplesmente como causa supra-empfrica no
nexo causal, como aconteceu, por exemplo, com a doutrina do “ testemunho do Espírito
Santo" na doutrina sobre as Escrituras na ortodoxia. Mas isso ambém não é o sentido ori­
ginal da linha tradicionalista.
2. A idéia que se faz do Espírito Santo está fortemente carregada de traços mitológicos. De
fato, Lutero não está interessado em especulações trinitárias,
No entanto, há que se fazer restrições à exposição de Otto. É verdade que, em última análi­
se, é insustentável a antítese "sobrenatural-natural", “ extramundano-intramundano” . No
entanto, não é mau costume de radocfcio quando não nos satisfazemos com o nexo causal

109
se deveria, porém, preterir a preocupação real do assunto. Onde quer que
se conta seriamente com o Espírito Santo na teologia, estamos tratando
da teologia da cruz, não da teologia da glória.

cujos elos, “ preenchendo completamente o espaço” , segundo Otto, tomam o lugar do Espf-
rito Santo, eliminando-o como causa suprapsícológica da nova vida (p. 95). A delimitação
desse processo em relação a todos os demais processos é assim prejudicada. Sem dúvida,
todo acontecimento é agir de Deus; acontecimento e milagre não são valores opostos exclu-
dentes. A revelação, porém, não deve tornar-se um caso especial da providência. Somos re­
cordados de forma dolorosa de Schleiermacher, ao lermos em OTTO, p. 40, que os efeitos
do Espírito, que são igualados com os efeitos da fé, “ são apenas estados do coração crente".
A pneumatologia quer justamente ser uma garantia contra a psicologização. Em sua forma
quiçás insuficiente ela, assim mesmo, fixa-se no problema que surge com a pergunta “ fé e
palavra". Como se dá a interlocução? Esta pergunta não pode ser respondida psicologica­
mente. Acentuar isso de forma mais enérgica é o sentido da doutrina do Espfrito Santo. É
claro que ela não é uma solução logicamente compreensível; do ponto de vista lógico, sem­
pre há que parecer um compromisso entre o enfoque empírico e o "religioso” (no sentido de
Otto, respectivamente de Schleiermacher). Não está, porém, na essência do assunto o fato
de “ a conta não fechar” ? Justamente para isso pode apontar a duvidosa forma da doutrina do
Espírito Santo. Ao menos Otto não me parece ter escapado do perigo da psicologização, pe­
rigo que se corre quando se quer contestar esta, sem dúvida, discutível forma de tal doutrina.

110
PARTE III

A VIDA SOB A CRUZ

Desdobramos o programa da teologia da cruz na exposição do


conceito do Deus abscôndito e do conceito de fé. Ambos correspondem-
se. Procuramos entender o conceito do Deus abscôndito como uma idéia
de fé positiva. Isso nos conduziu, ao natural, a uma análise do conceito
de fé. No entanto, não estaria completa nossa teologia da cruz de Lutero
se quiséssemos satisfazer-nos com isso. Poder-se-ia objetar que a teolo­
gia se revela alheia à vida. Se ela desconfia de princípio de toda psicolo-
gização da religião, não perde ela com isso a relação concreta com a vi­
da? Onde afinal poderá intervir no dia-a-dia da vida quando ordena des­
viar o olhar de tudo que é visível? Tendo em vista seu acentuado caráter
escatológico, pode ela ainda desenvolver uma ética? Não se trata na teo­
logia da cruz de uma teologia monástica que ainda não sentiu os ventos
ásperos da realidade? Não se restringem as idéias do Deus abscôndito e
da fé cega a uma teoria sobre a qual se pode, é verdade, falar com pro­
fundidade, mas pela qual é impossível viver?
Pensar assim significaria desconhecer de modo radical a natureza
da teologia da cruz. Pois justamente ela é “ciência prática” no sentido
máximo. Ela se distingue da teologia da glória exatamente pelo fato de
arrancar a pessoa de seu comportamento contemplativo, empurrando-a
para dentro da decisão da fé. Pois outra coisa não visa a luta de Lutero
pelo Deus abscôndito contra Erasmo, outra coisa não visa sua defesa do
escândalo contra todas as injustificadas reivindicações de hegemonia da
razão, outra coisa não visa sua tese da fé cega, repetida até cansar. E
quando Lutero enfatiza a experiência, o objetivo é o mesmo. Pois a expe­
riência dá expressão ao elemento existencial da fé, como vimos. O termo
“existencial”, usado e abusado até o extremo na atualidade, nos fornece
a chave para o que ainda nos deverá ocupar agora. A doutrina da cruz
que determinou decisivamente o conceito de Deus e de fé, só é compre­
endida numa vida sob a cruz. Já mostramos acima o sentido duplo de
“cruz”. A cruz de Cristo e a cruz do cristão formam uma unidade. O senti­
do da cruz não se revela ao pensar contemplativo, mas apenas à expe­
riência sofredora. O teólogo da cruz não está posicionado como especta­

111
dor em relação à cruz de Cristo, mas ele próprio é envolvido neste acon­
tecimento. Ele sabe que Deus só pode ser encontrado na cruz e no so­
frimento (l,262,28s.). Por isso não foge do sofrimento, a exemplo do teó­
logo da glória, mas considera-o como as sagradas relíquias que devem
ser abraçadas devotamente. Pois o próprio Deus “está oculto nos sofri­
mentos" e quer ser venerado por nós como tal. Quando temos os cami­
nhos de Deus de forma por demais visíveis diante de nós, não há neces­
sidade de fé, não se chega a crer. Por isso a fé tem relação mais íntima
com o sofrimento do que com as obras. Se tomarmos a sério o conceito
de Deus e o conceito de fé da teologia da cruz, surge para nós a exigên­
cia de uma teologia da cruz.
E Lutero tomou isso a sério ao pé da letra! Nunca devemos es­
quecer o seguinte: Não se pode eliminar a teologia da cruz de Lutero co­
mo o produto cismático de um monge solitário, mas ela se lhe comprovou
quando saiu para uma luta inaudita até então. Lutero praticava esta teo­
logia em face da morte. Aqui cada frase é regada com sangue derramado
no coração. Se é que isso acontece em alguma parte, então é na teologia
da cruz de Lutero que doutrina e vida harmonizam.
Antes de entrarmos na exposição dos detalhes, queremos anteci­
par duas coisas:
1. Neste capítulo não pretendemos mostrar algo como uma ética
de Lutero. Por isso, tampouco quanto no exposto acima, pode tratar-se de
uma dogmática completa. Compreendemos a teologia da cruz como um
fator determinante de toda a teologia de Lutero: e queremos descrever
justamente os traços de sua teologia que explicitam este fator, nada
mais. Portanto, neste capítulo renunciamos conscientemente a um qua­
dro global. Neste caso, é evidente, não faz sentido polemizar contra nos­
sa apresentação com a lembrança de que Lutero também disse “outra
coisa”. Cremos estarmos conscientes dessa evidência: o que nos interes­
sa é trazer à luz pensamentos de Lutero até agora menos considerados,
pensamentos esses que evidenciam justamente o mencionado fator de­
terminante.

2. Já foi denominado como característica da teologia da cruz o fa­


to de nela vida e doutrina se diferenciarem mas não poderem ser separa­
das. Não devemos, pois, esperar encontrar pensamentos inteiramente
novos neste capítulo. Fosse esse o caso, isso não seria bom sinal para
nossa exposição anterior. Cá como lá temos que encontrar os mesmos
pensamentos básicos. Isso nos desobriga, por outro lado, de voltarmos a
referir aqui novamente por extenso todos os detalhes desses pensamen­
tos básicos. Pelo contrário, queremos ser breves, o quanto possível, evitar

112
repetições. Todavia, não podemos evitá-las totalmente; isso faz parte da
natureza do assunto.

A. A abscondicidade do estado cristão

1. Deus é Deus abscôndito, a fé é "a evidência das coisas não


aparentes”, a vida do cristão é oculta. Estas três afirmações estão inti­
mamente correlacionadas. Uma segue da outra. A nós interessa aqui a
terceira Porque é o estado cristão um estado oculto? Simplissimamente
porque é um estado de fé. Como não se pode provar a fé de modo empí­
rico-psicológico, tampouco se pode provar o estado cristão. O que foi dito
sobre a delimitação crítica do conceito de fé aplica-se, de forma análoga,
também à vida cristã. A vida cristã jamais pode ser identificada comple­
tamente com a vida empírica que vivemos. A vida cristã é objeto da fé, e
como tal, oculta O que vemos jamais é o verdadeiro; este mais íntimo só
o vê Deus e a fé. Tão pouco como é possível revelação sem velação, tão
pouco pode o estado cristão abandonar seu incógnito. Nossa vida se as­
semelha ao tesouro oculto no campo (LVI,393,3ss.). Toda posição nela é
oculta sob a negação. Por meio desta abscondicidade visa-se preservar o
caráter de fé do estado cristão (l,543,25ss.; LVI,392,28ss.). Ela, porém, é
tão profunda que os próprios santos não têm consciência de sua vida
verdadeira. Nem suspeitam quão belos parecem aos olhos de Deus
(IX,191,3ss.;l,486,15ss.). Para afirmar isso, Lutero se baseia na palavra
sálm ica “O Senhor conhece o caminho dos justos." (SI 1.6.) O sentido
original desta palavra é: os justos levarão a recompensa de suas boas
obras. No entanto, assim ela não serve a Lutero. Por uma genial interpre­
tação inconsciente, porém, é capaz de encontrar expresso neste versículo
um dos mais profundos pensamentos de sua teologia da cruz. O Senhor
conhece o caminho dos justos, somente o Senhor; nem sequer aos pró­
prios justos ele é reconhecível, pois é o caminho da fé escura. Sentidos e
razão, no entanto, ficam presos à empírica.132 O ser cristão não é percep­
tível exteriormente como as diferenças de raça ou sexo (Vl,295,34ss.).
Não se deve pensar, porém, que tais pensamentos se encontram
apenas no Lutero jovem. Como Lutero nunca abandonou a idéia do Deus
abscôndito, tampouco deixou de lado a do estado cristão oculto. Aliás,

132 “ Por ser esta a sabedoria da cruz, somente Deus conhece o caminho dos justos; ele é, por
isso, abscôndito aos próprios justos; pois sua mSo direita os conduz de modo maravilhoso,
que fica sendo o caminho do não-sentido, da não-razão, mas somente da fé, que enxerga na
escuridão e as coisas invisfveis.” (WA l,45,30ss.)

113
uma coisa corresponde à outra, ambas estão unidas no conceito de fé
que Lutero tampouco abandonou jamais. Destarte encontramos este pen­
samento tanto no “Belo ConfiteminV de 1530 (XXXI,1,91,4ss.) quanto na
preleção sobre Isaías (XXXI,2,562,21ss.)133 As respectivas abonações da
preleção sobre Gênesis já oferecemos em outro contexto. Aqui basta
chamar a atenção para elas.134

2. Assim acontece que, em face do estado cristão, se tem que


falar de uma contradição entre percepção e realidade. A vida oculta do
cristão é realidade, mas não é percebida. A nova vida não é objeto de
experiência empírica, e com bastante frequência está em contradição a
ela (IV,476,26ss.). Pecado e justiça se relacionam no cristão como "reali­
dade” e "esperança”, sua justiça consiste na “imputação de Deus”
(l,148,35ss.). Realidade se depara com realidade (l,177,4ss.). Por isso não
se pode decidir a pergunta: Quem pertence aos ímpios? simplesmente
pela aparência. Esta decisão deveria ser tomada “no Espírito"
(V,44,31ss.;55,11ss.). A nós está oculto o juízo de Deus sobre as pessoas,
juízo ao qual unicamente compete realidade últim a (V,293,24ss.). E nós
não queremos antecipar-nos a este juízo com nossas assertivas.135 No
juízo de Deus está superada a contradição entre percepção e realidade
(V,359,19s.). Esse juízo de Deus, porém, somente é revelado à fé, não à
percepção direta (V,270,17ss.). Lutero pode também expressar-se assim:
isso é verdade em Cristo. Em Cristo irrompeu para dentro da realidade do
mundo a realidade de Deus. Ambas as realidades encontram-se em lití­
gio. A partir daqui deve-se compreender o conceito de justificação de Lu­
tero. O pecador é justo em Cristo.136 A realidade de Cristo é superior à
realidade do pecado (cf. o repetido “realidade verdadeira" - re vera). No
entanto, ela é realidade de fé, realidade oculta Neste ponto a doutrina da
justifícação de Lutero é uma aplicação concreta de sua teologia da cruz.

3. A vida oculta do cristão apresenta-se, destarte, como vida espi­


ritual. Com isso estão expressas ambas as coisas: sua realidade e sua
abscondicidade. Lembramos o que dissemos acima sobre o conceito de

133 “ O tesouro está oculto nesta vida externa. Pois a vida cristã externa é um saco e uma pele por
cujo aspecto aquele tesouro interno não pode ser julgado. Nossa vida externa é como uma
bolsa horrfvel na qual se encontra belo tesouro.” (WA XXXI,2,562,21ss.)
134 Cl. XLIV,378,3ss. (preste atenção para o "debet"); XLIII,392,16ss.; XLII,147,22ss. Somente a
esperança pode penetrar a escuridão da abscondicidade de nossa vida.
135 É nisto que Lutero vê o sentido da restrição em Gl 2.9:11,482,31 ss.
136 Cf. XL,1,440,31ss.; 445.19SS.; 445.32SS.; 537,22ss.; XL,2,20,12s.

114
Espírito Santo. Pois, se aqui falamos de uma vida espiritual, temos em
mente o Espírito Santo, e não o dualismo neoplatônico entre forças infe­
riores e superiores. Não se pode delim itar psicológica nem fisiologica-
mente Espírito e carne, mas eles são dois aspectos distintos da mesma
coisa (11,589,1 ss.). "De fato e no Espírito" os ímpios não pertencem ao cír­
culo dos crentes, por mais que possa parecer. Tanto quanto a realidade
de Cristo, também a do Espírito Santo é uma realidade oculta.’37 O ho­
mem espiritual está sepultado com Cristo, ele morreu para o mundo, o
mundo morreu para ele (LVI,324,4ss.). Em contrapartida, ele tem compre­
ensão para o que o mundo jamais é capaz de compreender a cruz é uti­
líssima somente aos espirituais (XXXI,2,445,23ss.). Pois com a espiritua­
lidade consumada também lhe pertence a perfeita sabedoria
(LVI,346,18ss.).

4. Visto, porém, que o homem espiritual sempre continua sendo o


homem empírico, que como tal é homem carnal, pode-se falar de uma
dupla vida do cristão. Justamente nisto expressa-se novamente a abs-
condicidade do estado cristão: ao lado do novo homem está o velho. Pois
se a pessoa fosse inequivocamente pessoa espiritual, não se poderia fa­
lar de abscondicidade. No entanto, como as coisas estão, o novo homem
está sempre oculto no velho. Também aqui vale o “sob aparência contrá­
ria”. Além de sua vida empírica, o cristão ainda vive outra vida. Essa du­
plicidade é expressa muitas vezes pela contraposição de velho e novo
homem1 3
7
138, ou pela contraposição de Espírito e carne139. Lutero quer ex­
pressar a mesma idéia ao adotar a distinção paulina do “homem exterior"
e “homem interior".140 Lutero, porém, expressa seu verdadeiro pensamen­
to quando chama a esta vida superior em nós de Cristo.141 Em uma pas­
sagem do grande comentário a Gálatas evidencia-se, uma vez mais, com
especial clareza, como a nova vida se encontra na abscondicidade. A
“santidade inerente” não basta. Não devemos ser chamados de santos
com base numa qualidade inerente. Pois com isso poderia acontecer com
demasiada facilidade uma confusão entre o velho e o novo homem. O
novo homem está oculto, uma qualidade psicológica evidente, porém, é
patente. O lugar da santidade inerente é tomado por Cristo. Cristo é a
nova vida (XL,1,197,25ss.; cf. 198,1s.).

137 A liberdade cristã que a nova vida traz consigo é um “ assunto espiritual muito grande que a
pessoa carnal não percebe” . (XL, 1,688,27.)
138 Cf. IV,295,14s.; 412,11ss.; I,208,17ss.
139 Cf. LVI.476,1-26; 298,12; XLIV,265,33ss.
140 Cf. 1.61,17ss.; Ill,617,34ss.
141 Cf. o capftulo sobre Fé e Cristo; veja, além disso, XL,1,48,1 ss.

115
5. Essa vida dúplice não pode ser definitiva. A tensão exige uma
distensão. A vida oculta há que vir à luz. Destarte reencontramos o cará­
ter escatológico da teologia da cruz. Tão bem como um dia acabará a
contradição entre o Deus abscôndito e o Deus revelado - a saber, quan­
do a fé passará ao ver - da mesma forma chegará o dia em que o estado
cristão se desembaraçará da abscondicidade, em que o velho homem su­
cumbirá, em que se poderá pronunciar sem reservas o "Cristo vive em
mim”. Aqui e agora, porém, nossa vida é vivida na condição de estrangei­
ros (11,535,32ss.). Pois nosso ser cristão nunca passa de um começo. Ele
é, para usar a conhecida expressão, bem mais “um tomar-se do que um
ser", e assim ele aponta para além de si mesmo.142 Também a oração ao
Pai revela que somos peregrinos e hóspedes na terra (ll,83,25ss.). Encon­
tramo-nos na "miséria” - isso Lutero no-lo inculca também na segunda
prece do Pai-nosso (11,95,33ss.). Nossa verdadeira pátria está no céu; aqui
tudo não passa de sombra das coisas futuras. Só lá ecoa o verdadeiro
louvor a Deus; se louvamos a Deus já aqui, nosso louvor está oculto com
nossa vida em Deus (V,252,30ss.). Portanto, Lutero externa aqui a exce­
lente idéia de que o milagre de orar e louvar na verdade rompe nossa
existência, e que aponta para uma forma de existência em que cairão as
barreiras que ora nos são traçadas. A oração é o ângulo incidente através
do qual a eternidade irrompe no tempo. Por enquanto, porém, encontra­
mo-nos ainda no estrangeiro. Somente no dia derradeiro terão um fim os
sofrimentos dos santos, poderá dominar o direito e a justiça. Por isso Lu­
tero entende SI 10.18 escatologicamente (V,352,20ss.). Uma olhada na
preleção sobre Gênesis revela uma vez mais que a idéia da condição de
estrangeiros não se encontra só no Lutero jovem. Lá a encontramos com
a mesma certeza que a idéia do Deus abscôndito. A história de Abraão
se constitui para Lutero na grande, poder-se-ia dizer, na clássica ilustra­
ção para a idéia da condição de estrangeiros. E nisso Abraão é pai de to­
dos nós (XL,102,37ss.). Todos nós somos estrangeiros e hóspedes; a má­
xima paulina "ter como se não tivéssemos” deveria ser a regra de nossa
conduta prática (XLIII,441,40ss.).143

142 Cf. Ill,37,31ss.; 47.2ss.; 27,14ss.; IV,238,12ss. Sem dúvida, aqui a doutrina da justificação
ainda é agostiniana, como acentuou especialmente Dickhoff; no entanto, o conceito escato­
lógico, que é o que nos interessa aqui, continua presente também no Lutero posterior.
143 Valeria a pena analisar, a partir daqui, uma vez mais a ética profissional de Luiero. Em todos
os casos, ela nSo é tão burguês-moderna como, às vezes, está sendo descrita. Também A.
HARNACK, Dogmengeschichte III, p. 831, acentua, em contraposição ao pensamento de A.
Ritschl, a orientação escatológíca da "ótica social” de Lutero.

116
6. O estado cristão como discípulado do sofrimento

Até aqui falamos em termos puramente formais sobre a abscondi-


cidade do estado cristão. Temos que verificar agora como se externa es­
sa abscondicidade erri termos de conteúdo. Lembremos a definição de fé
em "Da vontade cativa"\ Lá ouvimos que todos os objetos de fé devem
estar ocultos. “Pois não serão mais ocultos do que sob objeto, sentido,
aparência contrários.” (XVIIÍ,633,7ss.) Também o estado cristão há que
ser oculto sob um objeto contrário. Isso é, sua glória tem que apresentar-
se na baixeza, sua grandeza na ignomínia, sua alegria em sofrimento,
sua esperança no desespero, sua vida na morte. A abscondicidade do es­
tado cristão não se restringe a algo formal, mas se expressa praticamen­
te, com muita sensibilidade. Em termos concretos, a abscondicidade do
estado cristão é discípulado do sofrimento de Cristo. Sobre esses pen­
samentos de Lutero paira uma seriedade penosa. Se alguma vez se afir­
mou que Lutero faz exigências práticas menores à pessoa do que o cato­
licismo medieval, teria bastado uma olhada em sua teologia da cruz para
se convencer do contrário. A ascese mais radical e a mais sublime místi­
ca são valorizadas em sua intenção justa, depois de despojadas de suas
falsas tendências, e ainda são superadas na seriedade de seu emprego.
Inexorável em sua impetuosidade monótona soa a nossos ouvidos a teo­
logia da cruz de Lutero: “Quem quiser seguir-me a si mesmo se negue,
tome a sua cruz e siga-me!" A extraordinária exigência desta teologia
aclara-se aqui de forma imediata. Uma olhada na história da Reforma re­
vela que Lutero não fugiu dessa exigência
A grande abundância do material disponível nos obriga à brevida­
de, tanto mais quando, em princípio, se trata sempre do mesmo pensa­
mento.

1. Os cristãos têm que se tomar iguais a seu Mestre em tudo. Por


isso têm que assumir a ignomínia de Cristo. O estado cristão é um esta­
do de baixeza (XXXI,2,36,38ss; XLIII,672,27ss.; XLIV,109,38s.) tão certo
como Cristo viveu em estado de baixeza na terra (11,600,1 Oss.).144 Cristo
nos precedeu no caminho que rejeita toda grandeza humana
(XXX,2,412,25ss.). Neste discípulado nossa sorte será abandono, impo­
tência e desespero (l,198,20ss.; V,82,31ss.; XL,1,191,25s.). A glória do
cristão consiste unicamente nesta fraqueza e baixeza (11,613,31 ss.;

144 Por ter o monasticismo, pouco antes da Reforma, sido a categoria mais desprezada, Lutero o
pode recomendar a seus alunos que ouvem sua preleção sobre Romanos (LVI,497,27ss.).

117
V, 256,9ss.). Pois, não obstante tudo isso, a fé conhece um “apesar disso"
(V,53,31ss.).

2. O estado cristão é discipulado do sofrimento (V,177,15ss.). Sua


baixeza se revela no ato de levar ao sofrimento (V,108 38ss.). O sofrimen­
to de Cristo ainda se repete diariamente em nós (111,167,24ss.).14S Por isso
nossos sofrimentos são obra do Espírito Santo (V.639,20s.); Deus não
quer sofrimento de escolha própria (XVlll,489,15ss.). A vontade de Deus
pode acontecer quando a nossa não acontece (ll,106,26ss.). Nosso sofri­
mento, porém, é vontade de Deus. Quando nos manda ao sofrimento,
Deus realiza sua obra alheia. Nisso, porém, visa sua obra própria, mesmo
que não a reconheçamos (cf. XLIV,600,25ss.,35ss.). Devemos alcançar o
sábado da alma através do sofrimento (V!,248,1ss.).
Com isso já nos estamos ocupando com a pergunta pelo sentido e
objetivo desse sofrimento. E este outro não é do que desdobrar a fé e
tomá-la forte.146 Sem dúvida, Lutero conhece um sofrimento que é casti­
go do pecado (1,182,16ss.); no entanto é característico para a teologia da
cruz justamente a inter-relação de sofrimento e fé (V,137,36ss.; 382,9ss.;
VI, 208,6ss.). O sofrimento revela-se como o caminho mais seguro para
Deus,147 ou antes, no sofrimento Deus vem a nosso encontro
(Vl,223,15ss.; XXXI,2,386,32ss.). Por isso o sofrimento deve ser conside­
rado um santuário que santifica a pessoa, ou seja, separa a pessoa de
suas obras naturais para o serviço de Deus (Vl,248,16ss.). Os sofrimentos
são sinal da graça de Deus, prova de nossa filiação divina.148 Pois os
olhos de Deus estão voltados sempre para as profundezas, nada de
grande pode subsistir perante eles; quando, porém, uma pessoa está
oculta nessas profundezas, experimentará o maravilhoso, salvífico poder
criador de Deus.149 È verdade que o sofrimento dos santos só acaba com

145 Parece-me duvidoso dever atribuir esse pensamento às influências residuais do conceito
católico da missa (como acha KATTENBUSCH, toe. c it, p. 190, n. 17).
146 “ Porque quem tem a fé, tem igualmente todas estas coisas, mas de forma abscóndita; pela
tribulação, porém, elas são exercitadas até chegarem ao auge.” (LVI,50,16ss.)” 'Pois sé a
vexação (Is 28.19) dá compreensão ao ouvido’, ou seja, a palavra de Deus se toma inteligível
aos insensatos quando foram bem atormentados por sofrimento. A cruz de Cristo é a única
erudição das palavras de Deus, a mais sincera teologia." (V,216,38ss.) Veja, além disso,
V,531,27ss.
147 Pois Deus pode fazer uso de nós somente quando fomos totalmente aniquilados. Cl.
!,183,39ss.; Il,92,37ss.; Ill,38,51ss.; Vl!,546,32ss.; 548,12ss.; XLII,254,5ss.; 437,7ss.
148 Cf. XUV,265,18ss.| 397,9ss. Quem sabe se com o sofrimento também não se terá tirado de
nós a graça de Deus? (Il,106,36ss.) Nos Dictata super Psalterium Lutero ainda pode contar
os sofrimentos entre as causas dos méritos, veja 111,126,21 ss.; mas cf. também Vl,208,23ss.
149 Cf. X ,1,1,69,15s.; Vll,547,8ss.; 548,4ss., 12ss.; XXXI,1,74,12ss.; 2,34,25ss.

118
o dia derradeiro (V,352,20ss.), seu sentido, porém, não é castigo e des­
truição, ao contrário do que acontece com o sofrimento dos ímpios, mas,
sim, graça e purificação (V,367,11ss.).

3. O discipulado do sofrimento, porém, nada mais é do que disci-


pulado da cruz. Porque em meio à vida de Cristo está erigida a cruz, a vi­
da do cristão é discipulado de sofrimento. A idéia de sofrimento da teolo­
gia da cruz não se baseia em premissas cosmológicas metafísicas, mas
se orienta num evento concreto. Ela nada tem a ver com a concepção
ascética metafísica do corpo. Ela, de forma alguma, resulta do pensa­
mento de que o corpo, como impedimento para a faculdade superior da
pessoa, deve ser destruído. Isso já o proíbe a idéia central da justificação.
O sofrimento jamais deve tomar-se “boa obra”. Mas também a teologia
da cruz como tal essencialmente nada tem a ver com essas idéias ascé­
ticas. Aqui o sofrimento é compreendido teologicamente e não antropolo-
gicamente, ou seja, não a partir de uma reflexão sobre a natureza huma­
na, mas a partir do evento revelador de Deus na História. O eminente
significado do conceito de sofrimento se explica do fato de esta revelação
de Deus na História se resumir na cruz.
A cruz de Cristo e a cruz do cristão formam uma unidade
(XXXl,2,165,1ss.; XL^2,171,23ss.). Com isso está excluído por si só toda
a a idéia de mérito da pessoa, que ela pudesse alcançar pelo sofrimen­
to (XXXI,2,153,29ss.). Ao carregarmos nossa cruz, não fazemos com isso
nada de especial, mas simplesmente demonstramos que estamos em
comunhão com Cristo (lll,646,20ss.; X,3,119,3ss.). E também nem todo
sofrimento pode reivindicar ser discipulado da cruz (X,3,115,15ss.). Que
significa isto: carregar a cruz de Cristo? "A cruz de Cristo outra coisa não
é do que abandonar tudo e agarrar-se somente a Cristo pela fé do cora­
ção, ou seja: abandonar tudo e crer - isso é carregar a cruz de Cristo.”
(1,101,19ss.)
Assim a cruz toma-se sinal da filiação divina (LVI,194,9ss.). Além
disso, porém, Lutero consegue ver o indício para a cruz de Cristo em toda
a criação (lll,646,39ss.); por que então a pessoa foge da cruz e quer sair
dessa inter-relação geral? Isso acontece porque não passamos da obra
alheia à obra própria; pois a princípio a obra alheia é a cruz (1,112,24ss.;
Ill,62,36ss.). A via da cruz significa ser reduzido a nada, mas justamente
nisto ela se revela como sendo o “caminho curto” (1,123,38ss.)- Como ter­
ceiro fator novo a via da cruz se antepõe à vida ativa e à vida contempla­
tiva equidistante da mística e da piedade por obras.

119
Por isso somos ensinados aqui a crer contra a esperança na esperan­
ça; esta sabedoria da cruz está hoje por demais oculta em mistério. Tam­
bém para o céu não há outro caminho do que esta cruz de Cristo. Por isso
é preciso precaver-se, para que a vida ativa com suas obras, e a vida
contemplativa com suas especulações não nos seduzam. Ambas são ex­
tremamente atrativas e tranqüilas, e por isso também perigosas, até que
sejam temperadas pela cruz e perturbadas pelas adversidades. A cruz, no
entanto, é de todas as coisas a mais segura. Bem-aventurado quem en­
tende. (V,84,39ss.)
De modo diferente, porém, não menos que a vida contemplativa, a
cruz é uma escola do conhecimento (V,216,38ss.). "A cruz põe todas as
coisas à prova.” (V, 179,31; cf. V,188,18ss.)
Assim, conforme a teologia da cruz, a vida do cristão nada mais é
do que “ser crucificado com Cristo”.150 A ortodoxia preservou este pen­
samento em sua piedade prática. No entanto, separou-a de sua relação
direta com a doutrina da obra de Cristo e a inseriu na doutrina da santifi­
cação. Seu interesse exclusivo era sublinhar que o sacrifício de Cristo era
absoiutamente suficiente. Foi por isso que isolou a doutrina da obra de
Cristo. Lutero sabia que o verdadeiro sentido do sofrimento de Cristo só
pode ser experimentado na vivência, no agir e no sofrimento.
A obra própria e natural do sofrimento de Cristo é tornar a pessoa igual
a ele, para que, como Cristo é torturado miseravelmente em corpo e alma
em nossos pecados, também nós devemos ser martirizados desta forma, a
seu exemplo, na consciência de nossos pecados (11,138,19ss.); não há
outro jeito: tens que assumir a mesma forma da figura e do sofrimento de
Cristo, quer aconteça aqui ou no inferno (ll,138,35ss.); o sofrimento de
Cristo não se faz com palavras ou aparência, mas com a vida e de fato.
(11,141,37s.)
Isso ele o disse justamente naquele escrito em que rejeitou, pela
primeira vez, com palavras contudentes, a devoção a Jesus dos conven­
tos, para a qual a contemplação do sofrimento de Cristo era um gozo es­
piritual - a saber, no “Sermão sobre a contemplação do sagrado sofri­
mento de Cristo”, de 1519. Portanto, não se poderá acusar Lutero de ca-
tolizante ao exigir o “ser concrucificado”. Existe do lado protestante uma
confiança falsa nas chagas de Cristo que seria considerada como verda­
deira veneração da cruz por Lutero tão pouco quanto o foi o dedicado cul­
to às relíquias da cruz por parte do catolicismo medieval.151 Pois não im­
porta que emolduremos em ouro e prata lascas da cruz, mas que carre­

150 Cf. 1,338,12SS.; IV,476,26ss.; V.445.37SS.


151 Cf. XLIII,617l 16ss.;33s.

120
guemos com alegria em nosso corpo os sinais do sofrimento de Cristo
(11,613,37ss.).152 Pois somente quando nos encontramos no sofrimento
tomamo-nos partícipes do benefício que a cruz de Cristo nos conquistou,
de acordo com a doutrina ortodoxa, o perdão (XXXI,2,153,8ss.).
“Ser crucificado com Cristo”, porém, realiza-se de dois modos: no
interior da pessoa pela “mortificação”, e de fora, pela inimizade do mun­
do.

a) "Os que pertencem a Cristo crucificam sua carne.” (Gl 5.24.)


Não é necessário expor uma vez mais qual a luz que cai sobre esta pala­
vra de Paulo a partir da teologia da cruz. Dever-se-ia repetir aqui o que
dissemos sobre a delimitação crítica da fé. Com a diferença de que tudo
isso deveria ser visto na dimensão prática. Como lá, vale também aqui:
“Importa que nós sejamos destruídos e deformados para que Cristo tome
forma e seja o único em nós.” (II,548,28s.)153 O batismo154 não está ape­
nas no começo da vida cristã, mas no ato do batismo temos o símbolo de
toda a vida cristã: um constante morrer e ressuscitar com Cristo (VI,
534,31 ss.).
Também a vida monástica se baseia na idéia da mortificação. No
entanto, já vimos acima como o conceito de Lutero a respeito do disci-
pulado de sofrimento se distingue de qualquer conceito ascético-dualista.
E o conceito monástico se enquadra aqui. O quanto Lutero não quer en­
tender a mortificação no sentido monacal, isso o revela uma frase da
preleção sobre Gênesis: “Verdadeiras mortificações são as que não acon­
tecem em lugar deserto, fora da sociedade humana, mas dentro da pró­
pria vida econômica e política.” (XLIII,214,3ss.) No entanto, a clara delim i­
tação entre automortificação monacal e o conceito luterano do morrer do
velho homem precisa ser traçada já com base na doutrina da justificação.
A mortificação não é obra meritória. Ela não é pré-requisito para a fé que
alcança a graça, mas, inversamente, pressupõe a fé. Assim argumentou
Lutero expressamente contra os entusiastas (XVIII,139,13ss.). Pois tam­
bém eles enfatizaram a idéia da “cruz”. Neste ponto eles se apoiam sim­
plesmente nos ombros de Lutero. No entanto, novamente retorceram es­

152 “ De que valerá se carregares até em ouro ou esmeraldas não só as insfgnias, mas os pró­
prios cravos, sim, as próprias chagas e o sangue de Cristo, e jamais expressares a imagem
viva em teu corpo?" (11,615,35ss.) Cf. LVI.301,11ss.; BR l,37,15ss.; L,642,22ss.; veja, além
disso, o sermão do “ dia do encontro da còjz” (03/05/1522), X,3,113ss.
153 Cf. Ill,437,29ss.; V,507,7ss.; 211.36SS.; XLIV,265,33ss.
154 Sobre este significado do batismo em Lutero cf. agora Cari STANGE, D er Todesgedanke irt
Luthers Tauflehre.

121
sa idéia para sua forma medieval; entre eles1551
5
6a cruz é de novo enqua­
drada sob o conceito “obra da pessoa”. Eles buscam a cruz, Lutero se
encontra sob a cmz. Eles se gloriam de sua cruz, Lutero se gloria da gra­
ça de Deus (XVIII165,24ss.). De forma alguma deve-se entender o concei­
to de cruz em Lutero legalisticamente. A teologia da cruz se encontra na
mais aguda oposição a qualquer moralismo (11,597,1233.).

b) De acordo com Lutero, ser crucificado com Cristo revela-se ain­


da no fato de um verdadeiro cristão ter que atrair necessariamente sobre
si a inimizade do mundo (X,1,l,40,19ss.). A inimizade do mundo é sinal
para a autenticidade do discipulado (1,214,1ss.). Pois o próprio evangelho
é um escândalo para o mundo; em toda parte ele provoca discórdia e luta
(XVHI,626,22ss,). Por isso, como defensores desse evangelho, os cristãos
são considerados “como ovelhas de corte” (Vl,226,3ss.). Lutero conta com
toda seriedade com o martírio como adicional nada surpreendente do es­
tado cristão. Nisso até lhe parece residir uma diferença significativa entre
o Antigo e o Novo Testamento: na antiga aliança, Deus apenas levava
seu povo a perigo de vida, enquanto na nova aliança o entrega à própria
morte (V,276,1ss.). Pois os cristãos se encontram altamente envolvidos
na luta entre Deus e o diabo; isso é luta de vida e morte
(XL,2,174,24ss.).,S6 Sabendo, porém, sob que bandeira lutam, sofrem se­
gundo a carne, é verdade, mas gloriam-se no Espírito (XL,1,680,10ss.).

4. Neste contexto tem seu lugar a idéia da conformidade com


Cristo. Pelo fato de sofrermos com Cristo, nos tomamos conformes com
ele. A exemplo de Cristo, “despimo-nos da forma de Deus" e vestimos “a
forma de servo” (LVI,171,16ss.). Renunciamos a todo orgulho, fama e
honra diante do mundo e de nós mesmos, e nos deixamos envolver no

155 Excelo MGnzer, veja HOLL, p. 433 e 435.


156 Observação sobre o significado da morte em Lutero:
Sem querer oferecer aqui uma completa teologia da morte, permita-se me dizer o seguinte
sobre o significado da morte em Lutero; quanto vejo, o ponto de vista de Lutero pode ser re­
sumido em quatro pensamentos:
1. A morte evidencia inexoravelmente à pessoa humana que vida é decisão existencial
(X.3.1, Iss.). Escatologia conduz à ética.
2. A morte ó sinal da ira de Deus. Lutero não se satisfaz com uma avaliação biológica da
morte, ele avança para uma avaliação teológica. Sem dúvida, toda criatura tem que mor­
rer, mas Isso acontece "sob o aplauso e o riso de Deus” (XL,3,536,15). No entanto, a
morte da pessoa humana é o salário do pecado (/f>.). Por isso não se pode vencer a morte
por melo de desprezo (XL,3,485,22), pois na agonia da morte lutamos com o próprio Deus
irado (XL,3,544,29s.). O cristão tem consciência da ira de Deus. Por isso morre com maior
dificuldade do que outras pessoas.

122
sofrimento de Cristo (l,216,28ss.; IV,645,15ss.). Aqui não há mística; e o
que é dito ao menos não nos leva para além do que constatamos acima
na questão “fé e Cristo”. Tornar-nos conformes com Cristo outra coisa
não significa do que experimentar o fato da cruz também em nossa vida.
Somos pessoas conformes com Cristo quando a cruz não permanece
apenas um fato histórico, mas quando ela está erigida em meio à nossa
vida (11,138,19ss.). Todos temos que tomar-nos conformes com Cristo, se
não for nesta vida, então será no inferno (ll,138,35ss.). Isso naturalmente
não depende de nós. Também não podemos forçar o “ser conformado
com Cristo” nem mesmo com os esforços mais bem intencionados de
nossa parte; ele é presente de Deus, não obra nossa.157 No entanto, po­
demos e devemos pedi-lo a Deus (ll,138,35ss.). Pois Deus quer que nos
tomemos iguais à imagem de seu Filho em todas as coisas (1,571,34ss.),
e isso em total espontaneidade (11,645,21 ss.).
Em seu clímax, a vida sob a cruz se apresenta como “conformida­
de com Cristo”. Neste pensamento temos diante de nós o paralelo exato
ao que dissemos quando da exposição do conceito de fé sob a pergunta
“fé e Cristo”. Da mesma forma como o conceito de fé de acordo com sua
determinação negativa e positiva encontra seu clímax na relação para
com Cristo, assim o conceito do estado cristão culmina na idéia da con­
formidade com Cristo segundo seu aspecto negativo e seu aspecto posi­
tivo. Neste pensamento se resume tanto a abscondicidade e baixeza
quanto a máxima glória e a mais profunda riqueza do estado cristão.

3. Cristo venceu a morte (XL,1,48,23ss.; 65,11ss.). Por esse motivo o cristão pode morrer
tranquilamente (V,122,27ss.); d ., além disso, o "Sermão sobre a preparação para a mor­
te” (II.680SS.). Para ele a morte é a entrada para a vida (obra alheia!). Isso, porém, não é
uma verdade estática (como para Fecher), mas é verdade sempre sé como ato da fé que
arrisca o salto no escuro (XIX,217,12ss). A afirmação de que a morte é novo nascimento
não resulta para Lútero da autoconvicção do espírito. O Deus irado está por demais pre­
sente em sua mente. Esta afirmação sé vale em Cristo, somente a fé pode fazê-la. Pois
somente a realidade do ato reconciliador de Cristo pode anular a realidade da ira de Deus
(XLIII,218,40ss.).
4. Na medida em que a morte significa novo nascimento ela é o fim do velho homem. Com
isso a morte leva à consumação um processo que se realiza diariamente na vida do cris­
tão. A morte sela a mortificação (l,188,14ss.). Bem-aventurado, portanto, o que experi­
menta a morte já nesta vida (1,160,10ss.).
Encontramos, portanto, no pensamento sobre a morte idéias decisivas da teologia da
cruz; fé cega, obra alheia, momento existencial, mortificação, relação com Cristo. Por
causa dessas idéias fizemos questão de mencionar tal pensamento brevemente nesta
ocasião.
157 Por isso Lutero é multo cauteloso em relação à idéia da “ imitação de Cristo". Ele não a rejeita
por completo, mas atribui-lhe apenas significado secundário. De acordo com a conhecida
fórmula, Cristo não é, em primeiro lugar, exemplo, mas dádiva (XL, 1,389,20). Também para
Lutero Cristo é exemplo (ll,543,6ss.), no entanto, o fator decisivo de nossa relação com Cristo
justamente não pode ser descrito com essa categoria (XL,1,540,17ss.). Em todos os casos,
temos que discernir rigorosamente entre a idéia da conformidade e a da Imitação. O conceito

123
C. Descrição do conceito da cruz em pontos concretos

Talvez vale a pena mostrar ainda a abscondicidade e o caráter so­


fredor do estado cristão que agora descrevemos em termos gerais, em
alguns pontos pormenorizados concretos.

1. A mais bela recompensa que acompanha o estado cristão é


a paz. Na fé temos paz (111,567.12ss.). Mas, precisamente na fé! Disso a
teologia da cruz não pode desviar-se. Querendo mais do que isso, o pie-
tismo apenas revela ter-se afastado um bom pedaço de Lutero. Justa­
mente por isso também está exposto com tanta facilidade a falsificações
psicológicas. Pois a paz cristã nada tem a ver com o que comumente se
chama de paz. O contraste "natureza harmônica ou disarmônica” situa-se
em nível abaixo da paz que excede todo entendimento. Justamente por
essa razão, porém, a paz é objeto da fé e, por isso, um bem oculto
(LVI,246,1ss.; Br 1,47,27ss.). O mundo nada vê desta paz, os sentidos e a
experiência ficam sem nada. Também neste ponto a cruz se revela como
o grande sinal da velação (LVI,424,27ss.; 425,8ss.). O "caminho da paz é
o caminho da cruz”; o próprio Deus está oculto sob a cruz, razão por que
paz só pode ser encontrada sob cruz e sofrimento (l,90,6ss.). Quem pro­
cura paz não encontra verdadeira paz; quem foge da cruz não chega à
paz (V,318,34ss.). A paz não se há que procurar via experiência empírica,
como pensa o pietismo; conforme Lutero, isso significaria tentar a Deus.
Pois dessa forma abandonariamos a atitude da fé e quereríamos uma
paz “na realidade” em vez de uma paz “na fé”. Mas também a Cristo, que
é nossa paz, nós temos somente na fé (1,541,5ss.). Em lugar disso, exte­
riormente essa paz traz consigo discórdia. O dote da paz oculta em Deus
é a inimizade do mundo (11.456,31 ss.).

2. Se perguntarmos como se enquadra a alegria na vida cristã,


podemos contar com uma linha de idéias semelhante. Como a fé traz
consigo a paz, também traz a alegria (lll,57,34ss.). Deus odeia a tristeza
(XLIII,335,1ss.). Tristeza é sinal de que Deus nos abandonou, pelo menos
por algum tempo (XLII,535,39ss.). Por que não deveríamos alegrar-nos
quando olhamos para Deus? (1,173,31 ss.)

da imitação permanece inteiramente nos limites do moral; trata-se de um agir da pessoa. O


conceito da conformidade rompe essas barreiras, ele está relacionado ao sofrimento enviado
por Deus. No caso da conformidade, não se trata, em primeiro plano, de um agir da pessoa,
mas de um agir de Deus. Em resumo: o conceito da conformidade não pode ser separado do
conceito da cruz no setldo pregnante, o que não pode ser dito a respeito da imitação.

124
Com isso, porém, já chegamos ao outro aspecto do assunto. Trata-
se da "alegria no Espírito Santo” (lll,57,34s.). Razão da alegria são as
promessas de Deus. A certeza de que Deus não mente em suas promes­
sas alegra o coração (IV,360,6ss.). A alegria do cristão é determinada es-
catologicamente de fora a fora. Sem esperança não haveria alegria
(IV,380,35ss.), ela não se baseia na realidade mas na esperança
(LVI,465,1ss.). Por isso ela não pode ser compreendida como expressão
de nossa disposição interior, pelo contrário, a alegria de que se trata aqui
ergue-se justamente sobre a tristeza. Esta alegria somente surge quando
desesperamos de nós mesmos e nada experimentamos em nós mesmos
do que desagrado e luto (l.173,24ss.). Quem encontra a razão de sua ale­
gria em si mesmo, este seguramente não tem a palavra de Deus a seu
favor (LVI,423,23ss.). No entanto, tampouco se pode compreender esta
alegria a partir de nossa situação externa; pois ao cristão falta tudo aquilo
que dá ao homem carnal motivo para alegrar-se (V,178,21 ss.). Também
nossa alegria toma parte no caráter de abscondicidade do estado cristão.
Tudo isso se resume na frase: nossa alegria é obra do Espírito Santo
(VII,548,4s.).

3. Também a felicidade do cristão é oculta. Lutero pronuncia-se


extensamente sobre isso em sua já mencionada explicação do Salmo 1,
nas Operationes in psalmos. Nas mãos de Lutero o texto ganha uma pro­
fundidade bem maior do que lhe é próprio originalmente.
Lutero é da opinião de que a pergunta pela felicidade preocupa to­
das as pessoas. No entanto, não satisfaz a resposta nem da filosofia nem
a da opinião geral (V,26,30ss.). A resposta da escritura, porém, está em
contradição a todas as demais (V,27,5ss.). Despindo-a de sua forma vete-
rotestamentária, encontramos que só a vida sob a cruz pode trazer a ver­
dadeira felicidade. Neste caso, porém, a felicidade é felicidade oculta,
conhecida só da fé e da experiência (V,36,15ss.). Por isso, de forma al­
guma, se deve entender camalmente o que o salmista diz sobre o bem-
estar da pessoa piedosa (V,41,27ss.).158 O autor do salmo fala aqui no
Espírito; ele quer ser ouvido na fé (V,42,27ss.). Pois, falando da felicidade
da pessoa piedosa, tomamos na boca a maravilha das maravilhas
(V,41,31ss.). Também o autor do salmo define a felicidade como estar li­
vre do mal; apenas, a diferença é que o mundo entende isso “na realida­
de presente”, o autor do salmo, porém, o compreende “na fé”. E justa­
mente por não estar sendo compreendido na realidade presente, só se
pode falar a respeito de forma alegórica (V,36,29s.). Com tudo isso mo-

158 Cf. a preleção sobre Génese XUII.SéS.STss.

125
vimentamo-nos de novo em pensamentos inteiramente orientados esca-
teologicamente. Assim, a última característica da pessoa beata é estar na
esperança (V,38,6ss.).

4. O caráter da abscondicidade do estado cristão, porém, não é


demonstrável apenas para pontos concretos da vida do cristão individual;
reconhecemo-lo também quando consideramos sob este aspecto os pen­
samentos de Lutero sobre o reino de Cristo e sobre a igreja. Voltemo-nos
primeiramente aos enunciados de Lutero sobre o reino de Cristo!
Antes de mais nada, ouvimos de novo que o império régio de Cris­
to é um reino espiritual e, por conseguinte, oculto (V,58,38ss.;
IX,182,17ss.; XVIII,514,20s.), cuja única arma são a Palavra e a fé
(V,377,34ss.; IX,184,6ss.). Seus súditos são gente pobre e desempregada
(V,286,31ss.; XVIII,513,33ss.; XXXI,2,86,15s.). O reino da graça é um reino
da fé, no que temos que lembrar-nos daquilo que foi dito sobre a delim i­
tação crítica do conceito de fé (11,457,21 ss.; V,285,29ss.). Se tivermos pre­
sente as inter-relações de fé, Deus abscõndito e cruz, não nos admira ou­
vir que em meio a esse reino de Cristo estã erigida a cruz (V,129,1ss.).
Da cruz de Cristo, porém, somente temos parte quando nós mesmos to­
mamos sobre nós a cruz (V,69,5ss.). Destarte acontece que neste reino
as coisas andam de forma exatamente oposta do que em outros reinos
(V,453,32ss.). Por essa razão ele é um escândalo insuperável para o ho­
mem natural; ele não o pode nem quer reconhecer (V,68,35ss.).
Como reino da fé oculto, o reino de Cristo, porém, aponta para
além de si mesmo, da mesma forma como o faz o estado cristão. Ao rei­
no da graça seguirá o reino da glória. O natal é um prelúdio da parusia
(X,1,l,44,5ss.). Então Cristo reinará em glória visível também sobre seus
inimigos159 (lX,183,23ss.; XXXI,2,79,8ss.). Por isso, quando, no reino de
Cristo, os súditos às vezes estão com a água até o pescoço, ainda assim
podem consolar-se com a esperança: com ele sofremos para com ele
sermos glorificados (Rm 8.17; WA l,204,20ss.).160

5. O que se aplica ao reino de Cristo aplica-se, naturalmente,


também à igreja. Pois a verdadeira igreja nada mais é do que o reino de
Cristo. Por isso encontramos a idéia cia abscondicidade da verdadeira
igreja nos escritos de Lutero desde os primeiros até os últimos. Podemos

159 Por enquanto, nada disso vemos (V,288,4ss.).


160 A titulo de observação, aponte-se o fato de que também o reino de Deus é reino abscõndito.
Por enquamto ainda se encontra em luta com o reino do diabo (11,96,2688.). Culpados disso
somos nós próprios (11,9.5; 25ss.).

126
renunciar a uma análise pormenorizada das abonações, porque em ter­
mos de conteúdo oferecem pouca coisa nova. Nos Dictata super Psalte-
rium encontramos o pensamento expresso principalmente nas conhecidas
contraposições: carnal - espiritual, visível - invisível, contraposições es­
tas que, aliás, imprimem a esta obra sua característica.161 O esquema
“coisas visíveis - coisas invisíveis" recua mais tarde, no entanto, a idéia
da abscondicidade da igreja permanece (V,451,1ss.; 456,31 ss.; Vl,293s.)
“A igreja é oculta, os santos estão latentes." (XVIII,652,23.) Por isso,
quando Erasmo se reporta à tradição unânime da igreja contra Lutero, es­
te lhe argumenta que seria justamente aqui que residia o problema- o que
seria a verdadeira igreja?
A igreja de Deus não é uma coisa tão vulgar, meu caro Erasmo, como
o é este nome: igreja de Deus. Nem se encontram assim em toda parte
como este nome: santos de Deus. São pérolas e gemas preciosas, as
quais o Espírito não atira aos porcos, mas, como diz a escritura, as guarda
escondidas, para que o ímpio não veja a glória de Deus.(XVIII,651,24ss.)
Reportando-nos à história da igreja, talvez incorramos num engano
básico (XVIII,650,27ss.). A igreja verdadeira sempre foi uma “cidade de­
serta” (XXXI,2,407,3ss.). Por isso corresponde perfeitamente à teologia da
cruz: “Creio na igreja”; pois a igreja está oculta sob a cruz
(XXXI,2,220,32ss.; 506,13ss.). Permita-se-me chamar a atenção para o fa­
to de que as frases que acabamos de citar se encontram na preleção de
Lutero sobre o profeta Isaías (1527-30), originando-se, portanto, do perío­
do posterior de Lutero. A idéia da abscondicidade não é pré-reformátoria
mas reformatória. Por isso algumas abonações da preleção sobre Gêne­
sis deverão servir de prova (XLIV.109,25ss.;110,3ss.). A igreja, o mais
precioso tesouro do mundo, é considerada nada pelo mundo (XLIII,
139,37ss.).
A abscondicidade da igreja, porém, se expressa em sua forma de
sofredora. É uma culpa do protestantismo ter, por vezes, tomado tão pou­
co a sério este pensamento de Lutero. Lutero considerou cruz e sofrimen­
to o tesouro mais precioso da igreja; a igreja que toma o nome de Lutero
muitas vezes não considerou isso suficientemente (l,613,23ss.). Uma polí­
tica eclesiástica por demais belicosa e barulhenta é suspeita aos olhos
de Lutero (V,227,7ss.). A verdadeira igreja é, muito antes, uma igreja de
mártires. O “novo gênero humano” intencionado por Cristo é a igreja so­
fredora (V,307,36ss.). Igreja de Cristo só pode ser chamada com razão
a igreja que segue a seu Senhor em todos os pontos. Por isso Lutero

161 Cf. 111,150,27ss.; IV,81.12ss.; 137,1ss.; 287,22ss.

127
conta cruz e sofrimento entre os sinais particulares da igreja (nota eccle-
siae). Em seu escrito “Dos concílios e da igreja” de 1529, Lutero enumera
sete sinais particulares nos quais se pode reconhecer a igreja, sinais es­
tes que ele prefiriria denominar “os sete sacramentos” da igreja, não esti­
vesse o termo sacramento preso já a outro uso (L,643,2ss.). Como sétimo
sinal Lutero menciona o efeito salvífico da santa cruz (L,641,35ss.). Por­
tanto, faz parte da natureza da igreja encontrar-se ela no sofrimento; uma
igreja da qual não se pode afirmar isso é uma igreja que se tomou infiel a
sua destinação. Não se deve argumentar contra isso, afirmando que se
trata, no caso, de um enunciado esporádico de Lutero, que, portanto, não
deveria ser supervalorizado; porque, por um lado, ele não se encontra
isolado (cf. XLII,188,14ss.), e por outro, ele decorre de todo o contexto de
sua teologia da cruz. Por isso Lutero usa a idéia da forma sofredora da
igreja criticamente contra o papado162 e para julgamento da história da
igreja163.
Por fim , podemos concluir com o mesmo pensamento como aci­
ma, na apresentação do reino de Cristo. Ainda que aqui a igreja se en­
contre na abscondicidade, ela é a única coisa que perdura
(XL,3,505,14ss.) e que vencerá por fim (V,533,16ss.).

6. Neste contexto ainda recai, por fim , nova luz sobre o posicio­
namento de Lutero em relação à alegoria.'641 6
5É sabido que Lutero rejeitou
a interpretação alegórica desde cedo.166 Da mesma forma, porém, é certo
que jamais se livrou inteiramente dela. Isso, porém, não nos interessa
aqui. Não estamos querendo inquirir pelo posicionamento de Lutero em
relação à interpretação alegórica, mas, sim, como Lutero julgou as alego­
rias que já encontrava no texto. O próprio Lutero tinha plena consciência
dessa diferença (V,51,33ss.). Em certos casos a alegoria contém o verda­
deiro sentido. Por que, no entanto, o escritor emprega a linguagem figu­
rada? Lutero explica isso baseado no caráter de fé dos enunciados da
escritura166 O próprio Deus se revela na veiação; por isso também a es­
critura fala no envoltório da figura. A palavra busca a fé; a fé dirige-se a

162 Cf. V.42.1SS., 8ss.; 46,1ss.; 610,4ss.; 649,37ss.


163 Cf. V,313,22ss.; XLII,187,21ss.
164 Cf. Karl HOLL, Luthers Bedeutung für den Forschrift der Auslegekunst e K . A. MEISSINGER,
Luthers Exegese in der Frühzeit Toda esta questão necessita de novo estudo pormenoriza­
do. Quanto vejo, Holl nada contribuiu para nosso problema especial.
165 Cf. V,75,3ss.; 111,23ss.; 643.32SS.; Vl,562,24ss.; XLII,367,6ss.
166 Portanto, nSo só a partir da afeição à poesia ou da intenção pedagógica, como acha HOLL,
toc. c it p. 554.

128
coisas ocultas (V,36,29ss.; 51 !,9ss.). É nesse sentido profundo que Lutero
quer entender a alegoria. Não se lhe afigura como brincadeira retórica,
mas como a expressão linguística adequada para o agir alegórico de
Deus. Lutero encontra o sentido da alegoria fundamentado no discerni­
mento entre a obra alheia e a obra própria de Deus (V,63,28ss.). Nesta
fórmula Lutero soube dar expressão a seus reconhecimentos mais pro­
fundes de sua teologia da cruz. Visto que a própria cruz de Cristo é uma
tal obra alegórica de Deus (V,245,6). A partir de sua teologia da cruz, por­
tanto, patenteou-se para Lutero também uma singular compreensão da
alegoria.

D. Humildade, tentação, oração

Descrevemos a abscondicidade do estado cristão e vimos que,


quanto a seu conteúdo, ele teve que ser descrito como discipulado de so­
frimento. Tentamos entender ambas as coisas a partir do conceito de
Deus de Lutero e de seu conceito de fé. Em terceiro lugar mostramos es­
ses traços característicos ainda em alguns problemas específicos. Para
encerrar, queremos discutir três características igualmente importantes da
vida sob a cruz, num capítulo próprio. Como tais características se nos
apresentam: a humildade, a tentação, a oração. Nelas ressaltará, uma
vez mais, a singularidade dos pensamentos aqui desenvolvidos. Mais
uma vez circunscrevemos o cerne da teologia da cruz de Lutero em três
círculos concêntricos.

1. A humildade

A humildade167 é o antigo ideal monástico. Lutero recorre a este


termo seu conhecido. Ele se lhe toma expressão de seus novos reconhe­
cimentos.
Esse termo tem papel preponderante nos Dictata super Psalte­
rium. A humildade é a virtude básica da vida sob a cruz, do mesmo modo
como a soberba é o verdadeiro e maior pecado.168 A humildade chega a

167 Cf. também R.G.G. I, 2. ed., col. 1829-1832 e BRAUN, toe. ciL, p. 50ss. O livro de
THIEMES, Die christliche Demut, está publicado apenas em sua primeira parte (Wortge­
schichte und die Demut bei Jesus, 1906) que nos interessa menos.
168 Cf. 111,292,1 Iss.: 355,1ss.: 568,20: cf., além disso, XXXI,2,34,25ss.; I, 138,17s. O próprio
Cristo pregou a exigência da humildade (III,561,10s.).

129
colocar-se na mais íntima relação com a fé. A fé ensina humildade
(IV,76,37ss.). Pois a fé é “negação de nós mesmos”, total auto-rejeição e
confiar na graça de Deus. Nesta negação de todos os direitos humanos a
fé se identifica com a humildade (lll,462,29ss.). Pois ostentar sua humil­
dade não é humildade. Humildade é a renúnica consciente a todas as
qualidades humanas com as quais poderiamos argumentar.169 Humildade
é auto-reconhecimento perfeito na face de Deus (111,290,31 ss.; 26,28ss.;
cf. LVI,346,18ss.). Nestes termos ela tem que preceder à fé, pertence ao
alicerce crítico da fé. Justificação na fé só poderá acontecer onde houver
sido posto este alicerce (lll,345,29s.). Esse aspecto, no entanto, é enfati­
zado de tal maneira em Lutero, que ele pode também dizer "Só a humil­
dade salva.” (IV.473,17.) A justiça de Deus consiste numa humilhação até
o fundo do coração (lll,458,3ss.; IV,405,23). Humildade e fé são usadas
aqui promiscuamente. A humildade, tampouco como a fé, não é uma vir­
tude ao lado de outras, mas, em primeira linha, renúncia a toda virtude.
Humildade é saber que não podemos subsistir perante Deus com nossa
virtude (111,301,30ss.). Este, porém, é também o reconhecimento funda­
mental da fé. Por isso humildade e fé podem ser usadas altemativamente
por Lutero com vistas à justificação (lll,462,34ss.). Com a idéia da humil­
dade assim concebida Lutero já abandonou a área da justiça por obras
católica. Sem dúvida, a humildade não consegue negar de todo seu colo­
rido monástico. Também nosso comportamento em relação ao próximo,
em relação ao mundo deve ser regulado pela humildade. Neste sentido
podemos ouvir sons quase quietistas170 nos Dicatata super Psalterium
(IV,231,7s.)171. Não devemos, porém, considerar especificamente monacal

169 Nesse sentido a atitude oposta à humildade é a presunção (cf. 1,359,18ss.; Il,458,36ss.;
XXXl,2,49,11ss.). Soberba é a arrogância em geral, a hybris; presunção é o cálculo com fa­
tores que não estáo presentes. “ Pois esperar algo sem ter méritos não pode ser chamado de
esperança mas de presunção." (Atexander Halesius III, q 75 ml Resp. - Cf. HEIM, Joc. d l , p.
24£)
170 Esses sons nós também os encontramos em outros escritos de Lutero. O pendor ao quietismo
é uma herança luterana recebida de seu pai (cf. XXXI,2,63,27ss.). Lutero não era amigo do
ativismo. No entanto, há que se questionar soriamene se isso pode ser interpretado como
atitude monástica. Com a mesma certeza revela-se nisso também uma orientação fortemente
escafológica (cf. XL,1,97.13ss.). Na verdade, é possível interpretar o movimento monástico
original como tentativa de preservar vivo no cristianismo o radicalismo escatológico do cristia-
nisto primitivo. Assim as duas explicações teriam suas rafzes em uma só. Todavia não pode
ser negado que, ao menos em seus escritos anteriores, com sua exigência da serenidade (cf.
do ano 1521 a passagem de Vll,582,14ss.; além disso, V l,l5 ,1 1 s .)e do desprezo do mundo
(LVI,476,1ss; I,198,17 ss.; 111,543,15ss.), Lutero defende uma ética fortemente influenciada
pelo monasticismo (estóica). Mas inclusive a ética reformatória de Lutero deveria ser bem
mais monástico-escatológica do que muitas vezes se admitiu. Infelizmente temos que renun­
ciar ao exame desse lator aqui em pormenores (veja n. 143).
171 Cabe aqui também a idéia de que Cristo tenha chorado com freqüência (lll,70,30s.).

130
tudo o que, muitas vezes, é simplesmente bem neotestamentário. A exi­
gência de vencer o mal com o bem e de preferir sofrer injustiça do que
praticá-la corresponde por inteiro ao espírito do Sermão do Monte, e é,
além disso, paulina (111,160,7ss.; IV,131,33ss.). Quem de fato toma a sério
a justificação de graça, este mesmo já não pode querer insistir em seu di­
reito em sua vida.172 A ética da graça desloca a ética da lei. Não faz sen­
tido estigmatizar isso como atitude monacal.
O conceito de humildade, portanto, não é bem uniforme nos D ida­
ta. Podemos distinguir nele duas linhas não equilibradas de todo. Lutero
herdou este termo da tradição monacal. A partir daí deve-se compreender
uma das linhas: humildade como atitude humilde. Ela se externa princi­
palmente como atitude bem definida em relação ao mundo e ao próximo.
Portanto, ela é um conceito ético. Lutero, porém, analisou o ideal monás­
tico da humildade a fundo, perseguiu-o até suas últimas consequências.
E com isso o superou de fato. Inclusive o mais perfeito ato de humildade
sempre é obra da pessoa. A pessoa sempre continua na mão com algo
de que pode orgulhar-se. Neste caso, porém, a humildade tem que ser
algo que exclui todo o esforço humano piedoso. Com isso ela se coloca
na proximidade da fé. Esta é a segunda linha nos Didata. Humildade na­
da mais é do que auto-reconhecimento perfeito, que encerra a fé justifi-
cante. Quando, portanto, Lutero fala de uma justificação pela humildade,
não se deve entender isso no sentido católico-sinergista. Por outro lado,
quando Lutero, por vezes, equipara a humildade à fé (cf. tb. a expressão
"humildade da fé" - IV,231,7), isso corresponde com toda exatidão ao
conceito de fé da teologia da cruz.
No mais, o desenvolvimento trascorre no sentido da segunda linha,
como é de se esperar. É bem verdade que na preleção sobre Romanos
ainda encontramos os “traços monásticos” (p. ex., LVI,448,20ss.;
449,20ss.). Ao lado disso encontramos, sempre de novo, o entrelaçamen­
to característico de fé e humildade (LVI,218,7ss.) A preleção sobre Ro­
manos significa inclusive um grande progresso em nossa questão. Lutero
nota que o termo latino hum ilitas tem sentido duplo, dependendo se tra­
duz a palavra grega tapeinosis ou tapeinophrosyne (LVI,471,18ss.). No
primeiro caso, hum ilitas deveria ser traduzido por baixeza, nulidade, e no
outro, por humildade. Essa distinção ainda iria tomar-se importante para
Lutero.
O Debate de Heidelberg nada de novo oferece (1,357,17ss.;
358,30ss.). Interessante é apenas o fato de se traçar um paralelo claro

172 Cf. de 1523 a passagem de XI,249, o que ninguém mais pode tachar de monástico.

131
entre a relação humildade e graça e a relação obra própria e obra alheia
(l,361,1ss.). Esse pensamento, no entanto, já está presente de forma im­
plícita nos Dictata super Psalterium.
Por outro lado, as Operationes in psalmos significam uma incisão
importante.173 E isso em dois sentidos:

1. Aqui Lutero chega à conclusão básica de que, na escritura, hu­


mildade quase nunca significa a virtude da humildade: antes se deveria
entender sob humildade baixeza, nulidade, opressão (V,656,24ss.).174
Apenas com isso o termo está de todo livre de seu manto monástico. To­
do sinergismo está excluído. Tanto mais evidente se toma nesta passa­
gem o significado central do termo na teologia da cruz. Todo o estado
cristão, como exposto acima, nada mais é do que humildade neste senti­
do. Quanto mais acatólico é concebido o termo tanto melhor ele se en­
quadra na teologia da cruz. Portanto, não se deveria ter usado a idéia da
humildade como prova para o caráter monástico da teologia da cruz.

2. Sendo assim evidenciada com toda clareza a segunda das


duas linhas apontadas acima nos Dictata, e dessa maneira reprimida a
primeira já aqui, a validade da primeira linha, a linha monástica propria­
mente dita, ainda sofre uma forte restrição em si. O lim ite da humildade é
o amor ao próximo. Casos pode haver em que sofrer injustiça simples­
mente é falta de amor (V,233,33ss.).
Nas Operationes, portanto, o ideal monástico de humildade é rom­
pido em duas direções. Com isso está livre o caminho para as maravilho­
sas explanações de Lutero sobre a humildade em sua explicação do
Magnificat. Jamais Lutero descreveu de forma mais bela a natureza da
humildade. Ao mesmo tempo encontramo-nos aqui no auge do desenvol­
vimento ideológico do conceito traçado.
Lutero está interessado na explicação do “contemplou a humilda­
de” (Lc 1.48). Aqui Lutero recorre à compreensão básica que obtivera nas
Operationes. Humilitas não pode ser traduzido por humildade,
mas não é outra coisa do que um ser ou estado desprezado, insignificante,
como o são as pessoas pobres, doentes, famintas, sedentas, presas, so­
fredoras e moribundas. (Vll,560,16ss.)
Pois como se poderia atribuir a esta virgem pura e verdadeira tal atre­
vimento e soberba, visto que se gloriou perante Deus de sua humildade,

173 Ao lado disso, exposições agora correntes, p. ex., V, 71,5ss.; 252,40ss.; 662,10ss.
174 Na verdade Bernardo entende a relação de ambos os conceitos em ordem justamente inversa
do que Lutero pensa (in cant. 34,3). isso O. RiTSCHL, loc. d t . p. 53, não percebeu.

132
que é a maior virtude, e ninguém se considera humilde ou se gloria de sê-lo
a não ser o que é o mais orgulhoso. Somente Deus reconhece a humilda­
de, e também somente ele a julga e revela, de sorte que jamais a pessoa
tem menos consciência da humildade do que justamente quando é humilde.
(Vll,560,7ss.)175
Por isso a busca monástica por humildade não faz nenhum senti­
do. O caminho da humildade não vai de fora para dentro, mas de dentro
para fora (Vll,562,5ss.). Assim o ideal monástico da humildade está supe­
rado justamente pelo fato de ser tomado a sério. A verdadeira humildade
só pode consistir na nulidade.176
Agora, porém, está na hora de afastar do caminho um último mal­
entendido. Nossa nulidade não preenche de forma positiva a lacuna sur­
gida com a rejeição do ideal da humildade. Não podemos apresentar
nossa nulidade como mérito perante Deus. Não! pois ela de fato nada
mais é do que nulidade na acepção rigorosa do termo. Deverá ser eleva­
da a honras somente a graça de Deus, não nossa nulidade.
Por isso o peso não está sobre a palavrinha “humildade", mas na pala­
vrinha “contemplou". Pois não é de ser honrada sua nulidade, mas o fato
de Deus contemplar, como quando um prfncipe estende a mão a um pobre
mendigo, não é de ser louvada a nulidade do mendigo mas a misericórdia e
bondade do prfncipe. (VII,561,16ss.)
Com este pensamento alcançamos aquele ponto no qual conver­
gem as duas linhas que tiveram que ser distinguidas nos Dictata. Com
isso Lutero levou a idéia da humildade às últimas consequências no sen­
tido evangélico.

Excurso sobre o conceito de humildade em Bernardo

As coisas mais belas e profundas ditas sobre a humildade antes


de Lutero encontramos nos escritos de Bernardo de Clairvaux. Não pode
haver dúvida de que também neste ponto Lutero aprendeu de Bernardo
(cf. V.656,24ss.).177 Por isso queremos fazer uma breve análise do concei­
to de humildade de Bemando.

175 Cf. quanto a isso TAULER (V. n. 45, P. 200,26): “ Mesmo que a pessoa tivesse dentro de si
alguma humildade, ela seria falsa."
176 Humildade é pavor interno no coração (X.3,87,14ss.).
177 Cf. W. KÖHLER, Luther und die Kirchengeschichte, pp. 301-333; DIECKHOFF, Justin, Au­
gustin, Bernhard; G. L PUTT, Des heiligen Bernhard von Clairvaux Anschauung von christli­
chem Leisen; E. WOLF, loc. ciL, p. 105. As citações de Bernardo segundo a edição de MIG-
NE, Series Latina, 182e 183.

133
Também para Bemanrdo a humildade está no centro da vida cris­
tã, no caso específico, da vida monástica. Toda a vida cristã se funda­
menta sobre a humildade (in cant. 36,5). O primeiro pecado foi a soberba
(cf. Lutero), a presunção de Lúcifer (De divers. 66.1). A isso corresponde
que agora a humildade tem que ser a primeira virtude. Pois humildade é
o contrário de soberba. Por isso a humildade deve ser definida, em pri­
meiro lugar, negativamente como “desprezo da excelência própria” {de
gradd. humil. et superb. 4,14). Exatamente como em Lutero, a humildade
é descrita como perfeito auto-reconhecimento {de gradd. humild. e t su­
perb. 1,2).178 A humildade é o caminho para a verdade {de gradd. humild.
et superb. 1,1; 2,3). Tudo depende do auto-reconhecimento; por isso a
humildade deve ser preferida a todas as obras monásticas piedosas
{epistolae 142). Com esses pensamentos Bernardo sobressai muito aci­
ma do nível médio da piedade monástica.
Para avaliar corretamente a magnitude da diferença, pode-se re­
correr aqui à Regra de São Benedito para fins de comparação.179 É ver­
dade que ela tem sua origem em época bem anterior no entanto, sempe
ainda permaneceu determinante para a piedade monástica. O próprio
Bernardo a cita repetidas vezes em seu Tratado sobre os graus da humil­
dade e da soberba. Por isso uma comparação feita aqui não se constitui
em erro metódico. No capítulo VII de sua regra, intitulado “Da humildade”,
Benedito distingue doze graus de humildade. Seria de esperar que essa
sequência de graus iria conduzir de uma forma exterior da humildade pa­
ra uma forma bem íntima, que iria levar das obras da humildade para a
mentalidade humilde. O contrário é verdade. É evidente que já a funda­
mentação do primeiro grau da humildade no medo do inferno parece in­
suficiente ao nosso sentimento cristão; a admiração, porém, é ainda
maior ao ouvirmos a descrição do grau mais elevado da humildade.
O duodécimo grau de humildade consiste em que o monge sempre re­
vele humildade aos que o vêem, não só no coração mas também no pró­
prio corpo; isto é, na obra de Deus, no oratório, no monastério, na horta, na
rua, no campo, onde quer que esteja, quer sentado, quer andando, quer pa­
rado, tenha sempre a cabeça inclinada, o olhar sempre fixo no chão, consi-
derando-se, a todo momento, réu de seus pecados, já se sabendo na con­
tingência de se apresentar ao tremendo jufzo; sempre dizendo no coração
o que disse o publicano, com os olhos fixos no chão: Senhor, eu pecador
não sou digno de elevar os olhos ao céu. E também com o profeta: Estou
prostrado e sou humilhado sempre. (Ed. Butler, p. 37s.)

178 SEEBERG, Dogmengeschichle III, ignorou todo este aspecto da humildade (p. 130, n. 1).
179 Regula sancti Bendicti, ed. BUTTLER.

134
O grau mais alto, portanto, está alcançado quando a mentalidade
humilde se expressa em cada gesto. A pergunta é se é possível ver a
humildade em alguém. Nisto nem sequer surge a idéia se não é justa­
mente neste sinal exterior da humildade que a pior soberba toma a en­
contrar um refúgio. Neste ponto a análise da mentalidade piedosa se en­
contra ainda num nível bastante primitivo. Em Bernardo o caso é bem ou­
tro. Ele sabe que quando a humildade se quer manifestar exteriormente
isso é sua morte. Também aqui ser e parecer se encontram em contrapo­
sição insuportável (in cant. 16,10).
Com este pensamento Bernardo se aproxima muito do Reforma­
dor (cf. Vll,560,7ss.). A primeira linha da humildade constatada acima em
Lutero remonta diretamente a Bernardo. Pudemos constatar em Bernardo
também o princípio da segunda linha (humildade como auto-reconheci­
mento perfeito). Com isso também nele a humildade entra em relação
com a justificação. Ela é o único mérito que a pessoa pode apresentar
perante Deus (De divers. 26,1; in cant. 54,9). Mas justamente neste ponto
também se separam novamente os caminhos. Enquanto Lutero, a partir
da idéia de que humildade justifica, é impulsionado em direção à forma
da humildade como nulidade, em Bernardo a humildade não passa da vir­
tude da humildade.180 A humildade permanece sendo uma qualidade da
pessoa. Para defini-la positívamente, se a descreve como obediência (De
divers. 26,2). Ela se distingue da pura humilhação pelo fator da liberdade
(in cant. 34,3). Portanto, é inteiramente um ato humano, perfilado como
tal na sequência de atos humanos. A humildade só leva ao primeiro grau
da verdade; ela é a porta apenas para o antepátio do santuário (in cant.
42,6; de gradd. humil. et, superb. 6,19). Assim a humildade não se torna o
término de todas as obras, mas a mais nobre das obras. A humildade é
nova mentalidade; mas esta própria nova mentalidade é compreendida
como “obra”. No entanto, a idéia da humildade monástica levada as suas
últimas consequências tem que anular-se a si mesma. Isso, porém, Ber­
nardo não descobriu. Apesar de iniciativas promissoras neste sentido, não
deu o passo decisivo para além do ideal monástico da humildade; isso fi­
cou reservado para alguém maior do que ele.

180 Cf. quanto a isso também os pensamentos de Bernardo sobre a génese do amor,
DIECKHOFF, k x . CÍL, p. 62ss.

135
SFMlIMARtn m i u r n o n i A
2. Tentação

Na humildade se expressa acima de tudo a abscondicidade do es­


tado cristão. Ela corresponde à fé que nada vê, nada sente. A idéia da
tentação contribui com o elemento de conteúdo. Querendo fazer-se uma
distinção abstrata, pode-se dizer na idéia da humildade temos o paralelo
à determinação puramente formal da fé como contraposição a toda a ex­
periência objetiva; na idéia da tentação percebemos que esse conceito de
fé está orientado, quanto a seu conteúdo, na concepção do Deus abs-
côndito. Também se pode pôr a tentação em relação mais próxima àquilo
que foi dito neste capítulo, sob B, a respeito do estado cristão como dis-
cipulado de sofrimento, enquanto a humildade corresponde à primeira
parte. Apenas não se deve esquecer nisso que B é tão-somente uma ex­
plicitação concreta de A. Em todos os casos tem aqui seu lugar o que se
poderia chamar de lado dramático da vida cristã. O caráter geral da abs­
condicidade e baixeza aparece aqui num vívido sobe e desce. A humilda­
de sempre de novo experimenta sua comprovação na tentação. Contanto,
porém, que a humildade está intimamente relacionada com a fé, pode-se
afirmar isso também em relação a esta. Na tentação o momento existen­
cial da fé alcança a evidência máxima. No entanto, não queremos anteci­
par-nos à exposição pormenorizada.
Tentações se estendem através de toda a vida de Lutero._ Elas
formam, inclusive, uma parte de sua consciência profissional.181 É sob
tentações no convento que Lutero conquista seu discernimento reforma-
tório (cf. a afamada confissão nas Resoluções, WA l,557,33ss.), sob ten­
tações esse discernimento se lhe há que comprovar-se de novo em anos
posteriores. Uma caracterização de Lutero deverá considerar bastante
justamente este ponto. Nós temos em mente outro objetivo. Não quere­
mos oferecer nem uma contribuição à análise da personalidade de Lutero
nem ainda uma doutrina completa da tentação.182 Nossa tarefa consiste
tão-somente em mostrar que o conceito de tentação cabe perfeitamente
no complexo da telogia da cruz.183
Isso pode provar-se a partir dos mais diferentes aspectos. Pense­
mos, em primeiro lugar, no programa geral da teologia da cruz. A cruz é,

181 Cf. HOLL, loc. c it, pp. 383, 394, 408.


182 Cf. quanto a este capitulo, Th. HARNACK, Luthers Theologie, v. I, § 24; HOLL, loc. c it, p.
67ss.; O RITSCHL, p. 17-39; BRAUN, p. 33; E. WOLF, p. 150ss.; cf. igualmente as biogra­
fias.
183 Nem sempre é possível distinguir terminologicamente os diferentes vocabulários usados para
tentação (tentatio, tribulatio, compunctioY, cf. E. WOLF, p. 139, n. 1. Sobre a diferença de tri-
bulatioecompunctio, veja O. RITSCHL, loc. c it, p. 19-21.

136
assim dissemos, o grande não a toda religião perfeita. A cruz é a grande
perturbação de todo conhecimento estático de Deus, a todo conhecimen­
to que não quer estar no movimento da fé. A cruz é motivo de escândalo.
E a isso corresponde exatamente que também a vida piedosa não pode
ser um estado estático, satisfeito em si mesmo. Pelo contrário, também
nela sempre se deverá, na fé, vencer o escândalo. Onde está eliminado
este escândalo, já não se trata mais de uma vida na fé. Quando o escân­
dalo assume sua forma mais aguda, falamos de tentação. Assim pode­
ríamos dizê-lo, de início, em termos gerais. Se, portanto, faltasse a tenta­
ção à vida cristã, já não seria vida de fé até as últimas consequências.
Uma consciência piedosa poderia substituir a luta da fé como circunstan-
cialidade. Com o reconhecimento dessa consciência piedosa estática já
nos teríamos confessado partidários da teologia da glória. De acordo com
a teologia da cruz, a pior tentação consiste em não ter tentações; pois a
tentação mantém a fé em movimento (XXXI,1,95,1 Oss.; I,128,28ss.;
Il,125,32ss.; Vl,223,33ss.). A vida sob a cruz é uma vida de tenta­
ção (11,123,1 ss.; Vll,785,3ss.), teologia da cruz é teologia da tentação
(XLIII,472,13ss.).
O movimento da fé, no entanto, consiste, em, sempre de novo, en­
contrar o caminho do Deus abscôndito ao Deus revelado, da obra alheia
à obra própria. Tentação surge quando a fé não consegue realizar esta
caminhada. Assim, pode da pergunta pelo sentido do sofrimento advir
uma tentação (XLIII,202,7ss.). É a tentação do porquê que nos leva a tais
tentações (XXXI,2,361,19ss.). Pois por vezes até parece que Deus está
brincando com os santos. Nós, porém, não perscrutamos esse jogo
(XLIV,97,16ss.; 536,8ss.; XLIII,371,24ss.). No entanto, neste jogo de Deus
temos a ver tão-somente com sua obra alheia (XLII!,203,4ss.).184 Outra
tentação surge para a fé do fato de parecer que, às vezes, Deus se con­
tradiz a si mesmo. Lutero esclarece isso no exemplo de Abraão. Este se
tornou o pai da fé porque Deus o mandou para provações especialmente
difíceis. Deste modo Lutero desdobra neste homem não apenas sua teo­
logia da fé mas também sua teologia da tentação - outro sinal do quanto
fé e tentação estão inseparavelmente interrelacionadas para Lutero. Na
tentação a fé luta com a autocontradição de Deus.185

184 Com isso não se quer negar a realidade da ira de Deus na tentação. Cf. Th. HARNACK, v. I,
p. 318ss.
185 “ Tal tentação não pode ser vencida, e é bem maior do que pudesse ser compreendida por
nós. Pois é uma contradição com aq u ai o próprio Deus se contradiz, algo que Ó impossível à
carne compreender; pois considera necessário que ou Deus mente, o que é blasfemo, ou
que Deus me odeia, o que é ocasião para o desespero. Portanto, esta passagem não pode
ser explicada no sentido da grandeza do asssunto." (XLIII.202,16ss.)

137
A pior tentação, no entanto, sobrevém ao homem quando este se
vê abandonado e rejeitado por Deus. Este é privilégio dos “maiores entre
os santos” (XLIV,97,25ss.). Deste tipo eram as tentações das quais Lutero
fala na passagem das Resoluções supracitada (l,557,33ss.). Ele só pode
falar delas porque as sofreu pessoalmente. Na linguagem monástica de­
nominava-se isso de "suspensão da graça” (XLII,336,10ss.).
Em todos estes casos estamos lidando com o Deus abscôndito. O
significado das tentações nos remete ao conceito de Deus da teologia da
cruz, às idéias relacionadas ao Deus abscôndito que alcança a obra pró­
pria através da obra alheia.
Com isso, porém, está claro de antemão que na doutrina das ten­
tações vem à tona o conceito característico de fé da teologia da cruz.
(XIX,218,13ss.). Somente a fé está em condições de ouvir nas tentações
o “profundo secreto sim sob e acima do não” (XVII,2,203,32). O grau má­
ximo da fé é então continuar confiando na graça de Deus inclusive na
tentação do abandono por Deus (Vl,208,34ss.). Esta fé não é brincadeira
(V,385,17ss.); ela é nada menos do que uma luta com Deus contra Deus
(XLIV,99,3ss.; XL,3,519,13ss.).
Pois na tentação o próprio Deus ataca a pessoa. Lutero pôde de­
nominar também o diabo como autor da tentação.186 Neste caso não é di­
fícil vencer a tentação. Pois o diabo já não tem poder sobre o cristão. Ele
está vencido por Cristo. No entanto, Lutero pode atribuir a tentação tam­
bém diretamente a Deus. Sua dificuldade consiste justamente no fato de
o próprio Deus “tentar” a pessoa. Lutero contesta expressamente o con­
ceito representado em Tg 1.13 (XLIII.201,25ss.). O Deus abscôndito é
realidade, não apenas ficção. O diabo é apenas instrumento de Deus, o
sujeito da ação é o próprio Deus. (XL,3,519,13ss.). Em tais momentos Lu­
tero sente com toda clareza sobre si a ira de Deus.
Qual o conselho que Lutero tem para tais casos? Nenhum outro a
não ser agarrar-se à Palavra.187 Para Lutero, porém, a Palavra outra coisa
não é do que Cristo.188 Encontramo-nos em tentação quando nos foi ar-

186 Cf., quando a isso, HOLL, loc. c it, p. 68; além das abonações ali mencionadas, veja
XLIII,64,31ss.
187 Assim de maneira mais bela em seu sermão sobre a mulher cananéia (WA XVII,2,200ss.; (cf.,
quanto a isso, a análise de E. HIRSCH, Zeitschrift für systematische Theologie, ano 4,1927,
p. 632ss.), e de igual modo em sua “ Tröstung für eine Person in hohen Anfechtungen", de
1521, VII,785,3s.
188 É sabido que atualmente corre uma controvérsia sobre o significado de Cristo para a tenta­
ção. H, M. MÜLLER agrediu a exposição de HOLL, p. 67ss., da forma mais violenta (Der
christliche Glaube und das 1. Gebot in der Anfechtung bei Luther, in: Zeitschrift für sysL
Theologie, ano 5, 1927, 3, p. 453ss.) e novamente a resposta de MÜLLER, “ Der Giaube an
Gott den Schöpfer als Giaube an Christus bei Luther” , in: Theologische Blätter, ano 7,1928,

138
rançada do coração a Palavra, ou seja, Cristo. Por outro lado, a tentação
está vencida quando Cristo toma a falar-nos, quando voltamos a ouvir a
Palavra (XXXI,2,22,3ss.). Ao lado do recurso à Palavra coloca-se a evoca­
ção insistente do batismo (XLII1,203,23ss.).
Que aconteceria, porém, se Deus quisesse revogar sua palavra da
graça, se quisesse anular sua promessa feita sobre mim? Ainda assim,
diz Lutero, temos que preservar na palavra da promessa. Sim, Lutero ar­
risca o enunciado incrivelmente audacioso: temos que lutar contra o pró­
prio Deus com a palavra de Deus (XLIV,97,38ss.).189 Esta é a fé que,
através da obra alheia, alcança a obra própria, através do Deus abscôndi-
to, o Deus revelado em sua forma máxima. Pois o antagonismo entre
palavra de Deus e Deus não se baseia em outro antagonismo do que o
existente entre o Deus revelado e o Deus abscôndito. O momento de
transição da tentação portanto veio, ao que parece, quando a fé a pers­
cruta como obra alheia. Seguindo a Holl, distinguimos acima um enfoque
duplo da tentação em Lutero; uma vez Lutero atribui a tentação ao diabo,
outra vez a Deus. Vemos agora que isso pode ser apenas uma distinção
provisória. Ambos os enfoques encontram seu ponto de intersecção no
conceito do Deus abscôndito, respectivamente da obra alheia. O próprio
Deus se oculta sob a máscara do diabo. Se a fé consegue reconhecer a
máscara como máscara, se chega a compreender que, na obra alheia da
tentação, Deus se transformou em diabo,190 então está superada a tenta­
ção.191 A partir do conceito do Deus abscôndito podemos entender que

fev., col. 37ss. Não queremos entrar neste debate, visto que não diz respeito diretamente a
nosso tema.
189 "Há proteção suficiente na promessa de Deus não só contra o diabo, a carne e o mundo, mas
também contra esta sublime tentação. Pois se Deus enviasse um anjo que dissesse: ‘Não
creias nestas promissões’, eu o rejeitaria assim: ‘Afasta-te de mim, satanás!’ E se o próprio
Deus aparecesse em sua majestade e dissesse: 'Não és digno de minha graça; mudarei de
idéia e não manterei o que te prometi’, não devo ceder, mas lutar com a maior veemência
contra o próprio Deus.” (XLIV,97,38ss.)
190 “ Assim a fidelidade e verdade de Deus sempre têm que tornar-se uma grande mentira antes
de tornar-se verdade. Pois diante do mundo ela é chamada uma heresia. Assim também
sempre nos parece que Deus quer abandonar-nos e não cumprir sua palavra, começando
a tornar-se um mentiroso em nosso coração.” (XXXI, 1,249,21 ss.) “ Em suma, Deus não pode
ser Deus, a não ser que antes se torne um diabo.” (ib., linha 25). "Para resum ir o diabo não
se torna diabo nem é diabo, a não ser que antes tenha sido Deus.” (ib., 250,24.) “ Tenho que
conceder ao diabo o direito de ser Deus por uma horinha, e permitir que se atribua a nosso
Deus a satanidade. Isso, porém, ainda não é a última palavra. No final vale: sua bondade e
fidelidade valem sobre nós.” (ib., linha 35ss.)
191 “ ‘Até quando meu inimigo se exaltará sobre mim?’ Primeiro atribui isso a Deus que se es­
quece e se averte, não escutando. Agora atribui isso ao inimigo. E já aqui a vitória começa a
pender para o tentado, e a tentação começa a ir para o fim. Parte da vitória é aperceber-se do
inimigo nesta tentação, e logo tornar-se superior a ele. E mesmo que, por ordem de Deus,

139
Lutero designa como autor da tentação ora o diabo, ora a Deus. Não é
por acaso que foi justamente naquele escrito em que o conceito do Deus
abscôndito tem papel preponderante, que Lutero enunciou a frase:
“Deus... atua e age também em Satanás e no ímpio.” (XVIII,709,21s.)
Neste duplo enfoque sem dúvida influem também motivos poimê-
nicos. Nem todos e nem sempre a pessoa é suficientemente forte para
suportar a idéia de que o próprio Deus a ten ta Basta lembrar a explica­
ção da quinta prece no Catecismo Menor. O fato de Lutero praticar am­
bos os enfoques paralelamente, no entanto, não me parece suficiente­
mente explicado pela referência ao caráter poimênico da teologia de Lu­
tero. A unidade em que se baseiam as duas concepções diferentes po­
de ser encontrada somente na idéia do Deus abscôndito. Assim, uma
vez mais, num ponto decisivo, a teologia da cruz se nos revela como
princípio heurístico frutífero.
Na tentação tudo depende, pois, de alcançarmos esta compreen­
são decisiva. Reconhecemos então que a tentação é apenas uma prova
que Deus nos mandou (XLIII,203,19ss.). Portanto, justamente quando
perscrutamos a tentação como obra alheia, como obra do diabo, se nos
evidencia nesta mesma tentação a graciosa vontade de Deus. Assim que
vimos o Deus abscôndito, reconhecemos o Deus revelado. Com este re­
conhecimento a alma tentada é invadida de grande consolo
(XLIV.201,21 ss.).192
Pergutando, por fim, pelo sentido e objetivo da tentação, este já se
nos tomou evidente em boa parte do acima exposto. Numa passagem da
preleção sobre Gênesis, Lutero indica três razões para a necessidade da
tentação: “A carne é sujeita a várias tentações e estorvos 1) para que
seja eliminada a autoconfiança, 2) para que não falte ocasião para exer­
cer a palavra e 3) a invocação.” (XLII,673,7ss.) No decurso de nossa aná­
lise já tocamos em todas as três razões.

1. A tentação destrói qualquer presunção (V,397,30ss.), leva a


pessoa ao correto auto-reconhecimento (ll,125,8ss.; XLIII,203,26ss.) e não
permite que surja nela a soberba (XLII,491,11ss.; 551,37s.). Neste ponto

o inimigo seja exaltado, no meio da tentação o inimigo não aparece, mas parece que é Deus
quem faz todas as coisas. E o inimigo está tão ocupado com isso que a pessoa tentada nada
atribui a ele, mas tudo a Deus, como ficou patente no Cristo crucificado, a quem atacaram
com blasfêmias a tal ponto que Deus parecia o d io so .. . ” (Linha 14s.) “ No entanto, não men­
ciona o inimigo nominalmente, mas fala em termos gerais, subentendo, todavia, o diabo e
suas investidas. Pois é ele próprio que reina nesta tentação.” (I,387,5ss.)
192 É especialmente na preleção sobre Gênese que Lutero sabe dizer muito a respeito do con­
solo na tentação; cf. XLII,345,35ss.; 494,9ss.; 13ss.; 553,8ss., 32ss.; XLIII,466,34ss.

140
se nos evidencia de forma definitiva a correlação interna de tentação e
humildade.

2. A Palavra só é apreendida pela fé. A fé, porém, só permanece


viva quando, sempre de novo, supera o escândalo. Ela só experimenta a
graça de Deus quando sentiu a ira de Deus e a sente sempre de novo. Is­
to acontece na tentação (XXXI,2,506,30s.). Quando a fé é despertada
desta forma na tentação, ela sai fortalecida da tentação superada (XLIII,
230,37ss.).

3. Na tentação o fator existencial da fé alcança plena evidência. O


mesmo deve ser dito a respeito da oração. Tentação ensina a orar, ora­
ção vence tentação (Vl,223,15ss.; 111,62,19ss.).

Por esse motivo o cristão aceita a tentação com agradecimento


como presente da mão de Deus (Vll,785,15ss.). Ele não deve refletir so­
bre ela, mas experimentá-la na vida (Vll,787,1ss.). Então, no final, não fal­
tará a experiência da graciosa condução de Deus (XLIt,464,14ss.).
De tudo se terá evidenciado que na tentação se trata de um con­
ceito central da teologia da cruz. Seria de cogitar com seriedade se não
seria possível desdobrar toda a teologia da cruz a partir desse conceito.193
Em todos os casos, cristalizam-se nele os três motivos básicos da teolo­
gia da cruz: o conceito do Deus abscôndito, o conceito de fé, a pregação
da vida sob a cruz.

3. Oração

A última decisão sobre o valor da teologia da cruz de Lutero tem


que acontecer em conexão com a pergunta pela oração. Do mesmo mo­
do como qualquer pessoa pode considerar individualmente seu próprio
posicionamento relativo à oração como teste de sua situação de fé - on­
de não se ora aí, na realidade, não existe fé - , assim também é questão
vital para uma teologia verificar se há nela espaço para uma doutrina da
oração. Se a teologia da cruz fracassar neste ponto, ela não passou pelo
exame, e é com justiça que se pode levantar contra ela a acusação de
niilismo.

193 A teologia da cruz de Lutero também pode ser explicada geneticamente a partir de suas ten­
tações do convento.

141
A partir da maneira de a teologia da cruz pôr o problema, no en­
tanto, sem dúvida o sentido e o direito da oração não é aproblemático.
Não procura a oração estabelecer aquela ligação inabalada entre Deus e
a pessoa, ligação esta que tem que ser considerada proibida segundo a
teologia da cruz? Não quer levar ela para além do “crer” para um “ver"?
Além do mais, pode-se falar de uma certeza de ser atendido quando
Deus é um Deus abscôndito? Podemos ainda ter a ousadia de nos dirigir
a Deus em prece, quando sabemos que o caminho do cristão é o cami­
nho da cruz, que “as coisas contradizem diametralmente nossa razão”
quando Deus quer agir conosco?

1. Também Lutero faz tais perguntas com grande seriedade. Ele


percebeu em toda sua gravidade a enormidade do processo que consiste
no fato de uma pessoa querer orar a Deus.134 A oração ou é loucura ou
milagre. Quando a pessoa pondera que, com sua oração, quer apresen-
tar-se perante o Deus vivo, não lhe tem que fugir o ânimo para orar? Pois
a oração leva a pessoa ao conhecimento de si mesma (ll,93,20ss.).
Quando então a pessoa vê seu pecado e percebe a santa ira de Deus,
como poderá invocar a este Deus do qual prefiriria fugir? (XIX,222,25ss.)
Nisto, porém, Lutero reconhece a maior tentação. Enquanto fica­
mos presos à pergunta por nossa dignidade, ainda não nos libertamos da
atitude errada daquele que crê poder oferecer algo a Deus com sua ora­
ção. Quem pensa assim, este ainda não atingiu o pleno auto-reconheci-
mento, ainda não está na humildade. Oração verdadeira sempre é oração
de mãos vazias (lll,42,21ss.). A pessoa que ora de verdade nada tem, a
não ser a Deus, e a este somente na fé (XVIII,484,16ss.). Uma pessoa
“segura" não pode orar (1,160,21 ss.). De forma alguma a validade da ora­
ção consiste em nossa dignidade, em algo que nós pudéssemos trazer.
Lutero o considera uma insuflação do mau espírito quando sempre esta­
mos com o olhar fixos em nossa indignidade (Vl,235,21ss.). Há uma
consciência de pecado que é desobediência a Deus. Não devemos olhar
nossa indignidade, mas o mandamento e a promessa de Deus (XLIII,
84,1ss.). Pois unicamente a palavra e promessa de Deus tornam nossa
oração boa, agradável perante Deus. Não são o fervor e ardor de nossa
devoção que o fazem (ll,127,36ss.; 175,4ss.). Lutero está, pois, ansionsa-
mente preocupado em não colocar, de forma alguma, a validade da ora­
ção dependente de uma qualidade subjetiva da pessoa que ora. Esta po­
de existir em medida maior ou menor - mas o que determina a oração1 9
4

194 Por isso o velho ditado monástico: orar é o trabalho mais pesado, tem em Lutero uma serie­
dade ainda muito maior. Cf. LVI,446,4ss.; XLII,662,32ss.

142
independe disso. Isso corresponde inteiramente ao que vimos acima
quando da delimitação crítica da fé. Da mesma forma como lá a fé teve
que ser distinguida com nitidez de todas as funções psíquicas existentes,
é preciso que aqui ela seja protegida de ser confundida com um estado
de espírito piedoso. Lutero só pode estim ular à oração porque está colo­
cada esta base crítica (XLII,663,20ss.). Assim a característica do conceito
de fé da teologia da cruz se revela já na pergunta pela oração.

2. Isso, porém, se aplica em medida bem maior quando conside­


ramos os pensamentos de Lutero sobre o atendimento da oração. Neste
ponto encontramos o princípio de sua teologia da cruz executado com to­
do o rigor. Aqui retornam todos os conceitos que lhe são característicos: o
conceito de Deus, o conceito de fé, o conceito de sofrimento. A questão
do atendimento da oração encerra toda a teologia da cruz em seu cerne.
Os pensamentos mais característicos sobre o atendimento da ora­
ção Lutero os expôs em sua preleção sobre Romanos referente a Rm
8.26 (LVI,375-381 ).195 Encabeçando aquelas explanações, Lutero coloca a
frase: "Não é mau sinal, pelo contrário, é bom sinal, quando as coisas pa­
recem acontecer ao contrário de nossas petições. Como também não é
bom sinal quando todas as coisas acontecem de acordo com nossas pe­
tições.” (LVl,375,1ss.). Esta tese brusca resulta como consequência inexo­
rável da teologia da cruz de Lutero. Atrás dela se encontra com clareza a
idéia do Deus abscôndito que pode alcançar a obra própria somente atra­
vés da obra alheia. O agir de Deus acontece “sob aparência contrária aos
nossos conceitos e idéias” (LVI.376.32s.). Revelação só existe em vela-
ção. Por isso o aparente não-atendimento é o melhor atendimento.
Agora, porém, podemos, em exata analogia à idéia das “costas de
Deus”, observar que ao lado desta relação simultânea de atendimento e
não-atendimento se coloca uma relação sucessiva: “Acontece que sem­
pre entendemos nossa obra antes que suceda; a obra de Deus, porém,
não a entendemos antes que tenha sido realizada." (LVI,377,24ss.) Deus
demora com seu atendimento, mas, afinal, ele não deixa de acontecer. A
partir deste pensamento pode-se desenvolver preponderantemente todo o
mais. Nesta forma o “sob aparência contrária" de Lutero permanece sem­
pre em vigor.196 Assim Lutero o explana em sua explicação do Salmo

195 Cf. minha análise desta passagem em “ Luther'’, in: Vierteljahresschrift der Luthergesellschaft,
l/ll, 1927, pp. 3-12.
196 Quem conhece o "sob aspecto contrário” , nâo quererá livrar-se do sofrimento antes que
Deus tire dele a cruz. Sim, este inclusive roga por cruz e sofrimento, para que sua vontade
seja quebrada, e a vontade de Deus se cumpra (II, 105,12ss.). O sofrimento, por sua vez, es­
timula à oração e com isso fortalece a lé. Cf. a maravilhosa exposição deste nexo no “ Sermão

143
C C n/IIM A R IÍ) ftn W C fíR O Í/
130, de 1517: temos que aguardar o atendimento e não devemos dar
“nome" ao auxílio de Deus (1,208,30ss.). Justamente também no antedi-
mento da oração Deus se revela como Deus abscôndito; por isso não de­
vemos colocar medida nem alvo a seu auxílio (ll,177,12ss.;
Vl,233,17ss.).197 Muitas vezes Deus adia o cumprimento de nossa prece,
para aumentar nosso fervor na oração (XLIII,677,23ss.,31ss.). Deus se
toma o Deus abscôndito para a pessoa que ora, para que, na oração, a fé
alcance o Deus revelado através do Deus abscôndido (XLIV,192,27ss.).

3. Com isso já passamos para a terceira pergunta que nos deve


ocupar aqui: a pergunta pela certeza do atendimento. Enquanto a pergun­
ta pelo atendimento correspondeu mais à questão pelo Deus abscôndito,
analisamos o assunto agora, uma vez mais, a partir de outro lado - do
lado que corresponde ao conceito de fé. Em últim a análise naturalmente
se pode separar a questão da certeza do atendimento tão pouco da ques­
tão do atendimento quanto não se pode isolar o conceito de fé da teolo­
gia da cruz da idéia do Deus abscôndito. Ambos os conceitos em conjun­
to é que dão o quadro correto.
Podemos ser breves. À idéia do Deus abscôndito corresponde de­
terminado conceito de fé. O que dissemos acima sobre a questão do
atendimento determina o que ainda falta dizer sobre a certeza de aten­
dimento. Duas coisas são acentuados por Lutero com igual ênfase:198

a) A certeza de atendimento é certeza de fé. O que isso significa


já o compreendemos agora. Lembremos a delimitação crítica do conceito
de fé (cf.ll,130,14ss.; V,87,36ss.; XVIII,495,36ss.).
b) A certeza de atendimento é certeza de fé. Justamente na qua­
lidade de certeza de fé ela é mais certa do que certeza empírica ou ra­
cional. Sem esta certeza a oração é infrutífera, mais do que isto, ela é
injúria, usurpação da honra de Deus (ll,127,6ss.; mas confira também
ll,127,19ss.). Considerar a Deus verdadeiro sob todas as circunstâncias,
este é o culto máximo, é a religião mais elevada (XLIII,399,28ss.).

sobre as boas obras" (VI.249,11ss.). Naturalmente, onde o sofrimento Incita à oração ele já
está fundamentalmente superado (V,494,14ss.; XIX,222,8ss.).
197 ‘'Condiclonalmente" pode-se também pedir o auxílio de Deus em certo tempo
(XLIII,326,17ss.).
198 Lutero coloca ambos os pontos de vista lado a lado (Vl,233,27ss.)

144
Vemos, portanto, que na questão da oração se resume, uma vez
mais, toda a problemática da teologia da cruz. Têm aqui seu lugar não só
a humildade e a tentação (a primeira mais relacionada com a pergunta
pela validade da oração, a última mais com a questão do atendimento),
mas também não se pode abstrair por um instante sequer dos conceitos
básicos da teologia da cruz (conceito de Deus, de fé, de sofrimento). Na
posição que a oração tem na teologia de Lutero199 evidencia-se que a
teologia da cruz não é um jogo de conceitos. O elemento existencial da
fé, que já demonstramos acima no conceito de experiência e de novo no
da tentação, evidencia-se aqui, uma vez mais, com toda clareza.200 Ora­
ção é auto-realização da fé.201 Oração e fé inter-relacionam-se da forma
mais íntima.202 A partir daí Lutero critica a prática católica da oração, a
partir daí dá instruções práticas sobre como se deve orar. Infelizmente
temos que renunciar à exposição desses pensamentos valiosos, por não
caberem nos moldes da presente análise (cf. o escrito ao barbeiro Pedro:
Uma forma singela de orar para um bom amigo, 1535, XXXVIII,358,375*).
Eles nos demonstrariam, uma vez mais, que a teologia da cruz não exclui
a concreticidade da “vida piedosa”, mas a exige. Pois com isso Lutero
não se toma infiel aos reconhecimentos fundamentais de sua teologia da
cruz. Porque na oração não se procura, no final, apesar de tudo, uma saí­
da de todos os duros paradoxos; a oração não é um jardinzinho no paraí­
so, no qual a pessoa cansada da teologia da cruz pudesse descansar,
mas a oração é justamente o campo de batalha no qual está implantado
o sinal da cruz.

199 Cf. a valorização da oração como "característica da igreja” (L,641,20ss.).


200 Por isso não é possível nenhuma auto-observação na oração; oração só existe "n o próprio
ato” de orar (ll,85,36ss.).
201 Da forma mais consequente Lutero executou este ponto de vista na explicação do terceiro
mandamento no “ Sermão sobre as boas obras” (Vl,229ss.). Sem a fé, a oração é morta
(233,10ss.). Por outro lado, justamente a oração revela a fraqueza da fé (234,16ss.). No en­
tanto, quanto mais fraca a fé, tanto mais necessária a oração (237,8ss.), pois a fé cresce por
meio da oração (234,4ss.). Em suma, oração revela-se como "exercfcio especial da fé"
(232.22SS.).
202 Este pensamento coneto decerto também é a base do estudo de R. HERMANN, Das Verhält­
nis von Rechtfertigung und Gebet nach Luthers Auslegung von Röm. 3 in der Römerbriefvor­
lesung. Pois para Lutero a fé é fé da justificação. Vida com Deus - e é isso que é a oração -
só pode haver com base na justificação. A oração nos confronta com nossa culpa e vive da
misericórdia de Deus. No entanto, as explicações dos detalhes dadas por Hermann, revelam,
muitas vezes algo forçado, tanto que quase mais obscurece a profunda idéia-base do que a
clareia.
* Pelo Evangelho de Cristo, São Leopoldo e Porto Alegre, 1984, pp. 317ss.

145
PARTE IV
TEOLOGIA DA CRUZ E MÍSTICA

Até aqui desenvolvemos os pensamentos da teologia da cruz de


Lutero sem nos determos muito na questão de sua gênese. Isso corres­
ponde também ao projeto básico e à intenção do presente trabalho. Não
estamos interessados, em primeira linha, numa análise histórica, mas em
introduzir um ponto de vista negligenciado - a nosso ver injustamente -
relativo à reflexão sobre a teologia de Lutero. Vemos, portanto, nossa ta­
refa principal em evidenciar, segundo seu nexo mais íntimo, aquilo que
entendemos sob teologia da cruz em Lutero - em esclarecer a coesão in­
terna desses pensamentos. Desaprendemos em larga escala - para nos­
so prejuízo - a compreender um fenômeno espiritual em sua lógica pró­
pria. Pense-se, por exemplo, num tipo de exegese neotestamentária que
se interessa menos pelo texto em si do que por aquilo que está "atrás do
texto”. Desde os ataques de Denifle, também nossa pesquisa de Lutero
tomou-se um tanto super-tímida na tentativa de olhar “atrás de Lutero”,
por mais importante e sempre ainda necessário que seja este trabalho. O
direito de ser de nossa exposição cai e permanece com ela mesma. Ain­
da que fosse possível demonstrar sem reservas - o que jamais se logrará
- que a teologia da cruz de Lutero de fato é apenas um mergulhão da ár­
vore da mística medieval e da teologia monástica, ainda assim valeria a
pena retraçá-la como um todo orgânico. O enquadramento histórico ja­
mais pode ter o sentido de libertar de uma reflexão séria sobre o objeto a
ser enquadrado. Antes, pelo contrário, é preciso dizer que as tentativas de
constatar dependência só sairão de um tatear ao redor ametódico quando
o referido objeto da análise está diante de nós com clareza. Aqui nos
propusemos esta últim a tarefa que, aliás, tem que ser a primeira.
Não obstante, consideramos dever nosso não evitar simplesmente
a questão histórica. Ela se impõe por demais, que pudéssemos fazer is­
so. De modo especial fomos lembrados, a toda hora, de pensamentos da
mística alemã no capítulo sobre “a vida sob a cruz”. Humildade, sereni­
dade, discipulado da cruz, conformidade com Cristo, todos estes são ter­
mos conhecidos da mística medieval tardia. Lutero apenas os adotou?
sua teologia seria apenas “teologia monástica”? ou soube ele imprimir-
lhe o cunho de seu próprio espírito? Na exposição acima já tocamos esta
questão em parte; não queríamos, porém, arrolá-la em cada ponto especí­

146
fico, para evitar repetições. Tentaremos emendar esta falha, clarificando
agora, em largos traços, nosso posicionamento relativo ao problema
“teologia da cruz e mística". Queremos, no entanto, sublinhar teremos
que restringir-nos à elaboração dos traços amplos. Uma exposição deta­
lhada ultrapassaria os moldes de nosso trabalho. Teríamos que ocupar-
nos extensivamente com problemas da biografia de Lutero (por exemplo,
com as questões dos contatos entre Staupitz e Lutero, a influência dos
irmãos da vida comum sobre Lutero), para o que não há espaço aqui.
Mais adequado ao nosso objetivo nos pareceu o estudo das fontes con­
fiáveis de que agora dispomos em edições críticas.203

I. Preliminares sistemáticos

É para nós uma circunstância desagradável o fato de não haver,


de forma alguma, consenso no que seria mística na verdade.204 Ora, a na­
tureza da mística não se nos toma acessível nem pelo caminho da eti­
mologia nem pelo da psicologia.205 A compreensão psicológica encontra
seus lim ites nas diferentes formas em que a mística aparece; nelas, no
entanto, suficientes vezes a natureza da mística aparece turvada. Pode­
mos apreendê-la somente quando vemos nela uma necessidade última
da pessoa Isso, porém, não o conseguiremos por meio de “observação
neutra”, mas tão-somente quando também nós nos aproximamos dela
com um posicionamento último. Em termos concretos: só alguém que
conhece a fé de experiência própria pode ter ouvido aberto e uma visão
clara para a intenção da mística. A pergunta pela natureza da mística,
portanto, somente tem solução pela aparente volta através daquela outra
pergunta “fé e mística". Mas também neste ponto as opiniões divergem
muito. No presente podem-se distinguir três grupos. O primeiro (Barth,
Gogarten, Brunner) ensina com o maior rigor a incompatibilidade de fé e
mística; o segundo (Otto, Heiler) defende com a mesma decisão a inter-
relação, enquanto um terceiro grupo (Schaeder, Deissmann) encontra a
solução num discernimento entre mística justificada e injustificada. No

203 Thom as a Kempis, ed. HIRSCHE; Tauler, ed. VETTER; Theologia Deutsch, ed. UHL;
Staupitz, ed. KNAAKE e BUCHWALD-WOLF.
204 No que segue, aderimos amplamente ao livrinho de HEINZELMANN, Glaube und Mystik, ao
qual muito devemos. O trabalho de BETH, Frömmigkeit der Mystik und des Glaubens, publi­
cado igualmente em 1927, no entanto, carece, a meu ver, da clareza da definição dos con­
ceitos alcançada por Heizelmann. Cf., além disso, BRUNNER, Die Mystik und das WorLm
205 Este último caminho envereda-o com maestria R. OTTO, West-östliche Mystik.

147
todo teremos que decidir-nos pelo primeiro grupo.206 O que aqui se en­
tende sob mística tem as seguintes caracteristicas:

1. A exemplo da fé, a mística é uma religião determinada quanto


ao conteúdo. Mística e fé perguntam ambas pelo sentido último, em am­
bas está em jogo a pergunta por Deus. Por isso mística não é, em primei­
ro plano, filosofia, mas religião.

2. Toda mística pensa em termos ontológicos. Ela pode apreender


a Deus somente sob o conceito do “sumo ser“ .207 Deus e criatura são
vinculados pelo conceito do ser.

3. Com isso está dada a razão para a insuficiência da mística. Por


não conseguir ir além da categoria do ser em seu pensar, o princípio reli­
gioso autêntico da mística não chega à consumação.208 A metafísica se
contrapõe à religião. Uma vez que a categoria do ser domina a tudo, a di­
ferença entre Deus e a pessoa congrui com a diferença entre infinito e fi­
nito. Não é possível realizar o conceito de personalidade. Por isso é alvo
do processo religioso a unidade e não a comunhão. Pois comunhão só
existe onde há personalidade. Unidade, porém, deve ser entendida no
sentido de identidade indiferenciada. Este é o ponto em que a incompati­
bilidade entre fé e mística salta aos olhos. A fé não conhece um dissol­
ver-se em Deus, mas sempre somente um estar perante Deus na comu­
nhão do eu e do tu.
Com isso relaciona-se intimamente:

4. Para a mística o pecado é criaturalidade, para a fé é desobe­


diência à vontade de Deus. Este é o pior defeito da m ística a rigor, o
conceito de culpa não tem lugar nela. Por isso também não sabe o que
fazer com perdão e reconciliação. Ela não pode afirmar de seu "sumo
ser” algo como um agir, uma interlocução. Aqui a alma não aguarda a
palavra do perdão criadora de vida, mas mergulha no abismo infinito do
ser não-criado. Fé e mística são dois caminhos em direção ao mesmo al­

206 Isso o faz, em úllima análise, também Heinzelmann, apesar de seu protesto contra a "teolo­
gia dialética” .
207 A mística especulativa pôde criar raízes no catolicismo justamente por causa desse conceito
de Deus que ela compartilha com a escolástica. A luta da igreja medieval contra a mística é a
luta contra um de seus elementos originais. Cf. HEIM, Gewissheitsproblem.
208 Este é o ponto do qual parte a crítica de BRUNSTÃD â mística. Cf. especialmente ioc. ciL,
p. 3 a

148
vo. A mística, porém, "é incapaz de suportar a tensão paradoxal da fé, e a
dissolve” (Heinzelmann, loc. cit., p. 63). Por isso fé e mística estão entre
si como água e fogo. Além disso tem que se constatar, em concordância
com Heizelmann (p. 110ss.), que fé jamais pode transformar-se em místi­
ca sem renunciar a si própria, e que, por esta razão, termos como “místi­
ca da fé” ou “mística da justificação” só servem para provocar idéias er­
radas.

A oposição entre fé e mística deve ter ficado clara. Foi preciso co­
locar estas observações básicas no começo, para criarmos uma base cla­
ra para nossa análise detalhada.209 É claro que elas não puderam evocar
em nós de antemão uma predisposição favorável para a acepção que
quer avizinhar a teologia da cruz na maior proximidade possível com a
mística. Se fé e mística se encontram em antítese tão rigorosa como o
elaboramos acima, a teologia da cruz, fosse ela de fato um produto da
mística, deveria encontrar-se em contradição irreconciliável com a teolo­
gia da fé de Lutero. Vimos que não se pode cogitar disso. Teologia da
cruz é teologia da fé - isso sempre de novo se nos tomou evidente.
Está com isso eliminada a questão “teologia da cruz e mística”?
Não. Coisas que, em princípio, nada têm em comum, podem, ainda as­
sim, entrar numa relação histórica. E em nosso caso isso é tanto mais
possível quanto a mística com a qual Lutero entrou em contato, foi uma
mística abalada, cristámente inibida. Nisto consiste a segunda dificuldade
de nossa análise: a mística em questão não é uma configuração unifor­
me. Somente assim são compreensíveis dois juízos tão contraditórios so­
bre essa corrente como as de Ullmann210 e Ritschl. Portanto, não pode­
mos decidir a questão teologia da cruz e mística em princípio, mas temos
que tomar o caminho da observação nos detalhes.

II. Análise histórica

Pode ser tomado hoje como resultado claro de muitos estudos que
não foi a mística que levou Lutero a sua descoberta reformatória decisiva.
Podemos simplesmente aceitar esse resultado. Com isso, porém, ainda

209 Uma tal parece-me (altar na descrição de Lutero por OTTO, West-östliche Mystik, p. 277ss.
Otto não tem percepção para a diferença básica de té e mística. Ib d , p. 274, também a (rase:
Quem diz ‘espírito” de alguma forma diz “ mística". Cf. a tese contrária de HEINZELMANN,
loc. c it, p. 116.
210 A tese de Ullmann a respeito dos “ reformadores antes da Reforma” deveria, hoje, contar com
pouca aceitação, pelo menos entre os teólogos. Entre os historiadores profanos, porém, pa­

149
não está respondida nossa pergunta específica. Pois a teologia da cruz é
considerada, em amplos círculos, como a teologia pré-reformatória de Lu-
tero. Mostramos que esta restrição temporal não condiz, mas que, muito
antes, a teologia da cruz é elemento permanente de toda a teologia de
Lutero. Neste caso, porém, ainda se poderia perguntar se não seria, por
acaso, o fermento místico esse elemento permanente na teologia de Lu­
tero. Conseguiremos aproximar-nos de uma resposta somente se agora
passarmos a uma anáfise detalhada - evidentemente apenas em esbo­
ços.211

A. Tauler

Começamos por Tauler.212 Uma discussão com ele nos levará ao


alvo mais facilmente não só por ser o místico de maior influência da Ida­
de Média Tardia, mas também porque as relações de Lutero com eie po­
dem ser constatadas com a maior segurança.213 Pois dispomos de uma
série de extemações de Lutero sobre Tauler, oriundas de seu primeiro pe­
ríodo, extemações estas que nos mostram como o próprio Lutero com­
preendeu sua relação com Tauler.214 Além disso, graças à descoberta de
Buchwald, estamos na feliz situação de possuirmos um exemplar dos

rece estar ainda em melhor cotação. Cf. também SCHEEL, Lutherund Tauler, p. 299s. Para
A. RITSCHL, veja Recht und Versöhnung, v. I, 2 ed., p. 117ss.
211 HERING, Die Mystik Luthers, é uma tentativa de demonstrar a grande importância que se de­
ve atribuir â ajuda da mística na libertação de Lutero da escolástica. Nos detalhes encontra­
mos aqui preciosas referências. Também náo se apaga o limite entre o ponto de vista do pró­
prio Lutero e o acervo de idéias da mística. Em primeiro lugar, porém, toda semelhança lin­
guística é tomada (por demais vezes sem abonações expressas!), sem reflexão, como in­
fluência de conteúdo; em segundo lugar, toda a exposição carece de uma definição dara da
essênda da mística A partir daí se explica em terceiro lugar, a antítese errónea escolástica-
mfstica sobre a qual está estruturado o todo, tese que, no entanto, nessa forma não é sus­
tentável. No todo, há que se concordar com o juízo de A. RITSCHL, Rechtfertigung und
Versöhnung, v. I, 2, ed., p. 129, n. 1, sobre o livro.
212 Quanto a Bernardo, apontamos para nosso excurso sobre a humildade. Ali está evidenciado
claramente o que ambos têm em comum e o que os distingue.
213 Cf., em relação a este capitulo, KÖHLER, Luther und die Kirchengeschichte I, p. 236ss.;
SCHEEL, Taulers Mystik und Luthers reformatorische Entdeckung; KÖSTLIN-KAWERAU, v.
I, p. 110-115; BOEHMER, Der junge Luther, p. 139ss.; KÕSTLIN, Luthers Theologie, v. I, 2.
ed., p. 105ss., onde sobressaem especialmente as diferenças entre Lutero e Tauler; Wilhelm
PREGER, Geschichte der deutschen Mystik im Mittelalter, v. III, livro 1; Gottlob SIEDEL, Die
Mystik Taulers: R.E., 3® ed., v. 19, pp. 451-459 (Cohrs); R.G.G., 1® ed., v. V. col. 1112s.
(Reichel).
214 Para facilitar uma visão geral, oferecemos as abonações mais importantes: WA Br l,6 5 ,14ss.;
79,58ss.; 96.8SS.; 160,8ss.; LVI,378,13s.; 1,137,14s.; 298,29s. (cf. 586,18s.); 557,25ss.;
674,34ss.; V,203,15s.; 305,19s.; 353,40; 459,7; 564,3.

150
sermões de Tauler com glosas marginais de Lutero (ver WA IX,95ss.). As
glosas são de 1516. É por esta época que Lutero deverá ter conhecido a
Tauler. Justamente naquela época o nome de Tauler aparece também na
preleção sobre Romanos (LVI,378,13s.). Esta constatação histórica já
mostra por si só que a teologia da cruz215 de Lutero não procede apenas
da ocupação com Tauler; pois ele a defende já muito antes. Antes, vê em
Tauler apenas um correligionário. Os sermões de Tauler são para efe
uma confirmação de que sua teologia wittenberguense não é uma inova­
ção absoluta.216 Portanto não é possível atribuir a teologia da cruz de Lu­
tero a uma influência direta de Tauler.
Qual é, porém, a situação com o parentesco interno entre os pen­
samentos de Lutero e os de Tauler referentes à teologia da cruz, paren­
tesco este tão fartamente sentido e ressaltado por Lutero? Trata-se de fa­
to, cá e iá, da mesma causa, ou pensam Lutero e Tauler, no fundo, coisas
diferentes ainda que digam as mesmas palavras? Temos que renunciar a
uma comparação por extenso e restringimo-nos à acentuação dos pontos
de vista mais importantes.
Tomamos por ponto de partida a exposição de Tauler sobre a pes­
ca de Pedro: "Jesus embarcou no barquinho que pertencia a Simão.” (em
Vetter n- 41, na edição de Lutero, n? 45). Este não é apenas o mais belo
sermão de Tauler, mas permite, ao mesmo tempo, o olhar mais abran­
gente em seu mundo de idéias. Evidentemente a explicação é alegónca,
como sempre em Tauler. o barco é a “mente da pessoa do lado interior”,
o mar é o mundo. O chamado de Jesus “faze-te ao largo” é interpretado
como conclamação para dirigir o amor acima de toda a criatura a Deus. O
sermão todo é uma descrição maravilhosa e profunda do caminho de sal­
vação místico. O grau inferior constitui a contemplação da vida e paixão
de Jesus. Desde Bernardo, isso é patrimônio comum da mística medieval.
A alma, porém, não pode ficar parada aqui em seu “itinerário em direção
a Deus” . Eia se sente impelida para o segundo grau. Nele cai da pessoa
tudo o que as forças inferiores podem compreender. Gozo e sofrimento
ficaram para trás, inclusive a compaixão que surgiu da contemplação do
sofrimento de Jesus, já não a afeta mais. A paz, porém, ela ainda não al­
cançou. Pois justamente agora erguem-se, com toda força, as tentações
e caem sobre a pessoa. Com isso está alcançado o ponto crítico do ca­
minho da salvação. O quê interessa agora é que a pessoa não fuja de si

215 TSo pouco quanto sua descoberta reformatória. Contra A. V. Müller: Lutherund Tauler; cf.
SCHEEL, Taulers Mystik und Luthers relormatorische Entdeckung.
216 Cf. BR l,79,58ss. É sabido que Lutero considera o "francfurtiano" um epítome dos sermões
de Tauler.

151
mesma, não busque conselho e consolo em nenhuma criatura, nem se­
quer com o confessor, mas somente em Deus. Pois a alma encontra-se
agora imediatamente diante do parto. A tentações nada mais são do que
as dores de parto. O que livra deles a alma, isso será parido por ela, seja
Deus ou criatura. Este terceiro grau, o nascimento de Deus na alma, al-
cança-se somente pela serenidade plena. Por isso Tauler tem em tão alta
consideração o sofrimento, a passividade pura, por ser isso o caminho
mais curto para o nascimento místico. Pois ele é o alvo de todo o cami­
nho, somente por causa dele se exige a contemplação no primeiro grau,
por sua causa são necessárias as tentações e sofrimentos do segundo
grau. Onde, porém, foi alcançado este tercerio grau, as coisas não param
aí: "Filhos, se a pessoa chega bem a esse fundo e a esse ser, esta rede
necessariamente tem que rasgar-se.” (V.175,3s.) Toda a “individualidade”
da pessoa é destruída. Com isso está alcançado o quarto grau: a pessoa
submerge em Deus. “Aqui o nada criado submerge no nada não-criado”
(V.176,4), o “abismo criado submerge no abismo não-criado” (V.176,8), “aí
o espírito se perdeu no Espírito de Deus” (V.176,9s.).
Perguntamos: Qual o tema deste sermão sobre a pesca de Pedro?
Sem dúvida, o nascimento de Deus na alma. Tudo que é dito aqui sobre
sofrimento, tentação e serenidade é dito em função deste tema. Esse re­
sultado não é fortuito. Pode-se dizer como em Lutero todo sermão (ex­
cetuando-se os sermões dos tempos de convento) trata da justificação,
assim em Tauler todo sermão trata do nascimento de Deus na alma.217
Selecionamos alguns exemplos. V. n9 1, “Dos três partos”: aqui é Maria o
símbolo da alma parturiente de Deus. O tema de V. n9 2: “Como encontra
o menino Jesus o caminho para Jerusalém, isso é, como alcança a alma
a verdadeira paz, o parto?” O título de V. n9 4 é: "Onde está o que é nas­
cido rei dos judeus?” e o tema: a estrela como indicador do nascimento.
De acordo com o sermão pentecostal, V. n9 26, a maior dádiva do Espíri­
to consiste no fato de uma pessoa perder-se no abismo divino. O sermão
sobre a dracma perdida, V. n9 37, tem por pensamento-alvo que “a alma
é elevada para além de si própria, para dentro de Deus” (V. 146,24), para
que se torne “consciente de Deus, divina, igual a Deus” (V.146,21). “O-
Ihos bem-aventurados” (Lc 10.23) são os olhos que vêem como o abismo
criado flui para dentro do abismo não-criado (V.201,5). Poderíamos am­
pliar o número dos exemplos. Porém, basta! Vemos com clareza qual é a
preocupação de Tauler.

217 Que o tema de Lutero é o mais cativante pode ser experimentado, entre outras maneiras,
peio fato de os sermões de Tauler, apesar de sua beleza (ou justamente por causa dela?)
cansarem bem antes que os de Lutero.

152
Teria Lutero adotado este pensamento central de Tauler? Pode-se
apontar para a passagem da preleção sobre Romanos, WA LVI, 379,1ss.
Aqui Lutero fala de fato na linguagem mística. A passagem não pode ser
explicada de outra maneira do que como referindo-se ao nascimento mís­
tico. O "sofrer a Deus” (LVI,378,13) não pode ser relacionado sem mais
nem menos com a justificação.218 Um estudo detalhado do trecho mostra,
porém, que ele se encontra num contexto bem diferente.219 De forma al­
guma o acento está sobre esta parte mística. Antes, ela dá a impressão
de um corpo estranho que depois, aliás, é eliminado de novo num pro­
cesso interessante. Além do mais tem que se considerar muito que se­
quer essa passagem avança tanto quanto Tauler. Em Lutero não se fala
de um submergir em Deus (apesar do “aniquilamento”).
Nesta passagem, portanto, Lutero não rejeitou o nascimento místi­
co, ainda que não mais queira enquadrar-se perfeitamente no conjunto
todo de seu pensar, como vimos. Em outra passagem, porém, podemos
observar como Lutero já desconfia dele (LVI,299,27ss.).220 Em primeiro
lugar ele ali considera grande perigo dar ouvidos à “palavra secreta”, ao
“verbo não-criado”, “dito ao íntimo da alma no sussurro santo” (V.
63,18s.); pois a pessoa nem consegue ouvir suficientemente ao verbo en­
carnado. Lutero, portanto, não consegue ultrapassar com a mesma rapi­
dez que Tauler aquele primeiro grau do caminho da salvação. Sim, ele o
considera como uma exceção como ocorreu aos apóstolos, por exemplo,
quando acontece um “arrebatamento”. E na prática o "acesso” (Rm 5.1)
do qual nos tomamos participantes no primeiro degrau, é bem mais im­
portante para o cristão do que aquele fenômeno excepcional do "arreba­
tamento”. Vemos que justamente aquilo que para Tauler era o mais im­
portante e o máximo, aqui é colocado de lado como sem importância,
sim, perigoso. De forma semelhante expressa-se Lutero em suas glosas
marginais ao primeiro sermão de Tauler sobre os três nascimentos:

218 SCHEEL, Tauler und Luther, p. 317, n. 5, afirma isso, a meu ver com razão, contra
BOEHMER, Luther im Lichte der neueren Forschung, 55 ed., p. 65. É verdade que Boehmer
reintroduziu literaimente esta frase duvidosa em seu “ Lutero jovem” (p. 140).
219 Cf. minha análise.
220 “ A partir daqui são atingidos também aqueles que, seguindo a teologia mística, confiam nas
trevas interiores, esquecidos das imagens da paixão de Cristo, desejando ouvir e contemplar
o próprio Verbo incriado, sem antes terem sido justificados e purificados os olhos do coração
pelo Verbo encarnado. Porque primeiro é necessário o Verbo encarnado para a purificação
do coração; uma vez havida esta purificação, só então a pessoa poderá ser arrebatada por
ele para dentro do Verbo incriado por meio da anagoge. Quem, todavia, se considera tão
puro que pudesse ousar aspirar a isso? a não ser que seja chamado e arrebatado por Deus
como o apóstolo Paulo, e seja 'elevado com Pedro, Tiago e João, seu irmão’. Em resumo, tal
arrebatamento não é chamado 'acesso'.” (LVI,299,27ss.)

SEMINAKlü CONu); i53


De sorte que este sermão procede da teologia mística, que é sabedoria
experimental e não doutrinal. Porque ninguém sabe a não ser aquele que
aceita este negócio oculto. Pois fala do nascimento espiritual do verbo não-
criado. A verdadeira teologia do nascimento espiritual do Verbo encarnado
tem aquela uma coisa necessária e a melhor pgrte. (IX,98,30ss.)

A teologia verdadeira é justaposta à teologia mística. Aqui se bi­


furcam com nitidez os caminhos entre a mística de Tauler e a teologia da
cruz de Lutero. Teologia da cruz é teologia da revelação; para a mística a
revelação histórica é apenas pré-estágio para um intercâmbio direto, im-
perturbado e imediato entre Deus e alma. Sim, inclusive o termo “inter­
câmbio” ainda é por demais exterior para expressar o que a mística tem
em mente. Pois Deus e alma já não se encontram face a face como duas
pessoas. Neste último estágio já não mais se distingue entre Deus e a
alma. Ao co n trá rio disso, em outra passagem (IX,102,10), Lutero não
pode imaginar o “nascimento” de outra forma do que um “agir" de Deus
em nós, como a execução de um “plano” (IX,102,26) em nós, como um
“apreender” a Deus de nossa parte (IX, 101,29). Aqui se trata de uma clara
relação eu - tu, do mesmo modo como naquela figura bíblica do barro e
do oleiro, que Lutero gosta de usar neste contexto (cf.
IX,97,15s.;102,17ss.: LVI,376,21ss.; 378,2ss.). Pelo fato de o Deus da
teologia da cruz ser o Deus da revelação histórica, ele é sempre um Deus
atuante, continua sendo pessoa, jamais se transformando em “abismo”,
em um “nada” no qual a alma pode submergir. A este conceito de Deus
divergente corresponde a antropologia divergente em Lutero e Tauler. Pa­
ra dizê-lo em resumo: Lutero não acredita no “fundo da alma” místico.221
É verdade que, também segundo Tauler, a pessoa não chega a este
"verdadeiro fundo” (V.358,23) sem a graça de Deus, isso tem que ficar
constatado.222 No entanto, permanece a diferença característica: em
Tauler voltar-se para Deus consiste em uma penetração no mais íntimo
da alma; em Lutero voltar-se para Deus só é possível por meio de uma
palavra criadora dirigida por Deus à pessoa. E a isso se relaciona, por
fim, a última diferença entre Tauler e Lutero223: Lutero rejeita os elemen­
tos especulativos da mística que constituem premissa indispensável tam­
bém para a mística de Tauler eclesiasticamente domesticada.

221 Cf. o capitulo sobre a sindérese. Sobre o termo em si, veja SIEDEL, loc. c it, p. 51-65, que
analisou especialmente as relações com os vocábulos escolásticos. Lutero traduz o "grunt"
de Tauler com muita propriedade com "mente” ou “ sindérese” (IX,99,36ss.).
222 Cf., porém, HOLL, loc. Cit, p. 10, n. 2.
223 Isso agora é visto em geral e, por isso, não precisa ser exposto em detalhes.

154
Em resumo podemos dizer; Justamente o cerne da teologia místi­
ca de Tauler há que permanecer incompreensível para a teologia da cruz.
Pois naquela a teologia é evidentemente teologia da glória. A teologia da
cruz é, portanto, o mais rigoroso protesto contra a mística de Tauler corre­
tamente compreendida. Portanto, deve ser rejeitada com o maior rigor
como enganadora no mais alto grau a tese de que a teologia da cruz fos­
se de origem místico-monástica. Vistas a partir de seu centro, mística e
teologia da cruz formem a mais rigorosa antítese.
A aceitação geral desta tese seria incompreensível, de princípio,224
não revelassem os dois fenômenos, apesar dessa diferença decisiva,
acentuadas semelhanças nos detalhes. Basta lembrar a forte ênfase no
sofrimento (V. n9 3), no discipulado da cruz (V. 335,21 ss.), no “aniquila­
mento” (V. n9 41), na tentação (V. n9 41), na serenidade que pode ir ao
extremo da “resignação até o infermo” (V.108,16), que podemos observar
a todo passo em ambos. Sem dúvida, estamos diante de um patrimônio
comum da mística e da teologia da cruz. Por esta razão também Lutero
saudou a Tauler com tanta alegria como congenial. Baseados no resulta­
do acima, porém, somos céticos de princípio em relação a esta concor­
dância ampla nos detalhes. Ela existe, sem dúvida, e dificilm ente se pode
decidir com relação a cada frase de Lutero se não a poderíamos encon­
trar também na mística, e vice-versa.225 Perguntamos todavia; Pode-se
falar seriamente numa igualdade nos detalhes, quando está reconhecida
a contrariedade dos conceitos básicos?226 Colocamos a tese; também
nos detalhes Lutero associa aos conceitos supramencionados outro sen­
tido que Tauler. Isso ainda precisamos demonstrar com brevidade.227
Tauler fala de forma mais extensa sobre os sofrimentos em seu
sermão das três mirras.228 Aqui, de fato, encontramos muita coisa que
também faz parte dos pensamentos prediletos de Lutero. Por um lado,

224 Não é preciso deter-nos com a opiniáo positiva de Lutero a respeito de Tauler. É sabido em
geral que Lutero introduziu sua própria opinião no pensamento de Tauler. KÖHLER, p. 284,
observa corretamente que o pensamento central em tomo do qual podem ser agrupadas to­
das as extemações de Lutero sobre Tauler, é: "O homem nada - Deus tudo.” A singularida­
de da teologia de Tauler, no entanto, não está encerrada nesta fórmula.
225 Isso se refere, naturalmente, ao conteúdo, não à linguagem.
226 Com freqüêncía esta pergunta não é formulada com a devida agudeza. Por isso, por exem­
plo, uma análise do Debate de Heidelberg como a de BAUER vacila um tanto indecisa em
seu juízo sobre a influência da mfstica; cf. p. 306 com p. 308 e 316!
227 Quanto à expressão “ resignação ató o inferno" (resignado ad infernum), foi sabidamente
HOLL que o fez. Restringimo-nos a indicar sua exposição, toe. c it, p. 150ss.
228 VETTER, n® 3, cf. IX,99,1ss. Gosta-se de chamar a atenção especialmente para este sermão
por causa de sua semelhança com os pensamentos de Lutero, p. ex., BAUER, loc. cit.,
p. 303.

155
encontramos a afirmação de que todos os sofrimentos auto-escolhidos
não são mérito perante Deus, porque Deus aceita somente sua própria
obra.229 Por outro, porém, a opinião de que o sofrimento mais duro e
amargo é a “tribulação interior e a escuridão interior" (V.19,5). Lutero ano­
ta à margem: “A terceira mirra é a suspensão da graça230 e do Espírito.”
(IX,90,29.) Novamente somos lembrados de Lutero da forma mais nítida
quando lemos: “A pessoa sempre tem que ter uma cruz.” (V.355,22.) Para
que, porém, serve esta cruz? No sermão “Quando eu for exaltado” (V. n9
65), do qual se origina esta citação, Tauler distingue três partes na pes­
soa: a pessoa sensorial, a pessoa inteligente e a pessoa superior, deifor-
me (V.357,16ss.).231 A cruz serve para que a pessoa se eleve com toda a
força para a pessoa superior (V. 357,34s.), para que entre “no verdadeiro
fundo” (V. 358,23), no homem interior, e, com isso, no espírito não-criado.
Devemos assumir o jugo da cruz de Cristo; pois assim alcançamos a “se­
renidade insondável” (V.396,6), estando, porém, nós nela, “ele vem com
certeza, ele é nascido" (V. 397,6s.). Também as tentações, das quais
Tauler sabe falar, não têm outro sentido; elas são dores de parto
(V.171,35ss.). Estando, porém, realizado o parto, acabaram-se as tenta­
ções. A pessoa deiforme já não é atingida por nenhuma tentação, pois
afundou com seu eu no mar da divindade.
Justamente nesta determinação da finalidade dos sofrimentos e
da tentação, porém, está a primeira diferença em relação a Lutero. Em
Tauler, sofrimento e tentação são integrados, com toda a evidência, ao
caminho da salvação místico. Basta verificar isso uma vez mais em seu
sermão sobre a pesca de Pedro (V. n9 41). A questão de Tauler é: Como
chego ao parto? Resposta: Somente através do sofrimento. Lutero, ao
contrário, pergunta: Como pode Deus executar seu plano a meu respeito?
Resposta: Somente quando meus planos são destruídos. Em Tauler a
idéia é: nascimento na alma somente após dores de parto; em Lutero:
Deus somente pode consumar sua obra própria por meio da obra alheia
A diferença é esta: em Tauler, sofrimento e tentação são sinais de nosso
processo de formação espiritual; em Lutero, sinais da ação divina. O pon­
to de vista de Tauler está orientado numa condicionalidade do homem, o
de Lutero, num ato de Deus. A partir disso também se explica que para
Tauler sofrimento e tentação é algo que, afinal, a pessoa supera, algo
que nada mais lhe significa. Isso acontece assim que ocorreu o nasci-

229 Portanto, não se deve falar de uma "estima mística do sofrimento auto-escolhido” . Contra
BOEHMER, Der junge Luther, p. 142.
230 Veja, quanto a isso, X ü l,3 3 6 ,10ss.
231 Cf. Vll,551,19ss.

156
mento. Para Lutero, no entanto, sofrimento e tentação permanecem
agregados constantes justamente do estado cristão maduro; pois sofri­
mento e tentação são, por assim dizer, apenas o verso de seu conceito
de Deus, de sua doutrina do Deus abscôndito, que nada tem a ver com o
“abismo" místico, no qual a alma pode afundar-se.232 Para Lutero as ten­
tações justamente não eram “exercícios místicos”233, mas enxergava
atuando nelas a mão de Deus que sempre quer agir conosco apenas “sob
aparência contrária”.
No entanto, temos que constatar entre mais uma segunda diferen­
ça básica na concepção de sofrimento entre Tauler e Lutero. Tanto para
Tauler quanto para Lutero o sofrimento serve ao “aniquilamento”. Até es­
te ponto há consenso. Que, porém, significa “aniquilamento" para Tauler,
que para Lutero? Neste ponto vêm à luz em Tauler os já mencionados
elementos especulativos. Pecado é criaturalidade, estado de separação
do ser finito do ser infinito. A “singularidade”, o indivíduo como tal é pe­
cado. Por isso o caminho para o nascimento é um "deixar de ser” , e para
isso é útil o sofrimento. O alvo supremo é que a individualidade afunde
no abismo de Deus (V.145,23ss.). Por tal razão, a primeira obra do Espíri­
to Santo é esvaziar a pessoa; pois “se é para Deus entrar, necessaria­
mente a criatura iem que sair” (V.305,29s.).
Também Lutero sempre de novo se refere ao aniquilamento, tam­
bém sua luta é contra a vontade própria.234 Enquanto, porém, Tauler vê o
mal na vontade em si, Lutero tem em mente uma vontade qualificada
quanto a seu conteúdo, quando usa o termo “vontade própria”, a saber, a
vontade má. Recém nisto consiste para ele o pecado, e não na criaturali­
dade. Quanto a isso, confira-se o sermão “os olhos bem-aventurados" (V.
n9 64) de Tauler e as respectivas glosas marginais de Lutero (WA
IX,103,31ss.). “Filhos, na vontade aí dentro é que reside o mal"
(V.348,14); “toda verdadeira bem-aventurança reside na correta serenida­
de e ausência de vontade” (V. 348,30s.). Lutero, porém, não se refere à
vontade em si, mas - e isso torna a glosa extremamente interessante -
passa logo para o concreto, para o conteúdo, e adverte contra a vontade
própria uma vez porque ela peca contra o amor ao próximo (103,34s.), e,
em segundo lugar, adverte contra ela na medida em que ela é uma insis­
tência na sabedoria e justiça própria (103,36).

232 Contra LOMMATZSCH, loc. c it, p. 141.


233 Contra BRAUN, loc. c it, p. 295.
234 Cf. sua explicação da terceira prece no Pai-nosso, de 1519, II, 106,26ss.; veja também
STEINLEIN, Wandlungen in Luthers Auslegung der dritten Bitte.

157
Dessa conceituação distinta de vontade resulta a diferença na
compreensão do sofrimento. Para Tauler o sofrimento é o meio preferen­
cial para “deixar de ser”. Também Lutero poderia usar esta expressão; o
que, no entanto, para Tauler tem sentido metafísico, Lutero o aplica com
certeza como que intuitiva ao campo puramente ético-religioso. Também
já em sua explicação do Pai-nosso de 1519, obra de tons místicos, Lutero
tem em mente que “Deus desfaz e impede todo mau conselho e vonta­
de". Igualmente as glosas marginais aos sermões de Tauler não revelam,
em nenhuma parte, que Lutero se tenha apropriado da interpretação me­
tafísica do sofrimento.
Façamos um resumo do que foi dito sobre Tauler e Lutero:

1. O tema da pregação de Tauler é o nascimento de Deus na al­


ma; o alvo é descobrir a identidade oculta entre Deus e pessoa humana.
Em seu centro, a mística de Tauler é teologia da glória
2. Sob este pano de fundo mais amplo deve ser visto o pensa­
mento do sofrer e da cruz em Tauler. Daí resultam duas coisas:
a) Para Tauler o sofrimento é um estágio importante no caminho
de salvação místico, porém, um estágio passageiro. Para Lutero o ofri-
mento é, em primeiro lugar, ação de Deus que sempre de novo consegue
realizar a obra própria por meio da obra alheia.
b) Na compreensão de sofrimento de Tauler revela-se a base es­
peculativa, neoplatônica235 de sua mística. Em Lutero, enunciados do
mesmo teor jamais têm sentido metafísico, mas sempre ético.

Como resultado podemos constatar é impossível derivar a teolo­


gia da cruz de Lutero da mística de Tauler, tanto por razões cronológicas
quanto por razões de conteúdo.

B. Teologia Alemã (Teologia Deutsch)

Após uma análise de Tauler, queremos dizer aqui uma palavra so­
bre a Teologia Alemã236 Nosso juízo sobre a relação entre Lutero e Tauler

235 Proclus é citado com freqüência, p. ex., V.300,27; 332,21; 347,21; 350,20; 358,15.
236 Cf. Karl MÜLLER, Z ur deutschen Theologie; G. L SPLITT, Einige Bemerkungen Ober die
deutsche Theologie; B. M. MAUFF, Der religionsphilosophische Standpunkt der sogen,
deutschen Theologie; HERMELINK, Text und Gedankengang der Theologia Deutsch; Herrn.
MANDEL, Theologia Deutsch; F. REIFENRATH, Die deutsche Theologie des Frankfurter
Gottesfreundes; RGG, v. I, 3. e d „ col 1866s. (DOERRIES); R.E., v. XIX, 3. ed., 626-631
(COHRS); além disso, BRAUN, loc. cit., p. 287ss.

158
poderia ser repetido em muitos pontos. A questão cronológica nos con­
duz, lá e cá, ao mesmo resultado. No entanto, ao considerar Tauler o au­
tor da Teologia Alemã em seu prefácio a esta obra, em 1516, Lutero não
cometeu apenas um erro histórico, mas também lhe passaram desaper­
cebidas diferenças de conteúdo (1,153). Pelo fato de a Teologia Alemã
não ser, na verdade, apenas um epítome de Tauler, ela exige uma dis­
cussão em separado em nosso contexto, tanto mais quando, em geral,
não se lhe dedica tal atenção nas obras que apresentam toda a teologia
de Lutero.
Se já Tauler significa certa eclesialização da mística de Eckehart,
tal processo, característico para a mística da Idade Média Avançada, me
parece ainda mais avançado no caso do “frankfurtiano”.237 Contrariando
Mandei e outros, decerto Kart M üller tem razão ao indicar como interesse
principal do livrinho “constatar as bases eclesiásticas e históricas de toda
verdadeira mística", em contraposição à mística falsa dos "irmãos do es­
pírito livre”, e defender as mesmas. Com esta constatação se deu um
passo decisivo em direção à resposta à pergunta geral: “A descoberta re-
formatória de Lutero e a mística”; a descoberta de Lutero é tanto mais in­
dependente da mística quanto mais a própria mística se baseia em bases
eclesiásticas.238
Para nossa questão específica, porém, a situação se complica.
Pois nossa demonstração da diferença básica entre a mística de Tauler e
a teologia da cruz de Lutero teve por resultado que a intenção central da
mística não é conciliável com a teologia da cruz e que, a partir deste cen­
tro, devem ser julgadas as similaridades na periferia. Quanto mais, po­
rém, a mística se eclesializa, tanto mais desaparece nela a consciência
dessa intenção central, tomando seu lugar as tendências prático-edifican­
tes, com as quais Lutero tem bem maior afinidade. Quanto menor a niti­
dez com que se expressa uma opinião, tanto maior a facilidade com que
ela pode exercer influência inclusive sobre pessoas teologicamente
alheias, por causa de outras vantagens. Por isso o julgamento da Teolo­
gia Alemã variou de modo especial no decorrer da História. (Cf. os artigos
em R.G.G., 2. ed. e R.E., 3. ed.)
Para chegarmos mais perto de um juízo próprio, recorremos, uma
vez mais, à frase de Müller supracitada. Nela, sem dúvida, o livrinho está
caracterizado corretamente. No entanto, essa tendência sofre em si de

237 Cf., quanto a isso, o capitulo “ Die Besonnenheit der Theologia Deutsch" in: MAUFF, p. 46s.
238 Neste sentido a usa, p. ex., SCHEEL, Luther und Tauler, p. 301 ss.

159
M t It| t
uma falta de clareza.239 Existem, de fato, as “bases eclesiásticas e histó­
ricas de toda verdadeira mística”? Não se juntaram aqui coisas que sim­
plesmente não querem combinar? Ainda seria verdadeira mística aquela
que se reporta a bases eclesiásticas e históricas, e pode-se, por outro la­
do, chegar a uma mística verdadeira a partir das bases eclesiásticas? Se
entendermos sob "bases eclesiásticas” o evangelho, a mensagem do No­
vo Testamento, então, baseados nas análises sistemáticas feitas de iní­
cio, temos que responder a pergunta com um redondo não. Se, porém,
entendermos sob “bases eclesiásticas” o conceito de salvação medieval
católico modificado, permanece, pelo mínimo um problema - o problema
de toda mística medieval, apenas que aqui em forma agudizada. De fato
podemos constatar na Teologia Alemã certa atitude ambígua.240
Esclareçamos isso no conceito de pecado. Que é pecado? A isso
recebemos resposta clara “A própria desobediência é o pecado.”
(21,12.)241 Isto é inteiramente bíblico.242 O pecado não consiste na criatu-
ralidade da pessoa mas em seu pervertido direcionamento da vontade:
“O pecado outra coisa não é do que isto: a criatura quer diferente que
Deus e contra Deus” (39,42s.) “e esta má vontade contra Deus chama-se
desobediência” Pecado é a vontade própria da pessoa (50,5; 56,2) que
nega a Deus a honra que lhe é devida243 “assumindo ela mesma” - esta
é a terminologia característica para a Teologia Alemã244 - o que cabe
somente a Deus (10,5). Mas justamente nesta formulação “assumindo ela

239 Isso n3o recebe a devida atenção em MÜLLEFt, que rebate rigorosamente a compreensão da
Teologia Alemã como mEstica espiritualista, compreensão esta introduzida pelos batistas e
que tem sua influência até hoje (Hegler, Mandei).
240 Cf. SPUTT, p. 54, que também fala de uma série dupla de extemações, ainda que em outro
sentido do que aqui. Às extemações especulativas contrapõem-se, segundo ele, outras que
brotaram da "experiência do coração” do auton nós preferimos falar de "enunciados bíbli­
cos” . MAUFF, p. 20 e 28s., também percebe algo do carãter ambíguo da Teologia Alemã, no
entanto, não aproveita tal observação, como, aliás, raras vezes penetra na profundeza dos
problemas levantados.
Sobre a questão crltico-literária, veja HERMEUNK e MÜLLER! A solução encontrada por
Müller parece agora gozar de validade geral (cf. R.G.G., 2® ed.). Para nosso problema ela
não é decisiva porque tanto o texto B (a edição de Lutero de 1518) quanto o texto U (manus­
crito de 1497) revelam claramente os elementos neoplatônicos.
241 As citações são feitas de acordo com página e linha da edição de UHL.
242 Esse traço é ignorado por BRAUN, p. 287ss. Desobediência e “ egoísmo” (p. 289) não são
automaticamente idênticos.
243 A “ honra de Deus” é uma grande preocupação da Teologia Alemã. Cf. 9,38; 10,5; 16,5;
17,5; 20,19; 63,12; 64,4. O conceito tem por premissa um conceito de Deus rigorosamente
pessoal e com isso rompe os moldes de uma mística conseqüente. Eis uma prova do caráter
ambíguo da Teologia Alemã.
244 Cf. 8,37; 9,1; 9,35; 9,40. 10,5; 10,8; 10,28; 10,34; 10,39; 11,3; 11,8; 22.30S.; 57,36; 58,1;

160
mesma” já se encontra uma ambiguidade. A pessoa não deve assumir
coisa alguma, isso é bem compreensível a partir da idéia da criação. Tu­
do provém de Deus, a pessoa não deve atribuir-se nada a si mesma. "As­
sumir algo” seria, portanto, desobediência e, com isso, pecado, porque
não dá a Deus o que lhe é devido. A partir da idéia da criação, portanto, o
conceito se enquadra bem no quadro do conceito bíblico de pecado su-
pradescrito, conceito que não julga o pecado metafisicamente mas eti­
camente. No entanto, ao lado disso se percebem ainda com nitidez ele­
mentos bem diferentes. Não devemos “assumir” nada porque as coisas
criaturais em si afastam de Deus (63,2). Com isso encontramo-nos de
novo no chão da especulação de colorido neoplatônico. Na Teologia
Alemã está colocada, ao lado da idéia da criação,245 a idéia da emana­
ção. Disso, porém, resultam duas coisas:

1. Todas as coisas emanaram de Deus, e por isso são boas.246


“Por isso todas as coisas são boas de natureza” (54,26s.), "tudo que exis­
te é bom e gostoso." (55,29.) Nas criaturas brilha, reluz, atua o eterno
bem, o próprio Deus (11,23).

2. Mas como emanação de Deus, a criatura está numa relação pa­


ra com Deus como o imperfeito está para o perfeito, como o dividido está
para o inteiro.247 “O que é dividido ou imperfeito se origina, ou se origina­
rá, como um reflexo ou como um brilho que emana do sol ou de uma luz.
E brilha um pouco assim, um pouco assim. E a isso se chama criatura, e
de todas essas coisas divididas nenhuma é perfeita." (7,21 ss.) O dividido
não tem verdadeiro ser, mas tem seu ser no perfeito (8,26ss.). Por isso,
quanto mais nos desembaraçamos da criatura, tanto mais receptivos nos
tomamos para Deus (8,5ss.). Para aquele que deu o “salto” (11,33) para o
perfeito, o imperfeito, a criatura, “se toma inapetitoso” (11,38). E destarte,
no fim das contas, o pecado é novamente definido bem no estilo da mís­
tica especulativa, como sendo afastamento do imutável e volta para o
mutável (8,33ss.). Aqui já não se fala de desobediência, culpa, ofensa
contra a honra de Deus, mas pecado é estar entregue à pluridade. “A
bem-aventurança”, porém, “não se baseia em muito - ou em variedade,

62,5,12,41; 63,3. Aliás, a expressão encontra-se também em Tauler. Cf. V.306,26;


307,11,15,18,23,29.
245 Cf. 55,35: "As criaturas são uma indicação e um caminho para Deus."
346 No entanto, há que se perguntar em que medida isso deve ser atribuído à idéia da criação.
247 Esse Perfeito, Deus, o Ser, é, ao mesmo tempo, em sentido neoplatônico genuíno, o
Nada (7.28).
mas se baseia em um e em unidade.” (14,39.) E chegamos de novo à
fórmula de Eckehart248 em seu "Livro da consolação divina”: "O um é que
nos torna bem-aventurados." (Strauch, p.26.)
Na Teologia Alemã, portanto, se encontram justapostos, de forma
desequilibrada, o conceito bíblico de pecado orientado puramente no sen­
tido ético-religioso, e o conceito neoplatônico. No entanto, é preciso dizer
mais. Não se trata apenas de um desequilíbrio de dois pontos de vista,
mas, além disso, o primeiro é totalmente destruído pelo segundo em sua
intenção primordial.
Ouvimos acima que pecado nada mais é do que desobediência,
vontade (própria) má. Com isso está traçada a delimitação reletiva ao
mal-entendido especulativo do pecado. A criatura não é má em si, a es­
sência de todas as coisas é boa. Nada existe de mau, a não ser uma von­
tade má. A Teologia Alemã, porém, não é suficientemente forte para
manter de pé esta tese na luta contra as idéias especulativas básicas.
Antes, acontece que ela, por assim dizer, vai de mal a pior, e isso por
causa do seguinte raciocínio (C. 47. p. 54):
A vontade má não é boa.
A essência das coisas é boa; pois Deus é a essência das coisas.
Conclusão: a vontade má não faz parte da essência das coisas,
portanto, “não é boa ou então é absolutamente nada" (54,30s.), é um
não-ser.
Essa conclusão pelo menos ainda revela, na primeira premissa, o
pensamento bíblico, ético-religioso do pecado como ponto de partida. Es­
se primeiro raciocínio, porém, é cortado na mesma passagem (C. 47) ou
até mesmo sufocado por um segundo raciocínio de natureza puramente
metafísica. Toda "essência” é boa, também “o mau espírito é bom con­
quanto ele existe” (54,21 s.). Mas “querer não é essência249 e por isso (no­
te: por isso!) também não é bom” (54,23s.). Portanto: redução das catego­
rias éticas às categorias ontológicas. Mais claro do que está aqui isso
não pode ser expresso. E o últim o passo é então declarar, a partir daí, o

248 Uma das propostas principais do trabalho de MAUFF é provar o parentesco entre a Teologia
Alemã e Eckehart
249 Nos moldes de uma mfstlca ontológica (pense em Agostinho!) tal idéia revela algo muito artifi­
cial. A Teologia AlemS mostra saber muito bem (cap. II, p. 56ss.) que razão e vontade formam
uma unidade indestrutível, que, portanto, ambos juntos perfazem o “ ser” . Por isso se vê obri­
gada all a buscar nova explicação da vontade má. As considerações a respeito perfazem uma
das partes mais interesssantes de todo o livro, não havendo, porém, necessidade de expô-
las em nosso contexto. Apesar de maior proximidade com o conceito bfblico de pecado, não
consegue, em última análise, livrar-se do esquema especulativo.

162
pecado como um não-ser. A especulação venceu as tendências ético-prá­
ticas da Teologia Alemã.250
Que conclusoés podemos tirar desta analise do caráter da Teolo­
gia Alemã para nossa questão sobre a relação entre a teologia da cruz de
Lutero e o íivrinho do “frankfurtiano"?
Evidenciou-se quão importantes são os elementos especulativos
na Teologia Alemã apesar “das bases eclesiásticas e históricas" de sua
m ística Neste caso, porém, é preciso dizer aqui o mesmo que foi dito a
respeito de Tauler Lutero não adotou esses elementos especulativos.
Muito antes, justamente a teologia da cruz de Lutero se encontra na mais
rigorosa contraposição a eles. A singularidade da teologia da cruz de Lu­
tero, portanto, não pode ser derivada da mística da Teologia Alemã tam­
pouco como da de Tauler.251

C. Devoção moderna

Em dois exemplos demonstramos a diferença básica da mística e


da teologia da cruz. No entanto, com isso nossa tarefa ainda não está to-

250 Nos detalhes, muitas vezes é difícil desemaranhar as duas coisas. Por isso, p. ex., o conceito
de “ vontade própria” fica em luz ambfgua. Cf. as inúmeras passagens em que a “ singulari­
dade” é combatida, p. ex.: 8,14; 9,30; 9,40. 19,24; 25.38; 28,1ss.; 33,1; 37,39; 49,40;
52,35; 56,2.
251 É claro que com isso não se quer negar que, apesar disso, existem variados pontos de con­
tato. Um deles, p. ex., devería ser visto na exigência da serenidade. Cf. 10,34; 13,10;
15,40ss.; 22.25S S . (limite da serenidade); 26,34ss.; 37,1; 53,35. Ou então se poderia pensar
na exigência da imitação de Cristo e do discipulado da cruz (27,13; 59,20) e do aniquila­
mento, resp. da mortificação (8,15; 20,24). c fácil constatar semelhanças lá e cá; a tarefa
bem mais importante, porém, consiste em perguntar se, de lato, lá e cá se expressa a mesma
ooisa com o mesmo vocábulo. Nisto, porém, só nos pode ajudar uma reflexão sobre as dife­
renças básicas. BAUER, Heidelberger Disputation, p. 304, chamou a atenção para o fato de
que a contraposição de teologia da glória e teologia da cruz, no capitulo LI, teria seu modelo
na Teologia Alemã (56,17-30). Isso pode estar correto. Neste caso, porém, é preciso obser­
var com a mesma atenção que já na frase seguinte (56,30) a própri aTeologia Alemã passa a
questionar a teologia da glória. Ressalta-se ainda que a idéia do "nascimento de Deus na
alma” tem pouca expressão, se comparada com Tauler. Isso, porém, se explica com a ten­
dência polêmica do livrinho. Quanto ao mais, é preciso dizer que também aqui este pensa­
mento é o ponto de orientação secreto. Cf. a disposição em R.E., 3Sed., segundo REIFEN-
RATH, que, é verdade, é rejeitada por HERMELINK, p. 16, como artificial. MANOEL oferece
outra divisão (p. XII). O nascimento de Deus na alma (pois é isso que se quer dizer a "união”
- 61,20; cf. 61,11) ocorre no estado da contemplação e do êxtase ("em um olhar ou um êxta­
se” - 61,15s.). O "homem interior” (11,33) dá "um salto" (/£».) para dentro do perfeito, para
dentro de Deus. Quem chega a este ponto - e isso sempre de novo é possível (11,35) - este
tem “ a vida eterna na terra" (13,39s.). Estes pensamentos, que levam para bem próximo de
Tauler e Eckehart, apenas servem para reforçar nossa tese supra. Quanto ao termo "resigna­
ção até o inferno” , cf. também HOLL, p. 150ss.

163
talmente cumprida. Pois ao lado da mística propriamente dita, encontra-
se, na Idade Média declinante, um grande movimento que vive ampla­
mente das idéias da mística: a “devoção moderna". Esse movimento de­
ve ser considerado como reação da piedade viva contra a prática ecle­
siástica alienada. É evidente que qualquer reação neste sentido tinha que
ver na mística um aliado natural. Pode-se demonstrar, por exemplo, a in­
fluência da mística dos Países Baixos sobre “os irmãos da vida co­
mum”252 que devem ser considerados os representantes principais da
“devoção moderna” . De seu espírito nasceu também o livro clássico desta
piedade, o “Da imitação de Cristo” de Thomás a Kempis. No entanto a
devoção moderna não esteve restrita aos irmãos da vida comum.253 É de
se presumir de antemão que suas influências chegaram também a Lute-
ro. Sabemos que em Magdeburgo Lutero frequentou a escola dos irmãos
da vida comum. Todavia, não é possível constatar com certeza que in­
fluências este contato teve sobre ele.254 Aliás, ainda continuam bastante
incertas as bases históricas para o problema "Lutero e a devoção moder­
na”.255 Analisar aqui esta questão histórica nos levaria longe demais. Por
esse caminho nada podemos conseguir aqui sobre as eventuais relações
entre a devoção moderna e a teologia da cruz. Enveredamos, por isso,
pelo caminho que ainda nos resta, refletindo brevemente sobre a afinida­
de e a diversidade dos pensamentos cá e lá. Para esse fim escolhemos
como representantes da devoção moderna a Thomás a Kempis e Stau-
pitz.

1. O livrinho de Thomás e Kempis, "Da imitação de Cristo”256 é


talvez o mais belo testemunho da piedade monástica. Não é necessário
discuti-lo nos detalhes. A virtude suprema é a humildade257 (cf. 1,2; 1,4,17;
II,20; III,56,36, entre outras). Ela se manifesta primeiramente na obediên­
cia monástica (l,9; II,2; 111,13) e nas virtudes especificamente monásticas

252 Veja R.G.S., v. I, 2« ed., col 1275s. (BARNIKOL); R E , v. III, 3a- e d „ pp. 472-507 (L
SCHULZE); SCHEEL, Luther, v. I, p. 70ss., 275SS.
253 Isso também o admite, com algumas restrições, E. WOLF, p. 96, n.
254 SCHELL, loc. c it, p. 93, faz o menino Lutero experimentar um aprofundamento e uma inte-
riorização de sua piedade católica com os irmãos em Magdeburgo. BOEHMER, Luther, p. 33,
não conta com impressões mais profundas.
255 Cf. também a tese de KELLER (veja Bibliografia) sobre a Teologia alemã e o movimento val-
dense, tese esta que hoje, em geral, é rejeitada, enquanto é aceita parcialmente por O.
CLEMEN, R E , v. XVIII, 3- ed. p. 781.
256 Veja R E , v. XIX, 39 ed., pp. 719-735 (SCHULZE).
257 Cf. o “ Ama o não saber” (Ama nescirí) do Parvum alphabetum monachi in schola Dei (ed.
POHLIII, 317).

164
do “desprezo do mundo" (1,1; lll,4,55ss.) e do silêncio (l,20). Por causa da
humildade adverte-se contra o saber (l,3,52ss.; III,43; III,58): humildade es­
tá acima do saber. O próprio Jesus é o modelo da humildade (111,13,24).
Precisamos trilhar o caminho de Jesus (imitação), pois Jesus é o caminho
para a vida (“tua vida é nosso caminho” - 111,18,30). Este caminho, porém,
conduz para cruz e sofrimento. Por isso vale abandonar o amor próprio
(11,11,46; III,2), negar-se a si mesmo em sujeição ao sofrimento de boa
vontade (111,19; III,32; 111,37,14; 111,39,16; III,56) e, animado do “amor à cruz”
(11,11,115; 111,56,40,63), seguir a Jesus na “régia via da santa cruz" (111,12).
Quem desta forma não busca consolo nem ajuda junto às criaturas, nem
mesmo nas piores tentações (“arrependimento” |,21,50ss.; “subtração da
graça” II,9,86; “tentação” 1,63,2 “tribulação” 1,13,2), mas, através do “ani­
quilamento" (111,42,21) chega à serenidade (III,26), este também experi­
menta a bênção do sofrimento e da tentação (1,12; 1,13,12; 11,12,144). Pois
sabe que, por meio de sofrimentos, se torna semelhante a Cristo e aos
santos (“mais conforme” - 11,12,77). No entanto, experimentará máxima
bem-aventurança quando, no “excesso da mente” (111,31,15; 22) se ergue
à “contemplação” de Deus (111,31; 15; 18; 37).
Eis em resumo as idéias principais da “Imitação”. Em nenhum
ponto elas vão além dos moldes do catolicismo medieval. Inclusive
Ullmann (toe. cit. II, p.141) tem que adm itir que Thomás era “rigorosamen­
te católico". Em vão procuramos nele idéias reformatórias. No entanto,
não podemos falar em teologia da cruz também nele? Sem dúvida, en­
contramos aqui muitos pensamentos afins à teologia da cruz. Podemos
dizê-lo assim: uma reflexão sobre a “Imitação” evidencia que Lutero ja­
mais teria chegado a uma teologia da cruz se não tivesse sido monge.
Mas, a outra impressão igualmente forte é quão diversos são, não obs­
tante, os dois pontos de vista. Visto que aqui temos que reiterar em parte
as coisas já ditas acima, passamos logo a resum ir

a) - Bem à semelhança de Tauler, também aqui o conceito da


cruz está orientado no caminho de salvação da pessoa. A cruz não é vis­
ta, em primeiro plano, como o caminho de Deus às pessoas, mas como o
caminho da pessoa a Deus.

b) - Por isso Thomás não chega a uma teologia da cruz, mas no


máximo a uma ética da cruz. A cruz não é reconhecida como sinal de to­
do reconhecimento de Deus, mas é apenas considerada característica da
vida monástica piedosa.

c) - Enquanto, pois, a teologia da cruz, como “novo significado

165
das coisas”, chama a seus lim ites a teologia da glória dominante, a ética
da cruz da "Imitação” não é sequer concebível sem a teologia da glória
da igreja.
Nosso resultado, pois, deverá ser formulado assim: a singularidade
da teologia da cruz de Lutero também não pode ser derivada das idéias
da "imitação".

2. Sobre a relação entre Staupitz e Lutero nos foi presenteado re­


centemente um estudo profundo.258 Não pode ser tarefa nossa querer
colocar algo ao lado dos resultado conseguidos. Queremos anexar a eles
apenas algumas observações em relação ao nosso tema específico.

a) Wolf chamou a atenção para o fato de que, em comparação a


Thomás a Kempis, em Staupitz, no que diz respeito à "imitação de Cris­
to”, a assim chamada técnica ascética estaria retrocedendo de forma no­
tável, e que a idéia da imitação estaria sendo relacionada de forma mais
rigorosa à idéia da conformidade (loc. c it, p. 97, nota). Está evidente que,
em consequência disso, com Staupitz nos estamos movimentando em
bem maior proximidade da teologia da cruz de Lutero do que com Tho­
más. Pois foi justamente o significado técnico de cruz e sofrimento na
mística que nos levou a distinguir com nitidez os dois pontos de vista.
Correspondente a isso, também a expressão "resignação até o inferno”
tem outra coloração no caso de Staupitz do que na m ística259 Enquanto,
por exemplo, na Teologia Alemã, cap. XI, a “resignação até o inferno” é
descrita como o caminho mais seguro para o céu - sendo, portanto no
fundo, um exercício espiritual - em Staupitz ela resulta uma vez da idéia
da conformidade, mas depois da exigência de puro amor a Deus (Knaake,
p. 94), e só uma vez (Knaake, p. 80s.) também aparece como exercício
piedoso para comprovação da serenidade.

258 Veja E. WOLF. Ali (n. 1, p. 1ss.) encontra-se também um resumo da literatura publicada até
agora Mérito especial do trabalho é que aqui estão sendo explorados amplamente, pela pri­
meira vez, com exceção de N. Paulus, os sermões de Staupitz, de Tübingen. Cf. a edição de
Buchwald e Wolf e o prefácio de Scheel.
Além disso, veja, referente a Staupitz, R.G.G. v. V, 1- ed., col. 898 (KOHLER) e R.E., v.
XVIII, pp. 781-786 (CLEMEN).
259 A opinião geral querendo enquadrar Staupitz de alguma forma na mística, ainda nâo me pa­
rece refutada por WOLF (cf. p. 122). De acordo com DIECKHOFF, Die lheologie desJohann
von Staupitz, p. 170, a teologia de Staupitz está inteiramente isenta da influência do “ ele­
mento neoplatônico falso” da mística alemã.

166
b) É preciso chamar a atenção para o esquema da auto-acusação
em Staupitz, esquema que também é característico para a teologia da
cruz de Lutero (v. Wolf, pp. 99ss. e 253ss.).

c) Apesar dessas coisas em comum, porém, também aqui não


podem ser esquecidas as diferenças. A diferença essencial, no entanto,
consiste no fato de Staupitz, no fundo, não ter conseguido livrar-se da
idéia do mérito. É verdade, Staupitz rejeita a confiança em boas obras
(Knaake, p. 86,12) e sabe que nosso amor a Deus emana do amor de
Deus a nós (Knaake, p. 103,3); mas, em última análise, só consegue con­
ceber a relação entre Deus e a pessoa no esquema da ordem jurídica.260
Toda a vida piedosa é, por isso, vista sob o enfoque do mérito. Isso vale
para a auto-acusação da mesma forma como para sofrimento e tentação
(Knaake, p. 110,4). Aqui se abre o abismo que existe entre Lutero e Stau­
pitz, apesar de toda a afinidade. Wolf formula com muita correção (loc.
c it, p. 164) a diferença na valorização da tentação, quando diz: Para Lu­
tero “as tentações, mesmo que muitas de suas extemações se asseme­
lhem às de Staupitz, não são de valor porque possibilitam obras meritó­
rias, mas porque nelas acontece um encontro notável com a realidade de
Deus que procura o tentado justamente por este meio”.

d) A idéia da cruz, portanto, não se revelou suficientemente forte


em Staupitz para romper o esquema da teologia medieval. No final, te­
mos que, pois, em itir a respeito de Staupitz a mesma opinião que a emi­
tida a respeito de Thomás a Kempis. A idéia da cruz só é reconhecida em
seu significado prático para a vida piedosa, no entanto, não se consegue
elaborar a partir dela uma “teologia” da cruz.

Resumindo o resultado de nossa análise sobre teologia da cruz e


mística, podemos dizer

1 - Em princípio, fé e mística encontram-se em uma contraposi­


ção irreconciliável. Mas teologia da cruz é teologia da fé, é teologia da
revelação.

2 - Na mística medieval trata-se de uma mística influenciada


pela igreja. Esta é a única razão por que é possível levantar a questão
"teologia da cruz e mística”.

260 Veja WOLF, p. 120ss.

167
3 - A teologia da cruz e a mística concordam amplamente na ên­
fase na cruz para a vida prática piedosa. Sem o monasticismo é inconce­
bível a teologia da cruz.

4 - As exigências práticas, no entanto, adquirem sentido diferen­


te lá e cá, quando se analisam os conceitos básicos que as fundamen­
tam.

5 - Nem a doutrina da salvação mística nem o ideal de humilda­


de monástico são uma explicação para a particularidade da teologia da
cruz de Lutero. Ainda que seja condicionada por ambos, mesmo assim
encontra-se em rigorosa contraposição a ambos, como produto original.

6 - 0 resultado deste estudo é para nós uma prova indireta de


que a teologia da cruz não constitui o pré-estágio pré-reformatório da
teologia de Lutero propriamente dita, mas que deve ser considerada, an­
tes, como marca de todo o pensamento teológico de Lutero.261

261 Atraente seria fazer uma comparação da mfstica da cruz de Münzer com a teologia da cruz de
Lutero. No entanto, dever-se-ia perguntar se foi justamente sua mfstica da cruz que constituiu
o ponto de ataque para a polêmica de Lutero. Em todos os casos, neste ponto Lutero pers­
crutou as coisas com mais nitidez do que em relação à mfstica medieval, e soube muito bem
distinguir sua própria teologia da cruz da de Münzer. Como, porém, Münzer não interessa
para a questão da gênese da teologia da cruz de Lutero, podemos dispensar aqui a descri­
ção de sua mfstica da cruz.

168
CONCLUSÃO
Encerramos a tarefa que nos propusemos. A teologia da cruz de
Lutero está desdobrada de acordo com seus pontos de vista essenciais; a
delimitação relativa à mística está feita. Para finalizar, só mais duas ob­
servações:

1 - Denominamos a teologia da cruz como marca de toda a teo­


logia de Lutero. Ainda nos restaria, portanto, a tarefa de examinar isso
por extenso em cada um dos artigos doutrinários da teologia de Lutero.
Seria de examinar se podemos constatar a marca da teologia da cruz
também na cristologia ou na doutrina sobre a santa ceia. Dessa forma,
porém, teríamos que ampliar nosso trabalho para uma exposição comple­
ta da teologia de Lutero. Propusemo-nos a tarefa mais modesta de elabo­
rar os traços básicos de uma teologia da cruz de Lutero.

2. Em nossa análise nos defrontamos com o fato da teologia da


cruz, não com a pergunta por sua razão. Se quiséssemos respondê-la,
nosso trabalho se ampliaria em duas direções. Em primeiro lugar tería­
mos que produzir um estudo neotestamentário pormenorizado262 (p. ex.,
também sobre a relação de Paulo e Jesus), e depois teríamos que proce­
der a uma reflexão sistemática abrangente que significaria nada menos
que o estabelecimento de prolegómenos sistemáticos. Ambas as coisas
não podem aqui estar em nossas intenções. Uma só coisa seja observa­
da aqui. Por mais importante que fosse um tal estudo, ele não nos pou­
paria, sob hipótese alguma, a tarefa de formarmos nossa própria opinião
neste assunto. Trata-se aqui de mais do que de uma questão puramente
científica. "A cruz põe tudo à prova. Bem-aventurado o que entende.”263

262 Quanto à critica de Lutero a partir do N.T., cf. SCHLATTER, Luthers Deutung des Rõmer-
briefs.
263 V, 179,31; 85,5.

169
POSFÁCIO À 4« EDIÇÃO

Meu trabalho "A teologia da cruz de Lutero” foi editado pela pri­
meira vez em 1929, e teve em 1933 e 1939 a “2? e a 3- edição em reim­
pressões inalteradas. Também esta terceira edição esgotou-se totalmente
em pouco tempo. Após a guerra, editor e autor cogitaram seriamente de
uma nova edição, eu, no entanto, não conseguia decidir-me. O livro fora
meu primeiro trabalho; não quis editá-lo inalterado; em vez de retrabalhar
a obra, acenavam outros planos, planos cuja realização me parecia prefe­
rencial. Nos últimos anos, porém, diferentes círculos extemaram-me tan­
tas vezes e com tal insistência o desejo de terem o livro novamente no
mercado, que julguei não dever resistir por mais tempo a esse anseio.
Evidentemente encontrava-me, uma vez mais, diante da pergunta em que
forma deveria ser feita a reedição. Se fosse escrever o livro hoje, seu re­
sultado seria diferente sob muitos aspectos de conteúdo, mas especial­
mente de estilo.1 Deveria eu agora melhorar detalhes? aplicar uma modi­
ficação de conteúdo aqui, um abrandamento de expressão acolá? Temo
que assim teria surgido uma composição de remendos cujas emendas se
tomariam visíveis de forma pertubadora. Afinal, o livro percorreu seu ca­
minho tal qual é, com todas as suas formulações que, por vezes, pare­
cem um tanto agudas ao autor mais velho agora, e com suas locuções
juvenilmente despreocupadas. Á introdução de demasiada quantidade de
“se” e "mas” apenas poderia obscurecer e enfraquecer a intenção dessa
análise, a qual confirmo ainda hoje sem restrições, ou seja, a intenção de
pôr energicamente em evidência determinado ponto de vista para a com­
preensão do pensamento teológico de Lutero. Assim me pareceu ade­
quado deixar o texto original em seu todo como estava, e dizer, num pos-
fácio - que naturalmente deverá ser lido - aquilo que tenho o dever de
dizer em termos de complementação ou também de correção a partir de
meu posicionamento hodierno.
Nestes dias está sendo preparada uma nova edição crítica dos
D idata super Psalteríum (WA III e IV). Só após seu lançamento será pos­
sível um aproveitamento científico abrangente deste período importante
dos “inícios de Lutero". Quanto aos problemas críticos de fonte, remeto,

1 A distância de um quarto de século - e que vinte e cinco anos foram estes! —tem que se fazer
notar.

170
entrementes, a Erich Vogelsang, Die Anfänge von Luthers Christologie
nach der ersten Psalmenvorlesung (Arbeiten zur Kirchengeschichte, edi­
tado por E. Hirsch e Hans Lietzmann, v. 15, 1929, especialmente pp.
4-11) e além disso a Gerhard Egeling, Luthers Psalterdruck vom Jahre
1513 (Zeitschrift für Teologie und Kirche, ano 50,1953, cademo 1, pp. 43-
99) e à literatura ali indicada.
Quanto ao uso da grande preleção sobre Gênesis, já a primeira
edição (cf. n. 4,2) ofereceu uma observação crítica no sentido de a edição
não remontar ao próprio Lutero e que, por isso, deve ser usada apenas
com cautela. Entrementes Erich Seeberg editou (1932) seus Studien zu
Luthers Genesis-Vorlesung. Uma análise abrangente detalhada foi depois
oferecida por Peter Meinhold: Die Genesisvorlesung Luthers und ihre
Herausgeber (Forschungen zur Kirchen- und Geistesgeschichte, editado
por E. Seeberg, E. Casper, W. Weber, v. 8, Stuttgart, 1936). Não é neces­
sário relatar aqui seu resultado em detalhes. Minha pressuposição ex­
pressa, por assim dizer, a priori em minha nota, no sentido de que as
idéias relativas à teologia da cruz que se manifestam na preleção sobre
Gênesis, não correm por conta dos editores, mas são da autoria do Lute­
ro “autêntico”, é confirmada pela análise exata de Meinhotd (cf. acima de
tudo, pp. 99ss., 157,399). Quanto à referência da preleção sobre Gênesis
à “vontade cativa”, com sua advertência contra a especulação sobre o
Deus abscôndito e a predestinação (WA XLII!,457,32ss.; 458,35ss.), cf.
Meinhoid, p. 293ss. Não pude obter informações de Meinhold sobre a au­
tenticidade da passagem WA XUII,463,3ss., citada na p. 42, 1. ed. (neste
volume p. 37), que aponta no mesmo sentido. Creio ter demonstrado que
a passagem não advoga o abandono da idéia do Deus abscôndito por
parte do Lutero velho, mesmo quando se admite sua autenticidade. Em
geral, portanto, as passagens citadas da preleção sobre Gênesis na Teo­
logia da Cruz deveriam ser atribuídos ao Lutero "autêntico”. No máximo
seria de se questionar se o fato observado na página 35 de que na prele­
ção sobre Gênesis a relação simultânea de abscondicidade e revelação
se transformou precipuamente numa relação sucessiva, deve ser atribuí­
do ao Lutero velho ou aos editores. Em todos os casos, a relação suces­
siva parece inteiramente concebível também para o próprio Lutero.
Não podemos ocupar-nos aqui individualmente com os numerosos
lançamentos sobre a teologia da Lutero, desde 1929. Restrinjo-me a
chamar a atenção para o relatório de Emst Wolf2 e meu relatório de pes­
quisa Zehn Jahre Lutherforschung3. A tese básica de meu livro, de que na
2 Christentum und Wissenschaft, ano 10,1934, p. 6ss., 203ss., 259., 437ss.
3 Theologie und Liturgie, Stauda-Verlag, Kassel, 1952, pp. 119-170. Agora também no volu­
me Von Augustin zu Luther, Witten, 1959, pp. 307-378.

171
teologia da cruz não se trata de um estágio pré-reformatório, mas de um
princípio permanente, constante na teologia de Lutero, não foi, quanto
vejo, contestada com seriedade em nenhuma parte da pesquisa de Lute­
ro desde então; ela pode ser considerada hoje como opinião geral.
Neste sentido está ultrapassado meu juízo sobre a pesquisa atual
(5. ed., p. 9s.) Inclusive as grandes obras de Elert, E. Seeberg e Joh. v.
Walter ocupam-se com as idéias básicas da teologia da cruz de Lutero.
Otto ScheeI traz no v. 2, 3/4 ed. de sua biografia de Lutero um capítulo
sobre ela (pp. 594ss.). E. Vogelsang trata dela com maiores detalhes ain-
da.‘t Lilje ressalta o significado da teologia da cruz para o “conceito de
história de Lutero".45 Sobre a relação de teologia e filosofia no pensamen­
to de Lutero foi publicado o primoroso estudo, se bem que unilateral, de
Wilhelm Linck6, que se aproxima em muitos pontos das idéias por mim
desenvolvidas. Meu posicionamento relativo à figura de Lutero traçada
por Erich Seeberg eu o manifestei criticamente em Theologie und Litur-
gie, pp. 145ss., “ Von Augustin zu Luthef, pp. 343ss. Quanto à questão da
autoria de “Imitação de Cristo” de Thomás a Kempis, remeto ao resumo
em Karl Bihlmeyer, pp. 432s.7
Naturalmente a situação teológica modificada desde 1929 e meu
próprio progresso resultam em que muitas expressões do livro seriam
formuladas de modo diferente no caso de uma redação totalmente nova.
Isso já se aplica às páginas 7 e 8 da introdução. O resumo bibliográfico
da página 9ss.deve ser ampliado no sentido indicado acima. A discussão
com a tese de Hunzinger sobre o pressuposto neoplatonismo (pp. 59ss)
não mais a formularia hoje tão extensivamente. A luta de Lutero contra a
razão (pp. 62ss) me parece hoje bem mais problemática em face dos
exageros desmedidos da atualidade. O juízo sobre Schleiermacher (p.
110, n. 2) eu o formularia hoje de forma bem mais cautelosa. O mesmo
vale também para as ocasionais extemações sobre o significado da me­
tafísica (p. 21, n. 13) e da “teologia natural” (p. 22). No entanto, ninguém
negará que os pensamentos básicos da teologia da cruz de Lutero se tor­
naram, após os horrendos acontecimentos da últim a década, ainda mais
atuais do que expresso na p. 12s.

4 Cf. Die Anfänge von Luthers Christologie, pp. 15, 24, 88-129, 144ss. “ Der angefochtene
Christus bei Luther” . In: Arbeiten z u r Kirchengeschichte 21, 1932, p. 20s.
5 Furchestudien, v. 2,1932.
6 “ Das Ringen Luthers um die Freiheit der Theologie von der Philosophie", In: E. WOLF (ed.),
Forschungen zur Geschichte und Lehre des Protestantismuns, série 9, v. III, Munique 1940.
Cf. Von Augustin zu Luther, p. 348ss. É preciso recorrer a LINK especialmente para a discus­
são da pág. 67s. em meu livro.
7 Karl BIHLMEYER, Kirchengeschichte, 2Sparte: Das Mittelalter, 12* ed., 1948.

172
Vejo-me compungido a revisar ou ao menos a m odificar meus pon­
tos de vista anteriores em dois pontos. O primeiro diz respeito à pergunta
pelo significado do Deus abscôndito em "Da vontade cativa". Eu já sabia
anteriormente que a explicação de Lutero da passagem de Ezequiel (WA
XVIII,685) não se enquadra simplesmente no esquema “revelação-vela-
çáo” (p. 31 s). No entanto, ainda harmonizei por demais os dois conceitos
do Deus abscôndito. A respeito disso deixei-me convercer por Doeme.8
Repensei todo este complexo mais uma vez. O fruto de meus esforços é
o artigo Gott und Mensch in humanistischer und reformatorischer Schau.
Eine Einfiihrung in Luthers Schrift "De servo arbítrio".9 E preciso adm itir o
Deus abscôndito da explicação da passagem de Ezequiel não é uma
forma de manifestação do Deus revelado, não é o Deus crucificado, mas
parece ser um Deus absoluto, um Deus per se, com o qual nada temos a
ver. Ele continua “acima de nós” e não se encerrou em sua revelação. A
condescendência de Deus encontra-se em tensão polarizada com sua
ilim itada liberdade e incompreensibilidade. No entanto, mal-entende-se
esta passagem redondamente quando se presume nela uma intervenção
da filosofia na teologia ou a necessidade de um pano de fundo metafísico
geral para a idéia cristã do amor de Deus. Ao contrário, a idéia do Deus
abscôndito na explicação da passagem de Ezequiel é expressão de uma
abismal experiência religiosa de Lutero. É a experiencia da pura e sim­
ples vitalidade e inescrutabilidade de Deus que Lutero sentiu apesar da
revelação de Deus em Cristo. A realidade de Deus sempre rompe nosso
pensar sobre Deus, fato por que também Lutero abandonou impiedosa­
mente a conseqüência dogmática e coesão sistemática. E justamente
nisto consiste sua superiodade religiosa sobre Erasmo. Neste sentido ca­
recem complementadas minhas explanações anteriores. Ao lado de meu
artigo já mencionado, indico minha descrição da problemática em Theo-
logie und Liturgie, pp. 161ss. e minha contribuição sobre Pharaos
Verstockung na edição comemorativa de Meiser.10
O outro ponto a ser revisado ou ao menos modificado diz respeito
ao posicionamento de Lutero face à mística. Continuo afirmando que a
teologia da cruz de Lutero e a mística alemã medieval são comportamen­
tos básicos distintos do ponto de vista religioso. No entanto, exagerei sis-

8 "Gottes Ehre am gebundenen Willen. Evangelische Grundlagen und theologische Spitzen­


sätze in 'De servo arbitrio’ ". In: Lutherjahrbuch 1938, pp. 45-9Z
9 Impresso em meu livrlnho Humanitas-Christianitas, Gütersloh, 1948, pp. 65-102; cf. espe-
cialmente p. 89ss. Tomo a liberdade de pedir ao usuário de minha Teologia da Cruz que leia
as exposições ali feitas.
10 Viva vox Evangeiii, München, 1951, pp. 196-213. Agora também impresso in: Von Augustin
zu Luther, Witten, 1959, pp. 161-179.

173
tematicamente essa diferença e, por causa da consequência, a transfor­
mei em contraposição absoluta. Com isso paguei meu tributo ao ponto de
vista teológico dominante naquela época, como encontrou posteriormente
sua forma mais expressiva, por exemplo, em Die Mystik und das Wort, de
Emil Brunner. Hoje já não ousaria afirmar que na mística "a rigor, o con­
ceito de culpa não tem lugar” (p. 48,4.). Já não concluiria, seguindo a
Heinzelmann, que fé e mística “estão entre si como água e fogo” (/£>.).
O juízo: “Em seu centro a mística de Tauler é teologia da glória” (p. 158)
resulta do desejo pelo nascimento de Deus na alma somente para um
pensar sistemático abstrato, não, porém, para um estudo histórico-piedo­
so despreconceituoso, que aqui cabe melhor do que o puramente dogmá­
tico. No entanto, a ética da cruz da “imitação” não promoveu um ataque
contra a alta especulação teológica com suas premissas metafísicas, e
não rompeu a maldição da justificação por obras; neste sentido, é verda­
de, ela “não é sequer concebível sem a teologia da glória da igreja” (p.
166), no entanto, em termos de piedade ela está bem mais próxima da
teologia da cruz de Lutero do que qualquer teologia da glória especulati­
va. As premissas do pensamento neoplatônico não podem, de forma al­
guma, ser ignoradas na mística alemã e não se deve esquecê-las quando
se pergunta pelo posicionamento de Lutero em relação à mística. Aqui se
encontra, de fato, uma contraposição irrenunciável entre a teologia da
cruz de Lutero e a mística. A piedade, porém, tem uma lógica diferente
da do pensamento abstrato, e Lutero sentiu-se profundamente tocado
pela piedade de um Tauler. Não se pode simplesmente caracterizar este
sentimento de afinidade como engano a respeito da total incompatibili­
dade da atitude básica, como ocorre nas páginas 155s. Maior empenho na
questão histórica, apenas mencionada de passagem nas páginas 146s,
poderia ter advertido de antíteses por demais agudas. Também a mística
de Cristo de Lutero (p. 102s) não dista tanto assim da de um Tauler.
Também a mística, não obstante o desejo pela experiência mística, vive
na fé e da graça. A mística cristã é uma das formas mais dignas da pie­
dade cristã, e por isso, de forma alguma, pode ser “eliminada objetiva­
mente” (p. 80). Meus esforços até aqui no sentido de entendê-la se fixa­
ram em meus artigos sobre Mestre Eckehart11 e Bernardo de Clairvaux12.
Também ao apóstolo Paulo não é estranha a experiência mística, inclusi­
ve o êxtase (2 Co 12), o que é ignorado por vezes.13 Resumindo: delim i­

11 Jahrbuch des Martin Luther-Bundes, 1947, p. 60ss. Von Augustin zu Luther, p. 136ss. Cf.
também o capitulo sobre a mística alemã, in: W. v. LÖWENICH, Geschichte der Kirche, 43 ed.,
1954, p. 172ss.
12 Zeitwende, 1953,1; p. 325ss. Von Augustin zu Luther, p. 122ss.
13 Cf. W. v. LÖWENICH, Paulus, 2? ed., 1949, p. 158.

174
tações sistemáticas têm seu valor, porém, não captam as últimas coisas.
Peço considerar isso na leitura do capítulo ‘Teologia da cruz e mística”.
No final do livro falei de duas tarefas que ultrapassam os moldes
do presente livro (p. 169). Uma delas consistiria em demonstar por ex­
tenso em cada um dos artigos doutrinários o significado do princípio
ideológico da teologia da cruz, oferecer, portanto, uma descrição global
da teologia de Lutero sob o ponto de vista da teologia da cruz. Isso não
foi feito até agora. Sobre a doutrina da santa ceia tratei em meu traba­
lho Vom Abendmahl Christi:u Também na doutrina da santa ceia
de Lutero encontramos sua teologia da cruz (cf. especialmente pp. 87s.),
por mais que se tenha que criticá-la. Em meu livreto Luthers evange­
lische Botschaft {2r ed., München, 1948) ocupei-me com a relação entre
cruz e justificação e entre cruz e história.
À segunda tarefa dediquei-me mais intensivamente. Conseguiu
Lutero expor toda a riqueza das idéias bíblicas em sua teologia da cruz,
ou foi ele um ouvinte muito parcimonioso da Sagrada Escritura? A este
problema dedicam-se meus livros Luther und das Johanneische Christen­
tum (München, 1935) e sobre Luther als Ausleger der Synoptiker (Mün­
chen, 1954). Meu livrinho sobre Humanitas - Christianitas (Gütersloh,
1948), porém, surgiu da preocupação de que a antiquíssima pergunta
pela correta relação dessas duas grandezas poderia ser respondida preci­
pitadamente e unilateralmente a favor de uma teologia da cruz mal-en­
tendida.

Walther v. Loewenich

Erlangen, na primavera de 1954

14 Furcheverlag, Berlin, p. 49ss.

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182
Abreviações usadas:
WA = obras de Lutero da edição de Weimar, citando volume, página e
linha.
WA Br = edição de Weimar, cartas.
R.E. = Realencyclopãdie editada por Hauck.
R.G.G. = Religion in Geschichte und Gegenwart,
n. = nota (de rodapé).

183
A
Teologia da
C ruz de Lutero

“Existem muitas obras importantes sobre Lutero.


Algumas delas são mais ricas e diversificadas do que
a presente. Mas nenhuma consegue captar Lutero a
partir de uma só raiz e interpretá-lo de maneira tão
autêntica como A TEOLOGIA DA CRUZ DE LUTERO, de
Walther von Loewenich. Quando de sua primeira
publicação, este livro representava um avanço
considerável. Até hoje continua sendo um clássico
que fecunda a pesquisa.”

Prof. D. Dr. Joseph Lortz


(Mogúncia, 1967)

Texto que consta na 6§ edição inalterada


da versão original, de 1982.

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