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Fichamento O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica (1969)

Bibliografia

RICOEUR, Paul. O Conflito das Interpretações. Ensaios de Hermenêutica. Rio de


Janeiro: Imago, 1978.

Capítulo: Existência e Hermenêutica

I. A origem da hermenêutica

- “ Não é inútil lembrar que o problema hermenêutico foi colocado, em primeiro lugar,
nos limites da exegese, vale dizer, no contexto de uma disciplina que se propõe a
compreender um texto, a compreendê-lo a partir de sua intenção, baseando-se no
fundamento daquilo que ele pretende dizer. Se a exegese suscitou um problema
hermenêutico, quer dizer, um problema de interpretação, é porque toda leitura de texto,
por mais ligada que ela esteja ao quid, ao ‘aquilo em vista de que’ ele foi escrito, sempre
é feita no interior de uma comunidade, de uma tradição ou de uma corrente de pensamento
vivo, que desenvolvem pressupostos e exigências [...].” (p. 7)

- “Em que esses debates exegéticos dizem respeito à filosofia? No fato de a exegese
implicar toda uma teoria do signo e da significação [...]. [Acaba aqui a página 7] Mais
precisamente, se um texto pode ter vários sentidos, por exemplo, um sentido histórico e
um sentido espiritual, deve-se recorrer a uma noção de significação muito mais complexa
que a dos signos ditos unívocos, exigida por uma lógica da argumentação. Enfim, o
próprio trabalho da interpretação revela um desígnio profundo: o de superar uma
distância, um afastamento cultural, o de equiparar o leitor a um texto que se tornou
estranho e, assim, incorporar seu sentido à compreensão presente que um homem pode
obter dele mesmo.” (p. 7-8)

- “Por conseguinte, a hermenêutica não podia continuar sendo uma técnica de


especialistas [...]. Ela coloca em jogo o problema geral da compreensão. Por isso também,
nenhuma interpretação significativa pôde constituir-se sem fazer empréstimos aos modos
de compreensão disponíveis numa determinada época: mito, alegoria, metáfora, analogia,
etc. Esse vínculo da interpretação – no sentido preciso da exegese textual – com a
compreensão – no sentido amplo da inteligência dos signos – é atestado por um dos
sentidos tradicionais do próprio termo hermenêutica: o que nos é fornecido pelo [peri
hermenêuticas] de Aristóteles. Com efeito, é extraordinário que, em Aristóteles, a
hermeneia não se limita à alegoria, mas diz respeito a todo o discurso significante.
Ademais, é o discurso significante que é hermeneia, que ‘interpreta’ a realidade, na
medida mesma em que diz ‘algo de alguma coisa’; há hermeneia, porque a enunciação é
uma apreensão do real mediante expressões significantes, e não uma obtenção de
pretensas impressões provenientes das coisas mesmas.” (p. 8)

- “Essa é a primeira e a mais originária relação entre o conceito de interpretação e o de


compreensão [...]” (p. 8)

- “É com Schleiermacher e Dilthey que o problema hermenêutico se torna problema


filosófico. [...] a interpretação que, para Dilthey, prende-se aos documentos fixados pela
escritura, é somente uma província do domínio muito mais vasto da compreensão, a qual
vai de uma vida psíquica a uma vida psíquica estranha. O problema [acaba aqui a página
8] da hermenêutica encontra-se, assim, situado do lado da psicologia: compreender é, para
um ser finito, transportar-se para outra vida. Dessa forma, a compreensão histórica põe
em jogo todos os paradoxos da historicidade: como um ser histórico pode compreender
historicamente a história? Por sua vez, tais paradoxos remetem a uma problemática muito
mais fundamental: como a vida, ao se exprimir, pode objetivar-se? Como, ao objetivar-
se, elucida significações suscetíveis de serem retomadas e compreendidas por outro ser
histórico, que supera sua própria situação histórica? Encontra-se posto um problema
maior que iremos descobrir no término de nossa investigação: o da relação entre a força
e o sentido, entre a vida portadora de significação e o espírito capaz de encadeá-los numa
sequência coerente. Se a vida não for originariamente significante, a compreensão será
sempre impossível. Contudo, para que essa compreensão possa ser fixada, não devemos
transpor para a própria vida essa lógica do desenvolvimento imanente que Hegel chamava
de o Conceito? Não nos devemos conferir sub-repticiamente todos os recursos de uma
filosofia do espírito, no momento em que fazemos uma filosofia da vida? Eis a grande
dificuldade que pode justificar o fato de procurarmos, do lado da fenomenologia, a
estrutura de acolhida ou, para retomarmos nossa imagem inicial, o jovem viveiro sobre o
qual poderemos inserir o enxerto hermenêutico.” (p. 8-9)

II. O enxerto hermenêutico sobre a fenomenologia

- “Há duas maneiras de fundar a hermenêutica na fenomenologia.” (p. 9)


- “Chamo de ‘via curta’ tal ontologia da compreensão, à maneira de Heidegger. Chamo
de ‘via curta’ tal ontologia da compreensão porque, ao romper com os debates de método,
refere-se, de imediato, ao plano de uma ontologia do ser finito, para aí encontrar o
compreender, não mais como um modo de conhecimento, mas como um modo de ser.
[...] penetramos nela por uma súbita inversão da problemática. A questão – a que condição
um sujeito cognoscente pode compreender um texto ou a história? – pode ser substituída
pela questão: o que é um ser cujo ser consiste em compreender? O problema hermenêutico
torna-se, assim, um domínio da analítica desse ser, o Dasein, que existe compreendendo.”
(p. 9)

- “Aquele que primeiramente vamos encontrar, sobre o caminho desse remontar


[hermenêutica fenomenológica] é, evidentemente, o último Husserl, o Husserl da Krisis.
É antes de tudo nele que devemos procurar a fundação fenomenológica dessa ontologia.
Sua contribuição à hermenêutica é dupla. Por um lado, é na última fase da fenomenologia
que a crítica do ‘objetivismo’ é levada às suas últimas consequências; essa crítica do
objetivismo diz respeito ao problema hermenêutico, não somente indiretamente, porque
contesta a pretensão da epistemologia das ciências naturais de fornecer às ciências
humanas o único modelo metodológico válido, mas também diretamente, porque
questiona o empreendimento diltheyniano de fornecer às Geisteswissenschaften
[Humanidades] um método tão objetivo quanto o das ciências da natureza. Por outro lado,
a última fenomenologia de Husserl articula sua crítica do objetivismo sobre uma
problemática que abre o caminho a uma ontologia da compreensão: essa problemática
nova tem por tema a Lebenswelt, o ‘mundo da vida’, vale dizer, uma camada da
experiência anterior à relação sujeito-objeto que forneceu a todas as variedades do
neokantismo seu tema diretor.” (p. 11)

- “[...] o último Husserl é alistado nesse empreendimento subversivo visando a substituir


uma epistemologia da interpretação por uma ontologia da compreensão, o primeiro
Husserl[...] permanece fortemente em suspeita. Sem dúvida, foi ele quem abriu o
caminho, ao designar o sujeito como polo intencional, como portador de visada, e ao
conferir por correlato, a esse sujeito, não uma natureza, mas um campo de significações.
Considerada retrospectivamente a partir do velho Husserl e, sobretudo, a partir de
Heidegger, a primeira fenomenologia pode aparecer como a contestação inicial do
objetivismo, pois o que ela chama de fenômenos são justamente os correlatos da vida
intencional, as unidades de significação, oriundos dessa vida intencional. Ocorre, não
obstante, que o primeiro Husserl apenas construiu um novo idealismo, próximo do
neokantismo que combate; a redução da tese do mundo é, com efeito, uma redução da
questão do ser à questão do sentido do ser. O sentido do ser, por sua vez, é reduzido a um
simples correlato dos modos subjetivos de visada.” (p. 11-12)

- “Finalmente foi contra o primeiro Husserl, contra as tendências alternadamente


platonizantes e idealizantes de sua teoria da significação e da intencionalidade, que se
edificou a teoria da compreensão. [...] É apesar dela que ela descobre, ao invés de um
sujeito idealista fechado em seu sistema de significações, um ser vivo que sempre teve,
por horizonte de todas as suas visadas, um mundo, o mundo.” (p. 12)

- “Manifesta-se, assim, um campo de significações anterior à constituição de uma


natureza matematizada, tal como a representamos desde Galileu – um campo de
significações anterior à objetividade para um sujeito cognoscente. Antes da objetividade,
há a vida operante, que por vezes Husserl chama de anônima. Não que ele retorne, por
esse atalho, a um sujeito impessoal kantiano, mas porque o próprio sujeito que possui
objetos é derivado da vida operante.” (p. 12)

- “[...] a compreensão das expressões multívocas ou simbólicas é um momento da


compreensão de si; o enfoque semântico se encadeará, assim, como um enfoque reflexivo.
Todavia, o su [acaba aqui a página 13] jeito que se interpreta, interpretando os signos,
não é mais o Cogito: é um existente que se descobre, pela exegese de sua vida, que é posto
no ser antes mesmo que se ponha ou se possua. Dessa forma, a hermenêutica descobriria
um modo de existir que permaneceria de ponta a ponta ser-interpretado. Somente a
reflexão, ao abolir-se como reflexão, pode conduzir às raízes ontológicas da
compreensão. Mas isso não cessa de ocorrer na linguagem pelo movimento da reflexão.”
(p. 13-14)

III. O plano semântico

- “É antes de tudo – e sempre – na linguagem que vem exprimir-se toda compreensão


ôntica ou ontológica. [...] A exegese já nos habituou com a ideia de que um texto tem
vários sentidos, de que tais sentidos se imbricam um no outro, de que o sentido espiritual
é ‘transferido’ [...] do sentido histórico ou literal, por acréscimo de sentido deste. Também
Schleiermacher e Dilthey nos ensinaram a considerar os textos, os documentos, os
monumentos, como expressões da vida fixadas pela escrita. A exegese refaz o trajeto
inverso dessa objetivação das forças da vida nas conexões psíquicas e, em seguida, nos
encadeamentos históricos. Essa objetivação e essa reflexão constituem outra forma de
transferência do sentido. Por sua vez, Nietzsche trata os valores como expressões da força
e fraqueza da vontade de poder que precisamos interpretar. Ademais, nele é a própria vida
que é interpretação: a filosofia torna-se, assim, interpretação das interpretações.
Finalmente, Freud examinou, sob o título do ‘trabalho de sonho’, uma sequência de
procedimentos possuindo isto de extraordinário: ‘traspõem” (Entstellung) um sentido
oculto, fazem-no sofrer uma distorção que ao mesmo tempo mostra e oculta o sentido
latente no sentido manifesto; ele seguiu as ramificações dessa distorção nas expressões
culturais da arte, da moral e da religião, e constituiu, assim, uma exegese da cultura
bastante semelhante à de Nietzsche. Portanto, não é desprovido de sentido procurarmos
cernir aquilo que poderíamos chamar de o nó semântico de toda hermenêutica, geral ou
particular, fundamental ou especial. Parece que o elemento comum, o que se encontra em
toda parte, da exegese à psicanálise, é certa arquitetura do sentido, que podemos chamar
de duplo-sentido ou múltiplo-sentido, cujo papel consiste, cada vez, embora de modo
diferente, em mostrar ocultando. Portanto, é na semântica do mostrado-ocultado, na
semântica das expressões multívocas, que vejo estreitar-se esta análise da linguagem.” (p.
14)

- “Chamo de símbolo toda estrutura de significação em que um sentido direto, primário,


literal, designa, por acréscimo, outro sentido indireto, secundário, figurado, que só pode
ser apreendido através do primeiro. Essa circunscrição das expressões de duplo sentido
constitui, propriamente, o campo hermenêutico.” (p. 15)

- “Em contrapartida, também o conceito de interpretação recebe uma acepção


determinada. Proponho conferir-lhe a mesma extensão que ao símbolo. A interpretação,
diremos, é o trabalho de pensamento que consiste em decifrar o sentido oculto no sentido
aparente, em desdobrar os níveis de significação implicados na significação literal. [...]
Símbolo e interpretação tornam-se, assim, conceitos correlativos: há interpretação onde
houver sentido múltiplo; e é na interpretação que a pluralidade dos sentidos torna-se
manifesta.” (p. 15)

- “Não há simbólica antes do homem que fala, mesmo que o poder do símbolo esteja
enraizado mais embaixo. É na linguagem que o cosmos, que o desejo, que o imaginário
acedem à expressão. Sempre é necessária uma palavra para retomar o mundo e convertê-
lo em hierofania. Da mesma forma, o sonho permanece fechado a todos, enquanto não
for levado pelo relato ao plano da linguagem.” (p. 15)
IV – O plano reflexivo

- “Ao propor religar a linguagem simbólica à compreensão de si, penso satisfazer ao


desejo mais profundo da hermenêutica. Toda interpretação se propõe a vencer um
afastamento, uma distância, entre a época cultural revoluta, à qual pertence o texto, e o
próprio intérprete. Ao superar essa distância, ao tornar-se contemporâneo do texto, o
exegeta pode apropriar-se do sentido: de estranho, pretende torná-lo próprio; quer dizer,
fazê-lo seu. Portanto, o que ele persegue, através da compreensão do outro, é a ampliação
da própria compreensão de si mesmo. Assim, toda hermenêutica é, explícita ou
implicitamente, compreensão de si mesmo mediante a compreensão do outro.” (p. 18)

- “Devemos agora compreender que, ao articular essas significações multívocas sobre o


conhecimento de si, transformamos profundamente a problemática do Cogito. Digamos
logo que é essa reforma interna da filosofia reflexiva que justificará, mais adiante, que aí
descubramos uma nova dimensão da existência. Mas, antes de dizer como o Cogito se
esfacela, digamos como ele se enriquece e se aprofunda pelo recurso à hermenêutica.” (p.
18)

- “[...] devemos dizer que o famoso Cogito cartesiano, que se apreende diretamente na
prova da dúvida, é uma verdade tão vã quanto invencível. Não nego que seja uma verdade;
é uma verdade que se põe a si mesma; a esse título, não pode ser verificada nem deduzida;
é ao mesmo tempo a posição de um ser e de um ato; de uma existência e de uma operação
de pensamento; existo, penso; existir, para mim, é pensar; existo enquanto penso.” (p. 19)

- “Contudo, o Cogito não é apenas uma verdade tão vã quanto invencível; deve-se
acrescentar ainda que ele é um lugar vazio que, desde sempre, foi preenchido por um falso
Cogito. Aprendemos, com efeito, por meio de todas as disciplinas exegéticas e pela
psicanálise, em especial, que a consciência pretensamente imediata é, antes de tudo,
‘consciência falsa’. [...] Por conseguinte, devemos, doravante, acrescentar uma crítica da
consciência falsa a toda redescoberta do sujeito do Cogito nos documentos de sua vida.
Uma filosofia da reflexão deve ser exatamente o contrário de uma filosofia da
consciência.” (p. 19)

- “Esse primeiro motivo se liga ao precedente: não somente o ‘eu’ não pode apropriar-se
senão nas expressões da vida que o objetivam, mas a exegese do texto da consciência
choca-se com as primeiras ‘más interpretações’ da consciência falsa. Ora, como sabemos
desde Schleiermaher, há hermenêutica lá onde houver, antes, má interpretação.” (p. 19)
- “Assim, a reflexão deve ser duplamente indireta; primeiramente porque a existência só
se atesta nos documentos da vida, mas também porque a consciência é, inicialmente,
consciência falsa e sempre é necessário elevar-se, através de uma crítica corretiva, da má
compreensão à compreensão.” (p. 19)

- “A justificação da hermenêutica só pode alimentar ser radical se procurarmos na própria


natureza do pensamento reflexivo o princípio de uma lógica do duplo sentido. Essa lógica
não é mais, então, uma lógica formal, mas uma lógica transcendental. Ela se estabelece
no nível das condições de possibilidades: não das condições da objetividade de uma
natureza, mas das condições da apropriação de nosso desejo de ser. É nesse sentido que
a lógica do duplo sentido, própria à hermenêutica, pode ser chamada de transcendental.”
(p. 20)

V – A etapa existencial

- “A ontologia da compreensão, que Heidegger elabora diretamente por uma súbita


conversão que substitui a consideração de um modo de conhecer pela de um modo de ser,
só poderá ser, para nós que procedemos indiretamente e de um modo gradativo, um
horizonte; vale dizer, uma visada, mais do que um dado. Uma ontologia separada está
fora de nosso alcance: é somente no movimento da interpretação que percebemos o ser
interpretado. [...] Ademais, é somente num conflito das hermenêuticas rivais que
percebemos algo do ser interpretado: uma ontologia unificada é [acaba aqui a página 20]
tão inacessível a nosso método quanto uma ontologia separada. É cada vez cada
hermenêutica que descobre o aspecto da existência que a funda como método.” (p. 20-
21)

- “Á sua maneira, a psicanálise nos leva à mesma interrogação: como a ordem das
significações está incluída na ordem da vida? Essa regressão do sentido ao desejo é a in
[acaba aqui página 21] dicação de um possível ultrapassamento da reflexão em direção à
existência. Está justificada, agora, uma expressão de que nos servimos acima, mas que
permanece antecipada: pela compreensão de nós mesmos, dizíamos, apropriarmo-nos do
sentido de nosso desejo de ser ou de nosso esforço para existir. A existência, podemos
dizê-lo agora, é desejo e esforço. Chamamo-la de esforço para ressaltar sua energia
positiva e seu dinamismo; chamamo-la de desejo para designar sua carência e sua
indigência: Eros é filho de Póros e de Pênia. Assim, o Cogito não é mais ato pretensioso
do que era inicialmente, quero dizer, essa pretensão de pôr-se a si mesmo; ele surge como
já posto no ser.” (p. 21-22)

- “Contudo, se a problemática de reflexão pode e deve ultrapassar-se numa problemática


da existência, como sugere uma meditação filosófica sobre a psicanálise, é sempre na e
pela interpretação que ocorre essa ultrapassamento: é decifrando as astúcias do desejo
que se descobre o desejo na raiz do sentido e da reflexão [...]. É detrás de si mesmo que
o Cogito descobre, pelo trabalho da interpretação, algo como que uma arqueologia do
sujeito. A existência transparece nessa arqueologia, mas permanece implicada no
movimento de decifração que ela suscita.” (p. 22)

- “A psicanálise nos propunha uma regressão ao arcaico, a fenomenologia do espírito nos


propõe um movimento segundo o qual cada figura encontra seu sentido, não na que
precede, mas na que se segue. A consciência é, assim, levada para fora de si, para adiante
de si, para um sentido e marcha, de que cada etapa é abolida e retida na seguinte. Assim,
uma teologia do sujeito opõe-se a uma arqueologia do sujeito. O importante, porém, para
nosso intuito, é que essa teologia, ao mesmo título que a arqueologia freudiana, só se
constitui no movimento da interpretação que compreende uma figura por outra figura. O
espírito só se realiza nessa passagem de uma figura a outra. Ele é a própria dialética das
figuras mediante o quê o sujeito [acaba aqui a página 22] é lançado fora de sua infância,
arrancado à sua arqueologia. É por isso que a filosofia permanece uma hermenêutica, isto
é, uma leitura do sentido oculto no texto do sentido aparente. A tarefa dessa hermenêutica
é a de mostrar que a existência só vem à palavra, ao sentido e à reflexão, procedendo a
uma contínua exegese de todas as significações que se manifestam no mundo da cultura.
A existência não se torna um ‘si’ – humano e adulto – senão apropriando-se desse sentido
que reside incialmente ‘fora’, em obras, instituições, monumentos de cultura, onde a vida
do espírito é objetivada.” (p. 23)

- “Assim, as mais opostas hermenêuticas apontam, cada uma a seu modo, em direção das
raízes ontológicas da compreensão. Cada uma a seu modo diz a dependência do ‘si’ á
existência. A psicanálise mostra essa dependência na arqueologia do sujeito, a
fenomenologia do espírito na teleologia das figuras, a fenomenologia da religião nos
signos do sagrado.” (p. 23)

Hermenêutica e estruturalismo
Estrutura e hermenêutica

- “O presente colóquio tem por tema a hermenêutica e a tradição. É surpreendente que,


aquilo que é posto em questão, em ambos os títulos, é certa maneira de viver, de operar o
tempo: tempo de transmissão, tempo de interpretação.” (p. 27)

- “Achamos que a interpretação possui uma história e que esta história é um segmento da
própria tradição. Não interpretamos de parte alguma, mas para explicitar, prolongar e,
assim, manter viva a própria tradição na qual nos encontramos. É assim que o tempo da
interpretação pertence de certa forma ao tempo da tradição. Em compensação, porém, a
tradição, mesmo entendida como transmissão de um depositum, permanece tradição
morta, se não for a interpretação contínua desse depósito; uma ‘herança’ não é um pacote
fechado que passamos de mão em mão sem abri-lo, mas um tesouro de onde sacamos
com as mãos repletas e que renovamos na operação mesma de sacá-lo. Toda tradição vive
graças à interpretação. É a este preço que ela dura, quer dizer, permanece viva.” (p. 27)

- “Minha intenção não é, absolutamente, a de opor a hermenêutica ao estruturalismo, a


historicidade de uma à diacronia da outra. O estruturalismo pertence à ciência. [...] A
interpretação da simbólica não merece ser chamada de hermenêutica senão na medida em
que é um segmento da compreensão de si mesmo e as compreensão do ser. [...] Nesse
sentido a hermenêutica é uma disciplina filosófica. Tanto o estruturalismo visa a
distanciar, a objetivar, a separar da equação pessoal do pesquisador a estrutura de uma
instituição, de um mito, de um rito, quanto o pensamento hermenêutico embrenha-se
naquilo que pudemos chamar de ‘o círculo hermenêutico’ do empreender e do crer, que
o desqualifica como ciência e o qualifica como pensamento meditante. Portanto, não há
lugar para se justapor duas maneiras de compreender. Trata-se, antes, de encadeá-las
como o objetivo e o existencial (existentiel) – ou o existential! Se a hermenêutica é uma
fase de apropriação do sentido, uma etapa entre a reflexão abstrata e a reflexão concreta;
se a hermenêutica é uma retomada, pelo pensamento, do sentido em suspenso na
simbólica, só pode encontrar o trabalho da antropologia estrutural como um apoio, e não
como uma cunha. Só nos apropriamos daquilo que antes mantivemos à distância para
considerá-lo. É essa consideração objetiva, levada a efeito nos conceitos de sincronia e
diacronia, que pretendo praticar, na esperança de conduzir a hermenêutica, de uma
inteligência ingênua a uma inteligência amadurecida, através da disciplina da
objetividade.” (p. 29)
I – O Modelo linguístico

- “Para o historicismo, compreender é encontrar a gênese, a forma anterior, as fontes, o


sentido da evolução. Com o estruturalismo, são os arranjos, as organizações sistemáticas
num estado dado, que são inteligíveis em primeiro lugar.” (p. 30)

Para o estruturalismo, “Compreender não significa retomar o sentido. [...] não há ‘círculo
hermenêutico’; não há historicidade da relação de compreensão. A relação é objetiva,
independente do observador. É por isso que a antropologia estrutural é ciência e não
filosofia.” (p. 32)

III – O pensamento selvagem

- “Acontece, porém, que o sentido está do lado do arranjo atual, da sincronia. É por isso
que essas sociedades são tão vulneráveis ao acontecimento. Como em linguística, o
acontecimento desempenha o papel de ameaça, em todo caso, de incômodo, e sempre, de
simples interferência contingente (assim, os transtornos demográficos – guerras,
epidemias – que alteram a ordem estabelecida) [...].” (p. 39)

- “A própria história mítica está a serviço dessa luta da estrutura contra o acontecimento,
e representa um esforço das sociedades para anular a ação perturbadora dos fatores
históricos; representa uma tática de anulação do histórico, de amortecimento do
acontecimal [...]. (p. 39)

IV. Limites do estruturalismo

- Inteligência hermenêutica

- “[...] a regulação estrutural está muito mais perto do fenômeno de inércia que da
interpretação viva que nos parece caracterizar a verdadeira tradição. É porque a regulação
semântica procede do excesso do potencial de sentido sobre seu uso e sua função no
interior do sistema dado na sincronia, que o tempo oculto dos símbolos pode ser portador
da dupla historicidade da tradição que transmite e sedimenta a interpretação, e da
interpretação que entretém e renova a tradição.” (p. 43)

- “[...] depende de uma filosofia reflexiva compreender-se a si mesma como


hermenêutica, a fim de criar a estrutura de acolhida para uma antropologia estrutural. A
esse respeito, a função da hermenêutica é a de fazer coincidir a compreensão do outro –
e de seus signos em múltiplas culturas – com [acaba aqui a página 45] a compreensão de
si e do ser.” (p. 45-46)

- “[...] não são leis linguísticas que procuramos totalizar para nos compreender a nós
mesmos, mas o sentido das palavras, relativamente ao qual as leis linguísticas são a
mediação instrumental para sempre inconsciente. Procuro compreender-me retomando o
sentido das palavras de todos os homens. É neste plano que o tempo oculto se torna
historicidade da tradição e da interpretação.” (p. 46)

V- Hermenêutica e antropologia estrutural

- “[...] em que as considerações estruturais constituem atualmente a etapa necessária de


toda a hermenêutica? Mais geralmente, como se articulam hermenêutica e
estruturalismo?” (p. 48)

- “1. [...]. A explicação estrutural versa: 1) sobre um sistema inconsciente; 2) que é


constituído por diferenças e oposições (por distâncias significativas); 3) independente do
observador. A interpretação de um sentido transmitido consiste: 1) na retomada
consciente; 2) de um fundo simbólico sobredeterminado; 3) por um intérprete que se situa
no mesmo campo semântico que aquilo que compreende e, assim, no ‘círculo
hermenêutico’” (p. 48)

- “É por isso que as duas maneiras de fazer surgir o tempo não se encontram no mesmo
nível [...] [acaba p. 48]. Reservarei os termos de historicidade – historicidade da tradição
e historicidade da interpretação – para toda compreensão tendo consciência, implícita ou
explicitamente, de estar no caminho da compreensão filosófica de si e do ser. Neste
sentido, o mito de Édipo depende da compreensão hermenêutica quando é compreendido
e retomado – já por um Sófocles – a título de primeira solicitação de sentido, em vista de
uma meditação sobre o reconhecimento de si, sobre a luta pela verdade e pelo ‘saber
trágico’.” (p. 48-49)

- “2. [...]. A explicação estrutural, perguntaremos inicialmente, pode ser separada de toda
compreensão hermenêutica? [...]. Mas então, será que a compreensão hermenêutica não
se refugiou na própria constituição do campo semântico onde se exercem as relações de
homologia? [..]. Entendo que o desdobramento de que se trata aqui é o que engendra a
função do signo em geral, e não o duplo sentido do símbolo, tal como o entendemos. Mas
o que é verdadeiro do signo em seu sentido primário, ainda é mais verdadeiro do duplo
sentido dos símbolos. A inteligência desse duplo sentido, inteligência essencialmente
hermenêutica, sempre é pressuposta pela inteligência das ‘trocas de valores
complementares’ levada a efeito pelo estruturalismo. [...] [acaba p. 49]. É por isso que a
inteligência estrutural sempre se faz acompanhar de um grau de inteligência
hermenêutica, mesmo que esta não seja tematizada.” (p. 49-50)

- “3. A articulação da interpretação de visada filosófica sobre a explicação estrutural, deve


agora ser tomada no outro sentido; deixei entender desde o início que esta era atualmente
o desvio necessário, a etapa da objetividade científica, sobre o trajeto da retomada do
sentido. Não há retomada do sentido, direi numa fórmula simétrica e inversa da
precedente, sem um mínimo de compreensão das estruturas. [...]. [acaba p. 50]. [...] um
símbolo separado não possui sentido; ou antes, um símbolo separado possui demais
sentido; a polissemia é sua lei [...].” (p. 50-51)

- “Essas considerações constituem a exata contrapartida das observações precedentes: não


há análise estrutural, dizíamos, sem inteligência hermenêutica da transferência de sentido
(sem ‘metáfora’, sem translatio), sem esta doação indireta de sentido que institui o campo
semântico, a partir do qual podem ser discernidas homologias estruturais.” (p. 52)

- “Em contrapartida, porém, também não há inteligência hermenêutica sem o intermédio


de uma economia, de uma ordem, nas quais a simbólica significa. Tomados em si
mesmos, os símbolos são ameaçados por sua oscilação entre o empastamento no
imaginativo ou a evaporação no alegorismo; sua riqueza, sua exuberância, sua polissemia
expõem os símbolos ingênuos à intemperança e à complacência. [....] o que chamamos
pura e simplesmente de equivocidade, em comparação com a exigência de univocidade
do pensamento lógico, faz com [acaba p. 52] que os símbolos só simbolizem conjuntos
que limitam e articulam suas significações.” (p. 52-53)

- “[...] a compreensão das estruturas não é exterior a uma compreensão que teria por tarefa
pensar a partir dos símbolos; ela é hoje em dia o intermediário necessário entre a
ingenuidade simbólica e a inteligência hermenêutica.” (p. 53)

Cap. O problema do duplo sentido: como problema hermenêutico e como problema


semântico

- “Gosto de reconhecer na filosofia uma tarefa de arbitragem, e exercitei-me


precedentemente a arbitrar o conflito de várias hermenêuticas na cultura moderna: uma
hermenêutica da desmistificação e uma hermenêutica do recolhimento do sentido. [...].
As maneiras de tratar o simbolismo que proponho confrontar representam níveis
estratégicos diferentes. Considerarei dois ou mesmo três níveis estratégicos: tomarei a
hermenêutica como um único nível estratégico, o dos textos. Confrontá-lo-ei com a
semântica dos linguistas.” (p. 55)

- “[...] gostaria de estabelecer que a via da análise e a via da síntese não coincidem, não
são equivalentes: na via da análise, descobrem-se os elementos da significação, que não
possuem mais nenhuma relação com coisas ditas; na via da síntese, revela-se a função da
significação, que já é de dizer e, finalmente, de ‘mostrar’.” (p. 56)

§ I. O nível hermenêutico

- “[...] o problema do sentido múltiplo. Com isto, já designo certo efeito de sentido,
segundo o qual uma expressão, de dimensões variáveis, significando uma coisa, significa
ao mesmo tempo outra coisa, sem deixar de significar a primeira. No sentido próprio do
termo, é a função alegórica da linguagem (ale-goria dizer uma coisa dizendo outra coisa).”
(p. 56)

- “O que define a hermenêutica, pelo menos relativamente aos outros níveis estratégicos
que iremos considerar, é inicialmente, a extensão das sequências com as quais ela opera
e que chamo de textos. Foi primeiramente na exegese dos textos bíblicos, depois profanos,
que a ideia de uma hermenêutica, concebida como ciência das regras da exegese,
constituiu-se. Aqui, a noção de texto tem um sentido preciso e limitado. [..]. Ora, o texto
comporta, além de certa extensão, relativamente às sequências mínimas com as quais o
linguista gostará de trabalhar, a organização interna de uma obra, um Zusammenhang,
uma conexão interna.” (p. 56)

- “Para o hermeneuta, é o texto que possui um sentido múltiplo. Para ele, o problema do
sentido múltiplo só se coloca se levarmos em consideração tal conjunto, onde são
articulados acontecimentos, personagens, instituições, realidades naturais ou históricas
[...].” (p. 57)

- “[...] uma coisa é servir-se da hermenêutica como de uma arma de suspeita contra as
‘mistificações’ da falsa consciência, outra é fazer uso dela como de uma preparação a
entender melhor aquilo que uma vez veio ao sentido, aquilo que uma vez foi dito.” (p. 57)
- “Ora, a possibilidade mesma de hermenêuticas divergentes e rivais – no plano da técnica
e do projeto – deve-se a uma condição fundamental que, no meu entender, caracteriza em
bloco o nível estratégico das hermenêuticas. É esta condição fundamental que nos reterá
aqui: consiste em dizer que a simbólica é um meio de expressão para a realidade
extralinguística. Isto é capital para o confronto ulterior. Antecipando-me a uma expressão
que só adquirirá seu sentido preciso em outro nível estratégico, direi: em hermenêutica,
não há enclausuramento do universo dos signos. Enquanto que a linguística se move no
recinto de uma universo auto-suficiente e não encontra jamais senão relações intra-
significativas, relações de interpretação mútua entre signos [...] [acaba p. 57], a
hermenêutica encontra-se sob o regime da abertura do universo dos signos.” (p. 57-58)

- “O que entendemos por abertura? O seguinte: que em cada disciplina hermenêutica, a


interpretação está na articulação do linguístico e do não-linguístico, da linguagem e da
experiência vivida (qualquer que ela seja).” (p. 58)

- “[...] o simbolismo, tomado em seu nível de manifestação em textos, revela a explosão


da linguagem em direção a algo distinto dela mesma: é o que eu chamo de sua abertura;
esta explosão, é dizer; e dizer, é mostrar; as hermenêuticas rivais se dilaceram, não sobre
a estrutura do duplo sentido, mas sobre o modo de sua abertura, sobre a finalidade do
mostrar. Eis aí a força e a fraqueza da hermenêutica; a fraqueza, porque, tomando a
linguagem no momento em que ela escapa a si mesma, toma-a no momento em [acaba p.
58] que também escapa a um tratamento científico, que só tem início com o postulado do
fechamento do universo significante; todas as outras fraquezas decorrem dessa primeira
e, antes de tudo, a fraqueza insigne de lançar a hermenêutica na guerra dos projetos
filosóficos rivais. Mas essa fraqueza constitui sua força, porque o lugar onde a linguagem
se escapa a si mesma e nos escapa, é o lugar onde a linguagem é dizer. [...] é cada vez
como poder que descobre, que manifesta, que evidencia, que a linguagem opera e se torna
ela mesma; então, ela se cala diante daquilo que diz.” (p. 58-59)

- “[...] o único interesse filosófico do simbolismo consiste em que ele revela, por sua
estrutura de duplo sentido, a equivocidade do ser [...]. A razão de ser do simbolismo é a
de abrir a multiplicidade do sentido à equivocidade do ser.” (p. 59)

Semântica léxica

- “O que se nos apresentou, no plano dos textos, como um setor particular do discurso, a
saber, como o setor de plurivocidade, aparece-nos agora fundado numa propriedade geral
das unidades léxicas, ou seja, de funcionar como um acumulador de sentido, como um
permutador entre o antigo e o novo. É dessa forma que o duplo-sentido se reveste de uma
função expressiva em relação a realidades significativas de modo imediato.” (p. 61)

- “Quando falo, realizo apenas uma parte do potencial significativo; o resto é obliterado
pela significação total da frase, que opera como unidade de fala. Mas o resto das
virtualidades semânticas não é anulado; ele flutua em torno das palavras, como uma
possibilidade não completamente abolida. Portanto, o contexto desempenha o papel de
filtro. [...]. Por diversos procedimentos, o discurso pode realizar a ambiguidade que
aparece, assim, como a combinação de um fato de léxico, a polissemia, e de um fato de
contexto, a permissão deixada a vários valores distintos ou mesmo opostos do mesmo
nome de se realizarem na mesma sequência.” (p. 62)

- “Polissemia e simbolismo pertencem à constituição e ao funcionamento de toda


linguagem.” (p. 62)

§ III. Semântica estrutural

- “[...] o simbolismo nada possui, propriamente, de extraordinário; todas as palavras da


linguagem ordinária têm mais de uma significação [...][ acaba p. 66]; em contrapartida, a
possibilidade do simbolismo está enraizada numa função comum a todas as palavras,
numa função universal da linguagem, a saber, a aptidão dos lexemas de desenvolver
variações contextuais. Contudo, o simbolismo está situado uma segunda vez
relativamente ao discurso: é no discurso que há equivocidade, e não alhures. É então que
o discurso constitui um efeito de sentido particular: a ambiguidade calculada é a obra de
certos contextos, e podemos dizer agora, de textos que estabeleceram certa isotopia [plano
de sentido, leitura que se faz de uma frase ou texto; vários sentidos] em vista de sugerir-
lhe outra. A transferência de sentido, a metáfora (no sentido etimológico do termo)
ressurge, então, como mudança de isotopia, como jogo de isotopias múltiplas,
concorrenciais, superpostas.” (p. 66-67)

- “[...] há dois modos de explicar o simbolismo: por aquilo que o constitui e por aquilo
que ele quer dizer. Aquilo que o constitui requer uma análise estrutural; e esta análise
dissipa seu caráter ‘maravilhoso’; é sua função e, ousarei dizer, sua missão; o simbolismo
opera com recursos de toda a linguagem, os quais são sem mistério.” (p. 67)
- “[...] não há mistério na linguagem; o simbolismo mais poético, mais ‘sagrado’, opera
com as mesmas variáveis sêmicas que a palavra mais banal do dicionário. Mas há um
mistério da linguagem, a saber, que a linguagem diz, diz algo, diz algo do ser. Se há um
enigma do simbolismo, ele reside inteiramente no plano de manifestação, onde a
equivocidade do ser vem dizer-se na do discurso.” (p. 68)

Cap. A estrutura, a palavra, o acontecimento

§ I. As pressuposições da análise estrutural

§ II. A palavra como discurso

-“A conquista do ponto de vista estrutural é, seguramente, uma conquista da


cientificidade. Ao constituir o objeto linguístico como objeto autônomo, a linguística se
constitui a si mesma como ciência. Mas a que preço? Cada [acaba p. 72] um dos axiomas
que enumeramos é ao mesmo tempo um ganho e uma perda.” (p. 72-73)

- “O ato de falar não é somente excluído como execução exterior, como performance
individual, mas como livre combinação, como produção de enunciados inéditos. Eis o
essencial da linguagem e, falando propriamente, sua destinação.” (p. 73)

- “Fica ao mesmo tempo excluída a história, não somente a mudança de um estado de


sistema em outro, mas a produção da cultura e do homem na produção de sua língua.” (p.
73)

- “Fica ainda excluída, com a livre combinação e a geração, a intenção primeira da


linguagem, que é a de dizer algo sobre alguma coisa. Essa intenção, o locutor e o ouvinte
a compreendem imediatamente. Para eles, a linguagem visa a algo, ou mais exatamente,
há uma dupla visada: uma visada ideal (dizer algo) e uma referência real (dizer sobre
alguma coisa). Nesse movimento, a linguagem transpõe dois limiares: o limiar da
idealidade do sentido e, para além desse sentido, o limiar da referência. Através desse
duplo limiar e em favor desse movimento de transcendência, a linguagem quer dizer:
exerce um domínio sobre a realidade e exprime o domínio da realidade sobre o
pensamento.” (p. 73)

- “A experiência que temos da linguagem revela algo de seu modo de ser que resiste a
essa redução. Para nós, que falamos, a linguagem não é um objeto, mas uma mediação. É
aquilo através de que, por meio de que, nos exprimimos e exprimimos as coisas. Falar é
o ato pelo qual o locutor supera o fechamento [acaba p. 73] do universo dos signos, com
o intuito de dizer algo sobre alguma coisa a alguém. Falar é o ato pelo qual a linguagem
se ultrapassa como signo em direção à sua referência e ao seu vis-à-vis. A linguagem quer
desaparecer, quer morrer como objeto.” (p. 73-74)

- “A tarefa é então, de outro lado, a de recuperar para a inteligência da linguagem aquilo


que o modelo estrutural exclui, e que talvez seja a própria linguagem como ato de fala,
como dizer.” (p. 74)

- “1. O discurso tem por modo de presença um ato, a instância de discurso (Benvéniste)
que, como tal, pertence à natureza do acontecimento. Falar é um acontecimento atual, um
ato transitório, desvanecimento. O sistema, em contrapartida, é atemporal, porque é
simplesmente virtual.” (p. 75)

- “2. O discurso consiste numa sequência de escolhas pelas quais certas significações são
eleitas e outras excluídas. Essa escolha é a contrapartida de um traço corresponde do
sistema, a coerção.” (p. 75)

- “3. Essas escolhas produzem combinações novas: emitir frases inéditas, compreender
tais frases, eis o essencial do ato de falar e de compreender a fala. Essa produção de frases
inéditas em número virtualmente infinito tem por contrapartida o repertório finito e
fechado de signos.” (p. 75)

- “4. É na instância do discurso que a linguagem possui referência. Falar é dizer algo de
alguma coisa. [...]. Esse avanço do sentido (ideal) em direção à referência é a própria alma
da linguagem.” (p. 75)

- “5. Último traço da instância de discurso: o acontecimento, a escolha, a inovação, a


referência, também implicam um modo próprio de designar o sujeito do discurso. Alguém
fala a alguém: reside aqui o essencial do ato de comunicação. Por esse traço, o ato de
palavra se opõe ao anonimato do sistema. Há fala, lá, onde um sujeito puder retomar, num
ato, numa instância singular de discurso, o sistema de signos que a língua coloca à sua
disposição. Esse sistema permanece virtual enquanto não for acabado, realizado, operado
por alguém que, ao mesmo tempo, dirige-se a outrem.” (p. 76)

- “Assim, é no mesmo nível e na mesma instância de discurso que a linguagem possui


uma referência e um sujeito, um mundo e uma audiência. [...]. Alocução e audiência vêm
juntas com ato, acontecimento, escolha, inovação.” (p. 76)

§ III. A estrutura e o acontecimento


-“Em termos puramente sincrônicos, a polissemia significa que uma palavra, num
momento dado, não possui mais de uma significação, que suas significações múltiplas
pertencem ao mesmo estado de sistema. Mas essa definição carece do essencial, que diz
respeito, não à estrutura, mas ao processo. Há um processo de nomeação, uma história do
uso, que tem sua projeção na sincronia, sob forma de polissemia. Ora, esse processo de
transferência de sentido – da metáfora – supõe que a palavra (mot) seja uma entidade
cumulativa, capaz de adquirir novas dimensões de sentido, sem perder as antigas. É esse
processo cumulativo, metafórico, que se projeta na superfície do sistema como
polissemia.” (p. 80)

- “Sendo todas as palavras polissêmicas em certo grau, a univocidade ou a plurivocidade


de nosso discurso não é obra das palavras, mas dos contextos. [acaba p. 81] [...]. Em suma,
a linguagem está em festa. É precisamente numa estrutura que esta abundância se ordena
e se manifesta. Contudo, a estrutura da frase nada cria absolutamente, ela colabora com a
polissemia de nossas palavras para produzir esse efeito de sentido que chamamos de
discurso simbólico, e a própria polissemia de nossas palavras resulta do concurso
metafórico com a ação limitativa do campo semântico.” (p. 81-82)

Parte II

Hermenêutica e Psicanálise

Cap. O consciente e o Inconsciente

- “Para quem foi formado pela fenomenologia, pela filosofia existencial, pela renovação
dos estudos hegelianos e pelas investigações de tendência linguística, o encontro com a
psicanálise constitui um enorme abalo. Não é esse ou aquele tema da reflexão filosófica
que é atingido e questionado, mas o conjunto do projeto filosófico. O filósofo
contemporâneo encontra Freud nas mesmas paragens que Nietzsche e Marx. Todos os
três se apresentam diante dele como os protagonistas da suspeita, os perfuradores de
máscaras. Nasceu um problema novo: o da mentira da consciência, da consciência como
mentira.” (p. 87)

- “[...] não podemos mais contentar-nos, como há vinte anos, em distinguir método e
doutrina. Sabemos, agora, que, nas ciências humanas, a ‘teoria’ não é um acréscimo
contingente: é constitutiva do objeto mesmo [...].” (p. 88)

§ I. A crise da noção de consciência


- “1. Há uma certeza da consciência imediata, mas essa certeza não é um saber verdadeiro
de si; 2. Toda reflexão remete a um irrefletido, como escapamento intencional de si, mas
também esse irrefletido não é um saber verdadeiro do inconsciente.” (p. 88)

- “1. Há uma certeza imediata da consciência, e essa certeza é inexpugnável. É a que


Descartes enunciava, nos Princípios (primeira parte, art. 9), assim: ‘Pelo termo
pensamento, entendo tudo aquilo que se faz em nós de tal forma que o percebemos
imediatamente por nós mesmos; é por isso que, não somente entender, querer, imaginar,
mas também sentir, é a mesma coisa, aqui, que pensar...’.” (p. 89)

- “Mas se essa certeza é invencível enquanto certeza, é duvidosa enquanto verdade.


Sabemos, agora, que a vida intencional, tomada em toda a sua espessura, pode ter outros
sentidos que este sentido imediato. A mais longínqua, a mais geral e a mais abstrata
possibilidade do inconsciente, precisamos confessar, está inscrita nesta distância inicial
entre a certeza e o saber verdadeiro da consciência. Este saber não é dado. Precisa ser
procurado e encontrado: a adequação de si a si, que poderíamos chamar, no sentido forte
do termo, de a consciência de si, não está no início, mas no fim.” (p. 89)

- “2. A fenomenologia husserliana, por sua parte, iniciou a crítica da consciência refletida
e introduziu o tema, atualmente bem conhecido, do pré-reflexivo e do irrefletido. O
inestimável benefício, embora finalmente negativo, de toda a fenomenologia husserliana,
foi o de haver estabelecido que as pesquisas de ‘constituição’ remetem a um pré-dado, a
um pré-constituído. Mas a fenomenologia husserliana não pode ir até o fim do fracasso
da consciência.” (p. 89)

- “Deve-se consumar o fracasso do enfoque reflexivo da consciência: o inconsciente a


que remete esse irrefletido do método fenomenológico é ainda um ‘poder tornar-se
consciente’. É recíproco da consciência como um campo de desatenção, ou ainda como
uma consciência inatural relativamente a uma consciência atual. É o teorema de Ideen I:
É da essência de uma consciência não poder ser inteiramente consciência atual, mas
relação ao inatural. [acaba p. 89] [...]. É o realismo freudiano que constitui, aqui, a etapa
necessária para consumir o fracasso da consciência reflexiva. Esse fracasso não é vão
nem mesmo completamente negativo [...], ele esboça um movimento de conversão da
consciência. Essa compreende que deve apropriar-se de toda avareza relativamente a si
mesma e desta sutil concupiscência de si que talvez seja a relação narcísica da consciência
imediata da vida. Por esse fracasso, a consciência descobre que a certeza imediata de si
mesma não passava de presunção. Assim, talvez, ela possa aceder ao pensamento que não
é mais atenção da consciência à consciência, mas atenção ao dizer, melhor ainda, àquilo
que é dito no dizer.” (p. 89-90)

§ II. A crítica dos conceitos freudianos

§ III. A consciência como tarefa

- “A consciência, dizia, é tão obscura quanto o inconsciente. [...]. Tudo o que se pode
dizer, depois de Freud, sobre a consciência, parece-me estar incluído nessa fórmula: a
consciência não ´origem, mas tarefa.” (p. 94)

- “Minha existência, para mim mesmo, é, realmente, tributária dessa constituição de si na


opinião de outrem. Meu ‘Si’ – se ouso dizer – é recebido da opinião de outrem que o
consagra. Mas essa constituição dos sujeitos, essa constituição mútua por opinião, é
guiada por novas figuras de que podemos dizer, num sentido novo, que são ‘objetivas’.
Nem sempre a elas correspondem instituições. Não obstante, essas figuras do homem
precisam ser procuradas nas obras e nos monumentos da arte e da literatura. É nessa
objetividade de novo tipo que prossegue a prospecção das possibilidades do homem.
Mesmo quando Van Gogh pinta uma cadeira, ele pinta o homem, projeta uma figura
humana, a saber, o que tem esse mundo representado. Os testemunhos culturais fornecem,
assim, a densidade da ‘coisa’ a essas ‘imagens’ do homem: fazem-nas existirem entre os
homens (entre les hommes) e entre (parmi) os homens encarnando-as em ‘obras’. É
através dessas obras, pela mediação desses monumentos, que se constitui uma dignidade
do homem e uma estima de si. Enfim, é neste nível que o homem pode alienar-se,
degradar-se, tornar-se ridículo, aniquilar-se.” (p. 97)

- “[...] esta abordagem indireta, mediata, da consciência, nada tem a ver com uma
presença imediata a si da consciência, com uma certeza imediata de si a si mesmo.” (p.
97)

- “[...] a consciência é o movimento que incessantemente aniquila seu ponto de partida e


só se torna segura de si no fim. Em outras palavras, é aquilo que só possui seu sentido em
figuras posteriores, somente uma figura nova podendo revelar mais tarde o sentido das
figuras anteriores. [...]. De um modo bastante geral, podemos dizer que a inteligibilidade
da consciência vai sempre de frente para trás.” (p. 98)
- “[...] há duas hermenêuticas: uma voltada para a emergência de símbolos novos, de
figuras ascendentes ambicionadas, como na Fenomenologia do espírito, pela última, que
não é mais figura, mas saber; a outra voltada para a ressurgência dos símbolos arcaicos.
A primeira, foi-nos dito, consiste em interpolar um texto lacunar; mas a segunda consiste
menos em restabelecer um texto truncado que em formar os pensamentos novos [acaba
p. 101] suscitados pelo símbolo. [...]. Sob essa segunda forma, eles constituem o discurso
indireto de nossas mais radicais possibilidades. [...]. A criação das ‘obras’, dos
‘monumentos’, das ‘instituições’ culturais, não é uma projeção do poder simbolizante
evidenciado pela análise regressiva, mas a emergência de uma Bildung. Falarei, se
quiserem, da função ‘formativa’, não mais apenas ‘projetiva’, para designar essas
emergências simbólicas que lastreiam a promoção da consciência de si. Os símbolos,
aqui, exprimem promovendo aquilo que exprimem. É desse modo que eles são uma
paidéia, uma Educação, uma Eruditio, uma Bildung: abrem àquilo que descobrem. É
neste sentido que a cultura – a Bildung – não é um sonho: o sonho dissimula, a obra de
cultura desvela e revela. ” (p. 101-102)

Cap. A psicanálise e o movimento da cultura contemporânea

- “[...] a psicanálise é um movimento da cultura, porque a explicação que fornece do


homem versa, a título principal e direto, sobre a cultura em seu conjunto; com ela, a
interpretação se torna um momento da cultura; é interpretando o mundo que ela o
transforma.” (p. 105)

§ I. Uma hermenêutica da cultura

1. Um modelo ‘econômico’ do fenômeno da cultura

- “[...] por que o homem fracassa em ser feliz? Por que o homem é insatisfeito enquanto
ser da cultura?” (p. 109)

2. A ilusão e o recurso ao modelo ‘genético’

3. A ‘ilusão’ religiosa e a ‘sedução’ estética

- “Se a obra de arte dura e permanece, não é porque ela é sempre portadora das
significações que enriquecem o patrimônio de valores da cultura? A objeção não é
irrelevante; ela nos dá a oportunidade de apreender o alcance daquilo que nos arriscamos
a chamar de uma hermenêutica da cultura.” (p. 120)
- “Pode-se realmente objetar à interpretação do Moisés de Miguel Ângelo e, mais ainda,
à do Édipo-Rei de Sófocles ou do Hamlet de Shakespeare, que, essas obras são criações,
é na medida em que não são simples projeções dos conflitos do artista, mas o esboço de
suas soluções [...]; a obra de arte está diante do próprio artista; é um símbolo prospectivo
da síntese pessoal e do futuro do homem, mais do que um sintoma regressivo de seus
conflitos não resolvidos. É por isso que a compreensão, pelo amador, não é simples
revivescência de seus próprios conflitos, uma satisfação fictícia dos desejos evocados nele
pelo drama, mas a participação no trabalho da verdade que se realiza na alma do herói
trágico [...].” (p. 121)

§ II. Situação da Hermenêutica Freudiana

1. Limites de princípio da interpretação freudiana da cultura

- “Diremos daqui a pouco o enorme alcance de tal esforço, similar, quanto ao essencial,
ao de Marx e de Nietzsche, para desmascarar a consciência ‘falsa’. Mas não se deve ser
exigido, sobretudo, aquilo que poderíamos chamar de uma crítica de fundamento. Essa é
a tarefa de outro método: não mais de uma hermenêutica das expressões psíquicas – do
sonho à obra de arte, do sintoma ao dogma religioso, - mas de um método reflexivo,
aplicado ao agir humano em seu conjunto, vale dizer, ao esforço para existir, ao desejo
de ser, contemporâneo desse desejo, e às múltiplas mediações pelas quais o homem tenta
apropriar-se da mais originária afirmação que habita seu esforço e seu desejo. A
articulação de uma sobre a outra, de uma filosofia reflexiva e de uma hermenêutica do
sentido é, hoje em dia, a mais urgente tarefa de uma antropologia filosófica.” (p. 123)

- “Precisarei ainda pouco mais aquilo que, a meu ver, falta na interpretação freudiana do
fenômeno cultural em seu conjunto e da ilusão em particular: uma ilusão, para Freud, é
uma representação a que não corresponde nenhuma realidade. Sua definição é positivista.
Ora, será que não há outra função da Imaginação que escape à alternativa positivista do
real e do ilusório? Aprendemos, paralelamente ao freudismo e independentemente dele,
que os mitos e os símbolos são portadores de um sentido que escapa a essa alternativa.
Outra hermenêutica, distinta da psicanálise e mais próxima da fenomenologia da religião,
ensina-nos que os mitos não são fábulas, quer dizer, histórias ‘falsas’, ‘irreais’. Essa
hermenêutica pressupõe, contrariamente a todo positivismo, que o ‘verdadeiro’, que o
‘real’, não se reduzem àquilo que pode ser verificado por via matemática ou experimental,
mas dizem também respeito à nossa relação com o mundo, com os seres e com o ser. É
esta relação que o mito começa a explorar de modo imaginativo.” (p. 125)

2. Marx, Nietzsche, Freud

- “Não se duvida mais que a obra de Freud seja tão importante para a tomada de
consciência do homem moderno quanto a de Marx ou a de Nietzsche. Entre esses três
críticos da consciência ‘falsa’, o parentesco é surpreendente.” (p. 127)

- “Antes de tudo, é contra a mesma ilusão que eles se insurgem, contra essa ilusão
aureolada com um nome prestigioso: a ilusão da consciência de si. Essa ilusão é o fruto
de uma primeira vitória, conquistada sobre uma ilusão anterior: a ilusão da coisa. O
filósofo formado na escola de Descartes sabe que as coisas são duvidosas, que não são
tais como aparecem. Mas não duvida que a consciência seja tal como ela aparece a si
mesma: nela, sentido e consciência do sentido coincidiriam. Depois de Marx, Nietzsche
e Freud, duvidamos disso. Após a dúvida sobre a coisa, ingressamos na dúvida sobre a
consciência.” (p. 127)

- “Todavia, esses três mestres da suspeita não constituem três mestres do ceticismo.
Seguramente, são três grandes ‘destruidores’. No entanto, isso não deve nos enganar. A
destruição, diz Heidegger em Sein und Zeit, é um momento de toda nova fundação.” (p.
127)

- “Ora, os três pensadores limpam o horizonte para uma palavra mais autêntica, para um
novo reino da verdade, não somente mediante uma crítica ‘destrutiva’, mas pela invenção
de uma arte de interpretar. Descartes vence a dúvida sobre a coisa pela evidência da
consciência. Eles vencem a dúvida sobre a consciência por uma exegese do sentido. A
partir deles, a compreensão é uma hermenêutica: doravante, procurar o sentido, não é
mais soletrar a consciência do sentido, mas decifrar suas expressões. Portanto, o que se
deve confrontar, não é somente uma tríplice suspeita, mas uma [acaba p. 128] tríplice
astúcia. Se a consciência não é o que acredita ser, deve ser instituída uma nova relação
entre patente e latente. Essa nova relação corresponderia à que a consciência instituíra
entre a aparência e a realidade da coisa. A categoria fundamental da consciência, para os
três, é a relação oculto-mostrado ou, se preferirmos, simulado-manifestado. [...] o fato
[está em] os três criarem com os meios disponíveis, vale dizer, com e contra os
preconceitos da época, uma ciência mediata do sentido, irredutível à consciência imediata
do sentido. O que os três tentaram, através de caminhos diferentes, foi fazer coincidirem
seus métodos ‘conscientes’ de decifração com o trabalho ‘inconsciente’ da cifração que
atribuíam à vontade de poder, ao ser social e ao psiquismo inconsciente.” (p. 127-128)

- “Descobre-se ao mesmo tempo um parentesco mais profundo ainda entre Marx, Freud
e Nietzsche. Os três, dizíamos, começam pela suspeita concernindo às ilusões da
consciência, e continuam pela astúcia da decifração. Os três, enfim, longe de serem
detratores da ‘consciência’, visam a uma extensão dela.” (p. 128)

§ III. Repercussão da Hermenêutica Freudiana na cultura

- “Eis o que esses três exegetas pretenderam fazer para o homem moderno. Todavia,
estamos longe de ter assimilado suas descobertas e de nos compreender, plenamente,
mediante a interpretação que nos fornecem de nós mesmos. Devemos confessar que suas
intepretações ainda flutuam distante de nós, que ainda não encontraram seu justo lugar.
Entre sua interpretação e nossa compreensão, a distância é, ainda, enorme. Mais ainda,
não nos encontramos diante de uma interpretação unitária que deveríamos assimilar
conjuntamente, mas de três interpretações cuja discordância é mais manifesta que o
parentesco. Ainda não existe nenhuma estrutura de acolhimento, nenhum discurso
seguido, nenhuma antropologia filosófica capazes de integrar, entre si e em nossa
consciência, a hermenêutica de Marx, a de Nietzsche e a de Freud.” (p. 129)

1. Resistência à verdade

- “[...] a consciência [...] ‘resiste’ a compreender-se. Também Édipo ‘resistia’ à verdade


conhecida por todos os outros. Recusava-se a reconhecer-se nesse homem que ele próprio
havia amaldiçoado. O reconhecimento de si é o verdadeiro trágico, o trágico de segundo
grau. [...]. A psicanálise, diz ele, é a última em data das ‘graves humilhações’ que ‘o
narcisismo, o amor-próprio do homem em geral, experimentou, até o presente, por parte
da investigação científica’. Em primeiro lugar, houve a humilhação cosmológica que lhe
infligiu Copérnico, arruinando a ilusão narcísica segundo a qual o habitáculo do homem
estaria em repouso no centro das coisas. Em seguida, foi a humilhação biológica, quando
Darwin pôs fim à pretensão do homem de ser cortado do reino animal. Enfim, veio a
humilhação psicológica: o homem, que já sabia não ser nem o senhor do Cosmos, nem o
senhor dos seres vivos, descobre que não é nem mesmo o senhor de sua Psique.” (p. 130)

2. As reações ‘imediatas’ da consciência comum

3. Freud, pensador mágico?


- “O homem, comprazemo-nos em repetir, é um ser que pode sublimar. Mas a sublimação
não resolve o trágico; ela o faz sobressair. Por sua vez, a consolação – vale dizer, a
reconciliação com os sacrifícios inevitáveis e a arte de suportar o sofrimento que o corpo,
o mundo e outrem nos infligem – jamais é inofensiva. O parentesco da ‘ilusão’ religiosa
com a neurose obsessiva está aí para atestar que o homem não sai da esfera dos instintos
e não ‘se eleva’ – não se sublima! – senão para encontrar, sob uma forma mais insidiosa,
em despistamentos mais insidiosos, o próprio trágico da infância em que reconhecemos
o primeiro trágico. Somente a arte parece isenta de perigo. Pelo menos, é o que Freud
deixa crer, sem dúvida porque conheceu apenas suas formas idealizantes, seu poder de
amortecer, por suave encantamento, as forças tenebrosas; parece não ter suspeitado de
sua veemência, de seu poder de contestação, de exploração, de penetração subterrânea e
de explosão escandalosa. É por essa razão que a arte parece ser o único poder que Freud
poupou de sua suspeita.” (p. 135)

Cap. Uma Interpretação filosófica de Freud

§ Argumento

- “A leitura de Freud é ao mesmo tempo a crise da filosofia do sujeito. Ela impõe a


desapropriação do sujeito, tal como ele aparece a si mesmo a título de consciência. Ela
faz da consciência, não um dado, mas um problema e uma tarefa. O verdadeiro Cogito
deve ser conquistado sobre todos os falsos Cogito que o mascaram.” (p. 138)

§ Exposição

- “[...] não nos é possível coincidir com uma obra; no máximo, podemos retomá-la a partir
de uma constelação de temas manipulados pela intuição e, sobretudo, a partir de um feixe
de articulações que, de certa forma, constituem sua subestrutura, sua armadura
subjacente. É por isso que não repetimos, mas construímos. [...]. É neste sentido que falo
de objetividade, porque, num sentido negativo de não-objetividade, o filósofo coloca
entre parênteses suas próprias convicções, suas próprias tomadas de posição e, em
primeiro lugar, sua própria maneira de começar, de atacar e de dispor estrategicamente
seu pensamento; objetividade, num sentido positivo, porque sua leitura é submetida
àquilo que pretende e quer dizer a própria obra, a qual permanece o quid que regula sua
leitura.” (p. 139)
- “Com Nabert, sustento que compreender [acaba p. 144] é inseparável de compreender-
se, que o meio simbólico é o meio da autoexplicitação. Isso quer dizer: de um lado, que
não há mais problema de sentido, se os signos não constituem o meio, o ambiente, o
medium, graças ao qual um sistema humano procura situar-se, projetar-se, compreender-
se; do outro, em sentido inverso, que não há apreensão direta de si por si, percepção
interior, apropriação de meu desejo de existir sobre a via curta da consciência, mas
somente pela via longa da interpretação dos signos. Em suma, minha hipótese de trabalho
filosófica é a reflexão concreta, vale dizer, o Cogito mediatizado por todo o universo dos
signos.” (p. 144-145)

- “Minha questão é a seguinte: o que acontece a uma filosofia da reflexão quando ela se
deixa instruir por Freud?” (p. 146)

- “[...] o que ocorre ao sujeito da reflexão quando são levadas a sério as astúcias da
consciência, quando a consciência é descoberta como consciência falsa que diz algo
distinto do que diz e acredita dizer? [...] depois de Freud, não é mais possível estabelecer
a filosofia do sujeito como filosofia da consciência. Reflexão e consciência não coincidem
mais. Deve-ser perder a consciência para se encontrar o sujeito. O sujeito não é mais o
que se acredita. A apoditicidade do Cogito não pode ser atestada sem que seja, ao mesmo
tempo, reconhecida a inadequação da consciência. [...] [acaba p. 146]. Torna-se, então,
possível repetir o freudismo, fazer dele uma repetição reflexiva que seja, ao mesmo
tempo, uma aventura da reflexão. Chamei de desapropriação ou destomada esse
movimento ao qual me constrange a sistemática freudiana. É a necessidade dessa
desapropriação que justifica o naturalismo freudiano. [...]. Adoto sua antifenomenologia
decidida; adoto sua energética e sua econômica, como os instrumentos de um processo
intentato contra o Cogito ilusório que inicialmente, ocupa o lugar do ato fundador do
penso, existo. Em suma, sirvo-me da psicanálise como Descartes se utilizava dos
argumentos céticos contra o dogmatismo da coisa. Todavia, dessa vez, é contra o próprio
Cogito, ou antes, é no interior do Cogito que a psicanálise vem cindir a poditicididade do
Eu (Je), das ilusões da consciência e das pretensões do Ego (Moi). Num ensaio de 1917,
Freud fala da psicanálise como de uma ferida e de uma humilhação do narcisismo, como
o foram, diz ele, a seu modo, as descobertas de Copérnico e de Darwin, que descentraram
o mundo e a vida relativamente à pretensão da consciência. Da mesma maneira, a
psicanálise descentra a constituição do mundo fantasmático relativamente à consciência.
No término dessa desapropriação, a consciência mudou de signo filosófico: não é mais
um dado; não há mais ‘dados imediatos da consciência’; ela é uma tarefa, a tarefa do
tornar-se-consciência. [...]. É assim que a leitura de Freud torna-se uma aventura da
reflexão. O que emerge dessa reflexão é um Cogito ferido; um Cogito que se põe, mas
não se possui; um Cogito que só compreende sua verdade originária na e pela confissão
da inadequação, da ilusão, da mentira da consciência atual.”

Cap.: A questão do sujeito: o desafio da semiologia

§I. A contestação da psicanálise

-“Freud, dizíamos, substitui o ser consciente (Bewusst-sein) pelo tornar-se consciente


(Bewusstwerden). O que era origem torna-se tarefa ou meta. [...] Antes de Freud dois
momentos encontram-se confundidos: o momento da apodicticidade e o momento da
adequação. Segundo o momento da apodicticidade, o penso – sou, ou existo, está
verdadeiramente implicado mesmo na dúvida, mesmo no erro, mesmo na ilusão: mesmo
que o gênio maligno me engane em todas as minhas asserções, é necessário que eu, que
penso, exista. Mas esse momento de apodicticidade inexpugnável tende a se confundir
com o momento de adequação segundo o qual eu sou tal como me percebo. [...]. Sou, mas
o que sou – eu que existo? Eis aí o que não sei mais. Em outros termos, a reflexão perdeu
a segurança da consciência. O que sou é tão problemático quanto é apodíctico que existo.”
(p. 203)

- “Esse resultado podia ser previsto pela filosofia transcendental de tipo kantiano ou
husserliano. O caráter empírico da consciência autoriza os mesmos erros e as mesmas
ilusões que a percepção mundana. Encontramos em Husserl, nos §§ 7 e 9 das Meditações
Cartesianas, o reconhecimento teórico [acaba p. 203] dessa dissociação entre o caráter
seguro do Cogito e o caráter duvidoso da consciência. O sentido do que sou não está dado,
mas oculto. [...].” (p. 203-204)

- “É o narcisismo que vem preencher a verdade em tudo formal do penso – existo, -


preenchê-la como uma ilusória concretitude. É o narcisismo que induz à confusão do
Cogito reflexivo e da consciência imediata, e me faz acreditar que sou tal como creio que
sou. Mas, se o sujeito não é aquele que creio que é, então é preciso perder a consciência
para encontrar o sujeito.” (p. 204)

- “Assim, posso compreender reflexivamente a necessidade desse despojamento da


consciência e integrar a uma filosofia do sujeito, até mesmo, a antifenomenologia do
freudismo. [...]. A comparação do psiquismo a um aparelho, a um funcionamento
primário, regulado pelo princípio de prazer, a concepção tópica das ‘localidades’
psíquicas, a concepção econômica dos investimentos e dos desinvestimentos, etc., todos
esses procedimentos teóricos provêm da mesma estratégia e estão dirigidos contra o
Cogito ilusório, que inicialmente ocupa o lugar do ato fundador: penso - existo. É assim
que a leitura de Freud torna-se ela própria uma aventura da reflexão. O que resulta dessa
aventura é um Cogito ferido. Um Cogito que se põe, mas que não se possui. Um Cogito
que só compreende sua verdade originária na e pela confissão da inadequação, da ilusão,
da mentira da consciência imediata.” (p. 204)

- “A filosofia do sujeito receberá da psicanálise uma outra lição além dessa retificação
crítica? O enraizamento da existência subjetiva no desejo deixa aparecer uma implicação
positiva da psicanálise, além da tarefa negativa de ‘des-construção’ do falso Cogito.
Merleau-Ponty propunha o título de arqueologia do sujeito para essa encarnação
pulsional.” (p. 204)

- “Esse aspecto do Freudismo não é menos importante que o precedente: a dissolução dos
prestígios e dos ídolos do consciente e, tão-somente, o reverso de uma descoberta, a da
‘econômica’, que Freud dizia ser mais fundamental do que a ‘tópica’. São da alçada dessa
‘econômica’ os aspectos temporais do desejo, ou antes, sua ausência de relação ao tempo
ordenado do real.” (p. 205)

- “Essa tese da anterioridade do arcaísmo do desejo é fundamental para uma reformulação


do Cogito: como Aristóteles, como Spinoza e Libnitz, como Hegel, Freud coloca o ato de
existir no eixo do desejo. Antes que o sujeito se ponha consciente e voluntariamente, ele
já estava posto no ser ao nível pulsional. Essa anterioridade da pulsão com respeito à
tomada de consciência e à volição significa a anterioridade do plano ôntico com relação
ao plano reflexivo, a prioridade do existo sobre o penso. Daí resulta uma interpretação
menos idealista, mais ontológica, do Cogito. O ato puro do Cogito, enquanto se põe
absolutamente, é apenas uma verdade abstrata e vazia, tão vã quanto invencível. Ele
precisa ainda ser mediatizado através da totalidade do mundo dos signos e através da
interpretação desses signos. O longo rodeio é, precisamente, o da suspeição. Assim, a
apodicticidade do Cogito e seu caráter indefinidamente duvidoso devem ser assumidos
conjuntamente. O Cogito é, ao mesmo tempo, a certeza indubitável de que eu existo e
uma questão aberta quanto a o que sou.” (p. 205)
§ II. A contestação do “Estruturalismo”

- “[...] o sistema de signos não tem mais um fora mas somente um dentro. Esse último
postulado, que se pode chamar de postulado do enclausuramento dos signos, resume e
comanda todos os outros. É ele, efetivamente, que constitui o desafio mais importante
para a fenomenologia. Para esta, a linguagem não é um objeto, mas uma mediação, ou
seja, aquilo por intermédio do que, e através do que, nos dirigimos em direção à realidade
(qualquer que ela seja). Ela consiste em dizer algo sobre algo. Desse modo, ela escapa em
direção daquilo que diz, ela se ultrapassa e se estabelece num movimento intencional de
referência. Para a linguística estrutural, a língua basta-se a si mesma: todas as suas
diferenças lhe são imanentes. E é um sistema que precede o sujeito falante.” (p. 210)

- “Que espécie de filosofia do sujeito poderá responder a esse desafio, sob a forma que o
estruturalismo lhe confere?” (p. 211)

- “É, com efeito, no mesmo nível de organização e de efetuação que a linguagem tem uma
referência e tem um sujeito: ao passo que o sistema é anônimo ou, antes, não tem sujeito
– nem mesmo ‘a gente’, - porque a questão ‘quem fala?’ não tem sentido ao nível da
língua, é com a frase que se apresenta a questão do sujeito da língua. Esse sujeito pode
não ser eu, ou aquele que creio ser. Mas, pelo menos a questão ‘quem fala?’ toma sentido
nesse nível, mesmo que venha a permanecer uma questão sem resposta.” (p. 213)

- “A significação eu só é formada no instante em que aquele que fala apropria-se de seu


sentido para se designar a si mesmo. A significação eu é única a cada vez. [...]. Fora dessa
referência a um indivíduo particular que se designa a si mesmo dizendo eu, o pronome
pessoal é um signo vazio do qual qualquer um pode se apoderar: o pronome aguarda aí,
em minha língua, como um instrumento disponível para converter essa língua em
discurso, pela apropriação que faço desse signo.” (p. 214)

- “O sujeito se põe como o mundo se mostra. Pronomes e demonstrativos estão a serviço


dessa posição e dessa mostração. [...]. A linguagem não é fundamento nem tampouco
objeto. Ela é mediação. Ela é o médium, o ‘meio’ no qual e pelo qual o sujeito se põe e o
mundo se mostra.” (p. 215)

- “Resta-nos colocar a noção fenomenológica do sujeito em relação com a redução


transcendental. Já nos explicamos a respeito dessa dupla relação do sujeito, de uma parte,
à significação, de outra parte, à redução. A primeira relação permanece no plano
descritivo, como a discussão precedente confirmou: o sujeito, com efeito, é aquilo que
tem referência a si na referência ao real.” (p. 215)

§ III. Em direção a uma hermenêutica do ‘sou’

- “Além, reinterpretada à luz da semiologia, a psicanálise tem por tema a relação da libido
e do símbolo. Ela pode então inscrever-se numa disciplina mais geral, a que podemos
chamar hermenêutica. Chamo aqui hermenêutica a toda disciplina que proceda por
interpretação, e dou ao termo interpretação seu sentido forte: o discernimento de um
sentido oculto num sentido aparente. A semântica do desejo destaca-se no campo mais
vasto dos efeitos de duplo sentido: aqueles mesmos que uma semântica linguística
encontra sob um outro nome, que denomina transferência de sentido, metáfora, alegoria.
A tarefa de uma hermenêutica é a de confrontar os diferentes usos de duplo sentido e as
diferentes funções da interpretação por disciplinas tão diferentes como a semântica dos
linguistas, a psicanálise, a fenomenologia e a história comparada das religiões, a crítica
literária, etc. Percebe-se, então, como, através dessa hermenêutica geral, a psicanálise
pode ser ligada a uma filosofia reflexiva. Passando por uma hermenêutica, a filosofia
reflexiva sai da abstração: a afirmação do ser, o desejo e o esforço de existir que me
constituem encontram na interpretação dos signos o caminho longo da tomada de
consciência. [...]. Por um lado, compreender o mundo dos signos é o meio de se
compreender. O universo simbólico é o meio da auto-explicação. [...] essa relação entre
desejo de ser e simbolismo significa que a via curta da intuição de si por si está fechada.
A apropriação de meu desejo de existir é impossível pela via curta da consciência; só a
via longa da interpretação dos signos está aberta. Tal é minha hipótese de trabalho
filosófico: chamo-lhe a reflexão concreta, ou seja, o Cogito mediatizado por todo o
universo dos signos.” (p. 221)

- “O existo é mais fundamental que o falo. É preciso, portanto, que a filosofia se coloque
a caminho, em direção ao falo a partir da posição do existo [...].” (p. 222)

- “Há primeiramente o ser no mundo, depois o interpretar, depois o dizer.” (p. 222)

- “Se assim é, a hermenêutica pela qual deve passar a filosofia reflexiva não deve se
confinar nos efeitos de sentido e de duplo sentido: ela deve ser ousadamente uma
hermenêutica do existo. Dessa maneira, somente, podem ser vencidas a ilusão e a
pretensão do Cogito idealista, subjetivista, solipsista. Só essa hermenêutica do existo pode
envolver ao mesmo tempo a certeza apodíctica do penso cartesiano e as incertezas, e
mesmo as mentiras e as ilusões do si, da consciência imediata. Só ela pode manter lado a
lado a afirmação serena: existo, sou e a dúvida pungente: o que sou eu?” (p. 223)

Parte IV A simbólica do mal interpretada

Cap. O ‘pecado original’: estudo de significação

Cap. Hermenêutica dos símbolos e reflexão filosófica (I)

- “[...] como um pensamento que chegou à imensa problemática do simbolismo e ao poder


revelador do símbolo pode se desenvolver, em conformidade com a linha de
racionalidade e de rigor, que é a filosofia, desde as suas origens? Em suma, como
articular a reflexão filosófica com a hermenêutica dos símbolos?” (p. 242)

- “Uma meditação sobre os símbolos sobrevém a um certo momento da cultura moderna.


Esse recurso ao arcaico, ao noturno e ao onírico, que é também um acesso ao ponto de
nascimento da linguagem, representa uma tentativa para escapar às dificuldades do
problema do ponto de partida em filosofia.” (p. 242)

- “É conhecida a extenuante fuga para trás do pensamento em busca da primeira verdade


e, mais fundamentalmente ainda, em busca de um ponto de partida radical que poderia
não ser absolutamente uma primeira verdade.” (p. 242)

- “Talvez seja preciso ter experimentado a decepção que se prende à ideia de filosofia
sem pressuposição para chegar à problemática que vamos evocar. Ao contrário das
filosofias do ponto de partida, uma meditação sobre os símbolos parte da plenitude da
linguagem e do sentido já presente. Ela parte do meio da linguagem que já se realizou e
onde tudo já foi dito de uma certa maneira. Ela pretende ser o pensamento, não sem
pressuposição, mas em, e com todas as suas pressuposições. Para ela, a primeira tarefa
não consiste em começar, mas sim, do meio da fala, em relembrar-se.” (p. 242)

- “[...] se levantamos o problema do símbolo agora, neste período da história, isso ocorre
e ligação com certos traços de nossa ‘modernidade’ e para replicar a essa modernidade
mesma. O momento histórico da filosofia do símbolo é o do esquecimento e também o
da restauração: esquecimento das hierofanias; esquecimento dos signos do Sagrado; perda
do próprio homem como vinculado ao Sagrado. Esse esquecimento, nós o sabemos, é a
contrapartida da tarefa grandiosa de nutrir os homens, de satisfazer as necessidades pelo
domínio da natureza, mediante uma técnica planetária. E é o obscuro reconhecimento
desse esquecimento que nos move e nos estimula a restaurar a linguagem integral. É na
época mesma em que nossa linguagem se faz mais precisa, mais unívoca, mais técnica,
para dizê-lo numa única palavra, mais apta a essas formalizações integrais que se chamam
precisamente lógica simbólica [...], é nessa mesma época do discurso que queremos
recarregar nossa linguagem, que queremos repartir da plenitude da linguagem. Ora, isso
também é um presente da ‘modernidade’. Pois nós, os modernos, somos os homens da
filosofia, da exegese, da fenomenologia, da psicanálise, da análise da linguagem. Assim,
é a mesma época que desenvolve a possibilidade de esvaziar a linguagem e a de enchê-la
de novo. Não é, por conseguinte, o pesar das atlântidas desmoronadas que nos anima, mas
a esperança de uma recriação da linguagem. Para além do deserto da crítica, queremos de
novo ser interpelados.” (p. 243)

§ I. A ordem do símbolo

§ II. Da simbólica ao pensamento que reflete

- “[...] não há símbolo que não suscite uma compreensão, mediante uma interpretação.
Mas como essa compreensão pode estar ao mesmo tempo no símbolo e além?” (p. 250)

- “Vejo três etapas desse compreender. Três etapas que balizam o movimento que se
dirige da vida nos símbolos em direção a um pensamento que seja pensado a partir dos
símbolos.” (p. 250)

- “A primeira etapa, a de uma simples fenomenologia, permanece uma compreensão do


símbolo pelo símbolo, pela totalidade dos símbolos. Já é uma forma de inteligência, posto
que percorre e relaciona e dá ao império dos símbolos a consistência de um mundo. Mas
é ainda uma vida consagrada ao símbolo, entregue ao símbolo. [...]. E nesse primeiro
sentido, compreender é repetir em si mesmo a unidade múltipla, a permutação no seio do
mesmo tema de todas as valências. Ora, a fenomenologia aplica-se a compreender um
símbolo por outro símbolo. [...]. De uma outra maneira, a fenomenologia compreenderá
um símbolo por um rito e um mito, vale dizer, pelas outras manifestações do Sagrado.
Mostrar-se-á ainda – e tal será a quarta forma do compreender – como o mesmo símbolo
unifica vários níveis de experiência ou de representação: o exterior e o interior, o vital e
o especulativo. Assim, de múltiplas maneiras, a fenomenologia do símbolo faz aparecer
uma coerência própria, algo como um sistema simbólico. Interpretar, nesse nível, é fazer
aparecer uma coerência.” (p. 250)

- “Para além da inteligência em extensão – a da fenomenologia dos comparatistas – abre-


se o campo da hermenêutica propriamente dita, isto é, da interpretação aplicada de cada
vez a um texto singular. É, com efeito, na hermenêutica moderna que se ligam a doação
de sentido pelo símbolo e a iniciativa inteligente da decifragem. Ela nos faz participar da
luta, da dinâmica pela qual o simbolismo está ele mesmo abandonado ao seu próprio
ultrapassamento. É apenas ao participar dessa dinâmica que a compreensão tem acesso à
dimensão propriamente crítica da exegese e se torna uma hermenêutica. Mas é preciso
que eu abandone a posição, ou melhor dizendo, o exílio, do espectador longínquo e
desinteressado, a fim de me apropriar de cada vez de um simbolismo singular. É então
que se descobre o que se pode chamar de círculo da hermenêutica, que o simples amador
de mitos elude sem cessar. Podemos enunciar brutalmente o círculo: ‘é preciso
compreender para crer, mas é preciso crer para compreender’. Esse círculo não é um
círculo vicioso, e menos ainda mortal. É um círculo bem vivo e estimulante. É preciso
crer para compreender: jamais, com efeito, o intérprete se aproximará do que diz seu texto
se não viver na aura do sentido interrogado. E, no entanto, só compreendendo é que
podemos crer. Pois o segundo imediato que procuramos, a segunda ingenuidade que
aguardamos, não nos são mais acessíveis a não ser numa hermenêutica. Não podemos
crer a não ser interpretando. Tal é a modalidade ‘moderna’ da crença nos símbolos,
expressão da desolação da modernidade e remédio para essa desolação. Tal é o círculo: a
hermenêutica procede da pré-compreensão daquilo mesmo que, ao interpretar, ela trata
de compreender.” (p. 251)

- “Isso dito, a hermenêutica ainda não é a reflexão. Ela é solidária de textos singulares
cuja exegese regula. A terceira etapa da inteligência dos símbolos, a etapa propriamente
filosófica, é a de um pensamento a partir do símbolo.” (p. 252)

- “Minha convicção é de que é preciso pensar por trás dos símbolos, mas a partir dos
símbolos, em conformidade com os símbolos; que sua substância é indestrutível, que eles
constituem o fundo revelador da palavra que habita entre os homens. Em suma, o símbolo
dá a pensar. De outra parte, um perigo que nos espreita é o de repetir o símbolo num
mimo da racionalidade, de racionalizar os símbolos enquanto tais, e assim fixá-los, no
plano imaginativo onde nascem e se desdobram. Essa tentação de uma ‘mitologia
dogmática’ é a da gnose.” (p. 252)
- “Meu problema é, portanto, o seguinte: como podemos pensar a partir do símbolo, sem
voltar à velha interpretação alegorizante, nem cair na armadilha da gnose? Como extrair,
do símbolo, um sentido que ponha em movimento o pensamento, sem supor um sentido
já aí, oculto, dissimulado [acaba p. 252], recoberto, nem cair no pseudo-saber de uma
mitologia dogmática? Gostaria de tentar um outro caminho que fosse o de uma
interpretação criadora, de uma interpretação que respeite o enigma original dos símbolos,
que se deixe ensinar por ele, mas que, a partir disso, promova o sentido, forme o sentido,
na plena responsabilidade de um pensamento autônomo. Como um pensamento pode ser
ao mesmo tempo ligado e livre? Como manter juntas a imediatidade do símbolo e a
meditação do pensamento?” (p. 252-253)

- “O pensamento como reflexão é essencialmente ‘desmitologizante’. Sua transposição


do mito é, ao mesmo tempo, uma eliminação não somente de sua função etiológica1, mas
de seu poder de abrir e de descobrir. Ele interpreta o mito apenas reduzindo-o à alegoria.”
(p. 253)

§ III. O obscurecimento da reflexão e o retorno ao trágico

§ IV. O pensamento especulativo e seu fracasso

Cap. Hermenêutica dos símbolos e reflexão filosófica (II)

§ I. O conflito entre as interpretações

§ II. Polaridade da hermenêutica

- “A consciência não é a primeira realidade que podemos conhecer, mas a última.


Precisamos vir a ela, e não partir dela.” (p. 272)

- “[...] uma interpretação que, antes de mais nada, abandonou o ponto de vista da
consciência não elimina somente a consciência, mas renova radicalmente o seu sentido.
O que é definitivamente negado não é a consciência, mas sua pretensão a conhecer-se a
si mesma desde o começo, seu narcisismo. Precisamos, portanto, atingir o ponto de
desolação, em que não sabemos mais o que a consciência significa, a fim de recobrar a
consciência como esse modo de existência que tem o inconsciente como seu outro.” (p.
273)

1
Meu apontamento: ramo do conhecimento cujo objeto é a pesquisa e a determinação das causas e
origens de um determinado fenômeno. Análise de causas de doenças.
- “Tomemos agora essa nova abordagem da consciência. Tudo o que podemos dizer sobre
a consciência depois de Freud parece incluído na fórmula: ‘A consciência não é imediata.
Ela não é uma fonte, mas uma tarefa, a tarefa de tonar-se mais consciente.’” (p. 273)

- “O problema da consciência parece-me ligado, em consequência, à seguinte questão:


como um homem sai de sua infância, como ele se torna adulto? Essa questão parece, à
primeira vista, puramente psicológica, posto que é o tema de toda psicologia genética, de
toda teoria da personalidade. Mas, de fato, ela assume seu sentido quando investigamos
quais são as figuras, quais as imagens e quais os símbolos que guiam esse crescimento,
essa maturação do indivíduo. Penso que essa maneira indireta é mais notável do que uma
psicologia direta do crescimento. O próprio crescimento aparece como o ponto onde se
cruzam dois sistemas de interpretação.” (p. 273)

- “É aqui que se exige uma outra espécie de hermenêutica, que descentre o foco de sentido
de maneira diferente da psicanálise. Não é na própria consciência que reside a chave da
compreensão. Precisamos descobrir novas figuras, novos símbolos, irredutíveis aos que
estão enraizados no solo libidinal: essas figuras, esses símbolos puxam a consciência para
frente, para fora de sua infância. Depois de Freud, a única filosofia possível da
consciência seria aparentada à fenomenologia hegeliana do espírito. Nessa
fenomenologia, a consciência imediata não se conhece a si mesma. Para [acaba p. 273]
retomar nossa expressão anterior, direi que o homem torna-se adulto, torna-se
‘consciente’, se e quando ele se torna capaz dessas novas figuras cuja sucessão constitui
o ‘espírito’, no sentido hegeliano do termo. Uma exegese da consciência consistiria num
inventário e numa constituição, de grau em grau, das esferas de sentido que a consciência
deve encontrar e apropriar-se, a fim de se refletir como um Si, como um Eu humano,
adulto, ético. Esse processo já não é absolutamente uma introspecção, uma consciência
imediata. Já não é absolutamente uma figura do narcisismo, posto que o núcleo do Si não
é o ego psicológico, mas o espírito, ou seja, a dialética das próprias figuras. A
‘consciência’ é, apenas, a interiorização desse movimento que é preciso reencontrar na
estrutura objetiva das instituições, dos monumentos, das obras de arte e de cultura.” (p.
273-274)

- “De um lado, na fenomenologia hegeliana cada figura recebe sua significação daquela
que se segue: o estoicismo é a verdade do reconhecimento mútuo do senhor e do escravo,
mas o ceticismo é a verdade da posição estoica que anula todas as diferenças entre senhor
e escravo e, assim por diante: a verdade de um momento reside no momento seguinte. A
inteligibilidade procede sempre do fim em direção ao começo. Tal é a razão por que
podemos dizer que a consciência é uma tarefa: só no fim ela está assegurada. De outro
parte, o inconsciente significa que a compreensão procede das figuras anteriores.” (p.
274)

§ III. Reflexão e interpretação

- “[...] se a filosofia é reflexão, havíamos dito ao começar, por que a reflexão deve
recorrer a uma linguagem simbólica? Por que a reflexão deve tornar-se interpretação?”
(p. 275)

- “Quando dizemos: a filosofia é reflexão, queremos dizer reflexão sobre si mesmo. Mas
o que significa o Si? Admito, aqui, que a posição do Si é a primeira verdade para o
filósofo, pelo menos para essa vasta tradição da filosofia moderna que parte de Descartes,
desenvolve-se com Kant, Fichte e a corrente reflexiva da filosofia ocidental. Para essa
tradição, que consideraremos como um todo antes de opor seus principais representantes,
a posição do si é uma verdade que se coloca por si mesma. Ela não pode ser nem
verificada, nem deduzida. É, ao mesmo tempo, a posição de um ser e de um ato. A posição
de uma existência e de uma operação de pensamento: existo, penso. Existir para mim é
pensar. Existo na medida em que penso. Dado que essa verdade não pode ser verificada
como um fato, nem deduzida como uma conclusão ela deve se colocar na reflexão. Sua
autoposição é reflexão. [...]. Tal é nosso ponto de partida filosófico.” (p. 275)

- “Mas essa primeira referência à posição do Si, como existente e pensante, não basta para
caracterizar a reflexão. Em particular, não compreendemos ainda por que ela requer um
trabalho de deciframento, uma exegese e uma ciência da exegese ou hermenêutica e, ainda
menos, por que deciframento deve ser quer uma psicanálise, quer uma fenomenologia do
Sagrado. Esse ponto não poderá ser entendido enquanto a reflexão aparecer como uma
volta à pretensa evidência da consciência imediata. Precisamos introduzir um segundo
traço da reflexão que se enuncia assim: reflexão não é intuição. Ou, e termos positivos: a
reflexão é o esforço para retomar o ego do Ego Cogito no espelho de seus objetos, de suas
obras e, finalmente, de seus atos. Ora, por que a posição do ego deve ser retomada através
de seus atos? Precisamente porque ela não é dada nem numa evidência psicológica, nem
numa intuição intelectual, nem numa visão mística. Uma filosofia reflexiva é o contrário
de uma filosofia do imediato. A primeira verdade – existo, penso – permanece tão abstrata
e vazia quanto é invencível. Ela precisa ser ‘mediatizada’ pelas representações, pelas
ações, pelas obras, pelas instituições, pelos monumentos que a objetivam. É nesses
objetos, no mais amplo sentido do termo, que o ego deve se perder e se encontrar.
Podemos dizer que uma filosofia da reflexão não é uma filosofia da consciência, se por
consciência entendemos a consciência imediata de si mesmo. A consciência é uma tarefa,
dizíamos [acaba p. 275] mais acima, mas ela é uma tarefa porque não é um dado.
Certamente, tenho uma apercepção de mim mesmo e de meus atos, e essa apercepção é
uma espécie de evidência. Descartes não pode ser desalojado dessa proposição
incontestável: não posso duvidar de mim mesmo sem aperceber que duvido. Mas o que
significa essa apercepção? Uma certeza, certamente, mas uma certeza privada de verdade.
Como Malebranche compreendeu muito bem, contra Descartes, essa apreensão imediata
é apenas um sentimento e não uma ideia. Se a ideia é luz e visão, não há nem visão do
ego, nem luz da apercepção. Sinto apenas que existo e penso. Sinto que estou desperto,
tal é a apercepção. Em linguagem kantiana, uma apercepção do ego pode acompanhar
todas as minhas representações, mas essa apercepção não é conhecimento de si mesmo,
ela não pode ser transformada numa intuição que verse sobre uma alma substancial.” (p.
275-276)

- “[...] a reflexão é menos uma justificação da ciência e do dever, do que uma


reapropriação de nosso esforço para existir. A epistemologia é apenas uma parte dessa
tarefa mais vasta: temos que recuperar o ato de existir, a posição do si em toda a densidade
de suas obras. Agora, por que será preciso caracterizar essa retomada como apropriação,
e mesmo como reapropriação? Devo recuperar algo que primeiro foi perdido. Torno
‘próprio’, ‘meu próprio’ aquilo que deixou de ser meu. Faço ‘meu’ aquilo de que estou
[acaba p. 276] separado pelo espaço ou pelo tempo, pela distração ou pelo ‘divertimento’,
ou em virtude de algum esquecimento culposo. A apropriação significa que a situação
inicial donde procede a reflexão é o ‘esquecimento’. Estou perdido, ‘extraviado’, entre os
objetos, e separado do centro de minha existência, assim como estou separado dos outros
e sou o inimigo de todos. Qualquer que seja o segredo dessa diáspora [dispersão], dessa
separação, ela significa que não possuo inicialmente o que sou. [...]. Tal é a razão por que
a reflexão é uma tarefa – uma Aufgabe, - a tarefa de igualar minha experiência concreta à
posição: sou, existo. Tal é a derradeira elaboração de nossa proposição inicial: a reflexão
não é intuição. Dizemos agora: a posição do si não é um dado, é uma tarefa. Ela não é
gegeben, mas aufgegeben.” (p. 277)
- “A reflexão é a apropriação de nosso esforço para existir e de nosso desejo de ser,
através das obras que atestam esse esforço e esse desejo.” P. 277)

- “Suspeitamos agora que a posição do esforço ou do desejo não somente é privada de


toda intuição, mas é atestada tão somente por obras cuja significação permanece duvidosa
e revogável. É aqui que a reflexão recorre a uma interpretação e quer transformar-se em
hermenêutica. Tal é a última raiz de nosso problema: ela reside nessa conexão primitiva
entre o ato de existir e os signos que desenvolvemos em nossas obras. A reflexão deve
tornar-se interpretação, porque não posso apreender o ato de existir em nenhum outro
lugar, salvo nos signos esparsos no mundo. Eis por que uma filosofia reflexiva deve
incluir os resultados dos métodos e das pressuposições de todas as ciências que tentam
decifrar e interpretar os signos do homem.” (p. 278)

IV. Justificação do conflito da hermenêutica

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