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Dados de Catalogação
Sarcinelli, Márcia
A tragédia dos Romanov/ Márcia Sarcinelli
1ª edição - Rio de Janeiro, RJ - Drago Editorial, 2018.
ISBN: 978-85-9596-115-9
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utili-
zada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes sem a autorização
por escrito da editora.
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Aos meus pais,
Marci e Guilherme Sarcinelli
Em memória de
Gianfranco Santagata
Agradecimentos
Glecy Coutinho
INTRODUÇÃO............................................................................................................13
III. SUNNY....................................................................................................................35
V. NICOLAU O INFORTUNADO..........................................................................71
VI. HAIA........................................................................................................................93
X. LUPUS IN FABULA............................................................................................153
XI. ARMAGEDON....................................................................................................205
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INTRODUÇÃO
“O caráter de um homem é o seu destino.”
(Heráclito)
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I
“De vós, milhões existem;
De nós – enxames e enxames e enxames.
Tentai lutar contra nós.
Sim, nós somos os citas; asiáticos, sim
De olhos oblíquos e cúpidos
...Oh, velho mundo
A Rússia é uma esfinge.
Na alegria e na dor
E jorrando sangue negro
Ela te inquire, inquire, inquire
Com ódio e com amor...”
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cadáveres, além de pedras, para dentro das fortalezas inimigas. Marco Polo
escreveria sobre os mongóis em suas “Viagens”:
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“...As novas intituições funcionavam mal, as velhas tinham perdido toda a força;
a inexperiência tinha que lutar contra a má-fé; o antigo estado de coisas não sustentava
mais nada, inútil e já todo vacilante, como os vastos pântanos de lama: apenas sobrenadava
a grande palavra ‘liberdade’, pronunciada pelo czar, como outrora pairava sobre as águas
o espírito de Deus.”
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“Pereça o dia em que nasci
II
E a noite em que foi dito: um menino foi concebido!
Que esse dia se mude em trevas!
Que Deus, lá do alto, não se incomode com ele;
Que a luz não brilhe sobre ele;
Que trevas e obscuridade se apoderem dele,
Que nuvens o envolvam, que eclipses o apavorem,
Que a sombra o domine, esse dia
Que não seja contado entre os dias do ano,
Nem seja computado entre os meses!
Que seja estéril esta noite,
Que nenhum grito de alegria se faça ouvir nela.
Amaldiçoem-na aqueles que amaldiçoaram os dias,
Aqueles que são hábeis para evocar Leviatã!
Que as estrelas de sua madrugada se obscureçam,
E em vão espere a luz,
E não veja abrirem-se as pálpebras da aurora,
Já que não fechou o ventre que me carregou
Para me poupar a vista do mal!”
(Livro de Jó – 3: 3-10)
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CZARÉVITCH NICKY
“Todo jovem é um imbecil.”
(Nelson Rodrigues)
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— “Como? Mas o senhor conhece o czarévitch! Alguma vez teve com ele uma
conversa séria?
— “Não, Majestade – responde Witte —, nunca tive esta felicidade.
— “Mas é uma criança! Meu filho só é capaz de julgamentos pueris. Como
poderia presidir um comitê?
— “E no entanto, Majestade, se o czarévitch não for iniciado nas questões de
Estado, jamais as conhecerá.”
“Recebi dois engenheiros franceses que estão aqui para a construção da Transi-
beriana. São dois senadores”.
“Há dois dias fui nomeado membro do Comitê das Finanças. Muita honra e
pouca diversão. Antes da sessão do Comitê dos Ministros, recebi seis membros desta
Instituição. Reconheço que jamais suspeitei de sua existência. A sessão foi demorada:
durou até 3 e um quarto e por isso atrasei-me e não pude ir à exposição da Academia.”
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que não traduz qualquer função real) ao Conselho de Estado, assim que
completara 18 anos. No Conselho composto de dignitários octogenários,
Nicky entediava-se mortalmente. A 20 de março de 1890, seu diário atesta
sua monumental indiferença à sua estreia no poder, que ele considerava
uma simples formalidade a ser cumprida com resignação:
“Fui ao Conselho de Ministros, a sessão durou duas horas”.
E, a 9 de abril:
Pode-se concluir que diários e cartas escritos durante toda uma vida,
se não são o próprio retrato de seu autor, inevitavelmente revelam traços
fundamentais de seu caráter. Tudo o que decide registrar ou omitir em
seus relatos, independentemente do estilo em voga, deve ser considerado
importante e revelador. Sobre isto, já nos tinham prevenido Terêncio:
“Qual é o teu caráter, já o indicou teu discurso”2 e Cassidoro: “As palavras
são o espelho e o coração do homem.”3
Os diários e cartas do czarévitch Nicky revelam um jovem apolítico
e quase abúlico, dificilmente entusiasmado pelos eventos de sua época
ou por emoções de qualquer natureza. Deve-se levar em consideração,
entretanto, que os diários de jovens aristocratas do século XIX em geral
eram apenas um exercício disciplinar, e não o registro dramático de
sentimentos profundos e de fervores políticos ou religiosos, e que os
diários de seus contemporâneos – como seu primo, o futuro Rei George
V, por exemplo – seguiam o mesmo estilo. É bem verdade que as cartas e
anotações de Guilherme II, também primo do czarévitch e futuro Kaiser
2 Quale ingenium haberes, fuit indicio oratio.”
3 Speculum...cordis hominum verba sunt.”
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III“Tudo depende do que não existe.
Por isso meu ser mudo se converte
Na própria semelhança, austero e triste.”
(Fernando Pessoa)
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SUNNY
“Ouvimos todas nós os gritos dela,
da infortunada princesa estrangeira.”
(Eurípides, “Medéia”)
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“É uma menina doce e alegre, que sorri sempre, com uma covinha em uma
bochecha...”
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maus presságios que sua mãe tivera durante a gravidez. Em 1874, quando
do nascimento de sua irmã Maria, Alix já era chamada Sunny (solar,
radiante), por sua alegria e vivacidade contagiantes.
O irmão de Alix, Frittie, era hemofílico, e aos dois anos de idade
sofre uma terrível hemorragia, causada por um leve ferimento na orelha.
Um ano mais tarde, enquanto a mãe tocava a Marcha Fúnebre de Chopin
ao piano, Frittie atravessa correndo o quarto e cai pela janela, aterrissando
sobre um terraço de pedra 6 metros abaixo. O menino ainda estava vivo e
não sofrera fraturas graves, mas morreria naquela noite de uma hemorragia
cerebral.
A esta altura, a hemofilia era velha conhecida da medicina, descrita
e catalogada nos anais da literatura especializada desde o início do século
XIX. Tanto os médicos das cortes quanto os membros da família da rainha
Vitória estavam a par da doença que ela espalharia pelas casas reais da
Grã-Bretanha, Alemanha, Espanha e Rússia através dos casamentos de
seus filhos e netos. Embora soubessem da necessidade de evitar uniões
consanguíneas para não multiplicar as chances de produzir herdeiros
hemofílicos condenados a uma morte prematura, a hemofilia era um mal
politicamente inevitável para os nobres filhos da Rainha Vitória, que não
podiam esquivar-se de matrimônios profícuos.
A morte do pequeno Frittie é apenas o primeiro dos muitos aconte-
cimentos trágicos que marcariam a infância de Alix, cuja consequência
imediata foi transformar sua mãe em uma fanática religiosa obcecada
pela morte. Fechada em um luto perpétuo, eternamente entregue a ritos
fúnebres e fascinada pela ideia e sobretudo pelo desejo da morte, Alice
contagia os filhos com sua melancolia e suas obsessões. Alix e seu irmão
Ernie já soavam fatalistas e funéreos na mais tenra idade e sonhavam em
“morrer todos juntos”. Estas ideias lúgubres encantavam a mãe deprimida
e doente, que as incentivava. Todos viviam à sombra do irmãozinho morto.
Em 1877 o príncipe Ludwig torna-se grão-duque Ludwig IV. A
partir deste momento, Alice pode dedicar-se muito menos aos filhos,
absorvida por seus deveres de grão-duquesa. Apesar de seus problemas
de saúde, de seus períodos de depressão e de suas crises nervosas, Alice,
a princípio, desempenha brilhantemente seu papel de primeira-dama e
transforma o pequeno grão-ducado em um centro cultural, atraindo para
Darmstadt personalidades como David Strauss, John Ruskin, Thomas
Carlyle, Alfred Tennyson e Brahms, com quem chega a tocar duetos ao
piano.
Estes esforços e esta dedicação, contudo, acabam por drená-la
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“Não acredito que saibas como eu me sinto mal, e quanto esteja incrivelmente
fraca. ...não sirvo para quase nada... Vivo estirada sobre o sofá e não vejo ninguém, e
mesmo assim continuo fraca.”
“Talvez fosse impossível para ela não herdar [do pai, o príncipe
Albert], o tipo de melancolia cujo principal antídoto era a tendência a
dominar os outros, quando não havia ninguém em condições de satisfazer
seu desejo inconsciente de ser dominada. A isto devemos acrescentar o
fatalismo unido à inteligência herdada do príncipe consorte.”
À exceção de Ella, em novembro de 1878 todas as crianças von
Hasse e o grão-duque Ludwig contraem difteria. Alice subdivide-se para
atender a todos os doentes. Na noite de 16 de novembro morre a pequena
May, de 4 anos. A dor causada pela perda da filha e os esforços para
cuidar de todos os outros exaurem Alice, que acaba contraindo a doença.
Extenuada e deprimida, não encontra mais forças para lutar por si mesma
e morre a 14 de dezembro, aos 35 anos de idade.
A família estava dilacerada. Impedidas de comparecer ao funeral,
as crianças puderam apenas observar, com os rostos colados ao vidro da
janela, o caixão da mãe que passava e desaparecia na névoa de dezembro.
O quarto de Alice, para alegria da rainha Vitória, permaneceria exatamente
como no dia de sua morte, seu leito coberto para sempre por um pano
negro.
Este monumento à dor não poderia deixar de agradar à rainha
Vitória que, após vinte anos da morte de seu amado Alberto, não apenas
continuava de luto, como mantinha as roupas e todos os objetos pessoais
do defunto exatamente como ele os deixara. O urinol do falecido era lavado
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de Alix entre os parentes ingleses] para Eddy ou para Georgie. Deves impedir que outros
russos ou outras pessoas venham raptá-la.”
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IV
“Amor! Amor que destilas desejo
pelos olhos e instilas a volúpia
dulcíssima nos corações que invades,
queiram os deuses que não te vejamos
de perto com teu séquito de males
e que não nos persigas tanto assim!
[...]
Amor, que traz para os mortais consigo
A ruína e todas as calamidades!”
(Eurípides, “Hipólito”)
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ROMANCE E TRAGÉDIA
“Que mal terrível é o amor para os mortais!”
(Eurípides, “Medéia”)
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A Rainha Vitória odiava profunda e declaradamente o “gordo
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“... sem sentido. Palácios e generais são os mesmos no mundo inteiro, e isto é
tudo o que me permitem ver. Teria sido melhor ficar em casa.”
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“ ...Quanto a Alicky e Nicky, tu me havias garantido que este ano não haveria
mais nada a temer. Mas agora sei ao certo que, não obstante as precauções de todos vós
– de teu pai, de Ernie e tuas – e, o que é pior, contra a vontade dos pais dele, que não
querem que N. se case com A. porque, segundo a opinião de todos, este matrimônio...
não é justo e não traria felicidade alguma, portanto sem levar nada disto em consideração
e às nossas costas, Ella e S[erguei] fazem de tudo que está a seu alcance para que este
matrimônio se realize, encorajando os jovens e mesmo exortando-os a casarem-se!
“Teu pai deve intervir energicamente, não deve mais permitir visitas de A. à
Rússia e ele, tu e Ernie devem insistir para que toda esta história acabe.
“A situação na Rússia está tão feia, tão degenerada, que a qualquer momento
poderiam acontecer coisas terríveis...
“Escrevi a teu pai, ele deve ser forte e resoluto, mas temo muito que não o seja.
“Tanto aqui quanto na Alemanha (onde a Rússia não é amada), as consequências
seriam as piores, e poderia haver uma separação entre as nossas famílias...”
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“... Não posso agir contra a minha consciência e tu, meu caro Nicky, que tens
também uma forte vontade, poderás compreender que para mim é um pecado renunciar
à minha fé, e eu seria infeliz por toda a minha vida se soubesse com certeza que fiz
alguma coisa de injusto. Estou certa de que não desejarias que eu agisse contra as minhas
convicções. Como poderia ser feliz uma união que começa sem a bênção de Deus?... Acho
que é justo que eu te diga mais uma vez que nunca mudarei a minha confissão. Estou
certa de que compreenderás e condividirás o meu ponto de vista, ou seja, de que estamos
sofrendo por algo que é impossível, e que não seria justo da minha parte fazer-te esperar
em vão por algo que jamais se realizará.”
A resposta de Nicky não é menos sofrida e ele ora consola, ora
desculpa-se, ora seduz com os encantos da religião ordodoxa a adorada
“Sunny”. Em carta à Xenia, irmã de Nicky, Alix é categórica e, pedindo-lhe
que evite este assunto tão doloroso para ela, afirma com convicção que
aquele casamento jamais se realizaria.
Em São Petersburgo, entretanto, um acontecimento inesperado vem
alterar o destino dos dois enamorados. Alexandre III, antes irremovível em
sua decisão de impedir qualquer encontro entre Nicky e Alix (havia mesmo
proibido a ida de Nicky a Coburg para o casamento de Ernst Ludwig e
Victoria Melita), começa a repensar suas atitudes. Aos 49 anos de idade,
o czar, até então forte como um carvalho, está gravemente doente. Vê-se
obrigado a considerar a situação de seu herdeiro, tão despreparado, um
tanto frívolo e infantil e – condição ainda mais grave – solteiro, e sem
uma noiva em perspectiva. Muito a contragosto, mas resolvido a remediar
imediatamente a condição do czarévitch, Alexandre III arranca do filho
a promessa de que, se mais uma vez Alix se recusasse a converter-se à
religião Ortodoxa, ele desistiria definitivamente da princesa e se compro-
meteria a aceitar uma noiva apropriada o mais rapidamente possível. Por
enquanto, Alix era preferível a noiva nenhuma.
Felicíssimo e cheio de esperanças, Nicky parte para Coburg, munido
de um padre ortodoxo e de uma professora de russo para a provável futura
noiva.
Desta vez, diante da inesperada reviravolta do destino, da pressão
do amado, dos primos, da irmã, do padre, enfim, Alix cede. Os dois correm
a dar a notícia à Rainha Vitória, também em Coburg para o casamento dos
dois netos. Entre lágrimas de felicidade, comunicam à rainha a capitulação
de Alix, notícia que a “atinge como um raio”, como diria mais tarde,
descrevendo o golpe que a abatera. Diante do fait accompli, entretanto, a
rainha vê-se obrigada a aceitar o inevitável e a desejar felicidades aos noivos.
O diário do czarévitch, tão reticente sobre suas viagens, leituras,
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por sua prosperidade e esperar que tudo corra da melhor maneira possível, malgrado este
obscuro e incerto futuro.”
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“... Toda a minha ansiedade por seu futuro matrimônio é agora maior do que
antes, quando penso que ela, tão jovem, deva subir a um trono tão inseguro e que sua vida
e a de seu marido estarão sempre em perigo...”.
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“Deves fazer com que os médicos te digam primeiramente a ti como está teu pai
e que se aconselhem contigo, porque és o futuro czar”.
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“Sandro, o que devo fazer? O que será de mim, de ti, de Xenia, de mamãe, de
toda a Rússia? Não estou pronto para ser czar! Não quero ser czar! Não entendo nada do
governo do Estado...”
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III foi sinceramente pranteado pelo povo russo. Este, que seria o último
funeral de um czar, era um espetáculo de pompa e solenidades inéditas
na Europa ocidental. As reações internacionais à sua morte prematura
revelavam um profundo respeito pelo czar que conseguira a proeza de
manter a paz dentro e fora da Rússia (mesmo durante a crise dos Bálcans,
Alexandre III resistira bravamente às ambições expansionistas de seus
generais e a provocações externas, mantendo-se fora do conflito) e, para a
elite, muita ansiedade com relação ao governo do futuro czar.
Sobre Nicolau, que caminhava em direção ao trono como quem
caminha para o cadafalso, Alexandre III lançava a sua sombra de homem
forte e determinado, de implacável defensor da autocracia russa. A
comparação com o frágil e inseguro Nicky, doce criatura que ameaçava
chorar todas as vezes que o chamavam “Majestade”, era inevitável e avassa-
ladora.
No dia seguinte à morte de Alexandre III celebra-se, em cerimônia
solene, a conversão de Alix à religião ortodoxa, que a partir deste dia passa
a chamar-se Alexandra Feodorovna. Durante 17 dias, de manhã e de tarde,
Alexandra comparece com seu véu negro à catedral para assistir ao ofício
fúnebre com a família imperial. “Ave de mau agouro”, murmurava o povo,
fazendo o sinal da cruz quando ela passava. Muitos viam pela primeira vez
a noiva do novo czar, vestida de negro, ao lado do caixão de Alexandre III.
O corpo do czar, embalsamado quando já haviam transcorrido três
dias da sua morte, permanece exposto ao público ainda por três semanas
antes de ser sepultado. Parte do ritual consistia em beijar os lábios do
augusto defunto, que depois de poucos dias exibia uma cor pavorosa e
emanava um poderoso odor. Esses ritos macabros, que teriam horrorizado
muitas mocinhas, a Alexandra não pareciam assustar ou repelir. Conquistada
pelo esplendor bizantino das igrejas, pela solenidade dos ritos e por toda a
magnificência da religião ortodoxa, Alexandra em breve se esqueceria da fé
que havia renegado, para abraçar com todo o fervor de seu temperamento
exaltado e inclinado ao misticismo, a nova Igreja que a acolhia.
Entretanto, luto ou não luto, urgia casar o novo czar. A cerimônia
deveria realizar-se tão logo terminassem os quase intermináveis rituais
do funeral de Alexandre III, cuja salma percorria toda a Rússia, e antes
do Advento (uma espécie de quaresma durante a qual, segundo a Igreja
Ortodoxa, não é permitido realizar matrimônios). O luto oficial pelo czar
defunto seria então interrompido por um dia.
Até então, Alexandra desagradara apenas à nobreza russa com
sua timidez, seu mau humor e sua austeridade. Com o matrimônio em
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E...suas amigas nunca foram muito benévolas com relação a Alicky, desde o início –
sobretudo no que se referia ao ciúme que sentia de sua sogra”.
“Foi terrível, pensei que fosse morrer! Tive que falar com eles em francês, e
quase todos me eram estranhos...”
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“Pela primeira vez demos juntos a nossa recepção de Ano Novo. Alix
desempenhou suas funções perfeitamente. Recebeu os diplomatas, o Conselho de Estado,
os membros do Senado, a corte e o séquito...”
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“Este signo visível é o símbolo da invisível coroa, que te é concedida como chefe
supremo de toda a Rússia, por Nosso Senhor Jesus Cristo, com a Sua benção, juntamente
com o mais alto e soberano poder sobre o teu povo”.
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“O czar é o ungido do Senhor, enviado por Deus para ser o supremo guardião da
Igreja e o todo-poderoso regente do Império. Na crença popular ele é até mesmo a imagem
de Cristo na Terra.
“Tendo recebido seu poder diretamente de Deus, é apenas a Deus que ele deve
prestar contas. Da origem essencialmente divina de sua autoridade resulta que a autocracia
e o nacionalismo são inseparáveis. Portanto, é necessário eliminar os tolos que ousam atacar
estes dogmas! Liberalismo constitucional é uma heresia e uma estúpida quimera.
“Só há vida nacional dentro da estrutura da autocracia e da ortodoxia. Se reformas
políticas são necessárias, elas devem ser realizadas apenas no espírito da autocracia e da
ortodoxia.”
“...a partir deste momento, Nicolau tornava-se o único responsável diante de Deus.
Isto parece pouco realístico hoje, numa época em que o poder absoluto de um soberano está
tão desacreditado, mas no momento da coroação este vínculo, que fazia do czar da Rússia o
servidor de Deus, parecia sólido e consolador.”
“Eleito czar e juiz dos Teus súditos, inclino-me diante de Ti, Senhor, e rogo-Te
que me conduzas e me guies com Tua sabedoria em meu imenso dever”.
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Maria Alexandrovna, esposa de Alexandre II, avô de Nicolau II. Esta longa
cadeia de princesas alemãs seria quebrada com o casamento de Alexandre
III, pai de Nicolau, com a princesa Dagmar da Dinamarca, czarina Maria
Feodorovna.
À parte Nicolau II e Alexandra que, contra a vontade de suas
respectivas famílias, haviam decidido casar-se por amor, a sequência
de uniões com princesas alemãs atendia a interesses dinásticos e visava
amainar a antiga e perigosa inimizade entre russos e alemães. Na verdade,
os Romanov pouco têm de eslavo, sendo basicamente alemães em termos
biológicos.
Além de notórios supersticiosos, os russos costumavam alternar
sua proverbial hospitalidade e recente abertura ao Ocidente com crises
xenófobas e surtos de eslavofilia, e teriam desde o início prevenções contra
Alexandra. Começaram por dizer que ela havia entrado no país atrás de
um caixão (sua chegada coincidira com a agonia e morte de Alexandre III,
o que era considerado mau agouro). Em seguida, quando ela parecia ter
conquistado uma certa popularidade com sua beleza e genuína dedicação
à fé ortodoxa, uma tragédia ocorrida durante os festejos da coroação viria
comprometer seriamente a sua imagem, como também a de Nicolau.
Quatro dias após a coroação, havia sido preparada uma gigantesca
festa popular em uma área utilizada para exercícios militares, conhecida
como Prado de Kodynka. Para essa finalidade, havia ali dezenas de
trincheiras e fossas, além de poços abandonados. A escolha de Kodynka
para a realização da festa popular era igualmente ditada pela tradição; a
comemoração da coroação de Alexandre III também acontecera ali.
Motivos práticos também orientavam a escolha: o prado era provavelmente
o único lugar nas vizinhanças de Moscou capaz de abrigar a multidão
prevista para a festa. Seriam distribuídos presentes (cálices esmaltados com
a águia imperial e o monograma do novo czar) e haveria bebida, comida
e espetáculos teatrais e circenses para todos. Anunciara-se a presença do
casal imperial, prevista para o meio-dia. À meia-noite começavam a chegar
muitas famílias que queriam garantir seu lugar na festa, e de madrugada o
número de pessoas já beirava os cem mil. Para controlar a multidão, haviam
sido destacados apenas 60 soldados, cujo comandante observava com
crescente apreensão a rápida multiplicação e o amontoamento de pessoas
durante a noite. Ao raiar do dia, temendo uma catástrofe, o comandante
solicita reforços, que não chegariam a tempo.
De repente difunde-se a notícia de que os souvenires não seriam
suficientes para todos. De fato, não seria possível contentar as cerca de
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“A niemka dança... A ela não importa que milhares de mujiks tenham morrido esta
manhã! Por acaso ela não está acostumada aos funerais?”
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V
“No ciclo eterno das mudáveis coisas
Novo Inverno após novo Outono volve
À diferente terra
Com a mesma maneira.
Porém a mim nem me acha diferente
Nem diferente deixa-me, fechado
Na clausura maligna
Da índole indecisa.
Presa da pálida fatalidade
De não mudar-me, me infiel renovo
Aos propósitos mudos
Morituros e infindos.”
(Fernando Pessoa)
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NICOLAU O INFORTUNADO
“A voz alta, é o soberano; a voz baixa, é a soberania. Aqueles que em um reino
sabem distinguir essa voz baixa e entender o que ela
sussurra à voz alta, esses são os verdadeiros historiadores.”
(Victor Hugo, “L’homme qui rit”)
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diante de elementos que não são a razão e que às vezes são contrárias à razão. Responsável
diante do imponderável, do misticismo que se apoderava dele cada vez mais.”
•••
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elevaram-se algumas vozes que exprimem sonhos insensatos quanto à participação de seus
representantes na direção de assuntos de Estado. Todos devem saber que, consagrando
todos os meus esforços ao bem do povo, manterei o princípio da autocracia tão firme e
constantemente quanto o fez meu inesquecível pai.”
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•••
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“Acreditas que o povo russo seja o mais religioso do mundo. Isto é uma mentira!
A base da religiosidade é a devoção, a reverência, o temor a Deus. O homem russo, ao
contrário, invoca o nome do Senhor enquanto se coça. Ele diz do ícone: se não servir para
rezar, servirá para cobrir as panelas. Olha mais de perto e verás que este é por natureza um
povo profundamente ateísta, que ainda retém uma boa dose de superstição, mas nem um
traço de religiosidade... Esta aparece entre nós apenas nas seitas sismáticas...”.
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agentes do governo. Ele via o czar como um pai (que ele chamava Batiushka
– paizinho), e cria firmemente que, se fosse ao Palácio de Inverno, seria
recebido pessoalmente por ele e teria seus desejos prontamente atentidos.
Acreditava que o czar queria que os camponeses fossem donos de todas as
terras do Império, e que seu desejo era frustrado pelos senhores de terras.
A emancipação dos servos por Alexandre II, em 1861, veio reforçar esta
convicção. Para desespero dos socialistas revolucionários que tentavam
catequizá-los, os camponeses invariavelmente respondiam: Tsar dast (o czar
proverá).
A crença na lealdade monarquista do “bom mujik” era a base da
política imperial no século XIX. Muitas das atitudes do governo, como por
exemplo a relutância em industrializar as vilas ou educar as massas, eram
inspiradas pelo desejo de preservar o camponês tal como era: simples e
leal. Na verdade, como esclarece R. Pipes (op.cit.):
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•••
“Não quero uma felicidade tão penosa,
nem opulência que me esmague o coração!”
(Eurípides, “Medéia”)
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“...o horizonte da czarina era o de uma obscura princesa alemã, uma mãe
maravilhosa que em casa ama a ordem e a economia, mas que por sua natureza, não
está em condições de ser uma verdadeira czarina. Isto era particularmente desagradável
levando-se em conta a força de seu caráter e da sua vontade, que poderiam ter sido de
grande ajuda para o soberano. Infelizmente, suas ideias não eram as do soberano, e com o
tempo, a sua ajuda se transformaria em dano. ...não conseguiu compreender a alma russa
até o fim de seu reinado; até seu trágico fim não falava russo, a não ser com seus padres e
com os funcionários mais humildes... E assim não foi capaz de atrair o amor que sua irmã
conseguiu inspirar.”
•••
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“Era preciso ter nervos de aço para suportar a presença daquele idiota.”
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•••
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VI
“Não entendo, absolutamente, o que faço: pois
não faço o que quero; faço o que aborreço. Não
faço o bem que quero, mas o mal que não quero,
esse pratico.
“Encontro pois em mim esta lei: quando quero
fazer o bem, o que se me depara é o mal.
Deleito-me na lei de Deus, no íntimo do meu ser.
Sinto, porém, nos meus membros outra lei, que
luta contra a lei do meu espírito e que está nos
meus membros.
“Homem infeliz que sou! Quem me livrará deste
corpo que me acarreta a morte?”
(Romanos, 7: 15 - 24)
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HAIA
“Não há boa ação que não seja punida.”
(G. Vidal)
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“Deu-me Deus o seu gládio, porque eu faça
VII
A sua santa guerra.
Sagrou-me seu em honra e em desgraça,
Às horas em que um vento frio passa
Por sobre a fria terra.
(Fernando Pessoa)
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O ALMIRANTE DO PACÍFICO
“Os bons conselhos, venham de onde vierem, nascem da
prudência do príncipe, e não a prudência do príncipe dos
bons conselhos.”
(N. Macchiavelli)
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“Guilherme era muito mais alto... tinha um andar imponente e amava os gestos
teatrais, acuradamente preparados antes de cada ocasião. Apreciava sobretudo o luxo e a
pompa, e tendia ao exibicionismo. Era extremamente inteligente e um esplêndido orador
mas, ao mesmo tempo, era impulsivo, podia tornar-se irascível e brigão. Amava as paradas
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militares, as festividades de todo tipo e os esportes, que constituíam para ele uma diversão
e davam-lhe a oportunidade de exibir-se em diferentes trajes.
“Nicolau, embora não fosse muito alto, era de compleição atlética. Seu amor
pelos esportes como as caminhadas, a vela, o tênis, a equitação, o ciclismo, devia-se
ao prazer pelas atividades físicas e certamente não ao desejo de pompa e luxo. Não se
preocupava em deslumbrar. Vestia de preferência o simples uniforme de coronel com a
condecoração que lhe havia dado o pai. Era modesto de aspecto como de temperamento,
tranquilo, simples, consciencioso e bastante tímido; na intimidade, contudo, sabia ser
espirituoso e fascinante, às vezes mesmo malicioso. Era inteligente e aberto, mas tinha
uma mentalidade estreita e pouca originalidade. Dava a impressão de não conseguir
explorar plenamente suas capacidades intelectuais.”
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“Deveis saber, meus homens, que estais prestes a encontrar um inimigo astuto,
bem armado e cruel! Encontrai-o e vencei-o. Não dai-lhe trégua. Não tomai prisioneiros.
Matai-o quando cair em vossas mãos. Há mil anos atrás, os hunos do rei Átila escreveram
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seu nome que ainda ressoa, terrível, em lendas e fábulas. Possa o nome da Alemanha ressoar
através da história chinesa daqui a mil anos.”
“A Rússia nada tem que fazer no Ocidente. Aqui ela só poderia contrair o niilismo
e outras doenças. Sua missão é na Ásia; lá ela representa a civilização.”
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perder uma guerra em uma tarde. O kaiser, que tanto prezava sua Frota
do Mar Alto, tremia diante desta possibilidade até então inimaginável. Na
Áustria, Francisco José toma medidas para consolidar a fortaleza de Pola
“para que não nos aconteça um Port Arthur”. Nos EUA, o desastre de
Tsushima convence o Presidente Roosevelt da impossibilidade de dividir
uma frota como os russos haviam feito e da urgência da construção do
canal do Panamá.
Robert O’Connel (op.cit.) observa que desde o século XV, quando
os turcos adotaram armas de fogo, nenhuma outra sociedade não ocidental
mostrara uma real afinidade pelo armamento apurado. Os japoneses
demostraram que a tradição armada ocidental, elemento chave de 4 séculos
de dominação militar, já não era apanágio exclusivo do Ocidente. Entretanto,
equivalente ao que parecia ser o auge do ascendente marcial ocidental,
seria de se esperar que a vitória japonesa sobre a Rússia constituísse uma
revelação chocante, o que no entanto não aconteceu. Os japoneses eram
vistos praticamente como uma aberração, uma raça valente, “boa para
copiar coisas”, mas com pequeno potencial ativo. E pouca preocupação
houve de que outros seguissem os seus passos.
Ainda mais grave foi a opinião profissional no Ocidente, que
optou por ignorar o poder devastador das minas subaquáticas, embora
estas afundassem tantos navios quanto as outras armas navais combinadas.
Além disto, o poder de fogo naval revelara-se ineficaz, exceto a muito
curto alcance, conhecimento que seria utilizado apenas como argumento a
favor de armas maiores. Os relatórios sobre a guerra em terra – observada
por alguns dos maiores especialistas do mundo – foram interpretados de
maneira a ignorar o enorme poder das trincheiras e a capacidade mortífera
da artilharia de fogo rápido.
•••
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•••
“O czar é uma criaturinha ridícula. Não foi capaz de fazer a guerra e agora é
incapaz de fazer a paz.”
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“Posso dizer que consegui conduzir a opinião pública americana a nosso favor.
Eu gradualmente conquistei a imprensa... Sob este aspecto, o todo-poderoso japonês
Komura cometeu um grave erro... evitou sempre os jornalistas... Tirei vantagem da falta de
tato do meu adversário para colocar a imprensa contra ele e a sua causa ... ao meu compor-
tamento deve-se em parte a transformação da opinião pública americana. Esforcei-me
para tratar todos os americanos com os quais estive em contato com a maior simplicidade.
Ao viajar, fosse em trens especiais, automóveis do governo ou barcos, eu agradecia a
todos, conversava com os engenheiros e apertava a mão a todos – em poucas palavras,
tratava todas as pessoas, qualquer que fosse sua posição social – como iguais. Esta atitude
significou um grande esforço para mim, como o é sempre um comportamento a que não
estamos habituados, mas seguramente valeu a pena.”
“[a refeição] para um europeu era praticamente indigerível. Não havia toalha
de mesa e apenas água gelada ao invés de vinho... os americanos não têm o menor gosto
culinário... são capazes de comer qualquer coisa que se lhes apresente.”
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“Eram muitos, levavam o ídolo
sobre os ombros, era espessa
a fila da multidão
como uma saída do mar
VIII
com roxa fosforescência.
NICOLAU O SANGUINÁRIO
“O príncipe que tiver mais temor de seu povo do que dos estrangeiros,
deve construir fortificações, mas o que tiver mais temor dos estrangeiros do
que do povo, não precisa preocupar-se com isto....
A melhor fortaleza... é não ter o ódio do povo,
pois que, se tiveres fortalezas e fores por ele odiado,
elas não te salvarão...”
(N. Macchiavelli – “O Príncipe”)
“Não gostaria de morrer sem ter-vos dito o que penso da vossa atual atividade, do
que esta poderia ser, da grande felicidade que poderia trazer a milhares de seres humanos
e a vós próprio, mas também da grande desventura que ela pode causar a estes mesmos
seres e a vós se esta política prosseguir na mesma direção de hoje...
“Um terço da Rússia encontra-se sob um regime de vigilância especial, ou seja,
ilegal. Os exércitos da polícia secreta crescem sem cessar. As prisões, as colônias penais
estão abarrotadas de prisioneiros políticos, sem falar nas centenas de milhares de prisio-
neiros comuns que agora juntam-se aos operários. A censura emana uma quantidade de
proibições que não existiam nem mesmo na época detestável dos anos quarenta. Nunca
as perseguições religiosas foram tão frequentes e cruéis como hoje, e a cada dia pioram
ainda mais. Por toda parte mandam-se tropas armadas contra o povo... Já houve derrama-
mentos fratricidas de sangue, e outros se estão preparando que serão ainda mais cruéis. E
a população camponesa, estes cem milhões de camponeses, não obstante o crescimento
do balanço estatal, ou talvez por causa dele, torna-se cada dia mais pobre; assim a carestia
tornou-se um fenômeno normal. Igualmente normal é o descontentamento de todas as
classes sociais em relação ao governo.
“A causa de toda esta situação é perfeitamente clara. Ei-la: vossos conselheiros
afirmam que, sufocando qualquer movimento vital do povo, garantem a prosperidade do
próprio povo e a vossa segurança pessoal.
“Mas seria mais fácil deter o curso de um rio do que a eterna marcha da
humanidade, estabelecida por Deus.”
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dos universitários, cuja voz ele calava com a prisão e o degredo? Da cólera
dos poloneses e finlandeses, que ele alienava com seu rigor nacionalista?
Da revolta dos judeus, que ele perseguia e massacrava com seus pogroms?
Das reivindicações dos operários, que ele exauria e explorava com jornadas
de trabalho massacrantes e salários miseráveis? Da surda fúria dos mujiks,
que ele condenava à fome e à degradação com a cobrança de impostos
abusivos e a negação de todos os direitos? Nicolau II estava consciente
apenas de um descontentamento difuso, cujo eco chegava-lhe já diminuído
e que ele insistia em ignorar. Os distúrbios, desordens, greves, revoltas e
motins ele atribuía às más intenções de alguns elementos infiltrados nas
fábricas e quartéis e não a uma real necessidade de reforma do governo.
E estava certo de que a vontade de Deus era soberana e prevaleceria no
final, qualquer que fosse a sua atitude ou opinião. Convinha aguardar o
desenrolar dos acontecimentos.
Poder-se-ia perguntar se Nicolau II tinha consciência de si próprio
como uma personagem histórica, da importância histórica de seus atos,
palavras, decisões e omissões. Aparentemente, era consciente apenas de si
mesmo como indivíduo, como marido e pai, aliás excepcional, e certamente
da colossal missão que Deus lhe havia conferido. Tal fatalidade o esmagava,
mas ele a aceitava com a trágica submissão de um cordeiro pascal. No
fundo, tudo o que queria era viver em paz com sua família em Tsarskoe
Selo, mas acima de tudo que não o aborrecessem com questões políticas,
sonho que finalmente realizaria ao abdicar em 1917.
Na verdade, seria simplista atribuir o desinteresse de Nicolau
pela coisa pública, seu alheamento político e sua aparente indiferença
pelas vicissitudes e agruras do povo russo apenas à sua debilidade moral
e à crescente influência de Alexandra sobre as suas decisões. Outros
componentes fundamentais desta personagem trágica, como a sua postura
místico-fatalista, não podem ser desprezados. O fatalismo de Nicolau II
e sua crença no mito do Czar Batiushka (Czar Paizinho) são elementos
essenciais para a compreensão de sua impassibilidade diante das muitas
adversidades que conheceu e das catástrofes que ajudou a precipitar.
Pedra angular da autocracia russa, o mito do Czar Batiushka
origina-se na crença na simbiose espiritual entre o czar demiurgo e seu
povo, e era sinceramente acalentado por Nicolau II e esposa, pelos tradicio-
nalistas de plantão, pela Igreja Ortodoxa Russa e pela plebe em geral. O
caráter do Czar Batiushka, o paizinho do povo, era tipicamente russo: ao
mesmo tempo terrível e santo. Embora tenha se esforçado heroicamente
para ser terrível (ensaio que lhe valeria o emblema de sanguinário durante
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•••
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decisões eram determinadas pelos ministros que herdara do pai e pelos tios
diante dos quais tremia como uma folha, Nicolau começa a pensar e a agir
com crescente independência e mesmo com uma certa ousadia, sobretudo
quando se tratava de política externa. Seu relacionamento com os ministros
muda drasticamente: passa a desconfiar deles – quando lhes adivinha
traços liberais, ou a detestá-los – quando se sente diminuído por seus feitos
e sua importância. Quanto aos velhos ministros do tempo de Alexandre
III, Nicolau não ousava demiti-los, mas seu período de glória passara e
o czar aguardava apenas que o tempo desse cabo destas sacras ruínas
do ancien régime. A todos os ministros Nicolau tratava como domésticos,
exigindo-lhes um comportamento subserviente. Não confiava neles, mal
suportava a sua presença e substituía-os com impressionante facilidade e
frequência: em seu reinado contam-se onze ministros do Interior entre 1905
e 1917, oito ministros do Comércio e nove da Agricultura. Este carrossel
de ministros acelerar-se-ia durante a Grande Guerra: em três anos houve
quatro ministros do Conselho, quatro procuradores do Santo Sínodo e seis
ministros do Interior.
Os ministros lutavam entre si pelas voláteis simpatias e boas
graças do czar – distribuídas ao sabor do momento – de que dependia
a sua sobrevivência. Seguiam diferentes caminhos sem sequer suspeitar
da necessidade de um trabalho em equipe para apresentar um plano de
governo. Assim, faziam despesas sem consultar o ministro das Finanças,
o ministro da Justiça não sabia o que fazia o ministro do Interior, que
por sua vez não consultava outros ministros a respeito de coisa alguma.
Apenas o czar era responsável por tudo o que havia e acontecia na Rússia,
ocupando-se dos mais ínfimos pormenores, como a concessão de leitos
hospitalares destinados a anciãos, de bolsas de estudos em ginásios etc.
Além disso, a hostilidade do czar em relação aos liberais, sua resistência
a qualquer tipo de crítica ao governo e sua proverbial repulsa pelo debate
político aprofundavam perigosamente o abismo entre o czar e seus súditos,
alienando ainda mais povo e elite. Às vésperas de uma das mais sérias
crises por qual a Rússia já passara – e cujos contornos já se delineavam –
Nicolau orgulhosamente opta pelo isolamento político. Durante a crise da
Mandchúria, ele decidira ouvir apenas aqueles cuja opinião era idêntica à
sua e aos misteriosos ditames da sua “intuição”. Agora que os ventos da
revolução sopravam com vigor renovado após a vergonhosa derrota da
Rússia, Nicolau preparava-se cuidadosamente para agir da mesma forma.
Em 1903 os operários dos novos centros industriais de Baku,
Rostov, Tbilisi, Kiev e Odessa começam a agitar-se e iniciam longas greves.
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(C. Baudelaire)
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“Será necessário que os militares matem parte da multidão para que o problema se
resolva. Até agora eles só mataram 6. Isto não é suficientemente para impressionar.”
“O sentimento que agora anima grande parte do nosso povo só pode ser suprimido...
tomando-se dez ou doze de seus líderes, perfilando-os diante de um muro e fuzilando-os.
Acredito que chegaremos a tanto. Esses líderes estão planejando uma revolução social e a
subversão da República americana.”
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“Soberano,
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manuais e das mulheres até um rublo por dia; suprimir as horas extraordinárias; tratar-nos
com educação e sem ofensas; reparar os locais de trabalho de modo que neles se possa
trabalhar sem morrer devido às terríveis correntes de ar, à chuva ou à neve.
“Na opinião dos nossos patrões e da administração das fábricas e das oficinas,
tudo isto é ilegal, a menor destas solicitações lhes parece um crime, e o desejo de melhorar
a nossa situação parece-lhes um insulto.
“Soberano, viemos aqui, milhares e milhares de nós, seres humanos apenas
na aparência, porque na realidade a nós, como a todo o povo russo, não se reconhece
nenhum direito humano, nem mesmo o direito de falar, de pensar, de reunir-se, de discutir
as nossas exigências, de tomar providências para melhorar a nossa situação. Fomos
escravizados, e isto aconteceu com a proteção dos vossos funcionários, com a ajuda e a
cumplicidade deles. Todos aqueles que entre nós ousam levantar a voz para defender os
interesses da classe operária e do povo são presos ou condenados à deportação. O bom
coração, a compaixão são punidos como crimes. Apiedar-se do homem oprimido, privado
de direitos, martirizado, significa cometer um grave delito. Toda a população operária
e os camponeses são vítimas do arbítrio de um governo de funcionários formado de
peculatários e predadores que não se preocupam realmente com os interesses do povo...
O governo dos funcionários conduziu o país à ruína completa, arrastou-o a uma guerra
vergonhosa e está levando rapidamente a Rússia à sua perdição. Nós, operários e povo,
não temos voz a respeito do modo como são gastos os enormes impostos que pesam
sobre nós. Não sabemos nem mesmo para onde vai ou a que serve o dinheiro extraído de
um povo reduzido à miséria...
“Soberano, tudo isto está em conformidade com as leis divinas por cuja graça
Vós reinais? E pode-se viver sob semelhantes leis? Não seria talvez melhor morrer, morrer
todos nós, trabalhadores de toda a Rússia?... Eis o que se ergue diante de nós, Soberano,
e foi isto o que nos impulsionou a marchar em direção aos muros do vosso palácio. Aqui
buscamos a nossa última salvação. Não recusai-vos a ajudar o vosso povo, arrancai-o da
tumba da injustiça, da miséria e da ignorância, dai-lhe a possibilidade de forjar seu próprio
destino, liberai-o da opressão insuportável dos funcionários. Demoli o muro que existe
entre Vós e o vosso povo e fazei com que este governe junto a Vós. Vós fostes colocado
ali, na verdade, para fazer a felicidade do povo, mas esta felicidade os funcionários nos
arrancam das mãos, ela não chega a nós, que recebemos apenas dores e humilhações.
Examinai sem cólera, com atenção, os nossos pedidos; estes não visam o mal, mas o
bem, tanto para nós quanto para Vós, Soberano. Não é a insolência que fala por nós, mas
a consciência da necessidade de sair de uma situação insuportável para todos. A Rússia
é grande demais, as suas necessidades diversas demais para que os funcionários possam
governá-la sozinhos. É indispensável que o povo seja representado, é preciso que o povo
se ajude e se governe. Apenas o povo conhece suas verdadeiras necessidades, não recusai
a sua ajuda, acolhei-o, convocai imediatamente os representantes da terra russa de todas
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as classes, de todos os estados, inclusive os representantes dos operários. Fazei com que
em breve compareçam aqui o capitalista e o operário, o funcionário e o padre, o doutor
e o professor, fazei com que todos... elejam seus representantes. Que todos sejam iguais
e livres no direito de voto e assim ordenai que as eleições para a Assembleia Constituinte
sejam feitas com sufrágio universal, secreto e igual para todos.
“Este é o nosso principal pedido, tudo se baseia nele, este é o único unguento
para as nossas chagas dolorosas, sem o qual estas chagas nos levarão rapidamente à morte.
“Apenas uma medida, contudo, não poderá curar as nossas chagas. São
necessárias outras, e nós as diremos abertamente a Vós, Soberano, como a um pai, em
nome de toda a classe operária:
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povo. Ordenai e jurai satisfazer estas necessidades e tornareis a Rússia feliz e gloriosa
e esculpireis o vosso nome nos nossos corações e nos de nossos descendentes até a
eternidade. Se, contudo, não o fizerdes, se não escutardes a nossa súplica, nós morreremos
aqui, nesta praça, diante do vosso palácio. Não sabemos mais aonde ir, não temos outras
possibilidades. Restaram apenas dois caminhos: ou em direção à liberdade e à felicidade,
ou em direção à tumba. Seja a nossa vida imolada pela Rússia sofredora. Este sacrifício
não nos custa: fá-lo-emos com prazer.”
G. Gapon, padre.
J. Vasimov, operário.
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“Podes compreender a crise por que estamos passando! A cruz do meu pobre
Nicky é pesada, sobretudo porque ele não tem ninguém em quem possa confiar totalmente
e que possa realmente ajudá-lo. Ele tem tido tantas decepções amargas, mas com tudo
isto, mantém-se corajoso e cheio de fé na misericórdia de Deus. Ele esforça-se tanto,
trabalha com tanta perseverança, mas a falta do que eu chamo de ‘verdadeiros’ homens
é grande... Os maus estão sempre à mão, os outros mantêm-se distantes com a desculpa
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da falsa humildade. Tentaremos ver mais pessoas, mas isto é difícil. De joelhos, eu rezo a
Deus para me dar sabedoria para ajudá-lo em seu pesado dever.
“Não acredite em todos os horrores que os jornais estrangeiros publicam. Eles
nos deixam de cabelos em pé – horrível exagero! Sim, as tropas – infelizmente – foram
obrigadas a disparar. A multidão foi repetidamente avisada de que Nicky não estava na
cidade... e ordenada a retirar-se, mas eles não cediam e então houve derramamento de
sangue. Ao todo, 92 foram mortos e de 200 a 300 foram feridos. Uma coisa horrível, mas
se isso não tivesse sido feito, a multidão teria atingido uma dimensão colossal e 1.000
teriam sido esmagados. Por todo o país, naturalmente, isto tem-se espalhado. A petição
só tinha dois pedidos relativos aos trabalhadores e todo o resto era atroz: separação da
Igreja do governo etc. Se uma pequena delegação tivesse calmamente trazido uma petição
real para o bem dos trabalhadores, nada disso teria acontecido. Muitos dos trabalhadores
ficaram desesperados quando souberam mais tarde o que a petição continha e suplicaram
para voltar ao trabalho sob a proteção das tropas.
“Petersburgo é uma cidade corrupta, nem um átomo russa. O povo russo é
profunda e verdadeiramente devotado ao seu soberano e os revolucionários usam seu
nome para provocá-los contra seus senhores... embora eu não saiba como. Como eu
desejaria ser mais inteligente e mais útil. Eu amo o meu novo país. Ele é tão jovem,
poderoso e há tanto bem nele, ainda que desordenado e infantil. Pobre Nicky, sua vida
é amarga e difícil. Se seu pai tivesse conseguido mais homens, reunindo-os em torno
dele, agora teríamos muitos para preencher os cargos necessários; agora só dispomos de
homens velhos ou jovens demais, ninguém com quem contar. Os tios são inúteis, Misha
[grão-duque Mikail, irmão do czar] é ainda apenas uma criança...”
Os ministros reúnem-se em um clima pandemônico e Witte sugere
ao czar que se dissocie do massacre, declarando que as tropas dispararam
por conta própria. Nicolau, no entanto, recusa-se a manchar a honra de
seu amado exército recorrendo a esta solução covarde. Decide receber em
Tsarskoe Selo uma delegação de 34 trabalhadores, que ele acolhe com uma
prédica paternalista sobre a necessidade de apoiar o exército e de rejeitar os
maus conselhos dos traiçoeiros revolucionários:
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direitos, este é um ato criminoso. Tenho fé na honra e nos sentimentos dos operários e
em sua inabalável fé em mim. Eis por que vos perdoo este erro.”
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“O nosso czar”
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•••
“Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude.”
(T. di Lampedusa)
“Se o imperador não aceitar o programa de Witte, se ele quiser forçar-me a ser
ditador, eu me matarei diante dele com este revólver. Temos que apoiar Witte a qualquer
custo. É necessário para o bem da Rússia.”
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“Ele [Witte] agora está preparado para prender os principais líderes da revolta.
Há muito tempo eu vinha insistindo para que o fizesse, mas ele sempre esperava resolver
tudo sem medidas drásticas.”
“Enquanto eu viver, nunca mais confiarei neste homem para coisa alguma.
Bastou-me a experiência do ano passado. Ainda é como um pesadelo para mim.”
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IX
“Todos os meus temores se realizam,
e o que temo vem atingir-me.
Não tenho paz, nem descanso,
nem repouso, só tenho agitação.
...
(Livro de Jó)
M Á RC I A S A RC I N E L L I
A MALDIÇÃO HEREDITÁRIA
“Pobres planos de vida, o que podeis contra uma
hereditariedade torrencial?”
(Racine, “Phèdre”)
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A T R AG É D I A D O S RO M A N OV
sua vida teria sido ainda mais difícil e vigiada. Este era o caso de Alexei
que, apesar de ter quatro irmãs saudáveis, era o único herdeiro ao trono
de Nicolau II. Desde o reinado do czar Paulo, filho – e inimigo mortal –
de Catarina a Grande, a coroa russa passava apenas através da linhagem
masculina. Se Nicolau e Alexandra não tivessem produzido um herdeiro, ou
se este herdeiro morresse, a coroa passaria ao irmão mais jovem de Nicolau,
Mikail, e depois para a família de seu tio Vladmir.
Nicolau e Alexandra cobrem de brinquedos caríssimos o menino
que não pode brincar, que vive cercado de enfermeiras que tanto o protegem
quanto o sufocam. Quando Alexei completa cinco anos, os médicos sugerem
que as enfermeiras sejam substituídas por companheiros guarda-costas. Dois
marinheiros da Marinha Imperial – Derevenko e Nagorny – são selecionados
para proteger o czarévitch daí em diante. Os marinheiros vigiam-no enquanto
brinca, quando está bem, e atuam como enfermeiros, quando está acamado.
Derevenko garantiria seu lugar na história pela devoção e paciência com que
cuidava de Alexei, e mais tarde pelos maus-tratos e humilhações que infligiria
ao czarévitch durante a prisão domiciliar.
Apesar dos cuidados obsessivos que o cercavam, Alexei sempre
conseguia burlar a vigilância de todos e consequentemente sempre se feria.
Para ele, o mais leve ferimento significava uma hemorragia, longos períodos
acamado, dores lancinantes e a possibilidade de perder um membro ou
morrer. Cada crise determinava um longo e intenso sofrimento para
Alexei e toda a sua família, que observava impotente o martírio da criança.
Entretanto, a mais torturada era Alexandra, por ser mãe e por saber-se
transmissora do sofrimento do filho. Apesar da cooperação de Nicolau,
marido e pai maravilhoso que subdividia-se para ajudá-la, mesmo durante
as mais graves crises do governo, Alexandra sentia-se só em seu combate e
em seu segredo, em um mundo em que a paz, a felicidade e mesmo Deus a
haviam abandonado.
Maurice Paléologue, que na época era embaixador da França na
Rússia e conheceu de perto a czarina, oferece um dos melhores retratos da
metamorfose sofrida por Alexandra a partir do diagnóstico de Alexei:
“Desde esse dia e no espaço de alguns meses, observaram-se nela graves distúrbios
das funções orgânicas e da atividade nervosa: insônias, espasmos respiratórios e cardíacos,
enxaquecas, sensações alternadas de frio e de calor, vertigens, tremores, palpitações, sobres-
saltos, angústias, eretismo permanente da sensibilidade geral, todas as formas caprichosas e
desconcertantes da neurose emotiva. Seu caráter e sua fisionomia mudavam continuamente.
“A esta altura, ela tem 35 anos, é ainda bela, alta e esbelta. Mas suas feições
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estão endurecidas, ostentando palidez ou rubor súbitos ; seus olhos têm às vezes um brilho
estranho, sombrio e fixo; ou ainda, durante horas ela tem o olhar extinto, morno, a boca e as
sobrancelhas contraídas. Uma insuperável fadiga abate-a súbita e inexplicavelmente. Todo
esforço externo a desgosta. E, mais do que nunca, qualquer cerimônia enche-a de terror,
pois ela teme sempre que suas forças a traiam publicamente.
“Assim, ela se confina mais e mais no círculo estreito de sua intimidade familiar; ela
hostiliza São Petersburgo e deseja residir apenas em Tsarskoe Selo, no Peterhof ou, melhor
ainda, em Livadia, nas costas longínquas da Criméia. O imperador não a contraria jamais,
não apenas porque tem pena dela, mas também porque seus gostos simples e sua timidez
natural se acomodam de bom grado a esta vida reclusa”.
(M. Paléologue – “Alexandra Féodorovna, Impératrice de Russie”)
“Até então, nenhuma corte da Europa podia rivalizar com a dos Romanov na
suntuosidade dos espetáculos, na riqueza das carruagens e das librets, na magnificência dos
cortejos, no brilho dos uniformes, dos vestidos e das joias, na extraordinária impressão de
fausto e de poder que emanava de todas as cerimônias. Do outono ao verão, salvo durante
a Semana Santa, havia uma longa série de bailes, de concertos, de jantares no Palácio de
Inverno, sem contar as recepções de praxe. Continuamente, os grão-duques e grão-duquesas,
o corpo diplomático, os altos dignitários, os generais, ministros e estrangeiros de passagem
eram convidados à mesa imperial. Frequentemente, também, suas majestades aceitavam
convites para jantar com os embaixadores e com os representantes da velha aristocracia
russa... Agora tudo isso acabara. A saúde de Alexandra serve de motivo para suprimir pouco
a pouco todos os bailes, todos os concertos, todas as recepções e mesmo todos os jantares
em família.
“Logo faz-se um vazio em torno dos soberanos. Os grão-duques e as grão-du-
quesas só os procuram muito raramente. À parte as relações obrigatórias de Nicolau com
seus ministros e alguns funcionários da corte, nenhuma voz, nenhum sopro penetra mais na
atmosfera silenciosa e claustral dos palácios imperiais”.
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A T R AG É D I A D O S RO M A N OV
A compulsão para carregar a cruz dos que lhe eram caros Alexandra
herdara da mãe, Alice, uma especialista em lutos e sofrimentos variados.
Esta qualidade evidencia-se em Alexandra desde a juventude. Em carta
à princesa Marie Bariatinsky, uma das raras amizades que faria em seus
primeiros anos na Rússia, a czarina traça a sua definição de “amigo”:
“Preciso ter uma pessoa para mim, se eu quiser ser eu mesma. Não fui feita para
brilhar diante de uma assembleia – não tenho o discurso fácil ou brilhante necessário para
tal. Prefiro o ser interior, e isto atrai-me com muita força. Como você sabe, sou do tipo
‘missionária’. Quero ajudar as pessoas na vida, ajudá-las a travar suas batalhas e a carregar
suas cruzes.”
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“As relações entre Sua Majestade e Madame Virubova eram muito íntimas, e
raramente passava-se um dia em que ela não visitasse a imperatriz. A amizade durou muitos
anos. [...] Seus infortúnios eram a sua ligação com a czarina, que também sofria tanto, e
ansiava por consolá-la. A jovem que passou por tantos maus momentos conquistara a
sua compaixão. Tornou-se a confidente da czarina, e a bondade que a czarina lhe dedicou
transformou-a em sua eterna escrava.
“O temperamento de Madame Virubova era sentimental e místico, e sua
desenfreada afeição pela czarina era definitivamente perigosa, porque desprovida de
crítica e alheia à menor noção de realidade.
“A czarina não podia resistir a uma devoção tão completa e sincera. Autoritária
como era, ela queria que seus amigos fossem seus, exclusivamente seus. Ela apenas
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A T R AG É D I A D O S RO M A N OV
concebia uma amizade na qual pudesse estar absolutamente certa de ser a parte dominante.
Sua confiança devia ser premiada com uma entrega total. E não percebia como era perigoso
encorajar demonstrações deste tipo de lealdade fanática.
“Madame Virubova tinha a mente de uma criança, e suas experiências infelizes
aguçaram sua sensibilidade sem amadurecer seu caráter. Carente de intelecto e discriminação,
era vítima de seus impulsos. Suas opiniões sobre homens e situações eram irrefletidas e,
contudo, radicais. Uma simples impressão era suficiente para convencer sua inteligência
limitada e pueril. Ela prontamente classificava as pessoas, de acordo com a impressão que
lhe haviam causado, como ‘boas’ ou ‘más’ – em outras palavras, ‘amigos’ ou ‘inimigos’. [...]
“... na realidade ela era um agente, dócil e inconsciente, mas nem por isto menos
nocivo, de um grupo de indivíduos inescrupulosos que a usavam em suas intrigas. [...]
“Completamente desprovida de força de vontade, ela estava totalmente sob a
influência de Rasputin e tornara-se sua mais fervorosa seguidora na corte.”
“Jamais uma preferida real foi tão despretensiosa. Ela era bastante corpulenta, de
aspecto grosseiro, tinha um cabelo grosso e lustroso, o pescoço gordo, um rosto bonito e
inocente, de bochechas rosadas, grandes olhos claros e lábios grossos e carnudos. Vestia-se
sempre muito simplesmente e seus adornos baratos davam-lhe uma aparência provinciana.”
O príncipe Felix Yussupov, em suas memórias, também a retrataria
sem piedade:
“Havia uma espécie de baile todos os sábados em casa dos Taneiev. Estas festas
eram grandes e muito alegres. Ana, a mais velha das meninas Taneiev, era alta e corpulenta,
com uma face balofa e oleosa, e sem o menor charme. Embora não fosse de maneira alguma
inteligente, era muito esperta e maliciosa. Era um grande problema encontrar parceiros para
ela. Ninguém poderia prever que essa moça sem atrativos seria um dia a amiga íntima e o
gênio mau da czarina. Foi principalmente graças a ela que Rasputin tornou-se tão influente.”
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idade.Veste-se com simpicidade provinciana e é muito devota, mas estúpida. [...] Tivemos
uma longa conversa. Virubova impressionou-me com sua falta de atrativos e sua imbeci-
lidade.
“...Quando as crianças vão dormir, Madame Virubova permanece com os
soberanos até a meia-noite e assim participa de todas as suas conversações, colocando-se
sempre da parte de Alexandra. Como o imperador não se aventura jamais a tomar qualquer
decisão sem consultar a opinião, ou antes, a aprovação, da esposa, o resultado é que são a
imperatriz e Madame Virubova que governam a Rússia!”
“Era uma típica, estúpida dama de São Petersburgo, além de tudo feia e disforme,
tão comum quanto um biscoito de farinha. Uma jovem que acontecia estar apaixonada
pela czarina, que ela fixava com olhos ardentes de lua-de-mel, e suspirava.”
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A T R AG É D I A D O S RO M A N OV
“Sei que é desagradável escrever sobre ela, mas tu sabes como ela consegue ser
irritante. Verás quando retornares que ela te dirá o quanto sofreu na tua ausência [...]. Sê
gentil, mas firme quando voltares e não lhe permitas aquelas brincadeiras com os pés etc.
Do contrário ela piora muito depois e é necessário acalmá-la.”
(Trecho de carta de 27 de outubro de 1914)
“Envio-lhe uma carta bem gorda da parte da vaca, a criatura está doente de amor
e não podia esperar mais, se ela não despejar seu amor ela explode.”
(Trecho de carta de 6 de outubro de 1915)
Desentendimentos e disputas pelo amor do czar à parte, a amizade
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M Á RC I A S A RC I N E L L I
entre Ana e Alexandra duraria por toda a vida da czarina. Em 1915, Ana
sofreria um acidente quase fatal e sua condição de doente carente de
cuidados e atenção conquistaria mais uma vez o afeto de Alexandra.
•••
“Sua respiração era rápida e ofegante e claramente dolorosa. Várias vezes vi seus
lábios tornarem-se azuis. A constante preocupação com Alexei arruinou completamente
sua saúde.”
150 D R AG O E D I TO R I A L
A T R AG É D I A D O S RO M A N OV
almoçar e fica na varanda dia após dia... É muito importante que ela melhore, por ela
mesma, pelas crianças e por mim. Estou completamente esgotado de tanto preocupar-me
com sua saúde.”
“Ouvimos todo o tipo de estórias sobre qual seria o problema dele [Alexei], mas
a mais autêntica parece ser a de que ele tem algum problema circulatório...”
D R AG O E D I TO R I A L 151
“...Salve, demônio mudo!
És o mais intenso animal
Místico eterno
Do inferno carnal...
Quantos encantos
Tem tua barba,
tua fronte larga,
X
rude Don Juan!
Que grande acento em teu olhar
Mefistofélico
e passional!
A cabra
lenta vai te seguindo,
enamorada com humildade;
mas tuas paixões são insaciáveis;
a velha Grécia
te compreenderá.
LUPUS IN FABULA
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a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gigante e sinuoso,
aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida,
num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente...
“É o homem permanentemente fatigado.
“Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo: na palavra
remorada, no gesto contrafeito, no andar desaprumado, na cadência langorosa das modinhas,
na tendência constante à imobilidade e à quietude.
“Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.
“Nada é mais surpreendedor do que vê-lo desaparecer de improviso. Naquela
organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o
aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear de energias adormecidas.
O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura
e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar
desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea,
todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro,
reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num
desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.
“Este contraste impõe-se ao mais leve exame. Revela-se a todo o momento, em
todos os pormenores da vida sertaneja – caracterizado sempre pela intercadência impressio-
nadora entre extremos impulsos e apatias longas.”
[...]
“Ora, nada mais explicável do que este permanente contraste entre extremas
manifestações de força e agilidade e longos intervalos de apatia.
“Perfeita tradução moral dos agentes físicos da sua terra, o sertanejo do norte teve
uma árdua aprendizagem de reveses. Afez-se, cedo, a encontrá-los, de chofre, e a reagir, de
pronto.”
D R AG O E D I TO R I A L 155
M Á RC I A S A RC I N E L L I
“O homem dos sertões... mais do qualquer outro está em função imediata da terra.
É uma variável dependente no jogar dos elementos. Da consciência da fraqueza para os
debelar, resulta, mais forte, este apelar constante para o maravilhoso, esta condição inferior
de pupilo estúpido da divindade. Em paragens mais benéficas, a necessidade de uma tutela
sobrenatural não seria tão imperiosa. Ali, porém, as tendências pessoais como que se
acolchetam às vicissitudes externas e deste entrelaçamento resulta, copiando o contraste
que observamos entre a exaltação impulsiva e a apatia enervadora da atividade, a indiferença
fatalista pelo futuro e a exaltação religiosa.
[...]
“No entanto há traços repulsivos no quadro desta religiosidade de aspectos tão
interessantes, aberrações brutais, que a derrancam ou maculam... A alma de um matuto é
inerte ante as influências que a agitam. De acordo com estas pode ir da extrema brutalidade
ao máximo devotamento.”
(Euclides da Cunha, op.cit.)
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“O xamã é pajé, sacerdote e condutor de almas; ou seja, ele cura doenças, dirige
os sacrifícios comunitários e acompanha as almas dos mortos ao outro mundo. Consegue
cumprir todas essas funções por meio de suas técnicas de êxtase, isto é, pelo poder que
tem sua alma de sair do corpo à vontade.[...]
“No norte e no centro da Ásia, de maneira geral, as experiências são realizadas
durante um período de tempo indeterminado, durante o qual o futuro xamã fica doente
e permanece na tenda ou perambula pela floresta, comportando-se de maneira tão
excêntrica que poderia ser interpretada como loucura. Diversos autores chegaram ao
extremo de explicar o xamanismo ártico e siberiano como a expressão ritualizada de uma
doença psicomental, especialmente de histeria das regiões árticas. Mas o “eleito” só se
torna um xamã se puder interpretar sua crise patológica como uma experiência religiosa
e conseguir curar a si mesmo. As sérias crises que às vezes acompanham a “eleição” do
futuro xamã devem ser consideradas como experiências de iniciação. Toda iniciação inclui
a morte e a ressurreição simbólicas do neófito. Nos sonhos e alucinações do futuro xamã
pode ser encontrado o padrão costumeiro da iniciação: ele é torturado por demônios, seu
corpo é esquartejado, ele desce ao mundo inferior ou sobe ao céu e finalmente ressuscita.
Isto é, ele conquista um novo modo de ser que lhe permite relacionar-se com os mundos
sobrenaturais. O xamã agora é capaz de “ver” os espíritos e ele mesmo se comporta como
um espírito; ele consegue sair do corpo e viajar em estado de êxtase em todas as regiões
cósmicas. A experiência de êxtase em si mesma, entretanto, não é suficiente para produzir
um xamã. O neófito precisa ser instruído pelos mestres nas tradições religiosas da tribo e
aprender a reconhecer as várias doenças e curá-las. [...]
“A função mais importante do xamã é curar. Visto que a doença é entendida
como uma perda da alma, o xamã primeiramente tem de averiguar se a alma do doente
extraviou-se para longe da aldeia ou se foi raptada por gênios malévolos e está aprisionada
no outro mundo. Na segunda circunstância, o xamã tem de descer ao mundo inferior, uma
tarefa complicada e perigosa. [...]”
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com uma intensidade inacessível aos profanos, resistem a esforços esgotadores, dominam
seus movimentos extáticos etc.
“...Em geral, o xamã siberiano e norte-asiático não apresenta nenhum indício
de desintegração mental. Sua memória e sua faculdade de autodomínio são claramente
superiores às da maioria.”
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por animais; Hitler, inclusive, gostava de se chamar de lobo, enquanto Manson se descrevia
como um coiote, e Jim Jones se cercou de animais de estimação por toda a sua vida.”
V. A. Yukovskaya descreveria em suas Memórias a habilidade de
Grigori de imitar os animais, de tal maneira que parecia possuído por eles:
•••
“O que é o stárets, afinal? O stárets é aquele que absorve a tua alma e a tua
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vontade. Tendo escolhido um stárets, abdicas de tua vontade e a entregas a ele com toda
obediência, com inteira resignação. O penitente submete-se voluntariamente a essa prova,
a essa dura aprendizagem, na esperança de, após um longo estágio, vencer a si mesmo,
dominar-se a ponto de atingir, afinal, depois de ter obedecido toda a sua vida, a liberdade
perfeita, isto é, a libertação de si mesmo, e evitar a sorte daqueles que viveram sem encontrar
a si mesmos.
“...em certos casos os stártsi estão investidos de uma autoridade incompreensível
e sem limites. É por isso que em muitos de nossos mosteiros essa instituição foi a princípio
quase proibida. Entretanto, o povo imediatamente começou a ter grande veneração pelos
stártsi. No nosso mosteiro, as pessoas simples e as mais distintas vinham em multidão
prosternar-se diante dos stártsi e lhes confessavam suas dúvidas, seus pecados, seus
sofrimentos, implorando conselhos e orientação... Seja como for, a instituição dos stártsi
manteve-se e implanta-se pouco a pouco nos mosteiros russos. É verdade que esse modo
experimentado e já milenar de regeneração moral, que faz o homem passar da escravidão à
liberdade, aperfeiçoando-o, pode também tornar-se uma arma de dois gumes: em lugar da
humildade e do domínio de si mesmo, pode desenvolver um orgulho satânico e fazer um
escravo em lugar de um homem livre.
“...pessoas do povo vindas de todos os pontos da Rússia para ver [o stárets] e
receber sua benção. Prosternavam-se diante dele, choravam, beijavam seus pés e o lugar
onde ele se achava, lançando gritos; as mulheres estendiam para ele seus filhos; traziam
possessos. O stárets falava-lhes, fazia uma curta oração, dava-lhes sua benção, depois
mandava-os embora. [Aliocha] compreendia perfeitamente que para a alma resignada do
povo russo simples, vergado sob o trabalho e o sofrimento, mas sobretudo sob a injustiça
e o pecado contínuos – o seu e o do mundo – não há maior necessidade e consolo do que
encontrar um santuário ou um santo, cair de joelhos, adorá-lo.”
Em “Padre Sérgio”, Tolstoi escreve que a personagem Kassatski
“...vivia, não sob sua vontade, mas sob a vontade do stárets, e nessa resignação
havia uma particular tranquilidade.”
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“... seus instintos místicos se afirmavam cada dia mais imperiosos. A robustez
do seu temperamento, o ardor dos seus sentidos, a audácia desenfreada de sua imaginação
o atormentavam continuamente. É então que ele entra para a seita lúbrica dos Khlisty, ou
Flagelantes. Assim ele mostrava, de uma vez por todas, como era profundamente russo
por todo seu dinamismo interior, por todas as suas concepções e todas as suas ideias;
como ele possuía fortes e profundas raízes na terra russa...
“Paralelamente à Igreja oficial tão imponente e pomposa quanto submissa ao
poder autocrático, o fervor popular havia criado inumeráveis seitas, mais ou menos ocultas,
onde se exprimiam, pelos ritos mais bizarros, todas as formas e todos os desvios possíveis
do sentimento religioso, dos mais elevados aos mais ignóbeis, com uma incoercível atração
pelo anarquismo, o exagero e o absurdo.”
Hoje em dia, as seitas que dão ênfase a aspectos que a igreja cristã
tende a ignorar, como a cura divina, as profecias ou o pânico escato-
lógico do Apocalipse, encontram inúmeros adeptos em todo o mundo.
Ciência Cristã, Seicho-No-Iê, Rosacrucionismo, Escola da Unidade, Novo
Pensamento, Testemunhas de Jeová e Mormonismo são alguns exemplos
desse fenômeno.
As seitas da Rússia no final do século XIX eram inúmeras: havia a
austera congregação do Raskol, fundada sobre a necessidade de estabelecer
uma relação direta entre a alma do crente e Deus, sem a mediação do
clero. Já os Dukhobors só admitiam a intuição interior como fonte de
fé e se recusavam a prestar serviço militar por não aceitarem derramar
sangue; os Beglopopovtsy, os padres abjuradores que condenavam a servidão
demoníaca da Igreja oficial; os Molokan (bebedores de leite) – seita que
Tolstoy admirava e a cujos integrantes doou grande parte de sua fortuna,
empobrecendo assim sua esposa e seus descendentes – dedicavam-se a
uma vida de pureza integral; os Straniky (errantes) que, para escapar ao
reinado do Anticristo, vagavam indefinidamente pelas estepes geladas da
Sibéria; os Stundistas, que pregavam o comunismo agrário “para pôr fim
ao reino dos faraós”; os Bialoritzy, que vestiam-se de branco “como os
anjos celestes” e iam de vilarejo em vilarejo professando a inocência; os
Skoptzy, que se emasculavam para fugir às torpezas carnais; os Pomortsy, que
renegavam o batismo recebido na infância, acreditando que o Anticristo
reinava na Igreja; os Nikudichniky, que repudiavam a ordem social e
procuravam debaixo da terra, “onde o pecado é impossível”, o verdadeiro
reino de Jesus. Os Duchitely (estranguladores) que, por piedade, abreviavam
a agonia dos moribundos cortando-lhes a garganta; os Khlisty, que em seus
episódios de êxtase erótico sentiam-se possuídos pelo Espírito Santo.
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“Uma jovem que ouvira falar do estranho santo veio de sua província para a
capital e visitou-o em busca de... instrução espiritual. Seu olhar gentil e monástico... tudo
em princípio inspirou sua confiança. Mas quando ele se aproximou dela, ela sentiu imedia-
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tamente que um outro homem totalmente diferente, misterioso, astuto e corrupto, fitava-a
por trás dos olhos que irradiavam bondade e gentileza.
“Ele sentou-se diante dela, aproximou-se bastante e seus olhos, de um azul muito
claro, mudaram de cor, tornando-se profundos e escuros. Um olhar agudo penetrou-a,
fascinando-a. Seus membros foram tomados de um peso plúmbeo quando o rosto largo
e enrugado do stárets, alterado pelo desejo, aproximou-se dela. Sentindo seu hálito quente
sobre a face, viu como aqueles olhos... vagavam furtivamente sobre seu corpo inerte até
que ele baixou as pálpebras em uma expressão de sensualidade. A voz de Rasputin adotara
um sussurro apaixonado e ele murmurava palavras estranhas e voluptuosas em seu ouvido.
“Quando estava a ponto de abandonar-se a seu sedutor, uma vaga memória
surgiu em sua mente... ela lembrou-se de que o havia procurado para perguntar-lhe sobre
Deus... e gradualmente despertou... começou a resistir... Ele, de repente, percebeu sua
resistência interior, seus olhos semicerrados abriram-se novamente, ele ergueu-se e deposi-
tou-lhe um beijo paternal na testa. Seu rosto, até então deformado pelo desejo, tornou-se
de novo sereno e assumiu outra vez a expressão gentil do mestre espiritual. Pôs-se a falar
com sua visitante em um tom benevolente e condescendente, a mão direita erguida em
uma benção. Seu olhar era novamente gentil e amistoso, quase humilde, e apenas no fundo
daqueles olhos espreitava o outro homem, o animal sensual.”
•••
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“[Rasputin] tinha um rosto pálido, cabelos longos, uma barba descuidada e olhos
extraordinários, grandes, luminosos, brilhantes.”
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M Á RC I A S A RC I N E L L I
“Rasputin era moreno, com cabelos longos e grossos, uma barba negra e densa, a
testa ampla, o nariz largo e proeminente e boca sensual. A total expressão de sua persona-
lidade, contudo, parecia concentrar-se em seus olhos. Estes eram de um azul pálido,
excepcionalmente brilhantes, profundos e magnéticos. Seu olhar era ao mesmo tempo
penetrante e doce, inocente e astuto, distante e concentrado. Quando falava seriamente,
suas pupilas pareciam irradiar magnetismo. Ele exalava um forte odor animal, como o
cheiro de um bode.”
“Lembro-me daquele homem estranho, com sua voz rouca e calma, o sorriso
enigmático nos lábios finos e pálidos, o olhar magnético que cintilava momentaneamente
nos olhos claros, que olhavam não apenas com a pupila, mas com todo o olho, por trás
dos quais alguém às vezes olhava para fora, alguém terrível, poderoso, que nos convidava
a segui-lo em um impenetrável labirinto [...].
“Em um momento, um simples camponês analfabeto sentava-se ali, grosseiro,
coçando-se de vez em quando, sua língua movendo-se com dificuldade e as palavras
saindo desajeitadamente [...], então de repente ele se transformava em um profeta
inspirado – o guardião de um segredo que apenas ele conhecia – que nos convidava a
segui-lo nas alturas das descobertas espirituais, em um reino até então desconhecido, em
que pecado e verdade fundiam-se harmoniosamente. Mas então o estranho ser transfor-
mava-se de novo, os dentes rangendo em bestial sensualidade; por trás do espesso véu
de rugas alguém acenava, alguém voraz, incontrolável como um filhote selvagem, que
acaricia como um animal com uma secreta sede de destruição.
“O invisível lobisomem aparece pela última vez e em seu lugar senta-se um
cinzento andarilho siberiano, que por trinta anos procurou por Deus nesta terra,
conversando com calma gentileza sobre os lagos azuis, as florestas intermináveis [da
Sibéria] e suas palavras são simples e sinceras, ele próprio é sincero – mas por quanto
tempo?”
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“Entre 1906 e 1910, foram condenados à morte por crimes políticos 5.735
pessoas...
“A atrocidade desta cifra advém sobretudo do fato de que, entre 1825 e 1905...
somente 625 criminosos políticos foram condenados à morte...
“Durante os primeiros cinco anos da era constitucional, o número de
condenações à morte aumentou 180 vezes! Nos últimos tempos, o número de execuções
na Alemanha teve uma média de 15 ao ano.
“Entre 1906 e 1910, as instâncias jurídicas condenaram um total de 37.735 pessoas
por delitos políticos, 8.640 foram enviadas ao presídio (katorga) – exceção feita aos 5.735
condenados à morte – 4.144 às companhias de detidos, 1.292 aos batalhões disciplinares
e 1.858 aos domicílios coatos [deportação de indivíduos privados de qualquer assistência,
alimentos, roupas adequadas, remédios, instrumentos ou dinheiro, para regiões desertas e
inóspitas]; cada condenado foi privado de direitos civis.
“...Sobre [a cabeça dos prisioneiros políticos] paira sempre a ameaça de um
sistema disciplinar bárbaro ou de uma cela em trevas, e a punição a pauladas, que os
ministros da Justiça e da polícia consideram agora novamente indispensável, é a punição
mais corrente. Torturas de estilo medieval figuram na ordem do dia de várias casas de
correção. Deste modo, sufoca-se o que resta de sensibilidade e de dignidade humana nos
prisioneiros que sobrevivem às epidemias e aos projéteis dos guardas, colocados diante das
janelas das celas e sempre prontos a disparar. Aos infelizes que desejem subtrair-se a esta
existência infernal resta apenas a fuga pela morte. É por isto que verdadeiras epidemias de
suicídio vieram juntar-se às epidemias de doenças.”
Nos teatros e nos salões veem-se as mesmas damas e os mesmos
cavalheiros que realizam os mesmos rituais sociais, indiferentes à sangria
do país.
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Nos salões, nos teatros, nos cafés, nas ruas da capital e em toda a
Rússia comentam-se abertamente as relações íntimas entre a czarina e o
mujik siberiano. Mesmo aqueles que conheciam a probidade de Alexandra,
o amor que a unia a Nicolau e o estilo místico açucarado de seus afetos,
unem-se ao coral difamatório. Mais do que nunca Alexandra é desprezada
e aviltada.
Coroando a onda de sensações que o caso Rasputin concedia à
imprensa, os jornais publicam fotos de “padre Grigori” circundado de
suas admiradoras. Entre elas resplandece, alva e nédia, Ana Virubova.
Exemplares escapados à diligência da censura são vendidos a preços
astronômicos no mercado e passam de mão em mão. Rasputin contribuía
mais à causa revolucionária do que Port Arthur, o Domingo Sangrento e
todos os atentados a bomba.
O general Bogdanovitch, cujas reuniões políticas ditavam a opinião
dos monarquistas, escreveria em seu diário:
“Não é o czar quem governa a Rússia, mas o cavaleiro de indústria Rasputin. Este
declara a quem interessar possa que não é a czarina quem precisa dele, mas “Nicolau”.
Não é espantoso? E mostra uma carta, na qual a czarina afirma “sentir-se tranquila apenas
quando apóia a cabeça em seu ombro”. A imperatriz-mãe em pessoa, Maria Feodorovna,
alarmada por este falatório nauseabundo em torno ao palácio, convoca o presidente do
Conselho Kokovtsov e expressa-lhe suas preocupações. Sempre fora hostil aos modos ao
mesmo tempo altivos e exaltados da nora; agora acusa-a de conduzir a Rússia à catástrofe.
‘Minha nora não percebe que está perdendo a si própria e à dinastia’, diz. ‘Crê sinceramente
na santidade de um aventureiro; e nós, impotentes, não podemos evitar uma catástrofe
que parece inevitável’.”
“Mas aonde iremos parar? Querem destruir o nosso último baluarte, a Santa
Igreja Ortodoxa. Já vimos a Revolução atentar contra o poder supremo... Felizmente sem
sucesso. O Exército permaneceu fiel. Agora, para cúmulo do azar, as forças da escuridão
atacam a última esperança da Santa Rússia, a sua Igreja... E o pior é que, ao que parece,
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estas desgraças nos chegam do alto do trono imperial. Um vil impostor, um khlist, um
mujik ignorante ousa aproveitar-se de nossos padres... Quero sacrificar-me e matar este
canalha!”
“Vós conheceis o penoso drama que a Rússia está vivendo! No centro deste
drama encontramos um personagem enigmático e tragicômico, uma espécie de espírito do
outro mundo, ou o produto atual de séculos de ignorância... Com que meios este homem
conseguiu ascender a uma posição central e conquistar uma potência tal que os mais altos
dignitários do poder temporal e espiritual baixam a cabeça à sua passagem?”
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visivelmente exasperado por saber que todos denigrem o homem no qual ele e sua esposa
confiam totalmente. Na sua opinião, as culpas de Rasputin são apenas um pretexto
inventado pelos inimigos da monarquia para cobrir de lama a família imperial. Desde
quando um czar deve submeter-se em silêncio a que o critiquem? É ou não é o senhor
absoluto do próprio destino e daquele da nação? Nem Pedro o Grande, nem Catarina II,
nem Nicolau I, nem Alexandre III teriam tolerado semelhante violação de suas prerro-
gativas autocráticas!”
Preocupado com as proporções que o escândalo atingira em poucos
dias, Rasputin resigna-se a partir mais uma vez para Pokrovskoe.
O presidente da Duma, Rodzianko, dedicado patriota e monarquista,
decide preparar o espírito do czar e envenená-lo contra Rasputin para
impedir que a czarina o chame de volta. Imbuído desta “missão de saúde
pública”, Rodzianko prepara um volumoso relatório no qual apresenta
evidências do envolvimento de Rasputin com a seita Khlisty, a maçonaria
e os judeus progressistas, reúne artigos da imprensa que denunciam os
crimes do stárets e inclui cópias das famosas cartas da família imperial.
Consegue ser recebido pelo czar, e durante duas horas expõe suas razões
para considerar Rasputin um indivíduo perigoso para o trono. O czar ouve
impassível as diatribes de Rodzianko contra “padre Grigori” e acompanha-o
à porta sem exprimir a mínima contrariedade. No dia seguinte, envia-lhe
uma cópia do dossier do Santo Sínodo, que inocenta Rasputin da acusação
de pertencer à seita Khlisty.
Ingenuamente, Rodzianko interpreta a reação do czar como um
convite a perseverar em suas investigações. Envolve a chancelaria da Duma
em sua missão e durante dias os secretários da Assembleia copiam páginas
e páginas de documentos comprometedores. Ao final deste estrênuo
trabalho, solicita nova audiência com o czar, que no entanto recusa-se
a recebê-lo e solicita-o a expor suas conclusões por escrito. Desiludido,
Rodzianko obedece e a 8 de março envia ao czar seu relatório, de que não
ouviria mais falar.
Neste ínterim, Alexandra telegrafa a Rasputin para pedir-lhe
explicações sobre o destino das cartas da família imperial, agora de domínio
público. O stárets proclama vigorosamente sua inocência, atribui ao ignóbil
Iliodor a culpa de todo o escândalo e afirma sua devoção a Cristo e à família
imperial. Esclarecido o desagradável mal-entendido, Alexandra convida-o
a encontrá-los em Tsarskoe Selo antes da partida da família para a Criméia.
Com a cumplicidade de Ana Virubova, Rasputin, que não havia sido
convidado a acompanhar a família em sua viagem, entra como clandestino
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A T R AG É D I A D O S RO M A N OV
“Esperarei dia e noite que o czar me chame para junto de si. Se não o fizer,
perderá dentro de oito meses seu filho e pouco mais adiante seu trono.”
•••
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“Cura teu filho Alexei, se tal é a Tua vontade! Dá-lhe a minha força, oh Deus,
para que possa curar-se!”
“...parecia debater-se contra uma terrível agonia. Estava certa de que morreria.
Após o que me pareceu uma eternidade, abriu os olhos e sorriu. Ofereci-lhe uma xícara de
chá já frio, e ele bebeu avidamente. Alguns instantes depois voltava a si.”
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“Deus contou as tuas lágrimas e ouviu as tuas preces. O pequeno não morrerá.
Não permitas que os médicos o molestem muito.”
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M Á RC I A S A RC I N E L L I
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XI
“Por mim se vai à cidade dolente;
Por mim se vai ao sofrimento eterno;
Por mim se vai entre a perdida gente.
Justiça moveu o meu eterno fautor;
Criou-me a Suprema Potestade;
Suma Sapiência e Primeiro Amor.
Antes de mim apenas coisas eternas foram criadas;
E eu, eternamente existo.
Abandonai toda a esperança, vós que entrais.”
ARMAGEDON
“Toda moderação na guerra é um absurdo.”
(C. Von Clausewitz)
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•••
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[Depois] agarro o melhor pretexto para declarar guerra à Austria, dissolvo a Dieta alemã,
submeto os Estados menores e dou unidade nacional à Alemanha, sob direção prussiana.”
“As grandes questões atuais não serão decididas por discursos nem por votos da
maioria – este foi o grande erro de 1848-49 – mas com o sangue e o ferro.”
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“O Imperador alemão é muito cauto para lançar seu país em selvagens aventuras
e, quanto a Francisco José, este preferiria morrer em paz...”
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•••
“As exigências da Áustria são tais que nenhum país que possua o mínimo de
orgulho nacional ou dignidade poderia aceitá-las.”
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“Na história recente da Rússia... nunca houve um momento em que o país sofreu
tal humilhação e, embora tenha enfrentado dificuldades e problemas internos e externos e
tenha sofrido derrotas no campo de batalha, a Rússia jamais havia sido forçada a submeter-se
às exigências de um país estrangeiro.”
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“...um ataque por parte de Viena é quase desejável. Esta é a nossa ocasião
histórica. Portanto, avante, em nome de Deus!”
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“Esta guerra é uma loucura! Por que razão a Rússia deveria combater? Pelo nosso
prestígio nos Bálcans? O nosso sacro dever de ajudar os nossos irmãos de sangue? Esta é
uma romântica quimera ultrapassada. Na Europa, qualquer pessoa que raciocine considera
pouco mais do que nada este povo violento e vaidoso, os sérvios que não possuem sequer
uma gota de sangue eslavo, que são no máximo turcos batizados. Devemos impor aos
sérvios a punição que eles merecem. Isto, com relação ao objetivo da guerra.
“Falemos agora das vantagens que a guerra poderá nos trazer. O que podemos
esperar? Uma expansão do país? Santo Deus! Não é o império de Sua Majestade suficien-
temente grande? Por acaso não temos na Sibéria, no Turquistão, no Cáucaso e nas
terras puramente russas, imensos territórios que ainda nem foram explorados? O que
poderíamos anexar ao império? A Prússia Oriental? Por acaso o soberano não possui
súditos alemães em número suficiente? E a Galícia? Está cheia de judeus! Constantinopla,
a cruz do cristianismo erguida sobre Santa Sofia, o Bósforo, os Dardanelos? É pura
loucura até mesmo dedicar a isto uma séria reflexão.
“E, mesmo que conseguíssemos uma vitória total, e os Hohenzollern e os
Habsburg fossem tão pequenos a ponto de mendigar a paz e submeter-se às nossas
condições – isto não significaria o fim do domínio alemão, mas antes a proclamação de
repúblicas em toda a Europa! Seria também o fim do czarismo.
“Prefiro não falar do que nos aguardaria caso fôssemos derrotados... A minha
conclusão prática é a de que devemos concluir o mais rapidamente possível esta estúpida
aventura.”
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“A guerra trará o fim da Rússia e de Vós próprios e perdereis tudo, até o último
homem.”
“Caro amigo, repito mais uma vez que sobre a Rússia paira uma nuvem
gigantesca, plena de sofrimentos e lutos; é escura e não permite a passagem de nenhuma
luz. Escorrerá um mar incalculável de lágrimas e de sangue. Eu sei, exige-se de Vós a
guerra, e Vós não compreendeis que ela trará inexoravelmente a destruição. É difícil o
caminho do Senhor quando se esgota a razão. O pai-czar não deve permitir aos loucos
que o destruam e que destruam seu povo. E, mesmo que vençamos a Alemanha, o que
será da Rússia? Não se poderá recordar tanto sofrimento desde o início dos tempos, e a
Rússia se afogará em sangue. A queda será terrível e a dor não terá fim.”
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•••
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“Apenas uma coisa importa: as nossas tropas devem ser exemplares em todos
os sentidos, e não roubar ou saquear, estas ações horríveis devem ser deixadas para os
prussianos. Isto é desmoralizante, e assim se perde o controle sobre os soldados: estes
combatem então por sua própria conta e não pela honra de seu país. Faz de tudo para que
eles não imitem os maus exemplos...”
•••
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•••
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sua sacra missão, argumentando que ele assim arriscaria seu prestígio em
caso de retirada ou derrota, e criaria um vácuo no governo. O comando
supremo coube então ao grão-duque Nikolai Nikolaievitch Romanov – ou
Nikolasha, como era chamado em família.
O ministro da Guerra, General Vladmir Sukhomlinov, e o
grão-duque Nikolasha, odiavam-se mutuamente. Não bastassem suas
limitações naturais, ambos empenhavam-se com grande afinco em sabotar
um ao outro. Nikolasha era um tipo bastante ornamental. Adorado
pelos soldados, que impressionava com seu porte imperial, sua estatura
gigantesca de mítico guerreiro eslavo e sua total dedicação ao Exército, o
grão-duque infelizmente padecia de uma inteligência medíocre e era um
mau estrategista. O czar admirava-o e temia-o. Rasputin odiava-o, porque
uma vez telegrafara ao grão-duque oferecendo-se para ir ao Quartel
General benzer um ícone, e o grão-duque respondera:
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•••
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“Por favor, meu anjo, faz Nikolasha ver com teus olhos... Espero que a minha
carta não te tenha aborrecido, mas nosso Amigo me persegue e eu sei que será fatal para
nós e para o país se seu desejo não for realizado. Ele fala a sério.
(Trecho de carta de 11 de junho de 1915)
“Envio-te um bastão que pertenceu ao nosso Amigo. Ele o usou e agora presen-
teia-o a ti, juntamente com a Sua benção. Se pudesses usá-lo de vez em quando seria bom
tê-lo em teu compartimento, perto daquele que M. Philippe tocou.
(Trecho de carta de 14 de junho de 1915)
“Não tenho a mínima confiança em Nikolasha – sei que ele está longe de ser
inteligente e, sendo contrário a um homem de Deus, seu trabalho não pode ser abençoado,
nem seu conselho ser bom.
“... os inimigos de nosso Amigo são nossos inimigos [...].
“As pessoas temem a minha influência.[...] Grigori disse [...] que eles sabem que
eu tenho uma vontade forte, vejo através deles e ajudo-te a ser firme.”
(Trechos de carta de 16 de junho de 1915)
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“Não me julgues louca por ter-te enviado a garrafinha que nos deu o nosso Amigo.
Creio que seja vinho madeira. Por favor, enche uma taça e bebe tudo de um só gole à saúde
Dele.”
(Trecho de carta de 11 de janeiro de 1916)
“Nosso Amigo pede-te encarecidamente que não nomeies Makarov como ministro
do Interior [...].”
(Trecho de carta de 23 de maio de 1916)
“Lembra-te de que M. Philippe disse para não ousar conceder uma constituição,
pois isto seria o teu fim e o fim da Rússia, e todos os verdadeiros russos dizem o mesmo.
“...fomos colocados por Deus no trono e devemos mantê-lo com firmeza e
passá-lo intacto a nosso filho – se tiveres isto em mente, te lembrarás de ser o Soberano
[...].”
(Trechos de carta de 14 de dezembro de 1916)
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“...meu Amor, sê firme, mostra a mão do patrão, isto é do que os russos precisam.
Amor e bondade tu sempre mostrastes – agora deixa-os sentir o teu punho [...].
“Devem aprender a temer-te, amor não é suficiente.”
(Trechos de carta de 22 de fevereiro de 1917)
“Imagine, a minha esposinha, ajudando o maridinho ausente! Que pena que tu não
tenhas desempenhado esta função há muito tempo [...].
“Nada me dá mais prazer do que poder ter orgulho de ti, como tive todos estes
meses em que me admoestastes energicamente para que fosse mais firme e mantivesse a
minha opinião.”
(Trecho de carta de 25 de agosto de 1915)
“O que escreves sobre ser firme – o patrão – é a pura verdade. Eu não me esqueço
disto – estejas certa, mas eu não preciso berrar com as pessoas o tempo todo. Uma resposta
calma e categórica normalmente é suficiente para colocá-las em seus lugares.”
(Trecho de carta de 23 de fevereiro de 1917).
•••
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“Estamos felizes por ter realizado este sacrifício por nossos aliados.”
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“Anushka, acorda!”
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M Á RC I A S A RC I N E L L I
A estas palavras, Ana abre de repente os olhos e murmura numa voz muito
débil:
Rasputin prediz então que ela se salvaria, mas que seria para sempre
inválida. Em seguida dá alguns passos em direção à porta, revira os olhos
e desmaia.
Mais uma vez Rasputin operava a mágica do xamã, que toma
para si o sofrimento alheio, ou – na interpretação da czarina – realizava
o milagre da ressurreição. Qualquer que fosse a explicação para o fato, os
médicos são forçados a admitir uma cura realmente prodigiosa, graças à
atuação de Rasputin.
A convalescência de Ana, contudo, seria longa e penosa. Seis
meses acamada, outros seis em cadeira de rodas, em seguida caminharia
com a ajuda de muletas. Apenas depois de um ano ela recuperaria o uso
parcial das pernas, e mancaria para o resto da vida. Entretanto, sua gratidão
e admiração por aquele que ela acreditava tê-la ressuscitado não conhece
limites ou freios. Assistida pela mística devoção da czarina, Ana proclama
o novo milagre de padre Grigori. Milagre que vem exaltar não apenas a fé
de seus adeptos em sua infalibilidade, como a do próprio Rasputin em sua
impunidade. E ele entrega-se ainda com maior fervor aos seus excessos.
Uma Petrogrado em delírio acolhe de braços abertos o stárets
libertino. Quanto mais terríveis as notícias do front e mais abarrotados os
comboios de feridos que afluem à cidade com sua carga de horrores, maior
parece a fúria de prazeres de seus habitantes. Teatros, bares, cafés e restau-
rantes estão sempre repletos; o proibicionismo – sugerido inclusive por
Rasputin – fale completamente, e nos locais o álcool é servido abundan-
temente em xícaras de chá. Rasputin circula abertamente com prostitutas,
canta, faz piruetas sobre as mesas, dança freneticamente a hoppak (dança
ucraniana) acompanhado de músicos ciganos, e ostenta sua exuberância
sexual nos melhores restaurantes e nos piores antros da cidade. Testemunhas
relatam que durante uma de suas pândegas noturnas em um local da moda,
ele ordena ao coro que cante a Ave Maria, enquanto ele próprio entoava aos
berros a sua canção preferida: “Cocheiro, chicoteie os cavalos”. Uma noite,
seu comportamento escandaloso em um restaurante ofende os brios de
um oficial, que o esbofeteia em público. O local é interditado por diversos
dias, a notícia percorre a cidade, mas nada muda na rotina sócio-sexual do
stárets. Cercado de suas prostitutas, seus ciganos e seus amigos banqueiros
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– cujos subsídios ele dilapida sem piedade – Rasputin circula todas as noites
de bar em bar, intrépido e incauto. Antes de retirar-se, invariavelmente
embriagado, Rasputin distribui entre músicos e dançarinas alguns rublos
ou lembrancinhas, bafejando-lhes pios conselhos sobre a conduta moral
que agrada ao Senhor.
Em março de 1915 Rasputin vai a Moscou, e já no dia seguinte
à sua chegada, causa sensação em um dos mais célebres restaurantes
da cidade, o Yar. O relatório do chefe da seção moscovita da Okrana
informaria que Rasputin, completamente embriagado, confidenciava aos
músicos que “o caftan que usava fora um presente ‘da velha’, costurado
com suas próprias mãos” e “O que diria ‘a velha’ se me visse aqui”. Em
seguida, pôs-se a exibir o próprio sexo enquanto distribuía às dançarinas
bilhetinhos que diziam “Ama-me com todo o coração” e outros versos do
gênero. Às expressões de choque e repulsa dos presentes, Rasputin reage
explicando que era assim que se portava no Palácio Alexander em presença
de Suas Majestades.
A nova proeza do stárets repugna e delicia a cidade, tão fascinada
quanto horrorizada com mais este escândalo envolvendo o protegido da
czarina. Temendo pelo prestígio da coroa, o governador de Moscou corre
a Petrogrado a informar o ocorrido ao ministro do Interior Maklakov.
Este, no terror de irritar o czar, expõe-lhe verbalmente uma versão muito
edulcorada dos fatos, que o czar ouve, impassível.
Entretanto, Rasputin é convocado a Petrogrado para explicar-se.
Humílimo, o stárets realiza seu ato de contrição: gaguejando e transpirando,
bate no peito, verga-se, rasteja, admite ser um vil pecador, indigno dos
dons de que o favorecia o Senhor, mas jura fidelidade e amor incondi-
cional a Suas Majestades. Na verdade, Rasputin reconhece-se pecador e
blasfemo. Mas um blasfemo reverente. A blasfêmia, afinal, não deixa de ser
uma participação no sagrado.
Assegurado do previsível perdão do czar e da inabalável confiança
da czarina, Rasputin escafede-se mais uma vez para Pokrovskoe, a refazer-se
dos excessos de sua concupiscência.
Fútil manobra. Nem todos compartilhavam da boa vontade do
imperador poliana ou da religiosa reverência da czarina para com o stárets
impostor. Na costumeira sarabanda de ministros, Sherbatov substitui o
tremelicante Maklakov no ministério do Interior e prontamente retoma a
delicada questão do Restaurante Yar com a atenção que lhe julga devida.
Sherbatov encarrega seu vice-ministro Diunkovsky de entregar ao czar o
relatório completo da Okrana sobre as façanhas de Rasputin em Moscou.
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•••
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XII
“[...]
Que é da minha realidade, que só tenho a vida?
Que é de mim, que sou só quem existo?
(Fernando Pessoa )
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ANTES DO FIM
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E escreveria a Alexandra:
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M Á RC I A S A RC I N E L L I
“Agora inicio uma nova página e o que será escrito nela só Deus Todo Poderoso
o sabe.
“Assinei a minha primeira prikaz [ordem] com uma mão bastante trêmula!”
“Que alívio! Abençoo-te, meu anjo, e abençoo a tua decisão, esperando que seja
coroada de sucesso e nos conduza à vitória interna e externa.”
“Se o nosso Nicolau não tivesse tomado o lugar de Nikolasha, podia dizer adeus
ao trono.”
“Meu amado, não encontro palavras que expressem tudo o que sinto – meu coração
transborda. Desejo apenas apertá-lo em meus braços e sussurrar palavras de amor intenso,
coragem e bençãos intermináveis... Lutaste esta luta por teu país e teu trono – sozinho e
com muita bravura e decisão. Eles nunca haviam visto tanta firmeza em ti... Sei bem o que
te custa... perdoa-me, meu anjo, por não tê-lo deixado em paz e por tê-lo perseguido tanto,
mas eu conheço bem demais o teu caráter maravilhosamente gentil e desta vez tu tinhas que
superá-lo, tinhas que vencer a tua luta sozinho contra todos. Será uma página gloriosa do
teu reino e da História da Rússia, a história destes últimas semanas... Nosso amigo diz – e eu
também creio nisto absolutamente – que este é o início da glória do teu reino... Dorme bem,
meu raio de sol, salvador da Rússia.[...]”
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“Bem, pior para eles! Eles temiam fechar a Duma – pois foi feito! Eu vim para cá
e substituí Nikolasha contra o conselho deles; o povo aceitou estas medidas com natura-
lidade e compreendeu-as assim como nós. A prova – montanhas de telegramas tocantes que
recebo de diferentes lugares. Tudo isto mostra-nos claramente uma coisa – que os ministros,
vivendo sempre na cidade, sabem muito pouco sobre o que acontece no país. Daqui eu
posso julgar corretamente os verdadeiros sentimentos de diferentes classes de pessoas: tudo
deve ser feito para conduzir esta guerra a um fim vitorioso e não há dúvidas sobre isso.
Todas as delegações que recebi outro dia disseram-me isto oficialmente – e assim é em toda
a Rússia.
“As duas únicas exceções são Petrogrado e Moscou – dois pontinhos no mapa do
nosso país!”
•••
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M Á RC I A S A RC I N E L L I
“Nunca poderei esquecer a angústia com que a pobre mãe aguardava a chegada
do filho doente, talvez morto. E nunca poderei esquecer a palidez de cera, quase cadavérica,
do rostinho do menino enquanto era levado com infinito cuidado para o palácio e colocado
sobre a sua cama. Acima dos curativos ensanguentados, seus olhos azuis olhavam-nos
com indescritível sofrimento e parecia a todos à sua volta que chegara a última hora da
infeliz criança. Os médicos [...] exauriam todos os meios científicos possíveis para deter a
hemorragia incessante. Desesperada, a Imperatriz mandou chamar Rasputin. Ele entrou
no quarto, fez o sinal da cruz sobre a cama e, olhando fixamente para a criança quase
moribunda, disse calmamente aos pais ajoelhados: ‘Não se alarmem. Nada vai acontecer.’
Ele então saiu do quarto e do palácio. Isto foi tudo. A criança adormeceu e no dia seguinte
estava tão bem que o Imperador partiu para [Mogilev]. Naquele dia, ele inspecionaria 84.000
soldados e jantaria com 105 oficiais no trem imperial. Dr. Derevenko e Prof. Feodorov me
disseram depois que eles nem tentavam explicar a cura.”
•••
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“Nosso amigo disse-me para adiar a partida do Velho [Goremykin] até que ele
tivesse se encontrado com Khvostov na quinta-feira [...] Grigori está tristíssimo com a
saída do querido Velho, diz que ele é um homem tão correto, mas que teme as vaias da
Duma que te colocariam em uma horrível posição.”
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“Livre-se de Polivanov [...] qualquer homem honesto seria melhor do que ele
[...] Lembre-se de livrar-se de Polivanov [...] Amorzinho, não vacile, isso é muito sério.”
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“Nunca poderei ter relações confidenciais com um homem em cuja palavra não
se pode confiar.”
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hipocrisia... ele emite um intolerável odor de falsidade. Em sua bonomia e sua afetada
polidez sente-se que ele é baixo, intrigante e traiçoeiro.”
“Grigori suplica que nomeies Protopopov... Ele gosta de nosso Amigo há pelo
menos quatro anos e isto diz muito sobre um homem.”
“Por favor, tome Protopopov como ministro do Interior. Como ele faz parte da
Duma, seria de grande efeito e fecharia as bocas [dos deputados].”
“Deus abençoe a sua nova escolha [Protopopov]. Nosso Amigo diz que agiste
muito sabiamente ao nomeá-lo.”
“Tanto Stürmer quanto Protopopov confiam totalmente na maravilhosa e divina
sabedoria do nosso Amigo.”
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“Mas como podeis me pedir isso? Toda a minha vida eu sonhei ser vice-go-
vernador, e agora eu sou ministro!”
“Já não há dúvidas de que a política russa é guiada pela corriola da imperatriz.
Mas quem encarna essa camarilha? Quem lhe fornece o programa e a guia? Certamente
não a imperatriz, que ademais é excessivamente emotiva e inconstante, psicologicamente
instável e insensata demais para idealizar e realizar um plano político. É o instrumento de
uma conspiração, cuja presença eu percebo constantemente neste ambiente. Como ela,
também as pessoas que a circundam não passam de instrumentos: Rasputin, a Virubova, o
general Voekov, Taneiev, Stürmer e outros, são apenas comparsas, intrigantes e marionetes.
O pior é o ministro do Interior Protopopov, que, realmente, não é de todo normal.
“Eu creio que a infausta política, pela qual serão responsáveis perante a História
a imperatriz e seu bando, seja-lhes sugerida por quatro homens: o chefe da extrema direita
do Conselho Imperial, Cheglovitov, o metropolita de Petrogrado Pilgrim, o ex-chefe do
departamento de polícia Beletzky e o banqueiro Manus. À exceção destes quatro homens,
vejo apenas o jogo de forças anônimas, esparsas, que operam umas contra as outras e que
pretendem salvar a essência do czarismo mas que, inexoravelmente, a destroem.”
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pações que agitavam Paléologue e todos aqueles que eram fiéis ao czar, em
março de 1916 consegue uma audiência com Nicolau, e mais tarde registraria
suas palavras ao soberano:
“Disse-lhe tudo: das intrigas dos ministros, que trabalhavam uns contra os outros
com a mediação de Rasputin, da falta de um projeto político, do abuso geral de poder,
do desprezo pela opinião pública, da exasperação do povo, que terminaria por perder a
paciência. Contei-lhe sobre os contatos de Rasputin com personagens equívocos, as suas
libertinagens e as suas orgias e avisei-o sobre a irritação que seu estreito relacionamento com
a família imperial e a sua influência nos negócios de Estado provocavam na população e nos
homens honestos do governo.
“Se realmente os ministros de Vossa Majestade visassem unicamente o bem de
nosso país, a presença de um homem como Rasputin não teria significado algum para as
questões de Estado. O problema, contudo, é que estes dependem em parte dele e o envolvem
em suas intrigas. Ninguém vos abre os olhos sobre o papel que este homem representa, cuja
presença mina a confiança no poder supremo do Estado e pode ter graves consequências
sobre o futuro da dinastia, uma vez que distancia o coração do povo de seu imperador.’
“Enquanto eu enumerava estas dolorosas verdades, o czar calava ou demonstrava
espanto, permanecendo todavia cordial e cortês. Quando acabei, o soberano solicitou o meu
parecer sobre o andamento da guerra. Respondi que podíamos contar com o Exército e com
a população, mas que eram os vértices militares e sobretudo a situação política interna que
obstavam a vitória.”
“Se o soberano conservar os atuais conselheiros, temo que uma revolução seja
inevitável.”
“Perdoa-me pelo que fiz – que tive que fazer – nosso Amigo disse que era absolu-
tamente necessário. [...] Tive que tomar esta atitude eu mesma porque Grigori diz que
Protopopov assim terá tudo em suas mãos... e assim salvará a Rússia ...”
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•••
“...queria tanto saber quais são os seus planos com relação à Romênia. Nosso
Amigo está tão ansioso para conhecê-los.”
“Nosso Amigo temia que, se não tivéssemos um grande exército para passar
através da Romênia, seríamos presos em uma armadilha pela retaguarda.”
“Nosso Amigo envia sua benção a todo o Exército Ortodoxo. Ele suplica que
não avancemos maciçamente ao norte porque se continuarmos tendo sucesso ao sul,
eles próprios recuarão a norte, ou avançarão e então suas perdas serão imensas – se
começarmos lá, nossas perdas serão muito pesadas. Ele diz que este é o seu conselho.”
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“Ele não dirá a ninguém. Tive que pedir-lhe a benção para a tua decisão.”
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da situação dos exércitos e dos movimentos das tropas. Ele informava tudo aos alemães e
assim, obviamente, o Exército russo sofria derrotas que poderiam ter sido evitadas.”
•••
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M Á RC I A S A RC I N E L L I
“Às vezes, parece que a minha cabeça vai explodir de tanto pensar em que nome
indicar para este ou aquele cargo.”
“Todas essas mudanças fazem a minha cabeça girar. Na minha opinião, elas são
frequentes demais. De qualquer forma, não são boas para a situação interna do país, já que
cada homem traz alterações à administração.”
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mas nessa ocasião mostrou-se nervoso e irritável, e uma ou duas vezes falou asperamente
com Alexei Nikolaievitch.”
“Sinto muito por Protopopov, um homem tão bom e honesto, mas ele pulava de
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M Á RC I A S A RC I N E L L I
uma ideia a outra e não se decidia a respeito de nada. Notei isto desde o início. Dizem que
há alguns anos ele ficou alterado após uma certa doença... É arriscado deixar o ministério do
Interior em mãos como estas em tempos como estes... Suplico-te apenas que não envolvas
nosso Amigo nisso. A responsabilidade é minha e portanto desejo ser livre em minha
decisão.”
E no dia seguinte:
“Amorzinho, meu anjo... não demitas Protopopov. Tive uma longa conversa
com ele ontem – o homem é totalmente são... calmo e completamente devotado, o que
infelizmente pode-se dizer de poucos, e ele vai conseguir – as coisas já estão melhorando...
não mudes ninguém agora, senão a Duma pensará que é uma realização deles, e que eles
conseguiram expulsar todo mundo... Querido, lembra-te de que o problema não é o homem
Protopopov ou x.y.z., mas é a questão da monarquia e do seu prestígio, que não podem ser
abalados... Não penses que eles se limitarão a eliminar Protopopov, mas expulsarão todos
aqueles que são devotados a ti um por um – e então nos expulsarão. Lembra-te... o czar
governa, e não a Duma. Perdoa-me por escrever-te novamente, mas eu luto pelo teu reino
e pelo futuro do Bebê.”
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“Minha cara, agradeço-te pelo sermão... falas-me como se eu fosse uma criança
[...].
“Teu pobre e fraco maridinho,
Nicky”
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“Se a czarina é assim tão patriota, por que ela tolera a presença daquele animal
embriagado que circula abertamente na capital em companhia de espiões alemães e
simpatizantes do inimigo?”
“Por que as pessoas me odeiam? Porque sabem que tenho uma vontade forte e
que quando estou convencida de estar certa (e além do mais abençoada por Grigori), não
mudo de ideia e isto eles não suportam. Mas são apenas os maus.
“Lembra-te das palavras de M. Philippe quando ele me deu a imagem com o
sino. Como tu és assim, bom, confiante e gentil, eu deveria ser o teu sino, e os maus
intencionados não conseguiriam se aproximar de mim e eu te avisaria. Aqueles que me
temem não me olham nos olhos [...].”
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estas injustiças ditas sobre mim (e quão frequentemente!) – mas agora as coisas mundanas
(as maldades) não me tocam tão profundamente, apenas meu velho Nicky deveria me
defender, pois muitos pensam que não te importas e te escondes atrás de mim...”
(Trechos de cartas a Nicolau, dezembro de 1916)
“Tu confias nela, isso é natural. Entretanto, o que ela te diz não é a verdade;
ela apenas repete o que lhe foi astutamente sugerido. Se não fores capaz de remover esta
influência de sobre ela, ao menos protege-te a ti próprio.”
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•••
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“Não é mais admissível que uma recomendação de Rasputin baste para que os
seres mais abjetos sejam presenteados com os cargos mais altos! [...] De pé, senhores
ministros! Se sois realmente patriotas, se a glória da Rússia [...] significa alguma coisa para
vós, dirigi-vos ao Quartel General e atirai-vos aos pés do czar. Ousai dizer-lhe que a ira da
multidão faz-se perigosa, que a Revolução é iminente e que um mujik obscuro não pode
mais governar a Rússia!”
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Paris, Félix narra ter sido cortejado por um cavalheiro gordo de bigodes –
que em seguida descobriria tratar-se de Sua Majestade o Rei Eduardo VII
da Inglaterra.
Imensamente rico, belo, cortejado, mimado, adulado e sexualmente
ambíguo, Félix bocejava pela vida, dedicando seu tempo e energia à busca de
prazeres bizarros e ao cultivo de vícios, perversões, bizantinices e extrava-
gâncias variadas, e permitia-se tudo. Como um herói byroniano, sofria de
spleen e apenas as fortes emoções arrancavam-no de seu tédio perpétuo.
O príncipe conhecera Rasputin antes de seu casamento, em
1914, com a princesa Irina, sobrinha do czar. Obcecado por ocultismo
e fascinado por experiências insólitas, Félix procurara Rasputin atraído
pela fama de mestre dos espíritos que o stárets conquistara nos salões de
Petrogrado, e durante uma de suas visitas deixou-se hipnotizar. Em seus
encontros sucessivos, Rasputin vangloriara-se do fascínio que exercia sobre
Suas Majestades e sobre as mulheres em geral:
“Com eles [Nicolau e Alexandra] não faço cerimônia; se não obedecem à minha
vontade, esmurro a mesa e saio. Então correm atrás de mim e me suplicam que fique!”
“A czarina é uma soberana muito sábia. É uma segunda Catarina. Quanto a ele,
ele não é nenhum czar-imperador. Do que ele entende? É como uma criança!”
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“O que se pode fazer quando todos os ministros e a maioria das pessoas que
convivem com Suas Majestades são instrumentos de Rasputin? A única solução é matar o
patife, mas não há um homem em toda a Rússia com coragem para fazê-lo. Se não fosse
tão velho, eu mesmo o faria.”
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chá para seis, comprem biscoitos e doces e levem tudo para o porão. Dr
Lazovert calça luvas de borracha e, separando todos os doces cobertos com
glacé cor-de-rosa, corta-os ao meio e enche-os com uma dose de cianureto
suficiente, segundo ele, para matar vários homens instantaneamente. Duas
das quatro taças de vinho seriam também envenenadas com uma solução
de cianureto, vinte minutos depois que Yussupov partisse para buscar
Rasputin.
Chegando ao apartamento da rua Gorochovaia, Félix observa
que o stárets preparara-se com inusitado esmero – provavelmente para
agradar a princesa Irina. Yussupov nunca o vira tão limpo e arrumado.
Um pungente odor de sabonete barato acusava um de seus banhos, e ele
usava uma camisa de seda clara ricamente bordada, cingida por um cordão
vermelho, calças pretas de veludo e excelentes botas de couro. Seu cabelo
e sua barba estavam penteados e reluziam pela ação de algum produto
oleoso. Diante deste camponês lavado e enfeitado, Yussupov é tomado
por uma súbita piedade. A ideia de enganá-lo e envenená-lo, de assassinar
covardemente um hóspede em sua casa horroriza-o, e por alguns instantes,
Yussupov sente-se paralisado. Impressiona-o sobretudo a confiança que
Rasputin parecia depositar-lhe. Era este então o grande vidente, incapaz de
prever sua própria morte?
Enquanto o príncipe ruminava suas tenebrosas intenções, Rasputin
falava ininterruptamente, queria assegurar-se de que veria realmente a
princesa Irina, de que não haveria mais ninguém no palácio, de que depois
iriam ver os ciganos, de que a princesa Zenaida estava mesmo fora da
cidade. Tranquilizado por Yussupov, Rasputin lhe diz:
“Não gosto de tua mãe. Sei que ela me odeia; ela é amiga de Elizabeth [Ella].
Ambas conspiram contra mim e espalham calúnias a meu respeito. A própria czarina
me disse várias vezes que elas são as minhas piores inimigas. De fato, esta noite mesmo
Protopopov veio ver-me e fez-me jurar que eu não sairia nos próximos dias. ‘Eles o
matarão’- disse ele – ‘Teus inimigos preparam alguma maldade contra ti!’ Mas eu sei que
não conseguirão, apenas perderão tempo e energia – não têm poder suficiente. Agora
chega de conversa, vamos embora.”
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“Félix...Félix...”
Incrível.
Com as mãos trêmulas, Purishkevitch mira, atira e erra. Rasputin
passa a correr mais rápido e a gritar mais alto. Novamente Purishkevitch
atira e erra. Mordendo o pulso esquerdo para impedir que tremesse, ele
novamente atira e desta vez acerta o stárets nas costas, quando ele já
alcançava o portão. O deputado atira ainda uma vez e atinge-o na cabeça.
Rasputin cai com o rosto na neve, as mãos na cabeça. Purishkevitch
alcança-o e põe-se a chutá-lo furiosamente na cabeça com a ponta de sua
bota. Rasputin range os dentes e revira os olhos, mas já não se move.
Purishkevitch chama dois empregados do príncipe e ordena-lhes
que levem o corpo para o pátio interno. Ele então corre ao palácio à procura
de Yussupov e encontra-o em um dos banheiros a vomitar copiosamente.
O deputado tenta acalmá-lo e leva-o para o seu estúdio. Esverdeado, o
olhar vago, Yussupov repetia apenas: “Félix, Félix, Félix...”, com a voz do
defunto. Um empregado então vem informá-lo de que dois agentes da
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“Por causa daquele monstro – disse Yussupov – tive que matar um dos meus
melhores cães e deitá-lo no pátio onde a neve estava manchada pelo sangue do stárets...
Tive que fazê-lo, caso algum Sherlock Holmes descubra alguma pista e recorra a cães
farejadores. Passei o resto da noite de ontem com meus guardas a limpar a casa e agora,
como vês, Dmitri Pavlovitch e eu estamos compondo uma carta para a czarina e esperamos
poder entregá-la hoje mesmo.”
“O corpo de Rasputin ainda não foi encontrado. A czarina está desesperada. Ela
suplicou ao Imperador, que se encontra em Mogilev, que retorne a Petrogrado imedia-
tamente.
“Confirmou-se que os assassinos são o príncipe Yussupov, o grão-duque Dmitri
e Purishkevitch. Não havia senhoras presentes. Neste caso, como Rasputin foi atraído ao
palácio de Yussupov?
“Pelo que sei, é a presença de Purishkevitch o que confere ao drama seu
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“Meu querido mártir, dá-me a tua benção, para que ela me siga sempre no caminho
triste e sombrio que ainda devo atravessar aqui embaixo. Lembra-te de nós lá do alto em
tuas santas orações!
Alexandra”
“...uma horrível visão: o meu cadáver jazia nesta capela, e por um momento experi-
mentei a minha agonia...E que agonia!... Rezem por mim, minhas pombinhas, a minha hora
se aproxima.”
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M Á RC I A S A RC I N E L L I
“Escrevo e deixo esta carta em Petrogrado. Sinto que deixarei este mundo
antes do dia 1° de janeiro. Desejo explicar ao povo russo, ao Paizinho, à Mãezinha e às
crianças, à Terra Russa, o que eles devem compreender. Se eu for morto por assassinos
comuns, especialmente por meus irmãos camponeses, tu, Czar da Rússia, nada tens a temer,
permanece em teu trono e governa, e tu, Czar da Rússia, não temerás por teus filhos, eles
reinarão por centenas de anos na Rússia. Mas se eu for assassinado por nobres, e eles
derramarem o meu sangue, suas mãos se sujarão com o meu sangue, por 25 anos eles não
poderão lavar o meu sangue de suas mãos. Eles deixarão a Rússia. Irmãos matando irmãos,
matarão uns aos outros e odiarão uns aos outros e por 25 anos não haverá nobres no país.
Czar da Terra Russa, se ouvires o som de sinos que te dizem que Grigori foi assassinado,
compreende isto: se foram os teus parentes a determinarem a minha morte, então ninguém
da tua família, ou seja, nenhum dos teus filhos ou parentes viverá por mais de dois anos. Eles
serão mortos pelo povo russo... Eu serei morto. Não estou mais entre os vivos. Reza, reza,
sê forte, pensa em tua abençoada família.”
•••
“As palavras do Imperador, seus silêncios, suas reticências, suas feições graves e
tesas, seus pensamentos distantes e a vaga e enigmática qualidade de sua personalidade,
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“...ele estava praticamente irreconhecível. Seu rosto estava muito fino, encovado e
coberto de rugas. Seus olhos estavam embaçados e erravam de objeto a objeto... o branco
dos olhos estava decididamente amarelo e as retinas estavam sem cor, cinzentas e sem
vida... A face do czar tinha uma expressão de desalento. Ele mantinha um sorriso triste e
forçado nos lábios e repetia muitas vezes: ‘Estou perfeitamente bem e saudável, mas passei
muito tempo sem me exercitar, e estou habituado a fazer muitas atividades. Repito, Vladmir
Nikolaievitch, estou perfeitamente bem. Tu não me vês há muito tempo, e provavelmente
eu não tive uma boa noite. Agora mesmo vou sair para uma caminhada e a minha aparência
melhorará’
“... o czar continuava a ouvir-me com o mesmo sorriso doentio, olhando
nervosamente à sua volta. [...] Fiz-lhe uma pergunta perfeitamente simples e o czar reduziu-se
a um estado de incompreensível confusão. O estranho, quase vazio sorriso remaneceu fixo
em seus lábios; ele me olhava como que buscando ajuda [...] Por longo tempo, ele me olhou
em silêncio, como que tentando lembrar-se de algo.”
“A porta do estúdio do czar que comunicava com a sala de espera estava semiaberta,
o que nunca acontecera antes, e tive a impressão de alguém estava ali. Pode ter sido apenas
uma ilusão, mas tive esta impressão durante toda a minha audiência.”
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M Á RC I A S A RC I N E L L I
284 D R AG O E D I TO R I A L
A T R AG É D I A D O S RO M A N OV
“...devo dizer que, por mais estranho que pareça, o Governo é hoje o órgão que
está preparando a Revolução, o povo não quer isto, mas o Governo está se servindo de
todos os meios disponíveis para criar o maior número possível de pessoas descontentes,
e está conseguindo. Estamos testemunhando o inédito espetáculo de uma revolução que
parte do alto, e não de baixo.”
“Tenho sido teu amigo por vinte e quatro anos... e como amigo, eu te digo que
todas as classes da população opõem-se à tua política. Tens uma linda família, por que
não te concentras [nela]? Por favor, Alix, deixa os assuntos de Estado para o teu marido.”
“Estás muito enganada, Alix. Teu marido deixou de ser um autocrata em outubro
de 1905.[...]
“Lembra-te, Alix, estive calado por trinta meses! Por trinta meses eu não te disse
uma palavra sobre os infelizes eventos do nosso governo, ou melhor, do teu governo!
Percebo que queres afundar e que teu marido deseja o mesmo, mas e nós? Devemos todos
sofrer por tua cega obstinação? Não, Alix, não tens o direito de arrastar teus parentes
contigo para um precipício! És incrivelmente egoísta!”
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M Á RC I A S A RC I N E L L I
“Queres dizer que eu devo reaver a confiança do meu povo ou que o povo deve
reaver a minha confiança?”
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A T R AG É D I A D O S RO M A N OV
“Será possível que por vinte e dois anos eu tentei fazer o que era melhor e por vinte
e dois anos só cometi erros?”
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M Á RC I A S A RC I N E L L I
“Mas não agora, durante o conflito. Não se pode demonstrar fraqueza ao inimigo
e, além disso, não posso fazer duas coisas ao mesmo tempo. E agora há a guerra.”
288 D R AG O E D I TO R I A L
“Agora, sim! Vamos morrer, reunidos,
XIII
Tamarindo de minha desventura,
Tu, com o envelhecimento da nervura,
Eu, com o envelhecimento dos tecidos!
GOSPODIN ROMANOV
290 D R AG O E D I TO R I A L
A T R AG É D I A D O S RO M A N OV
D R AG O E D I TO R I A L 291
M Á RC I A S A RC I N E L L I
“Às oito e meia desta manhã, quando eu acabava de vestir-me, ouvi um estranho
e prolongado estrondo, que parecia vir da Ponte Alexander. Olhei para fora, não havia
ninguém na ponte, usualmente muito movimentada. Mas quase imediatamente, uma
multidão desordenada carregando bandeiras vermelhas surgiu no final da ponte... na
margem esquerda do Nevka e, do lado oposto, um regimento veio ao seu encontro. Parecia
que estava para acontecer um violento confronto mas, ao contrário, os dois grupos se
uniram. O Exército estava fraternizando com a Revolução.”
292 D R AG O E D I TO R I A L
A T R AG É D I A D O S RO M A N OV
“O Imperador agradece-o. Ele está de partida para Tsarskoe Selo e diz que
decidirá lá.”
D R AG O E D I TO R I A L 293
M Á RC I A S A RC I N E L L I
“Nos primeiros dias da Revolução, a Duma estava cheia dos mais odiados oficiais
da monarquia...
“Dia e noite a tempestade revolucionária rugia em torno a estes prisioneiros. Os
imensos saguões e intermináveis corredores da Duma fervilhavam de soldados armados,
trabalhadores e estudantes. As ondas de ódio... faziam tremer as paredes. Se eu apenas tivesse
movido um dedo, se eu simplesmente tivesse fechado os olhos e lavado as minhas mãos,
toda a Duma, toda São Petersburgo, toda a Rússia poderia ter sido arrastada por torrentes
de sangue humano, como aconteceu com Lenin em outubro.”
294 D R AG O E D I TO R I A L
A T R AG É D I A D O S RO M A N OV
•••
“Concessões inevitáveis. Tumulto nas ruas continua. Várias tropas passaram para
o lado do inimigo.”
D R AG O E D I TO R I A L 295
M Á RC I A S A RC I N E L L I
“Vossa Majestade e o General Ruzky aparentemente não se dão conta do que está
acontecendo na capital. Uma terrível Revolução irrompeu. O ódio à Imperatriz atingiu o
ápice. Para impedir derramamento de sangue, fui forçado a prender todos os ministros...
Não enviem mais tropas. Eu mesmo mantenho-me por um fio. O poder escapa-me das
mãos. As medidas que Vossa Majestade propõe chegam tarde demais. O tempo para elas se
foi. Não há mais volta.”
296 D R AG O E D I TO R I A L
A T R AG É D I A D O S RO M A N OV
A única forma de assegurar a permanência de uma nova ordem, sem causar um choque
muito grande, é a sua abdicação voluntária.”
•••
D R AG O E D I TO R I A L 297
M Á RC I A S A RC I N E L L I
•••
“Agradeço aos senhores por seu excelente e fiel serviço. Espero que continuem
servindo ao meu filho.”
298 D R AG O E D I TO R I A L
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D R AG O E D I TO R I A L 299
M Á RC I A S A RC I N E L L I
“Pelo bem da Rússia, e para manter as tropas em combate, decidi dar este passo...
Deixei Pskov à 1 hora da manhã. Ao meu redor, vejo apenas traição, covardia e falsidade.”
Nos momentos que se seguiram a este que seria seu último ato
político e que selava a cisão definitiva entre o homem público e o homem
300 D R AG O E D I TO R I A L
A T R AG É D I A D O S RO M A N OV
•••
“Nicky deve ter perdido a cabeça. Desde quando um soberano abdica porque
falta pão e há desordem na capital? Ele tinha um Exército de 15 milhões de homens à sua
disposição!”
D R AG O E D I TO R I A L 301
M Á RC I A S A RC I N E L L I
“Conheces o meu amor pelo Imperador e com que devoção o servi. Mas
enquanto eu viver, jamais o perdoarei por ter abdicado em nome do filho. Ele não tinha
o menor direito de fazê-lo! Existe no mundo alguma lei que permita que os direitos de
um menor sejam abandonados? E o que dizer quando estes direitos são os mais sagrados
e augustos da Terra! Imagine destruir uma dinastia de 300 anos e a maravilhosa obra de
Pedro o Grande, Catarina II e Alexandre I! Que tragédia! Que desastre!”
302 D R AG O E D I TO R I A L
A T R AG É D I A D O S RO M A N OV
meses de guerra contra a Alemanha e a Áustria deveria corrigir estas vagas impressões e
expor os fatos dominantes. Pode-se medir a força do Império russo pelo cerco que suportou,
pelos desastres aos quais sobreviveu, pelas forças inesgotáveis que desenvolveu e por seu
poder de recuperação. No governo dos Estados, quando grandes eventos estão em marcha,
o líder da nação, quem quer que ele seja, é considerado responsável pela derrota e glorificado
pelo sucesso. Não importa quem determinou as ações, quem planejou a luta, à suprema
autoridade responsável cabe a culpa ou o crédito.
“Por que deveria este duro teste ser negado a Nicolau II? Ele cometeu muitos
erros, que governante não os cometeu? Ele não era nem um grande comandante, nem
um grande príncipe. Era apenas um homem simples e sincero, de habilidades medianas,
de caráter misericordioso, que baseava toda a sua vida em sua fé em Deus. Mas o peso de
decisões supremas repousava sobre ele. Nos momentos cruciais em que todos os problemas
resumem-se a Sim ou Não, quando os eventos transcendem as capacidades do homem
e quando tudo é imperscrutável, ele tinha que fornecer as respostas. Dele era a função
da agulha do compasso. Sim ou não à guerra? Avançar ou retirar? Direita ou esquerda?
Democratizar ou aguentar firme? Desistir ou perseverar? Estes eram os campos de batalha
de Nicolau II. Por que ele não deveria colher honra destas batalhas? O devotado ataque
das tropas russas que salvou Paris em 1914; a orquestrada agonia da falta de munição que
determinou a retirada; a lenta recuperação de forças; as vitórias de Brusilov; a ofensiva russa
na campanha de 1917, invicta, mais forte do que nunca; ele não tem participação em nada
disto? Apesar de erros vastos e terríveis, o regime que ele personificava, que ele presidia, ao
qual seu caráter pessoal doava sua centelha vital, tinha neste momento vencido a guerra para
a Rússia.
“Ele está prestes a ser derrubado. Uma mão negra, enluvada a princípio em
loucura, agora intervém. Expulsa o czar. Entrega-o e a tudo o que ele ama à injúria e à morte.
Denigre seus esforços, difama sua conduta, insulta sua memória; mas que se detenha agora
esta mão para nos dizer quem mais foi julgado capaz. Quem ou o que poderia guiar o Estado
russo? Homens dotados e ousados; homens ambiciosos e impetuosos, espíritos audaciosos
e autoritários – estes não faltavam. Mas nenhum deles poderia responder às poucas, simples
perguntas para as quais a vida e o destino da Rússia se voltaram.”
D R AG O E D I TO R I A L 303
M Á RC I A S A RC I N E L L I
ébria de frenética alegria, de uma felicidade sem limites, por ter sido libertada da angústia
que a dominava até agora.
“É o fim da tirania! Por mais de vinte anos, Vossa Majestade, a Czarina, traiu e
vendeu a Rússia. Sobre os seus ombros Vós desferistes golpe após golpe, sobre o mesmo
país que a acolheu, simples princesa, de braços abertos. Foi depositada todavia em Vós
a esperança de que não fôsseis como Maria Feodorovna, que em cinquenta anos de vida
na Rússia, sequer esforçou-se para aprender a língua russa... Já este detalhe demonstra
seu completo desprezo em relação ao nosso povo e a sua completa incompreensão de
sua função de czarina. De Vós, entretanto, desde o início, esperava-se uma outra atitude.
“Diante de Vós pôs-se de joelhos um povo de muitos milhões de pessoas,
sedento de esclarecimentos, de instrução e de ver realizarem-se os seus direitos. Mas o que
Vossa Majestade semeou neste terreno a não ser desprezo e ódio? Vossa posição deu-vos
inesgotáveis possibilidades de fazer o bem, e o povo vos teria sido grato e bendiria o vosso
nome por todas as gerações futuras. Mas o que foi feito de todas aquelas reivindicações
contitucionais pelas quais o povo tanto clamou?
“O que Vossa Majestade deu de bom ao país em vinte e cinco anos, além de uma
nova ala no Palácio de Inverno?
“Vossa Majestade disse sempre que era alemã como aquela que os russos
chamaram “a grande”. Vossa autoestima é ridícula! A única coisa que possuís em comum
é o fato de serem alemãs... Mas Catarina esqueceu sua própria origem, e assim fez o
nosso povo... Para assemelhar-se a Catarina a Grande, a Vós faltam compreensão e tato.
Catarina esforçou-se por reunir em torno a si as pessoas mais instruídas de sua época
e percorreu com elas um caminho feito de grandes realizações e de objetivos elevados.
Vossa Majestade só conseguiu encontrar Rasputin; esse aborto moral, essa escória da
humanidade e esse homem dissoluto e criminoso tornou-se o seu mais íntimo amigo,
interlocutor e quem sabe o que mais...
“Vossa Majestade chegou ao trono russo apenas com o horizonte de vossa
cozinha, na qual preparava com as próprias mãos vosso prato preferido, o mingau de
aveia. Não fostes nem por um momento uma verdadeira czarina, inspirada por uma
elevada missão. Não vos ocorreu nem por um momento a ideia de que o povo esperava
de Vós qualquer coisa além de servir-vos, gastar por Vós o dinheiro ganho com esforço,
e por este dever viver sem liberdade ou mesmo na prisão, ou ser exposto a humilhações
e exílio.
“Em um outro país, ou nos primeiros momentos da Revolução, Vós teríeis sido
condenada à morte na câmara de tortura e teríeis terminado vossos dias na fogueira. Mas
o povo russo é superior aos sentimentos de vingança e nutre por Vós apenas desprezo!
E não é a alemã que o povo odeia em Vós, mas a mulher, a pessoa, a czarina! Vós nos
traístes durante vinte anos e no final desfechastes-nos o golpe de misericórdia, mas este
golpe voltou-se contra Vós.
304 D R AG O E D I TO R I A L
A T R AG É D I A D O S RO M A N OV
“Deixai este país, que Vós não tivestes capacidade de compreender e nem de
amar, mas não vos esqueçais de deixar aqui os objetos preciosos que o grão-duque Pavel
Alexandrovitch vos doou para a Coroa.
“Lembrai-vos de que foram comprados com o dinheiro do povo que Vós tanto
desprezais!...
“Que a desonra e o desprezo sejam os últimos a acompanhá-la, os companheiros
de uma traidora!
“Inclino-me profundamente aos combatentes pela nossa liberdade! Honra e
eterna gratidão aos nossos libertadores!
“Uma cidadã finalmente livre,
A artista A .W. Darial.”
•••
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M Á RC I A S A RC I N E L L I
•••
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“Quem agora deseja a paz é um traidor da pátria. Sei que todo soldado leal
também pensa assim. Cumpri o vosso dever, defendei a vossa gloriosa pátria, submetei-vos
ao Governo Provisório, obedecei aos vossos superiores, e pensai que toda a insubor-
dinação, toda a indisciplina, favorece apenas o inimigo.
“Creio firmemente que não se tenha apagado em vossos corações o infinito
amor por vossa grande pátria. Deus vos abençoe, e São Jorge, mártir e portador de vitória,
vos conduza ao triunfo.”
“[O czar] aparentemente estava muito tranquilo, apenas o tremor de sua mão
direita traía sua emoção... e começou a falar como sempre de forma clara e límpida. Sua
emoção era perceptível de quando em quando, pelas pausas artificiais que fazia em seu
discurso. Lembro-me perfeitamente de suas primeiras palavras: ‘Hoje, vejo-vos pela última
vez. É a vontade de Deus e a consequência da minha decisão’.
“Acrescentou que havia abdicado pelo bem da Rússia e que esperava que
vencêssemos a guerra. Agradeceu-nos por havermos servido com tanta fidelidade a ele e
à pátria, e encarregou-nos de servir com fé, consciência e lealdade, também ao Governo
Provisório, e a qualquer custo conduzir à vitória a luta contra o ‘malvado e desleal inimigo’.
“...Atrás do soberano alguém de repente soluçou alto e aquele som bastou para
que em diversos pontos da sala, aqueles que com muito esforço se haviam controlado,
derramassem-se também em lágrimas.
“Alguns choravam baixo, outros soluçavam alto e assoavam o nariz, outros ainda
sibilavam: ‘Silêncio! Assim tornais tudo mais difícil para o soberano!’ O czar... esforçou-se
D R AG O E D I TO R I A L 307
M Á RC I A S A RC I N E L L I
por sorrir, mas não conseguiu, e seu rosto parecia deformado. Com os olhos úmidos de
lágrimas, ele continuou a [cumprimentar os oficiais um a um].
“Muitos oficiais daquele batalhão, feridos mais de uma vez e ainda não
totalmente curados, estavam muito debilitados, tanto que dois deles desmaiaram... No
mesmo instante, um forte e barbudo cossaco... desabou com o rosto no chão.
“O soberano [então] não suportou mais... e retirou-se com passos rápidos...”
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•••
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“...a porta se abriu e a Imperatriz apareceu. Seu rosto estava desfigurado pela
agonia, seus olhos cheios de lágrimas. Ela cambaleava... e eu acorri para ajudá-la a chegar
à escrivaninha entre as janelas. Ela apoiou-se pesadamente no móvel e, tomando minhas
mãos entre as suas, disse entre soluços: ‘Abdiqué!’ Eu não podia crer no que ouvia e
esperei que ela dissesse mais alguma coisa. Suas palavras eram quase inaudíveis: ‘Meu
pobre querido... sozinho lá... o que ele deve ter suportado, meu Deus, o que ele deve ter
sofrido... E eu não estava lá para consolá-lo’...”
“Eu a vi no quarto de Alexei Nikolaievitch... Seu rosto era uma visão terrível,
mas com uma força de vontade quase sobre-humana, ela forçava-se a ir aos quartos das
crianças como de hábito, para que os jovens doentes... de nada suspeitassem.”
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retornaria a Tsarskoe Selo no dia seguinte. Assim que a saúde das crianças
o permitisse, o Governo Provisório enviaria toda a família a Murmansk e
dali seguiriam para a Inglaterra. Finalmente aplacada, Alexandra degela-se
à ideia de poder partir com toda a família para a Inglaterra, e passa a tratar
o General com um arremedo de cortesia.
Decretada a prisão domiciliar da família imperial, os regimentos
que guardavam o Palácio Alexander são substituídos por novas tropas,
filhas da Revolução. O conde Benckendorff, uma das poucas pessoas dentre
amigos, parentes e empregados a compartilhar a prisão dos ex-soberanos,
descreve seus novos guardiães:
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M Á RC I A S A RC I N E L L I
“Eu então lhe expliquei que havia sido formado um Governo Provisório...”
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•••
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M Á RC I A S A RC I N E L L I
apenas para ver-se tratado da mesma forma, até que desistisse e retornasse
ao palácio. Alexei testemunha muitas vezes estas humilhações infligidas ao
pai; embora nada dissesse, seu rosto denunciava sua revolta tornando-se de
repente muito vermelho.
Uma das brincadeiras preferidas dos guardas acontecia durante as
refeições da família, quando tomavam do ex-czar seu prato, alegando que
ele já comera o suficiente. Os soldados também retiravam, com as mãos
imundas, bocados de comida dos pratos das grão-duquesas, para “experi-
mentá-los”.
Indisciplinados, agressivos, sujos e na maior parte do tempo
embriagados, os soldados circulavam livremente pelo palácio, entravam
e saíam dos quartos das grão-duquesas e seguiam-nas quando iam ao
banheiro, em cujas paredes escrevinhavam versos obscenos ou rabiscavam
desenhos pornográficos especialmente para elas.
Inesperada foi a atitude do marinheiro Derevenko, que há oito
anos acompanhava e protegia Alexei. Infectado pela propaganda revolu-
cionária, Derevenko resolve vingar-se dos anos de servidão e passa a tratar
Alexei como a um escravo, ordenando-lhe que lhe calçasse as botas, que
lhe trouxesse “imediatamente” isto ou aquilo, que lhe servisse a bebida
etc., ordens que o menino, perplexo, tentava obedecer. Derevenko é então
afastado, e apenas o fiel marinheiro Nagorny permaneceria a seu lado, até
que os revolucionários o assassinassem por excesso de devoção ao ex-cza-
révitch.
Os filhos de Nicolau estavam naturalmente assustados (sobretudo
Alexei, que vivia sobressaltado, e à noite gritava durante o sono, presa de
terríveis pesadelos), mas todos respeitavam a rotina de atividades sugeridas
por Alexandra e Nicolau, e procuravam manter-se ocupados. Gilliard
ministrava-lhes lições de Francês; Gibbs de Inglês; Nicolau de História e
Geografia; e Alexandra, de Alemão e Religião. Sempre que possível Nicolau
e os filhos faziam exercícios ao ar livre. À noite, o ex-czar lia em voz alta
para a família e todos faziam juntos as suas orações.
Alexandra envelhecia e murchava a olhos vistos e parecia já ter
morrido, como nas grandes tragédias, mortes preparatórias. Macérrima e
grisalha, a ex-czarina desfilava sua majestosa tristeza (na qual, como quer
Racine, reside todo o poder da tragédia) e ruminava seus rancores sempre
renovados.
Todos, entretanto, inspiravam-se na força moral e na coragem
de Nicolau diante da tragédia que viviam. A fé do ex-czar permanecera
inabalada, mesmo quando viu-se despido de toda a sua glória terrena, de
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“Os líderes alemães dirigiram contra a Rússia a mais terrível de todas as armas.
Transportaram Lenin em um vagão selado como um bacilo da peste, da Suíça à Rússia.”
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“As lições começam às nove. Ao meio dia, dou aulas de religião a Tatiana, Maria,
Anastácia e Alexei. Ensino alemão a Tatiana três vezes por semana e uma vez a Maria. [...]
Eu também costuro, bordo e pinto, agora com óculos porque meus olhos estão muito fracos
[...] Leio sempre “bons livros”, adoro a Bíblia, e às vezes leio romances. Estou muito triste
porque só lhes permitem caminhar na frente da casa, atrás da cerca. Mas pelo menos eles
têm ar fresco, e somos gratos por qualquer coisa. Ele [Nicolau] é simplesmente maravilhoso.
Tamanha mansidão, enquanto sofre intensamente pelo país [...] Os outros estão todos bem,
são corajosos e não reclamam, e Alexei é um anjo. [...]
“...uma a uma as coisas terrenas ficam para trás, casas e posses são destruídas, os
amigos desaparecem. Vive-se um dia após o outro. Mas Deus está em tudo, e a natureza
nunca muda, vejo tantas igrejas ao meu redor [...] e montanhas, o mundo maravilhoso.
Volkov empurra a minha cadeira de rodas até a Igreja do outro lado da rua [...] algumas
pessoas fazem reverências e abençoam-nos, outras não ousam [...] Sinto-me velha, tão velha,
mas ainda sou a mãe deste país, e sofro as suas dores [...] e amo-o apesar de seus pecados e
horrores. [...] Deus tenha piedade e salve a Rússia.”
“O dia está lindo [...] As noites de luar são belíssimas [...] mas meus pobres
desafortunados só podem andar para frente e para trás no pátio estreito [...] Estou fazendo
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meias para o pequenino. Ele pediu-me um par porque as suas estão esburacadas [...] Eu
faço tudo agora. As calças de [Nicolau] estão rasgadas e estragadas, as roupas de baixo das
meninas estão em farrapos [...] Tornei-me bastante grisalha.[...]
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“...gostaria de morrer. Não tenho medo da morte, mas tenho tanto medo do que
eles nos farão [...].”
“...Ele está terrivelmente magro e amarelo [...] Sento-me a seu lado o dia inteiro,
segurando suas pernas doloridas, e tornei-me tão magra quanto ele.[...]”
“Ontem, pela primeira vez, ele sorriu e conversou conosco, até jogou cartas, e
dormiu duas horas durante o dia. Está magérrimo, com uns olhos enormes, exatamente
como em Spala. [...]
Novas tropas chegam de todos os lugares [...] Um novo comissário veio de
Moscou, um homem chamado Yakovlev, e hoje o conheceremos [...] Eles insinuam o tempo
todo que teremos que viajar para muito longe ou para o centro da Sibéria [...] A atmosfera
à nossa volta está eletrizada. Sentimos que uma tempestade se aproxima, mas sabemos que
Deus é misericordioso [...] nossas almas estão em paz. O que quer que aconteça terá sido a
vontade de Deus.”
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“Suplico-vos que não vos recuseis. Sou obrigado a executar a ordem. No caso de
vossa recusa, devo levar-vos à força ou perderei a minha posição. Neste caso, o Comitê
provavelmente enviará alguém menos escrupuloso para substituir-me. Se não desejais
partir sozinho, podeis levar convosco as pessoas que quiserdes. Deveis estar prontos para
partir amanhã às quatro horas.”
“Eu também vou. Se eu não estiver lá, eles o forçarão a fazer alguma coisa,
exatamente como fizeram antes.”
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Alexei. O marinheiro foi levado da casa Ipatiev e executado quatro dias mais
tarde. A família não seria informada de sua execução. Agora cabia a Nicolau
carregar nos braços o filho doente todas as tardes, para os breves períodos
que podiam passar no pátio.
Datas de aniversários eram raramente lembradas. Na casa Ipatiev,
Nicolau completa 50 anos, Alexandra 46, Anastácia 17 e Maria 19. Em seu
diário, Nicolau lamentava-se, sobretudo do tédio, de não poder sair e exerci-
tar-se quando quisesse. O ex-czar caminhava de um lado para o outro em seu
quarto sem janelas, como um animal enjaulado.
•••
•••
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“O comunismo russo, por sua crítica violenta de toda virtude formal, completa
a obra revoltada do século XIX ao negar qualquer princípio superior. Aos regicídios do
século XIX sucedem-se os deicídios do século XX, que chegam aos extremos da lógica
revoltada e querem fazer da terra o reino em que o homem será Deus. Começa o reino da
história e, identificando-se unicamente com a sua história, o homem, infiel à sua verdadeira
revolta, de agora em diante estará fadado às revoluções niilistas do século XX que, ao
negarem toda moral, buscam desesperadamente a unidade do gênero humano através
de um extenuante acúmulo de crimes e de guerras. À revolução jacobina, que tentava
instituir a religião da virtude, a fim de nela criar a unidade, suceder-se-ão as revoluções
cínicas, quer de direita quer de esquerda, que vão tentar conquistar a unidade do mundo
para finalmente fundarem a religião do homem. Tudo o que era de Deus será de agora em
diante dado a César.”
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Tem início uma guerra civil, com a revolta de 40.000 tchecos em campos
de prisioneiros de guerra nos Urais. Tchecos e monarqistas unem-se ao
Exército Branco, força antibolchevique formada por socialistas revolucio-
nários que, após a assinatura de Brest-Litovsk, haviam-se separado dos
bolcheviques e estabelecido um governo independente em Samara, no
Volga. O Exército Voluntário Branco avançava na Ucrânia, e na Sibéria os
tchecos tomavam Omsk e dirigiam-se a Ekaterimburgo.
Além da Guerra Civil, a alarmante presença de exércitos estran-
geiros na Rússia ameaçava a sobrevivência do novo governo. Tropas
britânicas, francesas, americanas e japonesas desembarcavam em
Murmansk, Arcangel, Odessa e Vladvostok, reativando o front oriental.
Embora não participassem diretamente da Guerra Civil, a presença das
tropas contribuiria para prolongá-la, fornecendo armas e equipamentos
ao Exército Branco e intensificando a paranoia bolchevique. O Exército
Vermelho derrotaria os Brancos em 1921; o custo de três anos de guerra
civil era estarrecedor: entre soldados e civis, calcula-se uma perda popula-
cional entre 7 e 10 milhões de pessoas. A Guerra Civil também contribuiria
para consolidar a ditadura bolchevique.
Diante da nova conjuntura, o Soviet de Moscou vê-se forçado a
adaptar seus planos. A 12 de julho, comunica aos companheiros dos Urais
que o governo perdera o interesse pelos Romanov e deixava a seu critério o
destino dos prisioneiros. O Soviet dos Urais vota pela imediata execução de
toda a família. Yurovsky recebe ordens de fuzilá-los e destruir as evidências
do massacre.
À meia-noite de 16 de julho, Yurovsky acorda os prisioneiros e
ordena-lhes que vistam suas roupas e dirijam-se ao porão:
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que estava sendo colocada sobre o lençol, abre os olhos e começa a gritar.
Os soldados atiram-se sobre ela aos golpes de baionetas e coronhadas e
logo ela não se movia mais. Os corpos são então enrolados e conduzidos
ao caminhão, inclusive o de Jemmy, o cãozinho de Anastácia, que tivera
a cabeça esmagada por uma coronhada. “Todo o procedimento”, como
Yurovsky descreveria mais tarde, tomara-lhe vinte minutos.
Na floresta, os cadáveres são despidos e revela-se o mistério da
mágica resistência das grão-duquesas e da criada às balas e às baionetas. Em
seus espartilhos rasgados brilhavam fileiras de diamantes que, costurados
ao tecido, formavam uma espécie de colete à prova de balas; no travesseiro
que Demidova apertava contra o peito descobriu-se uma caixa de joias.
Yurovsky ordena que os cadáveres sejam esquartejados para
impedir sua identificação. Após levarem horas a esquartejar os corpos
de Alexandra e Alexei (na verdade Alexei e Demidova, confundida com
Alexandra devido à escuridão e ao fato de estarem todos ensanguentados),
Yurovsky percebe a inviabilidade de seu plano e deixa os machados de
lado. Os soldados dedicam-se então a desfigurar e destruir os corpos,
servindo-se de um tonel de ácido sulfúrico (que julgavam capaz de
consumi-los) e queimando-os com a ajuda de 2 tonéis de gasolina. Em
seguida, fazem explodir várias granadas de mão no poço que seria uma das
sepulturas da família imperial durante quase oitenta anos. Oito dias depois
do massacre, o Exército Branco chegava a Ekaterimburgo para resgatar a
família imperial.
É o fim da paixão de Nicolau e Alexandra, cuja história apresenta
todos os elementos de uma tragédia grega: a inexorabilidade do destino,
as maldições, os oráculos e o sinistro desenlace anunciado por infaustos
presságios e profetas malditos.
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