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PRJÉ-HISTÓRIA

DO CONDICIONAMENTO
FICHA CATALOGRÁFICA

(Preparada pelo Centro de Catalogação-na-Fonte,


Câmara Brasileira do Livro, SP)

Pessotti, Isaias, 1933-


P569p Pré-história do condicionamento. São Paulo, HUCITEC, 1976.
p. ilust.

Bibliografia.

1 . Fisiologia — História. 2. Irritabilidade. 3. Reflexos. I.


Título.

CDD-612.009
-152.322
-612.816
76-0260 NLM-WL106

índices para catálogo sistemático:


1. Comportamento reflexo:Psicologiaexperimental 152.322
2. Fisiologia humana:História: Ciências médicas 612.099
3. Irritabilidade: Funções nervosas: Fisiologia humana;
Ciências médicas 612.816
4. Movimentos reflexos: Fisiologia humana: Ciências
médicas 612.816
Obra publicada
com a colaboração da

U N IVER SID AD E DE SÃ O PAULO

Reitor: Prof. Dr. Orlando Marques de Paiva

EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Presidente: Prof. Dr. Mário Guimarães Ferri


Comissão Editorial:
Presidente: Prof. Dr. Mário Guimarães Ferri (Instituto
de Biociências). Membros: Prof. Dr. Antonio Brito da
Cunha (Instituto de Biociências), Prof. Dr. Carlos da
Silva Lacaz (Faculdade de Medicina), Prof. Dr. Pérsio
de Souza Santos» (Escola Politécnica) e Prof. Dr. Roque
Spencer Maciel de Barros (Faculdade de Educação).
1SAIAS PESSOTTI
Universidade de São Paulo

PRÉ-HISTÓRIA
DO CONDICIONAMENTO

HUCITEC
EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
SÃO PAULO
1976
© Copyright 1976 de Isaias Pessotti. Direitos desta edição reservados pela Editora
de Humanismo, Ciência e Tecnologia HUCITEC Ltda., Rua Beneficência Portu­
guesa, 44, 1.° andar, sala 105, 01033 São Paulo, SP, Brasil. Serviços gráficos
de Artestilo Compositora Gráfica Ltda., Rua Martim Burchard, 112 (compo­
sição) e de DAG, D’Agostino Artes Gráficas Ltda., Rua Maria Cecília, 227/297
(impressão e acabamento).
Em 1965, em Brasilia, Carolina M. Bori informou-
-me que as pesquisas de Pavlov tiveram um precur­
sor. ..
Desde então comecei este trabalho que é, por isso,
dedicado a ela.
SUMÁRIO

O problema da atribuição de originalidade 1


De Galenus (Galeno) a René Descartes 5
De René Descartes a Thomas Willis ............................................................. 17
Dos Iatromecânicos a J. Astruc ..................................................................... 28
Von Haller e a irritabilidade ............................................................................. 55
A polêmica sobre a teoria halleriana ............................................................... 60
De Robert Whytt aos sistematizadores ......................................................... 80
De M. Hall a E. Pflüger ................................................................................. 93
I. M. Séchenov e os “reflexos do cérebro” ................................................... 98
I. Pavlov e o condicionamento dos reflexos .................................................. 113
A contribuição de Bechterew ............................................................................. 123
O reflexo e a análise do comportamento global ............................................ 129
Skinner e o condicionamento de respostas nãoeliciáveis ................................ 134
Bibliografia ........................................................................................................... 142
O PROBLEMA DA ATRIBUIÇÃO
DE ORIGINALIDADE

É DIFÍCIL, EM TRABALHOS COMO O PRESENTE, RESIS-


tir à tentação de procurar as origens primitivas de cada conoeito, hipótese
ou procedimento experimental. Em outros ramos do saber, com abusivas
exegeses chega-se quase sempre a Aristóteles, como se esse já tivesse à
mão, os instrumentos práticos e conceituais desenvolvidos lentamente nos
séculos subseqüentes.
Na história da medicina e da filosofia, querendo-se, é fácil chegar
quase sempre a Hipocrates, embora imensa parte de seus conceitos care­
çam gravemente de rigor, validade e clareza e principalmente de base
experimental, atributos mais possíveis em séculos subseqüentes.
Alguns autores do passado são agraciados com o mérito da criação
original de conceitos, descobertas ou técnicas, a partir de interpretações
defasadas dos seus escritos ou com base na autoridade do historiador que
concede a investidura. A noção ou conceito de movimento reflexo ou
comportamento reflexo é, por exemplo, um assunto no qual vários “pais”
da idéia foram proclamados, de acordo com um conceito de reflexo pró­
prio de cada historiador e fruto da perspectiva histórica e teórica de aná­
lise em que este se coloca.
Não se resiste porém à tentação de encontrar os precursores origi­
nais dos conceitos quando algum autor se atribui com maior ou menor
modéstia a invenção ou descoberta de idéias ou fatos já bem antes inven­
tados ou descobertos, como se do nada houvesse brotado a luz.
Por exemplo, diversos pesquisadores atribuíram a Albrecht von Hal­
ler (1708-1777) a descoberta de dois fatos revolucionários na fisiologia
do movimento: a insensibilidade de alguns órgãos e estruturas e a irritabi­
lidade de outros, principalmente a fibra muscular. Na verdade como se
verá adiante, Haller não descobriu a irritabilidade nem a insensibilidade
mas tentou com incoerência e alguma pressa contestar conhecimentos
solidamente estabelecidos por seus antecessores, servindo-se de experi­
mentos discutíveis embora numerosos.
Segundo Haller suas descobertas eram originais e, mais que isso,
pessoais.

1
A História da “insensibilidade e irritabilidade” nos interessa aqui,
apenas como exemplo dos riscos graves, até certo ponto inevitáveis que
corre o pesquisador ao atribuir a um ou outro autor esta ou aquela con­
tribuição à longa história da teoria dos comportamentos reflexos.
Para numerosos autores, já mesmo no século XVIII, a irritabilidade
“halleriana” não passa de um novo batismo terminológico da “contrati-
lidade” dos iatromecânicos, representados principalmente por Bellini e Ba-
glivi. Um grande fisiologista daquele século, Gianbattista Bianchi (1755)
recorda, com riqueza de informação que Haller fora precedido na experi­
mentação e/ou na teoria por Bellini, Baglivi, Pacchioni, Hecquet, Boer-
haave, Vanswieten, de Gorter, Santorini (discípulo de Baglivi), e ainda
mais remotamente por Hipócrates com seu princípio do impetum faciens.
Bianchi lembra que “cem anos antes” Glisson usara o mesmo termo hal-
leriano para definir a mesma propriedade de contração de fibras orgâ­
nicas. A outra descoberta halleriana, a “insensibilidade” de alguns tecidos
e órgãos, já fora feita por Galeno, segundo Bianchi (1755 p. 29).
Em Nápoles, por volta de 1756 o cirurgião Sanseverini contesta
totalmente a teoria halleriana da irritabilidade como vis insita, respon­
sável pela contração muscular; propõe a velha explicação belliniana de
vis contractilis como mais correta e aproveita sua Dissertado para ironizar
sobre a subserviente apresentação feita por Tissott (1757) da dissertação
inaugural de Haller sobre a irritabilidade, por ver naquela dissertação a
usurpação de méritos que caberiam a Baglivi e Bellini.
Para outro fisiologista, G. Fé Milanese (1757), a “irritabilidade” é
apenas um novo nome, e inadequado, para o que Boerhaave chamara de
contractio insita quando Haller era seu aprendiz de fisiologia. No seu
Ensaio Crítico, Fé Milanese critica frase por frase a Dissertação de Got-
tingen feita por Haller e argumenta que o conceito anterior de “elasti­
cidade” dos iatromecânicos italianos explicava mais lógica e completa­
mente os mesmos efeitos observados por Haller nos seus numerosos
experimentos de vivissecção.
Contra a “originalidade” halleriana escreveu ainda, por volta de
1750, L. M. Girard de Villars, de Paris, argumentando que a idéia mestra
da teoria já fora apresentada por Glisson com várias décadas de antece­
dência.
Como se deduz do que foi dito acima, a atribuição de “originalidade”
é um problema difícil na história da ciência. Mas para que o quadro se
complete vejamos ainda outros depoimentos ainda do século XVIII sobre
a “originalidade” das idéias de Haller, principalmente, a de irritabilidade
dos órgãos como um princípio local da contração (muscular ou não).
Dominicus Vandellius escrevendo em 1756, em Pádua, recusa a
originalidade da “irritabilidade” e lembra algumas conclusões muito
anteriores a que chegara G. B. Morgagni, o grande anatomista, em seus
trabalhos experimentais.

2
De outro lado, Tissott, o tradutor francês da Dissertação de Haller
e admirador incondicional do mesmo, escreveu em 1757 um “discurso
preliminar” no qual compara a importância da descoberta da irritabili­
dade à da lei da gravidade formulada por Newton. Para evidenciar a
novidade do conceito, Tissott analisa as idéias de alguns predecessores
de Haller admitindo que nenhum deles entendera a irritabilidade exata­
mente como Haller. De todo modo, porém, o escrito de Tissott reconduz
o conceito à “irritabilidade” de Glisson, à “elasticidade” de Baglivi
mais remotamente ao princípio hipocrático do dénormon.
G. V. Petrini, tradutor da obra de Haller para o italiano (Roma,
1757) escreveu que a “irritabilidade” halleriana é o princípio unificador
que explica o funcionamento global do organismo tal como a “Atração
do Sr. Newton” explica o movimento do mundo dos planetas e, nesse
sentido, é diversa e integradora das idéias equivalentes de predecessores
sobre o movimento muscular ou fisiologia geral, tais como Malpighi,
Bellini, Morgagni, Fallopio e outros.
Zimmerman (1751) discípulo de Haller, insiste sobre a originali­
dade da definição de Haller sobre a irritabilidade, mas admite que o
conceito fora já utilizado por Glisson e mais recentemente por Boerhaave,
o mestre, contestado, de Haller.
Em se querendo é sempre possível encontrar um precursor para os
diferentes conceitos basilares da fisiologia do movimento reflexo; a polê­
mica sobre a originalidade da contribuição de Haller em tal campo, é
apenas um exemplo dessa possibilidade.
Por outro lado essa polêmica ensina que no terreno considerado é
muito difícil criar do nada um conceito realmente novo ou uma nova
técnica de pesquisa.
No texto que segue ficarão bastante claras essas idéias, sufragadas
pela análise das obras dos principais autores que contribuíram para a
evolução do conceito de “reflexo”.
Dentre os critérios para se atribuir a este ou àquele pesquisador
o mérito da criação de um conceito parece mais seguro o de verificar
quanto a formulação ou teoria apresentada se ajusta ao maior número
de dados experimentais contemporâneos e suficientemente rigorosos.
Nessa linha de pensamento, Harvey, por exemplo, ostentará sempre
o mérito de haver descoberto e formulado o processo de circulação do
sangue, embora precedido na pesquisa experimental por Servet e Colum-
bus, Césalpin e mesmo Fabrizio d’Acquapendente. É o que lembra M.
Bordenave (1756) numa obra pouco conhecida, publicada em Amster-
dam, só com as iniciais do autor e sem menção do editor, evidentemente
sem a licença da santa inquisição. Nela a irritabilidade de Haller é con­
siderada um coroamento da noção iatromecânica de vis contractilis e a
“irritabilidade” designa a relação entre um agente irritante e a conse­
qüente contração do órgão (muscular).

3
Como se verá ao longo deste trabalho a irritabilidade halleriana
restaura um pensamento vitalista na fisiologia do movimento muscular,
em seguida e quase por oposição ao estilo físico-matemático da iatro-
mecânica.
Nesse sentido a teoria halleriana é também um exemplo de um
processo recorrente na história da ciência: aos períodos fecundos em
experimentação e ricos de descobertas discretas segue-se a busca de prin­
cípios integradores dos dados singulares. Tais princípios podem apenas
sistematizar logicamente as descobertas, integrando-as em proposições
mais inclusivas, como fizeram a seu tempo Unzer e Prochaska ou podem
extravasar do material conhecido e estender-se a outras áreas do conheci­
mento, como ocorreu com a irritabilidade halleriana. Do efeito de agentes
irritantes sobre órgãos isolados e sobre partes de animais submetidos à
vivissecção elaborou-se um princípio (imprecisamente definido) que pas­
sou a “explicar” não só a contração muscular mas todo o funcionamento
dos organismos animais e até mesmo, para alguns adeptos mais fervo­
rosos, a própria fisiologia vegetal. Por exemplo, Petrini (1757) vê na
irritabilidade a força motriz “dos movimentos, das paixões e do afeto”.
A extensão das leis obtidas numa área do saber, aos fatos observados
noutros domínios, é o resultado não de generalizações apressadas (como
fizeram mais que Haller alguns de seus entusiásticos adeptos), mas do
desenvolvimento histórico cumulativo da ciência em seus diversos ramos.

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DE GALENUS (GALENO)
A RENÉ DESCARTES

A HISTÓRIA DO REFLEXO ESTÁ ESTREITAMENTE LIGA-


da quer às origens do estudo experimental do comportamento, quer à
formação da fisiologia nervosa. É interessante ressaltar que cada fase da
referida história trouxe problemas e progressos a ambas as ciências. A
mesma possibilidade de estudar cientificamente os processos nervosos ou
as atividades globais do organismo, é devida inicialmente à descoberta da
“função reflexa”. Mas também esta — como veremos — é um exemplo de
como, na história da ciência, o progresso de uma especialidade é útil às
outras: a idéia de função reflexa deriva, por sua vez, das pesquisas sobre
a “irritabilidade” dos tecidos e dos estudos sobre a “contratilidade” mus­
cular. Estes últimos, por sua vez, têm a sua base conceituai estreita­
mente ligada aos trabalhos de Galeno sobre os movimentos musculares
(131-200 d.C.).
Muitas pesquisas sobre a gênese da noção de reflexo atribuem a
René Descartes (1596-1650) o papel de iniciador do desenvolvimento
do conceito como princípio explicativo dos movimentos musculares, ou
pelo menos, o papel de precursor do conceito (Pfliiger, Boring, Skinner,
Canguilhem, Sourry, etc.). Esta posição proeminente de Descartes é
devida principalmente a duas obras: Traité de Vhomme (1632) e Pai-
xões da Alma, chamado também Traité des Passions, nos quais é com­
pendiada sistematicamente a fisiologia cartesiana.
Convém recordar que alguns trechos dessas obras deram ocasião a
interpretações erradas acerca da importância de Descartes na história do
reflexo, como faz notar Canguilhem (1955). Em particular, o artigo 36
do Traité des Passions levou a interpretações controvertidas acerca do
papel da fisiologia mecanicista cartesiana na formação histórica do con­
ceito de reflexo.
Alguns autores encontram no Traité des Passions a origem do con­
ceito e o batismo do termo “reflexo”; outros atribuem à mesma obra a
introdução da noção de ação reflexa, mas não a invenção do termo
“reflexo” (Sherringhton, 1946).
Fearing (1930), admite que o conceito de reflexo está implicado
na teoria cartesiana dos movimentos automáticos dos animais e que no

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citado artigo 36 das Paixões da Alma se encontra por primeira vez o
termo “reflexo” (esprit réfléchis). Por sua vez Fearing se junta a Eckhard
(1881) ao localizar no Traité des Passions o conceito e o termo “reflexo”
(Canguilhem 1955).
A genialidade do pensamento cartesiano torna, de fato, muito fácil
entrever na sua obra implicações nem sempre compatíveis com as reais
condições de experiência e com as possibilidades de formulação teórica
em que se encontrava Descartes.
Foram os pósteros que, partindo de perspectivas diversas de análise
e servindo-se de diferentes instrumentos verbais, quiseram encontrar rela­
ções que refletem mais a fecundidade do pensamento cartesiano como
precursor de um “estilo de pensamento” no campo fisiológico, que uma
verdadeira formulação do conceito de reflexo. De outro lado, a fisiolo­
gia cartesiana, sob muitos aspectos não representa um progresso em rela­
ção aos conhecimentos acumulados pelos pensadores precedentes.
Conseqüentemente, antes de discutir o artigo 36 do Traité des Pas­
sions, examinemos, ainda que brevemente, a situação existente na pri­
meira metade do século XVII em matéria de fisiologia do movimento.
É fácil perceber mesmo à primeira vista, quanto a fisiologia do me­
canismo muscular, de Descartes, se afasta da fisiologia de Galeno, funda­
mentada sobre um grande número de observações experimentais e que
contribuiu imensamente para o desenvolvimento da análise experimental
das atividades reflexas, ao menos até o aparecimento nesse campo, de
Willis, Borelli, Baglivi e Bellini.
Mais do que a outros fatores, deve-se à sua base experimental a soli­
dez das formulações de Galeno.
Em matéria de anatomia e fisiologia a sua posição é contrária à
de Aristóteles. Galeno não se deixou guiar nas suas pesquisas por neces­
sidades lógicas de um sistema filosófico, mas sim pela observação siste­
mática e controlada, o que foi possível graças à introdução da técnica da
vivissecção. Sourry (1899), o chama de pai da fisiologia experimental e,
mesmo sustentando que Galeno como também Aristóteles, jamais disse­
cou um cadáver humano, admite contudo, que ele sacrificou du moins
des hécatombes de m am m ifères... durante suas pesquisas. O mesmo
Galeno, como observa Canguilhem (1955), refere-se às suas numerosas
vivisseções.
Basta que refiramos dois tipos de experiências de Galeno para se
perceber a sua genialidade e importância: o seccionamento sistemático da
medula espinhal em diversos níveis, como técnica para identificar cone­
xões entre o sistema nervoso central e os movimentos musculares, e o
ligamento do nervo como técnica para bloquear a condução do “fluxo
nervoso” através dos nervos distais. Como se sabe, a teoria dos espíritos
animais como elemento de condução do impulso nervoso baseia-se soli-

6
damente, sobre análogas experiências e sobre as próprias observações
de Galeno.
A observação de um amolecimento ou “esvaziamento” do músculo
ligado a extremidade distai do nervo fortemente amarrado por um bar­
bante é o fundamento de toda uma anatomia, segundo a qual, os nervos
seriam tubos ou canais através dos quais corre o “fluxo nervoso” que,
uma vez bloqueado, não enche o músculo que está unido à extremidade
distai.
Para Galeno este fluxo não é um líquido, mas uma substância me­
nos tangível, o pneuma, ar, sopro. O pneuma é um elemento essencial
também para explicar as relações entre alma e corpo; é um agente inter­
mediário entre uma e outro. É produzido pelo coração (pneuma vital)
ou pelo cérebro (pneuma psíquico).
Na alma está a origem de todos os movimentos do corpo, sejam
voluntários ou involuntários; para Galeno estes últimos são movimentos
voluntários inadvertidos (ou inconscientes); a alma racional e volitiva
reside no cérebro, como para Hipócrates, e em oposição a Aristóteles
para o qual a sede da alma era o coração.
O fundamento experimental da teoria de Galeno deve ser procurado
nas perturbações do raciocínio, da sensibilidade e da motricidade, quando
no curso de intervenções cirúrgicas que exigiam a trepanação do crânio,
fazia-se pressão sobre a dura-máter.
A localização da alma, como origem do movimento, no cérebro
implica uma revisão completa da anatomia pós-aristotélica, pois o movi­
mento é explicado, à luz das novas perspectivas, levando em considera­
ção a atividade de um sistema nervoso central complexo, em vez do
sistema cardiocêntrico de Aristóteles. Para esse autor, de fato, a organi­
zação anatômica é muito simples: a alma “que move e que sente” (mo-
vente e sensiente) reside no coração e lhe comunica o fogo divino das
estrelas dando-lhe também, através do éter, calor e movimento. Esse
éter, no quadro da exigência metafísica do motor que transcende ao obje­
to movido, explica o calor cardíaco e os três movimentos do coração
(palpitação, pulsação e respiração).
Sendo relativamente imóvel em relação às extremidades do orga­
nismo e aos órgãos internos, o coração representa o motor central (pri-
mum movens, movido pela alma) e como tal, é a origem anatômica e
funcional das veias e dos nervos. Do coração, o sangue corre para a
periferia e os nervos são acionados “como cabos de catapultas”, segundo
observa Canguilhem (1955). Esse sistema não requer nenhuma elasti­
cidade e por isso os músculos não existem na anatomia aristotélica do
movimento: bastam os ossos, como peças rígidas de uma marionete,
acionada pelos nervos e pelos tendões, os quais funcionam “como os
cordões que fazem mover um boneco” (Pouchet, 1855).

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Ao contrário, Galeno afirma que os músculos são por definição os
órgãos responsáveis pelos movimentos voluntários e involuntários: eles
exercem um único tipo de movimento ativo, a contração, cujas peculia­
ridades serão estudadas a fundo na primeira parte do século XVII.
Os movimentos, para Galeno, dividem-se em dois grupos: “natu­
rais”, ou involuntários, como a pulsação (que envolve veias e artérias,
e que já não é, como pensava Aristóteles, apenas um movimento do
coração), e “animais” ou voluntários.
As divergências mais profundas entre Galeno e Aristóteles sobre
fisiologia do movimento muscular, referem-se exatamente à origem do
movimento.
Para Aristóteles, tal origem é transcendente em relação ao organis­
mo, enquanto para Galeno, os movimentos são imanentes ao corpo e o
movimento resulta portanto de um impetus; como observa Canguilhem
(1955), uma contribuição metodológica de Descartes pode ser conside­
rada a sua oposição a este liame de tipo vitalista entre movimento e
impulso, a partir de uma força interna.
Descartes insistirá na origem “externa” do movimento, ao mesmo
tempo, porém, não transcendente, ou mais exatamente, não metafísica.
O impetus de Galeno parte sempre da alma, mas esta não age
diretamente sobre os músculos: o agente intermediário entre alma e
corpo, como propõem numerosas teorias sobre o movimento, desenvol­
vidas na segunda metade do século XVII, é o “pneuma”, um elemento
ambíguo entre material e imaterial, produzido por dois órgãos: o cora­
ção que elabora o “pneuma vital” e o cérebro, produtor do “pneuma
psíquico”.
O mecanismo do movimento depende da passagem do “pneuma”
do centro de origem aos músculos: esta passagem se dá à maneira de
um sistema hidráulico no qual os nervos funcionam como condutores
aptos a transportar aos músculos o “pneuma” que o cérebro despeja
neles. É o cérebro o verdadeiro motor do organismo animal, por meio
dos seus dois movimentos: a diástole, que se verifica na aspiração do ar
e do “pneuma vital” produzido pelo coração e a sístole, por meio da qual
o coração introduz nos nervos o seu produto final “pneuma psíquico”.
Nessa peculiar visão fisiológica, os nervos não funcionam mais como
as cordas de uma catapulta (Galeno, antes, faz uma clara distinção entre
músculos, tendões e ligamentos), mas sobretudo como tubos que trans­
portam um fluxo, cuja natureza era necessariamente misteriosa naquela
época, perto de 200 d.C.
A descrição dos nervos como tubos é diretamente derivada dos
estudos de Galeno sobre condução nervosa com a sua técnica de amarrar
fortemente um determinado nervo em pontos variáveis a fim de identi­
ficar e localizar as diferentes conexões nervosas. Esta concepção dos
nervos como canais condutores será retomada por Descartes (1596-1650),

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por Willis (1621-1675) e de um modo diverso também por Borelli
(1608-1679).
Galeno conseguiu localizar com muita precisão os centros de origem
desses canais: o cérebro e a medula espinhal. Os nervos são divididos
conforme a sua função de condutores da sensação ou do pneuma: assim
os nervos que unem os órgãos do movimento ao cerebelo e à, medula
espinhal são duros, enquanto os que unem o cérebro às partes sensíveis
do organismo são moles. Os nervos que desempenham indiferentemente
funções sensoriais e motrizes, são ligados aos órgãos que servem igual­
mente, à sensibilidade e ao movimento, e têm assim as duas caracterís­
ticas, dureza e moleza.
Neste breve resumo pode-se observar quanto a fisiologia galênica é
avançada, a ponto de influenciar a pesquisa fisiológica até os séculos
XVI e XVII.
Canguilhem (1955), insiste sobre a importância de uma outra
contribuição de Galeno: a teoria do movimento tônico, pela qual o equi­
líbrio das várias partes do organismo, o tonus muscular, é um efeito do
pneuma entendido como fator de sustentação da estrutura desse micro­
cosmo que é o corpo. Semelhantemente a estrutura e os equilíbrios do
cosmos são atribuídos à ação do “pneuma” cósmico.
A fisiologia galênica marcada por suas bases experimentais, em
oposição à de Hipócrates (460-370 a.C.) que se fundamenta principal­
mente na experiência clínica, será a origem de todo o desenvolvimento
da pesquisa neurofisiológica dos séculos XVI e XVII.
Não se deve estranhar, que Descartes não tome em consideração
grande parte das conclusões de Galeno.
Descartes, instruído na fisiologia de Fernel (1497-1558), de inspí'
ração galênica, no colégio de La Fléche, embora tivesse lido algumas das
obras do grande discípulo de Galeno, Fabrízio d’Acquapendente
(1537-1619), deixou-se guiar poderosamente na sua pesquisa sobre o
movimento muscular, tal como Aristóteles, pelas exigências lógicas intrín­
secas do seu sistema filosófico e não portanto pelas exigências experi­
mentais. É por isso que a teoria cartesiana é uma combinação artificiosa
de proposições aristotélicas, no que diz respeito a origem do movimento,
galênicas para a anatomia do movimento nas suas grandes linhas, ferne-
lianas, a respeito do movimento palpebral e de locomoção.
Quanto à circulação, Descartes se inspira em Harvey (1578-1657)
e particularmente no seu compêndio De Motu Cordis et Sanguinis de
1627, feito segundo a doutrina galênica de seu mestre Fabrízio.
Apenas no que diz respeito aos mecanismos e à estrutura dos órgãos
de movimento, Descartes não pode ignorar as contribuições dos médicos,
na maior parte seguidores das teorias galênicas.
No que diz respeito, ao invés, à formulação da origem do movi­
mento, a teoria de Descartes desconsidera a contribuição de Fabrízio, de
Harvey e também de Galeno, para ater-se mais a Aristóteles, como obser­
va Canguilhem (1955, p. 26).
Enquanto Silvius Dubois (1478-1555) iniciava a atividade cientí­
fica que lhe mereceu o título de “grande galenista”, Leonardo da Vinci
(1452-1519), graças à experiência obtida com numerosas dissecções,
tinha obtido notáveis conhecimentos sobre a anatomia do movimento
muscular: prova disto são os seus desenhos, dos quais alguns chegaram
até nós.
Entre os escritos de Leonardo da Vinci encontram-se duas afirma­
ções que, evidentemente, Descartes ignorou, ao situar no coração a ori­
gem dos movimentos musculares. Diz Leonardo: “o coração em si não
é o princípio da vida: é um recipiente formado por músculos, vivificado
e alimentado pelas artérias e pelas veias, como os outros músculos”.
(Les Carnets de Leonard da Vinci, 1942, Paris, Trad. Servicen I, p. 141);
na p. 154 continua Leonardo: “O coração é um músculo essencial. . .
muito mais poderoso que os outros”.
Esta definição do coração, entendido como simples músculo, base
da teoria da circulação sangüínea que Harvey vai elaborar em 1628,
justificava uma revisão do sistema “cardiocêntrico” de Aristóteles para
explicar o movimento, principalmente levando-se em conta as teorias
formuladas por Galeno sobre a origem do mesmo movimento no sistema
nervoso central.
De fato, quando Descartes coloca a origem do movimento nova­
mente no coração, descuida os ensinamentos e os resultados experi­
mentais não apenas de Galeno, mas também os de alguns galenistas mais
recentes, entre os quais Vesálio (1514-1562) discípulo do tradutor de
Galeno, Gunther de Andernach (essa tradução foi publicada em Paris
em 1528, quando Vesálio tinha apenas 14 anos). Além de Vesálio, mes­
tre de Falloppio, deve-se a Fabrízio, aluno deste último, uma grande
contribuição à fisiologia moderna do movimento.
Fabrízio foi quem por primeiro publicou um estudo sistemático e
profundo com referência particular ao movimento muscular: nesse tra­
balho afirma com precisão que o ponto de origem dos movimentos está
no sistema nervoso central e os movimentos se agrupam em duas classes:
voluntários (característicos dos homens) e espontâneos (próprios dos
animais). Os nervos, para Fabrízio, são canais condutores de um fluxo
nervoso e a evidência experimental reflete ainda a velha técnica de Gale­
no: a ausência de contração muscular na extremidade distai de um nervo
fortemente amarrado.
Uma contribuição ulterior de Fabrízio, que Descartes transcurou,
refere-se às relações fisiológicas que se processam entre nervos e mús­
culos: a noção de que o fluxo não se ramifica por todo o músculo, mas é
suficiente um único ponto de contato para que o fluxo nervoso se difunda
no interior do músculo. Esta difusão, que é a causa física da contração

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muscular, não se realiza, contudo, segundo um paradigma hidráulico,
como quererá em parte Descartes; a difusão do fluxo se dá como a da
luz, more luminis irradiatur.
Tais idéias como brilhantemente ressalta Canguilhem (1955) não
serão aproveitadas por Descartes, enquanto serão desenvolvidas com
admirável intuição, por Thomas Willis (1621-1675). É nessas idéias que,
por sinal, se fundamentará o seu De Motu Musculorum (1670). Willis
ampliará o conceito de irradiação more luminis até elaborar uma teoria
“química” do movimento, segundo a qual a contração do músculo é o
produto do influxo nervoso entendido como uma explosão.
Como se pode deduzir, os princípios de Fabrízio são estranhos,
senão incompatíveis, ao sistema mecanicista e “hidráulico” de Descartes.
O que Descartes extrai da tradição galênica são exatamente os ele­
mentos que lhe permitem dar uma base anatomofisiológica ao seu esque­
ma mecanicista. Tais elementos são: a definição de músculo considerado
como órgão do movimento, a distinção entre movimentos voluntários e
“naturais”, as relações entre nervos e músculos, a distinção entre vias da
sensibilidade e vias motoras (sem contudo, se preocupar com as cuidado­
sas distinções anatômicas sustentadas pelos galenistas) e, finalmente, a
distinção entre “espíritos animais” e “espíritos vitais”.
Do mesmo modo, aceita Descartes da obra de Harvey a teoria da
circulação do sangue, mas, rejeita a teoria do movimento do coração que,
segundo Harvey é um só, ou seja de sístole, a contração muscular, uma
vez que o coração é apenas um músculo. A aceitação dessa hipótese, de
fato, não teria permitido a Descartes atribuir ao coração o papel de
ponto de partida do movimento muscular já que isto implica admitir que
o funcionamento cardíaco resulta de outras causas e representa o produto
de processos que se originam em outros órgãos.
Após este brevíssimo compêndio da fisiologia nervosa pré-cartesiana,
passemos a examinar o artigo 36 do Traité des Passions, no qual alguns
autores, como já se disse, descobriram uma formulação do conceito de
reflexo. Para esta análise nos guiaremos como até aqui fizemos pelo pre­
cioso e monumental trabalho de Georges Canguilhem (1955).
Para Descartes, o organismo humano e animal funciona como uma
máquina: “ ...N enh um movimento pode ser feito seja no corpo de
animais, seja no nosso corpo, se estes corpos não possuem em si todos
os órgãos e instrumentos por meio dos quais aqueles mesmos movi­
mentos poderiam ser efetuados também por uma máquina”. Poderia pare­
cer à primeira vista, que esta posição implica necessariamente uma con­
cepção materialista da origem do movimento muscular. Mas Descartes
prossegue: “ . . .assim como em nós mesmos não é o espírito ou a alma
que movem os membros externos, mas podem apenas determinar o curso
daquele fluxo muito sutil a que chamamos espíritos animais. . . ”

11
É claro desse modo, que para Descartes, o problema de explicar os
movimentos se limita ao simples mecanismo de efetuação e à fisiologia
do influxo nervoso: a origem, direta ou indireta, sempre se encontra na
alma, exceto para alguns comportamentos definidos pela sua automati-
cidade: . .porque entre os movimentos que fazemos existem aqueles
que não dependem de modo algum de nosso espírito, tais são as batidas
do coração, a digestão dos alimentos, a nutrição, a respiração de quem
dorme e também daqueles que estão acordados, o caminhar, o cantar e
outras ações do gênero, posto que feitas sem que o espírito as pense”
(Reponses aux IV èmes Objections; Bridoux, 2e. éd. p. 4 4 7 /8 ).
Esses movimentos automáticos segundo Descartes, existem somente
pelo fato de que os órgãos neles implicados estão “dispostos para algum
movimento”; nesse caso o corpo não necessita de intervenção da alma
para produzi-los. “Tais movimentos — afirma Descartes — não devem
ser atribuídos à alma, mas somente à disposição dos órgãos”. (Descrip­
tion du Corps Humain, Adam e Tannery, X I).
Ao contrário, “os movimentos que chamamos ‘voluntários’ exigem
essencialmente essa disposição dos órgãos, porque não podem ser exci­
tados sem eles, qualquer que seja a nossa vontade a respeito deles, ainda
que seja a alma que os determine” (Description du Corps Humain,
A. T., X I).
Com esta afirmação e outras semelhantes, Descartes inaugura um
estilo de pensamento que terá efeitos muito duradouros sobre a fisiologia
nervosa e, mais longe ainda, sobre a psicologia: referimo-nos à carac­
terização dos comportamentos reflexos como carentes de certos atributos,
à definição negativa do reflexo, como inconsciente, involuntário, não
aprendido.
Efetivamente, entre os movimentos que ele apresenta como exemplo
de automatismos há diversas atividades que cabem na categoria dos
reflexos propriamente ditos como a flexão da perna (reflexo que será
estudado a fundo no nível da fisiologia, em diversos animais decerebra-
dos, especialmente as rãs de Baglivi e sucessores e por Bechterew, já
como reflexo condicionado no cão íntegro), a contração da pupila (des­
crita precedentemente por Galeno), o movimento das pálpebras e a
excreção.
É em atenção a estas intuições de Descartes que alguns autores lhe
conferiram uma posição proeminente na história do conceito de reflexo.
De fato, ele descreve diversos movimentos reflexos, como, antes
dele, tinham feito outros autores; o que o distingue dos outros é que ele
usou o termo “reflexo” ou, mais precisamente, o adjetivo “reflexo”
( esprits réfléchis). É ligando estes dois elementos que pensadores e histo­
riógrafos modernos lhe atribuíram um papel importante na gênese do
conceito de reflexo.

12
O texto fundamental a este respeito é o art. 36 do Traité des Pas-
sions no qual se desenvolve a explicação iniciada no artigo 35. O assunto
deste artigo são as percepções visuais e a função dos espíritos animais,
que discutiremos adiante. Essas percepções e função, assumem, no pro­
cesso, o papel de veículo para transportar à glândula pineal as imagens
formadas pelos nervos ópticos “sobre a superfície interna do cérebro
referente às suas concavidades” (art. 35). Veiculadas pelos espíritos, as
imagens chegam à glândula pineal onde se sobrepõem.
Em Dioptrique V Descartes descreve um pouco diversamente o
processo, que se inicia com a impressão da retina e termina com a for­
mação da imagem ao nível da superfície interna do cérebro, sob forma
de tremores (ébranlements), devidos — sempre de acordo com este últi­
mo texto — à ação das fibras do nervo óptico (Bridoux, p. 216). “Além
disso” — afirma adiante o art. 36 — “se esta figura é muito estranha e
assustadora, isto é, se ela tem muitas relações com coisas que antes resul­
taram em dano ao organismo, isto excita na alma a paixão do temor e,
em seguida a da audácia e, ainda a do medo e do terror dependendo de
se haver obtido proteção, anteriormente, graças à defesa ou à fuga, con­
tra as coisas prejudiciais com as quais está em relação a impressão pre­
sente; pois tudo isto dispõe o cérebro de tal modo, em alguns indivíduos,
que os espíritos refletidos pela imagem que assim se formou sobre a
glândula vão, a partir daí, movimentar-se nos nervos que servem para
mover a cabeça e mover as pernas para fugir e também naqueles nervos
que alargam e restringem de maneira particular os orifícios do coração,
ou que agem desse modo sobre as outras partes das quais lhe chega o
sangue. O sangue, nessas condições, sendo mais rarefeito, que de costume,
envia espíritos ao cérebro, capazes de manter ou intensificar a paixão do
medo” ( Traité des Passions art. 36). [Fig. 1]
É curioso que o exemplo citado por Descartes e associado ao termo
réfléchis não seja, a rigor, um reflexo: pelo contrário, de um ponto de
vista que em seguida será tomado em consideração, o exemplo apresen­
tado diferencia-se dos verdadeiros reflexos descritos por Descartes em
outros pontos dos seus escritos.
O artigo em questão alude vagamente ao emparelhamento de estí­
mulos quando sustenta que “se a figura. . . tem muitas relações com
coisas que foram causa de dano. . . ”; esta figura, além disso, apresenta
uma vaga analogia com o “estímulo condicionado” de Pavlov (1927).
Por isso se poderia ver em Descartes, como em outros autores, o pre­
cursor do condicionamento; esta idéia, todavia, considera somente uns
dos aspectos do reflexo, o estímulo (embora como lembra Skinner (1931)
— a contribuição mais importante de Descartes consiste justamente na
definição de estímulo). Por outra parte, também esta noção não é muito
precisa, segundo o artigo 36 das Passions, pois toda a complicadíssima
resposta envolvida no exemplo, não é, em rigor de termos, efeito direto

13
Esquema da retração da perna em resposta a uma queimadura, segundo Descartes.

do estímulo externo, mas sim de uma cadeia de processos intermediários


os quais, por sua vez, não são determinados pelo estímulo, a não ser
em parte.
Na produção da resposta intervém o cérebro, os espíritos, a glândula
pineal, os nervos, o coração. . . É em consideração deste aspecto que
Canguilhem (1955) acha particularmente estranho que se entreveja nessa
afirmação do artigo 36 um argumento suficiente para conferir a Des­
cartes o papel de precursor do conceito de reflexo.

14
A aguda análise que Canguilhem faz, considera de modo especial
um outro lado do exemplo cartesiano, a resposta. Como a descreve Des­
cartes, a resposta não é segmentária como seria a de um verdadeiro
reflexo: ao invés, trata-se, antes, de um fenômeno de agitação complexa
e geral do organismo, uma conduta que afeta a totalidade do organismo
e não de um movimento segmentário”.
O fato de Descartes usar a palavra réfléchts justamente quando não
descreve um reflexo, poderia indicar que tal conceito não entrava de fato
na neurofisiologia cartesiana. Um apoio a tal argumento é o fato de
que Descartes teria podido muito bem aplicar o termo réfléchis a outros
exemplos de movimentos automáticos por ele descritos, freqüentemente
muito semelhantes aos reflexos ou, reflexos propriamente ditos. Por exem­
plo nas Réponses aux IVes. Objections, Descartes escreve: . .E quan­
do os que caem do alto estendem em primeiro lugar as mãos para prote­
ger a cabeça, não é por conselho da razão que realizam tal ato: esse
não depende em nada de seu espírito, mas somente do fato de que seus
sentidos, tendo sido alarmados pelo perigo presente, provocam mudan­
ças no cérebro, as quais induzem os espíritos animais a passar pelos
nervos na forma necessária para produzir aquele movimento in totum,
como aconteceria numa máquina, e sem que o espírito esteja em condi­
ções de opor-se” (Bridoux, 2.a ed., 4 4 7 /8 ).
Nesse exemplo, a resposta é segmentária e tipicamente reflexa, mas
a origem, embora “sensorial”, não é desencadeada por uma estimulação
periférica definida. Estamos assim, de certo modo, diante de um exem­
plo inverso em relação ao trazido no art. 36: a resposta, aqui, é parcial
e precisa, enquanto o estímulo é externo e vagamente entendido; e,
enquanto no art. 36, no qual a resposta não é reflexa, Descartes usa a
palavra réfléchis, aqui não a usa. Nem sequer a usa no art. 13 do Traitê
des Passions, onde, descrevendo um reflexo perfeito, a piscada quando a
mão de alguém se aproxima do nosso olho, diz: “Mas depende do fato
de que a máquina do nosso organismo é composta de tal forma que o
movimento desta mão em direção aos olhos excita um outro movimento
no nosso cérebro, o qual transporta os espíritos animais aos músculos
que determinam o abaixamento da pálpebra” (Bridoux, art. 13).
Se para Descartes o termo réfléchis fosse associado ao conceito de
reflexo, ou melhor, se fosse um adjetivo empregado para designar pro­
priedades de um “movimento”, “resposta” ou “reação”, este trecho seria
o ponto ideal para empregá-lo: sua presença no art. 36 é esporádica, vaga
e — isto é o importante — constitui um adjetivo do termo “espíritos”
(esprits) e não do termo “atividade”, “movimento” ou similares. Mais
adiante analisaremos brevemente o conceito de “espíritos animais”.
Agora é oportuno fazer um outro comentário relativo ao efeito indi­
reto induzido pelo estímulo, segundo o exemplo do art. 36 do Traité des
Passions. Esse fato é sublinhado por Canguilhem (1955) para pôr em

15
relevo que a origem da resposta, em tal caso, é “central” e não sen-
sorial. “O que caracteriza o movimento reflexo é o fato de ele não pro­
ceder diretamente de um centro, da sede central de um poder imaterial
qualquer; é nisto que, para o gênero dos movimentos, reside a diferença
específica entre o involuntário e o voluntário. Pois bem, segundo a teoria
cartesiana, o movimento que se manifesta na periferia. . . tem sua origem
em um ponto central, o centro dos centros orgânicos, o centro (foycr)
cardíaco (p. 41). Tal comentário se aplica perfeitamente aos movimen­
tos mencionados no art. 36 do Traité des Passions.
A teoria cartesiana é incontestavelmente uma “teoria mecanicista,
mas não é a teoria do reflexo” (p. 41): nisto Canguilhem demonstra o
erro de M. Minkowski (1927) o qual, como tantos outros, atribui a Des­
cartes o mérito de ter estabelecido a noção de reflexo.
Minkowski refere-se claramente ao exemplo acima exposto do art.
13, que representa aliás um verdadeiro reflexo, mas que, de outro lado,
não foi interpretado como tal por Descartes.
A mesma atribuição, de uma origem central, a movimentos involun­
tários reaparece no Traité de Vhomme onde Desicartes faz partir o meca­
nismo que adapta o movimento do corpo a um objeto externo, não do
objeto, mas da glândula pineal. Neste ponto, é oportuno sublinhar que o
conceito de reflexo não exclui necessariamente mecanismos fisiológicos
intermediários entre o estímulo e a resposta, mas exclui, pelo contrário,
que se atribua a ditos mecanismos a origem da resposta subseqüente.
O exemplo do artigo 36, inclusive, não descreve nem uma resposta
automática sequer, no sentido de implicar necessariamente a apresenta­
ção do estímulo; a complexa cadeia de respostas consideradas por Des­
cartes está relacionada, mais que isso, ao estado de ânimo, à rarefação
do sangue e, acontece somente “em alguns indivíduos”. Não se trata por­
tanto de uma resposta, embora complexa como é toda a síndrome descri­
ta pelo artigo 36, produzida necessariamente pelo estímulo, subenten­
dendo uma determinada disposição anatômica dos órgãos envolvidos no
movimento.
Descartes, realmente, tem o merecimento de haver descrito com
clareza os movimentos musculares automáticos, e o fez no quadro de
uma brilhante teoria plenamente mecanicista. Desta se serviram seus
sucessores através de amplas excursões conceituais que teremos oportu­
nidade de examinar à frente, na tentativa de explicar os movimentos invo­
luntários e, às vezes, também o verdadeiro movimento reflexo. Disto,
que representa uma notável contribuição, o mérito cabe a Descartes:
todavia, não nos é permitido atribuir-lhe a prioridade da formulação do
conceito de movimento reflexo, mas somente a perfeita descrição dos
movimentos involuntários automáticos, vistos à luz de uma anatomia e
de uma fisiologia mecanicistas.

16
DE RENÉ DESCARTES
A THOMAS W ILLIS

V e ja m o s agora, b r e v e m e n t e , os e l e m e n t o s f u n -
damentais da neurofisiologia cartesiana: sua concepção a respeito dos
“espíritos animais”, do nervo e do processo de condução do impulso
nervoso.
Para Descartes, os espíritos animais têm o nome de “espíritos” não
porque dotados de natureza espiritual, mas enquanto — como susten­
tará também Thomas Willis mais tarde — representam um produto muito
sutil, comparável aos elementos voláteis, aos gases, ainda que a existên­
cia de substâncias gasosas, familiares a Willis, não encontrasse lugar no
pensamento cartesiano.
Os espíritos cartesianos são, porém, de natureza física, semelhantes
ao vento, e compõem um fluido que corre pelos nervos até os músculos;
o ponto de partida não está no cérebro, embora seja por meio deste que
os espíritos chegam aos nervos.
Todo fluxo tem origem na atividade cardíaca: afinal os espíritos
são sangue, entendidos na sua forma mais sutil, e, por isso são corpos.
Não desenvolvem qualquer ação própria sobre o movimento muscular,
pois movem-se também eles “segundo as leis da natureza”, como assi­
nala o Traité de Vhomme (Bridoux, p. 820).
Os espíritos são como o ar da “cornamusa” e o coração como o
“fole” que impulsiona o ar. As artérias têm, também elas, função seme­
lhante à de uma bomba de ar. Os espíritos são filtrados nas carótidas e o
cérebro se encarrega de distribuí-los aos nervos.
O movimento constante dos espíritos, impulsionados pelo movimen­
to do coração, assegura os movimentos musculares. O fluxo deles asse-
melha-se, por isso, ao escorrer de um fluido, constituído por “corpos”
( Traité des Passions, art. 10) movidos pelo coração, onde nascem e pelas
artérias em direção ao cérebro e que a partir deste se derramam pelos
diferentes canais que os levam aos músculos.
Os canais ou tubos, ao longo dos quais os espíritos chegam aos
músculos, são os nervos. São eles, para Descartes, verdadeiros canais,
membranas de formas tubulares, que contêm feixes de fibras que nascem
do cérebro. Esta anatomia especial dos nervos permite-lhes desenvolver
uma dupla função, pois, como canais, permitem a passagem dos espíritos

17
animais até os músculos e, neste caso, formam simplesmente uma rede
de distribuição do fluxo dos espíritos ao longo das partes do organismo,
em tudo semelhante à rede de distribuição de uma instalação hidráulica.
Essa concepção “hidráulica” da fisiologia cartesiana, refletindo as teorias
da física contemporânea, condicionará inevitavelmente, toda a neurofisio-
logia do autor, fixando precisos limites à sua contribuição para a evolu­
ção do conceito de reflexo.
Uma rede de tubos dentre os quais passa um fluxo que parte de
um centro geral inexaurível não pode comportar, de fato, a idéia de
uma combinação de movimentos centrífugos com movimentos centrípetos
ou mesmo a idéia de uma transformação do impulso centrípeto em cen­
trífugo, dirigido para os músculos da periferia.
É ainda mais estranha ao modelo “hidráulico” de Descartes a idéia
de um fluxo centrífugo compreendido como efeito de um impulso centrí­
peto. Esses princípios essenciais para a formulação do conceito de
reflexo não encontram lugar num sistema “hidráulico” em que todo fluxo
é centrífugo: os espíritos nunca tomam a direção centrípeta: chegados
às partes periféricas do organismo, dissolvem-se através dos poros da
superfície cutânea, por evaporação.
É verdade que Descartes lança uma teoria fisiológica da sensação
segundo a qual existem efeitos que se originam na periferia com destino
ao cérebro e outros órgãos centrais, mas o caminho ao longo do qual
se movem as excitações sensoriais, se bem que impliquem o nervo, não
é o mesmo nem anatomicamente nem fisiologicamente: as sensações che­
gam dos órgãos sensoriais periféricos ao cérebro, graças às fibras, que,
como os espíritos, passam através dos condutos tubulares que são os
nervos.
Os nervos, enquanto tubos através dos quais escorrem os espíritos,
representam as vias motrizes; as vias sensoriais são representadas, em
rigor de termos, não pelos nervos mas pelas fibras que se estendem ao
longo deles. Por outro lado, a condução das sensações não constitui um
fenômeno de propagação da excitação periférica até o sistema nervoso
central, mas uma ação mecânica direta das fibras, entendidas não como
órgãos condutores, mas como fios que são puxados e capazes, portanto,
de produzir efeitos mecânicos sobre o cérebro ao qual estão ligados
mais ou menos diretamente.
É difícil não fazer uma comparação a esta altura, com a concepção
aristotélica do movimento muscular, entendido como efeito de tração por
parte dos nervos, que produz como resultado direto, o movimento dos
membros; todavia Descartes serve-se do princípio de tração mecânica
imediata para explicar, mais que o movimento, a sensação.
Nesta concepção anatomofisiológica em que a sensação e a respos­
ta motora se efetuam em aparelhos e órgãos diferentes e independentes,

18
a idéia de uma resposta produzida por um estímulo externo torna-se
assaz difícil de ser formulada.
Embora o nervo represente a única via para a excitação centrípeta
e para o impulso motor, ambos se desenvolvem em vias intranervosas
diferentes, e notavelmente independentes.
Ainda que Descartes afirme que o fluxo dos espíritos no interior
do tubo nervoso (que se processa entre a parede interna deste e o
feixe de fibras cuja tração produz sobre o cérebro as imagens percepti-
vas) favorece a condução da sensação, tal efeito não implica alguma ati­
vidade própria dos espíritos sobre a condução centrípeta, embora estes
assegurem uma maior tensão aos feixes de fibras, através do seu movi­
mento passivo, facilitando assim a tração delas e por conseguinte, o
resultado da tração sobre o cérebro onde terminam os feixes.
Tal idéia, acerca das vias nervosas revela incontestavelmente uma
notável carência de conhecimentos anatômicos. É de posse desses co­
nhecimentos que Borelli mais tarde estará em condições de invalidar
totalmente a teoria cartesiana da sensibilidade produzida pela tração
das fibras nervosas, entendidas como “conexões sólidas entre o órgão
sensorial e o cérebro” (Canguilhem, 1955).
Finalmente, a respeito dos músculos, a fisiologia do movimento de
Descartes conserva seu enquadramento mecanicista: o músculo fun­
ciona como uma bexiga que, em repouso, se esvasia, de maneira tal que
as suas extremidades se afastam uma da outra: a contração, é produ­
zida pelo enchimento desta “bexiga” por obra dos espíritos animais,
trazidos pelos nervos e impelidos pelo coração: este enchimento provoca
uma dilatação transversal, e em última análise, uma aproximação entre as
duas extremidades do músculo, a qual produz, por tração, os movimen­
tos dos órgãos executores aos quais os músculos estão solidamente uni­
dos, tais como as partes do braço.
Os dados acima mencionados, relativos à concepção neurofisioló-
gica de Descartes, são suficientes para mostrar que, em seu sistema não
há lugar para a idéia de reflexo.
Parece oportuno a esse propósito, citar mais uma vez Canguilhem
(1955): “ . . . os espíritos não desenvolvem nenhuma função, segundo
ele, a não ser na fase centrífuga da produção do movimento involuntário,
pois, o fluxo deles do coração para o músculo é um movimento unidire-
cional, sem retomo”.
Descartes não podia conceber. . . que o transporte de um influxo
qualquer da periferia para o centro pudesse ser revertido de volta ou
“reflexo” ( réflechi) para o seu ponto de partida (p. 51).
Diferentemente de Descartes, Willis formula a sua concepção neuro-
fisiológica livre das exigências de um sistema filosófico, e baseando-a
sobre a sua experiência médica. Willis dispõe, além disso, de notáveis
conhecimentos de física e química, que lhe permitem superar as limita­

19
ções implícitas inevitavelmente no modelo “hidráulico”. Como Descartes,
evita, ademais, os princípios metafísicos para a explicação do movimento
muscular.
Willis afasta-se também, da concepção cardiocêntrica do movimento:
para ele o coração é, como para Harvey, um simples músculo, cuja con­
tração tem que ser explicada, apelando-se a um princípio externo ao
mesmo coração.
Em relação a Descartes procuramos explicar como a formulação do
conceito de reflexo estivesse de certo modo prejudicada pela sua própria
teoria fisiológica, especialmente com referência aos espíritos animais, aos
nervos e à condução dos impulsos nervosos.
Veremos agora como esses elementos fundamentais da neurofisiolo-
gia são diversamente concebidos por Willis, o que permitirá atribuir-lhe
o mérito de ter, por primeiro, formulado o conceito de movimento re­
flexo, um mérito atribuído por alguns a Descartes, por outros a Astruc.
As linhas gerais da fisiologia, de Willis, recordam de perto as idéias
de Harvey, Fabrízio d’Acquapendente e, mais remotamente, de Galeno,
e se referem à função do coração, à origem dos movimentos no sistema
nervoso central e à distinção entre vias sensoriais e vias motoras dos
impulsos nervosos.
Os espíritos animais, para Descartes, eram o resultado de transfor­
mação do sangue aquecido pelo coração. Para Willis, são produzidos no
encéfalo e mais exatamente no cérebro e cerebelo, mas não no coração.
[Fig. 2]
O processo de destilação e volatilização, muito gradual, têm como
origem e fim o sistema nervoso central.
A natureza dos espíritos para Willis não é, como para Descartes, a
de corpúsculos empurrados como as moléculas de água a encher o
músculo produzindo assim a contração: os espíritos animais de Willis são
menos passivos; são constituídos de uma substância inflamável, até explo­
siva.
É nesse ponto que os conhecimentos de química de Willis influen­
ciam suas concepções no campo da fisiologia nervosa. Os seus espíritos,
são partículas dotadas de uma carga energética aptas a explodir e movem-
-se ao longo dos canais nervosos suspensas em um líquido.
A sua propagação porém não acontece segundo as leis físicas da
hidráulica, mas segundo as que regulam a difusão do calor e da luz.
Como nota sutilmente Canguilhem, a atualização dos espíritos, enten­
didos como energia potencial, “a explosão dos espíritos, tem efeitos que
multiplicam as causas segundo regras que não são aquelas aritméticas,
nem as geométricas”, referindo-se ao De motu musculari, a mais impor­
tante obra de Willis sobre o assunto em questão, editada em 1670.
A explosão ocorre graças a um acionamento da matéria explosiva
que é explicado por Willis como efeito de um processo químico algo

20
\

Esquema do mecanismo da contração muscular (da Opera Omnia de Willis, 1681)


proposto por Croone. As linhas pontilhadas marcam o contorno do músculo con­
traído.

21
complicado: os espíritos animais, chegando aos músculos têm aumentada
a sua mobilidade em virtude do sangue arterioso que aí circula: o sangue
permite de fato que às “partículas de sal” (Canguilhem 1955, 63) que
entram na composição dos espíritos, sejam juntadas, graças à irroração
sangüínea do músculo, partículas nitrossulfurosas. Desta fusão resulta uma
mistura explosiva que se acende e explode no interior do músculo, produ­
zindo a contração do mesmo. Esta explosão é análoga à da pólvora.
Tal concepção dos espíritos animais implica um conceito de con­
dução nervosa diverso do cartesiano.
Para Willis, os espíritos não podem ter um movimento unidirecional
do centro para a periferia, isto é, em direção aos músculos dos órgãos
efetores, pois, em tal caso, haveria explosões em cadeia no interior dos
músculos, e se teria uma série ininterrupta de contrações musculares.
O movimento dos espíritos é muito variável: eles se deslocam do
centro à periferia e vice-versa. Os movimentos sofrem uma inversão, seja
por reflexão dos mesmos espíritos, seja por ondulações do líquido que
os transporta, sendo também este passível de inversão nos seus movi­
mentos.
Os nervos não podem, pois, ter nem a estrutura nem a função de
meros condutores tubulares, mas, sempre segundo Willis, possuem carac­
terísticas diversas que permitem movimentos centrípetos-centrífugos ou
ondulatórios dos espíritos.
Os nervos são fibrosos, mas não tubos que envolvem um feixe de
fibras — a idéia de tubo não é compatível com a variabilidade dos movi­
mentos de que são capazes os espíritos: eles se movem em meio às fibras,
se insinuam nos interstícios e espaços vazios existentes ao longo dos
nervos ou ao longo das fibras que nascem independentes e fora desses,
por “epigênese”.
Os espíritos não são conduzidos pelos nervos: eles se movem entre
as fibras dos nervos ou fibras independentes, em todo sentido, longitu­
dinalmente e transversalmente.
O sistema nervoso de Willis não requer necessariamente uma estru­
tura ramificada, pois, as vias nervosas são percorridas em qualquer dire­
ção, por isso a disposição anatômica que Willis lhes atribui é muito diversa
da anatomia cartesiana.
O encéfalo é um centro anatômico do qual se originam os nervos à
maneira de uma irradiação, isto é, a disposição dos nervos é comparada a
um sol, cujo centro é constituído do encéfalo e os raios pelos nervos.
A anatomia do sistema nervoso central, assim como a vê Willis, é
resumida em uma obra especial de título Cerebri Anatome, do qual
Canguilhem publicou os trechos mais importantes.
No texto da Opera omnia (1861) lê-se que se o encéfalo é
entendido não como tronco de uma árvore, mas pro luminar is cujusdam
tamquam solis aut astri corpore accipiatur (cap. X IX .°), se é concebido

22
como o corpo de um astro ou como o sol, o sistema dos nervos é como
uma radiosa concretio que o circunda, portanto um sistema de elementos
que se irradiam a partir de um corpo central.
Willis admite, porém, que entre estes raios, isto é, entre os nervos,
também outras partes do corpo entrosadas com eles encerram espíritos
animais, provenientes a essas últimas através dos corpos nervosos, per
nervorum corpora. .. accipiunt (cap. XIX.0).
Portanto, os espíritos se encontram também em partes não nervosas,
unidas aos nervos, tais como os músculos, onde eles se localizam for­
mando depósitos como lagos, velut aquarum paludes et lacus. Mas embora
em tais órgãos os espíritos permaneçam quase imóveis, sofrem porém,
sempre fluctuationes diversimodas.
Após essa pequena concessão ao modelo hidráulico, Willis passa a
uma retificação na qual revela toda a potência do seu pensamento: “Há
uma grande diversidade entre os movimentos e a consistência dos espíritos
e (os movimentos e a consistência) da água”; em seguida, explica com
exemplos engenhosos, calcados nas noções de projeção luminosa, partí­
culas luminosas e difusão da luz, a distinção a ser feita entre a água em
repouso e os espíritos quase imóveis.
O que se nota imediatamente, é que ele se refere sempre à natureza
inflamável dos espíritos, o que lhe impede imaginar o mecanismo do movi­
mento segundo um esquema pneumático ou hidráulico, como o proposto
por Descartes.
Este último recorre, no Traité de Vhomme a duas analogias, onde
compara os nervos ora às flautas de um órgão, ora aos condutores de
água das fontes mecanizadas. Estas fontes, formadas por conjuntos de
figuras mitológicas, de monstros marinhos e de outras figuras animais que
se moviam, constituíam verdadeiras obras de arte da engenharia hidráu­
lica e era muito provável que a circulação da água servisse de modelo
para uma inteira teoria do movimento muscular, produzido pelo desloca­
mento dos espíritos no interior da rede dos tubos que, segundo Descartes,
constituía o sistema dos nervos. (*)
* Ao menos duas obras especializadas sobre fontes mecânicas apareceram muito
antes que Descartes escrevesse o seu Tratado do Homem (1632) ou as Paixões
da Alma escrito em 1649 em homenagem à rainha Cristina da Suécia e publicado
em 1650. O primeiro trabalho é de Ramelli (1588) e traz o título de As Diversas
e Artificiosas Máquinas. .. citado por Canguilhem (1955); o outro autor foi Salo-
mon de Caus (1624) que publicou As Razões das Forças Moventes com Diversas
Máquinas. . . das grutas e das fontes, citado por Skinner (1931).
A analogia entre o movimento da água em um sistema hidráulico e a repre­
sentação dos fenômenos fisiológicos foi observada por Premuda (1957) em uma
análise dos desenhos anatomo-fisiológicos de Leonardo “ . . . traçando por linea­
mentos toda uma complexa rede de vasos, nervos, tendões e músculos em analogia
com o sistema por ele usado para traduzir graficamente as diretrizes dos movimen­
tos das águas, bizarros e misteriosos, vivazes e cheios de energia, e cujos jogos

23
Willis, ao contrário de Descartes, compara o nervo ao estopim de
uma bomba e a condução do impulso nervoso à propagação rapidíssima
do fogo ao longo daquela “quase como se alguém tivesse acendido, à
distância, depósitos de pólvora para disparar por meio de um estopim”
(per furtem ignarium).
Os impulsos nervosos se propagam instantaneamente como os raios
de luz, velut lucis rádios (Cerebri Anatome, in Opera Omnia, 1681).
É fácil recordar, neste ponto, Fabrízio, por sua vez inspirado em
Galeno, quando afirma que a força motriz se irradia como a luz (more
luminis irradiatur) (Opera Omnia, 1783).
Para Willis, os elementos anatômicos e fisiológicos do processo de
condução do impulso nervoso — como vimos — aplicam-se não somente
aos movimentos automáticos, mas a qualquer movimento, sejam deter­
minados pelo cérebro ou comandados pelo cerebelo. Ambos estes órgãos
centrais são, ao mesmo tempo, centros sensoriais e motores: o primeiro
é responsável pelos movimentos voluntários, enquanto o segundo coman­
da os movimentos involuntários ou naturais.
O que expusemos até agora é suficiente para compreender os ele­
mentos fundamentais da teoria de Willis sobre a efetuação motora.
No que diz respeito aos impulsos centrípetos, isto é, ao mecanismo
da sensação, os objetos externos produzem impressões sobre os órgãos
sensoriais; estas são conduzidas pelos espíritos animais ao corpo caloso
e quando uma parte dos espíritos é refletida nos corpos estriados, resulta
um movimento muscular.
Um elementar arco reflexo se completa portanto, quando os espíritos
portadores do impulso aferente, indo ao encontro dos corpos estriados,
invertem o seu curso e provocam, em virtude do mecanismo procedente-
mente descrito, uma contração muscular ou um movimento automático.
Quando, ao invés, os espíritos procedem dos corpos calosos à córtex,
resultam a percepção e a memória. Dado um fluxo aferente de espíritos
animais podem ocorrer dois eventos: uma percepção e um movimento
automático. É suficiente, para que isso aconteça, que parte dos espíritos
atinja a córtex cerebral e que uma outra parte incida sobre os corpos
estriados.
O movimento reflexo não é, pois, somente um tipo de movimento
involuntário (comandado pelo cerebelo): também os movimentos cons­
cientes ou espontâneos podem ser reflexos, ou seja, podem ser provoca­
dos por um impulso centrípeto proveniente de um receptor. Para que
isto aconteça, basta que ao menos uma parte dos espíritos portadores do

figurados empenham o seu olhar entusiasta não menos que os problemas da hi­
dráulica, da derivação do curso de um rio. . . ”. Um belo exemplo é representado
pela figura XLI apresentada por Premuda. O desenho constitui segundo esse autor,
um estudo hemodinâmico: principalmente na secção central da figura, nota-se clara­
mente o aspecto hidrodinâmico do funcionamento do cone aórtico. [Fig. 3]

24
Representação dos movimentos do sangue, particularmente no cone aórtico, de
Leonardo da Vinci (1942).

impulso da impressão sensorial, atinja os corpos estriados. Em tal caso,


o processo de “incêndio” se propaga more luminis e se conclui com a
explosão intramuscular.
Examinemos agora o trecho de Willis que, para Canguilhem (1955)
representa “a certidão de nascimento” do conceito de reflexo.
No De motu musculari de 1670, que pode ser visto também em
Opera Omnia, 1681, Willis nos oferece uma clara definição do movi­
mento reflexo. Contrariamente ao artigo 36 das Paixões da Alma de Des­
cartes, a definição de Willis é tão completa e explícita que não é neces­
sário nenhum aprofundamento exegético para perceber nestas frases a
formulação do reflexo.
Willis afirma que todos os movimentos têm origem no cérebro ou
no cerebelo actionis origo, sive prim a. .. designado quae semper fit in
cerebro aut cerebello. Em termos mais modernos isso corresponderia a
afirmar que todo movimento depende de um impulso central e é regulado,
na sua execução, pelas propriedades de tal impulso.
Willis expõe em seguida os outros elementos do movimento, ou
seja, a condução do impulso “a transmissão do movimento começado, às
partes móveis”, isto é, aos órgãos efetores, “a qual é realizada pelo des­
locamento dos espíritos no interior dos nervos” (intra nervos).
Um terceiro elemento do movimento, fase final do processo, é repre­
sentado pela força motriz mesma, a mobilização ( exertío) ou ativação
dos espíritos inseridos nas partes motrizes, em uma força de contração
ou de dilatação (exclasdcam). Sucessivamente Willis distingue com base
no esquema traçado, os movimentos “espontâneos” dos “naturais ou
involuntários” : os primeiros com origem cerebral a cérebro. .. procedit,
os outros com início no cerebelo a cerebello... exciíari solet.
Todo movimento, seja voluntário ou involuntário, é direto (uterque
horum vel est directus. . . ) ou é reflexo (. . . vel motus utriusque generis
est reflexus. . . ) . Willis define a este ponto o movimento reflexo, isto é,
“aquele que sendo dependente de uma sensação antecedente como de
uma causa ou de uma ocasião evidente é reenviado ao mesmo ponto
(illico retorquetur. . . ) .
Definidas as propriedades dos movimentos, as suas classes, as carac­
terísticas do movimento reflexo, Willis nos dá dois exemplos: um diz
respeito a um reflexo motor, o outro é relativo às respostas reflexas do
sistema circulatório: “é assim que uma ligeira cócega exercida sobre a
epiderme provoca a vontade de coçar-se, como o aquecimento da região
precordial induz uma pulsação e uma respiração mais intensas”.
Sejam conscientes ou não, estas respostas, desde que provocadas
“por uma sensação como por uma causa” e estendendo-se imediatamente
à periferia, são, para Willis, reflexos.
O reflexo, ou melhor, o movimento muscular reflexo, representa
portanto um retomo do impulso aferente com origem na sensação e
determinado por esta como por uma causa.
Os espíritos existentes no órgão do sentido são impulsionados pelo
objeto “estimulante”. Como nota justamente Canguilhem (1955), não
se trata aqui do efeito periférico de um impulso proveniente de um motor
central, sob comando central ativado a partir da periferia.

26
Um aspecto secundário a ressaltar aqui, é o caráter segmentário das
respostas reflexas segundo Willis. Não somente se pode deduzi-lo dos
exemplos citados em De motu musculari, mas também da leitura de De
Anima brutorum, e particularmente de uma pequena frase que resume
uma descrição minuciosa do movimento reflexo. Diz Willis: “ . . .statim
sensioni motus localis succedit”, o movimento reflexo é sempre restrito
a um segmento do organismo, em outras palavras, é local (localis).

21
DOS IATROMECÂNICOS A J. ASTRUC

G i o v a n n i A l f o n s o B o r e l l i (1608-1679) É o
autor de uma obra que influenciou por muito tempo o desenvolvimento
da fisiologia do movimento.
O trabalho fundamental de Borelli, De motu animalium, publicado
depois da sua morte, em 1680-1, dez anos depois do De motu musculari
de Willis, é a base de toda uma atitude metodológica em relação aos mo­
vimentos dos animais e do homem, designada com o termo de “iatrome-
cânica” ou escola iatromecânica, da qual Borelli pode ser considerado,
com razão, o fundador.
Segundo esta escola, a explicação do movimento deve ser procurada
nas leis da mecânica e da matemática. Não por nada, Borelli tinha sido
professor de matemática em diversas universidades italianas. Ele substitui
os “espíritos” de Descartes e de Willis, por um líquido nervoso, succus
nerveus, que corre através das fibras dos nervos. Estes são constituídos
por feixes de fibras inseridas numa membrana tubular, e o suco não se
movimenta entre as fibras e a membrana, como pensava Descartes, mas
no interior delas, já que são compostas de um material permeável.
Para Willis a chegada dos espíritos ao músculo provocava uma
explosão e a conseqüente contração; isto se dava por causa da compo­
sição química resultante da fusão dos espíritos com partículas do sangue
que irriga os músculos.
Segundo Borelli, o processo é diverso, embora os elementos cons­
titutivos lembrem a teoria de Willis: é a fusão do suco nervoso com o
sangue que provoca em última análise, a contração, mas é a fibra muscular
que se contrai por efeito da fermentação (não mais explosão) daquela
mistura.
A fibra possui uma elasticidade que lhe permite contrair-se e rela­
xar-se: a contração, análoga é de uma corda molhada, não representa
como pode parecer, o resultado de um processo químico, mas é produ­
zida por condições puramente mecânicas. As fibras musculares, são con­
traídas ou relaxadas conforme estejam presentes ou não os elementos
que servem para esticá-las, e que são “como cunhas” no interior dos
nervos.
Ao que se depreende do texto de Borelli, as fibras são esticadas por
essas “cunhas” (produtos da fermentação) como as cordas do violino são

28
esticadas pelo cavalete e se afrouxam quando esse é removido. O suco
nervoso efetua movimentos da periferia para o centro e vice-versa.
É pois, ao longo das mesmas vias per easdem vias que se proces­
sam os dois movimentos opostos, ad extra e ad intra.
Canguilhem (1955), assim sintetiza o sentido dessa curiosa teoria:
“não nos espanta ver Borelli sustentar as duas direções do suco nervoso
e falar de um movimento retrógrado (modus retrogradus), que retoma
ao ponto inicial. De fato, a existência simultânea no mesmo nervo de
dois movimentos, é admissível somente se o movimento numa direção
resulte de outro movimento em sentido contrário”. Para Canguilhem, o
motus retrogradus, é o equivalente do motus reflexus, cuja formulação
não seria consentida “no âmbito de uma fisiologia mecanicista”.
Talvez o aspecto mais significativo da importância de Borelli para
a fisiologia do movimento, está no ter criado um estilo de pensamento
físico-matemático, sobre os fenômenos fisiológicos, que dá um notável
impulso ao trabalho de seus sucessores Bellini e Baglivi, responsáveis
por importantes progressos da teoria do movimento muscular. Dois con­
ceitos de Borelli servirão de base às teorias desses últimos: o de “suco
nervoso” e o da elasticidade da fibra muscular.
Bellini, em particular, desenvolverá a segunda idéia nas suas obras
De contractione naturale, De missione seguinis, e Motus Cordis, textos
escritos no fim do século XVII e incluídos em Opera Omniay editado em
Veneza em 1747, com introdução de dois dos mais importantes experi­
mentadores de então, Bohn e Boerhaave.
Os próprios esquemas gráficos de Bellini e Baglivi sobre sua teoria
mecânica do movimento muscular, lembram os princípios formulados
por Borelli (1680-1). É interessante notar como estes princípios estão
essencial e claramente baseados nos dados fornecidos pela mecânica
física, como se nota nos estudos de Borelli sobre a força da contração
muscular como função da disposição anatômica dos membros: a figura
XCVII, apresentada por Loris Premuda (1957) é um exemplo claro desse
aspecto. [Fig. 4]
Os esquemas gráficos de Bellini, que se encontram no fim da segun­
da parte de Opera Omnia (1747) e principalmente o da Demonstrado
Propositions Mechanicae (1747, 2.a parte, p. 85), apresentam mesmo
uma notável semelhança com os já mencionados estudos de Borelli: esta
semelhança aparece mais acentuada nas explicações de Bellini, que evi­
denciam, quanto à nova linha de pensamento no campo da fisiologia,
seja devida a Borelli.
Quanto à relação entre estímulos e respostas, que mais nos interessa
neste trabalho, a contribuição mais apreciável de Borelli é a teoria do
motus retrogradus, assunto que mais tarde Baglivi desenvolverá a fundo,
graças também à contribuição da doutrina de Bellini sobre a elasticidade
das fibras e dos tecidos nervosos e musculares.

29
Desenhos apresentados por G. Borelli (1680-1), sobre relações entre força da con­
tração muscular (medida em peso deslocado), e comprimento dos artos movidos
pelos músculos.

Lorenzo Bellini (1643-1704), de Florença, é o teórico por exce­


lência da iatromecânica.
O princípio fundamental de toda sua obra é a “elasticidade natural”
dos tecidos, das fibras nervosas e musculares. Tal princípio explica, se­
gundo Bellini, a estimulação, a condução do “suco nervoso” (proposto
por Borelli) através dos nervos, os diversos movimentos do fluxo no
interior da fibra tubular, incluindo também o movimento de reflexão e,
enfim, a contração muscular ou a secreção glandular resultantes da ação
do suco sobre as fibras (musculares) envolvidas em tais reações.
Bellini, na segunda parte de Opera Omnia (1747, p. 85), mostra
claramente como a sua teoria se baseia nas leis da resistência dos sólidos

30
e nas relações de equilíbrio mecânico entre peso e tamanho (propositio
de equilíbrio per pondera reciproca longitudinibus, a quibus pendent).
[Fig. 5]
No De contractione naturali et villo contractili, Bellini expõe deta­
lhadamente o seu conceito de elasticidade dos corpos físicos e de tecidos
de organismos humanos e animais, distinguindo dois estados da matéria
e citando, como exemplo, uma corda que pode esticar-se ou contrair-se
(Illam longitudinem, in quam venit chorda per tractionem ad oppositas
partes apellant distractionem). A distração é devida a uma propriedade
especial (dicitur facultas distrahens) e o movimento através do qual a
corda esticada volta à condição anterior é o motus contractionis ou con-
tractio devido a uma facultas contractrix.
A volta das fibras orgânicas ao tamanho natural opera-se, sempre
que não sofram uma tração, por força natural, espontaneamente, por si
mesmas (1747, p. 232). A vis contractionis, age continuamente no inte­
rior de cada ser vivente (1747, p. 235).
Noutro ponto, Bellini afirma explicitamente que “durante (toda) a
existência dos animais de qualquer espécie, seus músculos e suas partes
sensoriais agem graças à força de contração e de distração”.
Falando da flexibilidade das fibras compostas de matéria sólida,
como o vidro, explica com um engenhoso mecanismo microfísico como
toda reflexão implica contração de um lado da fibra, o interno em relação
ao arco resultante, e distração do outro lado.
A volta das fibras ao comprimento original chama-se reflexio. É
interessante notar quanto esta teoria influenciará os estudos de Bellini e
Baglivi sobre a elasticidade da fibra muscular, na qual repousa toda a
doutrina do fluxo e refluxo do succus nerveus, seja do sistema nervoso
central até o músculo, seja do órgão sensorial ao centro nervoso.
O conceito de reflexio não está aqui relacionado com os movimentos
do impulso nervoso, mas com as “oscilações” da membrana das fibras
nervosas.
Tais “oscilações”, como afirmava Baglivi (Opera Omnia, 1745, p.
768) não são movimentos da fibra considerada como um canal tubular,
mas movimentos de alargamento ou estreitamento diametral da mem­
brana cilíndrica nos seus diversos pontos. Este processo implica uma
direção obrigatória do fluxo interno (succus nerveus nas fibras nervosas
e sangue nos canais arteriais) conforme se trate de um movimento de
fluxo ou de refluxo. Bellini explica o fenômeno (no que se refere a
circulação sangüínea) no De motu cordis (propositio X I, p. 135), fazen­
do referências, muitas vezes, aos ensinamentos de seu mestre Borelli
(preceptor meus).
Ele não distingue bem entre a função motriz e a sensorial: “porque
a membrana elástica é sensível, sofre, tanto pela ação da dor como pela
de um estímulo, contrações e distensões muito rápidas, semelhantes

31
DEMONSTRATIO
Propoiitionis M echanic*.
V Idcris jam , ut arbitrer , le­ G.erit ratio E*ad GfomfofitatxratioM-
ctor Geometra, opus nobi­ busponderum H 1, 1s* fongitudinum
le de Refißentia Solidorum CB>C^i, Dice momentum H, ad momen-
quod nupemrae prodiit a Vi« turn leffe ut £, ad G. Secctur DH,a qua­
ro do&iiiiaio, <amici & moque # ôc cîîm le /, Qaomam momentum H , ad momen­
præceptore meo Alexandra Marchetti tum DH,eft ut pondus H>adpondus DH9
Pills Phil. Ord. Prof, meritiflimo ; vi- feu ad tpfiaequale Ijeu ut Et ad ut
derisquam fnpra mcrira pcrhonoriSce momentum DH, admomentum 1,ita CB.
mciisoratum mcetiam invitum volue- diftantia ad diflantiam C ji , feu ut F, ad
r k , quam ingenue fateatur quid de ca G : ergo etc a quo momentum H , ad mo­
propofitione Mecbanica dcmonftrare mentum /, erst, £, ad G • erat tyc.
Sc ipfe potuerim ; q\io de nomine, ut CoTollarlum.
omatîam e stera, ipfi devindiöümus
haben volo» Hujus igitur evulgandi Hlnc nullo ne&ot 'io dcducitur, quod in-
opufcuïi occaücne dem onitetionem gegwfijfime quitem fed nimis laboriofe a
jam fere aquinquennio a meexcogit3- tot altis ojlenfumcfi, pondera reciproca
tam eo libentius exhibeo, quod ab iis longitudhtibus, a quibus pendet effe <s-
omnibus diferepat, quas Vir ilîe clarif­ qualium momentorsm : tunc enim ratio
iémus »rotulit, & ab eadem mira faci­ momentorum H , t r / , compofita ex ra-
litate deduciîur cclebcrrima apud Me- tionihus ponderum H , a d l , (3»1 , ad
chaaicos propo&io de æquÜibrio per H , qtitf eft proportio dsquahtatis.
pondéra reciproca longkudinibus , a
quibras pendent ; atque adeo fit totius Duo adbuc monendus, Le£lcr, ante«
Mechanic® fundaroentuna. Scias in­ I quam te miíTum velim. Primum : ut
te n ta banc mtls quibufdam principiis ■< exa&e percipiasquicquidin hcc gratis
crà in m oulla axiomatum ope, quae rum ------aâione comprehênditur,
A---------------r— 1 * fciás h$c
£ngula nisîîo negotio demcniWo, fient eodem enno a me habkam orationem
cciam adeo inqiûiitam propofmonem, inauguraiem ftudiorum prima die No-
fo m e n ta æquâlium facultatum cfle ra­ vembris in Scbola Magna, ut appd-
ter fe ut diilanîiæ, a qui bus pendent. lant; & ibidem alteram in Änatoises
S?d de h&slias. Intérim propofirioœm «Äo’oaiio-nem ea tpia die, aua Anato-
hafecvulgato rao;e demonftraîam. micam demonikrationem in& tui.
Momenta wœquaJi&ra faeuhaium ab Alterum: ex iis Omnibus, qu© in £-
U dqtaûhu tengitvtdinibus pw àm ium p&oia nuncupatoria promiíía vides,
ftutt i» roSi&M compofta pondttum, & nullum expedes ame quadriennlum ad
Imgitudtxun • minus, niü immutertur rerum rnc^rum
Ttndeant ab mûqualibus lojpptadini-
vicesi cum enim m theatro Anatomi-
èus C*A>CBjv6qUisks faculties îATM: co pubüce fxm pollidtus, feoaper diver-
iaoa lcdionum feiiem per quaino?, cü2
fiatq; ut pondus l i a i Ijta Eytiâ F, ut
djfiautia Cßyad dsß&atiam CUjtâ F, ad
quinque annos, jsromiítis volo,
quod tarnen eil exiroii kborts, rcquç
aiiis ^acarc pennittens . Cmcmtn ü
cuis Interim aut dubia p?oduect in in-
dicaras opinioacs, aut fc?|fo evidenter
eaÜem arguet, b&beboiiligrauas, êc
agam publice. Vale jam , Sc lludüs
meiibeneprecare.
F s V IR O
Demonstração “ao modopopulär” de uma proposição mecânica sobre o equilíbrio
resultante depesos recíprocos àsextensões das quais pendem, feito por L. Bellini
(1747). Estudos geométricos desse tipo eram a base da teoria iatromecânica da
contração muscular.
32
àquelas que sofrem as cordas musicais que fornecem um agudo: é óbvio,
pois, que através de tais contrações e distensões freqüentíssimas e alter­
nadas. . (p. 243). [Fig. 6]
Uma vez explicada a estimulação e seu esquema de programação,
vejamos então a formulação neurofisiológica de Bellini no seu De san-
guinis missione sobre a condução nervosa, que daí deriva.
Os nervos são canais que contêm o líquido nervoso ou succus ner-
veus; “depois da ação de estímulo, o líquido nervoso move-se em ondas
cada vez mais freqüentes, e então, graças ao movimento de propagação
{derivationis) é conduzida aos nervos de todos os músculos uma quantida­
de de líquido logicamente maior; porque todos os músculos se contraem
mais intensamente quando essa contração se efetua pela ação dos líqui­
dos” (1747, p. 105).
A idéia é retomada, mais adiante, por Bellini e correlacionada com
qualquer líquido (quorumcumque liquidorum): “pois a força máxima
das ondas que se formam nos nervos se dirige para o ponto em que
começa a sensação, isto é. . . a parte estimulada” (p. 105).
Esse trecho resume uma noção fundamental do conceito de reflexo,
assim como a vê Canguilhem (1955) em Willis: o retorno à periferia de
um movimento centrípeto, começado num receptor e dirigido para um
centro nervoso. Mas é exatamente a respeito deste centro nervoso que
Bellini não se exprime com clareza, contrariamente a quanto fará, depois
dele, Baglivi. Também no trecho acima exposto está implícito o reflexus
ou motus retrogradus de Borelli.
É na proposição XIII do De motu cordis que a doutrina é ampla­
mente desenvolvida: nas proposições XVII e XVIII e seguintes, Bellini
introduz um conceito que encontraremos, mais tarde, em Astruc: trata-se
do princípio que diz respeito à direção do fluxo sangüíneo como determi­
nada pelos ângulos de incidência do líquido em relação às paredes das
artérias: Astruc, com efeito, partirá deste princípio para esclarecer a
inversão de direção do fluxo dos “espíritos nervosos” provenientes dos
receptores, transformando-o num impulso eferente de origem cerebral.
Independentemente do notável valor e do alcance teórico dos estudos
de Bellini para a história do conceito de reflexo, sua pesquisa é preciosa,
pelo menos, pela clara e completa teoria da “estimulação” por ele propos­
ta: é neste autor que encontramos, de fato, a primeira definição fisiológica
de estímulo e a primeira análise, quase microscópica, da sensação. Não
deve ser esquecida sua intuição no excluir por primeiro, todo influxo
animista no processo da contração muscular.
Examinaremos em seguida esses dois importantes aspectos da teoria
de Bellini que apresenta também, como outro mérito, uma magnífica
análise do reflexo do espirro, se bem que expressa em termos fisiologica-
mente inadequados. Mais tarde Astruc analisará melhor o mesmo reflexo,
e derivará da sua análise, toda uma teoria do reflexo.

33
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Estudos geométricos de L. Bellini (1747) sobre a estrutura das paredes das artérias,
confrontados com estruturas de paredes de alvenaria. No alto, representação de um
tronco arterial e seus ramos. Para Bellini, tronco e ramos devem ser cônicos por
exigências da condução unidirecional do sangue.

34
Quanto aos estímulos, Bellini nos oferece idéias completamente pes­
soais, fundadas na elasticidade dos tecidos dos órgãos sensoriais e mais
precisamente, das suas membranas exteriores.
Qualquer pressão ou picada ou mesmo qualquer contato com líqui­
dos capazes de introduzir-se através dos poros das membranas, dá início
a um processo de contração que se propaga aos órgãos conexos graças
à ação mecânica de cada parte da membrana sobre as partes vizinhas
ou, graças à ação mecânica direta das contrações da membrana sobre os
órgãos ligados anatomicamente a ela através de contatos físicos asse­
gurados por fibras nervosas, musculares, artérias etc.
Essa idéia leva-nos a pensar num arco reflexo em que a contração
do receptor se propaga a outros órgãos, inclusive um efetor, de maneira
puramente mecânica.
Um estímulo é definido por Bellini no seu De sanguinis missione
(1747, p. 103) como qualquer tensão adicional introduzida na mem­
brana (motio quaedam, momenti majoris) dos receptores. Disto segue-se
que esta excitação, ejus excitatio repercute-se no estado de tensão “da­
quelas partes dos nervos em contato com o ponto” estimulado.
O estímulo pode agir “dissociando partes dos nervos, que estão em
conexão entre si” no ponto estimulado ou quando “as separa por verda­
deira e manifestada divisão”, ou ainda “as pressiona apenas” ou “as sepa­
ra dos contatos naturais existentes anteriormente”.
Pelo que parece, essa definição se refere unicamente aos estímulos
mecânicos, particularmente os usados pelo cirurgião iatromecânico, ou
seja, pressões, picadas, compressões, bloqueios: os chamados “estímulos
médicos”.
Para Bellini, porém, também as outras influências do ambiente
externo podem traduzir-se em análogas ações mecânicas, tanto através
da infusão de substâncias fluidas que alteram a tensão ótima da mem­
brana (motio momenti majoris) inserindo-se nos espaços (inter spatia)
existentes entre as moléculas da membrana e forçando os interstícios
entre as mesmas, ou mesmo cortando o contato físico pré-existente entre
as moléculas. [Fig. 7]
Na definição mencionada entram até os estímulos térmicos e Bellini
nos dá disto um exemplo no seu Sanguinis missione (1747, p. 104) onde
escreve: “um exemplo disto temos nas cordas musicais que, perto do
fogo, logo se contraem forte e imediatamente”. A ação mecânica do
calor (fogo) é explicada por Bellini pelo fato de que “este (calor) absorve
qualquer umidade das cordas”, o que tira dos interstícios interparcelares
das membranas o elemento que separava as partículas que as compõem:
disto deriva um encolhimento das cordas com repercussão nas partes que
têm contato físico entre si.

35
Fato análogo ocorre quando colocamos um objeto quente perto de
um receptor de um organismo humano ou animal e um fenômeno pouco
diferente é verificado pela apresentação de estímulos de diferente tem­
peratura (diversa da que tem o órgão estimulado).
Outros estímulos agem de maneira muito semelhante sobre as partí­
culas das membranas, pela infusão nos interstícios: é o caso dos ácidos e
de outros líquidos.
A sensação é, pois, um processo mecânico periférico, às vezes mi­
croscópico, de vibrações (succussionibus), isto é, de sucessivas altera­
ções da coesão superficial (entre as moléculas das membranas) em dire­
ção a uma tensão normal, ou para uma tensão maior ou menor: tais
vibrações dependem da ação mais ou menos duradoura dos estímulos.
São vibrações que “sofrem as partes sensoriais” (sentientes), enquanto
“percebem” (dum sentiunt), isto é, “freqüentíssimas contrações e dis­
tensões”.
A doutrina do estímulo vai além, na proposição LIV do De con-
tractione naturali (1747, p. 243), onde Bellini propõe sua concepção de
limiar do estímulo: “quando as citadas contrações e distensões estão
dotadas de maior ímpeto. . . mais intensa é a sensação”. Essa se propaga
tanto por ação mecânica das contrações do receptor sobre os pontos que
têm contato físico com ele, como pela ação de fluidos e humores diver­
sos existentes nas diversas partes do organismo. Assim, a sensação desem­
boca quase sempre num processo de excreção, expressio, sempre que nos
espaços existentes em um determinado órgão exista algo de eliminável
(excretável) aliquid expressibile (p. 243); sensações, de um lado, con­
trações musculares e secreções, de outro. Os dois pólos do reflexo são,
para Bellini, expressões de uma facultas contractilis ou vis contractilis.
É dentro desse esquema que o reflexo do espirro é descrito pelo
mesmo Bellini de modo completo, ainda que sob uma concepção inevi­
tavelmente mecânica mas mais sistemática e clara que a dos autores pre­
cedentes que se ocuparam do mesmo exemplo.
Na página 108 do trabalho já citado, escrevendo sobre os diversos
estímulos, Bellini escreve: “Admitamos um estímulo qualquer sem fer­
mento ou uma coisa qualquer que, esfregada no nariz, provoque (moveat)
o espirro ou o muco . . . é evidente que aquele espirro expele matéria
através das vias de descarga ( emissarium) naturais, como são as nari­
nas . . Bellini continua depois: “Porque, esta, como todas as coisas
estimulantes, faz com que uma membrana qualquer se contraia intensa­
mente de modo que qualquer coisa possa ser expremida, a qual, fluindo,
se espalhará onde puder. . . até aos vasos . . . às membranas . . . às suas
superfícies . . . aos poros” (p. 108).
A partir do que expusemos, parece justificada a afirmação de que
a contribuição pessoal de Bellini à história do reflexo se resume na teoria
da estimulação; na pesquisa, nem sempre estritamente experimental,
sobre movimentos do suco nervoso e na exclusão da intervenção da alma

36
Esquemas de estudos geométricos de L. Bellini (1747) para explicar a condução
de fluidos através de canais cujas paredes são contráteis. A Figura II mostra uma
estrutura que, segundo o autor, pode representar uma artéria ou veia ou a mem­
brana tubular dos nervos. Notem-se as variações de diâmetro da membrana, cha­
madas oscillationes, responsáveis pela condução do “fluido nervoso”. À esquerda,
esquema da condução nervosa nas estruturas tubulares da medula espinal.

37
no processo do movimento muscular. Quanto a este último ponto, Belli­
ni se expressa com uma clareza particular no seu De contractions naturali
(1747): a alma não tem função alguma no que diz respeito a contração
(et in contractions negotio nullas habere posset anima partes)\ o texto
prossegue afirmando “que a contração é algo de imutável extrinseca-
mente e que não tem nenhuma relação com a alma ou com qualquer
outro princípio in terior...” (p. 237).
Na mesma obra Bellini se utiliza de uma expressão que antecipa
de dez anos o famoso princípio halleriano da vis insita: Contractions vis
insitum quidam rebus. . ., a força da contração entendida como algo
intrínseco “as coisas”.

Giorgio Baglivi (1668-1707) aperfeiçoou a teoria iatromecânica


do movimento, dando-lhe uma imponente base experimental, ausente
na obra de Bellini. [Fig. 8]
Também segundo Baglivi os espíritos animais, como já haviam
afirmado Borelli (1680) e Bellini, não existem: a propagação do
impulso nervoso se efetua pela deslocação de um fluxo nervoso seme­
lhante ao sucus nerveus de Borelli e ao liquidus nervorum de Bellini.
As idéias de Baglivi são analisadas e ampliadas por Santorini na
edição da Opera Ommia de Baglivi, de 1745: in fibris suponitur flui-
dum, seu nerveus succus (p. 761). Com Baglivi, se mantém, em linhas
gerais, a teoria mecânica da contração formulada por Borelli. Todavia,
quanto à origem anatomofisiológica do movimento, Baglivi lembra Ga­
leno, ao fixar nos movimentos da dura-máter o ponto de partida do
fluxo nervoso. Os liames físicos entre fibras nervosas e cérebro e entre
este e a dura-máter, fazem com que os movimentos desta produzam
oscilações também nas fibras musculares; oscilações sistálticas da dura-
-máter impelem o fluxo nervoso aos músculos executores, mas “por uma
espécie de ondulações, os movimentos sistálticos das partes se refletem
e incidem sobre a dura-máter e são impelidos desta sobre as partes,
pela contínua flutuação de tais movimentos”.
A citação é do De fibra motrice de Baglivi (1700), na edição latina
da Opera Omnia. Baglivi fala muito, no De fibra motrice specimen
seguindo a linha belliniana, sobre o processo de contração dos tecidos,
em particular sobre a das paredes das fibras muscular e nervosa. É nesta
obra que define a “oscilação contínua” das paredes das fibras.
Não se encontram diferenças substanciais entre a doutrina de Bellini
e a de Baglivi sobre o movimento de contração e de oscilação das
membranas. São muito freqüentes nas obras deste, referências à dou­
trina de Borelli e Bellini.
Na Dissertatio I de anatome fibrarum (1747), Baglivi expõe a
estrutura microscópica de diversos tipos de fibras e, embora em linhas
gerais, suas idéias sobre fibras, reflitam as de Bellini, ao contrário deste

38
GEORGII
BAGLIVI
A íe d ie . T h e o r ie , i n K o m a n o A r c h ily c . F r o f. S o c ie t a l i s
K e g ix L o n â in e n fis , A c o d e m . I m p .
L e o p . & c . C o lle g x

OPERA OMNIA
MEDICQ-PRACTICA ET ANATÔMICA.
EDIT 10 A CCU R A T IS S I M A )
C u i prarter Di&rtatioaes , & alios Tra&atu* prxcedentibui
Editionibus adjunclos, item cjjfdcm G e o r g 11 B a g l i v i
Cânones de Medicinâ ioJidonlm >DiiTcrtanonem de progreffio-
rie Terrx-motûs i de Syitcmate & uiu motûs Solidorum in cor­
pore animato , de Vegctatione Lapidam fie analogifmo
circulations maris ad circulationcm Sanguipis :
ACCESSIT
Rerum Vcrberumy* cofiofißimms »
NEC NON
J, D. Opu feula quatuor ; de Straâurâ & moto fibrjj 5 de Nu*
S a n t o rin i
tritioae animali , de Hcmorrhoïdibus \ & de Catameniis.


LUGDUNI.
Smnptibus P E T R I B R U Y S E T & Sociorum#
M. D C C X L V .
CV M P R I V I L E G I O REGIS*
Frontispício da Opera Omnia de Baglivi, editada em Leiden em 1745, com um
“copiosíssimo índice de coisas e palavras”.

ele recorre muito a dados experimentais e observações casuais para


basear as suas formulações.
Na figura II da Dissertatio, Baglivi apresenta uma curiosa ilus­
tração de como os corpúsculos sangüíneos globulos sphaericos se movem
entre as fibras musculares produzindo nelas “contrações, ondulações e
contrações das partes conexas com as fibras musculares” (p. 406).
Baglivi pergunta-se, depois, qual a contribuição do suco nervoso
(fluidum nervorum) para a contração muscular: sua resposta a tal
problema se liga a Fabrizio, quando compara o fluxo aos raios solares;
lembra também Willis, quando insiste na tenuíssima estrutura desse fluxo
“um impulso acionado “a phantasia”, com incrível velocidade); liga-se,
enfim, a Borelli e Willis, quando vislumbra a causa imediata da contração
muscular na mistura entre o sangue existente no músculo e o fluxo nervo­
so. Dessa mistura deriva uma irradiação elástica, quadam elastica irradia-
íione que em virtude de simples ação mecânica, altera a superfície dos
glóbulos do sangue e, por conseguinte, também seu volume alterando
assim os interstícios existentes entre as fibras do músculo e, conseqüen­
temente, a posição das diversas fibras e seu recíproco equilíbrio.
Esse processo, pelos princípios de elasticidade dos tecidos, obriga
as fibras a se contraírem, provocando o movimento muscular.
O aspecto novo é aqui representado pela substituição da idéia um
pouco vaga de Borelli, que explicava o processo de deslocamento das
fibras no interior do músculo como produto da ação de partículas que
as separavam, funcionando como cunhas.
Baglivi fornece uma explicação mais precisa e detalhada, elimi­
nando as “cunhas”. Em lugar delas propõe a teoria das alterações de
volume dos corpúsculos do sangue, provocadas pela ação do fluxo
nervoso sobre as suas membranas; da contração das fibras resulta uma
“ondulação e tensão no interior do músculo, donde se origina uma re­
dução das extremidades e o levantamento dos pesos ligados ao músculo”
( De anatome fibrarum, p. 406). Sem o influxo nervoso, os músculos
estariam perenemente nas condições de distensão e submetidos apenas
a oscilações ligeiras. [Fig. 9, 10, 11]
Graças à força dos espíritos chegados ao músculo, superaddito
spiritus, uma parte do organismo logo se movimenta e levanta pesos.
É difícil não pensar, neste ponto, nos desenhos de Borelli, publicados
anteriormente, que ilustravam as relações entre diferentes pesos e as
forças musculares necessárias para elevá-los.
O conceito de nervo e da sua função, relativamente à sensação, é
exposto por Baglivi em forma conclusiva nos corolários e postulados
do primeiro livro do De fibra motrice ( 1700 ): “as membranas se ori­
ginam dos nervos diretamente ou de membranas vizinhas: entre as
membranas e as vísceras constituídas por membranas existe um único
consenso (consensu), uma só respiração (conspirado) e uma só sen­
sibilidade (consentientia) ” ( 1745 ).
Aqui começa a tomar forma a idéia de “simpatia” que ocupará
Astruc mais tarde.
Os nervos não são órgãos da sensação pelas suas propriedades
medulares, mas graças à sua superfície membranosa.

40
404 D* Ana tome Yibrarum.
Nec mireris fanguinem iolidi vices gcrere in mocu muiculorum ; narr,
tota illius maiTa , congeries re vera aggregatum folidorum corporum
in aqueo menftruo folucorum , & natantium ; lulphuris , inquam , falium
varii generis , terra , elobulorum rubrorum , ftriarum nucritiarum , &
milie aliarum particufarum , quas ab acre , íoíTilibus , & vcgetabiíibus
continuò haurit , & in fmu fovet. Unde igni appofnus fanguis , evaporata
paucâ aqus copiA , ftatim in durum corpus concrefcic.
In prima feme im a probatum eft , hbrarum funiculot, fuper fanguinis
gmtuias , veluti fuper cotid cm trochleas tra&os, magnam vim in mota
scquirere. At quoniam in mechanicis videmus trochleas in abfolvcndis
Eiosibus fixo hsrrere principio , nec perenni impuifu Kinc inde excarrcre,
m fanguinis gutnala per fibrarum fpatia j ut hoc vitetur abfurduta , co-
ffitavimus . fanguiuem fcytalarum ad inftar moveri circa fibras, iiíHemquc
Stum impulfum continuò communicarc.
Scjtaia » five cylindri Lignei , quos vulgò vocant » Cssrmli, duplick func
generis , rotaus , & fimplices. Rot a t* dicuntur Ariftoielu > fimplices
b earumqac vires ad leges axis in peritrochio rcducuntur. Sic
iiaq ac b
I. Figura.

In q ca honzcntis ptantzm A B : fcytalar dose non rotate C D : pon iirs


isRpo&om E tangens lllas in pun&is F , G •, Scytahe verò tangentes pla-
cssn in pun&is H L Pellatur à potentia quapiaxn pond us E ad anteriora ,
rotabuntur quoque fcytalae ad aiueriora , & pars qusdam fcytala? , in qua
fit conta&us, afeendet in G , alia defcendet in I , quia nihil morum iir/pc-
dis j naila namqae ponder is * nulla fcytalarum, nulla demum plant hers»
Eomalis invicem of&nfio fuccedit. Indê redditur quoque ratio , cur faci-
lius geftentur onera per fcytalas, quàm per currus j nam rctat curruum
duas fuperare debent refiftentias ^ nempe conta&um a x is , circa quem
Tolvumur , & plani horizomalis : contra fcytala: conta&um plani hori-
xontalis folummodò. Prxterea cum (cytalarum centra ab horizontis piano
ffqualitcs d i S m » poadus korizomi aw iidiflaaccr, ac yeluú medulando-

Esquema mecânico da contração muscular segundo Baglivi (1745) e explicações


da figura. Um piano horizontal apoiado sobre roletes e suportando um certo peso
exerce pressões diferentes sobre os vários pontos dos roletes e do plano horizontal
em que se apóiam.

41
E t i c Morbts Solidorum, 405
Éve per fubfulrus movebitur , ejufque gravitatis centrum in quocumque
motu nequaquàm elevabitur. Et fi ve&es addantur fcytalis , ingeutia
qiurque pondera valid iiïtmc tune à fcytalis propellentur.
His notatis , fupponimus, fanguinis malum , per fibrarum mufculariutn
fpatia trajeâam , ex infinicis minimis gtobuiis foîidis componi , qui fcyta-
larum ad inftar per ilia fpatia volvuntur. Et quia velocitcr currunt, im-
preílb illis à corde pulfame vehemcmiiïîmo imperu , neceilè eft , ut fibra-
rum fila ad contaâum globulorum currentium premantur , & undulando
veluti crifpentur : qux crifpatura , quoniam maximè fenfibilis eft in me­
dio mufeuli, ubi fanguis veiociùs cu rrit, fequitur inde, ut extrema fibra-
rum fingularum verfus medium contrahancur , breviora fiant, & appofita
íubievent ofla. Cui quidem velociori fanguinis progrefïui per media muf*
culorum fpatia v in quibus nulla fieri de be bat fecretio, ut providus paturæ
genius profpiceret » vaforum per mufculos produ&orum diâmetros non
multùm igxquales ordinavit, nec vaíôrum ramos nimiùm multiplicari »
ut pote que currentis fanguinis velocitatem fummoperè minuerent , ac
retardaient, uc in vifeeribus contingit, in quibus , quoniam ad fecretiones
tardior fanguinis motus requirebatur , vafa inequalibus diametris in
infinitos penè ramos multiplicaca , de contorta diftribuit. Qux ut mcliùs
intelligantur concipiemus in 1 . figura ,

I I. Figura

nufcnlum fimplicem , & in eo fibras  B C D , &c. ac per media fpatia


grcbülos fanguinis currentes , & à continuo cordis impetu proputft», lbi
duplex globulorum conta&usin fuperion ,& inferiori fibra , ac per con*
fequens duplex preíTio, feu undulatio confpicirur. Arque fi globuli cur-
lentes c)ufdem fuerint diametri ut in 1 . figura, tunc undulatio erit lenis ,
ic sequalis , ÔCpauca extremorum contra&io : Si verò mutentuf diatnerri ,
ftatim oritur in*qualicas undulationum in fibris , tenfio major in medio ,
major que extremotum contraâio , ut in 5. figura.

E c e 3,

Esquema de Baglivi (1745) mostrando a estrutura muscular com fibras e “glóbulos


do sangue”. “Se os diâmetros dos glóbulos se alteram começa imediatamente uma
desigualdade de ondulações nas fibras, uma tensão maior no meio e uma contração
maior das extremidades”«

42
D i An/Home Fit ramm

III. Figura.

Denique i\ maxima contingat diametrorum in globulis in*qualitas 9


ôcex rotundis cvadant fphaeroidaci, íeu ovalcs , aut variis praíditi figuris ,
tunc cum majori diâmetro tangunt fibram A B , h*c magis tenditur : crif-
patur , 5c in.xqualis redditur , cum mi non, deprimitur , & concidit, & ex
tnajoribus hiícc undulationibus major vis , tenfio , majorque cxtremorum
decurtatio fuccedit, uc videre cít in 4. figura.

Jr ? T T r ^ O r p ~ T L i L í r r r T í ^

Moras globulorum per fibras facilis eft , 6c expeditus; nam cum eof
fupponamus fphzricos , conta&us illorum cum fibra minimus erk , 6c
moment anctis ( ot contaôus rotac cum plano horizontali) qualem nulU
figura , qu2 conciperetar , poiTet efficcre , ac per confcquens ex mínimo
contachi maxima fecilitas , velocitafque motus refultat, quia minimum
eft impedimentum , quod fuperari debet i Et ideò facilius , ut diximus ,
pondera moventur per fcytalas, quàm per currms.
Hadenus examinaram eü, quosaodò,cx contaâru globulorum fanguinis
currencium ,íb n e crifpentur, contrahantur, 3c contraóbone fua annexas
partes elevent: inva&iganáum nene eííct, quid fluidum nervorum confie-
rat ad hoc opus. De qua re admôdàm düScili, ut alàqua dicam, puto illud
ad lacertorum motum nihil aliod prs&are, quàm mutationem contac-
tuum in globulis fanguineiaiaduoendo* ttldiaám ad motum determina*
tionem ate rre ; Nam eufe^ik fummopere tenue , claíhcum , 6c radiis lucis
affine, íncredibili edentate à phantafia impulfum , cum fanguine muf-
rcli jam jam mo vendi mifcetur , & quadam elafika irradiatione 5 cum
pccpofcione tamen, 6c .xquiUbrio , minima ejus mucat, & alterar, muta-
taqoe mimmorum figurâ, tnut&atur çtiam diam etri: Et ita interpostas
fibras diametrorum hnibus alterando , premendo, urgendo , crifpatunan
tenfiossemqtse in medio mufculi producunt, indeque oritur extremorum
decurtado 9 6c appenforum ponderum elatio. Oritur etiam continuit*
nifua ad contra&ionem , ob quem mufculi fpoete fua perpetuo moveren-
tur , nifi antaconiAa contrarii vim coerceret, 6c arquilibraret , qua vi pec
fuperaddiros fuperata fpiritus, ftatim pars movetur, clevatque ponders

Desenhos apresentados por Baglivi (1745) mostrando como os glóbulos se movem


entre as fibras produzindo nelas “oscilação” e, por conseqüência, contração. As
figuras representam uma aplicação anatômica dos princípios mecânicos ilustrados
nas duas figuras precedentes.

43
Escreve Baglivi a esse respeito: “Só o sistema das membranas
sente (percebe): seus nervos são, além do mais, sentidos agudos, não
em virtude da sua substância medular, mas das membranas que os
envolvem”, (p. 282).
Essa teoria que admite, para o mesmo nervo, duas vias diferentes
para os impulsos aferentes e eferentes nos faz voltar a Descartes. A
divergência consiste no fato de que, enquanto para Baglivi também o
fluxo eferente do suco nervoso é controlado pelas oscilações diametrais
da membrana do nervo ao longo de toda sua extensão (como afirmava
Bellini), Descartes não chegara a tal conclusão.
Em numerosas passagens da sua obra, Baglivi expõe a teoria das
oscilações e da propagação das contrações, por exemplo no capítulo
VIII do De fibra motrice. Aí apresenta interessantes exemplos relati­
vos aos esforços dos atletas, que são analisados em termos de elastici­
dade, particularmente do diafragma e de outros órgãos internos.
O movimento de oscilação é chamado sistáltico e é aplicado por
Baglivi (cap. IX) a todas as membranas viscerais e fibrosas, tanto
musculares como nervosas, quer dizer a todo o sistema de membranas
acima citado. Essa extensão não indica somente a propagação pela
repercussão da sensação produzida por um estímulo: de fato a esti­
mulação, para Bellini, produz uma primeira contração ou distensão de
um receptor externo ou interno. Essa contração (ou oscilação, caso se
trate de fibras nervosas, vasculares ou musculares) não somente pro­
duz uma “célebre propagação” mas sofre também “alterações” e “suces­
sões”, produzidas em cadeia “de uma fibra para outra” ou “de fibras
membranosas dos vasos a fibras membranosas de glândulas, vísceras e
pele” (p. 335).
Depois de ter resumido as afirmações mais significativas de Baglivi
sobre o mecanismo de propagção dos movimentos de contração e de
oscilação, passamos agora a examinar a contribuição, bastante original,
oferecida pelo autor à evolução da teoria do movimento.
Referimo-nos especificamente à sua doutrina de dura-máter enten­
dida como centro de origem de todo movimento: se Galeno tinha feito
observações ocasionais sobre o efeito da compressão da dura-máter,
Baglivi realizou experimentos sistemáticos sobre animais, assim como
sobre indivíduos humanos feridos. No corolário VII do livro I de De
fibra motrice Baglivi afirma: “a dura meninge é o máximo motor do
corpo humano. A sua oscilação perpétua promove e orienta, em diver­
sas maneiras, a secreção dos fluidos; comanda as parte sólidas e as
fluidas: Os movimentos de cada uma das partes, que dela recebem
o impulso, dependem também das suas leis” (p. 287). Esse trecho é
completado pelo XIII corolário, em que é especificada a ação efetuada
pela dura-máter sobre os movimentos dos líquidos e das partes sólidas,
e a sua função de motor básico das contrações cardíacas.

44
Baglivi tira sua doutrina de “alguns experimentos efetuados sobre
cães vivos”, descritos com notável precisão metodológica de Opera Omnia
(1745, p. 289).
Outros experimentos que interessam a este problema, são descritos
no cap. V do De fibra motrice e se concluem com duas afirmações
que refletem bem o pensamento de Baglivi sobre a fisiologia do mo­
vimento: uma que se encontra na p. 278, refere-se ao mecanismo que
produz os movimentos cardíacos, comparáveis aos de qualquer músculo
“se, pois, o coração se movimenta por irradiação e influxo — irradia-
tionem et influxum — transmitidos da cabeça a ele pelos nervos, por meio
do fluído nervoso ou através da oscilação da meninge das partes sóli­
das, membranas de órgãos sólidos, em tal caso o fluído não tem nenhuma,
ou melhor, tem somente uma reduzida influência” (p. 278).
A segunda afirmação, característica da teoria claramente mecani-
cista de Baglivi, compreende os mesmos princípios: “portanto, a dura-
-máter pulsa com ictos (ictibus) alternados de sístoles e diástoles. E,
como o coração é movido somente enquanto recebe o influxo transmi­
tido pelo cérebro, podemos propor aqui o problema, novo e audaz, de
saber se o movimento sistálico e distálico do coração depende da sístole
ou diástole da dura-máter” (p. 279).
Baglivi observa que a sua experiência o induziu a aceitar essa
hipótese. Quanto ao nosso problema, convém sublinhar uma faoeta das
citadas afirmações: existe um centro do movimento que comanda o
fluxo nervoso que chega aos músculos; o centro nervoso, que na obra
de Bellini é definido “difuso”, para Baglivi é, ao invés, localizado con­
forme suas numerosas experiências. Falamos de centros nervosos, já
que é a dura-máter que induz os movimentos de todos “os fluídos do
corpo animal” (p. 288) inclusive o fluxo nervoso.
O suco como veículo do impulso nervoso tem, como vimos, um
efeito sobre o músculo, devido à sua ação sobre as membranas dos
glóbulos sangüíneos que existem nos interstícios interfibrais; todavia,
segundo a teoria mecanicista da contração, a natureza do fluído é, pelo
menos até certo ponto, secundária: Baglivi admite, de fato, que o
próprio sangue tem um papel importante no processo do movimento
muscular.
A evidência por ele apresentada refere-se às contrações do coração
de rã isolado, que não recebe suco nervoso. Neste caso, Baglivi mantém
a tradição belliniana que o induz a procurar o estímulo capaz de explicar
a origem da reação muscular de um órgão extirpado: os glóbulos são
alterados no seu volume por ação do calor ambiental, (calore ambientis
excitatur) (De anatome fibrarum, 1745, p. 403).
O conceito de estímulo, formulado vagamente, antes e depois de
Glisson, precisado por Bellini, e agora adotado por Baglivi, terá impor­
tância decisiva para o progresso da fisiologia do movimento, até os
trabalhos de Haller e Whytt. Além de manter e utilizar com uma certa

45
freqüência as idéias de Bellini sobre o problema, Baglivi praticamente
não enriquece o conceito com ulteriores argumentos.
Também quanto à condução do impulso nervoso, ou melhor, o
movimento do suco nervoso, Baglivi fixou-se, praticamente, nas teorias
de Borelli e Bellini, como se pode ver através dos trechos abaixo, do
De fibra motrice specimen (1700, ed. 1745).
Na página 328 o autor afirma, na proposição I que o movimento
dos líquidos no organismo pode ter sua direção natural alterada por
vários motivos, inclusive o vômito; Baglivi acrescenta depois suas obser-
vationes practicas. O título da proposição em questão é: “O movimento
do sangue ou de outros líquidos, dirigido para uma determinada parte,
pode ser desviado para outra, em virtude de. . . vômito. . . ”.
Não pretendemos ver nesse trecho a descrição do reflexo do vômito,
mas somente mais uma evidência daquilo que significa, para a iatrome-
cânica, a conversão de um impulso aferente em outro, eferente. A con­
versão é considerada aqui uma espécie pertencente ao gênero dos movi­
mentos retrógrados. Também aqui o aspecto positivo da concepção de
Baglivi consiste em atribuir a um estímulo a causa inicial da mudança de
direção do movimento. Por outro lado, ele se expressa claramente na
proposição III segundo a qual “os fluídos.. . correm indiferentemente em
qualquer direção, quando empurrados” (p. 329), e mais adiante: “Gra­
ças aos diversos estímulos que agem sobre os sólidos, os vários líquidos
escorrem devido ao seu contato (contactu)” (p. 329).
Os diversos fluídos do organismo animal são entendidos como ele­
mentos passivos em relação ao movimento: Se habent fluida respectu
sui motus mere passive.
A distribuição dos líquidos, nervoso e outros, quando impulsionados
numa bifurcação de condutos, é explicada por Baglivi de maneira ex­
pressamente hidráulica, como podemos ler na proposição V do De fibra
motrice: “a separação e distribuição dos líquidos que correm misturados
(mixtim) para as diversas partes ao longo dos canais do corpo, efetua-se
pela composição de dois movimentos, dos quais um continua pelo canal
e o outro, contemporaneamente se dirige para todos os pontos, aos la­
dos” (p. 352).
A proposição lembra a pressão da água sobre a superfície interna
de uma mangueira e a força com que ela jorra de um furo lateral.
Com relação à explicação do movimento reflexo, podemos resumir
assim a contribuição de Baglivi: deu uma base experimental à teoria
do movimento, entendido como efeito da contração das membranas dos
receptores, e que se propaga às outras partes do organismo, entre as
quais os órgãos internos e externos.
Baglivi formulou, experimentalmente, a teoria segundo a qual existe
um órgão central do movimento, representado pela dura-máter (e pela
pia-máter). A conversão de um impulso aferente em eferente não é,
todavia, necessariamente central.

46
O princípio da contractilidade da fibra implica elasticidade dela e
portanto, movimentos “retrógrados” em qualquer nível do processo de
condução do fluxo nervoso.
Baglivi admite inúmeros centros periféricos de conversão de um
impulso qualquer em outro contrário, embora reconheça a importância
die pontos de inversão centrais. Aliás, os dois movimentos do fluxo ner­
voso, centrípeto e centrífugo, correspondem explicitamente no De fibra
motrice ao impulso produzido “pelas impressões causadas pelos objetos
externos nos sentidos. . . que dos sentidos chegam ao cérebro por meio
do fluído nervoso e ao impulso eferente, através do qual se assegura
que as ordens da alma instantaneamente cheguem às partes. . . ”
Entre os dois impulsos, Baglivi introduz órgãos de controle e, a
este respeito, não é menos explícito: “para que não se crie confusão
entre os dois movimentos, quer dizer, entre a comunicação com os
sentidos e vioe-versa, nós pensamos que a natureza criou duas meninges
das quais, uma é destinada a receber as impressões da alma e transmiti-
-las aos sentidos, e outra a receber as impressões das partes, feitas nestas
pelos objetos externos e a transmiti-las ao cérebro, sede principal da
alma” (I, cap. V ).
É somente o segundo movimento, o centrípeto, que Baglivi deno­
mina de reflexo, “porque é por reflexão que ele se propaga num ins­
tante, das partes ao primeiro “móvel” da dura-máter” (I, cap. V ).
O motus reflexus de Baglivi não inclui, como nota Canguilhem
(1955) uma “ida centrípeta e uma volta centrífuga” e por conseguinte
o termo reflexus não tem relação com “a noção moderna de reflexo”
(p. 50).
Em todo caso, no De fibra motrice, encontramos a idéia de uma
propagação reflexa do impulso nervoso, a distinção entre impulso afe­
rente e eferente na base de uma explicação materialística e mecânica,
a noção de objeto externo como ponto de partida do processo centrí­
peto, e sobretudo, a expressão motus reflexus como descrição de um
tipo de propagação do impulso nervoso.
Essas contribuições nos parecem menos fecundas que as de Willis,
que chega à elaboração de uma teoria completa e “moderna” do movi­
mento reflexo; consideradas todavia as limitações metodológicas da
iatromecânica borelliana na qual se inspira Baglivi, não podemos deixar
de assinalar como a obra deste representa um progresso em relação à
obra cartesiana.
Para um partidário da teoria da iatromecânica as idéias de Willis
não podiam certamente oferecer a mesma segurança que a mecânica
de Galileu. Baglivi exerceu um influxo notável no desenvolvimento me­
todológico da pesquisa relativa à neurofisiologia do movimento: é com
ele, de fato, que se inicia a transposição do centro nervoso do reflexo,
que passa do encéfalo à medula, embora ele não se preocupe em rela­
cionar os diversos e dramáticos efeitos motores obtidos mediante a

47
estimulação em diversos pontos da medula sobre animais vivos de espé­
cies diferentes, como “cães, gatos, porcos, coelhos, ovelhas etc.” (De
fibra motrice, ed. 1745, p. 278).
O exemplo citado preferencialmente pelos iatromecânicos sobre a
conversão do impulso proveniente da periferia numa resposta ao mesmo
tempo excretória e motora é o do espirro, exemplo ao qual se referem
Bellini, Baglivi e Santorini. Baglivi o discute em dois trechos do seu
trabalho acima citado, no corolário IV do cap. VIII, onde insiste em
sublinhar o efeito produzido pelos estímulos térmicos na contração que
se propaga da fibra de um receptor para outros órgãos: “o gênero das
fibras se contrai graças às coisas quentes como às frias e se contrai
(crispatur) fortem ente...”.
Assim são “os espirros, catarros etc.; em conseqüência de um frio
anormal e intenso” (p. 327).
No segundo trecho, falando de contrações patológicas, Baglivi diz:
“Um exemplo evidente de quanto foi dito, temos no espirro. . .
O espirro é uma afecção convulsiva das meninges, especialmente
da dura. Espirram mais os indivíduos cujas fibras internas oscilam in­
tensamente irritadas pela acridez dos humores. As fibras internas força­
das à oscilação por uma matéria picante e acre, propagam suas oscila­
ções em toda parte até à superfície (habitum) do corpo” (p. 337).
Do exame dessas duas referências a uma reação que, hoje, julgamos
reflexa, chegar-se-á à conclusão de que nenhuma delas implica a idéia
de um centro de conversão da siensação em resposta, mas a de uma
propagação em todas as direções, mais que numa direção eletiva. Baglivi,
como bom iatromecânico, não podia descuidar o princípio de propagação
mecânica da estimulação original para todos os “distritos” ligados, tanto
através de contatos sólidos como líquidos, ao ponto estimulado.
Essie esquema, se por um lado impede a formulação efetiva do
conceito de reflexo, por outro lado implica um notável progresso na
história da explicação do comportamento, isto é, a recusa de todos os
princípios metafísicos como explicação.
Segundo Skinner (1931), Baglivi é o primeiro estudioso a excluir
explicitamente a intervenção da alma no processo da contração mus­
cular. Bellini o tinha feito, genericamente, referindo-se à vis contractilis.
Baglivi afirma, em relação a uma sua observação sobre a contra­
ção de um músculo isolado, que o fato acontecia “sem que a alma tivesse
qualquer papel nele, ou estivesse a d e sensível” (1700). Mas tal exclu­
são radical de princípios metafísicos, muito difícil para um iatromecânico
do século XVII, não se refere por nada aos movimentos não automáticos
do organismo vivo.
Com efeito, noutro trecho de sua obra fundamental, o autor nos
oferece uma síntese das relações existentes entre a sua teoria e o com­
portamento humano; das suas palavras transparece claramente seu esfor­
ço para rejeitar a idéia de “vontade”.

48
A solução por ele proposta, representa uma típica solução de com­
promisso que ele procura adaptar a uma parte dos movimentos do orga­
nismo humano, os da respiração. E mesmo para testes, admite a influên­
cia da vontade somente como fator de controle da intensidade do pro­
cesso fisiológico, mas não como causa que o determine.
Referimo-nos ao item XIII dos corolários e postulados que seguem
o livro V do De fibra motrice, onde Baglivi escreve: “Portanto, a dura-
-máter é como a senhora (domina) predominante do movimento dos
líquidos e sólidos do corpo humano, e quase controla o próprio coração,
como manifestante conhecemos através das paixões do ânimo (ex ani-
mi passionibus) .
Se alguém perguntar se o dito movimento da dura meninge seria em
parte natural, em parte voluntária, (a resposta seria:) é misto, como é
o movimento dos órgãos que servem para a respiração. É assim que pode­
mos, segundo o império da vontade, e segundo exigem as afeições (affec-
tus) que reinam temporariamente em nós, intensificar ou relaxar de ma-
jieira variada o movimento da dura-máter de modo a comprimir ou expe­
lir uma quantidade maior ou menor de líquido nervoso. É por isso que na
ira, graças a uma oscilação muito intensa da dura-máter, os espíritos
(humores) são produzidos (eliciantur) muito intensamente e em quan­
tidade máxima, e todos os líquidos são perturbados e as partes sólidas
oscilam com muita força: Daí se origina o rubor dos olhos e das faces,
a espuma da boca, os movimentos furibundos e a impaciência em todas
as coisas.
Contrariamente acontecem as coisas no amor, na simpatia e noutros
afetos, graças ao estado contrário da dura meninge. E assim, em razão
das diversas contrações e afrouxamentos das meninges, nascem os vários
movimentos e expressões (facies) que se verificam nas partes líquidas e
sólidas do corpo animado” (p. 288).
Independentemente do fato de a respiração ser um caso ad hoc para
combinar vontade e necessidade mecânica, pode-se entrever no trecho
citado uma das primeiras, se não a primeira explicação materialista das
emoções, entendidas como simples regras da mecânica do organismo.
Quanto Baglivi sustente essa visão, pode ser deduzido da sua extensa
comparação entre os movimentos do corpo humano e o funcionamento
de um relógio mecânico, apresentada no livro I do De fibra motrice
(cap. V, p. 281).
Depois de Baglivi, o estudo sobre a elasticidade da fibra e dos seus
vários movimentos foi aprofundado de modo sistemático, em harmonia
notável com suas teorias e as de Bellini, por um professor de filosofia e
medicina de Veneza, Giovanni Domenico Santorini, no seu tratado metó­
dico e ligeiramente polêmico De structura ac motu fibrae de 1705, em
apêndice à Opera Omnia de Baglivi, editada em 1747.
Não queremos concluir este rápido exame da obra de Baglivi, em
relação à teoria do movimento muscular, sem assinalar que em muitos
dos seus trabalhos encontramos expressões como vis pulsifica, vis intrin-

49
seca e vis contractilis, que se tomarão as de domínio geral na fisiologia
dos séculos XVIII e XIX. [Fig. 12]
Como se deduz da exposição precedente, a pesquisa experimental
sobre o movimento muscular, reflexo ou não, não começa com efeito com
Astruc (1684-1766) nem em época subseqüente, pois que ainda, antes
de Descartes, já com Galeno (131-200 d.C.), Leonardo da Vinci
(1452-1519) e Fabrizio (1537-1619) as observações sobre homens e
animais submetidos a intervenções cirúrgicas tinham fornecido material
para várias teorias sobre o movimento muscular.
Os iatromecânicos italianos como já dissemos, efetuaram centenas de
experiências neste campo.
O uso dos animais descerebrados, com o fim de estudar os movi­
mentos segmentares encontra a sua máxima afirmação com Swammerdan
(1637-1686), cujos trabalhos sobre os músculos da rã, retratam toda a
genialidade do autor.
Swammerdan, independentemente de Glisson, demonstrou que os
músculos se contraíam sem aumento de volume, ao contrário de quanto
admitia Descartes, e que a contração ocorria também muito tempo
depois que o músculo tinha sido isolado da medula espinal.
Essas observações pressupõem, já no século XVII, todos os elemen­
tos da análise experimental do reflexo em nível fisiológico: o uso de estí­
mulos, dotados de diversas propriedades, aplicados ao nervo, as diversas
medidas de resposta muscular e das relações entre estímulo e reação.
Por sua vez, as pesquisas de Swammerdan levam a uma conclusão mais
profunda: a contração muscular pode aparecer sem a ligação nervosa do
músculo à medula espinal, diversamente de quanto faziam supor as expe­
riências de Leonardo (Quaderni, Ed. francesa Gallimard, 1942, I). Nes­
sas, embora faltasse o cérebro, eram deixadas íntegras na rã as ligações
entre nervo e medula.
Os trabalhos de Swammerdan foram publicados na sua Biblia Na-
turae somente um ano após os de Astruc, isto é, em 1737-8 e nisto está
talvez a razão pela qual os estudos experimentais sobre o movimento
muscular tiveram maior desenvolvimento a partir desta época.
O importante trabalho de Haller (1708-1777), em 8 volumes foi
publicado somente muito tempo depois, entre 1757 e 1766, com o título
de Elementa Physiologiae Corporis Humani e constitui um extenso com­
pêndio dos estudos realizados até então.
Haller refere numerosas experiências sobre músculos seccionados,
sobre preparações intestinais e cardíacas.
Uma crítica decisiva aos esquemas teóricos de Descartes, Willis e
Astruc era a conseqüência destes estudos sobre secções cirúrgicas e sobre
animais descerebrados, pois aqueles autores eram guiados fundamental­
mente pela idéia da transformação de um impulso aferente em outro,
eferente, ao nível do encéfalo.
Os estudos de Swammerdan e Haller mostram não só que o movi­
mento reflexo podia verificar-se na ausência do encéfalo, como demons-

50
Contracapa da Opera Omnia de G. Baglivi (1745) representando o autor na
idade de 34 anos. O desenho é obra de Carolus Maratta amigo de Baglivi e dedicado
a este em 1703, em Roma. A incisão é de C. Duflos.
tram os estudos da época sobre animais poiquilotermos, decapitados ou
descerebrados, mas também em cortes cirúrgicos nos quais nem mesmo
a medula espinal desenvolve qualquer papel.
Depois do De motu musculari de Willis, mas antes do De fibra
motrice de Baglivi, Glisson (1597-1677) tinha encontrado uma expli­
cação formulada em 1677, que atribuía a contração muscular não mais
ao arco reflexo proposto mais ou menos exatamente por Willis, mas sim,
à uma propriedade local do músculo, a irritabilidade.
De acordo com esse ponto de vista, eram as peculiaridades do
próprio músculo que submetidas a excitação adequada, permitiam a
contração. Tal explicação implicava necessariamente na rejeição das teo­
rias baseadas em impulsos dirigidos a um centro e os provenientes deste.
Mas do ponto de vista do reflexo entendido — como o entenderá muito
tempo depois Pavlov — como correlação entre estímulo e resposta, a
“irritabilidade” de Glisson estende a correlação a segmentos menores
do organismo.
A irritabilidade, como nota Skinner (1931), exigia sempre um agen­
te irritante (como escrevia também Verworn em 1913) quie desenvol­
vesse, em nível molecular a função dos estímulos sensoriais na produção
da resposta nervosa mais complexa.
A noção de irritabilidade de Glisson foi retomada por Haller, depois
das contribuições trazidas por Borelli, Bellini, Baglivi e Astruc, e refor­
mulada com a denominação de vis insita, uma força intrínseca ao mús­
culo, como um princípio local inconsciente e involuntário da contração.
Tal força, não é entendida como própria do músculo como se enten­
dia a irritabilidade de Glisson, mas como uma propriedade da fibra
muscular.
Tal “força intrínseca” ao tecido muscular é diversa da elasticidade
tão defendida por Bellini (De contractione naturali, in Opera Omnia,
1747).
Entre as excitações às quais a “força intrínseca” é sensível, além do
impulso nervoso, podem-se enumerar as pressões mecânicas, como se
verifica no intestino por ação da massa alimentar e pelo sangue, quando
se contrai o músculo cardíaco. Estas idéias permitiam explicar contra­
ções de músculos isolados e também as que se observam em animais
descerebrados.
Admitindo também que a vis insita pudesse responder à excitação
nervosa, Haller abre a possibilidade de explicar também as respostas mus­
culares cuja origem não é uma excitação local e sim distante: toma
assim compatível o seu princípio, quase molecular, com a explicação de
correlações mais complexas entre o estímulo e a resposta e que envolvem
segmentos mais ou menos extensos do corpo, como as “simpatias” das
quais Astruc se serviu para restaurar o conceito de movimento reflexo.

52
Jean Astruc (1684-1766). É no trabalho de Astruc (1736) sobre
as simpatias (A n sympathia partium a certa nervorum positura in interno
sensorio?) que Boring (1950) encontra pela primeira vez o conceito de
reflexo entendido no sentido fisiológico atual.
Posteriormente à formulação de Willis, tal afirmação nos parece dis­
cutível, mas deve-se atribuir a Astruc o mérito de haver restringido o con­
ceito de “reflexo” aos movimentos automáticos reflexos, o que na fisio­
logia de Willis não se dava, uma vez que o motus reflexus era uma
espécie de movimento, no gênero dos voluntários ou dos involuntários.
O atribuir o mérito dessa restrição do conceito a Astruc, deve-se
aos efeitos da sua teoria sobre o desenvolvimento da análise fisiológica
do reflexo (embora, no que diz respeito à análise experimental do com­
portamento que surgirá somente no início de 1900 com Pavlov, se deva
lembrar que tal encaminhamento da fisiologia contribuirá para uma
caracterização negativa do reflexo, como faz notar Skinner em 1931).
Com efeito, para Astruc o reflexo é uma reação automática, devida
somente à disposição anatômica dos órgãos do movimento. Em Astruc
notamos ainda mais clara a idéia de estímulo eliciador, recordada na
citação de Canguilhem (1955) do Disputationem anatomicorum selec-
tarum (1736): “Stimulata vel dolente parte una in contractionem agi-
tur. .. pars altera — longe distans.. (vol. IV).
Descartes tinha já avançado a idéia do estímulo externo, assim
como Willis e Baglivi falavam de “objeto externo” capaz de impressio­
nar os órgãos do sentido. Todavia é Astruc que explica o termo estimu-•
lação como ponto de partida do impulso aferente, entendendo-o na sua
função de elemento causal de uma correlação estímulo — resposta, sub­
tendendo o mecanismo fisiológico da condução centrípeta do estímulo e
da propagação centrífuga do influxo eferente.
A contribuição de Astruc ao conceito de estímulo diz respeito
também à intensidade da resposta em relação à intensidade do estímulo.
Ele entende os nervos como condutores cujas extremidades são
ligadas ao cérebro em forma de ramificações tubulares, e o impulso
nervoso como constituído pelo fluxo dos espíritos, da periferia ao cérebro
e vice-versa, como ensinava também Willis. Quando os espíritos chegam
ao cérebro, excitam uma das fibras existentes nos espaços intercelulares
da substância medular do cérebro, “ . . . então se produz sobre a fibra
uma reflexão dos espíritos conforme a lei da reflexão da luz” (Can­
guilhem, p. 100).
Dada uma reflexão dos espíritos sobre uma fibra cerebral, a direção
em que eles são impelidos forma um ângulo igual ao ângulo de incidên­
cia sobre a fibra: se na direção em que se encaminham os espíritos assim
impelidos encontra-se a entrada tubular de um nervo, o fluxo dos espíri­
tos se insere no nervo e chega assim aos músculos distais.
Para Astruc, a força com a qual os espíritos se introduzem no nervo
é uma função direta daquela com a qual são impelidos (por reflexão)
a partir da fibra cerebral que excitam.

53
A preocupação de Astruc é chegar a um modelo teórico útil à
análise das simpatias em geral, quer dizer, daquelas reações de um dado
segmento no organismo conseqüentes à estimulação de um outro local
mais ou menos distante.
Seu clássico exemplo do espirro é apresentado expressamente como
modelo “adaptável à explicação de todas as outras simpatias do mesmo
gênero. Como a irritação das narinas provoca através de um mecanis­
mo . . . rápido. . . a contração do diafragma, assim o vômito, a tosse ou
o fechamento das pálpebras são perfeitamente explicáveis através do me­
canismo descrito”.
Independentemente de qualquer eventual significação das teorias de
Astruc para a evolução da fisiologia, convém notar que, entre os autores
que até agora temos examinado, é nele que é claramente identificável
a preocupação de chegar a um conceito de movimento reflexo capaz de
servir como unidade de análise das relações entre estímulo e respostas:
nisto vai reconhecido o principal significado do trabalho de Astruc.
Com esse autor tem início, embora sem o apoio da observação expe­
rimental, o uso do conceito como instrumento metodológico para o estu­
do dos movimentos, entendido o conceito como correlação entre estímulo
e reação, ou entre propriedades do primeiro e características da segunda.

54
VON H ALLER E A IRRITABILIDADE

A l b r e c h t v o n H a l l e r (1708-1777) p u b l i c o u o
mais completo tratado de fisiologia do século XVIII. A publicação foi
dividida em 8 sucessivos volumes que apareceram entre o ano de 1757
e 1766, isto é, 20 ou 30 anos depois da publicação de Astruc mencio­
nada há pouco, e teve o título de Elementa Physiologiae Corporis Hu-
mani.
Um contemporâneo de Haller, Robert Whytt (1714-1766) publi­
cou antes dele, no ano de 1751, em Edimburgo, um outro compêndio
menos extenso que o de Haller, mas igualmente rico em descrições de
experiências sobre o movimento muscular, especialmente estudos reali­
zados sobre tecidos e órgãos isolados. Tais experiências, como temos
dito, eram conseqüência dos estudos pioneiros de Glisson e Swammer-
dan, aparecidos nos meados do século XVII.
Com referência ao estudo de movimento reflexo, Haller dá uma
escassa contribuição; é o seu contemporâneo Whytt que tem o mérito de
ter formulado por primeiro, como faz observar Skinner (1931), o con­
ceito de reflexo “em harmonia com o material experimental”.
A contribuição de Haller, embora publicada em edição sistemática
depois do Essay de Whytt, começara muito tempo antes com um tra­
balho publicado no mesmo ano em que foi editada a Opera Omnia de
Bellini, em 1747.
O título da obra era Primae lineae Physiologiae e nela Haller propõe
o seu conceito de vis insita como princípio de explicação da contração
muscular. Essa “força intrínseca” é um pouco diversa da “irritabilidade”
de Glisson (1677) e Haller a vê como uma extensão da “irritabilidade”,
pois que os músculos dissecados por ele, quer cardíacos, quer intesti­
nais, contraíam-se não somente na ausência de qualquer influxo nervoso,
mas também sem aplicação direta de agentes irritantes.
Baglivi, como vimos, atribuía esses movimentos a um estímulo mais
ou menos ad hoc, o calor ambiental; Haller, ao contrário, admite no
músculo uma propriedade intrínseca que lhe permite contrair-se. Essa
propriedade é diversa da vis contractilis naturalis de Bellini, própria de
todos os tecidos orgânicos; a “força intrínseca” de Haller é contrátil,
mas privativa do músculo, vis contractilis musculis insita.
O conceito foi enunciado mais completamente no volume IV dos
Elementa e na Dissertatio de 1752.

55
É interessante notar desde agora que a vis insita não exclui o con­
ceito de estímulo: este atua como um mecanismo de “disparo” que pro­
voca a atividade da vis insita e é assim, como para Bellini, um estímulo
eliciador.
O conceito de vis insita determina todo o trabalho de Haller, em
dois aspectos: suas pesquisas e as teorias dela derivadas, dizem respeito
principalmente aos movimentos de músculos seccionados. Por outro lado,
e por conseqüência, Haller não contribuirá ao desenvolvimento do con­
ceito de “reflexo”, já que a vis insita é incompatível com a idéia da con­
dução da estimulação nervosa em sentido aferente e eferente. Nem mes­
mo a propagação mecânica da contração às partes fisicamente conexas,
como ensinavam os iatromecânicos, tem lugar no conceito de vis insita.
Haller, com efeito, entende esta última como independente de qualquer
elasticidade e portanto totalmente independente e desligada de eventuais
movimentos alternados de contração e relaxamento.
Entre os estímulos, que, segundo Haller, podem colocar em ação
a vis insita, devem ser incluídos o sangue e a pressão mecânica. O sangue
pode, portanto, explicar porque o coração isolado de uma rã se contrai
em ausência de qualquer influxo nervoso; a pressão mecânica explica o
motivo pelo qual se contraem os músculos intestinais isolados.
Essas observações afastaram Haller do conceito de reflexo, antes de
tudo porque a vis insita toma os movimentos locais, periféricos ou inter­
nos, completamente independentes da integridade total do sistema ner­
voso, como justamente faz notar Canguilhem (1955).
Se se quer encontrar na obra de Haller alguma colaboração ao
desenvolvimento do estudo experimental do comportamento, ou à histó­
ria do conceito de reflexo, pode-se achar uma contribuição indireta: a
sua insistência na exclusão da influência do cérebro sobre a contração
muscular insere-se naquela corrente de idéias que tomará sempre mais
independente do encéfalo o centro de origem do movimento muscular.
Esta orientação fisiológica claramente impulsionada pelos iatromecânicos
italianos, encontrava em Baglivi o primeiro pesquisador disposto a fazer
estudos experimentais sistemáticos sobre movimentos provocados pela
estimulação medular.
Haller coloca o centro responsável pelo movimento justamente no
órgão efetor.
Será com Whytt que a medula receberá uma renovada e decisiva
atenção, üvre das exigências lógicas do sistema iatromecânico.
Um outro aspecto positivo na obra de Haller diz respeito à sua
acentuada recusa a aceitar a alma como princípio de explicação do movi­
mento muscular, como se pode ver das seguintes citações de Skinner
(1931) referentes a publicações de experiências de Haller, surgidas em
1739 e em 1742: “Através de minhas experiências separei esta natureza
irritável, de um lado, de uma simples força morta, e de outro lado, a
separei da força nervosa e do poder da alma. Mostrei que o movimento
do coração e a natureza irritável dos intestinos dependem dessa natureza

56
irritável. Confinei-a inteiramente na fibra muscular. . . mostrei também
que aquela força é alguma coisa perpetuamente viva e que se manifesta
freqüentemente em movimento, mesmo que não esteja presente nenhum
estímulo externo tal como nós o reconheceríamos. Porém, graças a um
estímulo, ela poderia a qualquer momento passar do repouso à ação.
Em um movimento produzido por ela fiz uma distinção entre estímulos
que deviam ser muito sutis e o movimento produzido graças a um estí-
mulo que devia ser muito intenso”. [Fig. 13]
Esses dados experimentais contêm a noção que se podia entrever
na obra de Bellini e Santorini relativamente ao estímulo entendido como»
elemento eliciador de ação muscular.
A distribuição da força motriz às partes isoladas do organismo,
independentemente de um sistema nervoso central, implicaria a busca de
pontos de origem da atividade motora, fora da área cerebral, o que
Haller já tinha iniciado.
É nessa linha de pesquisa que se poderá compreender a teoria da
ação reflexa de Robert Whytt. Na medida em que é um princípio não
físico, a vis insita passa a servir de fundamento para a formulação de
princípios análogos pelos pesquisadores que virão depois de Haller, e que
possibilitarão um certo retrocesso às teorias animísticas. Esses princípios
como o principium sentiens de Whytt e o principium vitale exaustiva­
mente discutido e defendido por Cremadells no seu Nova Physiologiae
Elementa (1779), editado em Roma, darão fundamento a posições teó­
ricas vitalistas, cujo único aspecto positivo, relativamente à formação de
uma ciência do comportamento, será o de atrair a atenção dos pesqui­
sadores futuros sobre o significado biológico dos reflexos e portanto sobre
a importância de analisar o movimento em relação às condições am­
bientais. [Fig. 14]
Essa posição teórica encontrará seu florescimento mais tarde, na
obra de Charles Darwin (1809-1882) A Origem das Espécies (1859) e
como veremos, sua formulação mais sistemática, no trabalho do grande
fisiologista Séchenov (1829-1905).
O principium vitale de Cremadells, brota da doutrina da vis insita
de Haller, como se pode deduzir das numerosas citações que faz dela
o mesmo autor: infelizmente é quase impossível não considerá-la um
retorno a uma tentativa de explicar o movimento muscular por meio de
suposições animísticas e metafísicas.
Quanto à análise fisiológica do movimento, devemos reconhecer a
Haller o mérito de, já antes dos recursos metodológicos oferecidos por
Galvani, Volta, Bell e Magendie, ter medido a velocidade do impulso
nervoso (pouco relevante à sua explicação da contração muscular); se­
gundo Haller tal velocidade é da ordem de 150 pés por segundo.

57
3!

D IS S E RT AZ I O N E
DEL S IGNOR A L B E R T O H A L L E R
Sopra le parti Irritabili, t Senjtbili Jegli jinim àli.

S On non (o quanti Mefî, che ( ï ) il Signer Zimmerman mio


alliero, ed amico pubblico an« Di flêrtazione In+m&urah fo-
pra 1* Irritabilità , il quale avea fatte alla mi a preiënca una
patte delle cfperienze, che in ici fi concengoao. Quefte non fol o
net corio délia mi a DiHêrtazione tali riporterô, qoaii appretib di
oie it ritrovan notatc, ma con efle altre ancora da Jhsî fatte, comcc-
chc non fo/Fi Joro preiènte. Fin dalT anno 1746. k> fteflfb ne area—•
fatte moite prima di lu i, indi con eiTo lui je dal princ$io dcl 1751
fino al prefente, ho íõttopofti a crudeli cimenti 190. anim ali. Éd
avvegnachè molta ripugnanza per quefta ipccie di crudeltade fentik.
fï, nulla di meno per Ta viva brama, chc avea di contribuée alla
utiliti dcl genere umano, non che per io ftcflb motivo, the impe-
r a r uomo il più tencro, ed amorofo a mangtare ne* convcnevo-
giorni carni dei più innocent! animait me Ja feci lecita, e fenz*
aitro poíi mano ali* opéra. Ne fbpra taJi fperimenti haflfi ad afpet-
tar qui un intero giornale di QÎTervazioni ; imperocché nel farli fie*
çome aîcuna fiata 7i è in necetfità di provarne <f inutil i , e di molt*
aJtri rifarne, quindi g!i che il riferirli tutti farebbe per mio av-
viíò un prolungare inutilmente 1* opera.
Quale dunque è la cagione di quefte dne propriété? perche tn
aldeie parti is îrovano, in altre no? Sono <pcfti probíetr.i tccrcti-
c i, coi nfso h xio a nen prometto* perché vert fi mil mente una tal fo-
luzione trorafi raaicofta nella teÆkura delîe ultime moiecole delta—,
m atéria, c non a portata del ccltello anitomico, c dsl microico-
p io : T atto quello, chc dir puoflï fopra quefto, riduccfi a mere coru-
glùcttcre, che non mi farô ad efporre, corne uomo lontaniffîmo dal
rolere infegnar cofa,che non iàjppia,c che non ami lavanitâ di vo-
1ère altri conduire per iftrade a le mcdefimo ignote,ben fapendo cf-
ler qaefiko il coâuwe di que’ foli, che ignoramifltmi fono.
E Ad

( 1 ) 1 / Sign* Haller Uffe i**fta mtmcrU a ir Uccadem'ta di Gouiaga


li llm A prile I7Ç t, e U Dîfjsrt&xjont cb' «g// cita era ttfcita à il
Torcbio nel Mefe di LfgHo 175 »• (0St •*titolata : Difsertatio Phy-
f'ologica de Irritabilitate A uôorc Joanne Gcorgio Zimmerman
Hclvcto Brugcn/i.

Página inicial da Dissertação de Haller, na edição de G. Fabri (Bologna, 1757).


A versão italiana é de G. V. Petrini, a partir do texto francês de Tissott O original
latino foi lido perante a Academia de Gottingen em 22 de abril de 1752, quase um
ano após a publicação de Zimmerman sobre o mesmo tema.

58
DOCTORIS
FR A N C I S C I
CREM A D E L L S
IN AKCHTNOSOCOHIO SANCTI
SratITDS URNS

ME DI C I S E C U N O A R I I
N O V A

PHYSIOLOGIC
E L E M E N T A.

ROMA MDCCLXXI I .
Cx TjrpographU 8. Michaelis ad Ripam ,
apud Paulum junchium*

S u ftr k n m T e r m ifi.
Frontispício de Novos Elementos de Fisiologia de F. Cremadells editado em Roma
em 1779. O texto propõe um principium vitale como elemento de explicação dos
movimentos musculares, da sensação e do comportamento em geral.
59
A POLÊMICA SOBRE
A TEORIA HALLERIANA

O CONCEITO HALLERIANO DE IRRITABILIDADE ESTÁ


exposto de forma sistemática em uma “memória” apresentada à Acade­
mia de Gottingen em 22 de abril de 1752. Foi traduzida por Tissott e
publicada em 1757 por Bartolomeo Fabri, em Bologna com um discurso
preliminar do tradutor no qual é defendida apaixonadamente a origina­
lidade da teoria halleriana. A obra de Fabri dedicada ao anatomista Mor-
gagni separa em dois volumes os trabalhos favoráveis e os contrários
à teoria. Essa preciosa antologia mostra quanto os conceitos de Haller
(irritabilidade e insensibilidade) desafiaram o conhecimento instituído.
Em sua defesa alinharam-se notáveis trabalhos de Zimmerman discípulo
predileto de Haller (e talvez o verdadeiro descobridor da “irritabilidade”
entendida à maneira de Haller), Tissott, Castell e boa parte da escola
fisiológica suíça. Foi Zimmerman que em julho de 1751 publicou uma
primeira monografia sobre o assunto, com o cuidado de assegurar-se a
autoria da mesma já no título: Dissertatio Physiologica de Irritabilitate
Auctore Joanne Georgio Zimmerman Helveto Brugensi. A dissertação de
Haller de 1752 reconhece claramente que os dados experimentais mais
fecundos da teoria foram obtidos por Zimmerman, “meu discípulo e ami­
go”, em parte “na minha presença”, e acrescenta que já desde 1746 o
autor fizera algumas experiências sozinho e que “desde 1751 submeti a
cruéis verificações 190 animais”. [Fig. 15]
À força de insistir (nem sempre de modo elegante) sobre a origi­
nalidade de sua teoria, Haller viu-se obrigado a demonstrá-la em diver­
sas frentes: precisou competir com o passado, representado pelos iatro-
mecânicos e principalmente por Glisson; com o seu tempo, personificado
pelo contemporâneo Robert Whytt, e de certo modo com o futuro na
figura de seu discípulo Zimmerman, que, à imitação do mestre, não per­
dia oportunidade alguma de sublinhar sua autoria e originalidade em
várias descobertas.
Mas afora a questão da originalidade a teoria halleriana da irrita­
bilidade e da insensibilidade foi contestada pesadamente por numerosos
experimentos. É esse confronto de resultados e sua significação para a
história do conceito de reflexo que serão tratados a seguir.
Os primeiros experimentos de Haller relativos à irritabilidade foram
publicados em 1739 e começaram a encaminhá-lo a discordar de Boer-

60
SULLA
INSENSITIVITÁ
E D

IRRITABILITÀ HALLERIANA
OPUSCOLI
OI VAR] AUTOR1
IACCOITI
DA CIAC IN TO BARTOLOMEO FABR1
liíico Cbiraif*
KT E T K 1 M jt
Nclla quilc fi conrcngono rutte lc cofc favorcvoli
tl fiácma del Chiirifiuao
S IG N O R HALLER.

IN BOLOGNA MD C C L V I L
ftr G inltM C«fct«Uni, td Eredi Colli a S»To»m*(õ / A<juin».
C9K l i e m * *
Frontispício da coletânea de trabalhos sobre a insensibilidade e irritabilidade, publi­
cada por Giacinto Bartolomeo Fabri em Bologna em 1757. No primeirovolume
reúnem-se dissertações, discursos e cartas favoráveis à teoria deHaller e no se­
gundo, trabalhos contrários à mesma. A obra é dedicada a Giovambatista Morgagni,
“amplíssimo príncipe dos anatomistas dos nossos tempos”.

haave que em 1735 publicara uma obra sobre o impetum faciente na


linha conceituai do dénormon de Hipócrates. Boerhaave entendia o impe-
tus como um impulso essencial à atividade do organismo e cuja origem
não estava nem no corpo, nem na alma.
A irritabilidade halleriana, como princípio motor, é, pelo contrário,
uma propriedade natural dos órgãos (não obstante a ênfase vitalista que
o princípio recebe de Haller e de seus seguidores). A formulação siste­
mática inicial na Dissertação apresentada à Academia de Gottingen diz:
“Chamo portanto parte irritável do corpo humano aquela que se contrai
quando qualquer corpo estranho a toca um pouco violentamente... a
irritabilidade da fibra será tanto maior quanto mais ela se encurta.

61
Aquela que, tacada levemente, contrai-se além do dever será irritabi-
líssima. . . Digo fibra sensível no homem aquela que sendo tocada trans­
mite à alma a impressão de tal contato. Nos animais de cuja alma não
temos nenhuma certeza, se dará o nome de fibra sensível àquela cuja
irritação causa neles sinais evidentes de incômodo e de dor”.
Essa formulação é, como se vê, imprecisa e abre caminho a avalia­
ções subjetivas. Os dois princípios, irritabilidade e sensibilidade, que
Haller considera propriedades independentes em cada órgão são clara­
mente ligados na afirmação final, em que fica claro que a sensação
parte da irritação.
Basta esse trecho para evidenciar incoerência, generalização afoita
e subjetividade de critérios na teoria de Haller.
São esses aspectos que provocarão numerosos experimentos de
outros autores, que contradizem in toto a teoria halleriana.
Essa contestação era inevitável pois a teoria excluía a necessidade
de inervação para a produção do movimento muscular e de outras ativi­
dades dos órgãos. Se a irritabilidade e sensibilidade fossem de fato pro­
priedades locais dos órgãos e tecidos, o papel do sistema nervoso seria
reduzido a bem pouco. Seria uma revolução em toda a fisiologia e que
deveria demolir quase tudo o que haviam descoberto Bellini, Baglivi,
Boerhaave e Glisson sobre a fibra muscular, a ação da medula e a distri­
buição das ramificações nervosas.
Excluir a mediação nervosa na produção do movimento e portanto
na conexão entre impulso aferente e um impulso eferente implicava em
abolir tudo o que se estudara sobre o arco reflexo, desde Willis. E tudo
isso sobre a base de experimentos em que a variável independente era
tocar “um pouco violentamente” os tecidos e o dado obtido era “encolhi­
mento das fibras” ou “sinais de dor ou desconforto”, para se saber da
“irritabilidade” ou da “sensibilidade”, respectivamente.
Embora reconheça aos nervos um papel essencial na produção da
sensação, Haller os considera desnecessários para explicar a contração e
portanto o movimento muscular. Seus numerosos experimentos visavam
demonstrar essas duas possibilidades.
Desse modo, as estruturas privadas de nervos são por definição insen­
síveis, e segundo Tissott (1757, p. 20) em um resumo da Dissertação de
Gottingen, são: “A cutícula, a membrana celular, a gordura, os tendões,
as membranas que circundam as vísceras ou as articulações, a dura e a
pia-máter, os ligamentos, o periósteo, o pericrânio, os ossos, a medula,
a córnea, a íris.
As artérias e veias não sentem, senão em alguns pontos nos quais
recebem nervos. Partes sensíveis são: O cérebro, os nervos por causa
de sua medula, as partes seguintes, por causa dos nervos. A pele, os
músculos, o estômago... a retina, o coração embora menos que os
outros músculos. . . ”
Como se verá adiante, alguns autores procurarão mostrar inerva-
ções em estruturas nas quais Haller as exclui. As partes mencionadas

62
como sensíveis ou insensíveis podem ser entendidas como dotadas ou
não de receptores de sensação ou de dor. A identificação e classificação
dessas estruturas em situação experimental representou, à parte os erros
metodológicos e técnicos de Haller, Zimmerman, Castell e seus oposi­
tores, uma contribuição positiva à história do reflexo, pois conduziram a
um mapeamento de órgãos receptores. Entretanto não constituíram uma
catalogação de vias aferentes já que nos experimentos se procurava ape­
nas a relação entre estimulação (irritação) e a ocorrência de sinais de dor
ou incômodo, prescindindo do processo de condução nervosa: a sensi­
bilidade era vista como propriedade local do órgão estimulado e o nervo
servia apenas para levar à alma a “impressão do contato”.
Paralelamente a escola halleriana chegou a um catálogo de órgãos
efetuadores de movimento ou contráteis (irritáveis).
Segundo Tissott, as partes irritáveis são: “o coração, os músculos,
o diafragma, o ventrículo, o conduto toráxico, a bexiga, os senos muco­
sos, o útero, as partes genitais cuja irritação tem algo de particular. Não
irritáveis são: os nervos, a epiderme, a pele, as membranas, as arté­
rias. . . ”.
“Partes que são ao mesmo tempo sensíveis e irritáveis são todas
aquelas em que se encontram nervos e fibras musculares. . . ”
Desse modo, o sistema nervoso responde pela sensação e a fibra
muscular pela efetuação motora, que resulta de propriedade intrínseca à
fibra mesma, enquanto a sensibilidade é propriedade insita do nervo e,
por extensão, das estruturas inervadas.
Nessa teoria o succus nerveus de Borelli, o fluxus nervorum de Ba-
glivi, a irradiação more luminis do fluidus nervorum de Fabrizio e de
Willis, ou seja a condução nervosa não tem qualquer ação sobre a efetua­
ção motora.
Por outro lado, diversos órgãos até então admitidos como capazes
de sensação e de dor são classificados como insensíveis e, em consonân­
cia com a própria teoria, não podem possuir inervação. É precisamente
nesse ponto que os opositores de Haller mais o contestaram, com nume­
rosos resultados experimentais em neuroanatomia.
G. Bianchi (1755), por exemplo, numa longa carta a G. Bassani,
“Professor de Medicina em Roma”, critica a dissertação de Haller (edi­
ção francesa de Lausanne, 1755) e apresenta numerosos relatos de obser­
vações feitas em feridos de guerra, mostrando existir sensibilidade em
estruturas “insensíveis” para Haller. Numa segunda carta dirigida aos
professores da Universidade de Bologna, Bianchi (1756) analisa minu­
ciosamente, linha por linha, as incoerências teóricas e as falhas experimen­
tais da Dissertação mostrando que o erro fundamental é o de admitir a
sensibilidade ou a irritabilidade como um efeito “tudo ou nada” sem
admitir variações de grau nessas propriedades. Bianchi menciona uma
série de comportamentos que a teoria halleriana não explica e que em
linguagem moderna seriam reflexos condicionados ou incondicionados:
“o soluço, o espirro, o lacrimejar, o bocejar, o enrubecimento, o arrepio,

63
o tremor à vista de certos animais. . (Bordenave, em 1756, insistira
na necessidade de uma causa irritante, estímulo para o espirro e a
tosse). [Fig. 16]
Ponticelli (1756), médico de Felipe, Infante de Espanha, mostra
que não há partes sensíveis que não sejam irritáveis e que os dois pro­
cessos hallerianos são aspectos de um único mecanismo que supõe a
condução nervosa, ainda que entendida como “fluxo dos espíritos ani­
mais”.
Lamberti, de Alessandria, comunica (1756) cinco “Observações”
suas em pacientes acidentados mostrando existir sensibilidade na dura-
-máter e no pericrânio. Relata ainda três “observações” sobre sensibili­
dade em tendões.
Curiosas experiências com pacientes humanos relatadas por Tho-
mas Laghi, de Bologna em 1756 mostram a sensibilidade da dura-máter
e do tendão-de-aquiles, contrariamente ao que afirmara Haller. Laghi
teve o cuidado de documentar seus resultados com desenhos anatômicos
que mostram a presença de ramificações nervosas na dura-máter e no
tendão-de-aquiles.
Resultados semelhantes aos de Laghi foram apresentados à Acade­
mia de Berlim em 17 de julho de 1753 por C. N. Le Cat, obtidos com
pacientes acidentados nos quais se evidenciava sensibilidade das menin-
ges e dos tendões. Também A. Arrigoni, de Lodi (1756) na sua Disser-
tazione Epistolare opõe-se às “explicações obscuras e embaraçadas” de
Haller, mostrando quanto irritabilidade e sensibilidade são processos
inseparáveis que descrevem a ação de um estímulo (agente irritante) e
o subseqüente efeito motor (contração). Desse modo a dissertação de
Arrigoni reconduz a fisiologia ao modelo da ação reflexa, e com um
passo adiante: o autor apresenta longa argumentação mostrando que o
fato de não se observar um efeito não significa que ele não exista e,
ademais, que há uma grande diferença entre o estímulo externo e o pro­
cesso aferente resultante, que pode estar presente mesmo após a remoção
do objeto estimulador. Essa afirmação, é a nosso ver a primeira formu­
lação do conceito de traço de estímulo, que será analisado experimental­
mente muito mais tarde, por Séchenov, como questão de neurofisiologia
e por Pavlov, como um problema de comportamento. De outro lado a
formulação de Arrigoni aponta a inevitabilidade de uma correlação estí-
mulo-resposta, quer se trate de irritação quer se fale de sensação e nesse
caso restaura a importância da teoria dos estímulos que Bellini cons­
truíra, com sólida base experimental e clínica. [Fig. 17, 18, 19]
Na mesma linha de pensamento coloca-se o extenso Ensaio Crítico
de G. F. Milanese (1757), um texto rico de crítica mordaz e irreverente
ironia, escrito explicitamente para “desagravo” de Boerhaave, da escola
médica italiana e de A. Pacchioni, desrespeitados por Haller e seu discí­
pulo Zimmerman (em duas obras publicadas por G. B. Fabri em 1757).
Fé Milanese inicia o ensaio deplorando a vaidade de Haller e Zimmerman
e respeitando a moderação de Castell, outro discípulo de Albrecht von

64
E S S A I
S U R L A

PHYSIOLOGIE
P*r Aí. B * * * * TrofeJJèur Rayai en
Chirurgie.

A AMSTERDAM.

M. DCC. LVI.
Frontispício da edição anônima, e não autorizada pela inquisição, do manual de
fisiologia de Bordenave (1756) publicado em Amsterdam por uma editora também
anônima.
Haller e critica a concepção da irritabilidade e insensibilidade como pro­
priedades do tipo “tudo ou nada”. Insiste na importância de se levar em
conta a intensidade dos estímulos em relação à densidade de inervação
do órgão estimulado e ao maior ou menor obstáculo que a estimulação
ou seu efeito motor podem enfrentar. O autor nesse ponto entrevê com
clareza o fenômeno de recrutamento de neurônios e da fase refratária no
processo de excitação nervosa.
Sua agudeza vai até o ponto de salientar as confusões feitas por
Haller entre sensações e dor. Considera que a exclusão de nervos nas
partes entendidas como insensíveis resulta de observação superficial e
improvisada. Acentua a imprecisão e subjetividade das definições de
Haller e menciona (vagamente) a existência de uma correlação entre o
limiar do estímulo e a magnitude da resposta.
Fé Milanese, quase ao fim do seu Ensaio, adota uma atitude cientí­
fica bastante moderna ao afirmar a necessidade de examinar exaustiva­
mente a relação entre operações experimentais e efeitos observados sem
preencher as lacunas da explicação com a invenção de termos novos (p.
157-163) e nesse sentido salienta as enormes contradições de Zimmer-
man em matéria de anatomia e os seus discutíveis controles experimentais.
Para Lorry (1757) da “Faculdade de Paris” a irritabilidade é mero
efeito da sensibilidade: os dois processos são complementares. Não é
necessário supor uma força metafísica, uma vis insita própria da fibra
muscular. Lorry sutilmente demonstra que o aparecimento ou não da
contração ou da sensação ou dor depende do tipo de estímulo usado
para cada estrutura estimulada.
As partes “insensíveis” relacionadas por Haller são insensíveis ou
pouco sensíveis aos estímulos que ele usou. A contração é uma resposta
a um agente específico de intensidade adequada e nada mais que isso.
Assim, na linha de pensamento de Arrigoni, Lorry corrige os exa­
geros especulativos de vis insita de Haller e reconduz o problema da con­
tração muscular ao modelo da correlação entre propriedades do estímulo
de um lado, e ocorrência e propriedades da resposta de outro.
O problema é formulado por Lorry aproximadamente assim: dado
um certo agente irritante quais órgãos o sentem e quais órgãos se movem.
Numerosos experimentos nessa série di nuove esperienze de Lorry
mostram quanto sensação e contração resultam de estímulos com proprie­
dades qualitativas e quantitativas específicas e levam o autor a insistir
sobre a inconveniência de inventar “faculdades” dos órgãos para explicar
especulativamente suas funções. Ao fim de seu trabalho Lorry antecipa
o movimento liderado por Séchenov mais tarde ao insistir em que uma
verdadeira fisiologia do movimento e da sensação deve estudar esses
processos em organismos íntegros sempre que possível.
Como é sabido, os experimentos dessa época eram autênticas tortu­
ras lentas em que os animais vivos eram submetidos a incisões, cauteri-
zações, extirpações e aplicações de corrosivos aos diversos órgãos.

66
Tart. II. fag. xi 6.

T ab. I .

I I P LIC jt T 1 0 .
A Mufcolus Solaris in interna facie obftnratus.
B Tcndo, five chorda Achillis, conftatas a tribos mofculorum ten*
dinibos , folare Iciiicet, plantare , ac gaHrochnemio
prodcontibns.
C PoArema tendinis, qn* caJcaneo in&u terminator.
D Trancos nujor nervi craraln poftici.
E Nerais, qvi immediate i majori tranca difeodit.
¥ Ramoli tres, qni c* hoc minori ocm arodeoot, ymram ties
g g t in nugnna tendinem akc implantarjtnr f t difc
perguntar; raanlns veto k in paite inferiose iriali
tnieritor.
Lines puoâornm rcpnsfentant eandem nervorum diftribotioaem in
alio fobicâo obfcrratam .

Tat. II.

X XT L IC yi T 1 0 .

A A A A Bafis cranj.
BB ' Dura mater rerohta.
C Crifta Galli.
DD Pars fuperior orbite .
£ Nervus optiens.
F Nervos motorios ocsii.
G Fcraoen laccrom.
H Foramen rotondom.
I Foramcn ovale.
K Foramcn claofbm.
L Foramcn, per qood arteria ad duram aaatrem difpergt-
tor.
M Apophifis petrofa. . . . .
NN Raraufculns, qni i tnmeo qointi paru w duramma-
trem difpcqntor. . . .
OO Ramuîculfs, qui è truncoleptinu paru induram pan»
ter meningem difhiboitor.
P Truncus nervi quioti paris, qoidiriditur in * « «•
Explicações de Thomas Laghi (1756), das duas figuras seguintes. Este trabalho de
laghi (ou Laghius) foi adotado por diversos autores da época como um sólido
argumento contra a teoria de Haller, segundo a qual a dura-máter e os tendões,
como o de Aquiles não são sensíveis. Laghi mostrou inervação e portanto sensibi­
lidade em ambas as estruturas.
68
ínervação do tendão de Aquiles segundo T. Laghi (17S6) (ver figura precedente).

69
Para Lorry é bastante claro que um animal em pânico ou paralisado
pela dor pode não reagir ou responder diversamente a uma estimulação
qualquer. Essa distorção metodológica decisiva foi objeto de um escrito
de Vandelli, como veremos. [Fig. 20, 21]
Um célebre médico de Montpellier, Louis M. Girard de Villars
(1757) após mostrar sensibilidade e irritabilidade em órgãos onde Haller
não as encontrara e evidenciar erros na preparação cirúrgica dos tendões
chega a duas conclusões importantes:
a ) movimento e sensibilidade são uma questão de grau de intensi­
dade da resposta dos tecidos e independentes da mera quantidade de
inervação no órgão estimulado;
b) não é possível irritação sem a participação de nervos: ergo, ut
sensibilitas, sic irrítabilitas a nervis.
Em dezembro de 1756, Vandelli ou Dominicus Vandellius, professor
da Universidade de Pádua, escreveu uma análise minuciosa da teoria
halleriana e seus fundamentos experimentais.
De todos os críticos de Haller, Vandelli foi o mais preocupado com
as distorções metodológicas da escola halleriana em dois níveis: na práti­
ca experimental onde nota falhas cirúrgicas devidas ao desconhecimento
da estrutura neuroanatômica dos órgãos e na elaboração teórica dos
resultados, onde ressalta a diferença das reações dos organismos entre
situação cirúrgica e situação natural, de um lado; de outro a diferença
de evidências da resposta sensorial no homem e no animal.
Vandelli replicou numerosos experimentos de Haller, tendo obtido
resultados diversos ou opostos quando colocava sob algum controle as
condições emocionais dos animais. Evidenciou que a excessiva violência
e crueldade dos experimentos distorcia decisivamente os dados, e que
“o medo da morte e da dor” e mesmo da repreensão verbal em alta voz
tomava os animais “insensíveis” a agressões e lesões feitas aos nervos,
à pele, aos músculos bem como a ferimentos no tórax e nas patas do
animal. A mesma “insensibilidade” foi observada em um homem demen­
te que se feria profundamente a cabeça e só sentia dor após o fim da
crise de “demência”.
O alcance da nova metodologia que Vandelli vislumbra mas não
chega a formular será compreendido perfeitamente por I. M. Séchenov,
cerca de cem anos mais tarde. Contudo é Vandelli o primeiro a mostrar
a existência de variáveis “psicológicas” na correlação estímulo-resposta
sensorial ou motora.
No campo da neuroanatomia Vandelli confirma os achados de Laghi,
numa finíssima análise da inervação no tendão-de-aquiles documentada
por desenhos de Pedro Arduíno, e desse modo demonstra a sensibilidade
no tendão, contrariamente à afirmação da escola halleriana. Não satis­
feito, demonstra ainda essa sensibilidade em vários experimentos com
pacientes acidentados.
Talvez a crítica anatômica mais completa da contração muscular
como efeito de uma “faculdade” ou força (vis insita) do músculo, seja

70
*3*
TABULÆ EXPilCATIO
Pars poAcrior Tendinis Achillas cruris finiftri hominis
exprimât a r.

I. ^ O rth mnftuli i*firoaw m ii . t . Tortio msmftnH fiU i. j. j. Tendo


•AebjU it . 4. 4, JE/flfi vagina drht&a t •/ •vMctntur mervi. f. J ^ r r w /
ifcbUrUns crmralis inter n u t . 6 #/*i rjjMM mntfettlum gafiroenemium fif-
gredicm • 7 .7 .7 .7 . 4/fï ejnfdem wer~pi ram i . 8 ^ r r v u i, f* / *pp+*
r**t y par a m mujtmli gdfirtm tm ü ékfsimder* opus /mit . 9
r4fn»i d exter. 10 rumtsfmius , 4** 4rf Tendini II Ato fiUmeat* germ
II T&mu/cvlmt alter t qui in elms flam e ntit IJ pariter intratT*»*
is Bern • 14. 14 Hfiitms finifier w m 9 eomeeéemt Temdimh fubfiautim dm*
rammfemios 15. H/V l i 4 »rrw ijebiatieo egredittntur duo ram i 9 çmonmi
vamms 17 in alios fubdimi/us vagi mam comtes i t , unoque mervofo fiiamem*
to twit ut cum i 3 ramm/enio mervi i f f»« ii'id itu r im.tres ramos, 90*-
nntts 10 >ii II <f*oj T4 mnfc*Hi fat it y nempe XI 9 fmi f i x filâmes*
tii II. 24 pemetrmt Tendinem . i f . ^ ficm*dus ramus coatedens Temdimi
qmimque mtrvof* filasmenta id. teemmdms ramms 17 wrw 191 <y«VJolum
fimpiici diviflotte permeat Trudimem im it* Tertieu mutut 19 Mrvi pa*
titer 19 , 411/ primo dhnditmr im } • , em utitfue quattuwr rmmufiolot
* l f fu i iutraut Temdimem. dhnditmr im | * f 4 fso fmatimvr
plamtntm §xtm»t Ttmdimem etiam ifi* im§rodimt im . - j -3

D*b*m Táiêtii f . U. Dictmèr. 1 7 j t .

Explicação da figura seguinte, apresentada por Dominicus Vandellius, numa “epís­


tola” de 1756 dirigida a A. Vandelli e na qual demonstra a existência de ramifi­
cações nervosas e, portanto, de sensibilidade, no pericrânio, na medula, nos tendões
e na dura-mâter.

71
A ** //J\y.21ê

Ramificações nervosas no tendão de Aquiles da perna esquerda humana, segundo


Dominicus Vandellius (1766) (ver figura precedente).

a de um autor que na coletânea de G. Fabri (1757) se identifica ou se


esconde com o título de “Um doutor físico”.
Esse autor, armado dos desenhos anatômicos de Eustachio e de
outros dados contesta ponto por ponto as dissertações de Haller e Zim-

72
merman e conclui que irritabilidade e sensibilidade são idéias antigas
com roupagem nova e que são aspectos complementares de uma relação
entre estímulo externo e reação típica de um órgão e para a qual é essen­
cial a participação de ramificações nervosas.
Como se vê, após o impacto “demolidor” das dissertações de Haller
e Zimmerman, o modelo do reflexo entendido como reação de um órgão
a um estímulo, mediada pela condução nervosa, pouco a pouco se restau­
ra com os estudos Laghi, De Villars, VandeUi e “Um doutor físico”.
Todavia, nessa restauração, ficam em um segundo plano de interesse, a
distinção entre vias aferentes e eferentes e a pesquisa sobre os centros de
integração entre impulsos centrípetos e centrífugos, que florescera com
Willis, Baglivi e Astruc.
Desse modo, a polêmica descrita acima produziu apenas uma escassa
contribuição positiva à evolução do conceito de reflexo ou à análise do
comportamento, embora tenha impulsionado a pesquisa anatomofisio-
lógica dos receptores sensoriais e de outros órgãos.
Um exemplo dessa contribuição é o estudo de Thomas Laghius
(Laghi) em que se ilustra a inervação do tendão flexor esquerdo de boi e
da dura-máter de uma bezerra.
A par dos cuidados anatômicos, Laghi procurou em seus estudos
sobre a sensibilidade desses órgãos, controlar a intensidade da estimula­
ção mecânica com um dispositivo ou machina que permitia comprimir ou
perfurar tecidos com intensidade ou profundidade controladas. As figuras
e o texto são datados de Bologna, 1757.
O instrumento rudimentar de Laghi é significativo: nele se resume
a crítica mais importante aos conceitos de Haller (e suas generalizações)
ou seja a falta de controle da espécie e da intensidade dos estímulos utili­
zados para produzir contração ou sensação (ou dor, no caso dos ani­
mais). [Fig. 22, 23, 24]
A esse ponto de nossa estória é difícil avaliar a importância ou até
mesmo a utilidade da polêmica que Haller e Zimmerman desencadearam.
Deixemos essa tarefa a um autor da época que preferiu permanecer
no anonimato e que na coletânea de G. Fabri (1757) é apresentado
como “II Signor N. N.”. Em uma carta de Milão escrita em 7 de fevereiro
de 1755 o autor diz: “Da discrepância entre todos os autores que até
hoje escreveram sobre essa qualidade incógnita conclui-se claramente
quanto a pesquisa sobre a irritabilidade das partes animais seja vã, aérea
e insubsistente. O sr. Lorry confunde irritabilidade com movimento ani­
mal; o Sr. De Magni a quer apenas nos va so s.. . ; o Sr. Girard de Villars
a pretende nos nervos, como o Sr. Zimmerman. . . e o Sr. Haller a quer
apenas nos músculos. Outros ainda acham irritáveis todas as partes sen­
síveis dos animais; e outros enfim através de tantas e diversas manei­
ras vão distribuindo esta qualidade pelo mundo dos viventes” (p. 254,
in Fabri, 1757).

73
345
Z X f L l C ^ í T 10 FJ GUH. Æ 9 9 J M Æ .
A.A. Portio mamma tendinis Bovini flexoris longi pedis finiftri •
B.B.B. Membrana cellularis fuo tendini unita, prout eft ia fta-
tu naturali rclicta.
C .C . Pars noubilis nervi itchiatici, q cs duobus ramulis inter fe
di(tinftis a!td inligitur in lubftantiam ipfius tendinis .
D. Plaga arte faâa, qua melius dtftinguitor norum ratnui-
culorum inlertio.
E. Alia pars tendinola rcic&a.
F. Portio oflTea ornamcnti titulo ibi relifta, cui tendo ia»
cumbit.

E X V L I C ^ i T l O F1GUHÆ S E C U V D Æ .
A A A A . Pars défera dur» matris vitelline cerebrum involves»
per mcdietatem (eika, quae rcipicit cranium.
B B B B . Portio ester loris iiiae lamellae ab interiori evoluta, qua
vaginam quafi nervi* conflituit.
C. Nervus opticus.
D* Truncus quinti paris qui dividitur in e . f* g .
b. h. h . Ramuli, qui e trunco quinti paris, fuilque produftionibu*
diramantur, & intra lamella® dura meningis difpcr-
guntur.
I. Pars dura; meningis, qus adhsret crifts Ralli.
K. Notabilis ramuiculus nerveus , qui in punäo L. egredi*
tur e dura matre, fir liber iuperfcandit earn.

EX T LICjtTIO riG VKÆ T E \ T I Æ .


A . Planum reôangulare in medio perforatum.
B. Cyhndrus cavus .
C. Prifma concavum.
D • Prifma folidum dentibu* munitum.
E . E . E . E Lamins bins utrinqtte ana e piano norma liter aíTurgeote».
F. Rota dentata major.
G. Rota minor cum manubrio.
H. Cochlei Prifma iolidum urgent in Rotam dentatam.
I. Cochlea altera firmans Prilma folidum ad profunditatena
qnamlibet dcmiflùm.
L. L. Lamina horizontalis neâcnsLaminas aflurgcntcs, 8cMa*
chinam tcrminans.
M. Corpolcalum rotundum inferendum Prifmati folido ad
comprelfionem ctficicndam «
H. Corpufculum in aciem definens eidem Prifmati adjungen»
d a s I ft vulnerando aptum.
T*rf. a. X« Al
Explicações de Thomas Laghius (1757) sobre as figuras seguintes escritas em uma
carta dirigida a Iacobo Bartholomeo Beccario, presidente do Institutus Scientiarum.
Inervação do tendão flexor longo do pé esquerdo de boi e ramificações nervosas
do V par, na dura-máter de vitela.

E “il Signor N. N.” acrescenta que “esses senhores têm como obje­
tivo a glória do nome e o aplauso do mundo e não o amor da verdade
e do bem público” [Fig. 25, 26, 27]

75
Esta machina apresentada por Laghi (1757) representa o primeiro esforço de
definir não ambiguamente e quantitativamente o “estímulo” responsável pela contra­
ção (irritação) do músculo ou pela sensação (sensitividade). A extremidade do
estilete pode ser esferóide ou aguda e a quantidade de pressão sobre o tecido é
regulada por uma manivela conectada a um mostrador graduado.

76
Ill

Q .Ü Ä S T 1 0 MEDICA
s g o ö ia r r * 4 tjn D a n r r u n o fH a u t

QUAM PROPONEBAT PARISIIS


LODOVICÜS M.* GIRARD DE V1LLAR5
L odo-P M b. M m M td iw M o afp llk afc, Cofefi}
Rcgij M aikonw R u d i s U m , fiü a h m M
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O. C A R O L O G E I L L E D E S A 1H T LEGER
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Cbiratgi* a a n f fe Tacarioraa afUgcre laccai n o W r aaahaatar.
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cclcbravit fe indafc oatai fpccta m i, vir erodidfliauM orfci littera»
rie aoriffhaaa XX fe H aJkr, »aptthia o p a ia n tia w rliff« ratio*
ama atoorati« cwfe ia w tcotaraat agragti ip/»* éHcif*ii ( 1) , ta»
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M afk m (t) rui fe rc IM k â tp tia i aw riti.
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#r i wMf wl •

Página inicial da discussão de G. de Villars, que concluiu pela interdependência


das funções de sensibilidade e irritabilidade e pela necessidade, da participação de
nervos em ambas as funções, contrariamente ao que afirmava a teoria de Haller.

77
24® L etter s Q u x fî»
filetti nervoÎi fulla mesibrana , occulcati alquanto di tratto in tratto
«Jal graífo. Per îo fpazio di roo'ti giorni c?ponev*fi il tenJine colla
membrana ftaccata ai vivi ragßi «ici Sole; il quale a poco a poco
ífcruggendo il graífo taceva s i, ehe la membrana reftaifc più libéra,
c traiparente, c i nervetti, più lcoperîi, e vifibili. I tendini ccsi
afciugati dzl Sole contraiïèro un coîor gialîo fimile a quello dell'
ambra, emulandone ancora la craibaren^a* Io ne coniervo alcuni
fülle ta volette si per ornamento dei mio piccolo musco Anatômi­
co, si ancora per foddisfare alla curiofità di chiunque volette con-
frontare i tendini naturali colle figure, che ho peníato di pubblica-
r e , e colla dcícrizione, ehe qui ne ho data* La prima figura rap-
preienta la gamba finiftra, e la féconda rappreiènta la corda ma­
gna dcl deftro piede.

F!S-
%A. Divifione dcl gran nervo fciacico ne! cavo de! ginocchio in duc
branche.
B. La branca interna.
C. La branca efterna.
D. Ramo dclla branca interna, che difceilde per V intervalle de*
mulcoli gaftrocncnrij U .
£. Aîtro ramo delia branca cíterna.
Fm Uriione de* medeiimi.
6\ Lo:o ranaificazioni, ehe ferpeggiano fulla membrana gratta circa
il tendine d* Achille.
H. Il tendine d* Achille.
h Proicguimento de* mcdeftmi nervi verio il quarto, c quinro dito.
Ft'S> I f.
H tcndinc a Achille del deitro piede.
B. Principio del medefimo.
C. Divifíonc dcl gran nervo fciatico.
D. Rami provenienti dalla branca cfterna £ , e da H* interna F.
G. Loro unione.
H. Ramificazioni de* medefioii, altre dcllc quali fi (pargono fopra
la membrana gratta fpiegata tuori di fito, altre profeguono il
lor cammino nel piede.
VL Conhdo, ehe chi vorrà pigliarfi il piacere di porre a con­
fronto quede figure col naturale, non troverà in ette il diffêtto,chc
iùol incontrarfi ne’ ritratti de* grandi fpofi. Sono quefti talor debi-
tori di qualche ajuto agli errori induitnofi di un accorto pcnnello.
Io insi ho voluto, anche iecondo il configlio di chi ha difegnato le
dette figure, ehe fi omcttcifero alcuni nervetti i quali fi (pandono
per la cellulare, ove elfa cuopre 1* intcrvallo A. ( i j j c V ho vo-
Iuto
Í O 11

Explicações de V. Tosetti sobre os desenhos da figura seguinte “que se confron­


tadas com o natural, não encontrará neles o defeito que se costuma encontrar nos
retratos dos grandes casais”. (In Fabri, 1757).

78
À direita, ramificações do nervo ciático na perna esquerda de cadáver humano, a
partir das “cavidades do joelho”. À esquerda, inervação do tendão-de-aquiles no
homem. Na página oposta, as explicações do autor, V. Tosetti com parte da des­
crição da técnica de preparação. Localizar nervos nos tendões era uma questão
importante na polêmica sobre a insensibilidade e a irritabilidade dos tecidos.

79
DE ROBERT W H YTT
AOS SISTEMATIZADORES

R o b e r t W h y t t (1714-1766) É o a u t o r d e d u a s
obras fundamentais para a compreensão da história da fisiologia do movi­
mento, reflexo ou não: Observations on the nature, causes and cure of
those disorders wich are commonly called Nervous, Hypochondriac or
Hysteric, editada em Edimburgo em 1764 e A n Essay on the vital and
other Involuntary motions of animal, publicado em Edimburgo em 1751,
seis anos antes, portanto, dos Elementa de Haller. Estas duas obras im­
portantíssimas em todos os centros de pesquisa fisiológica dos séculos
XVIII e XIX, concorreram a tomar a doutrina de Whytt, um argumento
de polêmicas que não chegam a encobrir a sua habilidade de pesquisa­
dor e as notáveis contribuições experimentais trazidas por ele à neuro-
fisiologia.
As divergências dizem respeito ao significado atribuído às interpre­
tações teóricas de Whytt, elaboradas a partir dos seus numerosos e geniais
resultados experimentais e, mais precisamente, às suas explicações sobre
o mecanismo fisiológico do movimento muscular.
Skinner (1932) vê em Whytt o valor de ter formulado, por primeiro,
o conceito de ação reflexa “em harmonia com os dados experimentais”
e acrescenta, para documentar a sua afirmação, um trecho da segunda
edição do Essay (1763), onde Whytt faz um relato sobre a contração do
músculo: “Sempre que um estímulo é aplicado aos revestimentos ou mem­
branas que o cobrem, aos nervos que se prolongam até ele ou a uma
parte vizinha ou mesmo distante”.
Boring (1950) afirma que Whytt publicou os primeiros dados expe­
rimentais sobre a ação reflexa (p. 29).
Por outro lado, Canguilhem, sustenta (1955) que se detém sobre
Whytt “justamente porque ele não contribuiu para a formação do con­
ceito de reflexo” (p. 101).
Estes três autores, empenhados em documentar a formação histó­
rica do conceito de reflexo, deixam claramente a entender o quanto é
discutível a relação de Whytt com o assunto que nos interessa neste
trabalho.
Descontado o fato de que a qualquer pensamento genial ou a qual­
quer dado experimental incomum freqüentemente se atribuem significado
e importância que ultrapassam os propósitos do autor, é necessário reco-

80
nhecer que Whytt trouxe uma contribuição fundamental à fisiologia teó­
rica do movimento reflexo.
É do equívoco implícito na confusão de duas influências diversas
que derivam as discussões referentes à qualificação de Whytt como útil
ou irrelevante ao desenvolvimento do estudo experimental do compor­
tamento.
Nós achamos que o conjunto das idéias de Whytt se presta a avalia­
ções contraditórias e isto porque a sua teoria de movimento, se assim
a podemos chamar, é formulada em circunstâncias particulares e em um
momento peculiar da história da neurofisiologia do movimento.
A obra de Whytt, com efeito, assume uma posição intermediária
entre duas tendências da fisiologia do movimento da época, d»e um lado;
doutro lado, em relação à explicação do movimento, representa algo de
intermediário entre duas posições filosóficas.
Quanto ao primeiro ponto, devemos ter presente que Whytt formula
os seus conceitos depois que as teorias de Descartes e de Willis (que
admitiam uma perfeita integração, mais ou menos mecânica e mais ou
menos física, entre impulso aferente, órgãos centrais e impulso eferente)
tinham sido substituídas pelas teorias dos iatromecânicos caracterizadas
justamente pelo desaparecimento de tal integração e pelo princípio de
comunicação entre os impulsos, independente de centros de conversão.
Ao invés da origem central da resposta foi formulado pelos iatro­
mecânicos o princípio da resposta devida ao simples contato físico entre
as partes, o que tirava às vias nervosas a exclusividade no mecanismo do
movimento.
Para os iatromecânicos a causa da contração é atribuída ao “sistema
de membranas” incluídas as dos nervos, das fibras musculares e das
vísceras e músculos. Ao mesmo tempo, porém, florescia a pesquisa sobre
animais descerebrados, da qual Whytt era um expoente de primeiro plano.
Tal pesquisa, até Swammerdan e Baglivi, indicava a existência de
centros motores localizados, embora não cerebrais. A importância da
medula espinal no mecanismo da realização dos mais diversos movimen­
tos musculares tornava-se cada vez mais clara. Whytt, portanto, era
objeto, contemporaneamente, de duas influências: de um lado, a tendên­
cia à descentralização do princípio causal às diversas partes do corpo, na
linha dos conceitos de “contratUidade” dos iatromecânicos e de “irritabi­
lidade” de Glisson e reformulados por Haller como vis insita\ de outra
parte, as crescentes evidências experimentais do papel atribuído à medula
e aos gânglios como centros localizados e responsáveis pelo movimento
e pelas correlações entre estímulos e reações, chamadas “simpatias”.
O procedimento de Whytt, nesta situação, é o de quem quer cons­
truir uma teoria nova sobre bases experimentais, o mais possível indepen­
dente da doutrina em voga: assim ele recusa as especulações sobre a
natureza e função do fluido envolvido nas funções sensoiiais e motrizes e
também o princípio de irritabilidade, do qual Haller se servira para expli­
car os movimentos dos órgãos isolados.

81
Do mesmo modo, refutará também a idéia de Willis relativa a c o d
tatos entre os nervos, que implicam em integrações entre impulsos, sen­
sações e movimentos, as quais se realizam independentemente do sistema
nervoso central. (Foram apresentadas por Willis como explicação das
“simpatias”, isto é, das relações entre a estimulação e a atividade mus­
cular ou glandular distante do ponto estimulado).
Em substituição aos princípios recusados, Whytt propõe, na base de
suas experiências, outras explicações que convergem em um princípio
geral chamado “princípio sensitivo” (sentiens) capaz de explicar quer a
contração dos músculos seccionados, sem ter que fazer intervir o fluido
nervoso, quer as “simpatias”. O princípio sensitivo é, como nota Skinner
(1931) uma causa não física de movimento e é por ter proposto tal
princípio que Whytt é considerado um “animista”.
Para este autor, a razão da contração do músculo seccionado deve
ser procurada no fato de que, não obstante a falta de conexão nervosa,
permanece no músculo a sensibilidade ao estímulo; com razão, portanto,
foi vista nesta posição “uma extensão da alma até onde ela não se esten­
de” (Canguilhem, 1955).
O princípio sensitivo tem uma significação biológica, caracterizada
no Essay, em oposição a toda a doutrina iatromecânica da contração.
Segundo Whytt, essa doutrina implicaria em que a contração mus­
cular, uma vez iniciada a propagação da “oscilação” produzida por um
estímulo sobre a membrana externa de um receptor, deveria ser contínua,
ininterrupta. Esta formulação tem sentido, se recordarmos que Whytt não
reconhece o succus nerveus, recusando ou esquecendo, ao mesmo tempo,
o fato pelo qual Baglivi explicava a interrupção da contração e a sua
duração como devidas ao acréscimo e à permanência do suco nervoso
no músculo, mesmo depois do desaparecimento do estímulo inicial.
Para Whytt o início da contração depende sim do estímulo, mas a
sua cessação é função do principium sentiens, e por isso a contração
muscular resulta de uma ação ordinária da fibra e termina quando o
estímulo desaparece, pois é efetuada para “liberar-se de uma sensação
desagradável”; terminada a sensação, termina também a contração. Essa
explicação claramente antimecanicista, torna a contração dependente da
função biológica da estimulação; a funcionalidade do princípio sensitivo
é claramente expressa por Whytt no Essay: “ a constituição primitiva
do corpo humano vivo é tal que, em conseqüência de uma sensação desa­
gradável, o princípio sensitivo é determinado num instante a produzir
no corpo os movimentos e as alterações necessárias para o afastamento
das causas daquela sensação”.
É curioso notar quanto este passo, escrito por um dos mais altos
expoentes da neurofisiologia experimental, seja passível de aproximação
à obra cartesiana; a tal propósito Canguilhem (1955) refere uma citação
de Fulton: “se no lugar do princípio sensitivo colocamos o centro espi­
nal ou reflexo, esta obra perde o seu sabor do século XVII l e se toma
completamente moderna”.

82
Podemos dizer também, se no lugar do princípio sensitivo coloca­
mos a alma a obra reflete bem a visão do século XVII, ou mais ainda,
a austotética.
O princípio sensitivo é proposto por Whytt para explicar as con­
trações involuntárias como as da pupila em presença de luz, e que, para
este autor, não é devida à pura irritação, como dizia Haller, subenten­
dendo uma perfeita correlação estímulo-resposta, mas ao efeito senso-
rial desagradável, isto é, ao princípio sensitivo.
Na explicação de Whytt, tem-se a tentação de ver a primeira for­
mulação de uma variável interveniente, embora puramente metafísica,
entre estímulos e respostas, para explicar um reflexo.
Dessas contrações involutárias (reflexos) Whytt distingue as vo­
luntárias, que, segundo ele, não dependem necessariamente da presença
de um estímulo.
No que diz respeito ao nosso assunto, essa distinção de Whytt escla­
rece quanto os seus conceitos foram propostos sob uma dupla influência,
por nós lembrada pouco atrás: com efeito, a sua explicação em geral
representa uma solução de compromisso entre as duas posições filosó­
ficas: aquela proposta pelos iatromecânicos, que explicavam a contração
muscular como devida a causas imediatas, físicas, mesmo mecânicas, e,
a outra forte ainda hoje, que considera a alma como princípio da expli­
cação da atividade do organismo, uma concepção presente já no pensa­
mento cartesiano.
De tal modo, Whytt consolida a definição negativa do movimento
reflexo, entendido com atributos negativos, como “involuntário”, “in­
consciente”. Ele define involuntário o movimento reflexo independente
da razão, mas dependente do principium sentiens, que age “também
quando a ação é efetuada somente pela medula espinal”.
Como diz Boring, (1950), na explicação das “simpatias”, ou seja,
do movimento simpático ou da conexão entre uma sensação e uma res­
posta, Whytt nos oferece sua mais válida contribuição que é em última
análise, o fato de ter atribuído à medula o papel de centro do mecanismo
que será chamado mais tarde, arco diastáltico, por Marshall Hall
(1790-1857), já então com clara referência anatômica.
Whytt com efeito, é o primeiro a entrever com clareza o papel
desenvolvido pela medula espinal como centro ao qual chega o impulso
proveniente do estímulo (indispensável) no movimento involuntário, para
nós reflexo, ou na “simpatia” e do qual parte o impulso eferente já que
é o cérebro e a medula espinal que dão origem a todos os nervos (Obser-
vations, 1764); mas o processo de condução, centrípeto ou centrífugo
não é mediado pelo fluxo nervoso, mas sim pelo sensorium comune, um
novo conceito não físico, ao qual Whytt atribui um preciso locus
anatômico.
Influências contrastantes recebidas por Whytt, enquanto concebia
a sua teoria, aparecem também neste ponto: o lugar da reflexão da sen­
sação em movimento, que para Whytt representa a sede do sensorium

83
comune, tinha sido anteriormente fixado por diversos autores em pontos
diferentes do sistema nervoso. Podemos distinguir a este propósito, de
um lado uma tradição “centrista” tendo como seus expoentes Descartes,
e depois Astruc, que localizou o seu sensorium comune na medula cere­
bral inteira, e por fim, Willis que atribuia ao corpo estriado a função de
centro da reflexão.
A outra concepção, ao contrário, localizava o ponto de reflexão
da “simpatia” nos contatos entre nervos em nível não cerebral, chamados
anastomoses das fibras nervosas.
Dessa posição teórica era defensor Vieussens que se inspirava em
Willis com suas “simpatias” e Haller com sua vis insita.
Defronte a tais divergências, o lugar anatômico proposto por Whytt
para o sensorium comune, representa uma síntese das duas tendências
descritas, embora na sua obra ele se tenha baseado, mais que tudo, em
observações experimentais. A sede do sensorium comune é para ele
central, mas não exclusivamente encefálica; as “simpatias” — para nós,
os movimentos reflexos — são devidas somente ao sensório comum, que
não age através do cérebro e da medula, mas possui uma verdadeira
fisionomia anatômica, é uma “parte” composta do cérebro e da medula
espinal à qual qualquer simpatia deve ser atribuída enquanto é esta parte,
“cérebro e medula que dão origem a todos os nervos” (Observations,
1764). É assim que Whytt, sem declará-lo abertamente, formula o seu
conceito de arco reflexo, no qual pela primeira vez o papel da medula,
como centro de conversão do impulso centrípeto em impulso centrífugo,
fica claramente estabelecido.
As contrações independentes de um arco de tal gênero se expli­
cam com o conceito de principium sentiens e as que chamamos movi­
mentos reflexos têm como contraparte anatômica três elementos: um
nervo aferente, o sensório comum e um nervo eferente.
O conceito de reflexo, que parecia ter desaparecido durante o desen­
volvimento das teorias iatromecânicas e depois de Haller, adquire, graças
aos estudos de Astruc e de Whytt, uma posição proeminente na neuro-
fisiologia em geral e na teoria do movimento em particular, ainda que
a contribuição de Whytt tenha sido, em muitos sentidos, acessória.
A sua obra foi de importância decisiva para os fisiologistas, não
tanto quanto aos conceitos, na verdade um tanto retrógrados, mas por
sua organização dos dados experimentais, organização esta que assegu­
rou um papel proeminente à medula no mecanismo do movimento
reflexo.
Na verdade é de Whytt a primeira elaboração sistemática de tais
dados em vista da teoria do movimento: ele abriu assim o caminho para
os dois grandes sistematizadores que virão depois dele: Unzer e Prochaska,
autores de obras indispensáveis nos grandes centros de pesquisa neuro-
fisiológica do século XIX, em que surgirão os grandes trabalhos cien­
tíficos de Claude Bernard, Helmholtz, Johannes Muller e outros.

84
Por outro lado, é necessário não esquecer que, se de Borelli e
Astruc em diante, a alma começava a ser descartada como princípio
metafísico de explicação do comportamento e se Haller, embora usando
conceitos pouco materialistas, como a vis insita se esforçava para se des­
vincular de qualquer concepção metafísica, Whytt com o seu principio
sentiens reinsere implicitamente a explicação animista que terá sua rea­
parição mais tarde, em 1853, na obra de Pflüger (1829-1910).

J. A. Unzer (1727-1799). Ao modelo integrado, com um meca­


nismo centralizado dos movimentos musculares, incluídos os reflexos,
seguiu-se, como vimos, o modelo dos iatromecânicos que anulava o
primeiro, principalmente no que se refere à difusão do princípio respon­
sável pela conversão de um impulso aferente em impulso eferente.
A obra de Whytt, sob muitos aspectos, representa um esforço para
conciliar tal tendência de descentralização do centro de conversão com
o desenvolvimento dos conhecimentos experimentais a respeito do papel
da medula na produção das “simpatias” ou dos movimentos reflexos.
É sob esta luz que os conceitos como vis contractillis e vis insita e prin­
cipalmente o principium sentiens de Whytt, devem ser vistos.
O panorama geral da neurofisiologia do movimento, em conseqüên­
cia desta confusão de princípios não físicos, de um lado, e também dos
resultados experimentais que indicavam a necessidade de identificar
centros anatômicos especialmente responsáveis pelos movimentos reflexos,
apresenta nessa época, uma evidente necessidade de reformulação teórica
sistemática. É precisamente este o significado dos trabalhos de Unzer
e Prochaska.
Unzer, tinha à sua disposição uma experiência experimental apro­
fundada sobre as funções da medula e dos nervos: das suas experiências
sobre os efeitos motores induzidos em rãs, graças às secções dos nervos
e da medula em diversos níveis, resultou seu trabalho mais importante,
publicado em 1771, com o título de Primeiros princípios de uma fisiolo­
gia da natureza característica do organismo animal traduzido para o
inglês por T. Laycock em 1851.
Nesse trabalho, Unzer examina criticamente os trabalhos dos iatro­
mecânicos, reafirmando a idéia de que o organismo animal pode ser
comparado a uma máquina, embora de tipo diverso daquelas construí­
das artificialmente: a máquina orgânica mesmo reduzida aos seus
elementos mais simples, revela neles, propriedades funcionais mecânicas,
enquanto os constituintes últimos das máquinas artificiais, ou não orgâ­
nicas, não são capazes de desenvolver por si mesmas qualquer função
mecânica.
Essa visão de Unzer, posta em destaque por Canguilhem (1955),
parece-nos importante porque é a primeira atenção, em toda a extraor­

85
dinária história do reflexo, à necessidade de limitar a decomposição ana­
lítica a uma unidade elementar, que reflita as características fundamentais
das unidades mais complexas donde procede o processo analítico.
Como veremos mais adiante, Séchenov, Pavlov e Skinner conce­
berão o reflexo como a unidade última da análise do comportamento,
tendo presente que além do reflexo (a forma mais simples de correlação
entre os organismos e o ambiente) a análise não trata mais do com­
portamento.
A posição de Unzer se individualiza claramente no seguinte passo
de outro trabalho: 44A sensibilidade de origem externa pode produzir
no corpo os mesmos movimentos animais que produziria se fosse acom­
panhada por sensação, mesmo não chegando ao cérebro e portanto sem
a sensação”.
Nesse trecho pode-se ver a explicação do movimento reflexo (carac­
terizado como inconsciente) compreendido como produzido por centros
subcorticais, e nota-se também a idéia de que a consciência ou percepção
de uma impressão sensorial implica continuidade entre o receptor e o
cérebro, por meio do nervo.
Unzer com razão se opõe à vis insita e à vis contractillis, para
restituir à via nervosa o papel de elemento essencial na produção de
movimentos inconscientes do cérebro e das sensações (percepções) e que
implicam a condução nervosa da excitação periférica ao cérebro.
Podemos afirmar, que Unzer retorna ao modelo “centralizado” do
movimento, embora admitindo também centros subcerebrais e confiando
a estes o papel principal na produção do movimento reflexo, assim como
suas pesquisas indicavam, na linha dos estudos de Whytt sobre a função
“central” da medula.
A orientação esquematizante de Unzer vai mais longe, enquanto
dá uma nova veste sobre bases experimentais, à doutrina de Vieussens
e Willis, altamente especulativa, sobre as anastomoses entre as fibras
nervosas em nível periférico, entendidas por eles como centros de con­
versão dos impulsos centrípetos em centrífugos.
Ele distingue, de fato, diversos centros de contato entre sensações
e movimentos, isto é, em linguagem mais atinente ao corportamento,
entre estímulo e resposta: o cérebro, os gânglios, os plexos e as rami­
ficações ou bifurcações.
Algumas sensações chegam a um gânglio e dão origem a movi­
mentos; outras, semelhantes, são refletidas (reflektiret) em um plexo
nervoso ou uma bifurcação das fibras nervosas.
O conceito de pontos de reflexão é a contribuição teórico-metodo-
lógica mais fecunda de Unzer, no que se refere à análise do comporta­
mento. Isto por duas razões: primeiro porque Unzer é o defensor da
similaridade funcional entre movimentos provenientes de pontos de re-

86
flexão de níveis diferentes do sistema nervoso; segundo, porque esta­
belece um mecanismo fisiológico para explicar os movimentos acom­
panhados de percepção.
Na ordenação hierárquica desses pontos de reflexão (cérebro,
gânglios simpáticos e plexos nervosos) se resume o programa da inves­
tigação neurofisiológica do movimento, no século XIX.
Devemos também assinalar que, baseado na infra-estrutura ana­
tômica dos diversos reflexos, Unzer nos oferece uma descrição do me­
canismo fisiológico por meio do qual um movimento reflexo se origina
(Canguilhem, 1955): “uma excitação externa bem determinada pode
produzir uma impressão sensorial bem determinada que toma a via do
nervo, segundo seu modo característico, por meio do qual ela é, por
uma necessidade natural, refletida em gânglios e bifurcações determi­
nadas e obrigada a transmitir à distância. . . um efeito nervoso mediato”.
Quando Séchenov em 1862, procurará aplicar o arco reflexo ao
estudo das relações entre percepção e movimento, suas afirmações serão
muito semelhantes a esta de Unzer.
No que se refere aos movimentos estritamente reflexos, isto é, os
que não requerem a intervenção do cérebro, Unzer não se mostra menos
penetrante quando afirma, aludindo aos movimentos da rã descerebrada
com aplicação de um estímulo táctil a uma pata, que “esta ação nervosa
é devida a uma impressão sensitiva interna não acompanhada de repre­
sentação, a partir de uma impressão sensória externa reflexa”.
O movimento reflexo é, segundo esse autor, um efeito muscular
produzido por uma ação nervosa eferente, a qual é por sua vez o produto
da reflexão de uma impressão sensorial externa sobre um centro subce-
rebral.
Além do valor da teoria de Unzer, sobre os gânglios e plexos do
sistema nervoso simpático, parece importante, para os fins da nossa
análise, salientar quanto o conceito de reflexo, em Unzer, revista carac­
terísticas de instrumento metodológico.
Seu reflexo permite explicar a maior variedade de movimentos de
diferentes espécies animais, em organismos íntegros ou descerebrados.
Devemos, finalmente, notar que Unzer oferece uma base teórica
à caracterização negativa do reflexo como “inconsciente e involuntário” :
é o que se deduz dos seus termos “sem representação” e “segundo uma
necessidade natural”.
Por outro lado, ao desenvolvimento da neurofisiologia experimental,
os conceitos de Unzer oferecem um modelo muito válido.
Relativamente à análise experimental do comportamento, devemos
dizer que Unzer, empenhado em sistematizar os seus conhecimentos fisio­
lógicos e os de seus predecessores, não podia deixar de insistir sobre os
centros que as experiências indicavam como meios importantes na
produção da atividade reflexa e que correspondiam justamente às reações
reflexas mais características, dada sua exclusiva dependência de um estí­
mulo e da integridade anatomofisiológica do arco reflexo envolvido.

87
Será Prochaska, treze anos mais tarde que admitirá a idéia de “refle­
xões que se fazem conscientemente e inconscientemente”.

G. Prochaska (1749-1820). Este autor publicou sua obra mais


importante em 1784, com o título de Adnotationum academicarum fas-
ciculus tertius, em que revela todo seu talento de crítico e de sistemati­
zador da fisiologia nervosa de seu tempo.
Prochaska empenhava-se em formular uma proposição teórica
pessoal tendo como base as teorias do tempo e, com elas, os resultados
experimentais derivados dos seus estudos pessoais e dos predecessores.
A contribuição de Prochaska, desenvolveu-se sob uma dupla
influência: a da neurofisiologia e a da preocupação de chegar à for­
mulação ex novo do conceito de reflexo como explicação dos movimen­
tos musculares involuntários, explicação proposta antes por Unzer.
No campo da fisiologia nervosa Prochaska é o defensor de dois
princípios fecundos, propostos antes mesmo da segunda metade do século
XIX e aplicados principalmente nos laboratórios de neurofisiologia euro­
peus na segunda metade desse mesmo século.
O primeiro se refere à função dos diversos segmentos da medula
na produção dos movimentos reflexos. Devemos lembrar, neste ponto,
que após os estudos assistemáticos de Baglivi e os mais metódicos de
Whytt, com Prochaska é atribuída uma importância nova à medula.
De fato, graças à vis nervosa de Haller e à insistência de Unzer em
sublinhar a importância dos gânglios simpáticos e dos plexos como
centros de reflexão, a medula fora relegada a uma importância secundária-
Com Prochaska tem-se a primeira formulação clara das funções
da medula como o centro nervoso, por excelência, do reflexo. Para este
autor, de fato o órgão em que a sensação se reflete num impulso exe­
cutor, ou seja, o locus anatômico do sensorium comune é, ao invés do
cérebro, a medula oblongata e a medula spinaUs, chamadas hoje bulbo
(raquidiano) e medula espinal.
A propriedade sensorial da medula espinal distribuída através de
toda a sua extensão está presente também nos segmentos separados
cirurgicamente do corpo medular.
Prochaska descreve, a propósito, uma experiência sua sobre uma
rã, da qual obtinha movimentos dos membros após uma excitação do
segmento distai da medula.
Canguilhem (1955) vê nesta experiência o fundamento para uma
importante distinção entre Haller e Prochaska no que se refere à vis
nervosa, aceita por ambos como princípio explicativo do processo de
condução.
Com efeito, para Prochaska, ela é divisível e não depende da inte­
gridade do sistema nervoso; esta divisão parece importante porque na
concepção de Prochaska a vis nervosa perde o seu aspecto vitalista e

88
se toma independente das ligações entre um segmento do organismo e
o cérebro. É deste modo que ele pode definir o movimento reflexo como
produzido pela medula ou por um segmento dela, como efeito da chegada
de uma impressão sensorial a ele, graças à vis nervosa, excluindo assim
a interferência do cérebro na produção do movimento reflexo.
Além da medula, o reflexo pode ser provocado por “centros de re­
flexão” gangliares: nisto Prochaska adota a concepção de Unzer admi­
tindo que tanto os gânglios simpáticos como os das raízes posteriores dos
nervos raquidianos são aptos a funcionarem como pontos de conversão
de uma sensação em movimento, isto é: como centro de uma “simpatia”
ou, segundo nós, de um reflexo.
A segunda orientação dada por Prochaska à pequisa neurofisioló-
gica se refere à anatomia comparada. Ele estuda o sistema nervoso na
série animal e não numa determinada espécie de sujeitos experimentais:
para este autor, a diferença entre os animais de sistema nervoso pouco
complexo e os de sistema nervoso mais complexo, como os mamíferos
freqüentemente utilizados nas suas pesquisas sobre as “simpatias” e os
movimentos (reflexos ou não), é uma questão de quais “centros de refle­
xão” têm à disposição cada organismo estudado.
Assim o conceito de reflexo ganha, na doutrina de Prochaska, uma
plasticidade que o toma um cômodo instrumento metodológico para o
estudo comparativo das funções de espécies diversas.
Nota-se que essa visão das diferenças de atividade, entre espécies
diferentes, como função do grau de diferenciação anatômica de cada espé­
cie foi formulada cerca de 70 anos antes da publicação da obra maior
de Darwin (1809-1882), editada em 1859. Notamos também que o
reflexo passa a ser um tipo de função, independente das variações dos
elementos anatômicos subjacentes, de uma espécie a outra ou de um
segmento do sistema nervoso a outro.
A teoria de Prochaska precede também Pavlov, ao insistir sobre o
significado biológico defensivo do repertório de reações reflexas nas
diversas espécies animais.
Como nota Canguilhem (1955), a medula funciona como centro
de conexão entre os impulsos aferente e eferente segundo uma deter­
minada lei: a lei da conservação do organismo, nostri conservatio (p.
118).
Com efeito, como em seguida veremos, os exemplos de reflexos
apresentados por Prochaska são tipicamente reflexos defensivos. Para ele,
o movimento reflexo, ainda que com o nome de “simpatia”, existe tam­
bém nos animais menos complexos que o homem, como os privados de
cérebro. O homem se diferencia dos outros animais de cérebro pelo fato
de possuir uma alma; contudo tal alma “ .. .não introduz absolutamente
nenhuma ação dependente inteiramente e unicamente desta, mas todas as
ações se cumprem através do sistema nervoso como seu instrumento”
(1784).

89
O sistema nervoso é portanto um instrumento da alma, mas somente
no que diz respeito àqueles movimentos para cuja produção não bastam
os centros medulares e gangliares, isto é, os movimentos não reflexos.
No que diz respeito ao problema que nos interessa particularmente,
isto é, o da formulação do conceito de reflexo, Prochaska é talvez o teó­
rico mais importante do seu século. Consideraremos em primeiro lugar o
mecanismo do reflexo como ele o entende.
Prochaska mantém e elabora dois princípios dos seus predecesso­
res, a vis nervosa e o sensorium comune: a primeira, ao contrário de
quanto ensinava Haller, seria independente de ligações diretas e
indiretas da fibra nervosa ao cérebro.
De fato, desde os tempos de Whytt, Haller e Unzer, se havia demons­
trado que a condução da sensação ou do impulso motor se efetuava tam­
bém em animais privados de cérebro ou em segmentos medulares isolados.
Para explicar sua vis nervosa, Prochaska insiste sobre dois pontos:
ela depende da relação entre a fibra e o sensório comum, que, como
vimos, é uma propriedade da medula oblongata e da medula espinal,
enquanto, por outro lado, depende necessariamente de um estímulo que,
hoje, podemos definir eliciador.
Em termos mais atuais, poder-se-ia traduzir a proposição de Pro­
chaska dizendo que o processo de condução depende de um contato
nervoso entre o sensório comum e um receptor, por um lado, enquanto,
por outro lado, implica que a fibra que conduz o impulso efetor parta
do sensório comum.
Prochaska não considera necessário, para os fins do movimento,
que a sensação seja conduzida ao cérebro: basta que chegue à medula.
Assim, a vis nervosa é um sentido somático, sine perceptione.
Para deixar claro o quanto Prochaska é preciso na sua definição de
reflexo, basta ter presente que é ele o primeiro a determinar a anatomia
“mínima” do arco reflexo. Ensina ele que a sensação implica em contato
entre o nervo sensitivo e o cérebro e que a realização de um movimento
requer conexão entre nervo motor e músculo. Contudo, o nervo sensitivo,
mesmo isolado do cérebro, mas ligado ao sensório comum (isto é, me­
dula), junto a um nervo motor (ligado a um músculo), pode produzir
o movimento. Ademais, também Prochaska, como Haller, admite a exis­
tência de centros de reflexão gangliares, como já se falou.
Depois de tais considerações parece impossível que o arco reflexo
tenha sido descrito e ilustrado graficamente por Wagner somente em
1844, 60 anos depois do De functionibus de Prochaska (1784). Graças
à vis nervosa “ . . . impressões externas exercidas sobre os nervos senso-
riais e conduzidas ao sensório comum refletem-se muito rapidamente e
violentamente, passam através dos nervos motores e eliciam o movimento
e as convulsões, contra a vontade da alma” (De functionibus, 1784).
A expressão “contra a vontade da alma”, contra animae voluntatem,
diz quanto o reflexo seja uma conexão de causa — efeito entre estímulo
e resposta, segundo Prochaska.

90
O reflexo é, por definição, involuntário, mas não necessariamente
inconsciente.
Com efeito, Prochaska insiste muito sobre a função do sensório
comum, que consiste na reflexão de impressões sensoriais em efetua-
ções motoras, que “esta reflexão se faz quer consciente quer inconscien­
te. . . no mesmo sensório comum. . . sem a alma saber” (reflexio vel
anima inscia, vel vero anima cônscia fia t. .. ).
O exemplo tradicional do reflexo palpebral produzido pela aproxi­
mação de um objeto ao olho é tomado por Prochaska para ilustrar seu
ponto de vista decididamente moderno: “se um amigo aproxima seu dedo
ao nosso olho. . . esta impressão conduzida pelo nervo óptico ao sensó­
rio comum reflete-se (reflectitur) de tal modo nos nervos destinados aos
movimentos das pálpebras que involuntariamente (nollentibus) se fecham
as pálpebras” (1784).
A simples substituição de expressão sensório comum com uma equi­
valente do mesmo Prochaska medula oblongata ou medula spinalis bas­
taria para transformar esta descrição dos fins de 1700 num texto do
nosso século.
A contribuição de George Prochaska ao desenvolvimento do estudo
do comportamento não se restringe às suas luminosas teorias estrita­
mente fisiológicas nem à formulação sistemática do conceito de reflexo,
sobre bases experimentais: ele é o primeiro a dar ao reflexo a conotação
de eliciável, isto é, a propriedade de ser provocado necessariamente por
um estímulo. Não tem importância, neste ponto, que ele se tenha servido
de uma vis nervosa ou de um sensorium comune.
Prochaska define o reflexo como correlação observada entre estí­
mulo e resposta, embora subentendendo o arco anátomo-fisiológico cor­
respondente.
Outro aspecto positivo, principalmente em relação aos desenvolvi­
mentos sucessivos, é o nítido impulso dado à pesquisa fisiológica em
direção a uma fisiologia que considerasse as funções orgânicas em rela­
ção com as condições ambientais: fá-lo notar Canguilhem (1955) quan­
do afirma que Prochaska entrevê a subordinação dos mecanismos fisio­
lógicos ao sentido propriamente biológico das reações de um organismo
considerado como um conjunto (p. 119).
Uma neurofisiologia que estude o organismo em união com as con­
dições ambientais, usando como método a eliciação ou produção de refle­
xos, surgirá destas idéias.
Quando Marshall Hall tomar pública, em 1832, sua teoria sobre a
ação reflexa, reivindicando, de maneira nem sempre simpática, a origi­
nalidade das suas afirmações sobre o papel da medula na ação reflexa,
diversos autores insistirão com razão, sobre o fato de que Prochaska tinha
já descrito claramente a função da medula como sede do sensório comum

91
e portanto como centro de conversão de impulsos aferentes em impulsos
eferentes, tudo sobre bases experimentais.
Outros dois aspectos positivos no que diz respeito ao estudo do com­
portamento são a marca francamente determinística que Prochaska deu
ao movimento reflexo e à delimitação do papel da alma, em verdade
reduzido a pouca coisa, mesmo na produção da ação muscular não
reflexa, como já temos assinalado.

92
DE M. HALL A E. PFLÜGER

M arshall H all (1790-1857), apresenta uma


rigorosa distinção entre movimentos voluntários e involuntários, num
artigo lido diante da Royal Society, sob um título que lembra Prochaska:
“Sobre a ação reflexa da medula oblongata. e da medula spinalis” (Philos.
Trans. 1833, 126, 635-665).
Boring (1950) sublinha o fato de que tal artigo suscitou a “famosa”
polêmica entre Pflüger e Lotze, através da qual se discutiu se os reflexos
medulares descritos por Hall e, antes ainda, por Prochaska, fossem cons­
cientes ou inconscientes. Mas já a obra de Hall tinha constituído, por si
mesma, um assunto de polêmica que dividiu em dois grupos os neurofisio-
logistas do século XIX: por um lado, os defensores da originalidade de
Prochaska na teoria da medula como órgão nervoso central do reflexo
e, de outro, os simpatizantes de Hall que atribuíam a este a formulação
original de tal princípio.
De fato, deve-se reconhecer que Hall acrescenta muito pouco às
proposições de Prochaska.
Na obra citada, Hall considera quatro diversos tipos de movimentos,
descritos diversamente por autores modernos (Boring, Skinner e Can-
guilhem): voluntário, sob controle cerebral; respiratório, dependente da
medula oblongata; involuntário, devido à excitação da mera fibra neuro-
muscular; finalmente o movimento reflexo, isto é, aquele que sendo inde­
pendente do cérebro e da consciência, depende necessária e unicamente
da medula espinal.
Segundo Boring (1950), a importância desta definição do reflexo
reside na insistência sobre a necessidade de estimulação sensorial “pre­
parando assim o caminho para o conceito de arco reflexo” (p. 37).
Nós, porém, temos a impressão de que este serviço para a história
do reflexo já fora realizado por Prochaska.
Ê importante notar o quanto Hall insiste sobre a natureza incons­
ciente do reflexo que — como atesta Boring (1950) — foi abandonado
à fisiologia, enquanto a nova psicologia se ocupava da ação voluntária
e dos tempos de reação (p. 39).
Boring acrescenta, muito sutilmente, que a essas categorias cons­
cientes e inconscientes correspondia, até Pavlov, a delimitação entre psi­
cologia e fisiologia.

93
Pavlov, de fato, demonstrou que os reflexos inconscientes podiam
ser adquiridos, o que, não podia deixar de interessar aos psicólogos.
Antes de acenar à obra de Pflüger, reexaminemos brevemente o de­
senvolvimento do conceito de reflexo a partir de Willis e dos iatrome-
cânicos italianos.
Depois de tal período as contribuições mais notáveis vieram de
Astruc que definiu o reflexo (“simpatia”) com um centro cerebral de
reflexão; de Whytt, que descreveu vagamente a ação reflexa, por quanto
comprometida por uma base não física (como afirma Skinner) não mecâ­
nica (como nota Canguilhem), constituída pelo seu principium sentiens.
Whytt, porém com seus estudos sobre as funções da medula, atraiu
a atenção de Unzer, o qual, em vez de aprofundar tal questão, descen­
tralizou ainda mais os pontos de reflexão da sensação em movimento.
Para este autor, os centros de reflexão incluem cérebro, gânglios e plexos
nervosos.
Depois de Unzer, Prochaska dá à medula o papel idôneo e localiza
nos centros medulares e gangliares o ponto de reflexão (reflexio).
Para Prochaska o reflexo depende de um estímulo, um nervo afe­
rente, um centro medular ou gânglio, um nervo efetor e um músculo. O
reflexo pode ser consciente ou inconsciente.

E. Pflüger (1829-1910) dá-se conta imediatamente de como o


reflexo assim definido por Prochaska pode servir como objeto de análise
mais minuciosa, e se dedica, lá por 1850, a estudar as propriedades do
reflexo, não mais sob um ponto de vista teórico, mas sim, em situação
experimental, por meio de operações capazes de produzir controlada-
mente o reflexo.
Esse autor formula, por primeiro, as leis clássicas do reflexo medu­
lar de Prochaska. De Pflüger é pois o mérito de ter estabelecido as pro­
priedades definidoras dos movimentos reflexos.
A ele também cabe a paternidade da idéia de mente espinal (spinal
mind) (Skinner, 1951) ou “da consciência medular” (Canguilhem,
1955).
Com tal princípio, Pflüger, aquele que tinha aperfeiçoado a defi­
nição das propriedades físicas do reflexo, entendia explicar porque os
movimentos reflexos, sendo tão importantes na economia do organismo
— como de resto afirmava Prochaska — e sendo independentes do cére­
bro, têm, apesar de tudo, uma direção: a de proteger a economia e a
integridade do organismo.
Contra Lotze, que insistia sobre a natureza inconsciente dos reflexos
medulares, Pflüger insiste em dizer que os reflexos têm um objetivo
(purpose). Este se deve a um particular sentido, igual ao sensorium co-
mune de Prochaska. Assim, “a funcionalidade das reações reflexas seria
explicada com uma concepção teleológica da vida orgânica” (Cangui­
lhem, 1955).

94
Em 1953, Soula escreve resumindo a evolução histórica do reflexo:
“O ato reflexo, conquanto localizado, não é a resposta de um demento
motor a um elemento sensível. . .; o ato reflexo, também na sua forma
mais simples, é a reação de um ser vivente e indivisível a uma excitação
de seu ambiente” (Précis de Physiologie, p. 878), É neste sentido que
deve ser entendida, a nosso modo de ver, a infeliz, e desaventurada
mente espinal criada por Pflüger.
Como nota Skinner (1961), na medida em que tal conceito servira
para explicar as variações de um movimento reflexo independentemente
de eventuais variações do estímulo, sua validez foi destruída por Uexkull
(1864-1944) e por Magnus (1802-1870). Estes demonstraram que a
variabilidade era devida, ao menos nos seus animais privados de cérebro,
aos estímulos internos, proprioceptivos, produzidos pelas simples modi­
ficações de postura dos animais.
A relação de necessidade entre estímulo eliciador e resposta reflexa
não justificava portanto o apelo a uma consciência medular, para expli­
car como, dado um estímulo, a resposta não se apresentasse sempre em
estrita correspondência às leis que o mesmo Pflüger estabelecera.
A relação estímulo-resposta explicava o aparecimento desta última,
e os seus desvios em relação às leis se deviam, segundo Magnus e Uexkull,
à ação de outros estímulos correlatos que produziam alterações nas
características descritivas das respostas.
Pela metade do século XIX, depois da decisiva contribuição de
Unzer (1727-1799), e de Prochaska (1749-1820) à formulação teórica
da fisiologia do reflexo e do movimento muscular, e da contribuição me­
todológica básica dos estudos de Galvani (1737-1798) e Volta
(1745-1827), o conceito de reflexo se torna matéria de numerosos estu­
dos paramétricos, no campo da fisiologia do movimento muscular.
[Fig. 28]
Os grandes centros de pesquisa fisiológica e neurológica utilizam
diariamente o reflexo, seja como critério de medida e de definição, seja
como uma unidade de análise dos processos nervosos e musculares.
Uma exposição sistemática do quadro da fisiologia nervosa do
tempo, surge no monumental trabalho de Johannes Muller (1801-1858)
Handbuch der Physiologie des Menschen (1833-1840), no qual, junta­
mente com notáveis contribuições pessoais, Muller organiza a já imensa
lista de dados experimentais da época.
A descoberta de novos arcos reflexos, a análise funcional dos recep­
tores, o estudo dos efetores externos e internos, as medidas do processo
da condução nervosa são as grandes áreas em que floresce a fisiologia
do século XIX, toda ela endereçada à procura de novos reflexos e à
especificação e medida das funções de seus três elementos: receptor,
centro nervoso e efetor (interno ou periférico).
Grandes centros de pesquisa neurofisiológica se formam em Viena,
com Helmholtz (1821-1894) em Berlim, com J. Muller (1801-1858) e
Magnus (1802-1870) e em Paris com Claude Bemard (1813-1878)

95
96
Na época em que, nestes centros, se desenvolviam pesquisas de van­
guarda, e quando estes eminentes cientistas chegavam à sua plena matu­
ridade e autoridade científica, um jovem médico russo, Ivan Mikhai­
lovich Séchenov, entre os anos de 1856 e 1862, tendo-se diplomado aos
trinta anos, parte da Universidade de Moscou e estuda em todos os cen­
tros acima citados, aplicando-se principalmente em seguir os estudos de
Du Bois Reymond, Helmholtz, Magnus.
Para pesquisas mais sistemáticas fixa-se em Paris, onde trabalha
sob a direção de Claude Bernard.
Séchenov, que se beneficiara no curso universitário, dos ensinamen­
tos de dois eminentes fisiólogos russos, Orlovsky e Glebow, da Univer­
sidade de Moscou, pôde completar a sua formação científica junto aos
centros mais bem aparelhados da Europa de então. Este homem tão
bem preparado, depois de haver conseguido, como pesquisador, lison­
jeiros sucessos no campo do sistema nervoso central, publicará enfim o
trabalho em que o conceito de reflexo veio sistematicamente entendido,
pela primeira vez, como unidade de análise, não mais da fisiologia do
movimento, mas do comportamento humano (e animal).
O trabalho de Séchenov, publicado em 1863, quatro anos depois
da revolução científica devida a obra de Darwin, A origem das espécies,
teve como título Os reflexos do cérebro e será objeto de discussão mais
adiante.

97
I. M. SÉCHENOV E OS
‘REFLEXOS DO CÉREBRO”

Em 1849, ano d o n a scim en to de Ivan P avlov,


morria um importante especialista da fisiologia experimental, Filomafitsky,
cujo nome está ligado à história de Pavlov por três motivos: a) por ter
sido professor de Bossov, autor da primeira “fístula” estomacal, isto é,
da primeira abertura feita no estômago de um animal para observar in
vivo processos fisiológicos em curso; b) por ter sido professor de Botkine,
companheiro de pesquisas de Séchenov em Paris e o primeiro a oferecer
um trabalho “permanente” a Pavlov; c) por ter sido contemporâneo de
Orlovsky e de Inotzentzev, dois especialistas em atividades tróficas do
sistema nervoso, os quais convidaram Séchenov a participar de seus pro­
gramas de pesquisas em fisiologia nervosa: o primeiro trabalho publicado
por Séchenov, em verdade, foi executado na clínica de Inotzentzev.
Quando Filomafitsky morreu, Séchenov, nascido na antiga provín­
cia de Sibirsk em 1829, tinha vinte anos e estava procurando seu cami­
nho, primeiro como militar na Escola de Engenharia Militar de Petro-
grado, e em segundo lugar, como aluno da Faculdade de Medicina da
Universidade de Moscou.
Tendo-se diplomado, aos trinta anos de idade, Séchenov pôs-se a
viajar pela Europa em companhia de dois famosos personagens do tem­
po: o compositor Borodin, autor do Príncipe Igor e o químico Mende-
leiev (futuro mestre de Pavlov que, neste tempo, tinha apenas sete anos
e estudava o russo com uma senhora “exigente” de Riazan).
Em 1860 foi publicada a tese de Séchenov com o título Dados
para a futura fisiologia da intoxicação alcoólica: neste trabalho o seu
pensamento já começa a maturar-se ao redor da idéia de uma fisiologia
que explique o funcionamento do organismo como parte de uma unidade
maior incluindo o próprio organismo e as forças ambientais que operam
sobre ele.
Este princípio ficou formulado mais claramente no ano seguinte,
na sua Primeira Aula publicada pela Meditzinsky Vestnik (1861): “O
organismo não pode existir sem o ambiente externo que o mantém; por
conseqüência, uma definição científica do organismo deveria incluir tam­
bém o ambiente que atua sobre ele” (n.° 26, p. 242).

98
Os ulteriores efeitos desta idéia se encontrarão mais abertamente na
idealização, por parte de Pavlov, do “método crônico” para o estudo da
fisiologia da digestão, como veremos adiante.
Koshtoyants, em uma biografia de Séchenov, afirma: “este postu­
lado está na base de suas descobertas em fisiologia. Em todos os seus
experimentos, ele partia do pressuposto da decisiva importância da per­
cepção dos estímulos externos, através de elementos sensoriais definidos,
para a atividade reflexa do sistema nervoso central”.
Em 1856, Ivan Séchenov realizou novas descobertas no famoso labo­
ratório de Claude Bernard em Paris, onde, além de se beneficiar da
valiosa influência deste, entrou em contato com Botkine; os dois cien­
tistas exerceram, com o seu empenho experimental, uma influência deci­
siva nas atividades futuras de Séchenov.
Nesse tempo já havia sido publicado o livro de Spencer A s bases da
psicologia (julho de 1855) e suas idéias sobre as relações entre evolução
e origem da faculdade psíquica, impressionaram Séchenov (Frolov, 7 /8 ).
Em 1862 ele voltou ao laboratório de Claude Bernard, três anos
após a publicação revolucionária de Darwin A origem das espécies. Nesta
segunda estadia em Paris estudou os centros nervosos que inibem os mo­
vimentos reflexos.
É nesse período que Séchenov descobre a inibição de determinados
movimentos reflexos em rãs espinais com a aplicação de cristais de sal
ou corrente elétrica no cérebro médio. É a partir destes estudos, da
influência de Claude Bernard, de Helmholtz, de Botkine; da leitura de
Darwin e do conhecimento dos escritos de Locke, ao qual o seu tra­
balho se refere mais de uma vez, que Séchenov dá forma à sua publi­
cação de 1863: Os reflexos do cérebro.
John Locke, já em 1690, no seu Essay Concerning Human Under­
standing, havia formulado o princípio das “associações” para explicar
uma extrema variedade de comportamentos nos quais, ainda que não
expressa como princípio de aprendizagem, se encontra já a substituição
dos estímulos como origem de gostos, desgostos, desejos e outros aspec­
tos constitutivos da assim dita “vida psíquica”.
O primeiro título do trabalho de Séchenov, mais adaptado ao seu
estilo de pesquisa e de vida e substituído por exigência da censura gover­
namental, era: Uma tentativa de estabelecer as bases fisiológicas dos pro­
cessos psíquicos. Esse título mostra que Séchenov, longe da Rússia por
vários anos e todo compenetrado nas suas pesquisas, não tinha calculado
quanto de provocação continha sua obra para a igreja-estado russa de
então, e quanto fosse difícil opor-se à doutrina oficial da época que consi­
derava a alma como princípio único para explicação da “vida psíquica”.
Nessa época, o número de cientistas que eram expulsos do país era
considerável; as agitações populares contra o estado czarista eram fre­
qüentes e o controle das publicações tornou-se, como conseqüência, mais

99
severo. Daí surgiu, para Séchenov, uma notável dificuldade para divulgar
as idéias que desejava “comunicar ao mundo”.
A censura estatal, na verdade, impôs não somente que o título da
publicação fosse trocado, mas também que fosse impressa como parte
de uma revista médica especializada e portanto não acessível ao povo, em
forma de livro barato, conforme era intenção do autor.
O trabalho foi publicado em fascículos semanais na Meditzinsky
Vestnik, com o título de Os reflexos do cérebro, no ano de 1863. Mais
tarde apareceu em um único volume, em 1866, e se atinha na forma de
exposição, ao Discurso sobre o método de Descartes (Frolov, 1965).
O trabalho versava sobre pesquisas e estudos feitos por Séchenov
já em 1860 e expostos na sua tese de doutoramento: “Todos os movi­
mentos conhecidos em fisiologia como movimentos voluntários são movi­
mentos reflexos, no sentido estrito da palavra.
A característica comum da atividade normal do cérebro (expressa
em forma de movimento) é a desproporção entre a excitação e o efeito
(movimento gerado por ela). A primeira destas duas teses é bastante
clara e a outra requer alguma explicação. Na falta de qualquer influên­
cia do cérebro, as estimulações sensoriais e os movimentos reflexos pro­
vocados por essas, correspondem um ao outro quanto à intensidade, ou
seja, estimulações suaves provocam movimentos débeis e vice-versa.
Todavia, dada a influência do cérebro, tal conformidade não se
observa: uma fraca estimulação pode provocar um movimento muito
forte (por exemplo, todo o corpo que se agita por causa de um pequeno
golpe) e, inversamente um estímulo muito forte pode não provocar ne­
nhum movimento (como no caso de um indivíduo que, por causa de um
grande medo, fica imóvel). Se a isto se acrescenta que, nesse tempo, eu
preparava minha dissertação e podia não ter presente os três elementos
que compreendem os outros reflexos, não obstante o significado psico­
lógico dos elementos intermediários dos atos que terminam em movi­
mentos voluntários, aparece claro que a idéia de determinar o substrato
fisiológico dos fenômenos psíquicos no que concerne ao mecanismo da
sua formação veio-me à mente já no tempo de minha permanência no
exterior”. “Não há dúvida de que conceitos deste gênero amadureciam na
minha mente também durante a minha estadia em Paris, porque lá eu
estava ocupado em experiências que envolviam diretamente atos de cons­
ciência e de vontade.” (Notas Autobiográficas, Academia de Ciências da
URSS, Moscou-Leningrado, 1945, p. 113 e seguintes).
O conceito principal do livro de Séchenov era que a “vida psíquica”
e a psiquê, não são independentes do corpo, mas somente uma função
do sistema nervoso central, principalmente do cérebro.
O plano geral do livro procurava demonstrar que a “vida psíquica”
não era senão um arco reflexo muito complexo, compreendendo estimu­
lações, processos centrais e efetuação de respostas.
Séchenov sustenta que todas as atividades (voluntárias ou não) dos
organismos, não são senão movimentos musculares de resnostas* inde-

100
pendentemente do “conteúdo psíquico” que os acompanha. Assim, por
exemplo, “o sorriso de uma criança ao contemplar um brinquedo, ou o
sorriso de Garibaldi, quando perseguido pelo excessivo amor à sua
pátria, ou o tremor de uma donzela ao primeiro pensamento de amor, ou
ainda Newton ao idealizar as suas leis universais e ao escrevê-las sobre
as folhas, o fato último é, em todos os casos, o movimento muscular”
(Reflexos do Cérebro, 1866). Doutra parte, todas estas respostas mus­
culares são os resultados finais de processos nervosos centrais que, por
sua vez, têm origem nos órgãos sensoriais.
Portanto, todas as atividades humanas têm início em ocorrências
percebidas pelos órgãos dos sentidos e as mesmas atividades cerebrais
têm, por sua vez, a sua origem na estimulação de receptores internos
ou externos.
No campo da fisiologia dos órgãos sensitivos, Séchenov se valia da
sua grande experiência adquirida com a ajuda de Helmholtz por ele defi­
nido como “o maior fisiologista deste século”, referindo-se à sua obra
de óptica fisiológica.
Não somente sensações simples dão origem ao arco reflexo que
corresponde aos atos psíquicos, mas também associações de sensações
produzidas por diversos receptores.
Frolov (1965, trad. italiana) afirma, referindo-se a este ponto: “Sé­
chenov prestou um imenso serviço à ciência com a sua teoria sobre o
funcionamento da atividade associada dos órgãos sensoriais, na formação
dos assim chamados conceitos superiores de espaço e de tempo, sob a
forma de particulares estímulos complexos, dado que muitos sentidos
participam contemporaneamente na formação de tais reações” (p. 13).
Além da influência de Helmholtz, nota-se também a de John Locke
que aparece nitidamente na afirmação de que não existe pensamento ou
emoção que não derive de uma estimulação sensorial (de órgãos recep­
tores). Assim, o pensamento e a emoção são os processos intermediários
entre as estimulações sensoriais e os movimentos musculares de efetua­
ção motora ou verbal.
Séchenov desenvolve brilhantemente as primeiras duas partes do seu
modelo, isto é, a ilustração da natureza muscular dos comportamentos
que revelam a “vida psíquica”, e a lúcida exposição da origem sensorial
de pensamentos e emoções.
No que interessa ao terceiro problema, ou seja, a explicação do
pensamento e das emoções como processo intermediário entre as sensa­
ções e as respostas musculares, a segurança de Séchenov é menor seja
porque somente alguns anos mais tarde Pavlov demonstrará experimen­
talmente a atividade reflexa da córtex cerebral, ou também porque, como
faz notar Frolov (1965), as pesquisas de Séchenov se “apoiavam sobre
bases metodológicas ainda muito incertas”.
Contudo, a solução teórica de Séchenov é digna de admiração, dada
a clareza com que é formulada: a emoção seria um processo de excitação

101
da atividade muscular, enquanto o pensamento seria um processo de
inibição de algumas atividades. Esse esquema teórico inclui dois princí­
pios desenvolvidos precedentemente pelo mesmo Séchenov: a inibição da
córtex e os “traços ocultos de estímulos” (Frolov, 1965).
A solução, muito avançada, não foi todavia construída de todo espe-
culativamente, porque, algum tempo antes, no laboratório de Claude
Bemard, Séchenov se dedicara a estudos sobre a atividade dos centros
nervosos, principalmente daqueles que inibem os movimentos reflexos.
Com efeito, Séchenov, em 1863 “descobriu. . . um fato novo sobre a
atividade cerebral dos animais, a inibição de certos movimentos refle­
xos. . . a assim chamada inibição central” (Frolov, 1965).
O pensamento é justamente um processo central que priva o arco
reflexo da sua parte final. O pensamento corresponde então a um “reflexo
inibido” como diz Frolov. Mas a vida psíquica não se refere somente à
inibição dos reflexos originários de sensações imediatas: “Não se deve
subestimar, com efeito, a excepcional contribuição de Séchenov por haver
trazido à luz os assim chamados traços ocultos de estímulo nas regiões
superiores do sistema nervoso humano.”
“Séchenov considerava esses traços como um fator que regula o
nosso sistema superior do reflexo (ele interpretava neste modo toda a
vida psíquica humana) em um mesmo nível com os estímulos externos
efetivos e concretos” (Frolov, 1965, p. 13).
Esta afirmação amplia muito o esquema de Séchenov porque permite
explicar também as respostas motoras ou verbais não correlacionadas a
uma particular excitação presente em qualquer órgão sensorial.
No seu trabalho de 1878, publicado em Vestnik Yevropy, sob o
título Os elementos do Pensamento, Séchenov dedica cerca de 150 pági­
nas a analisar o pensamento como processo do sistema nervoso central,
intermediário entre a sensação (imediata ou sob a forma de traços de
estímulo) e o efeito motor ou verbal submetido a processos de inibição
mais ou menos durável.
O que expusemos não tem o escopo de resumir os conceitos funda­
mentais de Os reflexos do cérebro, mas quer simplesmente sublinhar como
Séchenov via no reflexo uma unidade mínima de comportamento, válida
ao mesmo tempo como unidade de análise experimental, e como instru­
mento metodológico para explicar unidades de comportamento mais com­
plexas. Ele mesmo, reconhecendo quanto de hipotético sua obra ainda
contivesse, não quis descuidar as vantagens metodológicas que implicava,
como também as sugestivas possibilidades de controle experimental das
hipóteses propostas.
Deixemos o próprio Séchenov resumir os conceitos do seu traba­
lho: “Em todo caso, por ocasião do meu retomo de Paris a Petrogrado,
estas idéias tomaram forma nas seguintes proposições, em parte prova­
das e em parte hipotéticas: em sua vida consciente ou inconsciente de
todo o dia, o homem jamais é livre das influências sensoriais devidas ao
ambiente e levadas a ele através dos seus órgãos sensoriais, e nem mesmo

102
das sensações que partem do seu próprio organismo (os seus próprios
sentimentos); são estes os fatores que mantêm íntegra a sua vida psíquica
com todas as respectivas manifestações motoras, pois a vida psíquica não
é concebível quando os sentidos estão perdidos (esta observação foi con­
firmada faz vinte anos, através da observação, em casos muito raros, de
pacientes que haviam perdido quase todos os seus sentidos)”.
Nesse trecho de Séchenov está resumida a sua teoria relativa à pri­
meira parte do arco reflexo aplicado às atividades ditas psíquicas.
O autor deixa entender claramente que o primeiro elemento do
reflexo não é necessariamente a sensação produzida por estímulos exter­
nos; estes estímulos fazem disparar processos reflexos que terminam em
movimentos; mas também os desejos funcionam como excitantes internos
com respeito à vida psíquica.
Diz à propósito Séchenov: “Assim como os movimentos do homem
são determinados pelas indicações dos órgãos sensoriais, também o modo
de comportar-se na sua vida psíquica é determinado por seus desejos
e suas aspirações”. “ . . .O início do reflexo é sempre causado por uma
certa influência scnsorial externa; o mesmo se verifica, muitas vezes im-
perceptivelmente, em toda a nossa vida psíquica (dado que na ausência
das influências sensoriais a vida psíquica é impossível)”.
Quanto ao terceiro elemento do reflexo aplicado aos atos da vida
psíquica, a efetuação final, mais ou menos manifesta, Séchenov não é
menos claro: “Na maior parte dos casos os reflexos terminam em movi­
mentos: existem porém também reflexos que se concluem com a supres­
são do movimento; a mesma coisa se pode observar nos atos psíquicos:
a maior parte deles se exteriorizam através de manifestações mímicas e
ações, mas, em muitíssimos casos a sua parte final é suprimida, com o
resultado de que, em lugar de três elementos o ato é representado somen­
te por dois; o lado meditativo da vida tem portanto esta forma.”
Nessa passagem se resume não só a aguda intuição de Séchenov,
mas também a sua preocupação em utilizar o reflexo como um instru­
mento de análise mais que de descrição da vida psíquica, por simples
analogia com os movimentos reflexos.
Pode-se dizer segundo a teoria acima descrita, que o pensamento é
um reflexo inibido.
Falta, porém, a explicação da emoção, outro processo intermediário
entre a excitação e a resposta. Séchenov a explica do modo seguinte: “As
emoções são fundamentadas, direta ou indiretamente sobre os assim ditos
sentidos sistêmicos, que podem desenvolver-se em fortes desejos (sensa­
ções de fome, instintos de autopreservação, desejo sexual, etc.) e que
são expressos em ações impetuosas; por esta razão esses podem ser incluí­
dos na categoria dos reflexos com uma terminação intensificada.”
As emoções são portanto, também elas, uma “categoria de reflexos”.
Era necessário um perfeito conhecimento da fisiologia nervosa e uma
boa dose de coragem para publicar estas idéias na Rússia de 1863, con­
trolada atentamente pela igreja-estado czarista.

103
Como o primeiro título do trabalho: Uma tentativa de estabelecer as
bases fisiológicas dos processos psíquicos devia ser substituído por impo­
sição do Departamento de Censura, Séchenov o trocou e declarou a este
respeito: “Assim eu troquei o título para Os reflexos do cérebro. Fui
acusado de ser um involuntário propagador de imoralidade e de prin­
cípios de filosofia nihilista”. E ainda: . .Os meus mais acérrimos opo­
sitores podem de fato acusar-me de afirmar que qualquer ação, indepen­
dentemente do seu conteúdo, é pré-determinada pela natureza de um dado
indivíduo; qualquer ação é causada por um determinado estímulo exter­
no, por vezes insignificante; a ação em si mesma é inevitável e sendo
assim, também o pior criminoso não é responsável pelos seus atos. Podem
sustentar, ainda, que os meus ensinamentos dão caminho livre a ativi­
dades vergonhosas enquanto persuadem pessoas depravadas de que não
são responsáveis por seus atos. . . ”
Muito mais tarde, Skinner (1955-56), referindo-se a algumas decla­
rações de Dean Acheson e outros opositores da análise experimental do
comportamento, afirmará: “Isto não é outra coisa senão a remanescên-
cia da posição assumida por outras instituições empenhadas no controle
dos homens, para as quais, determinadas formas de conhecimento são
um mal em si mesmas. . . Chegamos assim tão longe somente para con­
cluir que pessoas bem intencionadas, não podem estudar o comporta­
mento humano sem se tomarem tiranos ou que pessoas informadas não
podem dar prova de boa vontade?” (p. 17).
Em outro trabalho, Skinner (1956) escreveu: “Se o advento
de uma poderosa ciência do comportamento causa incômodo isto não
será devido a ser a ciência uma inimiga, em si mesma, do bem-estar huma­
no, mas a que as velhas concepções não são facilmente superadas. Nós
esperamos resistências à aplicação das novas técnicas de controle por
parte daqueles que fizeram ingente investimento nas antigas, mas não
temos razão nenhuma em ajudá-los a preservar uma série de princípios
que não são fins em si mesmos, mas meios, já fora de moda, para um
objetivo” (p. 32).
Não é, pois, de se estranhar que na Rússia czarista da segunda meta­
de do século XIX as afirmações de Séchenov sobre o determinismo do
comportamento provocassem resistências.
Na sua autobiografia (1945) Séchenov assim escreve: “Não havia
necessidade alguma de discutir no meu tratado o problema do bem e do
mal; o meu objetivo consistia em analisar as ações em geral e o meu
ponto de vista era, que dadas determinadas condições, não só as ações,
mas também a sua inibição são inevitáveis, e obedecem à lei da causa e
do efeito. Seria isto uma apologia da imoralidade?” (p. 116).
Após ter publicado a sua obra na revista semanal Meditzinsky
Vestnik, em 1863, Séchenov foi denunciado perante o procurador local
de censura.

104
A denúncia, datada de 9 de junho de 1866, julga Os reflexos do
cérebro deste modo: “Esta teoria materialista reduz até o que há de me­
lhor nos homens ao nível de uma máquina privada de autoconsciência
e de livre vontade e que age automaticamente. Esta teoria elimina o bem
e o mal, a responsabilidade moral, o mérito das boas obras e a res­
ponsabilidade das más ações: arruina profundamente os alicerces morais
da sociedade e com a sua ação, tende a destruir a doutrina religiosa da
existência ultraterrena; é uma teoria que contrasta com o Cristianismo, e
com o código penal e por conseqüência, conduz à corrupção de toda
moral”.
A luta travada por Séchenov não foi inútil e são numerosos os gran­
des nomes da cultura e da ciência que reconheceram a grande influência
recebida de sua obra. Entre eles estão I. Mechnikov, K. Tmiriatzev,
Wedenski, Samoilov e sobretudo Ivã Petrovich Pavlov, como veremos
mais adiante.
S. Gellerstein, numa nota de comentários a Os reflexos do cérebro
diz que a sua publicação teve um efeito formidável nos círculos progres­
sistas da sociedade russa: “Tomou-se o manual das pessoas jovens nos
anos que seguiram a 1 8 6 6 ... e foi assunto de vivas discussões; e enquan­
to conquistava muitos apreciadores, atraía a inimizade no ambiente dos
idealistas reacionários.”
É nesse campo que Pavlov, por sua vez, encontrará as maiores resis­
tências, como em seguida veremos.
Para esclarecer melhor quanto a obra de Séchenov penetrou no cam­
po da explicação do comportamento voluntário, a partir do conceito de
reflexo, examinemos ainda alguns trechos de Os reflexos do cérebro. . .
“O homem de elevados princípios. . . age como age somente porque é
guiado por nobres princípios por ele adquiridos no decurso da vida; acos­
tumado a tais princípios ele não pode agir de outra maneira: a sua ativi­
dade é o resultado inevitável de tais princípios”, (p. 136). Esse exemplo
poderia muito bem ser incluído em trabalhos de Skinner de após 1950'
para ilustrar o conceito de “história de reforço”, tão grande é a perspi­
cácia de Séchenov.
A atitude antimetafísica de Séchenov representa o nascimento de
um pensamento materialístico na explicação do comportamento, que já
então é considerado como produto das experiências anteriores dos orga­
nismos ou, mais exatamente, de processos de inter-relações entre as con­
dições de vida impostas pelo ambiente externo agindo sobre a estrutura
do organismo.
A psicologia, para Séchenov, é a análise experimental de tais pro­
cessos: mas ele como fisiologista, vê na fisiologia nervosa o caminho
para a explicação do comportamento, admitindo contudo que a origem
primária de toda atividade, “aberta” ou interna, traduzida ou não em
ação muscular, é sempre a estimulação extema ao organismo.
Com efeito, as condições internas que ele admite como determi­
nantes do comportamento “voluntário” têm sempre, um ponto de partida

105
na estimulação sensorial. Essas condições internas dependem sempre quer
das meras sensações captadas pelos órgãos periféricos ou pelos recep­
tores internos, os assim chamados “órgãos do sentido muscular”, quer
dos vestígios resultantes da excitação (destes diversos receptores), no
sistema nervoso central.
Essa proposição fica mais clara à luz de uma outra afirmação de Os
reflexos do cérebro: “Repito: do ponto de vista do procedimento, não
há diferença nenhuma entre uma efetiva impressão com suas próprias
conseqüências e a memória. Essencialmente, esta é um só e mesmo refle­
xo psíquico, com um idêntico conteúdo psíquico, mas provocado por
estímulos diferentes. Eu vejo um homem enquanto a sua imagem é efeti­
vamente focalizada na retina do meu olho e eu o lembro porque na minha
mente está impressa a imagem da porta ante a qual ele estivera” (p. 108).
A experiência passada, implicada no referido exemplo do homem
de elevados princípios morais, é para Séchenov, um sinônimo de repeti­
ção de atos e de sensações.
Os princípios morais por ele adquiridos revelam-se em última análise,
como repetição de comportamentos e experiências sensoriais: “O leitor
pode agora ter uma idéia da importância da repetição freqüente de um
mesmo ato sobre o desenvolvimento psíquico: a repetição é a mãe da
aprendizagem. . . ” (1866).
É esse o significado que se deve atribuir às afirmações feitas mais
adiante: “ . . . Dadas as mesmas condições internas e externas, a atividade
do homem será semelhante. A escolha entre um ou outro dos muitos
completamentos possíveis de um determinado reflexo psíquico é absolu­
tamente impossível: a aparente possibilidade de escolha é somente uma
ilusão da autoconsciência. A essência deste ato complexo é que eviden­
temente um mesmo reflexo, com o mesmo conteúdo psíquico, é reprodu­
zido na consciência do homem em forma de pensamento; acontece porém,
que este reflexo se apresenta em condições mais ou menos diferentes e é,
por conseguinte, explicitado em diferentes formas. Se um dos seus comple­
tamentos é de natureza mais emocional você agirá em conformidade. . . ”
(p. 135/6).
Em outras palavras, este trecho pode ser interpretado assim: dada
uma certa excitação, desenvolve-se no sistema nervoso central um pro­
cesso de análise desta mesma estimulação, e uma simultânea combinação
com as outras que chegam (ao mesmo tempo) dos receptores periféricos
ou internos; uma tal elaboração central da excitação é grandemente
influenciada pelos vestígios precedentemente fixados no sistema nervoso
central, de maneira que, das muitas respostas possíveis à estimulação
inicial, efetuar-se-á uma ou outra como efeito reflexo necessário desta
complexa elaboração central: a resposta é portanto inevitável.
Séchenov prossegue: “Se ao invés surge na vossa mente uma imagem
mais forte mas menos emocional que vos impele para a direção oposta
(isto é, para a não efetuação da resposta) o reflexo terá um completa-
mento diferente no vosso pensamento.” Pode-se assim ver como aqui a

106
idéia central é a natureza reflexa das ações voluntárias: o curso do reflexo
só teoricamente é múltiplo, em nível central; se em tal nível intervém um
processo emotivo, o curso da ação é determinado por este último.
Na prática, “nós vemos que, na metade dos casos, não agimos
segundo as nossas intenções. Mesmo os que acreditam firmemente na voz
da autoconsciência, dizem nestes casos, que se perdeu o controle das
condições externas. Mas segundo a nossa opinião isto demonstra clara­
mente que a causa inicial de toda atividade humana reside fora do
homem” (1866).
É fácil perceber como essas idéias tiveram influência notável nos
estudos de Pavlov; com efeito vemos nelas o impulso para uma profunda
investigação das atividades reflexas da córtex, a ênfase sobre a repetição
como determinante das respostas reflexas, a insistência sobre a ação
dos estímulos também após o seu desaparecimento físico, sobre o pro­
cesso de inibição central das respostas reflexas e sobre a existência de
respostas resultantes do efeito combinado da excitação simultânea de
diversos receptores periféricos ou da associação entre estímulos presentes
e traços de estímulos precedentes.
O que acabamos de expor permite ver como Séchenov tinha desen­
volvido já no seu primeiro grande trabalho Os reflexos do cérebro as
bases metodológicas para uma análise experimental do comportamento,
simples ou complexo, animal ou humano: uma análise que tem o reflexo
quer como instrumento operativo, quer como unidade última da decom­
posição experimental.
Como bom fisiologista, Séchenov considera reflexo o que, do ponto
de vista da psicologia experimental, é definido “arco reflexo”, conforme
a distinção de Skinner (1931) e de Keller e Schoenfeld (1950).
Os esquemas teóricos de Séchenov não são conseqüência de mera
intuição, mas encontram apoio nos seus estudos sobre a fisiologia do
sistema nervoso central que lhe permitiam interpretar o cérebro como um
verdadeiro centro de conservação e de organização do múltiplo e contí­
nuo fluxo de impulsos aferentes e ainda, como sede de processos de
elaboração da reação eferente entendida em dois aspectos: resposta
muscular periférica ou interna e inibição do impulso eferente.
Para Séchenov, a fisiologia pode muito bem chegar a explicar não
só os movimentos voluntários (como Pavlov em seguida também susten­
tará), através de uma análise cuja unidade elementar é o reflexo, mas
está também em condição de justificar porque tal análise e tal unidade
sejam também aplicáveis aos atos psíquicos que não são movimentos
como, por exemplo, as emoções e os pensamentos.
O esquema de Séchenov é, em sua maior parte, fruto de hipóteses,
mas os fundamentos experimentais disponíveis são, no quadro geral, per­
feitamente aproveitados.
Entre essas fontes experimentais estão: Os órgãos da sensação
muscular (1891) t Os órgãos da memória (p. 464), nas quais são explo­

107
rados exaustivamente os dados referentes aos traços de estímulos como
são considerados pelo autor, e relativos às sensações visuais e táteis
Examinemos agora o que entende Séchenov por órgãos da sensação
muscular, e por órgãos da memória. Estes últimos correspondem, em
substância, a um tipo mais sutil que os órgãos da sensação muscular.
O assunto foi tratado numa conferência sobre O aspecto fisiológico
do pensamento sobre objetos publicada pela primeira vez na Ruskaya
Mysl (1894).
O autor afirma: “Desde os tempos de Kant, difundiu-se a idéia de
que o homem tem um órgão especial, uma espécie de vista interna apta
a perceber as relações espaciais e as relações de sucessão, um órgão que
fornece à consciência as relações supramencionadas. Essa idéia parece,
num certo sentido, justificável porque de fato existe tal órgão podendo
ser definido como o órgão da sensação muscular”.
Séchenov prossegue com um exemplo referente a sua área predileta,
a da percepção visual em que se havia especializado no laboratório de
Helmholtz muitos anos antes: “Qualquer pessoa sabe por experiência
pessoal q u e .. . (na observação de um objeto em movimento e de um
objeto parado) os movimentos dos olhos e da cabeça enviam diretamente
à consciência informações sobre a posição de um ponto observado, em
relação a outro ponto observado anteriormente, isto é, indicam se ele está
mais alto ou mais baixo, à direita ou à esquerda, mais longe ou mais
perto de quem observa. Por isso devido aos movimentos dos olhos e da
cabeça a imagem visual complexa é dividida em componentes que são
postos em relação por meio de relações espaciais; é o sentido muscular
que une todos os elementos num único grupo espacial. Os músculos dos
olhos e da cabeça que intervêm nos atos da visão, desenvolvem o papel
de goniómetros capazes de fornecer à consciência os diversos índices
goniométricos icom base na localização de um dado ponto no espaço, ou
— o que é a mesma coisa — com base na direção e na extensão dos
movimentos da cabeça e dos olhos. . . fornecem também indicações sen-
soriais a respeito da velocidade dele” (p. 462).
“Quando seguimos com os olhos o vôo de um pássaro, tomamos
conhecimento de sua direção graças às indicações goniométricas forneci­
das pelos sentidos musculares e (tomamos consciência) da velocidade do
vôo em virtude do ritmo com o qual os nossos olhos e a nossa cabeça
se deslocam para seguir o vôo”, (p. 462).
Não é difícil reconhecer neste trecho a síntese do que Frolov define:
“A função da atividade associada dos órgãos sensoriais na formação dos
supracitados conceitos superiores de espaço e de tempo” (1965, tradução
italiana, p. 13). É verdadeiramente excelente a explicação da função
proprioceptiva dos movimentos dos olhos e a subseqüente combinação em
nível central das indicações goniométricas daqueles movimentos. Em
outras palavras, a organização perceptual das sensações múltiplas produ­
zidas por um objeto em movimento ou por objetos complexos é total­
mente dependente das sensações produzidas pelos movimentos supra-

108
acenados, ou seja, pela intervenção dos “órgãos do sentido muscular”.
Tais órgãos seriam chamados muito mais tarde receptores propriocepti-
vos e a sua análise experimental era muito limitada no tempo de Séche-
nov, como ele mesmo admitia em 1863, na primeira e hostilizada edição
de Os reflexos do cérebro.
Há também entre os órgãos da sensação muscular, os que são atual­
mente definidos como receptores einestésicos e os da “sensibilidade sub­
jetiva”.
Essa expressão não implica nenhuma referência a conceitos meta­
físicos, como observa S. Gellerstein (1952/1956) numa nota especial:
“Séchenov considera subjetivas as sensações que são causadas pela ação
exercida sobre os órgãos sensoriais por estímulos localizados no nosso
organismo ou pelas mudanças que se verificam no interior dele (as sen­
sações conhecidas no presente como interoceptivas e proprioceptivas)”.
Séchenov portanto inclui as sensações musculares na categoria das
sensações subjetivas. Para ele as sensações visuais e auditivas são obje­
tivas porque os estímulos que as determinam são objetos situados fora
do organismo (no terminologia moderna estas sensações são definidas
“exteroceptivas”) .
“Deve-se lembrar, afirma Séchenov (1866), que as sensações mus­
culares acompanham sempre o processo de contração de um músculo
assim como o estado contraído dele” e é desse modo que tais sensações
musculares efetuam no nível central uma síntese entre as sucessivas sen­
sações proprioceptivas discretas.
A ligação cortical entre sensações isoladas no tempo ou no espaço
(segundo o particular receptor periférico que é considerado) é portanto
assegurada pelas sensações musculares que chegam ao sistema nervoso
central também nos intervalos entre uma estimulação sensorial e a suces­
siva. A este liame Séchenov chama de traço e é justamente com as fun­
ções de traços que os órgãos da sensibilidade muscular contribuem (ao
lado do efeito da repetição das sensações periféricas) à explicação da
memória e do pensamento, bem como, da organização perceptual.
De fato, é nessa última função que se baseia a validade da aplicação
de um modelo tão simples como o arco reflexo à análise de comporta­
mentos complexos.
Passemos agora a examinar, brevemente, as idéias fundamentais de
Séchenov acerca da memória na sua tentativa de estender a análise cien­
tífica aos comportamentos voluntários, aqueles cuja estimulação inicial
parece partir de algum misterioso fundo, ao contrário do que ocorre com
as respostas reflexas típicas, mais elementares.
Antes de tudo é preciso ter presente que o conceito de traço da
estimulação tem para Séchenov o caráter de fenômeno material que per­
siste no cérebro como resultado da ação do estímulo no aparelho senso­
rial. Esse esclarecimento é importante, como fez notar Gellerstein
(1954/1956), pois “a teoria dos traços ou dos assim chamados engra-
mas era usada também pelos psicólogos idealistas que distinguem os

109
processos de traços das mudanças no substrato material que acompanha
cada sensação”.
Séchenov (1866) tenta nesse campo apoiar-se nas evidências expe­
rimentais disponíveis “sobre esta capacidade, existente na fisiologia dos
nervos” e descreve um exemplo expressivo do seu campo preferido, a
prcepção visual: “qualquer estimulação do nervo óptico obtida pela luz,
não importa de qual duração, deixa sempre um vestígio bem pronun­
ciado que persiste sob forma de uma sensação real por um período mais
ou menos longo, conforme a duração e intensidade da estimulação
efetiva”
Esse efeito será em seguida utilizado pelos “gestaltistas” para de­
monstrar a propriedade de “forma”, sob o nome de post-imagem, enquan­
to Séchenov o utilizará para explicar a memória das imagens visivas que
“se formam na consciência dos homens sem a participação das imagens e
sons correspondentes do mundo externo”.
Se os homens, como é sabido, “pensam por imagens, palavras, ou
outras sensações”, a capacidade de pensar através destas imagens e sons
mesmo depois do desaparecimento dos estímulos efetivos visuais ou audi­
tivos constitui o problema fundamental na explicação do pensamento e
da memória.
A análise de Séchenov concentra-se, por conseguinte, sobre o obje­
tivo de elucidar o pensamento realizado através de imagens e sons sem
os correspondentes substratos externos porque é na análise deste fenô­
meno que, para ele, deve ser procurada a explicação da “capacidade de
reproduzir as sensações”.
Como o início da lembrança é a própria preservação das citadas
imagens e sons “em estado latente no aparelho nervoso”, daí provém
que não haveria nada a ser lembrado se, uma vez afastado o substrato
externo, acabasse também a sensação (p. 78).
Séchenov insiste muitas vezes sobre a natureza nervosa dos traços
entendida como persistência da “excitação do nervo” mesmo depois do
desaparecimento da sensação.
Os traços, uma vez estabelecidos, sofrem um processo de consoli­
dação e aperfeiçoamento devidos à freqüência com que se repete a efeti­
va exicitação do receptor periférico. Essas repetições permitem durações
mais longas dos traços “graças ao fato de que elas tomam mais clara a
sensação” (p. 101).
É justamente em virtude desse processo de consolidação e aper­
feiçoamento que “uma estimulação externa muito insignificante é sufi­
ciente para reproduzir a sensação original”.
Em seguida Séchenov procura estender o conceito de um modo que
lembra as leis menores de Thomdike, que seriam publicadas algumas
décadas mais tarde.
De fato, descontada a ênfase sobre a repetição como causa da con­
solidação dos traços, Séchenov afirma que uma sensação forte produz
traços mais marcados que uma sensação mais fraca e, além disso, que

110
quanto mais recente é uma sensação tanto mais forte será a memorização
da mesma (p. 101).
Diversamente de Thomdike que nasceria 8 anos mais tarde, Séche-
nov apresenta uma exposição que visa demonstrar como estas duas variá­
veis da memória encontram fundamento na capacidade fisiológica do
aparelho nervoso aferente, neste caso o nervo óptico. Ele apresenta tam­
bém um exemplo de traços relativos à excitação do tato em uma rã
decapitada, capaz de apresentar por certo tempo a flexão reflexa de uma
pata, eliciada por contato feito sobre a pele: “a flexão desaparece só gra­
dualmente no espaço de uma hora, o que nos indica claramente que todo
o reflexo da pele ao músculo é conservado como traço na medula espi­
nal” (p. 103).
É mesmo notável a importância dessas idéias de Séchenov para a
neurofisiologia des anos subseqüentes.
Na leitura dos seus trabalhos podemos entrever os fundamentos das
investigações que ocuparão, mais tarde, Pavlov, Bechterew, e os seus
discípulos, já munidos de recursos metodológicos mais refinados para uma
análise experimental das hipóteses apresentadas por Ivã Mikhailovitch
Séchenov, e reconhecidas como tais na conclusão de Os reflexos do cére­
bro (1863, 1866): “Para os naturalistas não há nada de incomum nestas
hipóteses dos traços latentes da excitação nervosa, especialmente porque
os fenômenos da memória assim como os temos apresentado, são, na
maior parte, estritamente semelhantes aos dos traços perceptuais da luz
que aparecem depois de qualquer verdadeira estimulação óptica.”
Ainda sobre o conceito de traço, em Os elementos do pensamento,
Séchenov esclarece dois termos que mencionamos nas páginas preceden­
tes. “O termo estabilidade se refere aqui à capacidade do traço de ficar
na mente.. .: na forma de pensamento através de imagens, palavras ou
outras sensações. . . por um longo tempo, enquanto clareza indica a capa­
cidade da imaginação sensorial de tornar-se mais definida como resul­
tado de repetições da sensação”.
Para explicar em termos de neurofisiologia essas afirmações, o autor
chega praticamente a definir os reflexos incondicionados com termos que
fazem pensar imediatamente em Conditioned Reflexes de Pavlov (1927).
Diz Séchenov: “Não é difícil expressar isto em termos de excitação
nervosa se, como fazem os fisiologistas, admitimos que em correspon­
dência a uma sensação verifica-se um processo de excitação nervosa no
sistema nervoso, que se irradia ao longo de vias inatas” (inborn
pathways) .
Séchenov (1878) nos oferece ainda em Os elementos do pensa­
mento uma síntese da sua teoria da memória e do pensamento: “Qual­
quer objeto ou fenômeno externo é fixado na memória e reproduzido
na consciência nas seguintes três direções principais: como membro de
um grupo espacial, como membro de uma cadeia de (elementos em)
sucessão e, enfim, como membro de uma cadeia de (elementos) seme­
lhantes.”

111
Para concluir esta sumária exposição das geniais intuições de Séche-
nov (1894), é significativa sua referência aos órgãos da memória: “Eu
digo os órgãos da memória e não o órgão; porque do ponto de vista
fisiológico o conceito inclui os aparelhos acessórios centrais dos órgãos
dos sentidos e de todos os movimentos complexos adquiridos” ( The Phy­
siological Aspect of Object Thinking).
Abre assim Séchenov o caminho para a análise experimental desses
“aparelhos centrais” aos quais são transmitidas as excitações dos órgãos
periféricos dos sentidos, bem como as que têm origem em atividades com­
plexas não inatas.
O estudo experimental de tais “aparelhos centrais acessórios” e das
suas funções deverá, todavia, ser adiado até o princípio do século XX
quando aparecerá na cena da fisiologia dos centros nervosos, Ivã Pe-
trovitch Pavlov.

112
I. PAVLOV E O CONDICIONAMENTO
DOS REFLEXOS

N ascido em R iazan na família de um sacerdote,


Ivã Pavlov completara quatro anos de idade, quando as idéias de Mar­
shall Hall sobre a “função reflexa” eram já de domínio geral entre os
fisiologistas.
Hall, partindo de suas pesquisas sobre o “arco diastáltico”, formu­
lara em 1833, uma distinção importante entre movimentos reflexos e “vo­
luntários” : enquanto os primeiros eram considerados expressão da parte
exódica de um arco iniciado pela estimulação específica de um nervo
esódico, os movimentos voluntários comportariam, no lugar do estímulo
definido e específico, algum processo cerebral ( “volição”) que, através
da medula, faria funcionar um nervo eferente e por conseguinte, um
músculo.
Além disso, enquanto Pavlov, ainda criança, aprendia a ler e a
escrever, Magnus demonstrava a atividade reflexa de outros centros
nervosos subcorticais e, antecipando os trabalhos de Uexkull, apontava a
existência de estímulos proprioceptivos, responsáveis pela variabilidade
dos reflexos medulares, antes atribuída por Pflüger a uma hipotética
“mente espinal”.
Aos onze anos, Pavlov era estudante no seminário de Riazan e em
1861 conheceu os princípios de Pissarov que atacava os preconceitos
relativos à pesquisa científica e às resistências que se opunham ao desen­
volvimento cultural do país.
As idéias de Pissarov tiveram forte repercussão na alta sociedade,
embora tenham tido sua origem e desenvolvimento nos estratos mais
baixos da sociedade russa. Em 1875 tiveram o completo e decisivo apoio
de um grupo de jovens cientistas como Cion, Mendeleiev, Séchenov.
Esses e muitos outros intelectuais mais tarde seriam expulsos das
universidades e do país, quando Pavlov tinha aproximadamente vinte
anos.
Esses cientistas influenciaram muito a formação científica do jovem
Ivã, e sua atitude diante dos problemas nacionais e particularmente, em
relação à importância da experimentação, e às necessidade de combater
toda a forma de preconceito metafísico no estudo dos processos fisio­
lógicos.

113
A atividade e as idéias desses cientistas como também a sua conse­
qüente expulsão das universidades, criaram, de outro lado, para Pavlov,
notáveis dificuldades de conseguir trabalho; assim é» que em 1875,
depois de cinco anos de estudos na universidade de Petrogrado, como
aluno de Cion e de Mendeleiev, foi obrigado, para encontrar um empre­
go, a increver-se no terceiro ano da Academia Militar “para obter um
diploma e poder, depois concorrer a uma cátedra”.
Pavlov a partir de 1875, começou uma rotina que lhe impôs ocupa­
ções carentes de verdadeiro interesse, e com salários insuficientes; esta
situação se prolongou até 1879, ano em que Botkine o convidou a cola­
borar com ele como assistente, após um convite análogo de Tsion, o
brilhante pesquisador e que não se pôde confirmar, pois Tsion, logo após
a formulação do convite foi expulso da Universidade pelo governo.
Junto a Botkine, Pavlov realizou importantes pesquisas sobre a
digestão, que o tomaram uma personalidade científica de fama interna­
cional: tratava-se de numerosos trabalhos com os quais aperfeiçoou a
técnica de abrir “fístulas” ou “janelas” para observar in vivo os proces­
sos internos dos animais.
Com 32 anos, depois de se ter casado com Serafina Kartchevskaja
em 1881, iniciou um período de extremas dificuldades econômicas que
lhe causaram a perda de dois filhos, um dos quais recém-nascido.
Tal situação não permitia a Pavlov nem mesmo pagar o aluguel
de uma casa, de modo que era obrigado a dormir no laboratório de
Botkine, enquanto a esposa morava com os pais. Em seguida, segundo
ele conta, “sem se queixar dessas atribulações”, Pavlov lamentará so­
mente o não ter podido progredir mais nos seus estudos, pois, para
estes, era indispensável “comprar animais e ração” para o que não tinha
dinheiro.
Finalmente, à idade de 41 anos, no ano de 1890, foi nomeado,
por um período de cinco anos, professor de farmacologia na Academia
Militar de Medicina, onde conheceu Glinsky.
Ao fim do qüinqüênio, Ivã Pavlov ficou trinta anos ligado à Acade­
mia como professor de fisiologia; nesse período dedicou-se à pesquisa
sobre a fisiologia da digestão e mais tarde ao estudo dos reflexos condi­
cionados.
Pouco depois de assumir o encargo qüinqüenal na Academia, acei­
tou um outro trabalho simultâneo, ao qual dedicou quinze anos, além dos
trinta de cátedra. Um total de 45 anos, portanto, durante os quais se
empenhou dedicadamente como organizador e diretor do departamento
de fisiologia do Instituto de Medicina Experimental, num esforço que só
terminaria com a sua morte.
Em 1897 foi publicado O trabalho das glândulas digestivas, obra
que lhe mereceu em 1904 o Prêmio Nobel de Fisiologia.
As pesquisas realizadas no curso desse longo período, refletem bem
a tendência da fisiologia no fim do século XIX e do princípio do século

114
XX, designada como “nervismo” que procurava estender a influência do
sistema nervoso ao maior número possível de funções do organismo.
Tratava-se de uma tendência claramente estimulada pela dicotomia
de Hall entre movimentos (funções) “voluntárias” e “funções reflexas” :
tal tendência levava à procura de estímulos novos para movimentos defi­
nidos até então como voluntários e aparecia já nos trabalhos de Magnus
e Uexkull, da segunda metade do século passado.
As funções dos órgãos digestivos pareciam todavia escapar a uma
pesquisa verdadeiramente fisiológica, pois a técnica então em uso era o
assim chamado método “agudo” que consistia essencialmente no estudo
de cortes cirúrgicos de órgãos, glândulas e músculos de animais sacrifi­
cados em diversos momentos do processo digestivo e na observação de
animais anestesiados ou mutilados e portanto, de algum modo, não sen­
síveis às condições ambientais normais.
Pavlov, acostumado a enfrentar problemas novos de pesquisa e
além disto conhecedor profundo da técnica das “janelas” e das “fístulas”
(especialidade de Glinsky, seu amigo), tinha condições para tirar a fisio­
logia da digestão do ponto morto em que se achava bloqueada graças
ao método “agudo”.
Com efeito, esse método impedia o estudo das funções dos órgãos
internos, pois em animais mortos e nas preparações cirúrgicas não era
possível obter mais que uma idéia aproximada e débil delas. Menos
ainda se podia determinar as inter-relações entre os órgãos, as glândulas
e os músculos.
A solução achada por Pavlov consistia no método “crônico”, uma
técnica de estudo da digestão do animal vivo, são, íntegro e plenamente
sensível a qualquer estímulo que se quisesse utilizar.
O método crônico de Pavlov era, enfim, a realização prática das
idéias mestras de Séchenov sobre a fisiologia dos organismos.
A técnica das “fístulas” e “janelas” abertas no corpo dos animais
(como relembrará Pavlov em uma das famosas “quartas-feiras”) permi­
tia observar in vivo o efeito dos estímulos sobre as funções de qualquer
órgão digestivo e também as correlações entre os vários órgãos.
Podia-se, portanto, efetuar uma experimentação “sintética” sobre os
processos digestivos como complemento dos processos de análise fosse
esta funcional ou cirúrgica (onde se bloqueava a pesquisa dos seus pre­
decessores, com o uso do método agudo).
Pavlov oferecera, portanto, à fisiologia a possibilidade de estudar
também novos processos, mais complexos, cuja explicação requeria,
além da decomposição analítica dos elementos constitutivos, a sua combi­
nação em sistemas e relações funcionais em um processo de síntese.
Com efeito, as leis que regulam os processos complexos implicam
relações funcionais entre sistemas (ou órgãos) cuja formulação requeria
a combinação entre análise e síntese.

115
Disso deriva que o método crônico de Pavlov tem uma importân­
cia que supera os limites da fisiologia da digestão, enquanto abre a
porta à análise experimental de processos mais complexos.
Enquanto Pavlov observava a digestão através de “janelas”, numa
outra parte do mundo, um jovem estudante, Edward T. Thorndike, inves­
tigava o comportamento de galinhas, no porão da casa de William James
e, em seguida, no laboratório de Cattel.
Na Universidade de Colúmbia realizava novos experimentos com
gatos, macacos, peixes, cães, sobre problemas de aprendizagem.
Os resultados de tais pesquisas, publicadas sob o título A inteligên­
cia animal: um estudo experimental sob os processos associativos nos ani­
mais foram difundidos em 1898, um ano depois da já mencionada publi­
cação de Pavlov, O trabalho das glândulas digestivas.
Em 1900, Pavlov começara a preocupar-se com algumas secreções
salivares difíceis de entender dentro do esquema do arco reflexo tradicio­
nal: eram secreções diversas das produzidas pela excitação direta dos
receptores com ácidos ou alimento; não eram verdadeiras secreções fisio­
lógicas e resultavam de alguma forma de estimulação não fisiológica.
Tratava-se de secreções “psíquicas”.
A essa altura parece necessário fazer um resumo das condições em
que Pavlov se encontrava em 1900; a busca de uma explicação para a
secreção “psíquica” começou um ano mais tarde, quando ele percebeu
quie os fatores “psíquicos” intervinham nos seus estudos sobre a diges­
tão: a) Pavlov, naquele tempo, possuía já uma rica experiência técnica
como pesquisador e conhecia as suas possibilidades de imaginar técnicas
e experimentos novos; b ) Conhecia muito bem os experimentos relativos
a outras funções do sistema nervoso e, por conseguinte, não tinha receio
das dificuldades devidas à diversidade entre processos nervosos relati­
vos à secreção “psíquica” ou “à distância” e os da secreção produzida
fisiologicamente; c) Era, por definição, o especialista do método “crôni­
co” e por isso um processo complexo como uma secreção “à distância”,
ainda que exigisse uma observação prolongada dos processos internos, não
lhe parecia inacessível à análise experimental. E, considerando o fato de
que o animal, com este método, se mantinha são, íntegro e sensível a
qualquer estímulo, seria possível variar livremente os artifícios experi­
mentais; d) Pavlov conhecia bem o sistema teórico de Séchenov para
explicar os processos psíquicos no esquema do arco reflexo. Como um
estímulo sensorial é capaz de produzir, por indução, uma resposta (mus­
cular ou glandular) sem contatos fisiológicos com a estrutura nervosa
envolvida na efetuação da resposta? Quais os processos que tomam este
estímulo, distante, capaz de produzir os efeitos musculares ou glandula­
res normalmente obtidos por excitação local específica dos receptores?
Séchenov tinha afirmado que as palavras e a visão dos objetos podiam
funcionar como estímulo para respostas verbais ou motoras, como o falar,
o sorrir, o correr; o processo responsável por essas relações de causa e
efeito poderia talvez explicar também a secreção psíquica. Séchenov não

116
dispunha de um método de estudo que lhe permitisse estudar os proces­
sos complexos mantendo o animal vivo e íntegro na sua sensibilidade:
era precisamente este método que Pavlov tinha criado; e) Pavlov deci­
dira-se a imitar o exemplo dos seus predecessores, recusando qualquer
explicação dos fatos por causas sobrenaturais, místicas, ou que, de algum
modo prescindissem da verificação experimental.
Essa atitude tornou-se muito evidente na sua posição quanto às
idéias de seu discípulo Snarsky.
A decisão de investigar a fundo a secreção com estimulação “à dis­
tância” comportava uma mudança total do programa do departamento
e Pavlov quis, portanto, dividir essa responsabilidade com os seus cola­
boradores.
Snarsky tinha colhido dados sobre secreções salivares produzidas
pela cor preta de um líquido neutro obtidas depois de ter pintado de
preto o ácido que, originariamente, produzia secreções salivares por exci­
tação direta.
A sua interpretação antropomórfica e subjetiva, atribuía os resul­
tados a processos mentais de volição e ao pensamento do animal. (A
aceitação destes processos no cérebro de animais representava, sem dúvi­
da, uma posição deveras corajosa embora anticientífica.)
As divergências entre Pavlov e Snarsky, apareciam já em 1901.
De acordo com Pavlov, a explicação devia ser procurada através
de controles fisiológicos, sem apelos a processos ou entidades não obser­
váveis. Snarsky, terminou por abandonar o laboratório e Pavlov, em 1903
lamentaria publicamente esta atitude.
Após ter elogiado a habilidade experimental de Snarsky, conde-
nou-lhe a posição, que negava à fisiologia competência para analisar os
processos da secreção psíquica (definida também estimulação psíquica
ou reflexo à distância ou “reflexo sinal”).
Parece que a retirada de Snarsky não foi muito amigável nem
muito cordial, embora voluntária.
Além, pois, da fidelidade aos princípios do rigor científico, a decisão
de Pavlov deveu-se ao exemplo que lhe deram os seus predecessores.
Pavlov, como eles, não se deixou intimidar pelos riscos inerentes à
sua posição, devidos aos preconceitos da doutrina oficial de então sobre
os processos psíquicos. Bem sabia ele que teria de enfrentar por isso
uma inevitável hostilidade oficial, ao engajar-se em um programa de
pesquisas que visava à explicação natural e fisiológica daqueles pro­
cessos.
Existiam apenas duas alternativas para Pavlov: aceitar uma expli­
cação dos “reflexos-sinais” baseada sobre a introspecção, ou buscar uma
explicação em termos de estímulo extemo-resposta (subentendendo o
sistema nervoso). Tratava-se de escolher entre o método introspectivo e
o método experimental, objetivo.
Escreve Pavlov: “Eu decidi, depois de atenta reflexão e conflito
mental, permanecer ante a assim chamada estimulação psíquica, no papel

117
de fisiologista puro, quer dizer, de um observador atento, externo e obje­
tivo, ocupado em analisar fenômenos externos e as suas relações”. Em
outras palavras, Pavlov decidira-se a seguir o “Senhor Fato” qualquer
que fosse a conseqüência para ele e para o seu laboratório. “Decidimos
nos restringir à observação e à descrição exata dos efeitos, de um objeto
agindo à distância, sobre a secreção das glândulas salivares.”
No Congresso Médico Internacional de Madrid de 1903, ano em
que saiu a segunda edição de Os elementos do Pensamento de Séchenov,
o discurso de Pavlov repetiria claramente as suas convicções, quando
afirmava a sua confiança em que a ciência chegará a explicar com o
método objetivo toda a “vida psíquica” (as altas funções) sem recorrer
a princípios ideais, sobrenaturais ou animísticos.
Trinta e cinco anos de pesquisas sobre o “reflexo sinal” em cães e
em outros animais e também em doentes mentais, resultaram da decisão
de Pavlov.
Todavia, como era de se esperar, tal linha de pesquisa não obteve
o apoio governamental: na Academia e no Instituto de Medicina Expe­
rimental, a equipe de auxiliares chegava a cinco ou seis elementos.
Na sua autobiografia Pavlov descreve a hostilidade dos diretores dos
institutos e explica como devia enfrentar a oposição do ministro da
guerra, contrário aos seus projetos.
Com a revolução de 1917 a situação de trabalho melhorou, e em
janeiro de 1921, Lênine, que considerava o trabalho de Pavlov de enor­
me significado “para os trabalhadores de todo o mundo”, assinou um
decreto criando uma comissão para prover as necessidades de Pavlov e
de seu departamento.
Os efeitos dessa mudança de situação foram: primeiro, a publicação,
no ano seguinte, do famoso Vinte anos de estudo objetivo sobre a Ativi­
dade Nervosa Superior (comportamento) dos animais; em segundo lugar,
a construção, em Koltouchi, da “Cidade da Ciência” e seus laboratórios;
em terceiro lugar, o aumento do corpo de assistentes e outros colabora­
dores de Pavlov, que chegou a trezentas pessoas; em último lugar o apoio
financeiro que permitiu a realização, em poucos anos, de centenas de
experimentos.
Pavlov, à idade de 86 anos recebido triunfalmente por toda a popu­
lação retomou à sua cidade de Riazan e no mesmo ano de 1935 foi pro­
clamado “Príncipe dos fisiologistas de todo o mundo” no XV Congresso
Internacional de Fisiologia. Até a morte, Pavlov manteve sua luta contra
as explicações metafísicas do comportamento, como podemos constatar
nos Estenogramas de 19 de setembro de 1934 ou nos de 20 de fevereiro
de 1935, um ano antes da sua morte.
A obra de Pavlov constitui o primeiro trabalho sistemático de aná­
lise experimental do comportamento, embora no campo das reações mais
simples.

118
O problema escolhido por Pavlov para dar início aos seus experi­
mentos foi o reflexo salivar “à distância”, ou seja, a secreção “salivar”
sem estímulo local dos receptores destinados a excitar naturalmente tal
secreção.
A escolha foi devida a diferentes motivos, sem levar em conta o
profundo conhecimento e a experiência de Pavlov no campo das glân­
dulas da digestão e o seu domínio perfeito sobre o método “crônico”.
Aliás, esse método “crônico” de análise dos processos fisiológicos com­
plexos neste, adequava-se admiravelmente às necessidades do expe­
rimento.
O recurso à “fístula salivar” (da qual Glinsky foi o pioneiro) per­
mitia manter o animal sensível a qualquer “estímulo agindo à distância”,
sobre o ouvido, a vista, o olfato.
Para verificar os efeitos desses estímulos, a fístula salivar era um
recurso utilíssimo. Isto porque não só o aparecimento da secreção, m*c
também sua quantidade e composição química podiam facilmente ser
observadas e medidas, numa glândula de estrutura simples e imune a
tensões musculares, propriedades que pareciam a Pavlov muito impor­
tantes, pois uma verdadeira estimulação “à distância” devia excluir exci­
tações internas não controladas que poderiam atuar simultaneamente
com os estímulos externos manipulados, complicando assim a análise.
A tarefa seguinte era a de arranjar meios práticos para efetuar os
controles dos estímulos e das respostas.
Uma das particularidades dos “reflexos sinais” que Pavlov tinha
observado, era que a salivação aparecia não somente diante da excitação
da mucosa bucal (com ácidos e alimentos), mas também à simples visão
da comida ou, até à mera visão do homem que normalmente a trazia.
A presença do experimentador deveria portanto ser eliminada e,
conseqüentemente, os controles dos estímulos, e as observações sobre as
respostas, deveriam ser executadas de um ponto externo ao aposento
onde se colocava o sujeito.
Hoje em dia, um circuito fechado de TV e um sistema elétrico
para comando dos estímulos e registração (gráfica ou numérica) das
propriedades de respostas, resolveriam o problema.
As condições de trabalho de Pavlov levaram-no, ao invés, à ins­
talação de um complexo sistema pneumático para medir a quantidade
de saliva secretada e de um sistema mecânico de apresentação de co­
mida que, neste caso, constituía o estímulo original do reflexo salivar.
O sujeito era colocado sobre uma mesa, numa sala à prova de
som e de estímulos visuais externos. Um complicado encanamento saía
da fístula já curada, no focinho do animal, de maneira que qualquer fluxo
de saliva que entrava na pequena cânula introduzida na fístula, deslo­
cava uma coluna horizontal de líquido colorido, sobre uma escala gra­

119
duada, permitindo a leitura do volume crescente de saliva, à medida
que esta saía da glândula, através da cânula.
Os animais eram amarrados (sem incômodo) para evitar que du­
rante as experiências, se sentassem e desfizessem a conexão entre a
glândula e o tubo introduzido na fístula.
Para os sujeitos a situação experimental não era aversiva, tanto
que depois de se acostumarem a ela, os animais não precisavam de
ordens para subir à mesa, onde aguardavam tranqüilamente que os
amarrassem com correias que pendiam de uma viga horizontal.
Naturalmente, depois da construção da “Cidade da Ciência”, as
condições experimentais eram mais precisas, de modo a assegurar me­
didas mais exatas sobre as propriedades das respostas (salivar e outras).
A um cão assim amarrado, eram apresentados os estímulos em
diferentes combinações. Respeitava-se, contudo, o princípio de empa­
relhar cada novo estímulo àquele que originalmente eliciava a resposta
salivar, pois parecia que os estímulos que o precediam, serviam de
“sinais” da apresentação do estímulo original: assim se explicaria, por
exemplo, o aparecimento da salivação também diante da simples figura
do experimentador.
Os primeiros resultados demonstravam que após um certo número
de emparelhamentos, o novo estímulo podia substituir o original. Era
suficiente apresentar, por exemplo, o som de uma campainha para obter
a resposta salivar.
As sessões experimentais duravam, às vezes, vários dias. Cada ex­
periência comportava uma dezena de emparelhamentos e os primeiros
sinais de “substituição” do estímulo original apareciam após dez ou
vinte emparelhamentos. Assim foi encontrado o princípio que explicava
os reflexos sinais: um estímulo podia substituir o original depois de um
certo número de emparelhamentos com ele, em uma determinada rela­
ção temporal.
A um pesquisador da envergadura de Pavlov, todavia, esse resul­
tado não bastava. Parecia mais um ponto de partida para um imenso
programa de pesquisas que um ponto de chegada.
O fato de que as respostas do reflexo natural (depois denominado
“incondicionado” ) alimento-salivação podiam ocorrer como efeito de
um novo estímulo, por exemplo um som, além de explicar os “reflexos
sinais”, levava a um método para produzir novos reflexos.
A Pavlov porém, não escapou o aspecto mais fecundo de sua des­
coberta: o “reflexo sinal (depois dito “condicionado”) poderia ser uma
unidade de análise dos comportamentos mais complexos, que seriam
resultados de sucessivas e complexas substituições de estímulos (“con­
dicionamentos”). Então, a análise do comportamento consistiria na de­
terminação desses condicionamentos. Mas embora Pavlov possuísse uma
notável experiência científica, a rigorosa fidelidade à objetividade cien­

120
tífica não lhe consentia nenhuma formulação que não derivasse de
dados colhidos sob controles adequados. Além disso, era possível que o
“condicionamento” se realizasse apenas dentro de limites particulares
e assim toda generalização seria prematura.
O programa da pesquisa, formulado mais ou menos explicitamente,
visava doravante a determinar os limites dentro dos quais operava o
condicionamento, isto é, a intensidade e outras propriedades dos estí­
mulos; as relações temporais entre o estímulo original e o novo (neutro)
que adquiria condicionalmente o poder de eliciar a resposta; o número
de emparelhamentos necessários para obter tal efeito; a possibilidade de
condicionamentos de nível mais elevado, quando se emparelha um novo
estímulo a outro, também condicionado, isto é, àquele que, por sua vez,
adquiriu o poder de provocar a resposta. Tais eram os problemas, um
primeiro grupo, para os quais Pavlov e seus colaboradores deviam (e
queriam) encontrar uma solução.
Quanto à propriedade dos estímulos, já antes do aparecimento de
Pavlov, eram conhecidos alguns limiares absolutos e diferenciais, quer
dizer, as intensidades mínimas capazes de provocar uma resposta e as
diferenças mínimas entre dois estímulos, passíveis de serem percebidas.
Havia já nesse campo, contribuições da psicofísica, como a “lei de We-
ber”. Nos laboratórios de Pavlov empregou-se amplamente a técnica de
variar as propriedades dos estímulos para produzir reflexos condicio­
nados.
A “discriminação respondente” (ou pavloviana) confunde-se em
parte com a definição comportamental dos limiares diferenciais dos
estímulos. Sobre as relações temporais entre estímulo condicionado e
incondicionado ou original, foram efetuadas experiências minuciosís-
simas por parte de Pavlov e seus colegas.
Certas hipóteses e certos fatos, absurdos segundo o senso comum,
não o são para o dentista até que a experiência não lhes demonstra
o absurdo ou a impossibilidade. Assim teria pensado Krestovnikov,
quando tentou condicionar um animal apresentando-lhe antes o ali­
mento e, poucos minutos depois, o “sinal” que consistia no arranhar le­
vemente a pele do sujeito.
Uma série de mil emparelhamentos nos quais o “sinal” era dado
de 1 a 3 segundos após o estímulo incondicionado, não foi suficiente
para estabelecer a salivação condicionada. Mas a estrita simultaneidade
entre EC (estímulo condicionado) e EI (estímulo incondicionado) asse­
gurava depois de algumas dezenas de emparelhamentos a eliciação da
resposta condicionada. Contudo, a relação temporal mais conveniente
foi aquela em que o EC precedia o EI de dois a três segundos.
O reflexo condicionado passou logo a constituir, de fato, uma uni­
dade de análise de comportamentos mais complexos e um método de
produção de reflexos. A “vida psíquica” seria então um imenso com­
plexo de reflexos condicionados, ou seja, de respostas dadas a estímulos
condicionados a outros, originais (ou, também esses, condicionados).

121
Mas essa teoria não pode ser demonstrada facilmente, sobretudo por­
que os reflexos condicionados resultam de precisos controles das condições
ambientais, o que não é praticável na vida de todos os dias. Além disso,
como foi demonstrado mais tarde, o processo de condicionamento pavlo-
viano (chamado também clássico ou respondente) não se aplica a um
certo tipo de comportamentos, que inclui uma imensa parte do repertório
humano.
Efetivamente, para obter o condicionamento, são condições essen­
ciais, como insiste Pavlov (1927), um particular tipo de emparelha-
mento de estímulos com precisas relações temporais; um controle rigo­
roso das situações estimuladoras (eliminando um imenso número de
estímulos); a repetição exata do emparelhamento por algumas vezes;
a apresentação do reforço (EI) “contingente” ao estímulo (que se tor­
nará condicionado), antes que chegue a resposta. O método respondente
é substancialmente, a substituição do estímulo de uma resposta reflexa
por outro.

122
A CONTRIBUIÇÃO DE BECHTEREW

V. M. B echterew (1857-1927) sublinhou as Di­


ferenças entre seus estudos e os de I. Pavlov, embora o método seguido
seja essencialmente o mesmo: a substituição de um estímulo eliciador
natural por um novo estímulo.
Sua obra mais importante Psicologia Objetiva surgiu em 1913, ca­
torze anos antes do Conditioned Reflexes de Pavlov e foi traduzida por
Kostilev que acompanhara pessoalmente numerosos experimentos de
Bechterew e de seus colaboradores. Na página 251 dessa obra Bechterew
resume sua técnica: “Como excitante direto usa-se uma descarga elé­
trica na planta do pé. A verdadeira experiência consiste em provocar,
no início, a excitação simultânea da planta do pé e da retina, nas condi­
ções supra mencionadas. Após algumas repetições, nas quais a cor (da
luz aplicada à retina) é sempre a mesma, a excitação elétrica é inter­
rompida e pode-se verificar que a excitação luminosa é, por si mesma,
suficiente para produzir o reflexo plantar, com o movimento de con­
tração dos artos. Dado que a mudança de cor não tem, por si mesma,
qualquer ação sobre as extremidades, o reflexo assim obtido é evidente­
mente de natureza associativa”.
Bechterew, que não aprofundou o estudo das respostas reflexas
glandulares, critica Pavlov por não haver aprofundado o estudo dos
reflexos motores, principalmente porque tal estudo levaria a uma técnica
aplicável aos seres humanos.
Há uma explicação para a diferença de atitudes, entre esses dois
pesquisadores, ante a pesquisa do comportamento reflexo.
Pavlov, fisiologista, estava interessado nos mecanismos neurais do
condicionamento e por isso seu interesse aplicativo era remoto.
Bechterew, por seu lado, era psiquiatra antes que fisiologista e
interessou-se rapidamente pela aplicação clínica do condicionamento.
Desse modo fica claro porque as pesquisas de Bechterew visavam
a uma resposta externa passível de observação direta e que dispensava
qualquer intervenção cirúrgica para possibilitar a observação.
O grupo dirigido por Bechterew estudou vários reflexos motores,
além do reflexo plantar; e os processos implicados em tais estudos, a
despeito da diversidade de nomes, correspondem aos de generalização,
inibição e diferenciação, identificados por Pavlov e seus colaboradores.
A insistência de Pavlov em concentrar pesquisas sobre o reflexo salivar,

123
impediu-lhe em parte, a utilização sistemática de estímulos condicio­
nados (EC) tipicamente humanos, coisa que preocupava muito Bech-
terew. Daí a insistência deste sobre o significado psicológico de seus
experimentos, paralela à constante ênfase de Pavlov sobre as implica­
ções fisiológicas de seus estudos.
A diferença entre as respostas típicas da pesquisa de cada um dos
autores, de um lado conduziu Pavlov a afirmar a necessidade com que
aparece a resposta condicionada em condições adequadas de estimu­
lação com EC (1927, p. 32), enquanto de outro lado levou Bechterew
a escrever: “Contrariamente aos reflexos simples, estes (reflexos asso­
ciativos) não têm um caráter de necessidade e, como a experiência
mostra, chegam facilmente a desaparecer.”
“Sabe-se por exemplo, que o homem se acostuma rapidamente (a
não assustar-se) ao assobio dos projéteis e cessa de reagir a ele” (1913
p. 250). Bechterew analisa detidamente, a seguir, os movimentos de
um homem diante de um fuzil; mas os movimentos de defesa ou de
fuga diante da visão de um fuzil ou do silvar de um projétil são res­
postas cuja manutenção implica mecanismos que não se podiam identi­
ficar com as técnicas do condicionamento clássico, na época de Bech-
terew.
A não necessidade de tais respostas deve-se a que elas não são,
pela sua própria natureza, passíveis de controle suficiente por meio de
estímulos eliciadores. Opostamente, a resposta salivar é perfeitamente
controlável com a mera apresentação ou remoção de estímulos elicia­
dores. Dessa divergência resultam o “infalivelmente” pavloviano e o
n’ont pas un caractère de nêcessité de Bechterew. Entre o reflexo plan­
tar e os movimentos para afastar o cano de um fuzil ou para chegar a
um refúgio antibombas a diferença não é apenas de complexidade mas
também de natureza, já que o aparecimento e principalmente a manu­
tenção dessas últimas requerem condições outras que a simples apresen­
tação de um eliciador.
As leis do reflexo funcionam com rigor e tomam-se evidentes
as relações de necessidade entre a apresentação de um estímulo e a
ocorrência de resposta, enquanto os experimentos de Bechterew tratam
de reflexos associados (condicionados) plantares e outros implicando
flexão de um dedo ou de um arto por efeito de uma descarga elétri­
ca. Ê nesse caso que se pode aceitar o princípio segundo o qual “os
reflexos associados são tão mecânicos como os reflexos simples e não
podem ser inibidos por um esforço voluntário” (p. 267).
De seu lado, Pavlov se limitava ao campo dos verdadeiros reflexos,
não obstante a complexidade dos controles experimentais da resposta
salivar.
Bechterew ultrapassa os confins das respostas eliciáveis e, apenas
quando seus dados se referem a respostas provocáveis com a apresen­
tação de um EC ou EI, a concordância de seus resultados com os de
Pavlov é completa.

124
O grupo de Bechterew utilizou as mesmas medidas empregadas
pela equipe de Pavlov: limiares de estimulação, absolutos e relativos
(Molotkov p. 266); magnitude da resposta (p. 257) ou a “facilitação”
graças a um segundo estímulo condicionado. Similarmente, processos
semelhantes foram estudados por ambas as escolas: os colaboradores de
Bechterew analisaram a inibição (interna e externa), a diferenciação
(Protopopov, p. 255), os condicionamentos secundários, chamados
“transmissão” (Israelsohn, p. 257), a fadiga do reflexo (Schwarts­
mann, p. 256).
Essas considerações talvez bastem para se definir o método de
Bechterew como idêntico ao pavloviano, nos seus fundamentos, como
se deduz também do seguinte trecho de Psicologia Objetiva: “Coloca-se
o cão sobre uma mesa onde deve permanecer em pé, uma pata ligada
ao aparelho de registro e, simultaneamente com o contato elétrico,
apresenta-se a ele uma luz ou um som. Após repetir tudo isso por diver­
sas vezes, se verá que o cão fará os movimentos de resposta à mera
excitação sonora ou luminosa” (p. 253).
Nesse trecho estão resumidas as operações clássicas fundamentais:
emparelhamento de estímulos, substituição do EI por estímulo neutro
(EN) transformado em EC, repetições do emparelhamento, respeito a
precisas relações temporais.
Vê-se, a este ponto de nosso rápido exame, que a obra de Bech­
terew ampliou a possibilidade de analisar e controlar cientificamente os
comportamentos motores que no programa pavloviano não receberam
tanta atenção.
Contudo, embora Bechterew haja estendido suas conclusões no
plano teórico, a comportamentos não dependentes de eliciações identi­
ficadas, não chegou a propor um método de produção de movimentos
novos, e conseqüentemente, de comportamentos mais complexos. Suas
pesquisas se ampliaram até atingir os mais diversos campos do compor­
tamento humano e muitas de suas conclusões merecem atenta consi­
deração, pois expressam a preocupação constante de Bechterew em
reduzir os chamados processos psíquicos à sua verdadeira natureza de
atividades do organismo sem conteúdos metafísicos.
À parte as extensões teóricas dadas ao condicionamento por Bech­
terew, sua técnica, como a de Pavlov não permite obter respostas novas
mas sim amplia a gama de estímulos utilizáveis para produzir atividades
reflexas. Trata-se de alterar o caminho aferente do arco reflexo, a partir
da substituição de um receptor.
Essa possibilidade, que aparece como óbvia, após os trabalhos de
Séchenov, representa uma total subversão do velho conceito de “sim­
patia” adotado por Astruc a partir de Willis e que foi o modelo original
para a formulação do “arco diastáltico” e do “arco reflexo”.
Nem Pavlov, nem Bechterew reconhechiam grandes limitações ao
conceito de reflexo condicionado ou associativo; Pavlov (1927) escre­
ve: “É óbvio que os diversos tipos de hábitos baseados no treino, na

125
educação e na disciplina de qualquer espécie, não são outra coisa se
não longas cadeias de reflexos condicionados” (p. 395); de sua parte,
Bechterew (1913) afirma: “Vistos de perto, todos os movimentos que
na psicologia subjetiva são chamados atos voluntários derivam, por­
tanto, de processos reativos. Em outras palavras eles apresentam a
reprodução de um simples reflexo” (p. 466).
E mais adiante: “O mesmo se verifica com relação ao estudo de
uma língua estrangeira, de um trabalho, de uma profissão. Por toda
parte há reflexos, que são reproduzidos em forma estendida ou adap­
tada” (p. 477).
Fica assim clara em Bechterew e em Pavlov a preocupação de
decompor o comportamento complexo em combinações de unidades
mais simples. É o que aparece no esforço de Bechterew de estender
seus conceitos à explicação da linguagem e no de Pavlov quando chega
a formular um “reflexo de liberdade”.
O termo decompor, usado a pouco, é importante: as respostas do
condicionamento clássico representam o último grau do processo de
análise de um comportamento, entendido este como correlação entre
atividade do organismo e condições ambientais.
Os reflexos de Bechterew e de Pavlov são unidades mínimas de
comportamento e para as quais é possível isolar estímulos específicos e
a partir daí substituí-los com estímulos novos.
Quando um comportamento complexo é submetido à análise expe­
rimental, o grau último da decomposição analítica não é sempre o
reflexo, no sentido pavloviano. Se a unidade final da análise deve ser
ainda uma correlação observada entre uma atividade do organismo e
as condições estimuladoras, toma-se difícil isolar os reflexos ou o
reflexo fundamental de uma resposta como “abrir a porta de uma jaula
e fugir”.
Mais precisamente, o estímulo para essa atividade não é facilmente
identificável: não se observa tal ato como função de qualquer estímulo
incondicionado. Em outros termos, uma resposta desse tipo é passível
de decomposição analítica, mas a sua unidade mínima não corresponde
ao nível da unidade de análise utilizada por Bechterew e Pavlov.
Para a resposta de “abrir uma jaula e escapar”, a ausência de um
eliciador específico impede o emprego do condicionamento clássico,
como vimos. Mas mesmo enquanto resposta, essa atividade é muito
diversa das que Bechterew analisou.
Levantar uma pata para terminar uma estimulação dolorosa é
muito diferente de levantar uma pata para mover um ferrolho ou puxar
uma corrente.
As características de forma ou topográficas da segunda são deter­
minadas de modo a permitir o acesso ao ferrolho de baixo para cima
e de uma posição que permita empurrá-lo para o lado. No caso da
contração da pata que a distância do pavimento a resposta é total­
mente determinada pelo choque eliciador de modo que “qualquer forma

126
de resposta” é aceita como boa, isto é, produz o ajustamento ao am­
biente. Um dos tipos de resposta requer uma seleção dos movimentos
musculares componentes, a qual deve ser refinada e determinada segundo
o tipo particular de ação que deve executar sobre o meio.
Nos estudos de Pavlov todos os aspectos da resposta são determi­
nados por condições estimuladoras antecedentes: o ácido ou a comida
em pó provocam necessariamente a salivação.
Se nessa condição fosse permitido ao cão banhar a língua e a boca
2m uma vasilha com água, tal resposta provavelmente aumentaria em
freqüência com o prosseguimento dos treinos.
Mas a resposta escolhida por Pavlov era a secreção salivar e bas­
tava apresentar o EI (ou EC) para que ocorresse a única resposta pos­
sível ao cão para umedecer a boca, com características de necessidade.
Assim, nos estudos de Bechterew como nos de Pavlov a correlação
necessária entre EI ou EC e a resposta era assegurada não só pela
infra-estrutura fisiológica do organismo, mas também pelo procedimento
experimental: o estímulo usado era tal que nenhuma outra resposta
poderia produzir o efeito ajustador (terminar o choque ou umedecer a
boca). O estímulo de Bechterew determina a priori a resposta que se
pode esperar.
Graças ao condicionamento o estímulo muda mas a resposta não
se altera, e o enfraquecimento da salivação ou da contração da pata é
corrigido graças à repetida associação do EC ao EI.
Com Séchenov o reflexo tomara-se uma unidade de análise expe­
rimental de processos neurofisiológicos e uma unidade conceituai, teóri­
ca para o estudo do comportamento dos organismos animais.
Com Bechterew e Pavlov o reflexo se transforma na unidade de
análise experimental dos comportamentos reflexos.
Com Thorndike inicia-se a reformulação do conceito de reflexo
para estendê-lo à análise de comportamentos não eliciáveis.
Essa ampliação do conceito implicará uma definição diferente da
necessidade da correlação entre estímulo e resposta ou, mais precisa­
mente entre um conjunto de estímulos e comportamento observável
resultante.
Se as descobertas de Bechterew e Pavlov (e dos seus predecesso­
res) representam um exemplo magnífico da utilidade da análise do
comportamento dos animais para a explicação dos movimentos reflexos
e das respostas autônomas, os trabalhos de Thorndike e de Skinner
abriram o caminho (procurado por muito tempo) para a análise expe­
rimental dos comportamentos “voluntários” humanos ou animais. É uma
análise que tem por unidade básica, ainda o reflexo, entendido na sua
caracterização positiva: como correlação observada entre um estímulo
e uma resposta, independentemente dos adjetivos negativos (incons­

127
ciente, involuntário e não aprendido) cuja origem reside no preconceito
da inacessibilidade dos comportamentos humanos à análise experimen­
tal. As numerosas pesquisas pavlovianas tinham como ponto de partida,
embora implícito, este conceito positivo do reflexo considerado como
correlação entre Estímulo e Resposta e visavam à definição experimen­
tal das condições que asseguram esta correlação e às leis de sua varia­
ção, como efeito de condições estranhas à mesma correlação.

128
O REFLEXO E A ANÁLISE
DO COMPORTAMENTO GLOBAL

T horndike e as “Conexões”

Edward L. Thorndike (1874-1949) completou seus primeiros expe­


rimentos antes da publicação dos resultados de Pavlov sobre o condicio­
namento. Isto lhe impediu, talvez, a utilização dos princípios pavlovianos
na análise e na interpretação dos seus dados, mas ao mesmo tempo, con­
sentiu-lhe uma atitude diversa diante dos comportamentos de seus ani­
mais, livre de posições teóricas a priorL Também ele pôde deixar-se guiar,
como Pavlov, pelo “Senhor Fato”.
A influência mais importante recebida por Thorndike foi a de Wil-
liam James que, em 1890, quando Thorndike era um estudante de 16
anos, publicou o seu Principies of Psychology, no qual era formulada a
lei da associação por contigüidade: “Quando dois processos cerebrais ele­
mentares estiverem em atividade simultaneamente ou em imediata suces­
são, repetindo-se um deles, tende a propagar sua excitação ao outro.”
A interpretação dada por Thorndike aos seus resultados se funda­
menta justamente nas leis da associação, como se verá a seguir.
O contato pessoal entre William James e seu discípulo foi bastante
amigável e freqüente, pois as primeiras experiências deste, realizaram-se
no porão da casa do mestre, com galinhas (Garret, 1941).
A tese de doutoramento de Thorndike foi o resultado desses estudos
e de outros, feitos mais tarde no laboratório de Cattel: foi publicada em
1898, cinco anos antes dos trabalhos de Pavlov sobre os reflexos, e com
o título de A inteligência animal: um estudo experimental sobre os pro­
cessos associativos nos animais.
Esse trabalho foi importante sob vários aspectos: a) deu início à
utilização do método experimental para analisar um comportamento com­
plexo global (o organismo entendido na sua totalidade), como é a busca
de solução de problemas. Os trabalhos anteriores careciam de rigor nas
observações e não compreendiam a manipulação sistemática das condi­
ções experimentais (Lloyd Morgan, Lubbock, Romanos, apud Mowrer,
1960); b) as primeiras leis a respeito do processo de aprendizagem deri­
vam deste trabalho (uma ulterior demonstração da utilidade da análise
experimental do comportamento nos animais); c) foi talvez o primeiro
trabalho experimental de análise do comportamento “voluntário” consi­

129
derado em si mesmo, independentemente da espécie de animais obser­
vados.
Embora os dados mais conhecidos sejam os obtidos através de expe­
riências com gatos, Thorndike serviu-se, para o seu trabalho, também
de peixes, galinhas e macacos sul-americanos.
Tanto os peixes como as galinhas e os gatos, nas experiências, eram
separados da comida e tinham que “resolver o problema”, isto é, encon­
trar um caminho para alcançá-la. Os animais procuravam por diversos
meios encontrar a saída do compartimento (em direção ao lado de fora,
ao alimento), até que acionavam dispositivos que abriam uma porta;
alcançada a comida (em pequena quantidade), o animal era recolocado
na situação-problema (jaula ou labirinto).
O dado experimental mais importante registrado por Thorndike era
o tempo que o animal empregava para cada saída: na medida em que as
saídas se sucediam, o tempo necessário apresentava variações segundo
uma determinada ordem, isto é, o número de segundos necessários para
sair era cada vez menor. Isto correspondia a uma redução progressiva da
freqüência de respostas inúteis e a uma rapidez crescente do apareci­
mento da resposta certa (virar para a esquerda ou então puxar uma cor-
rentinha, por exemplo).
A interpretação de Thorndike foi que a saída da jaula ou gaiola
para chegar à comida, tinha o efeito de estabelecer e acentuar a conexão
entre certos estímulos e a resposta certa (por exemplo, puxar uma corren-
tinha). Estabelecia-se assim uma verdadeira conexão E-R de tal forma
que a correntinha (como estímulo) torna-se associada ao ato de puxar.
Pavlov, naquela época, estava ocupando-se somente da fisiologia da
digestão e publicava (1897) O trabalho das glândulas digestivas.
Com dados muito semelhantes aos de Thorndike, Skinner formulará
o princípio do condicionamento operante em 1935, isto é, cerca de qua­
renta anos mais tarde, procurando achar a “necessidade” pavloviana nos
comportamentos molares, globais.
Thorndike aproximou-se muito do princípio do condicionamento
instrumental como mostra a sua “lei do efeito” (de 1911), embora ainda
formulada em termos de “associação” (ou conexão) e não claramente
entre Estímulo e Resposta, mas entre “situação” e “as respostas”.
Eis o texto da lei: “Entre diversas respostas dadas à mesma situa­
ção, as que são acompanhadas ou imediatamente seguidas por uma
satisfação do animal tornar-se-ão, se outras coisas não mudarem, mais
firmemente conexas à situação de tal forma que, quando esta se repetir,
aquelas terão maiores possibüidades (more likely) de se repetirem. . . ”.
Antes de completar o texto, convém sublinhar alguns aspectos desse
trecho: a) fala-se de conexão mais firme entre situação (entendida como
complexo de estímulos) e respostas escolhidas dentre outras; b) estas
respostas escolhidas são mais aptas a se repetirem, quando a situação

130
estimuladora se repete; c) o fator que toma mais provável a repetição
é a satisfação do sujeito, simultânea à resposta ou imediatamente em
seguida a ela.
Consideremos esses pontos comparando-os com os resultados de
Pavlov. Verificamos que: o item a descreve a formação (condiciona­
mento) de um reflexo, sem identificar o estímulo (ou, mais provavel­
mente, uma discriminação operante no qual a “situação” não elicia por
si mesma a resposta, mas serve como sinal para a sua emissão); o item
b implica a idéia de aumento da probabilidade de certas respostas diante
dos estímulos da situação que adquirem o poder de produzi-las (ou adqui­
rem — o que é mais provável — a função de “sinais” de uma discrimi­
nação); o item c refere-se ao conceito de reforçamento produzido pela
resposta, e à relação temporal entre Respostas e Reforço, e não entre
dois estímulos (um dos quais é o reforço) que precedem a resposta, como
no condicionamento respondente ou pavloviano.
Como se verá adiante, essa idéia de reforço contingente ou conse­
qüente à resposta (e responsável por um aumento na probabilidade desta)
será o princípio fundamental do condicionamento operante de Skinner.
A segunda parte da lei do efeito diz: . .aquelas (respostas) que são
acompanhadas ou imediatamente seguidas por desconforto (disconfort)
do animal, mantidas as demais coisas, terão enfraquecidas as suas cone­
xões com a situação, de tal forma que, quando esta se repetir, aquelas
serão menos aptas a se repetirem (less likely). Maior é a satisfação e o
desconforto, maior será o fortalecimento (strengthening) ou o enfraque­
cimento da ligação (conexão)”.
Essa segunda parte do texto requer por sua vez, alguns comentários:
a) fala-se de uma redução da probabilidade de repetição de certas res­
postas; b ) este efeito refere-se àquelas que introduzem disconfort; c)
grandes punições significam reduzida probabilidade de repetição das res­
postas punidas; d) grandes recompensas trazem grandes probabilidades
de respostas recompensadas.
O ponto a descreve um efeito demonstrado através de numerosos
estudos, mas se trata de um efeito transitório: as repetições da resposta
punida são proteladas, isto é, a supressão causada pela punição, é tran­
sitória; assim a probabilidade que se reduz é a de breve repetição. Mas
a probabilidade de um certo número de novas emissões, como demons­
trará Skinner, não é reduzida pela punição.
Thomdike modificou em 1932, essa afirmação de vinte e dois anos
antes, sublinhando que a oposição entre “recompensa” e “punição” não
se verifica como é entendido erroneamente na lei de 1911. O ponto b
refere-se à definição de disconfort que não é uma definição experimental,
mas sim introspectiva e vaga. A respeito do ponto c, deve-se precisar
que, as grandes punições conduzem a respostas incompatíveis com a res­
posta punida e a emissão daquelas retarda em muito a repetição desta;
também este efeito desaparece (por extinção) a menos que as punições
sejam repetidas com freqüência adequada. O ponto d refere-se à relação

131
entre probabilidade de repetição da resposta recompensada e a intensi­
dade (ou quantidade) da recompensa.
Sabe-se hoje que o aumento de freqüência de uma resposta depende
muito de outros fatores como, número de reforços, tempo de privação,
distribuição temporal dos reforços, além da intensidade da recompensa
(ou reforço) notada por Thomdike.
Mas a análise experimental destas variáveis (e seus limites) não era
possível nos tempos de Thorndike. Sua formação anterior tinha-o levado
a dar considerável importância a associações hipotéticas estabelecidas
mais que às relações entre os efeitos observados e as propriedades do
reforço. Embora acentuando as associações, Thorndike junta, pela pri­
meira vez, dois princípios importantes: 1. A associação se faz entre estí­
mulos e respostas (conexão entre S e R ), e 2. O reforçamento da cone­
xão resulta do efeito produzido pela resposta.
Se definirmos como “reflexo” o primeiro princípio (entendido aqui
como correlação observada entre estímulo e resposta (fica clara a con­
tribuição de Thomdike à procura de uma unidade de análise do compor­
tamento molar, global, “voluntário”. De outro lado, o segundo princípio
contém os elementos do método de análise (e de produção, portanto de
ensino) de tais comportamentos: a apresentação adequada do reforço,
(conforto ou desconforto), como conseqüência da resposta, “contingen­
te” a ela.
O sistema de Thomdike, depois das sucessivas revisões, pode ser
ousadamente resumido como segue e é, à semelhança do de Pavlov, um
magnífico exemplo da utilidade da análise do comportamento dos animais.
As duas leis principais são: a do efeito, que já vimos, e a do exer­
cício, que aparece já na tese de 1898. Esta lei se refere ao processo de
fortalecimento e enfraquecimento das conexões entre S e R, devidos
respectivamente às repetições da conexão ou à falta de uso da mesma;
estes dois processos são enunciados como leis menores: do “uso” e do
“desuso”.
A lei menor do uso tem três corolários ou leis subsidiárias sobre
aspectos particulares da repetição (uso), da conexão S-R: são os prin­
cípios de freqüência, recency e intensidade ou vivacidade (vividness) .
Esses princípios descrevem as icondições ideais que devem ser respeitadas
na repetição das conexões (lei menor do uso) e, como nota Garret em
1941, são largamente empregados na técnica de propaganda modema.
Num certo sentido, a lei do “uso”, com seus três corolários, representa
um esforço para definir contingências ótimas do reforçamento, problema
fundamental no condicionamento operante que será mais tarde formulado
por Skinner (1938) e por Keller e Schoenfeld (1950).
Outras propriedades do condicionamento de respostas operantes
(não reflexas) ou “voluntárias” podem ser entrevistas nos outros cinco
princípios de Thomdike, derivados das duas grandes leis do efeito e do
exercício

132
Na realidade, o princípio de resposta múltipla diz respeito às diver­
sas tentativas do sujeito para achar a resposta correta e o fato de que
esta última deve verificar-se antes de ser recompensada para assim tor-
nar-se mais provável. O princípio de set (ou disposição) se refere à
necessidade de uma privação precedente às respostas e que é reduzida
por um reforço. O princípio que segue é o da atividade parcial e trata da
redução de freqüência das respostas inúteis simultaneamente ao aumento
de probabilidade da resposta que produz a solução (reforço).
Segue-se o princípio de assimilação ou analogia: diante de estímulos
semelhantes aos que ficaram conexos com a resposta, o sujeito a repe­
tirá; é uma clara definição da generalização (operante) dos estímulos.
O quinto princípio revela com muita clareza a ambigüidade das interpre­
tações de Thorndike, situadas a meio caminho entre a associação (por
contigüidade) e o condicionamento operante, pois o seu princípio de
associative shifting (ligação associativa) pretende explicar a associação da
resposta a um estímulo previamente ineficaz; condicionamento pavlovia-
no, discriminação operante, generalização pavloviana ou associação pura
e simples, poderiam descrever este efeito. Mas o princípio se refere tam­
bém a um outro tipo de associação, a conexão entre a resposta e uma
parte da situação (depois de estabelecida a conexão com a situação
estimuladora mais ampla); esta idéia poderia envolver uma discrimina-
ção operante como Skinner definiria mais tarde, ou poderia representar
uma perfeita descrição da discriminação pavloviana se a causa da cone­
xão, o reforço, não fosse contingente à resposta, mas sim, a um estímulo
precedente.
Thorndike formulava seus princípios ou leis muito antes da formula­
ção do condicionamento operante ou instrumental. Mas é com ele que se
inicia o uso do reflexo, (entendido como correlação observada entre estí­
mulo e resposta), como unidade de análise experimental de comporta­
mentos globais, e não segmentares, como eram as respostas estudadas
por Pavlov e Bechterew.

133
SKINNER E O CONDICIONAMENTO
DE RESPOSTAS NÂO ELICIÁVEIS

B urrhus F rederic Skinner , nascido em 1904,


tendo como ponto de partida os princípios explicativos de Thomdike e
de Pavlov, achará resultados semelhantes aos de Thomdike e procurará
a mesma ordem achada por Pavlov, porém entre os estímulos e o com ­
portamento do organismo como um todo.
O resultado extremamente fecundo dessa busca, foi a formulação
de um novo tipo de condicionamento devido ao emprego de reforço asso­
ciado às respostas. É o princípio de condicionamento como explicação
de comportamentos “voluntários” ou “espontâneos”, ou seja, as respostas
cuja emissão, forma e adaptação aos sinais do ambiente não são contro­
láveis com a simples apresentação de estímulos antecedentes (numa dada
combinação).
Ê fácil compreender o tremendo impacto e as decisivas conseqüên­
cias que pode ter a proposição de um método de análise e controle das
respostas “voluntárias”.
A substituição dos estímulos como causa do condicionamento de
reflexos fora estendida por Pavlov como princípio explicativo da aprendi­
zagem de respostas muito diversas dos reflexos condicionados glandu­
lares (Mowrer, 1960 p. 65).
O programa pavloviano pretendia utilizar o princípio dos “reflexos
condicionados” como a unidade básica para analisar respostas muito com­
plexas, vistas como reflexos embora mais complicados. Por exemplo, “o
componente do reflexo de nutrição, isto é .. . o reflexo de procurar ali­
mentos”, seria aprendido ou condicionado a sinais que substituíssem os
estímulos originais (Pavlov, 1927, p. 12-15).
Outros comportamentos complexos, como por exemplo, livrar-se dos
arreios, são entendidos por Pavlov sobre a base dos reflexos condicio­
nados: freedom reflex ou “reflexos de liberdade ou libertação”.
É deveras surpreendente a facilidade com a qual Pavlov estende o
conceito de reflexo condicionado aos comportamentos mais diversos:
“Deixando de lado os reflexos internos, este cão detém ainda os reflexos
externos fundamentais; este é atraído pelo aümento; é afastado pelos
estímulos nocivos; exibe o reflexo de libertação, oferecendo uma potente
resistência a toda restrição” (1927).

134
A insistência em reduzir toda forma de aprendizagem à explicação
fundamental, da substituição dos estímulos pode ser vista claramente tam­
bém quando Pavlov, em 1932, tenta explicar a aprendizagem thomdi-
kiana de “ensaio e erro” como produto do condicionamento clássico. Mas
esta insistência, já aparecia também na definição do “reflexo de defesa
branda”, isto é, a secreção salivar condicionada, não ao alimento, mas a
uma substância nociva (ácida). Tal secreção era entendida como uma
forma de defesa do organismo pois diluía o efeito nocivo do ácido.
A resposta de defesa poderia dar a Pavlov a indicação de novo tipo
de condicionamento e o motivo pelo qual não conseguiu percebê-lo, está
provavelmente na natureza da resposta que escolhera, a secreção glan­
dular, que o levava necessariamente à substituição de um reflexo por
outro. De fato, ninguém duvidaria da natureza reflexa de tais secreções.
Infelizmente, também as respostas musculares estudadas por Bech-
terew eram facilmente explicáveis como componentes motores do reflexo
de defesa e, por conseqüência, o efeito do alívio do choque elétrico foi
descuidado, enquanto a “sinalização” (substituição) do estímulo nocivo
choque, encontrava apoio na fórmula de Pavlov, assim como, nas idéias
darwinianas de “sobrevivência”, então em moda.
Pavlov mostrara, de fato, que a “sinalização”, seria a função mais
importante da córtex cerebral, destinada a assegurar um ajustamento
(adjustement) mais delicado do organi.mo ao meio (1927, p. 17) e
assim a sobrevivência, facilitando a nutrição que a assegura.
Pode-se observar, que o alívio resultante da contração da perna
(eliminando a corrente elétrica) não interessou particularmente a Pavlov,
pois tanto a resposta glandular como a motora estudada por Bechterew
eram, de fato, passíveis de condicionamento pavloviano e não exigiam
nenhuma explicação adicional.
Molotkov, já em 1910, tinha, obtido condicionamento de respostas
de esquiva (avoidance) de choque elétrico em adultos humanos, enquan­
to Starytzin, em 1926, e Schlosberg em 1934, e também Petropavlovsky
no mesmo ano, tinham demonstrado o condicionamento de respostas mo­
toras, quer com choques inevitáveis (condicionamento pavloviano) quer
com choque evitável (que requereria alguma explicação além da substi­
tuição dos estímulos já que por vezes o choque não ocorria).
Tais dados, que poderiam levar à formulação de um novo tipo de
condicionamento, foram entendidos diversamente.
Como recorda Razran (1956), o efeito produzido pelo choque evi­
tável foi atribuído à sua “coerência com a evolução animal”, dado o seu
sentido de defesa e de sobrevivência. Eram efeitos “naturais” de rejeição.
Graças a essa naturalidade dos processos reflexos de rejeição, era fácil
entender porque o choque (evitável ou inevitável) produzia contrações
condicionadas mesmo com um reduzido número de emparelhamentos
entre ele e um estímulo condicionado qualquer.
O reforçamento como princípio de condicionamento não foi perce­
bido: o choque foi entendido como um estímulo natural da resposta de

135
rejeição e as contrações surgidas na ausência do choque (evitável), foram
atribuídas ao “não supereforçamento”. Nem mesmo a leitura de A inte­
ligência animal de Thomdike, onde se formulava a lei do efeito e que
Pavlov declarava conhecer (1927, p. 6), foi suficiente para sugerir-lhe
um tipo novo de condicionamento. As razões dessa aparente miopia
devem ser buscadas na extraordinária difusão das idéias de Charles
Darwin nos tempos que precederam de perto o nascimento do condicio­
namento pavloviano.
A ênfase da análise do comportamento era sobre os mecanismos
de sobrevivência das espécies: daí o interesse pela fisiologia dos equipa­
mentos reflexos e a distorção “reflexologista” com que o próprio Pavlov,
impecavelmente objetivo, entende os resultados de Thomdike.
Não é fácil traçar rapidamente os fundamentos ideológicos da atitu­
de experimental da escola pavloviana diante das contrações musculares
eliciadas por um choque não sofrido pelo sujeito experimental. Basta,
porém, que se recorde o impacto causado na Rússia do século XIX pela
obra de Darwin e, na juventude universitária, pelo Os reflexos do cérebro
de I. M. Séchenov para que se possa entender o quanto era difícil para
os pesquisadores de então, quase todos oriundos dos laboratórios de
fisiologia, entender um resultado novo, fora dos esquemas do condicio­
namento pavloviano. Além de tudo, os conceitos e o método de Pavlov
funcionavam, e isto justificava a tendência a estender uns e outro ao
maior número possível de casos.
Não surpreende, portanto, que o próprio Skinner, o homem que por
primeiro, formulou sistematicamente os princípios fundamentais do con­
dicionamento operante tenha partido da idéia de estender a “necessidade”
das leis do condicionamento de Pavlov a comportamentos muito diver­
sos do reflexos salivar ou plantar.
Com Watson, tivera início na América, uma verdadeira ciência do
comportamento, então considerado como um problema científico, em si
mesmo, sem referência a um sistema nervoso e seus mecanismos que a
fisiologia desvendava dia a dia. Se as atividades dos organismos eram já
um legítimo objeto de análise científica, a unidade mínima dessa análise
devia ser ainda uma atividade do organismo como resposta à ação das
condições externas ou como operação sobre o meio exterior.
A tarefa do pesquisador era então a de determinar objetivamente as
correlações entre as propriedades perceptuais de uma situação as ativi­
dades que nela ocorriam, fossem respostas reflexas ou espontâneas. Tra-
tava-se, como se vê, de ampliar a fórmula do reflexo de modo a tomá-la
aplicável às atividades globais dos organismos: aquelas que Thomdike
havia estudado de outra perspectiva, buscando não a “necessidade” do
reflexo, mas evidências do processo “interno” de associação.
O programa que se propunha ao behaviorismo, de estudar objetiva­
mente o comportamento global em termos de correlação entre estímulos
e respostas, fora já vislumbrado por Pavlov quando interpretava os resul­
tados de Thomdike como correlação “entre estímulos visuais e tácteis de

136
um lado, e o aparelho locomotor, de outro”. O termo usado por Thorn-
dike fora “associação” entre os dois elementos da correlação.
A diferença não é só de terminologia: no trabalho de Thomdike o
comportamento não é o objeto de análise, mas a evidência de processos
neurais intervenientes, estes sim, estudados como objeto em si mesmos
da análise experimental. As associações de Thomdike são processos neu­
rais ou nervosos e não designam nenhuma necessidade observada entre
estímulo e resposta.
Com Watson o sistema nervoso passava a um plano de interesse
secundário e o objeto primordial da análise experimental do comporta­
mento eram as correlações observadas entre condições estimuladoras e
atividades dos organismos. Nessa análise um excelente modelo era o con­
dicionamento pavloviano: um método para produzir correlações perfei­
tamente mensuráveis e que permitia, ademais, o estudo dos efeitos de
condições estranhas à correlação mesma, sobre as propriedades desta.
Mas o esplêndido modelo de Pavlov só se aplicava às atividades
rigorosamente reflexas, automaticamente desencadeadas por estímulos
fisiológicos ou condicionados. Eram atividades segmentares do organis­
mo. Não se estudava a resposta do organismo como um todo a uma
certa situação experimental, mas a resposta de uma parte ou segmento
funcional do organismo. O reflexo, com Pavlov, passara dos segmentos
cirúrgicos aos segmentos funcionais do organismo intato, mas envolvia
sempre a ação de aparelhos isolados de efetuação motora ou glandular,
como a contração de uma pata ou a secreção de uma glândula.
Os resultados do condicionamento clássico eram a evidência da
“necessidade” (correlações) causal obtida in vivo com estímulos novos
aplicados aos órgãos receptores. Essa mesma “necessidade” já fora de­
monstrada por Magnus e Uexkull em preparações cirúrgicas por meio de
estímulos originais aplicados diretamente sobre os nervos. Além disso,
Pavlov tinha demonstrado que essas correlações entre estímulos e res­
postas in vivo podiam verificar-se diante de estímulos (à distância) ante­
riormente neutros e por isso, toda situação experimental teria podido
englobar estímulos de muitos reflexos condicionados, incompatíveis
entre si.
A teoria pavloviana dada em termos neurofisiológicos, não servia
para explicar as relações existentes entre a atividade global do organismo
e o ambiente; a de Thomdike, sobre a seleção de uma resposta, devida ao
efeito por ela produzido, resultava de controles muito pobres das condi­
ções estimuladoras. Restava, portanto, verificar se o comportamento,
considerado, de acordo com Watson, como atividade do organismo na
sua totalidade, obedecia aos princípios do condicionamento pavloviano.
Skinner descreve em estilo ameno como enfrentou tal situação, no
seu trabalho A case history in scientific method de 1956. “Como um
rato se adapta a um novo estímulo”, foi o problema inicial da sua pes­
quisa de uma ordem regida por leis em processos globais do comporta­
mento do organismo íntegro.

137
A lei (a ordem) pavloviana não incluía esses comportamentos glo­
bais e nos experimentos de Pavlov, o sujeito era íntegro só parcialmente;
mesmo não considerando a incisão já curada, a restrição dos movimentos
significava uma notável redução da variabilidade natural do comporta­
mento, e o isolamento de muitos estímulos. O sujeito (rato) de Skinner
era verdadeiramente livre e íntegro e a atividade estudada consistia em
passar de uma galeria sem luz a uma câmara iluminada descendo alguns
degraus.
O estímulo usado era um barulho suave, um click e as respostas
(registradas a mão) eram representadas pelos sucessivos avanços e retro­
cessos do animal quando ouvia o click. “O resultado mais expressivo
desta experiência foi que alguns ratos tiveram crias” (1956).
Tendo percebido que os movimentos das crias pareciam semelhan­
tes aos dos ratos ou coelhos talâmicos de Magnus, Skinner achou bom
estudar o reflexo postural dos ratos recém-nascidos, mas não obteve resul­
tados satisfatórios.
Dedicou-se então, a estudar o comportamento dos ratos adultos,
ao caminharem sobre uma pequena “passarela” montada sobre lâminas
verticais flexíveis: cada avanço ou retrocesso do animal ao click, fazia
oscilar a passarela para frente e para trás. Toda vez que o sujeito, após
sair da gaiola, chegava ao fim da passarela, recebia um pouco de alimen­
to. As respostas (oscilações horizontais da passarela para frente e para
trás) eram registradas por um quimógrafo comum. “Cansei-me de recon­
duzir o rato ao ponto de partida” depois de cada percurso efetuado sobre
a passarela (agora transformada em túnel). Por isso, foi adaptado ao tú­
nel um trajeto de retorno até o ponto de partida; o animal o percorria
depois de ter recebido o alimento, à saída do túnel.
Apresentou-se um novo problema pois o sujeito parava por períodos
mais ou menos longos, antes de tomar a via de retorno.
Skinner começou a medir esses atrasos e encontrou o tipo de coisa
que procurava: os atrasos sucessivos, reunidos numa representação grá­
fica, formavam uma curva cujas alterações “seguiam uma certa ordem”.
Encontrado esse dado, o registro das oscilações da passarela foi abando­
nado e apenas os atrasos eram registrados. Já não era mais necessário o
túnel comprido que servia para manter distante a comida e então porque
não automatizar o processo de alimentação?
Fez-se um túnel mais curto oscilante como uma gangorra, com tra­
jeto de volta. Procedendo de uma extremidade à outra, o rato deslocava
o centro de gravidade, fazendo balançar o túnel. A cada balanço, um
dispositivo mecânico, fazia cair uma pílula em um recepiente colocado no
interior do túnel; assim, cada percurso correspondia a uma pílula e, —
coisa bem mais importante para Skinner a cada pílula correspondia um
atraso a mais, cuja anotação servia para compor uma curva de atrasos
sucessivos. Mas, em vez de registrar os dados e depois desenhar a curva,
porque não automatizar também o desenho da curva?

138
O mecanismo de apresentação das pílulas não era complicado: um
disco horizontal, com buracos na periferia, continha uma pílula em cada
buraco. Ele girava um pouco por vez (a cada balanço do túnel); assim
a cada passo da rotação, um dos buracos se encontrava sobre um funil
onde deixava cair a pílula. Conseqüentemente, cada atraso do sujeito
correspondia a uma parada do disco (mais ou menos duradoura). Ao
eixo do disco amarrou-se um barbante ligado à pena de um quimógrafo,
de modo tal que a cada passo ou avanço do disco o barbante se enrolava
um pouco ao redor do seu eixo, puxando para cima a pena do quimó­
grafo (a cada oscilação do túnel). Como o tambor do quimógrafo girava
continuamente, as subidas da pena produziam traços verticais muito
pequenos, enquanto os atrasos do animal (paradas do disco) produziam
traços horizontais de vários comprimentos. Resultava uma curva em
forma de escada, com degraus mais ou menos longos, mas de altura igual,
pois as subidas da pena a cada oscilação (percurso do rato) eram iguais.
Era a primeira curva cumulativa automática de um comportamento
global.
Convém notar que o alimento parece ter um papel secundário, na
prática, porque o que interessava observar era em primeiro lugar, a série
de atrasos e a variação de suas durações na medida em que a série se
alongava.
O alimento fazia simplesmente parte de uma técnica de provocar
atrasos, dos quais interessava mais a duração que a freqüência. Em
outras palavras, parece que não se procurava a correlação entre a fre­
qüência das respostas e a apresentação do alimento.
A medida interessante é a da latência entre os percursos (oscila­
ções do túnel) ou a “grandeza” temporal do atraso. Mas como cada
oscilação correspondia a uma pílula, a curva dos atrasos refletiria logica­
mente a freqüência das ingestões. Seria mais fácil obter tais curvas subs­
tituindo o complicado túnel basculante, balançado por uma longa resposta
de ida e de volta, por uma nova aparelhagem que permitisse uma resposta
mais simples.
Por exemplo, uma gaiola com um comedouro coberto: cada vez que
o animal levantasse a tampa faria um contato elétrico. Desse modo, acio­
naria um alimentador automático e cada vez que a tampa fosse levantada
cairia uma pílula de ração. Mas para que exigir uma atividade tão com­
plicada como levantar uma tampa. Seria mais fácil ao sujeito o compor­
tamento de apoiar-se a algo?
Skinner substituiu a tampa da mangedoura por uma pequena alavan­
ca de arame, horizontal. Os resultados foram curvas mais rápidas quanto
à freqüência de ingestões do alimento e que apresentavam as mesmas
propriedades fundamentais das curvas obtidas com o túnel basculante.
Todavia, essas curvas todas eram “contaminadas” pelos processos
fisiológicos de ingestão e saciação. Por sorte, o alimentador automático
às vezes enguiçava e algumas respostas (pressão sobre a pequena alavan­
ca em vez de levantamento da tampa) não provocavam a queda da pílula.

139
Skinner primeiramente deu-se ao trabalho de corrigir esses defeitos
que lhe estragavam as curvas; mas depois perguntou-se: por que não
bloquear o alimentador e observar o que aconteria quando a pressão
sobre a pequena alavanca não fosse recompensada pela pílula de ração?
Essa decisão comportava o abandono dos dados sobre o ritmo de inges­
tão que haviam já apresentado uma certa ordem.
Skinner desligou o alimentador e passou assim a registrar não a
ingestão mas a atividade que a permitia, ou seja, as pressões do rato
sobre a pequena alavanca ou barra. Foi com uma certa surpresa e muita
satisfação que notou o seu quimógrafo traçar uma curva perfeita e com­
pleta de extinção da resposta de pressão à barra. “Eu havia finalmente
estabelecido o contato com Pavlov! Aí estava uma curva não corrompida
por processos fisiológicos de ingestão. Era uma variação ordenada, devi­
da a nada mais que a uma contingência de reforçamento. Era puro com­
portamento!” (1956). Também os comportamentos esqueletais podiam
ser controlados (logo condicionados e extintos), por meio de operações
implicadas no seu trabalho e que ele deveria determinar.
Restava o problema de verificar em quais condições o reforço agia
mais eficazmente: número de reforços, quantidade de alimento, tempo
de privação da alimentação, etc.; era necessário além disso, determinar
as relações entre esse reforço e a extinção da resposta.
Apresentou-se então um problema prático: Os oito ratos comiam
cerca de 800 pílulas por dia. Skinner era obrigado a prepará-las cada dia,
com meios primitivos, para manter o seu programa de reforçar cada
resposta. “Há meios mais fáceis que outros para fazer experimentos. . .
Por que qualquer pressão sobre a alavanca devia ser reforçada?”
Dessa pergunta, derivou a decisão de reforçar uma resposta após
cada minuto, deixando todas as outras privadas de reforço. Obteve dois
resultados: “A minha provisão de pílulas durou quase indefinidamente e
cada rato se estabilizou em uma freqüência bastante regular de respos­
tas” (1956).
Assim, a necessidade de economizar as pílulas levou à descoberta
do primeiro esquema de reforçamento intermitente, envolvendo um inter­
valo fixo (FI). Tal esquema, permitia obter mais respostas com menos
reforços em um dado tempo e uma freqüência geral de respostas mais
alta, devida à persistência mais longa da privação (fome) e à menor
contaminação por ingestões muito prolongadas, como acontecia quando
cada emissão da resposta era reforçada.
A idéia de manter os sujeitos em certo nível de privação levou Skin­
ner a elaborar um outro esquema de reforço.
Pensou que se o reforço fosse dado depois de um certo número de
respostas, seria possível manter sob controle “automático” a privação,
pois que mais respostas levariam a mais ingestões e, portanto, a fome
diminuiria, conseqüentemente o animal passaria a emitir menos respostas
e haveria menos ingestões como resultado; isto aumentaria a fome e
levaria a mais respostas, mais ingestões e assim por diante. . . O resulta­

140
do deste esquema, no qual um reforço é dado à resposta que completa uni
determinado total, não é a oscilação cíclica da freqüência, como queria
Skinner, mas, uma freqüência, estável e alta, segundo a grandeza do total
de respostas requeridas para cada reforço. De todo modo, a pressão sobre
a alavanca e seguida da pílula, constituía o paradigma de um novo pro­
cesso de condicionamento, que consistia não mais na substituição dos
estímulos eliciadores, mas na apresentação adequada de uma recompensa
(reforço) depois da resposta.
O processo permitia estender o princípio de condicionamento, a
respostas não eliciadas pela apresentação de estímulos antecedentes, mas,
emitidas espontaneamente pelo organismo.
O princípio de condicionamento do comportamento voluntário, isto
é, o processo de reforçar uma correlação entre uma situação e uma res­
posta espontânea estava descoberto.
A apresentação do estímulo reforçador, contingente à resposta, era
a fórmula fundamental do controle do comportamento “voluntário”.
Através da manipulação do reforço, também a probabilidade dos atos
voluntários podia ser “modelada”, assim como se poderiam controlar
as características topográficas (descritivas e musculares) das respostas.
Como se aprende a escrever o R, como se aprende a dançar, como
se aumenta a produtividade do carteiro, como se aprende a procurar
alimento, a dirigir automóvel, a cantar, a datilografar, a preferir uma
certa música, ou vestido, são exemplos de comportamentos produzidos
pelo condicionamento operante, isto é, são respostas cujo aparecimento,,
manutenção, características e freqüência, não resultam de estímulos espe­
cíficos que as provocam, mas de precisas operações de reforçamento
posterior à emissão delas, sejam frases ou atos motores.
As descobertas que levaram a esse fecundo princípio, foram os resul­
tados de pequenos incidentes no curso da pesquisa e ao mesmo tempo,,
de uma atitude particular diante da assim chamada metodologia científica.
Skinner descreve a história de suas primeiras pesquisas como exem­
plo da inconveniência da formalização da metodologia experimental
“ . . . é tempo de insistir no fato de que a ciência não progride por passos
cuidadosamente planejados e chamados experimentos, cada um com um
princípio e um fim bem estabelecidos. A ciência é um processo contínuo
acidental e desordenado” (1956).
Essa atitude antiformalista deriva de idéias como estas: “o organis­
mo cujo comportamento é modificado mais extensamente e mais comple­
tamente controlado em pesquisas como as que descrevi, é o próprio expe­
rimentador”, ou esta outra: “o cientista como qualquer organismo, é o
produto de uma história única. As práticas que ele achará mais adequa­
das dependerão em parte desta história” ou ainda esta outra: “Os sujeitos
que estudamos nos reforçam muito mais que nós próprios a eles. Eu vos
relatei apenas como fui condicionado a me comportar” (1956).

141
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145
ISAIAS PESSOTTI

Isaías Pessotti formou-se em Filosofia pela Universidade de São Paulo,


quando se instalou o curso de Psicologia nessa Universidade. Foi con­
tratado pela Faculdade de Filosofia de Rio Claro (S.P.) em 1960, e a
partir daí se dedicou à Psicologia Experimental. Realizou pesquisas nos
campos da aprendizagem escolar e no da análise experimental do compor­
tamento em abelhas, área em que obteve doutoramento em Psicologia
Experimental. Lecionou essa matéria em Rio Claro, na Universidade de
Brasília e na Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto, onde realizou
pesquisas junto ao Departamento de Neuropsiquiatria e Psicologia Mé-
dica, da Faculdade de Medicina. Ministrou cursos de especialização nas
Universidades de Milão e Pádua. £ autor de dois livros italianos multo
importantes sobre análise experimental do comportamento.
m

EDITORA DE HUMANISMO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA “HUCITEG” LTDA.


EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO

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