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Introdução

O Existencialismo
é um Humanismo Com Paris livre dos nazistas desde agosto de
1944, tendo a Segunda Guerra Mundial encerrada um ano
depois, em 1945, a liberdade reconquistada, a cidade viu-se
em meio às intensas polêmicas ideológicas, ,losó,cas e
intelectuais. Reuniram-se, por ,m, as condições objetivas
para que o existencialismo “explodisse” no cenário parisi-
ense, ganhando parte do mundo a partir dali.
Jean-Paul Sartre A edição de 29 de outubro de 1945 do Le Monde
anunciou uma conferência de Sartre intitulada “Exis-
tencialismo é um Humanismo”, na qual ele iria expor os
princípios gerais da sua ,loso,a. O evento provocou
extraordinária frisson nos meios cultos. “Tout Paris”
a?uiu para assisti-la. Tornou-se um sucesso cultural
impressionante, pois provocou a atração de um espetá-
culo esportivo, com sua sequela de tumultos, pesco-
ções, cotoveladas e cadeiras quebradas. Sartre, ao ver
aquele apinhado de gente chegou a imaginar que era
uma manifestação dos comunistas contra ele.
Tradutora: Rita Correia Guedes O acontecimento virou uma defesa dele con-
Fonte: L’Existentialisme est un Humanisme, tra os seus opositores e uma explanação didática, vol -
tada para a divulgação junto ao grande público. Algo
Les Éditions Nagel, Paris, 1970.

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bem mais detalhado do que ele ,zera antes, sobre o O Existencialismo é um Humanismo
mesmo tema, dirigida a Jean Paulhan, para responder
“o que é o existencialismo?” Gostaria de defender, aqui, o existencialismo
de uma série de críticas que lhe foram feitas.
Dizia ele então na missiva: “O homem deve
criar a sua própria essência; é jogando-se no mundo, Em primeiro lugar, acusaram-no de incitar as
lutando, que aos poucos se de,neE a angústia, longe pessoas a permanecerem no imobilismo do desespero;
de oferecer obstáculo à ação, é a própria condição todos os caminhos estando vedados, seria necessário con
delaE O homem só pode agir se compreender que cluir que a ação é totalmente impossível neste mundo;
conta exclusivamente consigo mesmo, que está sozi- tal consideração desembocaria, portanto, numa ,loso,a
nho e abandonado no mundo, no meio de responsabi- contemplativa – o que, aliás, nos reconduz a uma ,loso-
lidades in,nitas, sem auxílio nem socorro, sem outro ,a burguesa, visto que a contemplação é um luxo. São
objetivo além do que der a si próprio, sem outro des- estas, fundamentalmente, as críticas dos comunistas.
tino além de forjar para si mesmo aqui na terra.”
Por outro lado, acusaram-nos de enfatizar a
Fando a conferência foi publicada integral- ignomínia humana, de sublinhar o sórdido, o equívo-
mente em 1946, ela tornou-se o Catecismo do Existen- co, o viscoso, e de negligenciar certo número de bele-
cialismo, servindo desde então como uma síntese das zas radiosas, o lado luminoso da natureza humana;
ideias essenciais de Sartre. por exemplo, segundo a senhorita Mercier, crítica
católica, esquecemos o sorriso da criança. Uns e
outros nos acusam de haver negado a solidariedade
humana, de considerar que o homem vive isolado;
segundo os comunistas, isso se deve, em grande par-
te, ao fato de nós partirmos da pura subjetividade, ou
seja, do penso cartesiano, ou seja ainda, do momento
em que o homem se apreende em sua solidão – o que

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me tornaria incapaz de retornar, em seguida, à solida- assustemos e escandalizemos muito mais do que o natura-
riedade com os homens que existem fora de mim e lismo propriamente dito assusta ou escandaliza hoje em
que eu não posso alcançar no cogito. dia. Aqueles que digerem tranquilamente um romance de
Zola, como A Terra, ,cam repugnados quando leem um
Na perspectiva cristã, somos acusados de negar a romance existencialista; outros, que se utilizam da sabedoria
realidade e a seriedade dos empreendimentos humanos, das nações – profundamente tristes –, acham-nos mais
já que, suprindo os mandamentos de Deus e os valores tristes ainda. Mas será que existe algo mais desesperança-
inscritos na eternidade, resta apenas a pura gratuidade; do do que o provérbio: “A caridade bem dirigida começa
cada qual pode fazer o que quiser, sendo incapaz, a partir por si próprio”, ou “Ama quem te serve e serás despreza-
de seu ponto de vista, de condenar os pontos de vistas e do; castiga quem te serve e serás amado”? São notórios
os atos alheios. Tais são as várias acusações a que procu- os lugares-comuns que podem ser utilizados neste assun
ro hoje responder e a razão que me levou a intitular esta to e que signi,cam sempre a mesma coisa: não se deve
pequena exposição de: “O Existencialismo é um Huma- lutar contra os poderes estabelecidos, não se deve lutar
nismo”. Muitos poderão estranhar que falemos aqui de contra a força, não se deve dar passos maiores do que as
humanismo. Tentaremos explicitar em que sentido o pernas, toda ação que não se insere numa tradição é
entendemos. De qualquer modo, o que podemos desde já romantismo, toda ação que não se apoia numa expe-
a,rmar é que concebemos o existencialismo como uma riência comprovada está destinada ao fracasso; e a
doutrina que torna a vida humana possível e que, por experiência mostra que os homens tendem sempre
outro lado, declara que toda verdade e toda ação implicam para o mais baixo e que são necessários freios sóli-
um meio e uma subjetividade humana. A crítica básica dos para detê-los, caso contrário instala-se a anar-
que nos fazem é, como se sabe, de enfatizarmos o lado quia. No entanto, as pessoas que ,cam repetindo
negativo da vida humana. Contaram-me, recentemente, esses tristes provérbios são as mesmas que acham
o caso de uma senhora que, tendo deixado escapar, por muito humano todo e qualquer ato mais ou menos
nervosismo, uma palavra vulgar, se desculpou dizendo: repulsivo, as mesmas que se deleitam com canções
“Acho que estou ,cando existencialista”. A feiura é, por con realistas: são estas as pessoas que acusam o existenci-
seguinte, assimilada ao existencialismo e é por isso que alismo de ser demasiado sombrio, a tal ponto que eu
dizem sermos naturalistas. Se o somos, é estranho que

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me pergunto se elas não o censuram, não tanto pelo como os existencialistas franceses e eu mesmo. O que
seu pessimismo, mas, justamente pelo seu otimismo. eles têm em comum é simplesmente o fato de todos con-
Será que, no fundo, o que amedronta na doutrina que siderarem que a existência precede a essência, ou, se se
tentarei expor não é fato de que ela deixa uma possi- preferir, que é necessário partir da subjetividade. O que
bilidade de escolha para o homem? Para sabê-lo, pre - signi,ca isso exatamente?
cisamos recolocar a questão no plano estritamente
,losó,co. O que é o existencialismo? Consideremos um objeto fabricado, como, por
exemplo, um livro ou um corta-papel; esse objeto foi
A maioria das pessoas que utilizam este termo fabricado por um artí,ce que se inspirou num conceito;
,caria bastante embaraçada se tivesse de justi,cá-lo: hoje tinha, como referências, o conceito de corta-papel assim
em dia a palavra está na moda e qualquer um a,rma como determinada técnica de produção, que faz parte
sem hesitação que tal músico ou tal pintor é existencia - do conceito e que, no fundo, é uma receita. Desse
lista. Um cronista de Clartés assina o Existencialista. Na modo, o corta-papel é, simultaneamente, um objeto que
verdade, esta palavra assumiu atualmente uma amplitude é produzido de certa maneira e que, por outro lado, tem
tal e uma tal extensão que já não signi,ca rigorosamente uma utilidade de,nida: seria impossível imaginarmos
nada. Está parecendo que, na ausência de uma doutrina um homem que produzisse um corta-papel sem saber
de vanguarda análoga ao surrealismo, as pessoas, ávidas para que tal objeto serviria. Podemos assim a,rmar
de escândalo e de agitação, estão se voltando para esta que, no caso do corta-papel, a essência – ou seja, o con-
,loso,a, que, aliás, não pode ajudá-la em nada nesse cam junto das técnicas e das qualidades que permitem a sua
po; o existencialismo, na realidade, é a doutrina menos produção e de,nição – precede a existência; e desse
escandalosa e a mais austera; ela destina-se exclusiva- modo, também, a presença de tal corta-papel ou de tal
mente aos técnicos e aos ,lósofos. Todavia, pode ser livro na minha frente é determinada. Eis aqui uma
facilmente de,nida. O que torna as coisas complicadas é visão técnica do mundo em função da qual podemos
a existência de dois tipos de existencialistas: por um a,rmar que a produção precede a existência.
lado, os cristãos – entre os quais colocarei Jaspers e
Gabriel Marcel, de con,ssão católica – e, por outro, os
ateus – entre os quais há que situar Heidegger, assim

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Ao concebermos um Deus criador, identi,camo- possuem as mesmas características básicas. Assim, mais
lo, na maioria das vezes, com um artí,ce superior, e, uma vez, a essência do homem precede essa existência
qualquer que seja a doutrina que considerarmos – quer histórica que encontramos na Natureza.
se trate de uma doutrina como a de Descartes ou como a
de Leibniz –, admitimos sempre que a vontade segue O existencialismo ateu, que eu represento, é
mais ou menos o entendimento ou, no mínimo, que o mais coerente. A,rma que, se Deus não existe, há
acompanha, e que Deus, quando cria, sabe precisamente pelo menos um ser no qual a existência precede a
o que está criando. Assim, o conceito de homem, no essência, um ser que existe antes de poder ser de,ni-
espírito de Deus, é assimilável ao conceito de corta- do por qualquer conceito: este ser é o homem, ou,
papel, no espírito do industrial; e Deus produz o homem como diz Heidegger, a realidade humana. O que sig-
segundo determinadas técnicas e em função de determi- ni,ca, aqui, dizer que a existência precede a essência?
nada concepção, exatamente como o artí,ce fabrica um Signi,ca que, em primeira instância, o homem existe,
corta-papel segundo uma de,nição e uma técnica. Desse encontra a si mesmo, surge no mundo e só posterior-
modo, o homem individual materializa certo conceito mente se de,ne. O homem, tal como o existencialista
que existe na inteligência divina. No século XVIII, o ate- o concebe, só não é passível de uma de,nição porque,
ísmo dos ,lósofos elimina a noção de Deus, porém não de início, não é nada: só posteriormente será alguma
suprime a ideia de que a essência precede a existência. coisa e será aquilo que ele ,zer de si mesmo. Assim,
Essa é uma ideia que encontramos com frequência: não existe natureza humana, já que não existe um
encontramo-la em Diderot, em Voltaire e mesmo em Deus para concebê-la. O homem é tão-somente, não
Kant. O homem possui uma natureza humana; essa natu apenas como ele se concebe, mas também como ele
reza humana, que é o conceito humano, pode ser encon- se quer; como ele se concebe após a existência, como
trada em todos os homens, o que signi,ca que cada ele se quer após esse impulso para a existência. O
homem é um exemplo particular de um conceito univer- homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si
sal: o homem. Em Kant, resulta de tal universalidade que mesmo: é esse o primeiro princípio do existencialis-
o homem da selva, o homem da Natureza, tal como o mo. É também a isso que chamamos de subjetividade:
burguês, devem encaixar-se na mesma de,nição, já que a subjetividade de que nos acusam. Porém, nada mais
queremos dizer senão que a dignidade do homem é

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maior do que a da pedra ou da mesa. Pois queremos lado, escolha do sujeito individual por si próprio e, por
dizer que o homem, antes de mais nada, existe, ou outro lado, impossibilidade em que o homem se
seja, o homem é, antes de mais nada, aquilo que se encontra de transpor os limites da subjetividade
projeta num futuro, e que tem consciência de estar se humana. É esse segundo signi,cado que constitui o
projetando no futuro. De início, o homem é um pro- sentido profundo do existencialismo. Ao a,rmarmos
jeto que se vive a si mesmo subjetivamente ao invés que o homem se escolhe a si mesmo, queremos dizer
de musgo, podridão ou couve-?or; nada existe antes que cada um de nós se escolhe, mas queremos dizer
desse projeto; não há nenhuma inteligibilidade no céu, também que, escolhendo-se, ele escolhe todos os
e o homem será apenas o que ele projetou ser. Não o homens. De fato, não há um único de nossos atos
que ele quis ser, pois entendemos vulgarmente o querer que, criando o homem que queremos ser, não esteja
como uma decisão consciente que, para quase todos criando, simultaneamente, uma imagem do homem
nós, é posterior àquilo que ,zemos de nós mesmos. Eu tal como julgamos que ele deva ser. Escolher ser isto
quero aderir a um partido, escrever um livro, casar-me, ou aquilo é a,rmar, concomitantemente, o valor do que
tudo isso são manifestações de uma escolha mais origi- estamos escolhendo, pois não podemos nunca escolher o
nal, mais espontânea do que aquilo a que chamamos de mal; o que escolhemos é sempre o bem e nada pode ser
vontade. Porém, se realmente a existência precede a bom para nós sem o ser para todos. Se, por outro lado, a
essência, o homem é responsável pelo que é. Desse existência precede a essência, e se nós queremos existir
modo, o primeiro passo do existencialismo é o de pôr ao mesmo tempo que moldamos nossa imagem, essa
todo homem na posse do que ele é de submetê-lo à res- imagem é válida para todos e para toda a nossa épo-
ponsabilidade total de sua existência. Assim, quando ca. Portanto, a nossa responsabilidade é muito maior
dizemos que o homem é responsável por si mesmo, não do que poderíamos supor, pois ela engaja a humani-
queremos dizer que o homem é apenas responsável pela dade inteira. Se eu sou um operário e se escolho
sua estrita individualidade, mas que ele é responsável aderir a um sindicato cristão em vez de ser comunis-
por todos os homens. A palavra subjetivismo tem dois ta, e se, por essa adesão, quero signi,car que a
signi,cados, e os nossos adversários se aproveitaram resignação é, no fundo, a solução mais adequada ao
desse duplo sentido. Subjetivismo signi,ca, por um homem, que o reino do homem não é sobre a terra,

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não estou apenas engajando a mim mesmo: quero certamente muitos pensam que, ao agir, estão apenas
resignar-me por todos e, portanto, a minha decisão engajando a si próprios e, quando se lhes pergunta: mas
engaja toda a humanidade. Numa dimensão mais se todos ,zessem o mesmo?, eles encolhem os ombros e
individual, se quero casar-me, ter ,lhos, ainda que respondem: nem todos fazem o mesmo. Porém, na verda
esse casamento dependa exclusivamente de minha de, devemos sempre perguntar-nos: o que aconteceria se
situação, ou de minha paixão, ou de meu desejo, todo mundo ,zesse como nós? e não podemos escapar a
escolhendo o casamento estou engajando não apenas a essa pergunta inquietante a não ser através de uma
mim mesmo, mas a toda a humanidade, na trilha da espécie de má fé. Aquele que mente e que se desculpa
monogamia. Sou, desse modo, responsável por mim dizendo: nem todo mundo faz o mesmo, é alguém que
mesmo e por todos e crio determinada imagem do não está em paz com sua consciência, pois o fato de
homem por mim mesmo escolhido; por outras pala- mentir implica um valor universal atribuído à mentira.
vras: escolhendo-me, escolho o homem. Mesmo quando ela se disfarça, a angústia aparece. É
esse tipo de angústia que Kierkegaard chamava de
Tudo isso permite-nos compreender o que sub- angústia de Abraão. Todos conhecem a história: um
jaz a palavras um tanto grandiloquentes como angústia, anjo ordena a Abraão que sacri,que seu ,lho. Está
desamparo, desespero. Como vocês poderão constatar, é tudo certo se foi realmente um anjo que veio e disse:
extremamente simples. Em primeiro lugar, como deve- tu és Abraão e sacri,carás teu ,lho. Porém, para
mos entender a angústia? O existencialista declara fre- começar, cada qual pode perguntar-se: será que era
quentemente que o homem é angústia. Tal a,rmação sig verdadeiramente um anjo? ou: será que sou mesmo
ni,ca o seguinte: o homem que se engaja e que se dá Abraão? Fe provas tenho? Havia uma louca que
conta de que ele não é apenas aquele que escolheu ser, tinha alucinações: falavam-lhe pelo telefone dando-
mas também um legislador que escolhe simultaneamente lhe ordens. O médico pergunta: “Mas a,nal, quem
a si mesmo e a humanidade inteira, não consegue esca - fala com você?” Ela responde: “Ele diz que é Deus”.
par ao sentimento de sua total e profunda responsabili - Fe provas tinha ela que, de fato, era Deus? Se um
dade. É fato que muitas pessoas não sentem ansiedade, anjo aparece, como saberei que é um anjo? E se escu-
porém nós estamos convictos de que estas pessoas mas- to vozes, o que me prova que elas vêm do céu e não
caram a ansiedade perante si mesmas, evitam encará-la;

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do inferno, ou do subconsciente ou de um estado sozinho. Certamente, algumas ordens vêm de cima,
patológico? O que prova que elas se dirigem a mim? porém são abertas demais e exigem uma interpreta-
Fem pode provar-me que fui eu, efetivamente, o ção: é dessa interpretação – responsabilidade sua –
escolhido para impor a minha concepção do homem que depende a vida de dez, catorze ou vinte homens.
e a minha própria escolha à humanidade? Não Não é possível que não exista certa angústia na deci-
encontrei jamais prova alguma, nenhum sinal que são tomada. Todos os chefes conhecem essa angústia.
possa convencer-me. Se uma voz se dirige a mim, sou Mas isso não os impede de agir, muito pelo contrário: é
sempre eu mesmo que terei de decidir que essa voz é a própria angústia que constitui a condição de sua
a voz do anjo; se considero que determinada ação é ação, pois ela pressupõe que eles encarem a pluralidade
boa, sou eu mesmo que escolho a,rmar que ela é boa dos possíveis e que, ao escolher um caminho, eles se
e não má. Nada me designa para ser Abraão, e, no deem conta de que ele não tem nenhum valor a não ser
entanto, sou a cada instante obrigado a realizar atos o de ter sido escolhido. Veremos que esse tipo de
exemplares. Tudo se passa como se a humanidade angústia – a que o existencialismo descreve – se explica
inteira estivesse de olhos ,xos em cada homem e se também por uma responsabilidade direta para com os
regrasse por suas ações. E cada homem deve pergun- outros homens engajados pela escolha. Não se trata de
tar a si próprio: sou eu, realmente, aquele que tem o uma cortina entreposta entre nós e a ação, mas parte
direito de agir de tal forma que os meus atos sirvam constitutiva da própria ação.
de norma para toda a humanidade? E, se ele não
fazer a si mesmo esta pergunta, é porque estará mas- Fando falamos de desamparo, expressão
carando sua angústia. Não se trata de uma angústia cara a Heidegger, queremos simplesmente dizer que
que conduz ao quietismo, à inação. Trata-se de uma Deus não existe e que é necessário levar esse fato às
angústia simples, que todos aqueles que um dia tive- últimas consequências. O existencialista opõe-se
ram responsabilidades conhecem bem. Fando, por frontalmente a certo tipo de moral laica que gostaria
exemplo, um chefe militar assume a responsabilidade de eliminar Deus com o mínimo de danos possível.
de uma ofensiva e envia para a morte certo número Fando, por volta de 1880, os professores franceses
de homens, ele escolhe fazê-lo, e, no fundo, escolhe tentaram constituir uma moral laica, disseram mais
ou menos o seguinte: Deus é uma hipótese inútil e

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dispendiosa; vamos suprimi-la: porém, é necessário – tudo seria permitido”. Eis o ponto de partida do existen
para que exista uma moral, uma sociedade, um mun- cialismo. De fato, tudo é permitido se Deus não existe,
do policiado – que certos valores sejam respeitados e e, por conseguinte, o homem está desamparado porque
considerados como existentes a priori; é preciso que não encontra nele próprio nem fora dela nada a que se
seja obrigatório, a priori, ser honesto, não mentir, não agarrar. Para começar, não encontra desculpas. Com
bater na mulher, fazer ,lhos etc., etc. Vamos portanto efeito, se a existência precede a essência, nada poderá
realizar uma pequena manobra que nos permitirá jamais ser explicado por referência a uma natureza
demonstrar que esses valores existem, apesar de humana dada e de,nitiva; ou seja, não existe determi-
tudo, inscritos num céu inteligível, se bem que, como nismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Por
vimos, Deus não exista. É essa, creio eu, a tendência outro lado, se Deus não existe, não encontramos, já
de tudo o que é chamado na França de radicalismo: prontos, valores ou ordens que possam legitimar a
por outras palavras, a inexistência de Deus não nossa conduta. Assim, não teremos nem atrás de nós,
mudará nada; reencontramos as mesmas normas de nem na nossa frente, no reino luminoso dos valores,
honestidade, de progresso, de humanismo e teremos nenhuma justi,cativa e nenhuma desculpa. Estamos
assim transformado Deus numa hipótese caduca, que sós, sem desculpas. É o que posso expressar dizendo
morrerá tranquilamente por si própria. O existencia- que o homem está condenado a ser livre. Condenado,
lista, pelo contrário, pensa que é extremamente incô- porque não se criou a si mesmo, e como, no entanto,
modo que Deus não exista, pois, junto com ele, desa- é livre, uma vez que foi lançado no mundo, é responsá
parece toda e qualquer possibilidade de encontrar vel por tudo o que faz. O existencialismo não acredita
valores num céu inteligível; não pode mais existir no poder da paixão. Ele jamais admitirá que uma bela
nenhum bem a priori, já que não existe uma cons- paixão é uma corrente devastadora que conduz o
ciência in,nita e perfeita para pensá-lo; não está homem, fatalmente, a determinados atos, e que, conse-
escrito em nenhum lugar que o bem existe, que deve- quentemente, é uma desculpa. Ele considera que o
mos ser honestos, que não devemos mentir, já que nos homem é responsável por sua paixão. O existencialista
colocamos precisamente num plano em que só existem não pensará nunca, também, que o homem pode conse-
homens. Dostoiévski escreveu: “Se Deus não existisse, guir o auxílio de um sinal qualquer que o oriente no

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mundo, pois considera que é o próprio homem quem com a mãe e ajudá-la a viver. Ele tinha consciência de
decifra o sinal como bem entende. Pensa, portanto, que que a mãe só vivia em função dele e que o seu desa -
o homem, sem apoio e sem ajuda, está condenado a parecimento, talvez a sua morte, a mergulharia no
inventar o homem a cada instante. Ponge escreveu, desespero. Tinha também consciência de que, no fun-
num belíssimo artigo: “O homem é o futuro do do, cada ato que ele fazia em relação à mãe tinha uma
homem”. É exatamente isso. Apenas, se por essas pala- resposta concreta, no sentido de que ele a ajudava a
vras se entender que o futuro está inscrito no céu, viver, enquanto cada ato que ele ,zesse para partir e
que Deus pode vê-lo, então a a,rmação está errada, combater seria ambíguo, poderia perder-se na areia, não
já que, assim, nem sequer seria um futuro. Se se servir para nada; por exemplo: partindo para a Inglater-
entender que, qualquer que seja o homem que surja ra, ele poderia permanecer inde,nidamente num campo
no mundo, ele tem um futuro a construir, um futuro espanhol ao passar pela Espanha; poderia chegar à
virgem que o espera, então a expressão está correta. Inglaterra, ou a Argel, e ser colocado num escritório
Porém, nesse caso, estamos desamparados. Tentarei preenchendo papéis. Encontrava-se, assim, perante dois
dar-lhes um exemplo que permita compreender tipos de ação muito diferentes; uma delas concreta,
melhor o desamparo; contarei o caso de um dos meus imediata, porém dirigida a um só indivíduo; a outra,
alunos, que veio procurar-me nas seguintes circuns- dirigida a um conjunto in,nitamente mais vasto, uma
tâncias: o pai estava brigando com a mãe e tinha ten- coletividade nacional, mas, por isso mesmo, ambígua,
dências colaboracionistas; o irmão mais velho morre- e podendo ser interrompida a meio caminho. Simulta-
ra durante a ofensiva alemã de 1940; e esse jovem, neamente, ele hesitava entre dois tipos de moral. De um
com sentimentos um pouco primitivos mas genero- lado, uma moral da simpatia, da devoção individual; e, de
sos, desejava vingá-lo. A mãe vivia só com ele, muito outro lado, uma moral mais ampla, mas de uma e,cácia
perturbada pela semitraição do pai e pela morte do mais contestável. Precisava escolher uma das duas. Fem
,lho mais velho, e ele era seu único consolo. Esse poderia ajudá-lo a escolher? A doutrina cristã? Não. A
jovem tinha, naquele momento, a seguinte escolha: doutrina cristã diz: sede caridosos, amai o próximo, sacri-
partir para a Inglaterra e alistar-se nas Forças France- ,cai-vos por vosso semelhante, escolhei o caminho mais
sas Livres, ou seja abandonar a mãe, ou permanecer árduo etc., etc. Mas qual é o caminho mais árduo? Fem

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devemos amar como irmão, o combatente ou a mãe? Fal tinha por sua mãe? Precisamente o fato de que ele per-
a utilidade maior: aquela, vaga, de participar de um corpo manecera, por ela. Posso dizer: amo tal amigo o su,cien-
de combate, ou a outra, precisa, de ajudar um ser espe- te para lhe sacri,car tal soma de dinheiro; mas só pode-
cí,co a viver? Fem pode decidir a priori? Ninguém. rei dizê-lo se o ,zer. Posso dizer: amo minha mãe o bas-
Nenhuma moral estabelecida tem uma resposta. A moral tante para ,car junto dela; mas não posso determinar o
kantiana diz-nos: nunca trate os outros como um meio, valor dessa afeição a não ser, precisamente, que eu prati-
trate-os como um ,m. Muito bem; se eu ,car junto de que um ato que a con,rme e a de,na. Ora, como eu
minha mãe, estarei tratando-a como um ,m e não como desejo que esse afeto justi,que os meus atos, acabo sen-
um meio, mas, por isso mesmo, estarei correndo o risco de do arrastado num círculo vicioso.
tratar como meio aqueles que combatem à minha volta, e,
vice-versa, se eu me juntar àqueles que combatem, estarei Por outro lado, Gide disse, e muito bem,
tratando-os como ,m e, pelas mesmas razões, posso estar que um sentimento representado e um sentimento
tratando minha mãe como meio. vivido são duas coisas quase indiscerníveis: decidir
que amo minha mãe ,cando junto dela, ou repre-
Já que os valores são vagos e que eles são sempre sentar uma comédia que me levará a ,car, por cau-
amplos demais para o caso preciso e concreto que consi- sa de minha mãe, é mais ou menos a mesma coisa.
deramos, só nos resta con,ar em nosso instinto. Foi o Por outras palavras: o sentimento constrói-se atra-
que o jovem tentou fazer; e, quando nos encontramos, vés dos atos praticados; não posso, portanto, pedir-
ele dizia: no fundo, o que conta é o sentimento; eu deve- lhe que me guie. O que signi,ca que não posso
ria escolher aquilo que verdadeiramente me impele em nem procurar em mim mesmo a autenticidade que
determinada direção. Se eu sentir que gosto da minha me impele a agir, nem buscar numa moral os con-
mãe o bastante para lhe sacri,car todo o resto – meu ceitos que me autorizam a agir. Vocês dirão: pelo
desejo de vingança, meu desejo de ação, meu desejo de menos, o jovem procurou o professor para pedir-
aventuras –, ,co com ela. Se, pelo contrário, eu sentir lhe conselho. Porém, se vocês procurarem um
que meu amor por minha mãe não é su,ciente, então eu padre, por exemplo, para que eles os aconselhe,
parto. Mas como determinar o valor de um sentimento? vocês estarão escolhendo esse padre, e, no fundo,
O que é que constituía o valor do sentimento que ele vocês já estarão sabendo, aproximadamente, o que

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ele lhes irá aconselhar. Ou seja: escolher o conse- em sua preparação militar, fato bastante pueril que,
lheiro é, ainda, engajar-se. A prova disso está em que, no entanto, constituiu a gota que fez transbordar o
se vocês forem cristãos, dirão: consulte um padre. jarro. Esse jovem podia portanto considerar que
Existem, no entanto, padres colaboracionistas, padres fracassara em tudo; era um sinal, mas um sinal de
oportunistas, padres resistentes. Fal deles escolher? quê? Poderia refugiar-se na amargura ou no desespe-
E, se o jovem escolher um padre resistente ou um ro. Porém, muito habilmente para si próprio, conside-
padre colaboracionista, já estará decidindo o tipo de rou que seus insucessos eram um sinal de que ele não
conselho que irá receber. Assim, vindo procurar-me, nascera para os triunfos seculares, e que só os triun -
ele sabia a resposta que eu lhe daria, e eu só tinha fos da religião, da santidade, da fé, estavam ao seu
uma única resposta: você é livre; escolha, isto é, alcance. Viu, portanto, nesse sinal, a vontade de Deus
invente. Nenhuma moral geral poderá indicar-lhe o e ingressou na Ordem. Fem poderia deixar de per-
caminho a seguir; não existem sinais no mundo. Os ceber que a decisão sobre o signi,cado do sinal foi
católicos arguirão: sim, existem sinais. Admitamos tomada por ele e só por ele? Seria possível deduzir
que sim; de qualquer modo, ainda sou eu mesmo que outra coisa dessa série de insucessos: por exemplo,
escolho o signi,cado que têm. Fando estive preso, que seria melhor se ele fosse carpinteiro ou revoluci -
conheci um homem assaz notável, que era jesuíta, onário. Ele carrega, portanto, a total responsabilidade
havia ingressado na ordem dos jesuítas da seguinte da decifração. O desamparo implica que somos nós
forma: tinha experimentado uma série de dolorosos mesmos que escolhemos o nosso ser. Desamparo e
fracassos; ainda criança, seu pai morrera deixando- angústia caminham juntos. Fanto ao desespero,
o pobre; entrou como bolsista numa instituição trata-se de um conceito extremamente simples. Ele
religiosa onde faziam questão de lembrar-lhe a signi,ca que só podemos contar com o que depende
todo instante que ele era aceito por caridade; em da nossa vontade ou com o conjunto de probabilida-
seguida, perdera diversas distinções honorí,cas des que tornam a nossa ação possível. Fando se
que tanto agradam às crianças; mais tarde, por vol- quer alguma coisa, há sempre elementos prováveis.
ta dos dezoito anos, fracassou numa aventura sen- Posso contar com a vinda de um amigo. Esse amigo
timental; ,nalmente, aos vinte e dois anos, falhou vem de trem ou de ônibus; sua vinda pressupõe que o

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ônibus chegará na hora marcada e que o trem não que eu posso, em linhas gerais, controlar; ou seja, ao
descarrilhará. Permaneço no reino das possibilidades; qual eu pertenço como militante, e de cujos movi-
porém, trata-se de contar com os possíveis apenas na mentos estou ciente a cada instante. Nesse caso, con-
medida exata em que nossa ação comporta o conjun- tar com a unidade e com a vontade desse partido é
to desses possíveis. A partir do momento em que as exatamente como contar com o fato de que o ônibus
possibilidades que estou considerando não estão dire- chegará na hora certa e o trem não descarrilhará.
tamente envolvidas em minha ação, é preferível Não posso, porém, contar com homens que não
desinteressar-me delas, pois nenhum Deus, nenhum conheço, fundamentando-me na bondade humana ou
designo poderá adequar o mundo e seus possíveis à no interesse do homem pelo bem-estar da sociedade,
minha vontade. No fundo, quando Descartes a,rma- já que o homem é livre e que não existe natureza
va: “É melhor vencermo-nos a nós mesmos do que ao humana na qual possa me apoiar. Não sei qual será o
mundo”, ele queria dizer a mesma coisa: agir sem futuro da revolução russa; posso admirá-la e tomá-la
esperança. Os marxistas, com quem conversei, retru- como exemplo, na medida em que tenho provas, hoje,
cam-me: “Em sua ação, que estará, evidentemente, de que o proletariado desempenha, na Rússia, um
limitada por sua morte, você pode contar com a ajuda papel que ele não desempenha em nenhuma outra
dos outros. Isso signi,ca contar, simultaneamente, nação. Mas não posso a,rmar que tal situação irá for-
com o que os outros farão alhures para ajudá-lo, na çosamente conduzir ao triunfo do proletariado; devo
China, na Rússia, e com o que eles farão mais tarde, ater-me ao que vejo; não posso ter certeza de que
depois de sua morte, para retomar sua ação e con- meus companheiros de luta retomarão o meu traba-
duzi-la até sua completa realização, ou seja, à revolu- lho após minha morte para o conduzir à máxima per-
ção. Você deve contar com isso, caso contrário estará feição, visto que esses homens são livres e decidirão
demonstrando falta de moral”. Antes de mais nada livremente, amanhã, sobre o que será o homem; ama-
devo dizer que contarei sempre com meus compa- nhã, após minha morte, alguns homens podem deci-
nheiros de luta, na medida em que esses companhei- dir instaurar o fascismo, e outros podem ser bastante
ros estão engajados comigo numa luta concreta e covardes ou fracos para permitir que o façam; nesse
comum, na unidade de um partido ou de um grupo momento, o fascismo será a verdade humana e pior

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para nós; na realidade, as coisas serão como o que aquilo que fui; é certo que não tive nenhum
homem decidir que elas sejam. Isso signi,ca que eu grande amor ou nenhuma grande amizade, mas foi
deva abandonar-me ao quietismo? De modo algum. porque não encontrei um homem ou uma mulher
Primeiro, tenho que me engajar; em seguida, agir dignos de tal sentimento; se não escrevi livros muito
segundo a velha fórmula: “não é preciso ter esperan- bons, foi porque não tive tempo livre su,ciente para
ça para empreender”. Isso não quer dizer que eu não fazê-lo; se não tive ,lhos a quem me dedicar, foi por -
deva pertencer a um partido, mas que não deverei ter que não encontrei o homem com quem teria podido
ilusões e que farei o melhor que puder. Por exemplo, construir a minha vida. Permaneceram, portanto, em
se eu perguntar a mim mesmo: a coletivização, mim, inutilizadas e inteiramente viáveis, uma porção
enquanto tal, será um dia implantada? Como vou de disposições, de inclinações, de possibilidades que
saber? Sei apenas que farei tudo o que estiver ao meu me conferem um valor que o simples conjunto de
alcance para que ela o seja; eu o farei; para além dis - meus atos não permitem inferir”. Ora, na verdade,
so, não posso contar com mais nada. O quietismo é a para o existencialista, não existe amor senão aquele
atitude daqueles que dizem: os outros podem fazer o que se constrói; não há possibilidade de amor senão a
que eu não posso. A doutrina que lhes estou apresen - que se manifesta num amor; não há gênio senão
tando é justamente o contrário do quietismo, visto aquele que se expressa em obras de arte; o gênio de
que ela a,rma: a realidade não existe a não ser na Proust é a totalidade das obras de Proust; o gênio de
ação; aliás, vai mais longe ainda, acrescentando: o Racine é a série de tragédias que escreveu; para além
homem nada mais é do que o seu projeto; só existe na disso, não há nada. Por que atribuir a Racine a possi-
medida em que se realiza; não é nada além do con- bilidade de escrever uma outra tragédia, se, justa-
junto de seus atos, nada mais que sua vida. Em fun- mente, ele não o fez? Um homem compromete-se
ção disso, podemos entender por que nossa doutrina com sua vida, desenha seu rosto e para além desse
horroriza certo número de pessoas. Frequentemente, rosto, não existe nada. Evidentemente, tal pensamen-
elas dispõem de um único recurso para suportar a to pode parecer difícil de aceitar por alguém que
sua miséria, e é o de pensar o seguinte: “As circuns - tenha fracassado em seus projetos de vida. Mas, por
tâncias estavam contra mim; eu valia muito mais do outro lado, ele leva as pessoas a entenderem que só a

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realidade conta, que os sonhos, as esperas, as espe- assim por ter um coração, um pulmão ou um cérebro
ranças, só permitem que o homem se de,na como covardes; ele não é assim devido a uma qualquer
sonho malogrado, como esperanças abortadas, como organização ,siológica; mas é assim porque se cons-
esperas inúteis; ou seja, que ele se de,na em negativo truiu como covarde mediante seus atos. Não existe
e não em positivo; todavia, quando se diz: “tu nada temperamento covarde; existem temperamentos ner-
mais és do que tua vidaE”, isso não implica que o vosos, existem pessoas que têm “sangue fraco” como
artista seja julgado unicamente por suas obras de diz o povo; ou temperamentos ricos; mas o homem
arte; mil outras coisas contribuem igualmente para que tem sangue fraco nem por isso é um covarde,
de,ni-lo. O que queremos dizer é que um homem pois o que cria a covardia é o ato de renunciar ou de
nada mais é do que uma série de empreendimentos, ceder: um temperamento não é um ato e o covarde se
que ele é a soma, a organização, o conjunto das rela - de,ne pelos atos que pratica. O que as pessoas, obs -
ções que constituem esses empreendimentos. curamente, sentem, e que as atemoriza, é que o
covarde que nós lhes apresentamos é culpado por sua
Nessas condições, não é por nosso pessimis- covardia. O que as pessoas querem é que nasçamos
mo que nos acusam, mas, no fundo, pela dureza de covardes ou heróis. Uma das críticas mais frequente-
nosso otimismo. Se certas pessoas nos censuram por mente feitas aos Caminhos da Liberdade pode ser for-
desenvolvermos seres pusilânimes, fracos, covardes, mulada deste modo: “Mas, a,nal, esses seres tão fra-
e, por vezes, francamente maus, em nossas obras de cos, como poderão ser transformados em heróis?”.
,cção, não é unicamente porque eles são pusilâni- Tal objeção é um tanto ridícula, pois pressupõe que
mes, fracos, covardes ou maus, pois, se ,zéssemos as pessoas nasçam heróis. E, no fundo, é isso que
como Zola e declarássemos que eles assim são devi- todos desejam pensar: se eu nasço covarde, posso
dos à hereditariedade, por in?uência do meio, da viver em perfeita paz, nada posso fazer, serei covarde
sociedade, por um determinismo orgânico ou psicoló- a vida inteira, o que quer que eu faça; se nasço herói,
gico, todos se tranquilizariam e diriam: aí está, somos também viverei inteiramente tranquilo, serei herói
assim e ninguém pode fazer nada; o existencialista, durante a vida toda, beberei como um herói; comerei
porém, quando descreve um covarde, a,rma que esse como um herói. O que o existencialista a,rma é que o
covarde é responsável por sua covardia. Ele não é

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covarde se faz covarde, que o herói se faz herói; exis- esperança, mas sem fundamentos reais. Como ponto de
te sempre, para o covarde, uma possibilidade de não partida, não pode existir outra verdade senão esta: pen-
mais ser covarde, e, para o herói, de deixar de o ser. O so, logo existo; é a verdade absoluta de consciência que
que conta é o engajamento total, e não é com um apreende a si mesma. Falquer teoria que considere o
caso particular, uma ação particular, que alguém se homem fora desse momento em que ele se apreende a
engaja totalmente. si mesmo é, de partida, uma teoria que suprime a ver-
Creio que respondemos, assim, a algumas das dade pois, fora do cogito cartesiano, todos os objetos
críticas feitas ao existencialismo. Vimos, portanto, são apenas prováveis e uma doutrina de probabilida-
que ele não pode ser considerado como uma ,loso,a des que não esteja ancorada numa verdade desmoro-
do quietismo, já que de,ne o homem pela ação; nem na no nada; para de,nir o provável, temos de possuir
como uma descrição pessimista do homem: não exis- o verdadeiro. Portanto, para que haja uma verdade
te doutrina mais otimista, visto que o destino do qualquer, é necessário que haja uma verdade absolu-
homem está em suas próprias mãos; nem como uma ta; e esta simples e fácil de entender; está ao alcance
tentativa para desencorajar o homem de agir: o exis- de todo o mundo; consiste no fato de eu me apreen-
tencialismo diz-lhe que a única esperança está em der a mim mesmo, sem intermediário.
sua ação e que só o ato permite ao homem viver. Nes- Em segundo lugar, esta é a única teoria que
se plano, estamos, por conseguinte, perante uma atribui ao homem uma dignidade, a única que não o
moral da ação e do engajamento. Todavia, a partir des transforma num objeto. Todo materialismo me leva a
ses poucos dados, acusam-nos ainda de aprisionar o tratar todos os homens, eu próprio inclusive, como
homem em sua subjetividade individual. Também aí objetos, ou seja, como um conjunto de reações determi-
nos interpretam muito mal. Nosso ponto de partida é, nadas que nada distingue do conjunto das qualidades e
de fato, a subjetividade do indivíduo e isso por razões dos fenômenos que constituem uma mesa, uma cadeira
estritamente ,losó,cas. Não porque sejamos burgue- ou uma pedra. Nós desejamos, precisamente, estabele-
ses, mas porque desejamos uma doutrina baseada na cer o reino humano como um conjunto de valores dis-
verdade e não num conjunto de belas teorias cheias de tintos dos do reino material. Porém, a subjetividade que

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alcançamos a título de verdade não é uma subjetividade Além disso, se bem que seja impossível
rigorosamente individual, visto que, como já demons- encontrar em cada homem uma essência universal
tramos, no cogito eu não descubro apenas a mim mes- que seria a natureza humana, consideramos que exis-
mo, mas também os outros. Através do penso, contrari- ta uma universalidade humana de condição. Não é
amente à ,loso,a de Descartes, contrariamente a ,loso por acaso que os pensadores contemporâneos falam
,a de Kant, nós nos apreendemos a nós mesmos mais frequentemente da condição do homem do que
perante o outro, e o outro é tão verdadeiro para nós de sua natureza. Por condição, eles entendem, mais
quanto nós mesmos. Assim, o homem que se alcança ou menos claramente, o conjunto dos limites a priori
diretamente pelo cogito descobre também todos os que esboçam a sua situação fundamental no universo.
outros, e descobre-os como sendo a própria condição As situações históricas variam: o homem pode nascer
de sua existência. Ele se dá conta de que só pode ser escravo numa sociedade pagã ou senhor feudal ou
alguma coisa (no sentido em que se diz que alguém é proletário. O que não muda é o fato de que, para ele,
espirituoso, ou é mau ou é ciumento) se os outros o é sempre necessário estar no mundo, trabalhar, con-
reconhecerem como tal. Para obter qualquer verdade viver com os outros e ser mortal. Tais limites não são
sobre mim, é necessário que eu considere o outro. O nem subjetivos nem objetivos; ou, mais exatamente,
outro é indispensável à minha existência tanto quanto, têm uma face objetiva e uma face subjetiva. São obje-
aliás, ao conhecimento que tenho de mim mesmo. Nes- tivos na medida em que podem ser encontrados em
sas condições, a descoberta da minha intimidade des- qualquer lugar e são sempre reconhecíveis; são subje-
venda-me, simultaneamente, a existência do outro como tivos porque são vividos e nada são se o homem os
uma liberdade colocada na minha frente, que só pensa e não viver, ou seja, se o homem não se determinar
só quer ou a favor ou contra mim. Desse modo, desco- livremente na sua existência em relação a eles. E,
brimos imediatamente um mundo a que chamaremos embora os projetos humanos possam ser diferentes,
de intersubjetividade e é nesse mundo que o homem pelo menos nenhum deles permanece inteiramente
decide o que ele é e o que são os outros. obscuro para mim, pois todos eles não passam de
tentativas para transpor esses limites, ou para
afastá-los, ou para negá-los, ou para se adaptar a

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eles. Consequentemente, qualquer projeto, por mais sempre compreensível em qualquer época e por qual-
individual que seja, tem um valor universal. Todo quer pessoa, e a relatividade do conjunto cultural que
projeto, mesmo o do chinês, do indiano ou do negro, pode resultar dessa escolha; é preciso sublinhar,
pode ser entendido por um europeu. Poder ser com- simultaneamente, a relatividade do cartesianismo e o
preendido signi,ca que o europeu de 1945, a partir caráter absoluto do engajamento cartesiano. É nesse
de uma situação que ele concebe, pode projetar-se sentido que podemos dizer que cada um de nós é
para os seus limites, da mesma maneira, e pode absoluto respirando, comendo, dormindo ou agindo
reconstituir em si mesmo o projeto do chinês, do de um modo qualquer. Não existe diferença alguma
indiano ou do africano. Existe uma universalidade entre ser livremente, ser como projeto, como existên-
em todo projeto no sentido em que qualquer projeto cia que escolhe a sua essência, e ser absoluto; não
é inteligível para qualquer homem. Isso não signi,ca existe nenhuma diferença entre ser um absoluto tem-
de modo algum que esse projeto de,na o homem porariamente situado, ou seja, que se localizou na
para sempre, mas que ele pode ser reencontrado. história, e ser universalmente compreensível.
Temos sempre a possibilidade de entender o idiota, a
criança, o primitivo ou o estrangeiro, desde que Tudo isso não resolve inteiramente a objeção
tenhamos informações su,cientes. Nesse sentido, de subjetivismo. De fato, tal objeção assume ainda
podemos dizer que há uma universalidade do várias outras formas. A primeira é a seguinte: há
homem; porém, ela não é dada, ela é permanente- quem nos diga que, se assim é, então cada um de nós
mente construída. Construo o universal, escolhendo- pode fazer o que bem entender – acusação que se
me; construo-o entendendo o projeto de qualquer expressa de vários modos. Em primeira instância,
outro homem, de qualquer época que seja. Esse abso- acusam-nos de anarquia; e, em seguida, declaram:
luto da escolha não elimina a relatividade de cada “vocês não podem julgar os outros, pois não há razão
época. O que o existencialismo faz questão de mos- alguma para preferir tal projeto a tal outro”; ,nal-
trar é a ligação existente entre o caráter absoluto do mente, há quem diga: “tudo o que vocês escolhem é
engajamento livre – pelo qual cada homem se realiza, gratuito, vocês dão com uma mão o que ,ngem rece-
realizando um tipo de humanidade – engajamento ber com a outra”. Essas três objeções não parecem ter
sido formuladas com muita seriedade. Comecemos

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pela primeira: vocês podem escolher o que bem faça, é impossível que ele não tenha uma total res-
entenderem: tal a,rmação não é verdadeira. A esco- ponsabilidade em relação a esse problema. Efetiva-
lha é possível, em certo sentido, porém o que não é mente, ele escolhe sem se referir a valores preestabe-
possível é não escolher. Eu posso sempre escolher lecidos, mas é injusto acusá-lo de capricho. Digamos
mas devo estar ciente de que, se não escolher, assim antes que devemos comparar a escolha moral à cons-
mesmo estarei escolhendo. Isso, se bem que pareça trução de uma obra de arte. E, aqui, precisamos fazer
estritamente formal, tem suma importância, pois uma pausa para esclarecer que não se trata de uma
limita a fantasia e o capricho. Se, de fato, perante moral estética, pois a má fé de nossos adversários é
determinada situação – como, por exemplo, a situa- tanta que até disso nos acusam. O exemplo que esco-
ção que me de,ne como um ser sexuado, podendo ter lhi não passa de uma comparação. Esclarecido esse
relações com um ser de outro sexo, podendo ter ponto, perguntamos: alguma vez se acusou um artista
,lhos – sou obrigado a escolher uma atitude e, de que faz um quadro de ele não se inspirar em regras
qualquer modo, sou responsável por uma escolha estabelecidas a priori? Alguém, alguma vez, lhe indi-
que, engajando a mim mesmo, engaja também toda a cou que quadro deveria fazer? É evidente que não
humanidade, mesmo se nenhum valor a priori deter- existe nenhum quadro de,nido que deva ser feito; o
minar a minha escolha, esta nada terá a ver com o artista engaja-se na construção do seu quadro e o
capricho. E, quem pensar estar encontrando aqui a quadro que deve ser feito é, precisamente, o quadro
teoria gidiana do ato gratuito, não estará compreen- que ele tiver feito. Sabemos que não existem valores
dendo a enorme diferença entre a nossa doutrina e a estéticos a priori; contudo, existem valores que se tor-
de Gide. Gide não sabe o que é uma situação; ele age nam visíveis, posteriormente, na própria coerência
por simples capricho. Para nós, ao contrário, o do quadro, nas relações que existem entre a vontade
homem encontra-se numa situação organizada, com a de criação e o resultado. Ninguém pode prever como
qual está engajado; pela sua escolha, ele engaja toda será a pintura de amanhã; não se pode julgar a pintu-
a humanidade e não pode evitar essa escolha: ou per- ra a não ser que esteja feita. Fal a relação de tudo
manece casto, ou se casa e não tem ,lhos, ou se casa isso com a moral? Trata-se da mesma situação cria-
e tem ,lhos; de qualquer modo e seja que for que ele dora. Nunca falamos na gratuidade de uma obra de

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arte. Fando nos referimos a uma tela de Picasso, julgar os outros; sob certo ponto de vista, é verdade e,
nunca dizemos que ela é gratuita; compreendemos sob outro, é falso. É verdade no sentido em que, cada
perfeitamente que ele se construiu a si mesmo, tal vez que o homem escolhe o seu engajamento e o seu pro
qual é, ao mesmo tempo que pintava, que o conjunto jeto com toda a sinceridade e toda a lucidez, qualquer
de sua obra se incorpora à sua vida. que seja, aliás, esse projeto, não é possível preferir-lhe um
outro; é ainda verdade na medida em que nós não acre-
O mesmo acontece no plano moral. O que há ditamos no progresso; o progresso é uma melhoria; o
em comum entre a arte e a moral é que, nos dois homem permanece o mesmo perante situações diversas,
casos, existe criação e invenção. Não podemos decidir e a escolha é sempre uma escolha numa situação deter -
a priori o que devemos fazer. Penso ter deixado esse minada. O problema moral não mudou desde a época em
ponto su,cientemente claro ao contar a história do que era possível escolher entre os escravagistas e os não-
aluno que me procurou e que poderia ter recorrido a escravagistas, na altura da Guerra de Secessão, por
qualquer moral, a kantiana ou qualquer outra, que exemplo, até ao momento presente em que podemos
não encontraria nenhum tipo de orientação: foi obri- optar pelo M.R.P ou pelos comunistas.
gado a inventar sozinho a sua lei. E – quer ele tenha
escolhido ,car com a mãe, fundamentando sua moral Todavia, podemos julgar, pois, como já disse,
nos sentimentos, na ação individual e na caridade cada um escolhe perante os outros e se escolhe
concreta, quer tenha escolhido partir para a Inglater- perante os outros. Para começar, podemos considerar
ra, preferindo o sacrifício – não poderíamos jamais (e isso talvez não seja um juízo de valor, mas é um
dizer que esse homem fez uma escolha gratuita. O juízo lógico) que algumas escolhas estão fundamenta-
homem faz-se; ele não está pronto logo de início; ele das no erro e outras na verdade. Podemos julgar um
se constrói escolhendo a sua moral; e a pressão das homem dizendo que ele tem má fé. Tendo de,nido a
circunstâncias é tal que ele não pode deixar de esco- situação do homem como uma escolha livre, sem des-
lher uma moral. Só de,nimos o homem em relação a culpas e sem auxílio, consideramos que todo homem
um engajamento. Parece-nos, portanto, absurdo que que se refugia por trás da desculpa de suas paixões,
nos objetem a gratuidade da escolha. Em segundo todo homem que inventa um determinismo, é um
lugar, há quem a,rme o seguinte: vocês não podem homem de má fé. É possível objetar o seguinte: por

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que razão ele não poderia escolher-se como um a um sindicato comunista ou revolucionário quer
homem de má fé? E eu respondo que não tenho que alcançar objetivos concretos; tais objetivos implicam
julgá-lo moralmente, mas de,no a sua má fé como uma vontade abstrata de liberdade; porém, essa liber-
um erro. Não podemos escapar, aqui, a um juízo de dade é desejada em função de uma situação concreta.
verdade. A má fé é, evidentemente, uma mentira, pois Feremos a liberdade através de cada circunstância
dissimula a total liberdade do engajamento. No mes- particular. E, querendo a liberdade, descobrimos que
mo plano, direi que tem má fé, igualmente, aquele ela depende integralmente da liberdade dos outros, e
que declara que certos valores preexistem a si pró- que a liberdade dos outros depende da nossa. Sem
prios; estarei em contradição comigo mesmo se, con- dúvida, a liberdade, enquanto de,nição do homem,
comitantemente, quiser esses valores e a,rmar que não depende de outrem, mas, logo que existe um
eles me são impostos. Alguém pode perguntar-me: e engajamento, sou forçado a querer, simultaneamente,
se eu quiser ser um homem de má fé? Eu responde- a minha liberdade e a dos outros; não posso ter como
rei: não há motivo algum para que você não possa sê- objetivo a minha liberdade a não ser que meu objeti-
lo, mas declaro que você tem má fé e que a atitude de vo seja também a liberdade dos outros. De tal modo
estrita coerência é a atitude de boa fé. Além disso, que, quando, ao nível de uma total autenticidade,
posso fazer um juízo moral. Fando declaro que a reconheço que o homem é um ser em que a essência
liberdade, através de cada circunstância concreta, não é precedida pela existência, que ele é um ser livre que
pode ter outro objetivo senão o de querer-se a si pró - só pode querer a sua liberdade, quaisquer que sejam
pria, quero dizer que, se alguma vez o homem reco- as circunstâncias, estou concomitantemente admitin-
nhecer que está estabelecendo valores, em seu do que só posso querer a liberdade dos outros. Posso,
desamparo, ele não poderá mais desejar outra coisa a portanto, formar juízos sobre aqueles que pretendem
não ser a liberdade como fundamento de todos os ocultar a si mesmos a total gratuidade de sua existên-
valores. Isso não signi,ca que ele a deseja abstrata- cia e sua total liberdade, em nome dessa vontade de
mente. Mas, simplesmente, que os atos dos homens liberdade implicada pela própria liberdade. Aqueles
de boa fé possuem como derradeiro signi,cado a pro- que dissimularem perante si mesmos a sua total liber-
cura da liberdade enquanto tal. Um homem que adere dade, com exigências da seriedade ou com desculpas

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deterministas, eu os chamarei de covardes; os outros, paixão e está consciente disso: ela está apaixonada
que tentarem demonstrar que sua existência era por um jovem rapaz, Stephen, noivo de uma garota
necessária, quando ela é a própria contingência do insigni,cante. Essa Maggie Tulliver, em vez de prefe-
aparecimento do homem sobre a terra, eu os chama- rir, levianamente, a sua própria felicidade, escolhe
rei de canalhas. Porém, covardes ou canalhas, só sacri,car-se, renunciar ao homem que ama, em nome
podem ser julgados ao nível de uma rigorosa autenti - da solidariedade humana. Na Cartuxa de Parma, a
cidade. Assim, embora o conteúdo da moral seja vari- Sanseverina exempli,ca o caso oposto: considerando
ável, certa forma dessa moral é universal. Kant a,rma que a paixão constitui o verdadeiro valor do homem,
que a liberdade quer a si mesma e a liberdade dos ela teria declarado que um grande amor merece sacri-
outros. Certos; mas ele considera que o formal e o fícios; que é preciso preferir o amor-paixão à banali-
universal bastam para constituir uma moral. Nós dade do amor conjugal que uniria Stephen e a jovem
pensamos, pelo contrário, que princípios abstratos boba com quem deveria casar-se; ela escolheria sacri-
demais não conseguem de,nir a ação. Tomemos, ,car esta última e realizar a sua felicidade; e, como
mais uma vez; o caso do aluno: em nome de que, em nos mostra Stendhal, ela se sacri,caria a si mesma
nome de que grande máxima moral teria ele podido por paixão se a vida assim o exigisse. Estamos, aqui,
decidir, com toda a tranquilidade de espírito, abando- diante de duas morais rigorosamente opostas; eu con-
nar sua mãe ou permanecer junto dela? Não existem sidero que elas são equivalentes: nos dois casos, a
meios para julgar. O conteúdo é sempre concreto e, meta proposta foi a liberdade. E vocês podem imagi-
por conseguinte, imprevisível; há sempre invenção. A nar duas atitudes estritamente semelhantes quanto
única coisa que importa é saber se a invenção que se aos efeitos: Uma jovem, por resignação, prefere
faz se faz em nome da liberdade. renunciar ao seu amor; outra, por apetite sexual, pre-
fere desconhecer a ligação anterior do homem que
Examinemos, por exemplo, os dois casos ama. Essas duas ações se assemelham, exteriormente,
seguintes: vocês poderão constatar em que medida se àquelas que acabamos de descrever. Contudo, são
assemelham e, ao mesmo tempo, diferem. Considere-
mos O Moinho à Beira do Rio. Nele encontramos certa
mocinha, Maggie Tulliver, que encarna o valor da

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inteiramente diferentes. A atitude da Sanseverina diferentes. Podemos considerar como humanismo uma
está muito mais próxima da de Maggie Tulliver do teoria que toma o homem como meta e como valor
que de uma voracidade inconsequente. superior. Há humanismo, nesse sentido, em Cocteau,
por exemplo, quando, em sua narrativa A Volta ao
Vocês podem, portanto, constatar que essa Mundo em 80 Horas, um personagem declara, ao sobrevo
segunda acusação que nos fazem é simultaneamente ar as montanhas, de avião: o homem é admirável. Isso sig-
verdadeira e falsa. Podemos escolher qualquer coisa ni,ca que eu, pessoalmente, que não construí aviões, irei
se nos colocarmos ao nível de um engajamento livre. bene,ciar-me dessas invenções particulares e poderei,
A terceira objeção é a seguinte: vocês recebem pessoalmente, enquanto homem, considerar-me como
com uma mão o que dão com a outra; isso signi,ca que, no responsável e honrado pelos atos particulares de alguns
fundo, os valores não têm seriedade; já que vocês os esco- homens. O que supõe que podemos atribuir um valor ao
lhem. Argumentarei dizendo que lamento muito que assim homem em função dos atos mais elevados de certos
seja, mas, já que eliminamos Deus Nosso Senhor, alguém homens. Tal humanismo é absurdo, pois só o cachorro
terá de inventar os valores. Temos que encarar as coisas ou o cavalo poderiam emitir um juízo de conjunto sobre
como elas são. E, aliás, dizer que nós inventamos os valo- o homem e declarar que o homem é admirável – o que
res não signi,ca outra coisa senão que a vida não tem eles não têm a mínima intenção de fazer, que eu saiba,
sentido a priori. Antes de alguém viver, a vida, em si mes- pelo menos. Mas não podemos admitir que um homem
ma, não é nada; é quem a vive que deve dar-lhe um senti- possa julgar o homem. O existencialismo dispensa-o de
do; e o valor nada mais é do que esse sentido escolhido. todo e qualquer juízo desse tipo: o existencialismo não
Pode constatar-se, assim, que é possível criar uma colocará nunca o homem como meta, pois ele está
comunidade humana. Criticaram-me por perguntar se o sempre por fazer. E não devemos acreditar que existe
existencialismo é um humanismo. Responderam-me: uma humanidade à qual possamos nos devotar, tal
a,nal, você escreveu, na Náusea, que os humanistas como fez Auguste Comte. O culto da humanidade
estavam errados, você troçou de um certo tipo de conduz a um humanismo fechado sobre si mesmo,
humanismo, por que razão voltar atrás agora? Na reali- como o de Comte, e, temos de admiti-lo, ao fascismo.
dade, a palavra humanismo tem dois signi,cados muito Este é um humanismo que recusamos.

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Existe, porém, outro sentido para o humanis- Após essas re?exões, vemos que nada é mais
mo, que é, no fundo, o seguinte: o homem está cons - injusto do que as acusações de que fomos alvo. O exis -
tantemente fora de si mesmo; é projetando-se e per- tencialismo nada mais é do que um esforço para tirar
dendo-se fora de si que ele faz com que o homem todas as consequências de uma postura atéia coerente.
exista; por outro lado, é perseguindo objetivos trans- Esta não pretende, de modo algum, mergulhar o homem
cendentes que ele pode existir; sendo o homem essa no desespero. Mas se, tal como fazem os cristãos, se
superação e não se apoderando dos objetos senão em decide chamar desespero a qualquer atitude de descren
relação a ela, ele se situa no âmago, no centro dessa ça, nossa postura parte do desespero original. O existen
superação. Não existe outro universo além do univer- cialismo não é tanto um ateísmo no sentido em que se
so humano, o universo da subjetividade humana. É a esforçaria por demonstrar que Deus não existe. Ele
esse vínculo entre a transcendência, como elemento declara, mais exatamente: mesmo que Deus existisse,
constitutivo do homem (não no sentido em que Deus nada mudaria; eis nosso ponto de vista. Não que acre-
é transcendente, mas no sentido de superação), e a ditemos que deus exista, mas pensamos que o problema
subjetividade (na medida em que o homem não está não é o de sua existência; é preciso que o homem se
fechado em si mesmo, mas sempre presente num uni- reencontre e se convença de que nada pode salvá-lo
verso humano) que chamamos humanismo existencia- dele próprio, nem mesmo uma prova válida da existên-
lista. Humanismo, porque recordamos ao homem cia de Deus. Nesse sentido, o existencialismo é um oti-
que não existe outro legislador a não ser ele pró- mismo, uma doutrina de ação, e só por má fé é que os
prio e que é no desamparo que ele decidirá sobre si cristãos, confundindo o seu próprio desespero com o
mesmo; e porque mostramos que não é voltando-se nosso, podem chamar-nos de desesperados.
para si mesmo mas procurando sempre uma meta
fora de si – determinada libertação, determinada
realização particular – que o homem se realizará
precisamente como ser humano.

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