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EMILIA VIOTTI DA COSTA

Coleção Tudo é História DA SENZALA Ä COLÔNIA


Da Monarquia â República O Escravo Gaúcho
Emilia Viottl Resistência e trabalho
Paulo Mário J. Maestri Filho
O Ensino de História
Revisão Urgente A Crise do Escravismo e a
diversos autores Grande Imigração
Paula Beiguelman
Estrutura e Dinâmica do Antigo
Sistema Colonial A Abolição da Escravidão
Fernando A. Novais Suely R. R. de Queiroz
Formação do Brasil i )
Contemporâneo Coleção Primeiros Passos
Caio Prado Jr.
O Negro no Brasil O que é História
Júlio J. Chiavenato Vavy P. Borges

^qS) fgjié ; editora brasiliense


Copyright © by Emilia Viotti da Costa, 1966
Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada,
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reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer
sem autorização prévia do editor.

ISBN: 85-11-13090-X
Primeira edição, 1966
2.« edição, 1982
Livraria Editora Ciências Humanas
3? edição, 1989

Revisão: Aníbal Mari e Rubens Marchioni


Capa: Moema Cavalcanti

Para Antônia eZéCarnaúba, que por


Rua da Consolação, 2697 sua dignidade, retidão e lealdade
01416 São Paulo SP me ensinaram a respeitar e amar
Fone (011) 280-1222 - Telex: 11 33271 DBLM BR outros tantos milhões de brasileiros
IMPRESSO NO BRASIL que ainda aguardam o momento
de sua emancipação.
PREFÁCIO Ã SEGUNDA EDIÇÃO

Da senzala à colônia estava esgotado há muitos anos. Inú-


meras vezes amigos e colegas insistiram comigo para que publi-
casse uma nova edição. A vida agitada dos anos que sucederam a
sua publicação em 1966, conseqüência da luta pela reforma uni-
versitária, da minha aposentadoria compulsória em 1968, da re-
pressão às atividades acadêmicas e intelectuais que se seguiram,
culminando em prisões e processos militares, acabaram por me
levar aos Estados Unidos, onde passei a viver desde então. O
trauma da mudança e as dificuldades de ajustamento a uma ou-
tra língua e cultura, o sofrimento associado a esse processo de
desenraizamento, as dificuldades de encontrar uma fala ade-
quada ao novo público, a falta de contato com o público brasi-
leiro que inspirara aquela obra e, finalmente, a ansiedade asso-
ciada ao processo de "abertura", tudo isso me levou a adiar a pu-
blicação da segunda edição. Só agora, quando a "abertura" re-
coloca alguns dos problemas que me levaram inicialmente à pu-
blicação deste livro, decidi empreender esta tarefa.
Acredito que embora muito se tenha publicado sobre o
assunto nos últimos anos, levantando novos problemas e suge-
rindo revisões, o esquema geral de interpretação sugerido em Da
senzala à colônia é ainda válido. Resolvi, por isso, manter o texto
original na íntegra, com exceção da bibliografia que foi atuali-
zada. Nesta introdução, procuro definir os objetivos que me
guiaram quando de sua publicação em 1966 e, ao mesmo tempo,
dar um balanço da historiografia aparecida desde então.
* * *
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Todo livro deve ser avaliado a partir das condições de sua gislação emancipadora? Por que os senhores de escravos não se
produção. Da senzala à colônia originou-se de uma tese de livre- armaram em defesa de sua propriedade, como ocorreu no Sul dos
docência apresentada à cadeira de História da Civilização Brasi- Estados Unidos? Como foi possível promover uma reforma apa-
leira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universi- rentemente tão radical sem provocar uma guerra civil? Tais ques-
dade de São Paulo, sob o título: Escravidão nas áreas cafeeiras; tões pareciam relevantes não só para o esclarecimento da Abo-
aspectos econômicos, sociais, políticos e ideológicos da transição lição, como para o entendimento das potencialidades e limites de
do trabalho servil para o trabalho livre (São Paulo, Editora da ações reformistas em geral — questão particularmente impor-
Universidade, 1964, 3 vols., 1001 pp.)- Embora tivesse sido es- tante na década dos sessenta, e hoje novamente em pauta.
crito de acordo com os requisitos acadêmicos do momento — o Se a historiografia tradicional parecia-me incapaz de res-
que explica alguns de seus defeitos e qualidades —, o livro pre- ponder às minhas perguntas, a historiografia mais recente con-
tendia ser mais do que um exercício universitário. tinha algumas sugestões valiosas. Importante matéria de reflexão
Os primeiros anos da década dos sessenta foram de grande ofereciam as obras de Caio Prado Jr., História econômica do
inquietação política no Brasil. Desde a queda de Vargas, em Brasil (São Paulo, 1949), e Evolução politica do Brasil (São Pau-
1945, haviam-se criado condições favoráveis à mobilização de lo, 1933), e as de Nelson Werneck Sodré, Panorama do Segundo
massas e ao desenvolvimento de uma nova consciência crítica no Império (São Paulo, 1939), Formação da sociedade brasileira
País. Crescera o número dos que se empenhavam em promover (Rio de Janeiro, 1944) e Formação histórica do Brasil (São Paulo,
reformas essenciais à democratização da sociedade brasileira. 1962). Algumas teses apresentadas à Universidade de São Paulo
Sabiam estes que os interessados em manter as tradicionais estru- mais ou menos na mesma época em que eu escrevia a minha tese
turas de poder e preservar as instituições que as asseguravam não também apontavam novos caminhos: Octávio Ianni, As meta-
encaravam com bons olhos as reformas propostas e estavam dis- morfoses do escravo (São Paulo, 1962), Fernando Henrique Car-
postos a recorrer a todos os meios para impedi-las. Dentro desse doso, Escravidão e capitalismo no Brasil meridional (São Paulo,
contexto, o estudo da abolição nas áreas cafeeiras, principal re- 1961), Paula Beiguelman, Teoria e ação no pensamento abolicio-
duto da escravidão nas últimas décadas do Império, parecia-me nista (São Paulo, 1961). Somava-se a estas o estudo de Florestan
extremamente significativo. Os últimos capítulos foram escritos Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes (São
nos meses que antecederam o golpe militar de 1964. Naqueles Paulo, 1964), que foi publicado depois da apresentação de minha
meses, ao passar da leitura dos debates parlamentares que ante- tese. Da senzala à colônia, portanto, não nasceu de um esforço
cederam a aprovação da Lei do Ventre Livre e da Lei dos Sexage- individual isolado (como, aliás, nenhum livro nasce), mas de um
nários, para a leitura de jornais que reproduziam as discussões no processo coletivo de reflexão.
Congresso, a propósito das reformas de base sugeridas durante o Na tentativa de encontrar respostas para questões que a his-
governo Goulart, fui freqüentemente levada a sentir que o pas- toriografia tradicional não se propusera e seguindo algumas pis-
sado não era apenas algo morto a ser dissecado pela análise crí- tas sugeridas pela historiografia mais recente, fui levada a con-
tica, mas algo vivo e ainda presente na realidade do dia-a-dia. sultar documentação até então pouco utilizada pelos historia-
A maioria dos autores que até então se haviam dedicado ao dores da abolição, que não se haviam interessado pelas condições
estudo da abolição consideravam-na produto exclusivo da agi- objetivas do processo de produção e que haviam centrado suas
tação abolicionista dentro e fora do Parlamento.» Atribuíam eles análises nas transformações ideológicas e institucionais. A fim de
vital importância à legislação emancipadora: proibição do tráfico identificar as transformações ocorridas no sistema de produção e
(1850), Lei do Ventre Livre (1871), Lei dos Sexagenários (1884), nas relações de trabalho, consultei relatórios ministeriais, ma-
dando especial relevo ao papel do Imperador e da princesa Isabel. nuais de agricultura, atas de congressos agrícolas, relatórios de
Esse tipo de abordagem deixava questões fundamentais sem res- presidentes de província, ofícios de câmaras municipais, rela-
postas. Por que uma instituição aceita por mais de três séculos tórios de polícia, livros de matrícula de escravos, recenseamentos.
passara a ser contestada? Como explicar o sucesso do abolicio- Estando igualmente interessada nas condições subjetivas dos
nismo? Quais as razões que levaram um parlamento que repre- agentes históricos, recorri ainda a outras fontes mais utilizadas
sentava proprietários e negociantes de escravos a aprovar uma le- tradicionalmente, tais como jornais, revistas, relatos de viajantes.
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livros de memórias, romances, folhetins e anais do Parlamento e cional. Condições internacionais explicam a decadência da escra-
das assembléias legislativas provinciais. A consulta a essa docu- vidão e seu desaparecimento mais ou menos simultâneo nas vá-
mentação me abriu perspectivas novas para a compreensão do rias regiões do Novo Mundo, depois de a instituição ter funcionado
processo de transição do trabalho escravo ao trabalho livre nas por três séculos sem ser fundamentalmente questionada. As de-
regiões cafeeiras e, ao mesmo tempo, me ajudou a entender me- terminações internas (nacionais ou regionais) explicam o ritmo e
lhor a abolição. Tão importantes quanto o material empírico des- a forma pela qual a escravidão foi abolida nas várias áreas. Deste
coberto, foram as hipóteses que orientaram a seleção e a leitura modo, a história do Brasil é vista a partir de uma perspectiva que
crítica das fontes. Sem hipóteses eu não teria chegado a um en- transcende as fronteiras nacionais, embora não considere os pro-
tendimento do processo, pois, contrariamente ao que acreditam cessos internos mero reflexo do que se passa na cena interna-
os empiricistas puros, os documentos nunca falam por si sós. cional, pois que as condições internas e internacionais são rela-
Por inexperiência, senso estético ou timidez, não explicitei cionadas dialeticamente e não de forma mecânica.
em nenhum momento minha proposta metodológica. De fato, os Existe, implícito na obra, o pressuposto de que a escravidão
longos prefácios teóricos sempre me entediaram e me pareceram foi uma instituição integrante do sistema colonial característico
desnecessários e pedantes. Mas a falta de explicitação das pre- da fase de acumulação primitiva e mercantil do capital e da for-
missas teóricas do meu trabalho permitiu algumas leituras equi- mação do tstado moderno na Europa ocidental (séculos XV e
vocadas. A que mais me surpreendeu foi a daqueles que, a des- XIX). A escravidão teria entrado em crise, quando, com o desen-
peito de em várias passagens eu ter insistido na inter-relação en- volvimento do capitalismo, o Estado absolutista e a política mer-
tre o econômico, o político e o ideológico, viram no livro uma cantilista foram repudiados. A acumulação capitalista, a revo-
interpretação econômica da abolição, quando, na realidade, o lução nos meios de transporte e no sistema de produção, assim
que eu me propunha era uma interpretação materialista, sim, como o crescimento da população na Europa e a crescente divisão
mas dialética do processo de transição do trabalho escravo ao do trabalho, acarretaram a expansão do mercado internacional,
trabalho livre. tornando impossível a manutenção dos quadros rígidos do sis-
A publicação de uma segunda edição de Da senzala à co- tema colonial tradicional. A partir das novas condições, a escra-
lônia oferece-me a oportunidade de esclarecer melhor minhas in- vidão tornou-se um sistema de trabalho cada vez mais inope-
tenções e meu argumento. Aqueles para quem ambos estão cla- rante, passando a ser alvo da crítica dos novos grupos sociais me-
ros, considerarão esta introdução redundante, se não desneces- nos comprometidos com ela. É preciso notar, no entanto, que as
sária. Espero, no entanto, que os que não têm tempo ou paciência transformações econômicas e sociais não explicam, por si só, o
para decifrar as intenções da autora, apreciem este esforço de desaparecimento da escravidão como sistema de trabalho. Igual-
síntese, que pretende facilitar a leitura do livro e evitar mal- mente importantes foram as mudanças ideológicas e as lutas po-
entendidos. Este é um dos propósitos desta introdução; o segundo líticas do período, as quais, por sua vez — sempre é bom lembrar
é avaliar o que foi publicado sobre o assunto nos últimos anos, o —, só podem ser entendidas à luz das transformações econô-
que será feito em notas de rodapé. micas e sociais. Os instrumentos teóricos foijados na luta contra o
Antigo Regime — a filosofia da Ilustração, afirmando os direitos
>ü « « do homem; a economia liberal clássica, condenando as práticas
mercantilistas e afirmando a superioridade do trabalho livre —
Em Da senzala à colônia, a Abolição aparece como resul- trouxeram consigo os argumentos que levaram à condenação da
tado de um processo de longa duração que envolve mudanças escravidão. A crítica solapou as bases teóricas, morais e religiosas
estruturais, situações conjunturais e uma sucessão de episódios que haviam sustentado a escravidão por mais de três séculos.
que culminaram na Lei Ãurea. Neste tipo de abordagem, o epi- Passou-se a questionar não só a legitimidade, mas também a pro-
sódio (por exemplo, a aprovação da lei que proíbe o tráfico de dutividade do trabalho escravo. Dentro desse contexto, não tar-
escravos) é visto como ponto de convergência de movimentos de dou muito para que a cessação do tráfico e a abolição da escra-
longa e média duração (estruturais e conjunturais). Tais movi- vatura nas colônias se tomassem temas políticos na luta pelo po-
mentos ocorrem simultaneamente no plano nacional e interna- der que se travava tanto nas metrópoles quanto nas colônias. A
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partir desse momento, a escravidão teria seus dias contados. Pri- lado, as lutas pelo poder que resultam do confronto de diferentes
meiro viria a interdição do tráfico, depois a abolição. É, pois, grupos ou classes sociais podem dar origem a uma legislação que
dentro desse amplo quadro de referências, com suas potenciali- afeta o funcionamento da economia e interfere, em última ins-
dades e seus limites, que se movimentam os personagens histó- tância, nas relações sociais etc. Portanto, esta perspectiva pare-
ricos que se definem a favor ou contra a abolição da escravatura ceu-me a melhor maneira de compreender o processo histórico e
no Brasil ou em outros países da América. apanhá-lo em suas múltiplas dimensões, isto é, apresentá-lo na
O processo de transição do trabalho escravo ao trabalho sua dialética.
livre foi, no entanto, lento e difícil. Tanto mais que as condições
que levaram gradativamente ao desaparecimento do trabalho * *
servil e sua substituição pelo trabalho livre nas áreas capitalistas
mais desenvolvidas reforçaram, inicialmente, a escravidão nas
áreas coloniais, menos desenvolvidas, onde a demanda crescente Em Da senzala à colônia, procurei mostrar que a crescente
de produtos coloniais, motivada pela expansão do mercado inter- demanda de café no mercado internacional teve como efeito ime-
nacional, intensificou a importação de escravos, exatamente diato a intensificação do tráfico de escravos e sua progressiva
quando, nas metrópoles do capitalismo, a escravidão era posta concentração nas áreas cafeeiras. Pressões diplomáticas inglesas
em questão. A contradição entre desenvolvimento capitalista e (que só podem ser entendidas dentro do contexto da história da
escravidão acabou, no entanto, por se repetir, se bem que de ma- Inglaterra) levaram o governo brasileiro a proibir a importação de
neira específica, nos vários países da América. ^ A luta pela ces- escravos em 1831, numa fase anterior à grande expansão cafeeira.
sação do tráfico e pela abolição da escravatura se daria em ritmos Mas, a partir de então, a necessidade de abastecer de mão-de-obra
diversos em cada região, dependendo das condições econômicas, as áreas produtoras em expansão acarretou a continuação do trá-
sociais, políticas e ideológicas internas. Nos Estados Unidos, esse fico, sob a forma de contrabando, até 1850, quando nova legis-
processo só se resolveria com uma guerra civil entre o Norte e o lação veio interrompê-lo definitivamente. A cessação efetiva do
Sul. No Brasil, a escravidão seria extinta por um ato do Parla- tráfico só foi possível em virtude de uma convergência de fatores
mento, diante dos aplausos das galerias apinhadas de gente. internos e internacionais. A temporária saturação do mercado
Em Da senzala à colônia, não me propus estudar as mu- comprador de escravos, a centralização do aparato estatal (per-
danças de caráter internacional que progressivamente levaram à mitindo maior eficiência na repressão) e o aumento da pressão
eliminação da escravidão. Preferi focalizar as mudanças ocor- inglesa sobre o governo brasileiro fizeram com que a lei aprovada
ridas na economia e na sociedade brasileiras, particularmente nas em 1850 se tornasse realidade. ^
áreas cafeeiras, onde a população de escravos se concentra no de- A interrupção do tráfico em 1850 acelerou o processo de
correr do século XIX. Como o processo da abolição só pode ser ladinização e desafricanização da população escrava, favore-
entendido na escala nacional, fui levada a estudar o fenômeno cendo a sua assimilação, desenvolvendo novas formas de sociabi-
também i^esse nível, procurando estabelecer as conexões entre a lidade que permitiram maior solidariedade entre os escravos e re-
história regional e a história da nação. duziram, embora sem eliminá-las de todo, as rivalidades que ti-
Partindo do pressuposto de que são os homens (e não as nham existido entre escravos de diferentes "nações". Exemplo
estruturas) que fazem a história, se bem que a façam dentro de dessas novas formas de sociabilidade foram as capoeiras que ater-
condições determinadas, procurei analisar o processo nos vários rorizaram as populações do Rio de Janeiro nas últimas décadas
níveis: o econômico, o social, o político e o ideológico, reconhe- do século. Não obstante tal tendência à ladinização, os escravos
cendo que, embora esses níveis tenham uma relativa autonomia e continuaram divididos por lealdades contraditórias, o que difi-
uma dinâmica que lhes é própria (não sendo possível, por exem- cultou sua ação coletiva. Dar aos protestos dos escravos uma di-
plo, reduzir o ideológico ou o político ao econômico), todos eles reção organizada e transformá-los numa ação política seria, em
estão profundamente inter-relacionados. Transformações na eco- grande parte, obra dos abolicionistas.
nomia implicam em transformações sociais que eventualmente se Outra conseqüência da interrupção do tráfico foi o melhor
traduzem em posições ideológicas e gestos políticos; por outro tratamento dado aos escravos. Enquanto durou o tráfico africano
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e OS escravos foram relativamente fáceis de se obter, era freqüen- Nordeste que a participação do trabalhador livre cresceu. Fenô-
temente menos custoso comprar novos escravos do que assegurar meno idêntico observou-se em outras áreas de baixa produtivi-
sua longevidade e reprodução. Com a cessação do tráfico, os fa- dade e nos núcleos urbanos do Norte ou do Sul onde diminuiu a
zendeiros foram obrigados a enfrentar o problema da reprodução porcentagem de escravos e cresceu a de trabalhadores livres.
da força de trabalho e passaram a dar maior atenção ao trata- Dessa forma, ao longo do século XIX aumentou o número dos
mento dos escravos. Enquanto perdurou o tráfico africano, pre- que não dependiam diretamente do trabalho escravo e que, por-
dominara a população masculina; mas, depois da cessação do tanto, poderiam encarar com relativa indiferença a abolição. Isso
tráfico externo, embora o desequilíbrio entre homens e mulheres não quer dizer, todavia, que estes se tornaram abolicionistas, mas
tenha continuado a existir nas áreas novas em expansão, porque apenas que se encontraram em condições de dar ouvidos aos ar-
estas preferiam importar escravos do sexo masculino, nas áreas gumentos abolicionistas.
de povoamento mais antigo, onde predominavam escravos de se- A ameaça que parecia pairar sobre a instituição levou, des-
gunda e terceira geração, tal desproporção entre o número de ho- de os meados do século, alguns fazendeiros das áreas pioneiras a
mens e o de mulheres tendia a desaparecer. considerarem o imigrante uma alternativa. Na sua maioria,
A interrupção do tráfico determinou também a alta no pre- as primeiras experiências com trabalhadores livres foram desa-
ço dos escravos.5 Qç 1350 a 1880, o preço dos escravos subiu pontadoras, tanto para os imigrantes como para os proprietários.
constantemente, chegando em certos casos a seis vezes o seu valor Os colonos sentiam-se explorados e maltratados pelos patrões,
inicial; a partir de então os preços de venda de escravos decU- enquanto estes pensavam ver na experiência com os trabalha-
naram. dores livres a confirmação de uma de suas mais arraigadas con-
Interrompido o tráfico externo, a população de escravos vicções: a de que o trabalhador escravo era superior ao traba-
não se reproduziu tão rapidamente quanto era necessário para lhador livre. Poucos foram aqueles que, depois de tentarem em-
atender à crescente demanda de mão-de-obra. Isso se deu princi- pregar imigrantes em suas fazendas, avaliaram o resultado de
palmente devido à balança negativa entre nataUdade e mortali- maneira positiva e persistiram na idéia de que o imigrante po-
dade dos escravos.® A crescente necessidade de mão-de-obra, em deria vir, com o tempo, a substituir o escravo na lavoura de café.
virtude da expansão das plantações cafeeiras no Sul do País, le- A maioria das fazendas que se abriram no Oeste Paulista nos
vou os fazendeiros dessas áreas a procurarem soluções alterna- anos sessenta continuaram a usar escravos como a principal força
tivas. O tráfico inter e intraprovincial permitiu o deslocamento da de trabalho.!«
população de escravos dos setores rurais menos produtivos e das Na segunda metade do século XIX, no entanto, uma série
zonas urbanas para as plantações de café.' Enquanto os escravos de transformações ocorreram no País, facilitando a transição do r
afluíam para as regiões cafeeiras no Sul do País, no Nordeste, trabalho escravo para o trabalho livre; tais transformações cria- '
onde no passado se havia concentrado a maioria dos escravos, ram condições para que essa transição se desse, o que não é o
cresceu a participação do trabalhador livre.® Dois fatores concor- mesmo que dizer que elas determinaram essa transição. Primei-
reram para isso. A baixa lucratividade da produção açucareira ramente, a acumulação de capitais resultante da expansão do se-
quando comparada à cafeeira (em virtude das condições de preço tor exportador permitiu aos fazendeiros de café introduzir melho-
no mercado internacional) colocou o mercado nordestino com- ramentos no processo de beneficiamento do produto (o mesmo é
prador de escravos em condições de relativa inferioridade em re- verdade a respeito de alguns fazendeiros de açúcar),^ incremen-
lação ao mercado sulino. Isto não quer dizer que os fazendeiros tando assim a produtividade do trabalho, reduzindo a mão-de-
de açúcar venderam seus escravos para o Sul, mas apenas que obra necessária e permitindo maior especialização do traba-
não estavam em condições de competir favoravelmente com os lhador. A máquina realizava em menos tempo e com mais efi-
fazendeiros de café na compra de escravos.' Além disso, fontes ciência o trabalho anteriormente realizado por um grande nú-
alternativas de trabalho livre criaram-se no Nordeste, na década mero de escravos. O sistema de transportes passou por verdadeira
dos setenta, em virtude das secas que assolaram o sertão; o deslo- revolução. Navios a vapor, mais rápidos e de maior tonelagem,
camento das populações sertanejas para a Zona da Mata criou substituíram gradativamente os navios a vela até então utilizados.
uma reserva abundante de mão-de-obra. Mas não foi apenas no Simultaneamente, a disponibilidade de capitais resultante da
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acumulação capitalista nos dois lados do Atlântico permitiu a a um grande investimento inicial. Para estes, a perspectiva de
construção de ferrovias, ampliando dessa forma a capacidade e re- contratar trabalhadores livres e pagar salários ou outras formas
duzindo os custos do transporte. Esta transformação no sistema de remuneração equivalentes ao que despenderiam com o sus-
de transportes e a melhoria no processo de beneficiamento do tento dos escravos parecia solução ideal, porque eliminaria a ne-
café (ou do açúcar) não só aumentaram a capacidade produtiva cessidade de desembolsar uma soma inicial na aquisição dos es-
como possibilitaram um uso mais eficiente da mão-de-obra. A cravos. Para que pudessem abrir mão do trabalhador escravo, no
partir de então puderam os fazendeiros usar um menor número entanto, seria necessário primeito garantir o suprimento de tra-
de trabalhadores permanentes, recorrendo a trabalhadores extras balhadores livres.
em tempos de colheita. Dentro dessas novas condições, o trabalho No decorrer do século, dois fenômenos concorreram para
livre, desde que fosse possível garantir seu suprimento e manter criar uma abundante reserva de mão-de-obra: o crescimento da
baixo seu custo, se revelaria tão ou mais adequado do que o es- população livre nacional e a entrada de imigrantes europeus. Em
cravo. Evidentemente, a maior ou menor produtividade do tra- virtude das transformações ocorridas na Europa, sob o impacto
balho livre em relação ao escravo variava de região para região, do desenvolvimento capitalista, um número cada vez maior de
dependendo das condições do solo, proximidade a ferrovias, dis- pessoas expropriadas se dispôs a emigrar para o Novo Mundo. A
ponibilidade de mão-de-obra etc. ____ partir de 1870, os fazendeiros encontraram na Itália a mão-de-
Outro fator que contribuiu para tornar o trabalho livre mais obra necessária às suas plantações. Mas, apesar das condições
atraente foi o interesse crescente na circulação do capital. No de- para a imigração se terem tomado mais favoráveis, a substituição
correr do século XIX, a ampliação do mercado interno e a acu- do escravo pelo trabalhador livre não existia igualmente para to-
mulação de capitais dinamizaram a economia, multiplicando as dos. Os fazendeiros das regiões menos produtivas não tinham
oportunidades de investimento nos setores os mais variados, mer- condições de atrair trabalhadores livres — imigrantes ou nacio-
cantis, industriais e financeiros. A abertura de novas áreas de nais, pois estes preferiam as zonas de maior produtividade. Tal
investimento não determinou, obviamente, um deslocamento fato foi assinalado tanto nas regiões cafeeiras quanto nas açuca-
automático de capitais do setor agrário para os novos setores, reiras, ou nas charqueadas do Sul do País. Augusto Millet, um
mesmo porque o café continuava a ser remunerador. Em geral, a senhor de engenho do Nordeste, observou, na década dos setenta,
tendência do investidor é continuar a investir em áreas com as que só os senhores de engenho que tinham conseguido moder-
quais ele está familiarizado, ao invés de assumir riscos desneces- nizar seu equipamento e cujas fazendas se achavam localizadas
sários investindo em setores nos quais não tem nenhuma experi- junto a ferrovias, gozando portanto de condições de alta produti-
ência." Mas, para muitos fazendeiros, a aplicação de capitais vidade, achavam-se em condições de adotar, com sucesso, o tra-
em vias férreas, bancos, indústrias e empresas comerciais ou balho livre. Esses eram poucos; para a grande maioria dos fazen-
companhias de seguro apareceu não como solução alternativa deiros do Nordeste, o escravo continuava, na sua opinião, a ser a
mas como oportunidade complementar atraente, mesmo quando mão-de-obra preferida. Idêntica era a situação em São Paulo,
não mais lucrativa. Isso porque a diversificação de investimentos onde o imigrante só substituía com vantagem o escravo em fa-
diminuía a margem de risco que recaía sobre o capital investido zendas de alta produtividade, em que a margem de lucro era am-
na agricultura, cujo rendimento estava sujeito às oscilações do pla e os colonos podiam ser melhor remunerados pelo seu tra-
mercado internacional e aos caprichos da natureza. balho. Essas fazendas eram, em geral, localizadas nas áreas de
Em face das novas oportunidades de investimento, a imobi- ocupação recente, em terras particularmente férteis, junto a fer-
lização de capitais na compra de escravos passou a significar um rovias e a núcleos urbanos onde os colonos, além do que ga-
entrave à desejada diversificação de capital, principalmente a nhavam com o café, podiam vender o excedente dos produtos que
partir do momento em que os fazendeiros puderam divisar alter- cultivavam para sua subsistência, obtendo assim uma renda adi-
nativas para o problema da mão-de-obra, alternativas estas que cional.
não envolviam imobilização inicial de capital.''* Isso foi sentido Além das dificuldades apontadas, há que acrescentar que o
particularmente pelos fazendeiros das áreas pioneiras, que ti- trabalho livre pressupunha também a existência de um sistema de
nham de adquirir seus escravos por altos preços, sendo obrigados crédito que pudesse atender às necessidades financeiras decor-
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rentes do sistema de remuneração do trabalho. As condições de diam encarar com simpatia o préjeto de introduzir imigrantes em
crédito, no entanto, tinham sempre sido bastante precárias e foi suas fazendas, a maioria dos das. zonas cafeeiras mais antigas do
apenas nas últimas décadas do Império que a expansão relativa Vale do Paraíba ou do Oeste Paulista, onerados por dívidas e às
da rede bancária veio facilitar a transição do trabalho escravo voltas com a queda de produtividade dos seus cafezais e que, por
para o trabalho livre. isso mesmo, tinha dificuldades em atrair trabalhadores livres,
A substituição do escravo pelo trabalhador livre não é, pois, continuava apegada ao trabalho escravo. A contrastante atitude
um simples problema de contabilidade que possa ser discutido, dos fazendeiros das zonas pioneiras e das zonas decadentes não
como querem alguns historiadores, em termos de input e output, pode ser explicada em termos meramente psicológicos ou ideoló-
de maior ou menor produtividade do tipo de trabalhador. No seu gicos, como sugeriram alguns autores." Não se trata de opor
cotidiano, o fazendeiro não lidava com esse tipo de abstrações, pura e simplesmente uma mentalidade senhorial a uma empre-
mas com realidades concretas, e sua avaliação sobre a superiori- sarial, mas de contrastar duas condições objetivamente diversas
dade ou a inferioridade do trabalhador livre em relação ao es- que permitiram a uns assistir com relativa indiferença os pro-
cravo dependia tanto de ele poder recrutar um número adequado gressos do abolicionismo e levaram outros a defender até o último
de trabalhadores livres quanto de sua capacidade de manter os instante a ordem tradicional.
salários e outras formas de remuneração em níveis inferiores ou A despeito da grande diversidade de circunstâncias enfren-
equivalentes aos do custeio do escravo, computados os interesses tadas pelos proprietários de escravos — o que explica em parte a
sobre o capital investido em sua aquisição, a deterioração desse diversidade de comportamento —, a verdade é que as transfor-
capital a longo prazo e as despesas com sua manutenção e repro- mações na economia e na sociedade tomaram gradativamente o
dução, e seu interesse em outros tipos de investimento.'® Qual- trabalho livre uma alternativa mais viável, quando não mais van-
quer tentativa de avaliar, em termos abstratos, a superioridade tajosa, do que jamais fora. As mudanças econômicas, no entanto,
ou inferioridade do trabalho escravo em relação ao livre — como não são suficientes para explicar a abolição. Outros fatores,
o fizeram alguns economistas — é mistificadora se não der conta igualmente importantes, contribuíram para desqualificar o tra-
da complexidade da realidade vivida pelos fazendeiros. Há, ain- balho escravo. Não tivessem as leis do Ventre Livre e dos Sexa-
da, que lembrar que, mesmo quando é possível demonstrar mate- genários — por mais modestos que tenham sido seus resultados
maticamente que os fazendeiros só teriam a lucrar com a adoção práticos imediatos — questionado a legitimidade da propriedade
do trabalho livre, o que importa, em última análise, é a maneira escrava e condenado a instituição a desaparecer a longo prazo;
pela qual eles próprios avaliaram a situação. E a verdade é que a não fosse a agitação abolicionista levantar suspeitas sobre a legi-
maioria continuava a acreditar, até a década dos oitenta, que era timidade da propriedade escrava e a produtividade do escravo;
difícil, se não impossível, substituir o escravo (isso a despeito do não fosse, finalmente, a rebelião das senzalas e a conseqüente
número crescente dos que argumentavam em favor da imigração desorganização do trabalho nas fazendas, a instituição prova-
e do trabalho livre). Se somarmos a isso o fato de que, para a velmente teria sobrevivido até o século XX. Todas essas circuns-
grande maioria dos fazendeiros, os escravos representavam ca- tâncias, que não podem ser medidas em termos de input e output,
pital já investido, que eles não gostariam de ver desaparecer da investimento e taxas de lucro, afetaram a maneira pela qual os
noite para o dia, será possível entender por que mesmo os que es- fazendeiros avaliaram as vantagens e desvantagens do trabalho
tavam convencidos da superioridade do trabalho livre conti- escravo e determinaram as atitudes que assumiram em face dos
nuavam a se opor à abolição, ou só a aceitavam com a condição projetos de abolição apresentados ao Parlamento.
de que os fazendeiros fossem indenizados pela perda de sua pro- Qualquer tentativa de explicar a Abolição em função ape-
priedade. nas de aspectos econômicos ou demográficos não dá conta do /
Foram os fazendeiros, que abriram fazendas nas zonas pio- processo de desagregação do sistema escravista. Ê, no entanto, ^
neiras e que não dispunham de um plantei de escravos, os maio- impossível prescindirmos da análise das condições econômicas e
res interessados no desenvolvimento da imigração e do trabalho demográficas, se queremos entender o prestígio crescente das
livre. Para eles, a escravidão aparecia como um obstáculo à pro- idéias antiescravistas, bem como o progresso da ação abolicio-
moção da imigração." Mas enquanto os das zonas pioneiras po- nista e o encaminhamento político da Abolição no Parlamento."
50 EMÍLIAVIOfT I DA COSTA DA SENZALA Ã COLÔNIA 39
De fato, as transformações na estrutura econômica não só lado destes abolicionistas moderados e legalistas, existiram ou-
permitiam a um grande número de proprietários de escravos en- tros que propugnaram métodos mais radicais, fomentando agi-
carar com relativa calma a ação abolicionista, como acarretaram tações nas senzalas. Estes eram recrutados principalmente na pe-
o aparecimento de grupos sociais novos, menos dependentes do quena burguesia ou nas camadas inferiores. Os caifases foram,
trabalho escravo e desejosos de adquirir autonomia em relação às nas sua maioria, homens de origem modesta, que desempe-
oligarquias rurais de cuja clientela dependiam e de cuja patro- nharam atividades que do ponto de vista insurrecional eram es-
nagem freqüentemente se ressentiam. Foi entre esses grupos que tratégicas: ferroviários, cocheiros, tipógrafos, mascates e artesãos,
o abolicionismo recrutou o maior número de adeptos. Para mui- na sua maioria negros e mulatos livres ou alforriados, e alguns
tos, a luta pela Abolição foi, como a luta por outras reformas imigrantes imbuídos de idéias socialistas. Estes grupos mais ra-
características desse período, uma arma na luta pelo poder. Esse dicais, que ajudavam escravos fugidos e instigavam a agitação
foi um aspecto que não ficou suficentemente claro em Da senzala nas senzalas, tiveram importante papel na destruição da ordem
à colônia e que mereceria maior desenvolvimento. No livro, estão escravista.^' Mas se houve pretos e mulatos que se distinguiram
identificadas as origens sociais do abolicionismo, mas pouco é nas filerias do abolicionismo, foram também numerosos os que
dito sobre a motivação dos abolicionistas. Uma análise mais de- defenderam a escravidão ou permaneceram indiferentes à causa
talhada dos mecanismos políticos do período tería revelado que o da Abolição. O abolicionismo não se definiu em termos pura-
crescente descontentamento de grupos sociais emergentes em re- mente raciais. Houve muito preto que não foi abolicionista e,
lação ao monopólio do poder pelas oligarquias tradicionais, assim paradoxalmente, fervorosos líderes abolicionistas brancos, como
como conflitos internos entre setores da própría oligarquia (lutas Nabuco, não eram isentos de preconceito racial. ^
entre claques partidárias dentro de cada partido e conflitos inter- Se o abolicionismo ganhou adeptos entre categorias ur-
partidários), levaram muitos indivíduos, nesse período, a apoiar banas, esbarrou na indiferença, se não na oposição organizada,
um grande número de reformas, entre as quais a Abolição. Den- das camadas rurais. Pequenos proprietários e trabalhadores li-
tro desse contexto, o abolicionismo aparece como um instrumento vres das zonas rurais não raro ficaram imunes ao apelo dos aboli-
na luta entre classes e segmentos de classe. cionistas e deram seus votos aos candidatos dos proprietários de
Os abolicionistas pertenciam, na sua maioria, ao que se escravos, de cuja clientela faziam parte. Também a quase totali-
convencionou chamar de "classes médias" urbanas. Muitos dos dade dos fazendeiros de café colocou-se ao lado da manutenção
que se filiaram à Confederação Abolicionista eram médicos, en- da ordem escravista. Seus representantes no Parlamento rejei-
genheiros, industriais, professores, advogados, jornalistas, escri- taram sistematicamente os projetos de lei apresentados entre
tores, artistas ou políticos profissionais. Alguns descendiam de 1850 e 1880 visando à emancipação dos escravos. A Lei do Ventre
tradicionais famílias de fazendeiros, outros vinham da burguesia Livre foi votada graças ao apoio dos representantes de outras
urbana emergente. Havia ainda, entre eles, homens de origem áreas do País, sobretudo do Nordeste, onde o trabalhador livre
modesta, mulatos que tinham tido acesso às camadas superiores vinha substituindo os escravos.
da sociedade através do sistema de clientela e patronagem. Mui- A medida que novos setores da população se converteram
tos estavam comprometidos por laços familiares, profissionais ou ao abolicionismo, os políticos e os partidos descobriram na abo-
políticos com as oligarquias rurais, mas, apesar dessas conexões, lição um novo tema que passaram a usar na luta pelo poder.
eram menos dependentes da ordem escravista do que os fazen- Também os intelectuais do período encontraram na campanha
deiros e revelavam-se, em geral, mais acessíveis à propaganda abolicionista novas fontes de inspiração que lhes garantiam uma
abolicionista. Quem esperar, no entanto, encontrar unanimidade audiência certa entre as populações urbanas. Uma vez convertida
entre esses grupos está fadado ao desapontamento, pois é possível em bandeira política, a emancipação passou a depeiider do jogo
encontrar entre eles muitos indivíduos que continuaram fiéis às dos partidos, como bem assinalou Paula Beiguelman." É preciso
oligarquias, defendendo com ardor os interesses escravistas.» lembrar, no entanto, que a questão só se tomou política porque
Os representantes da média e alta burguesia que se conver- setores da população já se interessavam por ela, antes mesmo que
teram ao abolicionismo mantiveram-se, via de regra, dentro dos os políticos a inscrevessem em suas plataformas. Não fosse a po-
limites da legalidade, buscando soluções por via parlamentar. Ao pularidade crescente das idéias antiescravistas, os políticos não
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EMÍLIAVIOfT I DA COSTA
teriam ousado fazer da emancipação sua bandeira, e nem mesmo y/ zalas. Fazer dela, no entanto, a causa fundamental da abolição é
o Imperador — quaisquer que tenham sido suas veleidades filan- interpretar este fato exclusivamente ao nível dos fenômenos de
trópicas e sua vulnerabilidade à crítica e aos apelos das asso- ^ curta duração (situações conjunturais), minimizando as transfor-
ciações abolicionistas internacionais — teria tido condições de mações estruturais de longa duração que tornaram possível o su-
colocar a questão na Fala do Trono. Além disso, tão ou mais cesso da insurreição dos escravos. ^
importantes do que os interesses partidários em jogo foram os de O protesto do escravo não foi uma invenção do século XIX.
classe, que se expressavam em ambos os partidos. Estudos publi- Desde os primeiros tempos da Colônia existiram tensões entre
cados nos últimos anos revelaram que os fazendeiros tinham senhores e escravos. Negros fugidos, quilombos, levantes de es-
uma representação equivalente em ambos os partidos, dividindo- cravos eram episódios constantes nos anais da sociedade colonial
se os demais membros dos partidos entre outras categorias so- desde o século XVI. A despeito de todos os mecanismos de con-
ciais: profissionais liberais, burocratas, comerciantes etc. Isso trole social cuidadosamente concebidos pelas classes dominantes,
explica provavelmente porque os partidos estiveram internamente elas nunca conseguiram eUminar aquelas formas de protesto.
divididos por ocasião da votação das leis emancipadoras, vendo- Mas, no século XIX, a rebelião dos escravos adquiriu um signifi-
se conservadores e liberais votarem conjuntamente contra ou a cado novo, porque ocorreu num contexto novo. Na história hu-
favor dos projetos, desrespeitando a disciplina partidária e obe- mana, freqüentemente velhos gestos assumem novos significados
decendo aos interesses dos grupos que representavam. e novos significados se manifestam através de gestos tradicionais;
Uma vez transformada em questão parlamentar, a idéia da por isso, o sentido dos gestos só pode ser entendido quando refe-
abolição ganhou suporte cada vez maior. A escravidão passou a rido ao contexto em que eles ocorrem. O protesto do escravo é um
ser vista como instituição condenada a desaparecer, principal- gesto antigo que assume um novo significado, porque a situação
mente a partir da aprovação da Lei do Ventre Livre. É importante global se transformou. No passado, a rebelião dos escravos esbar-
lembrar que se o Parlamento tivesse resistido à pressão abolicio- rara na reprovação coletiva dos brancos. A ética das classes domi-
nista, recusando-se a discutir o assunto e a legislar a respeito, nantes a condenava. As instituições a reprimiam. As cortes de
teria sido impossível chegar-se à Abolição sem profunda convul- justiça puniam com severidade o escravo fugido e a força policial
são social. reprimia com violência as rebeUões dos escravos. Na segunda me-
Em suma, no processo da Abolição, a propaganda ideoló- tade do século XIX, no entanto, a situação era outra. Os escravos
^ gica e a ação parlamentar reforçaram-se mutuamente e o curso de encontravam apoio na justiça e contavam com a simpatia de am-
ambas dependeu do ritmo das transformações estruturais na eco- plos setores da população. A escravidão, que no passado fora vis-
nomia e na sociedade. No entanto, nem as mudanças estruturais ta como uma instituição natural, produto dos desígnios da Divina
na economia, nem a diminuição relativa da população escrava e o Providência, passara a ser encarada como uma instituição conde-
crescimento da população livre, nem as tentativas de substituir o nável e ilegítima a serviço dos interesses de uma minoria.
escravo pelo imigrante, nem a retórica dos abolicionistas, nem a Nessas condições, apoiados pelos abolicionistas, os escravos
legislação emancipadora que pairava como ameaça sobre os se- foram incorporados à ação abolicionista e seus atos de protesto
nhores de escravos desde 1871, nem todas essas condições so- adquiriram um significado político que não tinham anterior-
madas são suficientes para explicar a aprovação final da lei que mente. A agitação abolicionista reforçou a convicção dos escravos
aboliu a escravidão em 13 de maio de 1888. É verdade que, de de serem vítimas de uma instituição iníqua e condenável, forne-
uma maneira ou de outra, todas aquelas condições solaparam ceu-lhes uma ideologia e deu apoio às suas ações insurrecionais.
gradativamente as bases de sustentação do regime escravista, tor- Instigados pelos agentes abolicionistas, eles passaram a denun-
nando o investimento em escravos cada vez mais arriscado e o ciar com mais freqüência às autoridades policiais e juridicas os
trabalho livre cada vez mais viável. Mas, como foi visto, os repre- abusos cometidos pelos seus senhores. Tais denúncias forneciam
sentantes das áreas cafeeiras no Parlamento continuaram a re- argumentos novos aos abolicionistas, que não perdiam ocasião de
sistir à pressão abolicionista até o início da década dos oitenta. O divulgar pela imprensa os horrores da escravidão. A agitação
fator decisivo na mudança de atitude dos fazendeiros das regiões abolicionista criava, assim, condições para que os escravos se
cafeeiras, principal reduto do escravismo, foi a rebelião das sen- manifestassem e fossem ouvidos. A insurreição dos escravos, por
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sua vez, dava novo alento à agitação abolicionista, acelerando o sucedidos não tivessem as condições econômicas internas e inter-
processo de desintegração do sistema escravista. nacionais se alterado de modo a tornar mais viável a adoção do
Contando com a simpatia e o apoio de setores da população trabalho livre. Na falta de alternativas, os interesses escravistas
que se tinham convertido ao abolicionismo, os escravos passaram mobilizados teriam tornado muito mais difícil, se não impossível,
a fugir em massa das fazendas, desorganizando o trabalho e for- o trabalho dos abolicionistas. Essa foi a situação em que se en-
çando os fazendeiros a aceitarem a abolição como fato inevitável e contraram José Bonifácio, Burlamaque e outros, à época da Inde-
até mesmo desejável, por ser a única maneira de pôr um para- pendência, quando falharam ao usar dos mesmos argumentos
deiro à fuga dos escravos e de restabelecer a ordem nas fazendas. utilizados cinqüenta anos mais tarde com sucesso por Joaquim
Com o objetivo de reter a mão-de-obra, muitos senhores de es- Nabuco em favor da abolição. Faltavam, na época da Indepen-
cravos concederam-lhes alforria, em troca de prestação de ser- dência, condições objetivas para a efetivação desse ideal. Não
viços por um determinado número de anos. As manumissões em fossem, pois, aS transformações ocorridas na sociedade no de-
massa eram a resposta dos senhores à fuga dos escravos. ^^ Mas correr do século XIX, o trabalho dos abolicionistas teria sido mui-
esse expediente não foi suficiente para deter os escravos que con- to mais difícil, se não impossível.
tinuaram a fugir das fazendas. Foi então que os fazendeiros reco- A intensificação da ação abolicionista acarretou uma radi-
nheceram a necessidade da Abolição. calização do processo, a partir dos anos setenta. Os fazendeiros
Por mais importante, no entanto, que tenha sido a agitação organizaram centros de lavoura, clubes secretos e polícia parti-
dos escravos no período imediatamente anterior à abolição, não cular, com o intuito de defender pelas armas, se preciso fosse,
seria ela capaz de destruir o sistema escravista, não estivesse este suas propriedades; perseguiram líderes abolicionistas e expul-
já desmoralizado e relativamente inoperante em várias regiões do saram de suas comunidades juízes e advogados que, no escmpu-
país, onde outras alternativas para o problema da mão-de-obra loso exercício de suas funções, davam ganho de causa a escravos
haviam surgido. Não fossem, portanto, as mudanças na estrutura vitimados por seus senhores. Fazendeiros e asseclas atacaram
econômica e social que tomaram possível a utilização do trabalho jornalistas, invadiram os edifícios onde a imprensa abolitionista
livre, não tivessem os fazendeiros de café e de açúcar encontrado funcionava, desmantelando suas instalações ao mesmo tempo
alternativas para o trabalho escravo, não tivesse o Parlamento que controlavam as urnas para evitar que abolicionistas fossem
passado uma legislação emancipadora que condenava a escra- eleitos.^ Mas essa oposição sistemática e organizada serviu ape-
vidão a desaparecer gradualmente, não tivesse a campanha abo- nas para acirrar ainda mais os ânimos. Os abolicionistas intensi-
licionista convencido amplos setores da população da injustiça do ficaram sua campanha, tornaram-se mais agressivos em suas pre-
cativeiro e da legitimidade do protesto do escravizado e a revolta tensões e mais radicais em seus métodos. Como era de se esperar,
dos escravos teria provavelmente sido reprimida com violência, os conflitos ecoaram no Parlamento. Nos anos que antecederam a
como sucedera tantas vezes durante o período colonial. E prova- Abolição, multiplicaram-se as petições de parte a parte na Câ-
velmente nem mesmo os escravos teriam ousado tanto. mara dos Deputados. Os abolicionistas denunciavam a perse-
A ação abolicionista foi vital para a criação de uma opinião guição a seus companheiros e a violação dos direitos de liberdade
pública favorável á Abolição. Faltasse a pressão que os abolicio- de expressão garantidos pela Constituição. Os proprietários de
nistas exerceram no Parlamento, forçando a passagem de leis í escravos invocavam as garantias constitucionais e exigiam que o
emancipadoras (ainda que elas fossem, de imediato, relativa- j governo protegesse o direito de propriedade ameaçado, segundo
mente inócuas); faltasse seu trabalho de educação da opinião pú- eles, por elementos "subversivos e agitadores da ordem pública",
blica, ora apelando para o sentimentalismo do povo, ora falando que "alçavam em terras brasileiras a bandeira vermelha da Inter-
aos interesses dos fazendeiros ao argumentar em favor da supe- nacional". Confundindo seus interesses pessoais com os da Na-
rioridade do trabalho livre; faltasse o trabalho dos grupos mais ção, os fazendeiros vaticinaram que a abolição causaria a mina
radicais que instigaram os escravos a fugir e lhes deram cober- da economia nacional e provocaria o caos social. Mas, a despeito
tura, a abolição não teria ocorrido em maio de 1888. Por isso, têm da resistência dos proprietários de escravos e de seus represen-
razão os que valorizam a ação abolicionista. Mas séria ingênuo tantes no Parlamento, a campanha abolicionista avançou, con-
pensar que os abolicionistas poderiam ter se organizado e ser bem quistando amplos setores da opinião pública.
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à medida que o movimento abolicionista progredia e a es- Estrada, em A abolição-, esboço histórico, 1831-1888 (Rio de Janeiro, 1918) e por
trutura escravista revelava suas fraquezas, os defensores da or- Mauricio Gouveia, em História da escravidão (Rio de Janeiro, 1955).
dem mudaram o conteúdo de seus argumentos.^ Não mais fa- (2) Num livro hoje clássico, Eric Williams relacionou a crise do sistema
escravista com o desenvolvimento do capitalismo: Capitalism and slavery (Chapel
lavam dos benefícios ou das vantagens da esciavidão. Conside- Hill, 1944). O livro de Williams foi criticado por vários autores; veja-se em parti-
ravam-na um "mal necessário" que deveria ser extinto "quando cular: Roger Anstey, "Capitalism and slavery; a critique" (The Economic History
as condições o permitissem". Pressionados pela opinião pública Review, 2nd. ser. XXL, 1968, pp. 307-20). Sobre o assunto, veja-se ainda David
internacional e acuados pela agitação abolicionista, aterrori- Davis, The problem of slavery in the age of revolution, 1770-1823 (Ithaca, Cornell
zados, finalmente, pela rebelião das senzalas, os proprietários University Press, 1975).
(3) O livro básico para o estudo do comportamento britânico em relação
convenceram-se de que a Abolição era inevitável. A partir de en- ao tráfico de escravos no BrasU é o de Leslie Bethell, The abolition of the Brazilian
tão, sua argumentação enfatizou a necessidade de medidas pré- slave trade-, Brazil and the slave question, 1807-1869 (Cambridge, 1970).
vias que garantissem o suprimento de trabalhadores livres e asse- (4) Estudos detalhados sobre os vários aspectos relativos à população es-
gurassem a paz social. A maioria se dispôs a aceitar a Abolição, crava foram feitos por Robert Slenes em uma tese de doutoramento em vias de
desde que os proprietários de escravos fossem indenizados. Ao publicação nos Estados Unidos. Essa tese foi apresentada à Universidade de
Stanford, em 1975, sob o título The demography and economics of Brazilian sla-
final, muitos abandonaram até mesmo essa pretensão. Chegaram very. 1850-1888. Baseando-se em documentos pouco utilizados pela historiografia
a desejar a Abolição por acreditarem que esta medida era essen- tradicional e utilizando-se de métodos quantitativos, o autor fez uma importante
cial para que a ordem social fosse restabelecida e o trabalho nas contribuição para o estudo da população escrava. Algumas de suas afirmações
fazendas reorganizado. Os poucos que resistiram até o fim foram contradizem opiniões existentes na literatura e serão discutidas posteriorinente.
forçados a aceitar uma situação de fato — uma situação que não Dados sobre a população escrava encontram-se também no estudo pioneiro de
desejavam, mas que não puderam evitar. Maria Luiza Marcílio, La ville de São Paulo, peuplement et population 1780-
1850 d aprés les registres paroissiaux et les recensements anciens (Paris, 1968);
A Abolição não provocou a catástrofe social vaticinada pe- Warren Dean, Rio Claro, a Brazilian plantation system, 1820-1920 (Stanford,
los defensores da ordem, não levou a nação à ruína e ao caos, 1976). Slenes e Dean, seguindo as sugestões da historiografia americana mais re-
cente (Vogel, Engermann e Guttman), utilizaram-se de técnicas quantitativas
embora, certamente, tenha significado para alguns proprietários para demonstrar que o número de escravos casados é bem maior do que a histo-
de escravos a ruína pessoal e a perda de status. A Abolição não riografia tradicional faz crer. Em Da senzala à colônia, baseando-me em depoi-
correspondeu tampouco às expectativas dos abolicionistas. Ao mentos de senhores de escravos e de viajantes, bem como na literatura abolicio-
contrário do que estes esperavam, ela não representou uma rup- nista e religiosa, observei que havia grande "promiscuidade" nas senzalas. As
tura fundamental com o passado. As estruturas arcaicas de pro- observações de Dean e de Slenes, baseadas em livros de matricula, parecem con-
dução, a economia essencialmente monocultora e de exportação, tradizer aquela opinião. É importante observar, no entanto, que ambos mos-
traram também que é grande o número de crianças ilegítimas, cujo nome do pai
vulnerável às oscilações do mercado internacional, o monopólio não aparece nos registros consultados. Isso nos leva a crer que há mais "promis-
da terra e do poder por uma minoria, a miséria e a marginali- cuidade" nas senzalas do que aqueles autores admitem. Levando-se em conside-
zação política e econômica da grande maioria da população, as ração o caráter contraditório dos dados, pode-se concluir que estamos longe de
conhecer a organização familiar dos escravos no Brasil. No meu entender, qual-
formas disfarçadas de trabalho forçado e as precárias condições quer estudo a esse respeito deverá começar pela identificação das práticas sexuais
de vida do trabalhador rural sobreviveram à abolição. Realizada e da organização familiar nas regiões africanas, pois essa tradição deve ter influ-
principalmente por brancos e negros ou mulatos pertencentes à enciado o comportamento do escravo, principalmente no Brasil, onde o tráfico
sua clientela, legitimada por um ato do Pariamento, ratificada perdurou até os meados do século XIX. A partir desse estudo é possível que se
pelas classes dominantes, a abolição libertou os brancos do fardo venha a descobrir que, apesar dos esforços da Igreja católica e dos senhores de
escravos, um grande número de escravos continuou, dentro do possível, a adotar
da escravidão, abandonando os ex-escravos à sua própria sorte.» estruturas familiares características das suas culturas de origem, nas quais, tal-
vez, não houvesse tabu a respeito da virgindade feminina. Em algumas dessas
culturas, por exemplo nas regiões onde dominavam os cultos muçulmanos, tolvez
Notas ao prefácio à segunda edição a concubinagem fosse aceita como legítima ou talvez imperassem formas várias de
poligamia. Por trás da fachada de monogamia, imposta pelos senhores e r e ^ -
trada pelos censos e matriculas de escravos, pode existir uma realidade muito
(1) Essa é a orientação adotada por Evaristo de Morais, em A campanha mais complexa que uma análise simplesmente quantitativa não é capaz de apre-
abolicionista, 1872-1888(Rio de Janeiro, 1924), idem A lei do ventre livre (Rio de ender. Se admitirmos que os padrões familiares e sexuais dos escravos são dife-
Janeiro, 1917) e em Extinção do tráfico de escravos no Brasil, por Osório Duque- rentes dos padrões dos senhores, porque os escravos pautam-se por outras regras.
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isso nos permitirá entender melhor não s6 a pecha de promiscuidade que os se- dados relativos a preço de escravos sugere, é que o aumento do preço de escravos
nhores lançam contra eles, como também o grande número de crianças ilegí- nas zonas rurais a partir da cessação do tráfico, em virtude da demanda crescente
timas que os próprios censos registram. É preciso não esquecer ainda que os cen- de mão-de-obra por causa da expansão das culturas, tenha levado os senhores de
sos e registros de escravos são eles mesmos limitados como fonte de informação, escravos das cidades, onde o escravo não é tão necessário, a venderem seus es-
porquanto foram elaborados por indivíduos que, de uma forma ou de outra, es- cravos para as zonas rurais, o que explicaria o avanço do trabalho livre nas zonas
tavam comprometidos com os valores da sociedade branca. Além disso, os pró- urbanas. Essa hipótese parece ser confirmada tanto pelas observações de Dean,
prios dados existentes são insuficientes para reconstituir-se a família escrava, quanto pelas de Slenes, quando estes autores analisam os dados sobre a prove-
porque registram apenas os escravos casados, deixando de lado os que vivem em niência de escravos na zona cafeeira. O estudo detalhado da flutuação dos preços
concubinagem. Ora, o número de escravos legalmente casados é bastante pe- de escravos revela ainda outras tendências interessantes. O preço das mulheres,
queno. O censo de 1872 acusa apenas nove por cento (9%), entre a população embora inferior ao dos homens, cresce imediatamente apôs a cessação do tráfico,
livre registram-se vinte e sete (27%) de pessoas casadas. Em 1888, a percentagem o que sugere maior interesse pela reprodução da força de trabalho escrava a partir
de escravos casados aumenta ligeiramente, atingindo 10,6%. O baixo índice de da interrupção do tráfico. Na década dos setenta, no entanto, a diferença entre o
casamentos entre a população escrava, em comparação com os índices relativos à preço do trabalhador feminino e masculino cresce novamente em favor do escravo
população livre, tanto pode ser indicativo da falta de interesse por parte dos es- masculino. Essa inversão pode ser atribuída aos efeitos da lei do ventre livre.
cravos como das dificuldades que eles têm em legalizar suas uniSes. Ê provável, Carvalho de Mello notou que, embora o preço de escravos tenha diminuído a
no entanto, que a primeira hipótese seja mais verdadeira, pois nas zonas urbanas, partir de 1881, nas regiões cafeeiras, o aluguel de escravos se mantém mais ou
onde, em princípio, há maior facilidade para a legalização dessas uniões, devido menos o mesmo sem grandes alterações até a abolição. Daí conclui esse autor que
ao maior número de igrejas, o número de escravos casados é ainda menor do que a queda dos preços de escravos revela incerteza por parte dos fazendeiros quanto
nas regiões rurais. Dados relativos a 1888 mostram que, num total de 7488 es- ao futuro da instituição e não inadequação do trabalho escravo às condições de
cravos vivendo na cidade do Rio de Janeiro, apenas 38 são casados. Se é difícil produção, como haviam sugerido vários autores antes dele. Argumenta também
interpretar esses dados, ainda mais difícil é interpretar a enorme variação re- que os senhores continuam preferindo o escravo ao trabalhador livre e a prova
gional. Como explicar, por exemplo, que no Pará, em 1888, apenas 1% dos es- dessa preferência, na sua opinião, são os altos aluguéis de escravos. Poderíamos
cravos são casados, enquanto em São Paulo 22% de escravos são casados, em Mi- argumentar, no entanto, que, no momento, é mais fácil alugar escravos do que
nas 17% e na Bahia 4,9%? Em que medida essas estatísticas nos permitem com- encontrar trabalhadores assalariados. Ao mesmo tempo, a queda no preço de
preender a organização familiar dos escravos? São elas suficientes para destruir a compra dos escravos tanto pode significar, como quer Pedro de Mello, uma ava-
opinião corrente entre os contemporâneos de que existe "promiscuidade" nas liação pessimista sobre o futuro da instituição por causa da pressão abolicionista,
senzalas? A conclusão a que se chega é de que, apesar dos louváveis esforços que como pode refletir a relutância dos fazendeiros em continuarem a investir num
os historiadores têm feito nos últimos anos, a questão da família escrava no Brasil tipo de trabalhador que, por razões econômicas, políticas e ideológicas, tomara-se
é ainda uma questão aberta. cada vez menos adequado às necessidades da lavoura em expansão.
(5) Dados mais precisos sobre preços de escravos podem ser encontrados (6) Tanto a mortalidade quanto a natalidade foram alvo de cuidadosos
também nos autores citados anteriormente (Slenes, Dean) e ainda em Pedro Car- estudos por parte de Peter Eisemberg, Warren Dean, Robert Slenes e Carvalho de
valho de Mello, The economics of slavery on Brazilian coffee plantations, 1850- Mello. Utilizando métodos quantitativos, esses autores mostraram que existe uma
7 ( D e p a r t m e n t of Economics, University of Chicago, 1977). Idem, "Aspectos balança negativa de crescimento da população escrava no século XIX. Segundo
econômicos da organização do trabalho na economia cafeeira do Rio de Janeiro, Slenes, a alta mortalidade se explica mais pelas condições sanitárias do pds do
1850-1888", Revista Brasileira de Economia, vol. 32, 1 (jan., março, 1978), pp. que pelos maus tratos dados aos escravos. No entanto, na minha opinião, o fato de
19-67. E em Peter Eisemberg, The sugar industry in Pernambuco; modernization que a mortalidade é maior entre os escravos do que entre os homens livres sugere
without change. /S40-Í 970 (Berkeley, 1974), pp. 154-5. Esses estudos mostram que que existe uma correlação especial entre as precárias condições de vida dos es-
OS pr^os de escravos em São Paulo sobem abruptamente na década dos cinqüenta, cravos e sua alta mortalidade. Se todos concordam que a mortalidade é alta, há,
depois da cessação do tráfico; a partir dtí, continuaram a subir mais gradual- no entanto, grande divergência entre os autores quanto aos índices de mortali-
mente durante as duas décadas seguintes até a década dos oitenta, quando de- dade. Warren Dean chegou à conclusão de que ela atingiu a 470 por mil na repão
clinam. Os preços nas províncias açucareiras eram inferiores aos das províncias de Rio Claro. Slenes, estudando a população escrava na Corte, diz que esta dimi-
cafeeiras e apresentam tendência ligeiramente diversa. Se bem que subam abrup- nuía 1,3 por cento ao ano. Das 36807 crianças nascidas e registradas entre 1871 e
tamente também na década dos cinqüenta, depois da cessação do tráfico, co- 1887 como filhos de mães escravas, 9 546 morreram, o que dá um índice de morta-
meçam a decair a partir do fim dessa década, chegando a seu ponto mais baixo na lidade de 232 por mil, entre zero e dezesseis anos. Conclui^esse autor que, embora
década dos setenta. Esse fato pode ser atribuído à queda do açúcar, segundo su- não tão alta quanto os senhores diziam, a mortalidade infantil é suficientemente
gere Slenes, mas também pode ser explicado pela existência de maior oferta de alta para fazer a balança de nascimentos e mortes negativa. Isso porque, segundo
mão-de-obra livre em virtude das secas. Um estudo dos preços revela que, embora ele, o índice de natalidade, embora seja mais elevado do que a historiografia
seja possível estabelecer uma correlação entre o preço dos produtos de exportação tradicional admitiu (equivalendo, de fato, aos índices da maioria dos países euro-
e o preço dos escravos, essa correlação nem sempre é perfeita, sendo, às vezes, peus), é inferior ao da mortalidade. Contrariamente ao que se dá nos Estados
mais importante a expectativa dos fazendeiros sobre o futuro da escravidão e Unidos, onde os índices de natalidade são bastante altos, a população escrava no
sobre a lucratividade das suas empresas do que as condições reais do momento. Brasil tende a diminuir a partir da cessação do tráfico.
Uma idéia que ainda não foi suficientemente explorada, mas que a análise dos
(7) Vários estudos publicados posteriormente a Da senzala à colónia dis-
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cutiram a questão do tráfico interno e forneceram dados quantitativos interes- (12) A questão da produtividade e da lucratividade do trabalho escravo é,
santes que nos permitem avaliar com maior exatidão o volume do tráfico. Entre tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, uma das mais controversas. Nos Es-
esses estudos destaca-se o de Herbert Klein, The middle passage; comparative tados Unidos, Alfred Conrad e John Meyer, num estudo publicado em 1958, "The
studies in the Atlantic slave trade (Princeton University Press). Conclui que a economics of slavery in the antebellum South", Journal of Political Economy, 66
maioria dos escravos das regiões cafeeiras são originários das regiões de economia (abril, 1958), divergindo de opiniões correntes na historiografia americana, pro-
decadente vizinhas. Para ele, o tráfico intraprovincial é mais importante do que o curaram demonstrar a produtividade do trabalho escravo. Também Vogel e En-
tráfico entre as províncias. Segundo Klein, o tráfico interno montava a cerca de germann, em um livro muito debatido e criticado, chegaram a essa conclusão
6000 escravos anuais (op. cit., pp. 97-8). Observa este autor que os escravos ur- (Time on the cross. The economics of American negro slavery, 2 vols., Boston,
banos foram vendidos para as zonas cafeeiras, de forma que o trabalho Uvre cres- 1974). Esses autores foram criticados por Paul A. David e Peter Temin, "Capi-
ceu nas cidades. Robert Conrad dá grande importância ao tráfico entre as pro- talist master, bourgeois slaves", numa obra coletiva publicada por Paul David,
víncias do Norte e do Sul, afirmando que o tráfico interno se inicia imediatamente Herbert Gutman, Richard Sutch, Peter Temin e Gavin Wright: Reckoning with
após a interrupção do tráfico africano, em 1850. Já Slenes (op. cit.) acha que o slavery (New York, W. Norton, 1978, pp. 33-54). Igualmente critico da metodo-
tráfico entre o Norte e o Sul inicia-se muito mais tarde. Parece-me que a razão logia e das conclusões a que chegaram Vogel e Engermann é Gavin Wright, The
está com aqueles que acreditam que o tráfico entre o Norte e o Sul inicia-se cedo. political economy of the cotton south (New York, W. Norton, 1978). No Brasil, a
Várias leis foram aprovadas em Pernambuco, como mostra Eisemberg (op. cit., questão da produtividade do trabalho escravo e da viabilidade econômica da es-
p. 167), na Bahia e em outras províncias desde os anos cinqüenta, com o intuito cravidão também atraiu a atenção dos historiadores. Warren Dean, em seu estudo
de inibir esse tráfico e defender os interesses dos plantadores locais. Isso parece sobre Rio Claro, afirma que o trabalho livre era mais produtivo que o escravo.
indicar que a pressão, por parte dos cafeicultores, sobre os mercados de escravos Essa também é a opinião de Octavio lanni, Fernando Henrique Cardoso e Flo-
do Nordeste, começa a partir da interrupção do tráfico, se bem que ela tenda a restan Fernandes. Gorender, em O escravismo colonial, afirma que o trabalho
aumentar nas décadas seguintes. Usando registros dos portos do Rio e de Santos, escravo continuava a ser rentável, pelo menos até o momento em que sua manu-
Slenes (p. 123) calcula que, entre 1873 e 1881, entraram cerca de 71 COO escravos. tenção se tomou inviável Jjor causa da desorganização do trabalho nas fazendas
Esses dados, evidentemente, não incluem os entrados por outras vias. Calcula ele devido à campanha abolicionista (op. cit., p. 561). Também esta é a conclusão a
que, em virtude do tráfico interno. Ceará e Rio Grande do Norte perderam, res- que chegaram Pedro Carvalho de Mello e Robert W. Slenes. Este último desen-
pectivamente, 37,6% e 33,3% de seus escravos. Os estudos quantitativos acima volve sua argumentação num ensaio publicado na Revista Brasileira de Eco-
mencionados permitem hoje uma visão muito mais completa do que a que tínha- nomia, vol. 32, 1, jan., mar. 1978, intitulado "Aspectos econômicos da organi-
mos há dez anos atrás. zação do trabalho na economia cafeeira do Rio de Janeiro, 1850-1888". Jaime
(8) Estudando a região açucareira de Pernambuco, Peter Eisemberg Reis, em "Abolition and the economics of slaveholding in northeast Brazil" (Bo-
observa que os fazendeiros substituem gradualmente seus escravos por trabalha- letim de Estúdios Latino-Americanos y del Caribe, trabalho originalmente publi-
dores livres. Nos meados do século, segundo ele, os trabalhadores escravos predo- cado pelo Institute of Latin American Studies, Glasgow University, sob o título
minavam nas fazendas na proporção de três para um, mas em 1872 o número de "Abolition and the economics of slaveholding in northeast Brazil"), comparando
trabalhadores livres já era superior ao dos escravos (Eisemberg, p. 181). OS custos de manutenção dos escravos com os dos trabalhadores livres, chega à
conclusão de que o trabalho livre só se tornava economicamente atraente quando
(9) Robert Slenes discorda da opinião corrente na literatura de que os os salários eram inferiores a oitocentos réis diários. Acima desse nível o trabalho
fazendeiros de açúcar, afetados pela crise de produção, venderam seus escravos escravo era mais remunerador. Segundo ele, entre 1870 e 1880, os salários se
para o Sul do País. Afirma ele que a grande maioria dos escravos que saíram do mantêm ao nível de ISOOO, com exceção dos anos de seca (1877 a 1879), quando
Nordeste provinham de áreas não açucareiras. sofrem um declínio acentuado mantendo-se entre $500 e $600. A partir de 1880
(10) Veja-se, por exemplo, o estudo de Warren Dean sobre Rio Claro e eles declinam. Reis conclui que a escravidão continuava economicamente viável e
Thomas Holloway, "Immigration and abolition. The transition from slave to free atraente como forma de trabalho até os anos finais da escravidão. Eisemberg (op.
labor in the São Paulo coffee zone" in Essays concerning the socio-economic his- cit., p. 333) demonstra que o custeio do escravo requeria, a partir da década dos
tory of Brazil and Portuguese India, editado por Dauril Alden and Warren Dean sessenta, mais dispêndio de capital do que o custeio do trabalhador livre. 6 im-
(Gainesville, 1977), pp. 150-77. portante notar que, como Hélio Castro bem observou, o fato de o investimento em
(11) As primeiras ferrovias privadas são construídas em 1870. Simultanea- escravos ser lucrativo para os fazendeiros não significa necessariamente que o
mente, aperfeiçoam-se os métodos de produção do açúcar. Até 1854, segundo sistema escravista como um todo seja lucrativo. Analisando os custos de repro-
Eisemberg, 80 por cento dos engenhos dependiam ainda da força animal, 19 por dução do escravo, este autor conclui que a renda econômica da escravidão apre-
cento da força hidráulica e apenas 1 por cento era movido a vapor. Em 1881, vinte senta uma tendência ao declínio entre 1877 e 1887, tornando-se a escravidão in-
e um e meio por cento já eram movidos a vapor. Vários outros tipos de melhora- viável economicamente na década dos oitenta ("Viabihdade econômica da escra-
mentos foram introduzidos durante esse período, aumentando a produtividade do vidão no Brasil, 1880-1888", Revista Brasileira de Economia, XXVII, 1, jan.,
trabalhador. Esta aumenta de 1.350 kg por trabalhador em 1845 para 3.018 kg março, 1973, pp. 43-67). Os cálculos sobre o custeio do trabalho escravo variam de
em 1876 (Eisemberg, p. 61). Para maiores detalhes, consulte-se o valioso trabalho autor para autor, dependendo do critério utilizado, mas de maneira geral eles não
desse autor sobre a indústria açucareira em Pernambuco. Veja-se ainda David se distanciam demasiado dos feitos em Da senzala à colônia. Warren Dean, por
Denslowlr., Sugar production in northeastern Brazil and Cuba, 1858-1908, (tese exemplo, em seu livro sobre Rio Claro, calcula os gastos em 253$000 (op. cit., p.
de doutoramento em Economia, Universidade de Yale, 1974). 63, edição em inglês). Nesse cálculo, inclui depreciação e juros sobre o capital ini-
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ciai de um conto e quinhentos e mais salário do ex-feitor. Não inclui, no entanto, a necessariamente contraditórias como parecem à primeira vista, pois pode se argu-
alimentação do escravo, pois argumenta que o escravo alimenta-se a si mesmo. Se mentar que, se bem a preocupação em introduzir imigrantes nas áreas cafeeiras
fosse incluída a alimentação, segundo nossos cálculos, aquela quantia totalizaria tenha surgido apenas a partir do momento em que o tráfico de escravos é amea-
472S000 anuais, ou aproximadamente 375000 mensais, quantia superior à dis- çado de interrupção, também é verdade que no momento em que se constitui um
pendida com o salário de trabalhador livre. Eisemberg, ao comparar o custo do grupo de interesses ligados à imigração, este será levado a reconhecer que a escra-
trabalho livre com o do trabalho escravo, computou 15% de juros anuais sobre o vidão constitui, de certa maneira, um obstáculo ao desenvolvimento da imigração.
capital, depreciação de 7% ao ano, alimentação e vestuário e chegou à conclusão Para maiores detalhes sobre a imigração consulte-se Warren Dean, Rio Claro, a
que, em 1880, o custo de manutenção do escravo chegara a 19$174 mensais na Brazilian plantation system, 1820-1920, ed. cit.; Michael Hall, The origins of
região de Pernambuco, numa época em que os salários eram de 16J000. Anos mass immigration in Brazil, 1871-1914 (tese de doutoramento, Columbia Univer-
depois, em 1887, a situação alterar-se-á. O custo de manutenção do escravo mon- sity, 1970); Lucy Maffei Hunter, Imigração italiana em São Paulo, 1880-1889
tava a 111000 e o do trabalhador livre a 131500. Jaime Reis, calculando juros de (tese apresentada à USP, 1971); Thomas HaUoway, op. cit.
10% e amortização de 10% do capital investido, mais o ano de depreciação, ali- (17) Peter Eisemberg, baseando-se nos Anais do Congresso Agrícola de
mentação e vestuário, concluiu que o custo sobe constantemente entre 1850 e 1878, afirma que não há grande diferença entre as opiniões dos fazendeiros do
1880, tornando o trabalho escravo menos.lucrativo do que o trabalho livre. Vale do Paraíba e os do Oeste Paulista, no que diz respeito à política de mão-
(13) Pedro Carvalho de Mello, em diversos estudos, demonstrou que o de-obra. "A mentalidade dos fazendeiros no Congresso Agrícola de 1878", in José
capital investido em escravos é tão remunerativo quanto o investido em outras Amaral Lapa, Modos de produção da realidade brasileira, Petròpolis, 1980, pp.
áreas. Calculando a taxa de retomo do investimento em escravos do sexo mascu- 167-95. Eisemberg não é o único a questionar a opinião tradicionalmente aceita
lino entre vinte e vinte e nove anos, chega à conclusão que ela oscilou entre 11,5% de que há profundas diferenças entre os fazendeiros do Oeste e do Vale do Pa-
e 13% entre 1870 e 1880, enquanto o capital investido em outros tipos de inves- raíba. Uma análise de documentação mais ampla demonstra, no entanto, a exis-
timento produzia de 10 a 12%. A partir daí, conclui que o investimento em es- tência de profundas divergências entre os fazendeiros das duas regiões. Os anais
cravos era tão lucrativo quanto outras formas de investimento, o que, no seu da Assembléia Legislativa da Província de São Paulo dos anos setenta contêm
entender, desqualifica o argumento daqueles que acreditam que o investimento vários debates que revelam conflitos de pontos de vista entre os fazendeiros do
em escravos se tornava cada vez menos interessante. É preciso lembrar, no en- Vale do Paraíba e os do Oeste Paulista a propósito de decisões relativas à imi-
tanto, que os fazendeiros procuraram, sempre quando possível, diversificar seus gração, construção de estradas de ferro e uso dos recursos do Estado. A impressão
investimentos para se proteger contra as eventualidades de uma crise que afetasse que nos fica é de que existe uma luta pelo poder entre esses dois grupos. O conflito
a produção cafeeira. Assim é que, como mostra Warren Dean, o barão do Rio chegou a tal ponto que Joaquim Floriano de Godói chegou a propor, em um de
Branco possuía fazendas, propriedades imobiliárias e ações de estrada de ferro seus livros, a criação'da Província do Rio Sapucaí, que separaria o Vale da pro-
que valiam três vezes o valor de sua fazenda e ainda emprestava dinheiro a juros. víncia de São Paulo. Há, além dessas, outras evidências que revelam diferenças
Pode-se demonstrar que a maioria dos grandes fazendeiros, nesse periodo, pro- entre aqueles dois grupos. As atas da Convenção Republicana de Itu indicam que
curou quando possível fazer o mesmo. Pode-se ainda argumentar que, com a am- a maioria dos delegados presentes é do Oeste Paulista, sendo a representação do
pliação das oportunidades de investimento, a imobilização de capitais em escravos Vale do Paraíba pouco significativa. Um estudo da distribuição da população
tornou esse tipo de trabalho gradualmente menos atraente do que o trabalho livre, imigrante em São Paulo mostra, também, que a maioria deles localizou-se no
que dispensava um investimento inicial. Oeste Paulista. Além disso, a maioria dos viajantes que passaram pela província
(14) Carvalho de Mello e Robert Slenes, em Análise econômica da escra- no final do século comenta a diferença entre as duas regiões; enquanto a grande
vidão no Brasil, argumentam que, do ponto de vista do empregador, o escravo é maioria das fazendas do Vale está em decadência, no Oeste (principalmente o
um investimento semelhante aos bens de capital. A partir dm, concluem que ar- Oeste mais novo), onde a produtividade é mais alta, as fazendas estão em ex-
gumentar que o investimento em escravos é intrinsecamente menos racional do pansão. Portanto, se existe, como parece ter existido, diferença no comporta-
que o emprego de trabalhadores livres equivale a afirmar que qualquer investi- mento dos fazendeiros do Vale do Par^ba e do Oeste Paulista, isso não é devido a
mento de capital a longo prazo (em máquinas, por exemplo) é menos racional do uma simples diferença de mentalidades, mas a uma convergência de fatores. Pri-
que o emprego de mão-de-obra assalariada. Esses autores parecem esquecer que, meiramente, os fazendeiros do Vale correspondem na sua maioria a uma elite
quando se compara o escravo com o trabalhador livre, comparam-se dois equi- cafeeira mais antiga. Sua fazendas desenvolveram-se em função do trabalho es-
valentes, isto é: dois homens com potencial teoricamente semelhante; a diferença cravo. Segundo, essa elite economicamente poderosa até 1870, consegue uma po-
é que o primeiro requer um investimento inicial, que o segundo dispensa. Já o sição relativamente privilegiada dentro do sistema político, tanto ao nível pro-
investimento em maquinário se justifica porque a máquina é capaz de produzir vincial quanto ao nível do Império. Com o desenvolvimento do café nas regiões do
muitas vezes mais do que o homem. Não cabe, portanto, fazer aquela compa- Oeste Paulista, surge aos poucos uma elite que irá competir com as elites tradi-
ração. cionais. Os fazendeiros das zonas pioneiras, em que a produtividade é mais alta,
(15) Vários autores têm tratado com minúcia das despesas requeridas com gozam de uma situação economicamente privilegiada, têm mais recursos à sua
o sustento do escravo e sua reprodução. disposição nos últimos anos do Império e podem se lançar mais facilmente em
(16) Paula Beiguelman, em Formação política do Brasil, considera o inte- vários tipos de empresas (não porque sejam inerentemente mais empresariais,
resse pela imigração um dos fatores mais importantes do abolicionismo. Já Go- como quer Toplin, mas porque dispõem de maiores recursos). Por outro lado,
render, em O escravismo colonial, conclui que o imigrantismo é que ê uma de- como suas fazendas se formam num período em que a abolição paira como uma
corrência do abolicionismo e não vice-versa (pp. 566-72). As duas opiniões não são ameaça sobre a propriedade escrava, eles são obrigados a pensar no problema do
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trabalho em termos novos. Por isso, estarão mais abertos às experiências com o parlamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
trabalho livre. Ao mesmo tempo que esses adquirem uma posição privilegiada, do Universidade Federal de Minas Gerais. Do mesmo autor. Elite and state building
ponto de vista econômico, aspiram, cada vez mais, à liderança politica, tanto ao in imperial Brazil, Stanford University, 1974 (tese de doutoramento), traduzido
nível provincial, quanto ao nível nacional. Tudo isso contribui para diferenciá- para o português: A construção da ordem. A elite política imperial. Rio de Ja-
los dos fazendeiros do Vale. Há quem sugira, mesmo, que é preciso distinguir, neiro, 1980.
não apenas dois, mas três grupos diversos: os do Vale, os do Oeste mais antigo (25) Essa é a posição de Robert Brent Toplin, The abolition of slavery in
(arredores de Campinas e Itu) e os do Oeste mais novo. Essa é a posição de Paula Brazil (New York, Atheneum, 1972). Carvalho de Mello também parece subes-
Beiguelman e de Robert Toplin. Se bem que do ponto de vista estritamente eco- timar as condições estruturais quando considera as causas políticas o fator de-
nômico, essa categorização seja correta, ela parece não ter alcançado grande ex- terminante da abolição, sem levar em consideração as transformações econô-
pressão no plano político e ideológico. Só uma pesquisa mais detalhada poderá micas, sociais e ideológicas que tomaram o abolicionismo possível.
decidir sobre as vantagens desse tipo de categorização. (26) Prática usada desde o periodo colonial, a alforrialparece ise ter tor-
(18) A maioria dos autores que têm estudado, nos últimos anos, a tran- nado mais freqüente nos últimos anos do Império, em virtude da campanha abo-
sição do trabalho escravo ao trabalho livre nas regiões cafeeiras, não se utilizou de licionista e da rebelião dos escravos. Estudos recentes permitem uma avaliação
uma abordagem dialética. Para Toplin, o fator determinante da abolição é a re- mais precisa do fenômeno. Segundo Slenes, o índice de manumissão é mais alto
volta dos escravos; para Conrad, são as mudanças demográficas e o processo polí- nas cidades do que no campo e as alforrias são concedidas principalmente a es-
tico parlamentar; para Slenes e Carvalho de Mello é o abolicionismo; para Paula cravos ou escravas de mais de cinqüenta anos e menos de dez. Encontram-se entre
Beiguelman, a luta política partidária e o imigrantismo. Evidentemente, a partir os alforriados maior número de mulheres do que de homens. Cerca de trinta por
da perspectiva que adotamos, nenhuma dessas explicações é suficiente, por si cento das alforrias são a titulo oneroso. Warren Dean, no seu estudo sobre Rio
mesma, para explicar o processo. Claro, constatou também que a grande maioria das alforrias foi dada em caráter
— (19) Em Da senzala à colônia, esse aspecto não foi suficientemente explo- condicional. Notou, no entanto, que um número maior de homens do que de mu-
rado. Esse tema será retomado em nosso próximo livro, a ser publicado em 1982 lheres foi beneficiado, o que contraria a tendência registrada por Slenes para o
sob o título Capitalismo e patronagem (A era das reformas, 1870-1889). século XIX e Stewart Schwarz para o período colonial. No que se refere às manu-
(20) Historiadores têm divergido quanto ao papel dos grupos urbanos na missões, tanto quanto no que se refere a outros aspectos relativos às condições-de
abolição. Richard Graham, Britain and the onset of modernization in Brazil, vida dos escravos, é provável que conclusões válidas para uma área não sejam para
1850-1914, Cambridge, 1968 (tradução brasileira: A Grã-Bretanha e o início da outras, tornando-se portanto difícil qualquer generalização até que se disponha
modernização no Brasil, São Paulo, 1973), considera que as classes médias for- de um número maior de estudos monográficos. Parece, no entanto, inegável,
necem os quadros principais do abolicionismo. Já Robert Conrad, The destruc- como assinalamos em Da senzala à colônia, que o número de alforrias aumenta
tion of Brazilian slavery, 1850-1888 (Berkeley, 1972), argumenta que as classes consideravelmente nos anos finais da abolição quando os fazendeiros de café ten-
médias estavam ainda muito dependentes dos fazendeiros do café para poderem taram reter a mão-de-obra escrava que fugia concedendo manumissão aos es-
assumir uma posição independente, declaradamente abolicionista. Observa que cravos com a condição de que permanecessem na fazenda por um determinado
para cada mercador, médico, burocrata ou advogado que apoiou o movimento número de anos.
abolicionista, houve outros que não o fizeram; em 1881, a eleição na cidade do (27) Para um estudo modelar da violência antiabolicionista nos Estados
Rio de Janeiro deixou claro que a maioria da população era indiferente à causa da Unidos, veja-se Leonard Richards, Gentelmen of property and standing. Anti-
abolição (Conrad, pp. 144-6). Segundo Conrad, foi mais fácil aos políticos do Nor- abolition mobs in Jacksonian America (New York, Oxford University Press,
deste apoiar as idéias emancipadoras que aos da zonas cafeeiras porque enquanto 1970). Nesse livro, Richards mostra que a violência contra os abolicionistas tem
os fazendeiros do café ainda dependiam do braço escravo, os do açúcar se apoia- menos a ver com a hostilidade contra a idéia de emancipação e mais com o fato de
vam cada vez mais no trabalho livre. Ê bom notar, no entanto, que se isto pode, que, para as elites, os abolicionistas e suas táticas de apelo às mulheres, crianças e
em parte, explicar o comportamento da maioria dos representantes do Nordeste às massas em geral aparecem como uma ameaça à ordem e aos valores hierár-
no Parlamento (diante da oposição dos cafeicultores), não explica porque o movi- quicos tradicionais. Dentro dessa perspectiva, o problema da abolição da escra-
mento abolicionista é mais intenso no Sul que no Norte, recrutando maior número vatura, que à primeira vista parece central, passa a ser secundário nessas mani-
de adeptos nos grandes centros urbanos localizados nas regiões cafeeiras. festações. A objeção daqueles que combatem os abolicionistas é não tanto contra
(21) Alice Aguiar de Barros Fontes, .4 prática abolicionista em São Paulo: a emancipação dos escravos quanto contra a subversão da ordem estabelecida. No
os caifazes (1882-1888), São Paulo, 1976 (tese de mestrado. Departamento de Brasil, o único autor que se preocupou em estudar a violência antiabolicionista foi
História na USP). Robert Toplin, que dedicou um capitulo de seu livro The abolition of slavery in
(22) Thomas Skidmore, Black into white, race and nationality in Brazilian Brazil a esse problema.
thought (New York, Oxford University Press, 1974). O livro de Skidmore foi pu- (28) Apesar do grande interesse que existe presentemente em alguns inte-
blicado em português sob o título/Veio no branco, raça e nacionalidade no pen- lectuais brasileiros pela análise do discurso, faltam estudos sobre o discurso es-
samento brasileiro (tradução de Raul de Sá Barbosa, Rio de Janeiro, Paz e Terra, cravista e o discurso abolicionista. O único estudo desse tipo que conhecemos
1976). sobre o assunto é o de Maria Stella Bresciani. Embora reconheça que a análise do
(23) Paula Beiguelman, op. cit. discurso pode ser de grande interesse para o historiador, quero deixar claro que,
(24) Para maiores detalhes José Murilo de Carvalho, "A composição social para mim, ela só faz sentido na medida em que, ao lado dos métodos típicos da
dos partidos políticos imperiais", Cadernos DCF, dezembro 1974, número 2, De- análise lingüística, o historiador se preocupe em responder às questões: quem
54 EMILIA VIOTTI DA COSTA
fala, quando fala, em que circunstâncias, por que, para que e para quem. Só a
partir dai pode uma análise de texto fazer sentido.
(29) Um balanço geral da historiografia sobre a escravidão revela que os
maiores avanços foram feitos pela história quantitativa. Por isso, conhecemos hoje
com maior exatidão as taxas de natalidade, fertilidade, mortalidade, os índices de
casamentos entre os escravos, o volume do tráfico interno e internacional, a curva
de idade, o número de manumissões, a porcentagem de homens e mulheres na
população e de escravos qualificados e não-qualificados, trabalhadores do campo,
domésticos, artesãos etc. Muito menos se fez no sentido de se estudar o processo
abolicionista. A maioria dos estudos concentrou-se nas regiões cafeeiras inicial-
mente desbravadas e poucos ousaram abrir novos caminhos. Faltam estudos sobre
o abolicionismo e os abolicionistas. Nesse sentido, é de se estranhar o silêncio que
paira sobre o papel da mulher na abolição. Igualmente surpreendente é a falta de PARTE I
estudos sobre os líderes abolicionistas negros como Patrocínio, Gama, Rebouças e
outros. Faltam também estudos de detalhe sobre p processo político da abolição.
Pouco se sabe sobre o comportamento dos membros dos várias partidos e os gru- ASPECTOS ECONÔMICOS
pos que representam. Como a maioria dos estudos publicados nos últimos anos DA DESAGREGAÇÃO DO
dedicou-se a estudar o escravo nas regiões cafeeiras, pouco se acrescentou ao nos-
so conhecimento sobre o escravo em regiões que não são de plantação e em outros
SISTEMA ESCRAVISTA
estados do país. Mesmo áreas de plantação, como a Bahia ou o Maranhão, ainda
aguardam estudos mais completos. Recentemente, num seminário daUNICAMP,
o professor Roberto Martins chamava a atenção para a importância de se estudar
em Minas a população escrava que vive em áreas que não são de plantação. Fal-
tam também estudos sobre os escravos urbanos e sua participação no movimento
abolicionista, suas relações com os negros livres. Igualmente útil seria um estudo
sobre a imprensa abolicionista, que só muito superficialmente foi analisada até
agora. Finalmente, é preciso que no estudo dos escravos os historiadores voltem
seu interesse para o estudo da história do escravo, seu processo de socialização,
suas formas de acomodação e resistência, seus cultos, suas crenças. Esse tem sido
um campo praticamente ignorado pela maioria dos que se têm dedicado ao estudo
da escravidão nos últimos anos.

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