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Para introduzir a presente reflexão, são apresentadas uma professora, uma turma
e uma escola:
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Mestre em Psicologia, Psicóloga. Discente do curso de Doutorado em Psicologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Bolsista FAPERJ Nota 10. E-mail: kelydecotelli@gmail.com
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dela repetiu... Ela falou, tia, que tem vontade de te dar dois socos na cara. Eu pensei
naquele momento - eu tenho que tomar uma atitude. Eu virei, olhei pra menina, respirei
fundo, e falei: Olha só: eu estou aqui, você está aí, você quer levantar e me dar os dois
socos agora? Me dá agora, não deixe para depois não! Ela respondeu: Iiiih, coé, olha
que eu dou! Eu falei: Venha dar o soco agora, mas eu quero dois! Agora, antes de você
me dar, eu queria fazer uma pergunta pra você: Você sabe que nós temos policiais
militares na nossa escola, não é, querida? Aí ela se desarmou.”4
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Relato de uma professora, colhido durante a pesquisa de campo para o projeto de qualificação “Paz
Armada na Escola”, de Thiago Colmenero Cunha, sob a orientação de Pedro Paulo Bicalho (2015).
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quais dispositivos têm sido postos em funcionamento?
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Também chamado de Polícia Comunitária, tem como objetivo desenvolver relação de reciprocidade entre
a polícia e a população, descentralizando o comando por área e reorientando a patrulha de modo a engajar
a comunidade na prevenção do crime.
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Sobre a construção subjetiva da denominada “fundada suspeita”, verificar Bicalho (2005).
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diretoria e acompanhado da mesma. Policiais do sexo masculino não realizam revista
pessoal em crianças e adolescentes do sexo oposto, devendo pedir auxílio de funcionária
ou de “um PM feminino”. Fora da escola, caso seja localizado um estudante com drogas
ou qualquer tipo de aglomeração considerada suspeita, deve levá-la primeiro à direção,
não à delegacia. A revista pessoal será feita “sempre que a situação exigir” e se tiver
uma fundada suspeita, sendo necessário comunicar imediatamente à diretoria da escola
e levar o aluno à presença da mesma (SEEDUC, 2012).
Mecanismo de instrumentalização da biopolítica (FOUCAULT, 2008), o
dispositivo de periculosidade considera tão importante quanto aquilo que o sujeito é ou
fez é o que ele poderá vir a ser ou a fazer. Criminalidade associada à periculosidade.
Isso significa que o indivíduo deve ser identificado por meio de suas virtualidades e não
de seus atos. Possível crime do autor, não do fato. Desse modo, não apenas o poder
judiciário deveria se encarregar do controle dos indivíduos, mas sim toda uma rede de
instituições de correção e vigilância – as instituições psicológicas, psiquiátricas,
pedagógicas e médicas, para correção, e a polícia, para vigilância. Esse dispositivo de
periculosidade nos faz apontar que ele não é natural, que é produzido em um dado
momento da história, em um determinado momento socioeconômico e político, por
certas práticas sociais.
Foucault (2005) aponta que hoje não se está mais exercendo controle somente
sobre um comportamento ou um ato, mas sobretudo produzindo-se um monitoramento
sobre as virtualidades, sobre aquilo que se poderá vir a ser ou a fazer, dependendo da
“essência” que for atribuída a um determinado indivíduo, circunscrito à ordem social
que o constrói. Nesse sentido, as chamadas 'classes perigosas', compostas por aqueles
que resistem e devem ser enquadrados na esfera do desvio, tornam-se os principais
alvos de políticas públicas, a partir de “certas práticas” de “certos especialistas”, pelo
suposto oferecimento de risco aos demais e que, portanto, devem ter suas virtualidades
controladas permanentemente. São aqueles sobre os quais incidem os processos de
criminalização, que na escola são materializados, sobretudo, pela medicalização e pela
judicialização. Por processos de criminalização 7 , entendemos a constituição de certo
modo de ser sujeito por meio da instituição de uma norma e da vigilância remetida à
possibilidade de sua transgressão, instituindo-se como forma de controle a punição ou o
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Diferenciamos tais processos de um modo de constituição de sujeitos mediados pela norma penal oficial: os
processos de incriminação. Incrimina-se quando – ao fazer agir a lei penal – transformamos transgressões em crimes
e, de modo análogo, transgressores em criminosos (DORNELLES, 1988).
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castigo. Assim, quando individualiza-se nos sujeitos a causa da criminalidade, reduz-se
a subjetividade a uma dimensão psicológica interiorizada, separando o sujeito de
processos sócio-históricos que o produzem e o atravessam o tempo todo. O (suposto)
criminoso é o grande o objeto de esquadrinhamento e não o (suposto) crime. Assim, a
relevância está na produção de um saber individualizante das (possíveis) causas daquele
(suposto) delito, fundadas na personalidade, desvios, anomalias, hereditariedade, origem
ambiental do sujeito criminoso.
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Relato do chefe de gabinete da SEEDUC, colhido durante a pesquisa de campo para o projeto de
qualificação “Paz Armada na Escola”, de Thiago Colmenero Cunha, sob a orientação de Pedro Paulo
Bicalho (2015).
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implanta a lógica do julgamento, da punição, do uso da lei e da justiça como parâmetro
de organização do modo de viver (NASCIMENTO, 2014). Entrecruzamentos cada vez
mais naturalizados não só nos grandes estabelecimentos, mas no cotidiano da vida
social, nas micropolíticas das relações interpessoais que nos atravessam todos os dias.
Cabe lembrarmos que a judicialização, atualizada principalmente em práticas de
suspeição e ortopedia social, que agem de forma punitiva e criminalizante, está bastante
afinada com aquilo que Wacquant (1999) definiu como uma escalada crescente em
curso, em favor da diminuição do “estado do bem-estar social” e do aumento das
intervenções policiais e penitenciárias. O autor denomina Estado Penal neoliberal, o
resultado do grande paradoxo onde se aposta em um “mais Estado” policial e
penitenciário em função justamente de um “menos Estado” econômico e social, causa
do aumento da insegurança generalizada. Tal segurança não seria atenuada, mas
agravada pela intervenção policial no Brasil, chamada força de ordem, onde manter a
ordem de classe confunde-se com ondem pública.
Com esse movimento de substituição das políticas públicas de assistência pelas
de confronto, pretende-se eliminar a insegurança social produzida pelas estatísticas
criminais e disseminada pela mídia (também criminal e, por vezes, criminosa). As
questões sociais são tratadas no âmbito penal e policial e o modelo judiciário é eleito
como modo de intervir sobre a realidade e as relações interpessoais cotidianas. Assim,
insegurança/medo, judicialização, ação policial pautam a política de segurança
escolhida pelo Estado penal no controle da criminalidade.
A judicialização do espaço escolar aparece na crescente recorrência a
mecanismos de notificação aos conselhos tutelares que confrontem as normas escolares,
nas fichas de controle de presença dos alunos na escola, no endurecimento das regras
que punem agressores ou desviantes, seja por meios legais (abrir processo judicial) ou
dos regulamentos da escola (levar anotações na agenda, ser suspenso ou ainda expulso
da escola), mas também em produzir a separação entre o que é normal e o que é anormal
dentro daquele ambiente. Acredita-se que, juntamente com Heckert e Rocha (2012), ao
trazer os diferentes instrumentos do aparato jurídico para intervir em conflitos que
emergem no chão da escola, que ao fazer essa regulação, ao implantar essa dicotomia, o
que é lícito e o que é ilícito, estarão resolvidas as questões, as tensões referentes às
relações dentro da escola.
Segundo Scheinvar (2009, 2012), a efervescência de leis (e demais
regulamentações) ao longo do século XX foram e ainda são a grande expectativa de
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transformação das relações instituídas e conflituosas em nossa sociedade, em âmbito
local, nacional ou internacional. Para que a sociedade e o Estado prospere, cresça, gere
lucro e renda, é preciso haver regras comuns e não haver desvios. A lei, como parâmetro
universal, segundo Foucault (2003), está sempre acima das pessoas. Sua violação é um
crime, e o violador um inimigo social.
Em uma economia de mercado como a capitalista, estruturada sob a condição de
liberdade, de grande circulação – necessária ao funcionamento do mercado –, os
mecanismos de controle atualizam-se e a lei passa a ser o objeto de obediência, uma
referência universal e uma forma de poder por inibir atitudes. Constroem-se
mecanismos para reivindicar e garantir relações seladas como direitos em nome do
conforto e da tranquilidade de todos: são encaminhadas situações para a dita justiça, sob
a ótica de que estando em “boas mãos”, o “bem” será feito e a dita verdade prevalecerá.
Neste contexto, é impossível não lembrar da emergência no contexto brasileiro
do fenômeno bullying. Categorizada como um modo de violência presente no ambiente
escolar, a temática vem ganhando força, principalmente após o acontecimento ocorrido
em abril de 2011, em uma escola pública do bairro de Realengo, no Rio de Janeiro, onde
um rapaz (ex-aluno da escola) assassina 11 alunos e posteriormente suicida-se. O
assassino, que é visto como uma suposta vítima de bullying naquele mesmo
estabelecimento escolar, passou da virtualidade ao ato, atualizando a lógica dos famosos
manuais que visam identificar-conceituar a prática do bullying. Um dos grandes efeitos
deste acontecimento é a efervecência no campo do legislativo de leis antibullying que
visam a identificação, conscientização, prevenção e combate do dito comportamento
perigoso. Somente naquele ano de 2011, na Câmara Federal, foram apresentados
dezoito projetos de lei contendo a palavra bullying em sua ementa, enquanto que nos
dez anos anteriores somam-se cinco9.
O clamor por leis mais duras e corretivas, como a dos projetos de lei antibullying
ou como o convênio que implementa a polícia militar nas escolas do estado do Rio de
Janeiro (PROEIS), tem como justificativa a tentativa de atenuar condutas consideradas
danosas para a sociedade, isto é, prevenir possíveis riscos para o corpo social. Com isso
se quer evitar haja “ocorrências” na escola, dando à lei a função pedagógica de
mudanças de comportamento, já que ela pretende obstruir determinadas condutas.
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Os dados foram obtidos no site da Câmara dos Deputados. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/
Consultado em junho de 2015. Para maior aprofundamento do tema consultar: Magalhães-Decotelli;
Bicalho (2015); Souza (2014) e Brito (2014).
7
Quando proteção é sinônimo de segurança e justiça: um atalho em
funcionamento
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instrumento interessante”10.
Nos tempos atuais, desejar proteção é promover segurança e justiça. Foucault
(2008) apresenta a sociedade de segurança como aquela em que há um investimento no
controle dos riscos como parâmetro de sustentação do sistema do capital
contemporâneo. Como um bem absoluto e necessário, em nome das ditas ações de
proteção e cuidado, toda e qualquer prática que regulamenta a vida ganha legitimidade.
É preciso tomar esses conceitos e palavras como constructos, isto é, como uma
construção histórica associada a determinadas práticas e discursos.
Para que os mecanismos de segurança sejam implantados é necessário um
conjunto cada vez mais gigantesco de “medidas legislativas, dos decretos, dos
regulamentos, das circulares (…) vocês vão ver que há uma verdadeira inflação legal,
inflação do código jurídico-legal para fazer esse sistema de segurança funcionar.” (Idem,
ibidem, p.11)
São os mecanismos de segurança que sustentam o corpus disciplinar. No entanto
para se manter a segurança (ou a sensação dela), faz-se necessário a criação de
dispositivos como técnicas de vigilância encarnadas, por exemplo, na classificação de
sujeitos a partir de binarismos como normal-anormal.
Ao localizar as tecnologias de segurança em meio aos mecanismos jurídicos-
legais e os mecanismos disciplinares, Foucault afirma que aquelas tecnologias não
superam, mas reativam e transformam/complexificam as técnicas jurídico-legais e
disciplinares. Assim, não há uma sucessão onde a lei vem antes da disciplina e esta
antes da segurança. Esta última é um mecanismo que atualiza velhas estruturas da lei e
da disciplina. Em Foucault, as tecnologias de seguranças estão para além das
penalidades instituídas no código penal, pois elas emergem tanto no interior de
mecanismos que promovem o controle social (penalidade), como também nos
mecanismos que visam à modificação no destino biológico da espécie. E, para fazer
funcionar tais tecnologias, emergem como mecanismos prioritários a medicalização e a
judicialização da vida.
Em nossas sociedades a economia do poder está atravessada pela segurança. O
dispositivo de segurança insere o delito em uma série de acontecimentos prováveis, os
quais serão inscritos na realidade. De acordo com Foucault, ao atuar sobre a estrutura do
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Relato de um policial militar, colhido durante a pesquisa de campo para o projeto de qualificação “Paz
Armada na Escola”, de Thiago Colmenero Cunha, sob a orientação de Pedro Paulo Bicalho (2015).
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poder, o acontecimento modifica suas tecnologias. Desta forma, o dispositivo conecta-se
à realidade para regulá-la, e apoiado em dados materiais, passa a atuar no sentido
preventivo. Assim, um planejamento de segurança eficaz de cidade passa a levar em
consideração o que pode vir a acontecer. A constituição da noção de população é
fundante neste contexto, pois é sobre esta multiplicidade que o dispositivo atua. Os
comportamentos farão com que cada indivíduo seja entendido e aceito como membro da
população. Logo, o comportamento é o fundamento do governo. Quem se comporta de
modo diferente da população é considerado desviante e desajusta o sistema. Neste
sentido, a lei, como forma de contrato social, é o que organiza a população enquanto tal,
a partir do momento em que regula comportamentos. O contrato social, assim, cria o
sujeito coletivo.
(...) e todo indivíduo que aceita as leis do seu país assina um
contrato social, aceita-o e o revalida a cada instante em seu
próprio comportamento, enquanto aquele que, ao contrário,
viola as leis, rasga o contrato social, este toma-se estrangeiro em
seu próprio país e, por conseguinte, cai sob as leis penais que
vão puni-lo, exilá-lo, de certo modo matá-lo. O delinquente em
relação a esse sujeito coletivo criado pelo contrato social rasga
esse contrato e cai do lado de fora desse sujeito coletivo.
(FOUCAULT, 2008, p.58)
As leis apareceriam, de forma essencializada, como instrumento capaz não
simplesmente de regular a prática, mas punir aqueles que a cometem. Tudo isso apoiado
na lógica protetiva do direito e engendrando, de acordo com Coimbra e Scheinvar
(2012), subjetividades punitivo-penais. Nestas as relações, das mais diversas ordens,
passam a ser operadas por comportamentos circunscritos cada vez mais em uma
normativa jurídica, sendo passiveis de julgamento e pena. No entanto, concordamos
com as autoras que apontam que “(...) A intervenção com base em leis “protetivas” não
altera a condição de vida dos “perigosos”, dirige-se com ênfase a coibi-los na
expectativa de comportamentos “aceitáveis”” (idem, ibidem, p.3).
A penalização passa a ser naturalizada como elemento primordial no
controle social, no que tange à manutenção da ordem e do convívio interpessoal. E
ainda, condição sine qua non para a promoção da cidadania.
Desta forma os encontros, as relações e os sujeitos que as constituem são
capturados e encerrados nestes papéis sociais. Ou se é um cidadão de bem ou se é um
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delinquente, ou se é vítima ou agressor. E assim, as dicotomias como bom-mau, normal-
anormal, vítima-agressor, vão sendo afirmadas. A grande questão passa a ser identificar
quem é quem neste seara. Ou ainda, quem sou eu.
Neste sentido, torna-se cada vez mais comum o incentivo à denúncia, tomada
como um modo de participação, de responsabilidade social e condição para a realização
da justiça e das normas. Importante referir que no mundo da judicialização foi
implantada a máxima “somos todos responsáveis”, que delega às redes de proteção e a
toda e qualquer pessoa os funcionamentos antes restritos aos operadores da justiça. O
ato de denunciar o outro aos profissionais especializados e às autoridades competentes,
na maioria das vezes de modo anônimo, ajusta-se com precisão ao jogo da
judicialização. Acreditamos e tememos as leis, assim a sensação de justiça é gerada e
ganha força para atuar, onde além de determinar o que é lícito e o que é ilícito, regula as
funções do corpo social.
O sistema conselhos, instaurado pós-Constituição de 1988, está bastante afinado
com este modo de funcionamento e podemos citar como exemplo os Conselhos
Tutelares, nos quais os conselheiros são democraticamente escolhidos por meio de
processo eleitoral pela comunidade. Deste modo, cada vez mais a sociedade, por
práticas ditas democráticas, vai sendo inserida na constituição e execução de práticas de
manutenção da ordem social não só no âmbito da denúncia, mas também no âmbito do
julgamento. “Nesse sentido o ato de julgar ganha relevância como prática da
democracia participativa que introjeta a necessidade de punição como algo
indispensável à vida de todos, como ato necessário para o bem comum e para o bem de
cada um, de cada cidadão de bem.” (AUGUSTO, 2009, p. 19)
Outro aspecto que merece nossa atenção é o fato de a própria lei convocar a
participação popular em sua aplicabilidade. Podemos citar como exemplo o artigo 227
da Constituição Federal de 1988:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao
adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL,
1988).
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Levando-se em consideração que, com o fim de estabelecer o paradigma da
proteção integral de crianças e adolescentes, a emergência do artigo citado é marcada
por grande mobilização popular em todo o território nacional por parte dos diversos
atores (movimentos sociais, Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua,
organizações não governamentais, Pastoral do Menor, legisladores, entre outros) na
atuação com os ditos, na época, menores. Estes atores sociais já vinham ao longo da
década de 80 criticando11 as ações e omissões do Estado com relação à infância e sua
militância tornou-se preponderante na emergência do futuro Estatuto da Criança e do
Adolescente em 1990.
A proteção não só é descentralizada do âmbito do Estado e especificamente da
Justiça (tanto na figura do juizado de menores como nos códigos menoristas),
espraiando-se para o sistema de garantia de direitos, – operado a partir da lei – mas
capilariza-se por todo o corpo social, a partir do momento que a proteção passa a ser
dever de todos. Nascimento (2014) irá realizar análise deste contexto focalizando o
aspecto do denuncismo que se conjuga neste solo. Denuncia como forma de proteger e
garantir o imperativo da lei. Para a autora a denúncia configura-se num dispositivo que
afirma a crença na lei e na justiça, bem como resposta a uma convocação à participação
cidadã.
Interessante pensar como a ideia de cidadania associada à políticas voltadas para
a infância estejam apoiadas no denuncismo. Este se configura como prática de defesa da
lei e garantia de direitos e proteção. Neste sentido podemos afirmar a proteção como
uma tecnologia que amplia a regulamentação biopolítica sob a ótica do dispositivo de
segurança. Torna-se dever de um bom cidadão denunciar qualquer tipo de ameaça ou
violência contra quem quer que seja. Tal aspecto configura-se como elemento
primordial dentro do Estado Penal, sob o argumento de fazer justiça e garantir a ordem e
a paz no seio da sociedade (BATISTA, 2012). Isto se mantem mesmo diante da
possibilidade da devassa da intimidade e das relações interpessoais.
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O movimento de crítica ao sistema vigente se fez também à época da emergência do Código de 1979,
que na tentativa de conciliar tais críticas, pressões de movimentos internacionais e os interesses políticos
hegemônicos, acabou por manter o menor como objeto de medidas judiciais, culpabilizantes e
violadoras de direitos.
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O conflito frente à paz e ao medo: soluções em funcionamento
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contorno é mais eficaz: fazer medo, fazer exemplo, intimidar - enfim, agir sobre a
população virtualmente perigosa.
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Ainda muito presente, mesmo que de forma velada, nos discursos e estudos
atuais de políticas públicas de educação e de segurança pública, quanto no pensamento
educacional brasileiro são as Teorias de Carência Cultural: a crença de que a criança
pobre tem menor capacidade para aprender conteúdos escolares ou ter êxito na vida
devido ao fato de que ela parte de diferente cultura. Procurando identificar dificuldades,
faltas, transformando diferenças em problemas e deficiências, as atualizações da
Carência Cultural investem no corpo da criança e do adolescente, da família e do
professor, que também é capturado.
Operam-se processos de individualização e culpabilização pelo cenário em que
se vive, tornando os sujeitos responsáveis por sua reprovação nas disciplinas daquele
ano, pelo seu fracasso escolar crônico. Nessa perspectiva, segundo Patto (1990) o
"fracasso escolar" tende a ser concebido como resultante de obstáculos – sejam eles
orgânicos, afetivos, familiares ou culturais – que afetam o indivíduo isoladamente
considerado. As relações todas que acontecem dentro da escola, por sua vez, tendem a
ser vistas em abstração do entorno institucional em que ocorrem e dos condicionantes
políticos e ideológicos que sobre elas incidem.
Atravessado no contexto atual por mecanismos que consomem a força de
trabalho, há um discurso espraiado na sociedade que legitima a suposta falência da
escola pública, da urgência de implementar tecnologias gerenciais para ampliar a
eficiência da escola que é hegemônico e que paralisa as conquistas que ganharam corpo
no campo educacional, o que ganha evidência é a carência enquanto sensação de
incompletude, incompetência, insegurança do trabalhador.
Não obstante seu caráter vago, esse tipo de diagnóstico tem sido um poderoso
elemento no processo de legitimação do suposto caráter individual do fracasso escolar e
no ocultamento de suas raízes sociais e escolares. Ainda mais grave, ele acaba por se
constituir em fator condicionante desse mesmo fracasso, na medida em que concorre
para a realização daquilo que profetiza como fatalidade inevitável.
Discursos de fragilidade e impotência produzem também efeitos de
disseminação, reificação, cristalização e naturalização dos conflitos e violências,
promovendo processos de desqualificação dos espaços escolares e de culpabilização dos
que neles convivem, operando na lógica que Patto (1984, 1990) aponta: dos
mecanismos que transformam a desigualdade social em questões individuais, eximindo
o sistema social e político de implicação na produção das injustiças.
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Assim, a dimensão educativa desaparece cada vez mais do espaço escolar e,
nesse vazio, outros saberes são convocados a ocupar tal lugar. A assunção desses novos
mecanismos não é feito, como salienta Machado (2007), sem uma clara intenção
política do Estado de fragilizar os vínculos de trabalho em cada unidade escolar, em que
grupos são espaços táticos de produção de subjetividade e, portanto, abrem condições
para que possam ocorrer mudanças.
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realiza a vida e a formação, acabam encarnando grandes problemas, distensões
aparentemente irresolvíveis. Em nome da garantia dos direitos da infância e da
juventude, a partir do uso de brechas em documentos, ratificamos a partir de políticas
públicas, projetos de lei e medidas legais a intensificação dos processos de
regulamentação de nossas vidas.
A polícia nas escolas tanto quanto a polícia que nos habita são práticas
produzidas numa sociedade em que predomina a cultura da vingança e do castigo, que
produzem assujeitamentos, fazendo assim se perder a potência criadora. Colocá-las em
questão torna-se um grande desafio tendo em vista a naturalidade com que são vistas, o
que nos faz pensar em criar outras estratégias para lidar com aquilo que nos incomoda,
não conservar práticas que recorram aos tribunais formalmente estabelecidos ou àqueles
que estão em nós, fazendo-nos ora juízes, ora acusados, ora algozes, ora vítimas. Frente
às medidas atuais aqui estudadas, é fundamental discutir a criminalização do espaço
escolar, operada pelos mecanismos de medicalização e judicialização.
Criar caminhos alternativos, fazer com que o ar circule por outras vias que não
só as comumente instituídas. Como toupeiras, nosso fazer é guiado por caminhos
inventados por experiências que desnorteiam a vida. Buscar os sinais descontínuos,
interrompidos e fugazes pode ser uma forma de ler as areias. A tensão não pode ser
descartada. Precisamos exercitar o “olhar da primeira vez”, seu patrimônio invisível,
impalpável.
Ao optar pelo habitar da cotidianidade das relações do contexto escolar e em seu
entorno social, é importante fazer emergir as esperanças, os preconceitos, os dramas e
sonhos dos professores, pais, coordenadores pedagógicos, policiais e diretores, não
sendo tratados como números ou objetos, mas como sujeitos cuja voz, os gestos e as
linhas nos guiam por entre os tensos labirintos do cotidiano escolar.
Referências
17
BICALHO, P.P.G. Subjetividade e Abordagem Policial: Por uma concepção de
direitos humanos onde caibam mais humanos. Tese (Doutorado em Psicologia).
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2005.
18
MACHADO, A. M. Plantão institucional: um dispositivo criador. In: MACHADO, A.
M.; FERNDANDES, A.M.D.; ROCHA, M.L. (Orgs.). Novos possíveis no encontro da
psicologia com a educação. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.
___. Psicologia e ideologia: uma introdução crítica à psicologia escolar. São Paulo:
T. A. Queiroz, 1984.
SEEDUC. Conheça o PROEIS e saiba como os policiais militares podem atuar de forma
preventiva nas escolas estaduais. Mai, 2012. Disponível em:
http://www.rj.gov.br/web/seeduc/exibeconteudo?article-id=941225. Acesso em 02 ago
2013.
SESEG, 2011. Policiais militares farão segurança em escolas públicas do estado por
meio do PROEIS. Disponível em:
http://www.rj.gov.br/web/seseg/exibeconteudo?article-id=907265. Acesso em 01 de
junho de 2014.
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