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Julio Cesar Sanches
Resumo: A revista Boa Forma é uma das principais publicações brasileiras direcionadas ao
cuidado com o corpo e a saúde. Em suas páginas, identificamos uma extensa proliferação de
discursos e imagens sobre dietas, técnicas de embelezamento, exercícios físicos, divulgação
de produtos e cosméticos, assim como a publicidade de estilos de vida saudável. A partir
dessa constatação, pretendemos realizar um estudo de caso com o intuito de identificar quais
discursividades sobre o corpo estão sendo amplamente difundidas nas capas da Boa Forma no
ano de 2017. Acreditamos que a revista mobiliza uma gramática do culto ao corpo baseada na
lógica contemporânea de um empreendedorismo de si. Pressupomos que essa publicação
compartilha com o público leitor um conjunto de discursos pautados na recomendação, na
autoajuda e na incitação de desejos fabricados pela sociedade neoliberal. Nesse sentido, a
revista Boa Forma atua como meio difusor de técnicas que governam os corpos e as
subjetividades contemporâneas através da visibilidade de determinadas formas de ser e estar
no mundo. O presente texto faz parte de uma pesquisa maior que visa esboçar um quadro
analítico das transformações das cadeias discursivas sobre o corpo e a saúde forjadas na
revista Boa Forma desde 1986.
INTRODUÇÃO:
À primeira vista, as manchetes das capas de revista podem causar uma curiosa
sensação de repetição de temas. Frases como “perca 4kg em uma semana” ou “saiba mais
sobre dietas milagrosas” marcam presença em publicações voltadas ao cuidado com o corpo e
a saúde. Apesar de parecerem clichês, as chamadas que seduzem o público leitor falam de
fenômenos que são exteriores ao texto. Nesse sentido, buscamos compreender como a
existência de determinadas discursividades mobiliza as engrenagens da máquina social
contemporânea.
Tomando como exemplo-chave, analisaremos aqui algumas capas da revista brasileira
Boa Forma - veículo impresso de grande circulação no mercado editorial brasileiro. A partir
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Doutorando do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (PPGCOM/UFRJ). Bolsista CAPES.sanches.julius@gmail.com
de uma análise de 12 capas, lançadas entre os meses de janeiro e dezembro de 2017,
pretendemos construir uma argumentação sobre a relação entre os fenômenos discursivos
sobre o corpo e a aparência e o desenvolvimento de uma cultura do culto ao corpo na
sociedade neoliberal do século XXI.
DISCIPLINADOS E GOVERNADOS:
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Essa é uma das principais questões que envolvem a pesquisa de doutorado que estou
desenvolvendo no PPGCOM/UFRJ. Pressuponho que os jogos de poder e saber da
contemporaneidade forjaram o surgimento de um sujeito-empresa, figura capaz de mobilizar
dinâmicas neoliberais no cuidado do corpo e da saúde. Um sujeito empreendedor de si.
camufla) no controle das ações, que podem parecer, à primeira vista, como exteriores ao
poder, mas são em si os seus efeitos. É por isso que Foucault (2014b) define expressamente
que “uma relação de poder é um modo de ação que não age diretamente sobre os outros, mas
que age sobre sua ação própria. Um ação sobre a ação, sobre ações eventuais, ou atuais,
futuras ou presentes” (p. 132). Essa noção ficará mais evidenciada no decorrer da análise das
capas da revista Boa Forma enquanto dispositivo de governo.
DISPOSITIVOS DE GOVERNO
Para que o governo ocorra, em meio às relações de poder, é necessário que técnicas e
práticas sejam estabelecidas pelas ações daquilo que se governa. Todavia, essas ações
precisam ser mediadas. Em nosso estudo, entendemos que essas ações são midiatizadas.
Colocamos aqui o universo midiático contemporâneo como uma instância em que o governo
das condutas sociais converge. Para isso utilizamos o conceito de dispositivo articulado no
pensamento do filósofo italiano Giorgio Agamben. O autor diz que dispositivo é “qualquer
coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar,
modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres
viventes” (AGAMBEN, 2009, p. 40).
O conceito de dispositivo é importante por mobilizar exatamente as condutas, as
ações, os discursos e, principalmente, os sujeitos. Nesse sentido, os dispositivos atuam não
apenas coordenando as atuações dos sujeitos na máquina social, mas também produz
materialmente o sujeito que é governado nas relações de poder. Ele institui uma criação. O
dispositivo “nomeia aquilo em que e por meio do qual se realiza uma pura atividade de
governo sem nenhum fundamento no ser. Por isso os dispositivos devem sempre implicar um
processo de subjetivação, isto é, devem produzir o seu sujeito” (AGAMBEN, 2009. p. 38).
A partir da utilização do conceito de dispositivo, desejamos elaborar uma análise que
aponte como a mídia contemporânea assume o caráter subjetivador do dispositivo, ao
tornar-se elemento indispensável ao governo dos corpos e das subjetividades. A princípio,
esse conceito nos fornece um terreno fértil para identificarmos as dinâmicas de governo e
sujeição na sociedade neoliberal. Agamben contextualiza a situação: “Não seria
provavelmente errado definir a fase extrema do desenvolvimento capitalista que estamos
vivendo como uma gigantesca acumulção e proliferação de dispositivos” (2009, p. 42). Ou
seja, a cultura contemporânea está repleta de dispositivos que atuam nos jogos de poder e
saber. Como consequência disso, há uma fabricação de subjetividades baseadas naquilo que é
produzido pelos dispositivos, sejam eles econômicos, culturais, políticos, estéticos,
midiáticos, psíquicos.
Assim como a análise de apresentada por Agamben, nos é caro o pensamento da
filósofa feminista Judith Butler. Segundo a autora, existe um complexo jogo de subjetivação
do poder atuando nos corpos. Nesse sentido, o poder é algo constitutivo do sujeito. Não há
sujeito que não tenha passado pela máquina do poder, assim como o poder é algo que jamais
se escapa. Ou seja, “o poder age sobre o sujeito pelo menos de duas maneiras: primeiro, como
o que torna o sujeito possível, como condição de possibilidade e ocasião formativa; segundo,
como o que é retomado e reiterado no próprio agir do sujeito “ (BUTLER, 2017, p. 22).
O que Judith Butler busca entender é exatamente como os corpos mobilizam os jogos
de poder que são dissimulados pelo próprio poder. Nesse sentido, a autora é categórica ao
apresentar a ideia de que o processo de subjetivação do poder se caracteriza como um
processo de sujeição. E em todas as circunstâncias, existe uma vida psíquica sendo
desenvolvida pelas dinâmicas do poder. A autora explica
A revista Boa Forma é uma publicação brasileira, veiculada atualmente com o selo da
Editora Abril, que existe desde o ano de 1986. Inicialmente, a Boa Forma era um suplemento
informativo da revista Saúde, publicada pela extinta Editora Azul, e ganhou notoriedade e
autonomia, tornando-se, anos depois, uma das principais revistas brasileiras direcionadas à
circulação de conteúdo sobre saúde e beleza. Com mais de três décadas de existência, a
revista Boa Forma se estabeleceu no mercado editorial associando a imagem de celebridades
femininas, com seus respectivos estilos de vida, aos discursos de cuidado com o corpo.
Desde a década de 1980, a revista Boa Forma utiliza em suas capas a imagem de
figuras da cultura midiática brasileira. Nas capas da revista, por exemplo, encontramos
mulheres exibindo seus corpos e oferecendo às leitoras orientações de como cuidar do corpo e
da aparência. Em nosso atual estudo de caso, usaremos 12 capas da revista Boa Forma,
veiculadas entre os meses de janeiro e dezembro de 2017, com o intuito de identificar quais
discursividades estão sendo propagadas pela revista. Iniciamos nossa análise com as capas do
primeiro trimestre de 2017 (janeiro, fevereiro e março):
Edição nº363 (Anitta), nº364 (Marina Ruy Barbosa) e edição nº365 (Fernanda Gentil).
As manchetes das capas do primeiro trimestre de 2017 falam: edição nº363: “Dá para
ganhar músculos sem comer carne, sim + série de 20 minutos para definir o corpo”;
edição nº364: “os melhores treinos que você respeita para ter um bumbum durinho +
definir sem lesões + secar em 20 minutos”; e a edição nº365 “queime até 1000 calorias em
casa com uma aula 3 em 1: luta + yoga + funcional”.
Edição nº366 (Patrícia Poeta), nº 367 (Letícia Spiller) e nº368 (Fiorella Matthies).
As chamadas das capas das edições de abril, maio e junho de 2017 dizem: edição
nº366: “Oi, sumida! versão turbinada do vigilantes do peso é a melhor dieta para secar
rápido”; a edição nº367 diz “reprograme seu jantar e emagreça até 4kg em 1 mês”; a
nº368 declara: “dieta da definição: enxugue gordura e ganhe massa sem cortar carbo”.
Edição nº369 (Nanda Costa), nº 370 (Camila Coutinho) e nº371 (Paolla Oliveira).
Os textos das edições de julho, agosto e setembro são os seguintes: edição nº369: “Na
paradinha...treino de 24 minutos para secar e fortalecer + dicas de como incluí-lo na sua
pausa do almoço”; edição nº370 diz: “Mulher maravilha: treino superpoderoso para
desenhar barriga e bumbum”; já a edição nº371 fala: “Está difícil perder barriga? a dieta
que silencia os genes acumuladores de gordura”.
Edição nº372 (Vanessa Giácomo), nº373 (Rafa Brites) e nº374 (Isis Valverde).
As chamadas publicadas nas capas da revista Boa Forma do ano de 2017 expressam
determinadas posições da mídia brasileira contemporânea, assim como o lugar dos sujeitos
que recebem as mensagens. Acreditamos que seja necessário refletir sobre as camadas dos
discursos reproduzidos na publicação, com o intuito de verificar quais processos estão em
jogo nesse emaranhado de enunciados.
Primeiro, acreditamos que a revista Boa Forma mobiliza signos do discurso mitológico
em suas manchetes. Roland Barthes (2009) diz que o mito é uma fala. Em sua proposição, o
autor considera que o mito constitui um sistema de comunicação marcado pelo uso social e
histórico da fala. Ou seja, “longínqua ou não, a mitologia só pode ter um fundamento
histórico, visto que o mito é uma fala escolhida pela História: não poderia de modo algum
surgir da "natureza" das coisas” (BARTHES, 2009, p. 200).
O entendimento de Roland Barthes (2009) é materialista e histórica no que diz
respeito à historicidade dos sentidos que damos, enquanto sujeitos da linguagem, às coisas.
Assim sendo, a formação dos mitos se dá num ambiente histórico em que os significados são
construídos e transformados em cima de um modelo semiológico já estabelecido pela língua.
É por isso que o mito é “um sistema particular, visto que ele se constrói a partir de uma cadeia
semiológica que já existe antes dele: é um sistema semiológico segundo” (BARTHES, 2009,
p. 205). Em outras palavras, o mito constitui um universo de significação distinto daquele
estabelecido pela língua. Consequentemente, “a relação que une o conceito do mito ao sentido
é essencialmente uma relação de deformação” (BARTHES, 2009, p. 213). A significação
mítica é deformadora por excelência, segundo Roland Barthes. E nesse sentido, o mito
sobrevive de uma alteração dos conceitos e dos sentidos da linguagem.
Nas revistas Boa Forma, aqui analisadas, por exemplo, o uso da dimensão temporal
para a realização de atividades físicas é substancial desse recurso mitológico da fala. As falas
das manchetes “série de 20 minutos para definir o corpo” (nº363) , “secar em 20 minutos”
(nº364), “treino de 24 minutos para secar e fortalecer” (nº369), “um treino de 28 min que
acelera o metabolismo” (nº372) e “Queime gordura em 20 min com os exercícios
funcionais” (nº374) remetem ao desejo de realização de exercícios de forma rápida e eficaz; e
também ao efeito desejado por quem faz essas atividades: queimar gordura; definir o corpo;
secar e fortalecer.
Apela-se, em sentido estrito, à comodidade do curto tempo para a realização de
práticas desportivas, atentando expressamente ao efeito direto que essas atividades de curto
prazo podem causar no corpo das leitoras. O sentido do tempo mitificado pelas manchetes da
revista Boa Forma é distinto da lógica do tempo vivido. O que se propõe na fala mitificada
das manchetes da Boa Forma é um tempo pasteurizado, achatado, comprimido e desprovido
de sua complexidade totalizadora. Diríamos que esse é um tempo-outro.
A característica primordial do texto de capa da revista Boa Forma é a publicidade de
técnicas, de produtos, de atividades que incidem diretamente no corpo. O discurso
amplamente utilizado nas capas da revista é sempre um discurso de divulgação, em suma,
propagandístico. Nesse sentido, essas falas são ancoradas numa dimensão de discurso
enquanto gênero secundário. Mikhail Bakhtin (2011) afirma que o discurso secundário é
fundamentado pela complexidade da função desses discursos no âmbito cultural e social.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da criação verbal. São
Paulo: Editora WFM Martins Fontes, 2011.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. PetrópoliS, RJ: Vozes, 2013.
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Poder-Saber. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
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______. Do governo dos vivos. In: _____; Ditos e Escritos IX: Genealogia da ética,
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______. O sujeito e o poder. In: _____; Ditos e Escritos IX: Genealogia da ética,
subjetividade e sexualidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014b.
PELBART, Peter Pál. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: N-1
Edições, 2013.