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All content following this page was uploaded by Tiago Camarinha Lopes on 15 September 2016.
D
ívida: os primeiros 5000 anos, do antropólogo e ativista
social David Graeber, é uma obra de fôlego com identidade
própria. Trata-se de um tratado que busca não só descre-
ver historicamente a trajetória das relações de dívidas entre as
pessoas, em todas as suas variações e tipificações, mas também
de encontrar uma regularidade na mudança dessas relações. Isso
indica uma trilha bem demarcada pela tradição da antropologia
de Marcel Mauss e Marshall Sahlins (temperada com a vertente
em Economia Política chamada mutualismo) que não se apequena
na hora de encarar os desafios de se contrapor ao predomínio do
economicismo em suas diversas variações. A mensagem é ende-
reçada especialmente para todos os leitores sob forte influência
dos ensinamentos da área de economia que resistem em levar
em consideração as múltiplas dimensões das relações humanas
que escapam à lógica da relação social mercadoria. O livro deve
também ser visto como um dos resultados intelectuais da Crise de
2008, momento em que as tensões de dívidas foram externaliza-
das em uma série de acontecimentos, fazendo com que o questio-
namento mais amplo sobre a viabilidade histórica do capitalismo
voltasse ao debate.
Um dos principais ataques desenvolvidos por Graeber é dire-
cionado contra a versão “oficial” sobre origem do dinheiro, que
está intimamente ligada com o “mito do escambo”. O mito faz com
que se pense que o dinheiro foi uma invenção deliberada e harmo-
niosa, quando na verdade ele teria sido o resultado de uma séria
de relações de violência que acabaram criando dois lados muito
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nítidos na relação social normal do mercado. Uma das forças
centrais do livro está, assim, relacionada com um problema
concreto enfrentado pela massa pobre do mundo atual que parece
ser desprezada pela perspectiva economicista rígida: o endivida-
mento. Aqui, estar em dívida é como estar preso, porém de uma
maneira peculiar. A opressão dessa relação se ajusta às condições
variadas de tal forma que ela sempre se volta contra o lado mais
fraco da relação. É assim que se abre o livro com um provérbio
norte-americano que captura com precisão esse raciocínio: “Se
você deve ao banco 100 mil dólares, o banco controla você. Se
você deve ao banco 100 milhões de dólares, você controla o banco”.
A suposição de que dívidas precisam ser pagas é veementemente
contestada por Graeber, que busca demolir pacientemente ao
longo de 12 capítulos recheados com uma vastidão de informa-
ções empíricas acumuladas pela antropologia a naturalização do
contrato entre credor e devedor como o entendemos hoje.
O autor dedica-se inicialmente às confusões e incongruências
da relação chamada dívida. Graeber destaca que esse tipo de rela-
ção não pode ser pensada fora do tempo e do espaço. Ou seja, o
conceito de dívida não pode ser entendido como algo de padrão
único, mas como uma relação entre pessoas que varia muito de
acordo com a época e a sociedade em questão. Para ele, a dívida
referente àquela relação de mercado onde uma das partes é o
credor e a outra o devedor de uma quantia exata de dinheiro, bem
definida, quantificável até os centavos, em toda sua dinâmica
temporal com juros exatos, é apenas uma forma desse tipo de
relação entre pessoas.
Depois de ter dedicado o capítulo 1 a explorar essa amplitude
da noção de dívida, Graeber se volta ao mito do escambo no capí-
tulo 2. Aqui encontramos um estudo sistemático da visão smithiana
sobre a origem do dinheiro. Em poucas palavras, Graeber golpeia
com força a história popularizada por Adam Smith de que o
dinheiro teria emergido a partir do escambo entre pessoas livres
num ambiente de paz e cooperação: nada seria mais equivocado do
ponto de vista histórico imaginar que existiu uma etapa em que os
seres humanos trocavam objetos como se fossem mercadorias
completas. Na verdade, a ilusão é tão gritante que Graeber faz
questão de demonstrar a partir dos livros-texto de economia que
tal etapa sempre é apresentada com o recurso do “suponha que…”.
As autoridades em economia exigem que se imagine uma economia
de escambo justamente porque não existe material empírico que dê
respaldo a este tipo de situação social. Desse modo, o leitor é corre-