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análise intertextual
1 Introdução
Tal entendimento muitas vezes encontra guarida em doutrina nacional que de forma
inusitada defende a importação acriteriosa de práticas civilistas para o direito tributário
no afã de implementar uma tão sonhada "justiça fiscal" - calando-se em doutrinas e
práticas estrangeiras incompatíveis com o ordenamento tributário pátrio vigente -;
desconsiderando, para isso, a natureza jurídica e as peculiaridades dos institutos cuja
aplicação na seara tributária defendem vigorosamente.
Dentre esses institutos está o do "abuso de direito" que foi formulado inicialmente por
doutrina e jurisprudência europeias para, em seguida, passar a influenciar os códigos
civis vigentes no século XX e o atual código civil brasileiro cuja aplicabilidade é defendida
por parte da doutrina tributária.
Por fim serão apresentadas as conclusões a respeito da matéria, as quais espero sirvam
para contribuir para uma melhor apreciação do trânsito entre direito civil e direito
tributário, em especial da aplicação ou não, nesse último, de figuras como a do "abuso
de direito".
2 Sistema do direito positivo e intertextualidades jurídicas
Antes de se adentrar no tema central do breve estudo que ora me proponho a realizar se
faz interessante analisar a noção de "sistema do direito positivo" que desde a era
moderna vem dominando não só os estudos do tema jurídico, como, também, a própria
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produção legislativa.
Esse breve introito - por meio do qual não se pretende adentrar as minucias e severos
debates existentes em torno da teoria dos sistemas e sua aplicabilidade ao direito - se
faz extremamente necessário na medida em que confere o ferramental básico para que
se possa trabalhar com o relacionamento entre o instituto civilista do "abuso de direito" -
foco central do trabalho - com o direito tributário.
Para que se possa falar em "sistema jurídico" é preciso que o objeto a que se pretende
apontar tal denominação - no caso, o direito positivo - possua as características postas
para o reconhecimento de um sistema em si.
Os sistemas, com base nos elementos que o compõe, podem ser classificados em reais
ou proposicionais, sendo os primeiros compostos por objetos de percepção
física/existencial por parte do agente cognoscente (como é o caso do sistema solar, por
exemplo) e os últimos formados por proposições linguísticas, essas podendo ser do tipo
lógico-formais - que darão ensejo aos sistemas nomológicos (como o matemático, p.
ex.) - ou tendo como referencial um dado empírico dando origem a um sistema
nomoemprírico composto por proposições prescritivas - de cunho regulamentador - ou
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descritivas - de caráter científico.
O direito, não há dúvidas, é um subsistema inserto no amplo sistema social sobre o qual
exerce o papel de regulador de relações intersubjetivas entre os participantes dessa
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comunidade, daí porque poder ser classificado como um sistema nomoempírico
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prescritivo formulado e estruturado de forma racional.
Esses dois outros axiomas típicos do direito positivo - "validade" e hierarquia" - que
derivam da norma fundamental são essenciais a configuração e funcionalidade do
sistema jurídico já que fornecem os critérios para a solução de antinomias que
fatalmente existirão na relação entre os componentes do todo entre si e com esse, como
ensina Paulo Ayres Barreto:
"O direito, assim como outros sistemas normativos, não prescinde de alguns axiomas
para tornar-se operacional. Assim é, v.g., em relação à norma hipotética fundamental.
Trata-se de axioma a partir do qual deriva toda a positivação do direito. Nesta trilha,
impede reconhecer que não há ordenamento jurídico que se possa estruturar sem a
definição de sua hierarquia e do critério de reconhecimento de validade de suas unidades
normativas. Hierarquia e vaidade são dois axiomas do direito positivo (...).
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A figura do "abuso de direito" e o direito tributário: breve
análise intertextual
De outro lado, contudo, a consideração unitária do ordenamento jurídico não pode levar
o exegeta a desconsiderar as peculiaridades existentes em cada um desses subconjuntos
de feixes normativos e em especial seus vetores comuns que os aglutinam para formar
esses subsistemas - como os princípios e regras específicos do direito tributário, por
exemplo - a fim de impor um trânsito acriterioso entre elementos de um microssistema
para o outro, tal como alerta Paulo Ayres Barreto quando afirma que:
E assim deve ser, pois como bem lembra Misabel Abreu Machado Derzi, o sistema do
direito possui em seu bojo partes móveis (assemelhadas à tipos) mais suscetíveis à
modificações e à valorações por parte do intérprete/aplicador da norma e outras que são
consideradas imóveis já que calcadas em regramento rígido no intuito de garantir da
melhor maneira a previsibilidade e a segurança jurídica e que, por isso, não são tão
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suscetíveis às mudanças da realidade deixando o exegeta extremamente limitado.
Em outras palavras, o limite que desde logo se vislumbra entre o trânsito entre
elementos gestados em um ramo do direito sob as particularidades desse microssistema
para outro subsistema do ordenamento é, ao fim e ao cabo, o próprio texto e seu
contexto, e não as preferências do intérprete ou questões maiores ligadas a fins nobres -
como as propaladas "justiças sociais."
Com a promulgação da Lei 10.406/2002 que positivou o Novo Código Civil houve uma
grande alteração nos paradigmas legais adotados até então em matérias de direito
privado. Há com a nova legislação uma preocupação de socialização do direito civil e de
aproximá-lo mais de um arcabouço principiológico do que de um regramento tido pela
doutrina civilista como individual e formalista.
Pelo primeiro desses vetores, segundo lições de Reale, buscou-se superar o formalismo
para dar a devida importância aos valores éticos no ordenamento jurídico o que foi feito
pela opção frequente por utilização no novo código de normas genéricas "a fim de
possibilitar a criação de modelos jurídicos hermenêuticos, quer pelos advogados, quer
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pelos juízes, para contínua atualização dos preceitos legais."
Quanto à socialidade, essa, o autor explica que tal princípio - versado pela boa-fé e bons
costumes - tem o condão de superar o individualismo então vigente no Código Civil de
1916 e possui como corolário a imposição de uma função social aos direitos e posições
normativas detidas por determinado sujeito em face da comunidade em que ele se
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insere.
Por fim, no que se refere à operabilidade, essa se verifica, nas palavras de Miguel Reale,
na medida em que o novo Código Civil preocupou-se em solucionar dúvidas
anteriormente existentes quanto à preceitos e institutos da legislação anterior e a evitar
que novas outras viessem a surgir, o que foi feito, muitas das vezes, positivando
preceitos indeterminados cuja fixação de limites ficaria a cargo do juiz em determinado
caso concreto "à luz das circunstâncias ocorrentes", pois, para o autor "o que se objetiva
alcançar é o direito em sua concreção, ou seja, em razão dos elementos de fato e de
valor que devem ser sempre levados em conta na enunciação e na aplicação da norma."
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Vê-se, então, que o modelo operacional posto pelo Novo Código Civil, na esteira da
análise feita por Humberto Ávila, é o de "concreção a posteriori", ou seja, caberá ao juiz,
a luz do caso concreto, definir o que venha a ser socialidade, eticidade, bons costumes,
boa-fé. E assim o é, pois tais conceitos trazem notas de indeterminação que impedem ao
intérprete conhecer seus limites de antemão, a não ser após aplicados em concreto, o
que, segundo o autor, faz com que conheçamos as obrigações não antes, mas, sim,
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depois.
Essas características do direito civil atual fornecem campo fértil e próprio para o
desenvolvimento e aplicação de teorias tal como a dos "ilícitos atípicos" desenvolvida a
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fundo por Manuel Atienza e Juan Ruiz Manero. Segundo os autores haveria dois tipos
de ilícitos: um "típico" que seria aquele por meio do qual determinada conduta violaria
preceito proibitivo/obrigatório definido em regra de mandato; e outro "atípico" que
seriam aqueles cujas condutas, apesar de prima facie albergadas por uma regra
permissiva, considerando-se todos os fatores do caso concreto, seria possível perceber
uma infração a princípios cogentes que tornaria aquela conduta como ilícita, invertendo o
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próprio sentido da regra permissiva.
presentes na maioria das regras, seriam aquelas em que o predicado de fato da regra
não albergaria situações que produziriam, em casos particulares, a consequência
posta/esperada pela justificativa daquela norma. Já a sobre includência englobaria
situações que não representariam, em certos casos, a justificativa da norma, ainda que
aquele estado de coisas, previsto como um tipo legal, esteja relacionado de forma
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probabilística com a maioria dos casos em que a justificativa incidiria.
Em outras palavras, regras sub includentes seriam aquelas que não trariam em sua
descrição fática situações que ocorridas estariam albergadas pela justificativa da norma
caso essa viesse a incidir. De outro lado, as normas sobre includentes trariam em seu
bojo situações outras que não estariam inclusas nas hipóteses intentadas da justificativa.
Com base nessas definições, Atienza e Manero reconhecem nos "ilícitos atípicos" o
produto de um processo de "analogia iuris" por meio do qual, em situações de sobre
includência o julgador acaba por erigir nova regra proibitiva a limitar o âmbito de
permissão descrito pela regra anterior, na qual se sustentava; a conduta praticada não
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se encaixe na justificativa da regra. Para os autores, as figuras do "abuso de direito",
da "fraude à lei" e do "desvio de poder" seriam as figuras típicas dessa espécie de ilícito.
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Transpondo tais noções ao direito civil brasileiro, não há dúvidas em afirmar que o
instituto do "abuso de direito" é espécie clara dos chamados "ilícitos atípicos" e de
hipóteses por meio das quais é possível enxergar a concreção dos princípios da eticidade
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e operabilidade a que se referia Reale. É o que entende, também, Heleno Taveira
Tôrres ao tratar desses institutos no âmbito do direito privado nacional:
Dito isso, far-se-á uma análise mais pormenorizada desses dois institutos de direito civil
para, na sequência, analisar a sua (in)aplicabilidade ao direito tributário nacional.
3.1 Do "abuso de direito"
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do português, que são fontes diretas do atual art. 187 do CC/2002.
Entretanto, a tipificação do instituto do "abuso de direito" não era visível no Código Civil
de 1916, o que somente ocorria após um esforço hermenêutico a contrario sensu do art.
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160, I, 2ª parte, do referido diploma legal que previa a licitude do exercício regular de
um direito.
Como ensina Pontes de Miranda, todo exercício de direito, fatalmente, lesará interesse
ou direito de terceiros, a questão que se coloca é saber se é regular ou não tal exercício.
Não sendo regular o exercício de um direito, como aponta o autor, haveria o exercício
ilícito ou "abuso do direito", cuja prova da regularidade do exercício do direito competiria
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ao seu titular a quem incumbiria o dever de reparar o dano causado.
Clóvis Beviláqua, por sua vez, já afirmava à época a necessidade de limitações éticas ao
exercício do direito e redução de seus intuitos egoísticos, vislumbrando já no citado
dispositivo do antigo Código Civil a noção de "abuso de direito" qualificada pelo exercício
anormal desse, deixando claro que "a consciência pública reprova o exercício do direito
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do indivíduo, quando contrário ao destino econômico e social do direito, em geral."
"Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou
pelos bons costumes."
Nesse ponto é possível afirmar com Teresa Ancona Lopezque o Código Civil foi coerente
com as bases principiológicas por ele estabelecidas tendo como referência,
principalmente, a eticidade e a socialidade, ao taxar de antijurídico o ato que extrapola
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os limites impostos por essa carga axiológica, adotando, embora sem referência direta,
a teoria do "abuso de direito" como um ilícito atípico configurado quando há o
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desrespeito àqueles princípios postos no dispositivo.
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Ou seja, como lembra Maria Helena Diniz, a nova legislação civil passou a exigir uma
"valoração axiológica do exercício de um direito subjetivo" a fim de confirmar a licitude
do ato, impondo ao agente que atente-se ao contexto social no qual exerce sua
prerrogativa sob pena de sua atitude, desrespeitando os limites sociais e éticos impostos
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pela vida em sociedade, ser considerada abusiva.
Outro não poderia ser o entendimento. Isso porque, o art. 186 do CC/2002 inaugura o
Título III (Dos atos ilícitos) do Livro III (Dos fatos jurídicos) do código, definindo o que
venha a ser ilícito doloso e culposo vinculando o conceito à existência de dano a outrem.
Na sequência, o art. 187 do CC/2002 vem a definir outro tipo de ato ilícito considerado
pelo código, aqueles abusivos do qual aqui se trata, não exigindo, para tanto, elementos
volitivos do agente, apenas que a conduta seja "manifestamente" (ou seja, determinável
objetivamente) contrária aos princípios/valores ali elencados.
Do que se conclui que para a configuração do "abuso de direito" nos termos postos pela
legislação civil brasileira, não se exige o dolo ou a culpa do titular da prerrogativa
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jurídica e deve haver um dano considerado abusivo ou anormal aos olhos dos valores
que embasam o direito civil (eticidade, socialidade, boa-fé, bons costumes, etc.), que
gerará, no plano prático, o dever de indenizar.
Essa rigidez constitucional em matéria tributária é evidenciada por Paulo Ayres Barreto
em sua tese de livre-docência, quando o autor aponta que a conferência de competência
tributária ao ente federado possui caracteres positivos e negativos que podem ser
plasmados em sucessivos círculos concêntricos de diâmetro cada vez menor, que
formariam uma espécie cuneiforme em cuja base estaria o exato campo de atuação do
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legislador tributante. Em outras palavras, a competência tributária desde a sua
instituição (círculo de maior diâmetro) até a sua efetiva realização (circunferência
menor), sofreria sucessivas limitações de cunho constitucional ao longo do percurso de
produção da norma tributária a evidenciar que em direito tributário o constituinte prezou
por um estrito delineamento do campo de atuação do legislador infraconstitucional e, por
conseguinte, do próprio intérprete/aplicador da norma tributária.
A visualização dessa espécie cuneiforme a que alude Barreto fica clara quando
adentramos ao texto constitucional e deparamo-nos com limitações como, por exemplo,
o respeito à capacidade contributiva (145, § 1.º da CF/1988); à legalidade estrita no
exercício da competência tributária (150, I da CF/1988); à isonomia (150, II da
CF/1988); à vedação à retroatividade da norma tributária e a exigência ao respeito de
regras de anterioridade - anual e noventena - (150, III da CF/1988), à instituição de
tributo com efeito confiscatório (150, IV da CF/1988), e tantas outras que, somadas à
rígida repartição de competência, dão conta de que o direito tributário, ao contrário de
boa parte do direito civil - como a dos contratos ou de obrigações, nas quais residem,
basicamente, o instituto do "abuso de direito" -, constitui parte imóvel do ordenamento
jurídico na medida em que, ante à contingências da realidade, não está sujeito à
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A figura do "abuso de direito" e o direito tributário: breve
análise intertextual
Essa imobilidade ou rigidez do direito tributário pátrio constitui para Humberto Ávila uma
das principais diferenças entre esse subsistema e o do direito civil na medida em que
esse último, por basear-se em cláusulas gerais, estaria sujeito à um "modelo de
concreção a posteriori" por parte do julgador ante à peculiaridades do caso concreto o
que faz com que o cidadão, em certos casos, apenas saiba de suas obrigações em
momento posterior a ocorrência fática, enquanto que o direito tributário preza por um
modelo de previsibilidade instaurado pela Constituição a impor ao particular a
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possibilidade de antever suas obrigações para o futuro.
O que implica concluir que na transição entre institutos de direito civil para o campo
tributário é preciso que se respeite a supremacia constitucional e o regramento por ela
estabelecido. Entendimento esse partilhado por Paulo A. Barreto, a saber:
"O que não se pode admitir é a possibilidade de, por intermédio de um grande salto,
desconsiderar todo um regramento tributário específico sobre o tema - que parte de
princípios tributários, postos no plano constitucional, e sofre um processo contínuo de
redução da abstração desses comandos principiológicos por intermédio de regras
produzidas em consonância com tais princípios, em razão da efetiva e objetiva atuação
do legislador competente para dispor sobre essa matéria, regrando-a - para dar a
solução que convém ao intérprete, ou que atina com a sua ideologia, erigida à luz de
princípios de direito privado, cuja positivação está fundada em outra perspectiva
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valorativa."
Daí porque, em minha opinião, não se ter como concordar com autores como Teresa
Ancona Lopes que afirmam ser o "abuso de direito" figura autônoma aplicável a todos os
ramos do direito (seja público ou privado) bastando que o exercício do direito venha a
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afrontar princípios e valores do sistema acabando por prejudicar terceiros. Isso
porque, como restou claro nos tópicos acima delineados, a configuração do "abuso de
direito" parte de uma indeterminação e exige um nível de concreção que são
incompatíveis ao modelo de previsibilidade e à imobilidade do direito tributário posta -
não pela vontade do intérprete -, mas, sim, pelo constituinte ao detalhar as minúcias do
sistema tributário nacional na Carta Magna.
Nesse ponto, pertinente a provocação feita por Paulo A. Barreto que demonstra a
inaplicabilidade desse instituto ao direito tributário quando o autor ressalta que a
verificação da ocorrência da abusividade é de extrema dificuldade no direito civil -
acostumado às flexibilidades exigidas por esta categoria - que dirá no direito tributário,
que é eminentemente rígido e pautado por regras.
Com base nisso, é possível concluir, com Maria Rita Ferragut, que a aplicação da figura
do "abuso de direito" - dos ilícitos atípicos - na seara tributária, regrada pela legalidade,
implicaria a "quebra da previsibilidade do contribuinte em relação à conduta estatal, por
que ele não tem como saber se a conduta que pretende realizar (ou já realizou) é ou não
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considerada punível pela Administração Pública."
Também, firme nas premissas aqui adotadas, não há como anuir com as conclusões a
que chega Octávio Campos Fischer de que o "abuso de direito" seria categoria de "ilícito
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atípico" no direito tributário, com base no apontado por Atienza e Manero.
A configuração de ilícitos atípicos exige - como acima demonstrado por meio da teoria
daqueles autores espanhóis -, não só um grau de indeterminação para definir quais os
valores atingidos pelas condutas adotadas pelo particular, como, também, apontam para
a necessidade do julgador, ante as peculiaridades do caso prático, erigir uma nova regra
- por analogia iuris - a delimitar a norma permissiva. Segundo Atienzae Manero haveria
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A figura do "abuso de direito" e o direito tributário: breve
análise intertextual
uma "encomenda" do legislador ao aplicador para que esse determine, no caso concreto,
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a existência do ilícito.
Ora, o nosso sistema tributário nacional veda o uso da analogia para a exigência de
tributos tanto de forma implícita quando impõe a legalidade estrita para a cobrança de
tributo (art. 150, I da CF/1988), quanto explicitamente ao vedar o emprego de tal
técnica (art. 108, § 1.º, do CTN). Portanto, não há espaços para a aplicação da teoria
dos ilícitos atípicos no direito tributário pátrio, até porque não há delegação legislativa
exigida para a aplicação desse tal instituto e, na seara tributária, tal "encomenda"
acabaria por recair sobre a Administração Tributária, principal interessada na
configuração do "ilícito".
Nesse ponto, aliás, reside outro óbice intransponível à aplicação do instituto do "abuso
de direito" na área tributária que tem sido desconsiderado por autores que defendem a
existência dessa figura quando o contribuinte planeja suas atividades com o único intuito
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de economizar tributo, vez que a aplicação desse instituto, tal como quer esses
autores, leva a conclusão de que o contribuinte praticou um ilícito - já que o "abuso de
direito" é assim definido pelo art. 187, do CC/2002 - que causou dano ao Erário e que,
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por isso, deveria ser reparado com a exigência do tributo elidido.
Isso é inadmissível ante ao direito tributário pátrio. A uma porque não há ilícito algum,
vez que a atividade válida e real desenvolvida pelo contribuinte com o intuito de reduzir
a carga tributária sobre ele incidente encontra-se no campo de suas liberdades
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constitucionalmente garantidas, não podendo, em hipótese alguma, ser caracterizada
como ilícita. Em segundo lugar, ainda que assim não fosse e pudesse caracterizar-se tal
ação do contribuinte como ilícita (ainda que uma ilicitude atípica), a exigência do tributo,
em consequência, transmudaria de forma indevida a natureza dessa prestação
pecuniária que o Código Tributário nacional expressamente veda seja utilizada como
sanção a ato ilícito (art. 3º do CTN,).
Por fim, é curioso notar que geralmente a doutrina defensora da aplicação do "abuso de
direito" tal como posto no Código Civil o faz atrelando-o a elemento subjetivo que a
própria legislação civil descarta - intenção exclusiva de praticar o dano ou, no caso, de
reduzir a carga tributária - denunciando, mais uma vez, a impropriedade de conclusões
desse gênero.
Vê-se, então, que "no campo do direito tributário a teoria do abuso de direito não tem
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qualquer aplicação," para lembrarmos a conclusão de João Francisco Bianco. Conclusão
semelhante a que chega Heleno Tôrres, ainda que por razões distintas, quando de minha
parte, aliás, entendo pela completa inaplicabilidade de tal instituto na seara tributária
ainda que superados estivessem os critérios de antinomia previstos por Paulo Ayres
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Barreto como requisitos para o trânsito entre direito civil e direito tributário, isso
porque, em meu entender, seria inviável ao legislador tipificar figura semelhante a reger
a relação tributária sem que todo o modelo constitucional adotado para esse ramo,
calcado que é na previsibilidade, na segurança jurídica e, principalmente, na legalidade
estrita derrui-se, sendo forçoso reconhecer que qualquer atitude legal nesse sentido
restaria fulminada pela praga da inconstitucionalidade.
Nessa esteira é possível verificar que o direito civil brasileiro atual restou calcado,
basicamente, em princípios como o da eticidade, socialidade e operabilidade, os quais,
por sua vez, demandam a existência de cláusulas indeterminadas sujeitas à concreções
no caso concreto por parte do julgador, o que garante ao intérprete uma maior
mobilidade na aplicação da norma civilista, campo fértil e apropriado para o
desenvolvimento da teoria dos "ilícitos atípicos" existentes quando há, não a infração de
uma regra, mas, sim, a violação de um princípio por parte de uma conduta tida como
lícita por determinada norma.
Esse é, aliás, o conceito incorporado pelo legislador no art. 187 do CC/2002, na medida
em que taxou de ilícita a conduta que, embora inicialmente albergada por uma regra que
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A figura do "abuso de direito" e o direito tributário: breve
análise intertextual
garantisse o direito àquela ação por parte do sujeito passivo, acabe por infringir,
manifestamente, cláusulas abertas como de fins econômicos e sociais, boa-fé e bons
costumes, o que ensejará o dever de reparar os danos causados, sendo desnecessária a
demonstração de dolo ou culpa.
Essa imobilidade, previsibilidade, do direito tributário não confere espaços para que o
intérprete/julgador da norma tributária a complemente diante de situações contingentes
postas pela realidade, sendo expressamente vedado o uso de analogias, diferentemente
do que ocorre no âmbito do direito civil.
Além do mais, a doutrina tributária que defende a aplicação desse instituto quando o
contribuinte planeja suas atividades com o intuito exclusivo de reduzir a carga tributária
não se atenta para o fato de que: (i) a conduta do contribuinte encontra-se no plano de
suas liberdades garantidas constitucionalmente; (ii) o ato em abuso de direito é
considerado ilícito e exige uma reparação pelo dano, no entanto, o tributo é instituto que
por sua natureza não pode ser utilizado como sanção à ato ilícito; e (iii) não há dano
algum aos direitos e interesses do Fisco, vez que esses somente surgem com a
realização da hipótese de incidência descrita no antecedente da regra matriz de
incidência tributária; até que tal evento ocorra, há mera expectativa de direito.
Ataliba, Geraldo. Sistema constitucional tributário. São Paulo: Ed. RT, 1968.
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4 Carvalho,Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 21. ed. São Paulo: Saraiva,
2009. p. 139-141.
14 Reale,Miguel. Visão geral do novo Código Civil. In: Tapai, Giselle de Melo Braga
(coord.). Novo Código Civil brasileiro: estudo comparativo com o Código Civil de 1916,
Constituição Federal, Legislação codificada e extravagante. 3. ed. São Paulo: Ed. RT,
2003. p. 13.
15 Idem, p. 14.
16 Idem, p. 16.
18 Em que pese os autores advogarem a aplicação dessa teoria para todo o direito -
exceto o Direito Penal espanhol - em meu ver, como na sequência deixarei claro, não é
possível a transposição dessas noções para outros campos que não tenham bases
principiológicas como o tem o direito civil.
22 São essas as palavras dos autores: "nas hipóteses de analogia iuris, trata-se
simplesmente de que o equilíbrio entre os princípios relevantes exige o surgimento de
uma nova regra proibitiva, não existindo uma regra prévia que consideremos
infra-inclusiva. Pelo contrário, em relação ao segundo tipo de ilícitos [por analogia iuris
ou atípicos], trata-se de hipóteses nas quais - usando a terminologia de Schauer- uma
regra de permissão resulta supra-inclusiva com relação às exigências dos princípios que
constituem sua justificação subjacente ou com as exigências de outros princípios do
sistema: a restrição no alcance ou âmbito de aplicação de uma regra de permissão (que
caracteriza tanto o abuso de poder, como a fraude à lei ou o desvio de poder) é
produzida porque se trata de ações que, ainda que sejam prima facie subsumíveis a uma
regra de permissão, não resultam concordes à justificação subjacente dessa regra de
permissão, ou esta se vê deslocada por algum outro princípio que, no caso concreto, tem
um peso maior" (Atienza,Manuel; Manero, Juan Ruiz. Op. cit., p. 28).
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A figura do "abuso de direito" e o direito tributário: breve
análise intertextual
25 Torres, Heleno Taveira. Teoria da simulação de atos e negócios jurídicos. Revista dos
Tribunais 849. São Paulo: Ed. RT, jul. 2006. p. 34.
32 Idem, p.61.
33 Diniz,Maria Helena. Código civil anotado. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 220.
35 Atienza,Manuel; Manero, Juan Ruiz. Op. cit., p. 50. Vale a pena notar que apesar dos
autores espanhóis levarem em conta na formulação de sua teoria as noções de sobre e
sub includência das regras elaboradas por Frederick Schauer eles não adotam por inteiro
a obra do doutrinador americano, haja vista esse ser expresso ao afirmar que: "there is
nothing inherently or necesarily wrong with an under-inclusive rule" ("não há nada
inerente ou necessariamente errado com uma regra subinclusiva". cf. Schauer,Frederick.
Playing by the rules:a philosophical examination of rule-based decision-making in law
and in life. Oxford: Clarendon, 2002. p. 33. Tradução livre).
37 Venosa,Silvio de Salvo.Direito civil:parte geral. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 528.
vol. I.
38 Tal como a vertente objetiva do "abuso de direito" traçada por Atineza e Manero. (Cf.
Atienza,Manuel; Manero, Juan Ruiz. Op. cit., p.48).
privados cujos efeitos repercutem na esfera tributária. Mas para que o Fisco se valha
desta figura e declare a ineficácia dos atos e negócios jurídicos celebrados pelo
contribuinte, com o objetivo de buscar os efeitos tributários decorrentes dessa
declaração, é necessário que a autoridade fiscal, na motivação do ato de lançamento,
aponte de forma clara e convincente os fatos que caracterizaram o abuso. (...)" (MF,
CARF, 2ª Seção, 1.ª T. especial, acórdão 2801-002.733, DOU 30.10.2012).
40 Ataliba, Geraldo.Sistema constitucional tributário. São Paulo: Ed. RT, 1968. p. 37-39.
50 Idem, p. 67
51 Idem, p. 69.
52 Cita-se, como exemplo, a doutrina de Marco Aurélio Greco: "Com a tese do abuso de
direito aplicado ao planejamento fiscal, se o motivo predominante é fugir à tributação, o
negócio jurídico será abusivo e seus efeitos fiscais poderão ser neutralizados perante o
Fisco. Ou seja, sua aplicação não se volta a obrigar ao pagamento de maior imposto,
mas a inibir as práticas sem causa, que impliquem menor tributação." (Greco,Marco
Aurélio.Planejamento tributário. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2011. p. 213). Segue em
linha semelhante Ricardo Lobo Torres (cf. Torres, Ricardo Lobo. Normas de interpretação
e a integração do direito tributário. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 147).
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