Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
contribuinte
1. Introdução
O privado traz uma ideia de privação de algo que falta, algo que não pode ser visto ou
ouvido; enquanto o público assume dupla significação, sendo aqui que emerge do íntimo
para compor a realidade aparente, e o próprio mundo de coisas que se interpõe entre as
pessoas, na medida em que é comum a todos Arendt (2007).
Com a elevação dos assuntos privados à esfera pública, caracterizada, sobretudo pela
elevação da economia a nível nacional, como ciência social por excelência Arendt (2007),
o privado subverte o público. O homem contemporâneo, fruto desta sublevação, é
privado de ouvir e ser ouvido. É parte de uma sociedade de massas onde o indivíduo,
prisioneiro da subjetividade, não é mais cidadão, mas passa a ser cliente. O
desenvolvimento da administração – próximo passo da economia – leva o mundo inteiro
a ser visto como uma vasta clientela, e o sentido das organizações torna-se satisfazer as
necessidades dos seus clientes para que estes sejam felizes Machado (2002). A esfera
pública Losekan (2009), é o sustentáculo de uma sociedade onde conceitos como a
felicidade coletiva, a política e a liberdade dão lugar ao consumo, ao hedonismo e ao
1
individualismo como sentido de realização pessoal.
A sociedade de massas hodierna não estabelece, como na antiga polis grega uma espaço
político, mas um espaço onde as necessidades comuns são discutidas. Com a confusão
estabelecida entre riqueza e propriedade estabelecida a partir da idade moderna Arendt
(2007) e dado ao eminente caráter garantidor de necessidades básicas que a
propriedade privada contém, acumular “riquezas limitadas” para suprir “necessidades
2
ilimitadas” passa a ser o problema comum discutido no âmbito público. Na sociedade de
massas onde sobreviver passa a ser o elementar, o mundo entre as pessoas perde a
força de mantê-las juntas, de relacioná-las e separá-las Arendt (2007).
A partir do Estado liberal a riqueza passa a ser colocada como condição de participação
na vida política. A polis e a res publica perdem seu caráter original de refúgio à futilidade
da vida humana, e enquanto espaço de iguais passa a ser controlado pela burguesia.
No Estado moderno ocorre uma confusão entre o fim do Estado e os valores da classe
burguesa erigidos a status legal pelas ordens constitucionais. O Estado serve a
interesses privados de grupos hegemônicos, e na esfera do social nasce a ideia de bem
comum, pelo qual deve o Estado zelar Souza (2009).
Este bem comum, que nada mais é do que a garantia de acumulação de riquezas,
representado pelo ideal de estado mínimo, se coloca como uma contradição, pois
garante também o efeito regressivo dos tributos, tão combatido pela justiça tributária. A
estrutura do Estado, enfim, acaba sendo a grande responsável pela espoliação da
propriedade privada dos menos abastados. Sem o mínimo existencial, não há esfera
pública que caracteriza a liberdade.
A ideia de um bem comum, por fim, encerra o surgimento de uma sociedade de massas,
onde a ação dá lugar à conformação. O direito positivo emerge de um anseio de
neutralidade, cujo efeito prático nada mais é do que decretar como universais os valores
e a noção de Homem da classe burguesa, decretando de uma vez a morte de deus – e
da política.
Admitir a emergência de uma esfera social no Estado moderno, que englobe as esferas
públicas e privada, não significa admitir seus esvaziamentos. Muito pelo contrário, no
Página 2
Cidadania tributária: o estatuto constitucional do
contribuinte
Brasil a esfera privada tem se afirmado desde os anos trinta sobre a esfera pública,
inclusive se utilizando desta. Isso significaria considerar os direitos humanos como mera
concessão das classes hegemônicas e negar um importante papel político que o direito
pode ter se utilizado como instrumento de afirmação da condição humana. Ao contrário,
3
tomando como base até mesmo as recentes discussões que tem tomado parte o STF,
evidencia-se a possibilidade da manutenção da esfera pública através da ação política de
todos os cidadãos. E ao invés de se falar em uma sociedade (que remete à ideia de
indivíduos com interesses que se agregam para atingir um determinado interesse
individual), deve a partir do renascimento da política se falar em uma comunidade, onde
diversos indivíduos constroem um aparato jurídico, econômico e estatal, para satisfazer
suas necessidades comuns enquanto seres humanos, para a partir daí exercer o mais
fundamental dos direitos: a liberdade.
Contudo essa percepção não encerra todas as nuances que o conceito de cidadania
encerra. Reis (1997, p. 12) identifica quatro aspectos mais ou menos comuns em
diferentes tradições teóricas: o aspecto histórico, o aspecto includente/excludente; uma
tensão permanente entre uma visão de cidadania como status e uma visão de cidadania
como identidade; e outra tensão entre a ideia de virtude cívica e direito ou
prerrogativas. Matos (2009) chama de cidadania multidimensional, ou conceito
multidimensional de cidadania.
E assim o autor contrapõe as ideias de cidadania – operada por uma igualdade jurídica –
e de classe social, cujo fundamento seria uma desigualdade entre os sujeitos. E aí
percebe-se já em Marshall um elemento essencial para compreender a cidadania como
um conceito sempre em disputa: a classe social, por outro, é um sistema de
desigualdade. E esta também, como a cidadania, pode estar baseada num conjunto de
ideais, crenças e valores Marshal (2009, p. 76). Ao reconhecer este conjunto de ideais,
crenças e valores, que podem fundamentar tanto a ideia de cidadania quanto a de classe
social dá abertura para dissociar a cidadania do jus naturalismo, assumindo que tanto os
direitos quanto a própria cidadania podem modificar-se ao longo do tempo, a partir dos
conflitos sociais, das mudanças estruturais dos meios de produção etc. A importância do
texto de Marshall situa-se por ter enunciado uma questão crucial na(s) teoria(s) da
cidadania: a da existência de tensão permanente e paradoxal entre forças opostas e
coexistentes. E completa a autora que para compreender o fenômeno da cidadania, é
absolutamente importante entender como foram (e continuam sendo) articuladas as
diferenças sociais, políticas entre o público e o privado Matos (2009).
Sem negar a importância do texto de Marshall, é preciso ter a ressalva que os elementos
pontuados pelo autor sobre o desenvolvimento da cidadania na Inglaterra, muito antes
de poderem ser encarados como argumentos pela universalização dos processos de
construção da cidadania, provam justamente o contrário, quando se considerado
enquanto processos tão díspares como o norte-americano, o francês e o brasileiro, por
Página 4
Cidadania tributária: o estatuto constitucional do
contribuinte
exemplo:
O surgimento sequencial dos direitos sugere que a própria ideia de direitos, e, portanto,
a própria cidadania, é um fenômeno histórico. O ponto de chegada, a própria cidadania,
é um fenômeno histórico. O ponto de chegada, o ideal da cidadania plena, pode ser
semelhante, pelo menos na tradição ocidental dentro da qual nos movemos. Mas os
caminhos são distintos e nem sempre seguem linha reta. Pode haver também desvios e
retrocessos, não previstos por Marshall. O percurso inglês foi apenas um entre outros. A
França, a Alemanha, os Estados Unidos, cada país seguiu o seu próprio caminho. O
Brasil não é exceção, aqui não se aplica o modelo inglês. Ele nos serve apenas para
comparar por contraste… Como havia lógica na sequência inglesa, uma alteração dessa
lógica afeta a natureza da cidadania. Quando falamos de um cidadão inglês, ou
norte-americano, e de um cidadão brasileiro, não estamos falando exatamente da
mesma coisa (CARVALHO, 2012, p. 11-12).
A cidadania, enquanto status e processo pode ser exercida, por outra vista, pelos
sujeitos individuais; mas é possível se pensar na cidadania sendo exercida de forma
coletiva e até mesmo difusa. Por exemplo, quando determinados setores econômicos
tem reconhecido o direito de participar, por exemplo, da indicação para julgadores dos
órgãos de Conselho Fiscal, está-se diante de um exercício coletivo da cidadania, pois
aquele indivíduo que ocupa a função de julgador não o faz sob sua própria titularidade,
mas sob a titularidade da categoria que o indicou. Sua função é garantir que a categoria
tenha representatividade e direito de participar das decisões que lhe afetam, um dos
pilares da democracia liberal.
Tais conceitos encerram verdades constitucionais Häberle (2008). Tais verdades, dada
sua amplitude de sentidos, colocam-se como quase que lugares comuns do discurso
jurídico. De acordo com o auditório para qual o discurso está sendo direcionado, este
lugar pode ainda assumir maior tessitura, ou uma determinada carga conceitual. Pode
ainda ser interpretado a partir de uma determinada dimensão social. Por exemplo, um
auditório composto por advogados militantes na área eleitoral tende a perceber a
cidadania, por exemplo, muito mais a partir de sua concepção processual; enquanto em
Página 6
Cidadania tributária: o estatuto constitucional do
contribuinte
Por verdades constitucionais, não quer referir-se a conceitos rígidos e absolutos. Mas
axiomas consensualmente estabelecidos como ponto de partida para a vida republicana.
Tais axiomas refletem a mudança de paradigmas ocorrida ao longo do século XX, onde a
democracia deixou de ser um conceito quase que vazio para definir uma forma de
governo, para assumir a condição de gramática social da pós-modernidade Santos e
Avritzer (2002), onde valores associados à democracia passaram a pautar as relações
sociais e a própria constituição da identidade dos sujeitos:
Por relações jurídicas tributárias pode-se entender as relações travadas entre o sujeito
Página 7
Cidadania tributária: o estatuto constitucional do
contribuinte
“Art. 3.º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela
se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada
mediante atividade administrativa plenamente vinculada.”
Esta definição de tributo, extraída do Código Tributário Nacional brasileiro, ressalta cinco
aspectos do tributo: (a) pecuniaridade; (b) compulsoriedade; (c) não sancionatoridade;
(d) legalidade; (e) não discricionariedade.
Já a não sancionatoridade quer dizer que o tributo não deve cumprir a função
sancionatória. Ou seja, não pode o tributo relacionar-se à sanção de qualquer ato ilícito.
Ou seja, a hipótese de incidência tributária não deve se dar sobre uma ilicitude Machado
(2010), o que não significa que renda auferida a partir de um ato ilícito, por exemplo,
não possa ser tributada. Sendo assim, não se é possível compreender multas enquanto
tributos.
A legalidade é uma qualidade necessária que o tributo apresenta de ter de ser positivado
antes de cobrança:
“Instituir tributo não é apenas dizer que ele fica criado, ou instituído. Sua criação
depende da definição da hipótese ou hipóteses em que o mesmo será devido, vale dizer,
da definição da hipótese de incidência, dos sujeitos, da obrigação correspondente, e
ainda da indicação precisa dos elementos necessários ao conhecimento do valor a ser
pago, vale dizer, da base de cálculo e da alíquota, bem como do prazo respectivo
(MACHADO, 2010, p. 66).”
A não discricionariedade está ligada à parte final do dispositivo ora em comento, e diz
respeito ao fato de que a atividade estatal que importa na cobrança do tributo não deve
ser exercida sob o prisma da discricionariedade. Em outras palavras, todo ato
administrativo que importe cobrança de tributos deve estar submetido à disciplina
normativa de direito positivo, seja de ordem constitucional, legal ou infralegal. O ato de
autoridade que vise a cobrança de tributos (ou à não cobrança) fora do expressamente
autorizado e determinado em lei, está sujeito à nulidade, podendo ser considerado uma
atividade arbitrária Machado (2010).
Mas esta definição legal de tributo nos serve, momentaneamente, para identificar um
Página 8
Cidadania tributária: o estatuto constitucional do
contribuinte
Observe-se que aqui não se fala de uma relação de causa e efeito, tampouco se depende
uma ideia de verticalidade, mas de correlação. Determinados princípios podem ser
correlatos aos elementos de definição do tributo, quase como uma relação de contenção.
Tais fronteiras não são rígidas e estão sujeitas aos movimentos da história e às
transformações das culturas. Mas encerram um locus do discurso onde a comunidade de
juristas e outros sociais diretamente ligados à atividade tributária, tais como auditores
fiscais, empresariado, contadores etc., percebem e realizam a seleção dos sentidos da
cidadania tributária, elegendo aqueles que entendem justificados, razoáveis e, portanto,
verdadeiros; descartando aqueles que consideram injustificados e desarrazoados,
portanto incorretos Streck (2001).
Este complexo constitucional que importa uma série de normas, regras e garantias ao
contribuinte em relação à atividade tributária do Estado, é o que pode ser chamado de
estatuto constitucional do contribuinte Santos (2012).
A partir deste lugar jurídico da cidadania, ou seja, os direitos, deveres e garantias dos
sujeitos individuais e coletivos, direcionados sob o prisma do sistema constitucional
tributário, ou mais especificamente sob o que se concebe por estatuto constitucional do
contribuinte, constitui-se a cidadania tributária.
Pode se definir a cidadania tributária como sendo um lugar do discurso jurídico onde se
dá o debate acerca da participação do cidadão nos espaços de gestão da coisa pública;
mas ainda onde se dá o embate de forças sociais para, através de normas jurídicas,
delimitar estratégias de inclusão e exclusão sociais através da atividade tributária; diz
respeito ainda a um status jurídico, neste caso o status de contribuinte; e por fim onde
Página 9
Cidadania tributária: o estatuto constitucional do
contribuinte
Mas a progressividade por si só não é elemento que garanta a justiça fiscal. Esta importa
também uma grande dose de decisão política. Nada vale a desoneração da carga
tributária dos tributos indiretos, ou da aplicação de alíquotas progressivas de tributos
diretos, se não há a decisão de direcionar os gastos e recursos públicos equanimemente.
Porque, afinal, favorecer determinados grupos na alocação de despesas estatais é outra
maneira de efetivar a regressividade tributária Rodrigues (2010). A capacidade
contributiva encontra-se positivada na Constituição Federal no parágrafo primeiro do art.
145 da CF/1988. Já a extrafiscalidade encontra-se difusamente no texto constitucional. É
exemplo o art. 146, d, que determina tratamento diferenciado e favorecido para
microempresas e empresas de pequeno porte.
“Por meio do estudo dos princípios gerais e tributários se verifica a forma como a Carta
Magna separou os casos em que cabe a cobrança de tributos e que pessoas são
obrigadas ao pagamento dos tributos, mas, por outro lado, ofereceu imunidades àqueles
que possuem as características necessárias para receber o direito a estes benefícios.
Desta forma, a cobrança de tributos sofre limitações impostas pelo texto constitucional
como forma de impedir abusos na cobrança de tributos, como também oferecer garantia
a certos entes para que possam oferecer suas atividades sem que haja embaraço no seu
funcionamento. O Serviço Social Autônomo, como pessoa jurídica de direito privado,
trabalha em colaboração com o Estado e detém direito à imunidade tributária concedida
às entidades de assistência social (HIROKAWA, 2014, p. 1).”
justiça tributária:
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação.”
Estes dois objetivos específicos se destacam porque, em ambos os casos, o tributo não é
apenas fonte de arrecadação de recursos, mas instrumento direto através do qual o
Estado pode atuar para perseguir seus fins.
Os efeitos sociais do tributo vão além da atividade empresarial, refletindo nas relações
trabalhistas, consumeristas, comerciais, científicas, educacionais. Podendo ainda
interferir no aumento ou redução dos negócios formais Gouveia (2008). Assim pode se
falar em um direito ao desenvolvimento nacional, que se impõe como objetivo
Página 12
Cidadania tributária: o estatuto constitucional do
contribuinte
Reforçando, no entanto, que assim como a cidadania tomada em seu topos generalista,
destaca-se pela multidimensionalidade, manifestando-se enquanto processo individual,
mas também coletivo e difuso, a cidadania tributária também pode ser identificada a
partir dessas dimensionalidades coletiva e também difusa. O direito ao desenvolvimento
nacional se coloca como direito transindividual Gouveia (2008), representando um
aspecto desta cidadania difusa.
Por fim cabe falar ainda de mais um topos da cidadania que importa na delimitação do
campo conceitual que representa o lugar da cidadania coletiva no discurso jurídico. É o
lugar dos deveres fundamentais.
Mas este não seria o único dever associado à atividade tributária. A vida em coletividade,
associado à ideia de Democracia procedimental, importa em um dever de zelar da coisa
pública. Este dever importa em pagar os tributos, evitando a sonegação. Mas também de
fiscalizar os agentes públicos responsáveis por realizar a fiscalização tributária. Tal
participação ativa da sociedade em zelar pela coisa pública é essencial para evitar
transformar situações como a realidade de corrupção sistêmica, por exemplo, revelada
recentemente no âmbito dos tributos municipais na cidade de São Paulo Bonduki (2013).
A participação, que se insere como direito na ordem democrática, não deixa de ser
também um dever dos concidadãos que coabitam um Estado. Este dever de participação
é exercido, em matéria tributária, por exemplo, nos conselhos de contribuinte.
Tomando-se o caso do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, este órgão é
composto por representantes do Fisco e dos contribuintes, sendo os contribuintes
escolhidos da seguinte maneira:
A paridade nos órgãos julgadores de recurso fiscal é uma forma de exercício ativo de
cidadania tributária coletiva. Isto porque, aqueles indicados por suas categorias
econômicas ocupam espaço nas turmas julgadoras a fim de garantir que as decisões
sejam tomadas com justiça, não favorecendo ao Fisco. Se, enquanto indivíduos, tem o
dever de exercer a atividade com zelo e dedicação, enquanto representantes da
coletividade, têm o condão de julgar com lhaneza e clareza, com a obrigação ainda de
denunciar a ocorrência de arranjo sistemático do Fisco a fim de burlar a justiça tributária
e aumentar a arrecadação ilegalmente.
Página 13
Cidadania tributária: o estatuto constitucional do
contribuinte
Para identificar o sujeito da cidadania tributária, ou seja, aquele sujeito que goza
reconhecimento enquanto membro da polis, tendo seus direitos de ser ouvido, participar,
fiscalizar, reclamar a tutela estatal etc., cabe partir do conceito de sujeito passivo da
relação tributária.
Não há dúvidas que o cidadão normativo brasileiro é titular também de uma cidadania
tributária:
Uma vez que o conjunto de normas de direitos fundamentais que preenchem o lugar da
cidadania tributária, como já discorrido acima, têm três escopos principais: proteger o
cidadão da tributação indevida; permitir a participação do cidadão nos assuntos públicos
relacionados ao tributo; direcionar a atividade estatal no sentido de cumprir as políticas
públicas constitucionais; pode se dizer, pois, que aqueles que não são contribuintes
também gozam de cidadania tributária. Mas uma outra questão é mais importante:
apenas o contribuinte pessoa física pode usufruir a cidadania tributária?
Uma vez que a jurisprudência pátria reconhece que as pessoas jurídicas podem ser,
havendo compatibilidade com a natureza do direito, titulares de direitos fundamentais
Salet (2010); além de que existem normas de políticas públicas especificamente
voltadas para pessoas jurídicas no texto constitucional (como a já discorrida política do
art. 146, d, porque não admitir a pessoa jurídica também como detentora de uma
cidadania tributária.
São sujeitos todos aqueles que possuem alguma forma de interesse na relação
tributária. Seja por ser contribuinte, ou por ter sido arrastado ilegitimamente para uma
relação tributária. Como seria o caso de uma igreja que recebesse um auto de infração
sobre a renda obtida por meio de doações para o ministério da fé.
Página 14
Cidadania tributária: o estatuto constitucional do
contribuinte
“No bojo do Estatuto, podem ser identificados, pelo menos, três tipos de normas:
aquelas que protegem o contribuinte, em sua relação com o Estado, limitando o poder
tributário (direitos e garantias do contribuinte); aquelas que dirigem o Estado,
determinando que a tributação atinja determinadas finalidades (prestação dos direitos
sociais e função redistributiva); e aquela que constitui o dever de pagar tributo,
viabilizando as finalidades antes mencionadas. Não apenas as primeiras, mas todas
estas normas são essenciais para a efetivação da dignidade humana (SANTOS, 2012, p.
45).”
Página 15
Cidadania tributária: o estatuto constitucional do
contribuinte
por meio da análise das normas expressas constantes do “Sistema Tributário”, deixando
de lado a construção da significação positiva das limitações mediante investigação dos
princípios enquanto normas que instituem finalidades a serem atingidas (dignidade
humana, liberdade, propriedade) e dos princípios e postulados que determinam como os
encargos tributários deverão ser divididos (princípio da igualdade) ou qual estrutura
deverá ser observada no processo de aplicação (postulado ou princípio hermenêutico da
proporcionalidade) (ÁVILA, 2008).”
A última movimentação que consta até o fechamento deste trabalho, no sítio oficial da
Câmara dos Deputados, data de 29.05.2014, aguardando aprovação do parecer do
relator. O projeto já fora – consta ainda – aprovado na Comissão de Trabalho, de
Administração e Serviço Público; restando ainda ser encaminhado para a Comissão de
Constituição e Justiça e de Cidadania. Sendo aprovado por esta última Comissão, então
o projeto será encaminhado para votação na plenária da Casa. Consta de 19 artigos,
com base em um Código do Contribuinte que já existe no Estado de São Paulo.
Em seus 19 artigos, o Código do Contribuinte pouco inova. Nos arts. 1.º a 3.º
simplesmente faz remissão (incompleta) a conceitos da Constituição Federal e do Código
Tributário Nacional, localizando a lei dentro de diversos sistemas constitucionais, e
definindo contribuinte. Não acrescenta, em sua definição legal, no art. 3.º a figura do
responsável ou sujeito passivo indireto.
Nos arts. 6.º a 13.º elenca uma série de direitos e deveres dos contribuintes e do fisco,
mas apenas propondo comandos normativos que mais se aproximam do senso comum
do que buscando solucionar algum problema prático da atualidade.
Por exemplo, entre os direitos do contribuinte, o art. 4.º, XV, declara: a faculdade de se
comunicar com seu advogado ou entidade de classe quando sofrer ação fiscal, sem
prejuízo da continuidade desta. Na atual ordem democrática, seria difícil defender algo
contrário a isto, de forma que tal disposição se torna quase que um pleonasmo legal.
Assim também declara como garantia do contribuinte (art. 5.º, IV) a obediência aos
princípios do contraditório, da ampla defesa, e a participação paritária nos órgãos de
julgamento.
Algumas questões que são extremante atuais e que de fato demandariam uma atitude
legislativa com a máxima urgência, são ignoradas pelo projeto de lei. Uma é a situação
recorrente e abusiva em que o Fisco federal, ao emitir Certidões da Dívida Ativa, age
com má-fé objetiva, agregando créditos prescritos junto a créditos vigentes; ou ainda,
outra prática de abuso no poder de tributar, comum em todas as instâncias federativas,
Página 17
Cidadania tributária: o estatuto constitucional do
contribuinte
I – o Congresso Nacional;
XI – o Ministério da Fazenda;
Página 18
Cidadania tributária: o estatuto constitucional do
contribuinte
XV – a Casa Civil.”
Como já explicitado, tal disposição vai de encontro aos princípios da justiça fiscal. Isto
porque, a ordem constitucional tributária brasileira tem como preocupação mitigar ao
máximo a regressividade. Esta tem diversas maneiras de se expressar, e a distribuição
desigual de bens e direitos pela estrutura básica da sociedade, é uma delas.
Além do mais, setores como economia criativa, economia solidária e agricultura familiar
são também preteridos pelo projeto de lei. Assim como seria desejável também a
participação do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas – Ipea; e também de
entidades ligadas à Defesa do Consumidor. Assim como o processo de escolha e
nomeação – realizado pelo administrador, sem qualquer vinculação com o desejo dos
representados, e sem qualquer autonomia destes para exercer accountability societal
sobre seus representantes, prejudica a qualidade democrática da proposta.
Resta a pergunta: será desejável tal proposta de positivação, que, antes de inovar em
suas propostas jurídicas e desenhos institucionais, harmonize-se mais com uma
sistemática exclusivista, que a do próprio texto constitucional – e portanto, o estatuto
constitucional do contribuinte, parece propor a transformação? E tais direitos e garantias
do contribuinte, uma vez que possam ser considerados enquanto elementos de uma
cidadania tributária, como podem ser pensados de maneira tão dissociada dos cidadãos
– que acabam sendo os maiores contribuintes de fato, através dos tributos indiretos?
A própria propositura do projeto parece ter sido realizada sem qualquer consulta popular
– ao menos tal informação não consta nem na justificativa do projeto, nem no sítio da
Câmara dos Deputados.
Ao invés de tal esforço político, para promulgar uma lei que reforce a atual lógica
tributária brasileira, complexa, desigual, ainda regressiva e excessiva; o país demanda
uma séria e profunda reforma tributária, para abandonar este último e pesado resquício
da Ditadura Militar que é o Código Tributário Nacional. Adotar uma legislação mais clara,
direta e objetiva, desonerando a carga tributária e aplicando os recursos arrecadados
com eficiência, em harmonia com os fundamentos da cidadania, democracia e
desenvolvimento nacional, já seria mais que suficiente para promover uma profunda
transformação social na economia, no direito tributário e na própria visão distorcida que
a população em geral mantém em relação aos tributos.
4. Considerações finais
O que é cidadania? Esta pergunta sugere tantas respostas quanto os campos do saber
que se propõem a respondê-la. É possível se pensar na cidadania partindo, ao menos,
dos vieses histórico, político, social ou jurídico. As várias possibilidades de constituição
de um saber em torno da cidadania não implicam, contudo, que o saber se dê sobre
diversos fenômenos, mas sim, vários saberes que se constituem a partir do mesmo
fenômeno tido como cidadania.
identificando diferentes classes e grupos sociais por seu conjunto de direitos legalmente
reconhecidos.
Mas tal lógica começa a ser transformada a partir da Constituição Federal de 1988, onde
a intensa participação popular proporcionou um texto com alta carga valorativa e
festejada qualidade democrática.
O Sistema Nacional Tributário não foge a este contexto. Elaborado por comissão
específica, contou com a participação popular de diversos setores, dentre empresariado,
setores produtivos etc.
O tributo, assim, é importante elemento de cidadania. Seja porque sua justa cobrança
mitiga a contradição insuperável do sistema capitalista, qual seja, a liberdade efetivada
apenas mediante a propriedade; mas está ameaçada constantemente pela contínua
concentração de renda.
Encarar os direitos fundamentais sob uma perspectiva política dentro do Estado social
implica admitir que cabe a este garantir a manutenção da esfera privada à todos os
Página 20
Cidadania tributária: o estatuto constitucional do
contribuinte
cidadãos para que esses vejam-se livres, e assim participar da esfera política. Os direitos
fundamentais – como fundamento, Gründrecht – exercem esse papel: de definir o que é
esta esfera privada que serve de base à liberdade do indivíduo. Este, livre de suas
necessidades, tem o dever de construir o público exercendo a atividade humana por
excelência: criando. Inovando na arte, na ciência, na tecnologia, na política, na
elaboração de novos direitos fundamentais, garantindo a continuidade e a dinamização,
não mais da polis nem da res publica, mas hoje, da comunidade planetária. E o que
permite ao ente que é primata e consome para satisfazer suas necessidades básicas no
oikon, ser o humano que cria e constrói suas obras para o mundo, é algo que por estar
no limiar entre o público e o privado existe em um Estado dual de direito e dever:
trata-se da cidadania.
5. Referências bibliográficas
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário filosófico. 3. ed. Martins Fontes: São Paulo, 2007.
AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
______. Curso de Direito Administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Apresentação de
Celso Lafer. Nova ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
______. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1987.
CABRAL, Gilda. Lobby do batom. In: Brasil. Câmara dos Deputados. Constituição 20 anos
– Estado, democracia e participação popular: cadernos e textos. Brasília: Edições
Câmara, 2009.
GOHN, Maria da Gloria Marcondes. História dos movimentos e lutas sociais: a construção
da cidadania dos brasileiros. São Paulo: Loyola, 2011.
GOMES, C. P. B. A eficácia dos direitos sociais. In: LIMA, Fernando Rister de Souza;
PORT, Otávio Henrique Martins; LIMA DE OLIVEIRA, Rafael Sérgio (coords.). Poder
Judiciário, direitos sociais e racionalidade jurídica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
HERKENHOFF, João Baptista. ABC da cidadania. 4. ed. rev. e ampl. Vitória: Espírito
Santo. Secretaria Municipal de Cidadania e Direitos Humanos, 2013.
LIMA, George Marmelstein. Críticas à teoria das gerações (ou mesmo dimensões) dos
Página 22
Cidadania tributária: o estatuto constitucional do
contribuinte
VASAK, Karel. Human Rights: A Thirty-Year Struggle: the Sustained Efforts to give Force
of law to the Universal Declaration of Human Rights. Unesco. Unesco Courier. Paris:
United Nations Educational, Scientific, and Cultural Organization, nov. 1977.
MARSHALL, Thomas Humphrey. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar,
1967.
MATOS, Marlise. Cidadania porque, quando, para quê e para quem? Desafios
contemporâneos ao Estado e à democracia inclusiva. In: MATOS, Marlise; LINO, Nilma;
DAYRELL, Juarez. Cidadania e a luta por direitos humanos, sociais, econômicos, culturais
e ambientais. Belo Horizonte, UFMG, 2009 (texto do Programa de Formação de
Conselheiros Nacionais).
MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. A tópica e o Supremo Tribunal Federal. 1. ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2003. vol. 1.
MORIN, E. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 18. ed. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
LOUREIRO, Isabel. Hebert Marcuse – A relação entre a teoria e prática. In: ______;
MUSSE, R. (orgs.). Capítulos do marxismo ocidental. São Paulo: Fundação Editora da
Unesp, 1998. (Prismas).
MACCORMICK, Neil. Retórica e o estado de direito. Trad. Conrado Hübner Mendes. Rio
de Janeiro: Elsevier, 2008.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 31. ed. rev. atual. e ampliada. São
Paulo: Malheiros, 2010.
MACHADO, Nilton José. Cidadania e educação. 4. ed. São Paulo: Escrituras, 2002.
[http://ambito-juridico.com.br/site/index.php?artigo_id=10510&n_link=revista_artigos_leitura].
Acesso em: ago. 2014.
PINTOS-PAYERAs, José Adrian. A carga tributária no Brasil: um modelo para análise dos
impactos das políticas tributárias na arrecadação e distribuição. Brasília: ESAF, 2008.
Monografia premiada com o primeiro lugar no XIII Prêmio Tesouro Nacional, 2008.
Orçamentos e sistemas de informação sobre a administração financeira pública. Londrina
(PR).
REIS, Elisa. Cidadania: história, teoria e utopia. Este texto é a transcrição da palestra
proferida com este título no seminário internacional Justiça e Cidadania, realizado no Rio
de Janeiro nos dias 10 e 11.09.1997.
SABBAG, Eduardo. Manual de direito tributário. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
SADER, Eder. Capítulo IV: movimentos sociais. In: ______. Quando novos personagens
entram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo
(1970-1980). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria dos direitos
fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2009.
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da
construção de direito. 3. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
1 “Como então conciliar o interesse dos indivíduos e o interesse geral? Não se trata de
reduzir a felicidade ao consumo e ao ócio, conforme faz o hedonismo…” Loureiro (1998).
2 Este é o famoso dilema das ciências econômicas: mediar a relação entre riquezas
limitadas para necessidades ilimitadas.
4 A teoria da Gerações de Direitos Fundamentais foi levantada pelo jurista tcheco Karel
Vasak, na conferêcia A Thirty-Year Struggle: the Sustained Efforts to give Force of law to
the Universal Declaration of Human Rights, em 1977, na cidade de Estrasburgo, França
onde não há nenhuma referência direta ao texto Marshall. Contudo não há de se negar
uma proximidade grande entre as concepções de gerações de direitos fundamentais e as
dimensões dos direitos da cidadania, por trazerem consigo ambas as concepções o
reconhecimento de uma historicidade intrínseca dos direitos. A teoria geracional dos
direitos fundamentais por fim ganhou corpo após ser defendida e desenvolvida por
Noberto Bobbio. Atualmente, contudo, esta ideia de gerações de direitos tem sido
criticada, por carregar consigo uma impressão que os direitos fundamentais posteriores
sucedem os anteriores. Então começou-se a formular a ideia de dimensões de direitos –
aproximando-se mais à concepção de Marshall. Ver Lima (2003) e Maranhão (2009).
5 ADIn 2.649/ DF, rel. Min. Carmen Lúcia. Trata da arguição de inconstitucionalidade da
Lei 8.899/1994, que concede passe livre às pessoas portadoras de deficiência no sistema
de transporte coletivo interestadual.
Página 25