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9ª EDIÇ ÃO

POLÍTICA MUNDIAL
A PARTIR DE 1945
P E T E R C A LVO CO R E S SI

HISTÓRIA

REL AÇÕES
INTER
NACIONAIS
Peter Calvocoressi foi uma figura de destaque no campo das Relações
Internacionais, nasceu em 1912, estudou na Faculdade Eton and Balliol,
Oxford, onde tirou o 1° lugar em História. Durante a Segunda Guerra
Mundial, trabalhou na Ultra Inteligência em Bletchley Park (próximo
Londres) e depois assistiu ao Julgamento de Nuremberg. Foi sócio da
Chatto & Windus e da Hogarth Press e Diretor Executivo da Penguin
Books. Foi professor de Assuntos Internacionais na Universidade de
Sussex e participou do Conselho do Instituto Internacional de Estudos
Estratégicos, da Anistia Internacional e da Subcomissão para a Preven-
ção da Discriminação e Proteção das Minorias. Foi presidente da Bi-
blioteca de Londres e da Africa Bureau.

C169p Calvocoressi, Peter.


Política mundial a partir de 1945 [recurso eletrônico] /
Peter Calvocoressi ; tradução: Roberto Cataldo Costa ;
revisão técnica: Paulo Fagundes Visentini. – 9. ed. – Dados
eletrônicos . – Porto Alegre : Penso, 2012.

Editado também como livro impresso em 2011.


ISBN 978-85-63899-53-8

1. História. 2. Política mundial. 3. Relações


internacionais. I. Título.

CDU 94:327

Catalogação na publicação: Ana Paula M. Magnus – CRB 10/2052


PE TE R C A LV OCO RES S I

POLÍTICA MUNDIAL
A PARTIR DE 1945
9 ª EDIÇ Ã O

Tradução:
Roberto Cataldo Costa

Consultoria, supervisão e revisão técnica desta edição:


Paulo Fagundes Visentini
Professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Doutor em História pela Universidade de São Paulo.
Pesquisador do CNPq. Pós‑Doutor em Relações Internacionais pela
London School of Economics.

Versão impressa
desta obra: 2011

2012
Obra originalmente publicada sob o título
World Politics Since 1945, 9 Ed.
ISBN 1-4058-9938-7

© Peter Calvocoressi, 1968, 2001


© Pearson Education, 2009
This translation of World Politics Since 1945 9th Edition is published by arrangement with
Pearson Education Limited.

Capa: Tatiana Sperhacke – TAT Studio

Imagens da capa:
© Barry Lewis/In Pictures/Corbis/Corbis (DC)/Latinstock
© Owen Franken/Corbis/Corbis (DC)/Latinstock
© Joseph Sohm/Visions of America/Corbis/Corbis (DC)/Latinstock

Preparação de original: Marcelo Viana Soares

Leitura final: Jonas Stocker e Gabriela W. Linck

Editora sênior – Ciências Humanas: Mônica Ballejo Canto

Editora responsável por esta obra: Carla Rosa Araujo

Projeto e editoração: Techbooks

Reservados todos os direitos de publicação, em língua portuguesa, à


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IMPRESSO NO BRASIL
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Agradecimentos

Agradecemos aos que seguem pela permissão para reproduzir material sujeito a direitos
autorais:
Figura 30.4 “Antártica,” no An Atlas of World Affairs, 10a edição, Routledge (Andrew
Boyd, 1998).
Em alguns casos, não conseguimos encontrar os proprietários do material sujeito a di-
reitos autorais, e agradeceríamos por qualquer informação que nos possibilitasse fazê-lo.
Apresentação à
Edição Brasileira

O interesse pelo estudo das relações internacionais no Brasil cresceu de forma exponencial
nos últimos 15 anos. Em 1995, havia dois cursos de graduação na área; em 2003, já eram 60
e hoje devem estar próximos dos 100. A tendência reflete certamente a mudança do lugar do
Brasil no mundo, o impacto da globalização, e, também, o novo repertório das curiosidades
que mobiliza a juventude nos dias de hoje. A questão ambiental seria uma dessas curiosida-
des que só se satisfaz com o conhecimento simultâneo do que se passa no Brasil e no sistema
internacional.
A demanda pelo conhecimento do mundo requer bons livros, boas revistas. E, no caso
brasileiro, a oferta ainda está se ajustando. Há áreas, mais ligadas à política externa brasileira,
em que a produção já ganhou regularidade, consistência e qualidade. Outras ainda há muito
que caminhar. Uma delas é a da história geral das relações internacionais, em que a bibliogra-
fia produzida por brasileiros é ainda restrita a poucos títulos, como os escritos por Antonio
Carlos Lessa, Sombra Saraiva, William Gonçalves e o consultor desta linha editorial, Paulo
Visentini. Daí, a necessidade de boas traduções de bons livros, como o de Peter Calvocoressi.
Não é por acaso que o livro tenha atingido a nona edição em 2010. De fato, é um texto
único que organiza, com inteligência, uma imensa massa de informação. Parece que nada
do que aconteceu em política internacional desde 1945 até meados da primeira década do
século XXI escapou da sensibilidade do autor: a dinâmica da Guerra Fria; a evolução das
Superpotências, as dificuldades que enfrentaram e o seu declínio; os movimentos políticos
intraeuropeus; a derrocada do socialismo real e a ascensão da China; as guerras do Orien-
te Médio; o processo de descolonização; a evolução política latino-americana, etc. Salvo o
primeiro e o último, mais voltados para problemas globais, os capítulos são organizados
por região, o que facilita a consulta a uma teia de antecedentes e permitirá ao leitor buscar,
em cada qual, a origem do que se passa hoje. Vale ler, por exemplo, o que escreveu sobre
o Oriente Médio, a formação dos estados na sequência da descolonização, as guerras com
Israel, a evolução do problema palestino, para situar, com alguma precisão, o surpreendente
movimento que afetou, em 2011, o Egito, a Tunísia e a Líbia.
A riqueza do livro nasce talvez da maneira como foi escrito. No prefácio que escreveu
para a quinta edição, Calvocoressi fala das “crônicas” que vão compondo cada edição. De
fato, o livro tem algo de “crônicas”, de “testemunho”. E não por acaso. Afinal, antes de escre-
ver, o autor foi ator da história que observa. Trabalhou no serviço secreto inglês e foi um dos
responsáveis pela decifração dos códigos da Marinha alemã já no final da II Guerra e, de-
pois, atuou como auxiliar da promotoria no Tribunal de Nuremberg. Assim, deve ter criado
a clara intimidade com a história que passa a contar.
viii | APRESENTAÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA

A primeira edição do Política mundial a partir de 1945 saiu em 1968, quando Calvo-
coressi tinha 56 anos; a última, em 2009, um ano antes de sua morte, aos 96 anos. A cada
edição, o autor acrescentava os novos acontecimentos, corrigia interpretações, opinava so-
bre o estado do mundo. Assim, o livro, apesar do rigor e do cuidado na observação, esque-
ce as exigências das publicações acadêmicas modernas. Apesar de um excelente índice ao
final, não existem notas de pé de página; a bibliografia é modestíssima para um livro com
tamanha abrangência; jornais, que devem ter sido uma fonte fundamental, não são sequer
citados. De outro lado, o autor não se recusa a opinar, sem pudor acadêmico, sobre figuras
históricas. Neste caso, leia-se, por exemplo, o que diz de Margaret Thatcher ou de Mitterand
ou de Deng Xiaoping. São vinhetas preciosas, até por serem idiossincráticas.
De modo muito simplista, poder-se-ia dizer que há duas maneiras de escrever história.
Para alguns, prevalece a interpretação. Os fatos estão lá, mas claramente a construção sobre
como se organizam é que se mostra com mais evidência e revela a preocupação fundamental
do autor. Para outros, os fatos prevalecem e o texto flui como narração, como no sentido
mais simples da noção de história. Coloque-se ao lado do magnífico Era dos extremos, de
Hobsbawn, o Política mundial a partir de 1945, e talvez fique mais fácil compreender os dois
modelos, o do historiador-intérprete e do historiador-narrador. É claro que a narração não
dispensa interpretações, mas essas surgem de maneira mais natural, insinuando-se mais do
que se revelando. É leitura combinada dos dois, o narrador e o intérprete que permitirá uma
compreensão mais completa do que ocorreu na história do mundo nos últimos anos (e,
antes, claro...). Aliás, Hobsbawn qualifica de “excelente” o livro de Calvocoressi no ensaio
bibliográfico que termina o seu Era dos extremos.
Mas, vale a pena chamar atenção para as interpretações que nascem do próprio processo
narrativo. É admirável, por exemplo, a análise que faz da Guerra Fria, que, em seu texto, per-
de a rigidez do confronto bipolar e passa a ser um constante vaivém de processos de aproxi-
mação e rejeição entre os dois blocos. Ou seja, existe um jogo político permanente, rico, e até
surpreendente, no marco do confronto ideológico. Outro bom exemplo é a análise do papel
da Alemanha em busca de autonomia que vai encontrar na abertura para o Leste. Acompa-
nhar os movimentos de Willy Brant ensinará muito sobre a Alemanha, sobre a Guerra Fria
e sobre os limites da diplomacia de uma Potência Média. Desta forma, em Calvocoressi, a
narração incorpora a complexidade dos movimentos históricos.
Se o autor aceita as grandes tendências da história, como, por exemplo, as transforma-
ções do Estado no marco da globalizaçao, de outro lado – e de novo por “culpa” da qualidade
da narração – não descarta o peso dos indivíduos, dos estadistas, para entender porque o
que aconteceu, aconteceu de um jeito e não de outro. É extremamente rica a análise que
faz da personalidade de Deng Xiaoping, que denomina um “conservador pragmático”: pro-
move reformas econômicas, reabilita a “intelligentzia” depois da Revolução Cultural, mas
fica preso à estrutura autoritária do Partido e do Exército. Sua ambiguidade gera, depois de
alguns anos em que progresso econômico e abertura política convivem, a crise no modelo
de regime que ele implanta com a revolta popular de Tiananmen em 1987. Vale lembrar
outro exemplo quando, ao resumir com precisão a gestão de Thatcher, faz uma afirmação
que serve para caracterizar tendências que prevalecem no comportamento individual na
Grã-Bretanha e em tantos outros lugares do mundo depois da euforia neoliberal: “Nos anos
Thatcher uma nação de poupadores se tornou uma nação de jogadores” (p. 188).
APRESENTAÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA | ix

Há muitos outros ricos veios a explorar no texto de Calvocoressi e o leitor certamente


os encontrará com facilidade. Antes de concluir, chamaria atenção para mais um. Na brevís-
sima introdução à nona edição do Política mundial a partir de 1945, ele diz que o propósito
fundamental do seu livro é fornecer material para avaliar o programa ambicioso que se ti-
nha desenhado para a ordem internacional ao fim da II Guerra: a recuperação econômica
e a criação de uma nova ordem política, simbolizada a primeira no Plano Marhsall e o se-
gunda, nas Nações Unidas. A avaliação final, resumida no capítulo sobre a ordem mundial,
não é das mais alvissareiras. A ONU tem dificuldades de enfrentar uma demanda crescente,
que se vai muito além do que se previa na Carta, já que situações de conflito interno, de
falência institucional entram em sua agenda; as incursões políticas, especialmente no caso
do Iraque, desprestigiam o organismo; e a globalização amplia os mercados, mas também
as oportunidades para “negligências e equívocos econômicos” (p.746). De qualquer manei-
ra, reconhece que a ONU transforma o mundo pela sua mera existência, ao abrir as portas
para manifestação de povos que, até a sua criação, eram “politicamente invisíveis”. Também
chama a atenção para a importância das ONGs para recriar e dar novo vigor à agenda da
Organização. Aliás, sua preocupação com as Nações Unidas sustenta um dos pontos fortes
do livro, que é o cuidado analítico com que lida com as atividades do Conselho de Segurança
e as operações de paz, da Coreia ao Kosovo.
Finalmente, vale chamar atenção o curto apêndice, em que disserta sobre o Estado So-
berano e termina com sete questões sobre como evoluirá. De uma certa maneira, Calvo-
coressi deixa a sua obra aberta. Aceita que o Estado continuará a ser o eixo do processo
internacional. Mas, que forças modelariam a soberania? Que associações de Estado vão ser
criadas? Qual o papel da lei na regulação da globalização? Como evoluirá o conflito entre
a soberania e o direito de intervir em defesa dos direitos humanos? Que papel o Estado de-
sempenhará na economia? A democracia garantirá estabilidade? Malthus estaria correto e o
crescimento populacional superará a provisão de recursos naturais?
Ele não propõe respostas, mas certamente o leitor atento de seu livro estará mais prepa-
rado para compreender as tendências que podem prevalecer.

Gelson Fonseca Junior


Diplomata e Professor
do Instituto Rio Branco
Sumário

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 PARTE III


Europa remodelada . . . . . . . . . 165
PARTE I
5 Europa Ocidental. . . . . . . . . . . 167
Guerra Fria. . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
Recuperação . . . . . . . . . . . . . . . 167
1 Guerra Fria . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 A entente franco-germânica . . 178
A Grã-Bretanha no limite . . . . . 183
Primórdios . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
União Europeia (Oeste). . . . . . . 190
A divisão da Alemanha . . . . . . . . 29
União Europeia
A OTAN e o império soviético (Oeste-Leste) . . . . . . . . . . . . . . . 206
até a crise cubana . . . . . . . . . . . . 33
O flanco sul . . . . . . . . . . . . . . . . 214
A corrida armamentista . . . . . . . 45
As perplexidades nos Estados 6 Europa Central e Oriental. . . . 231
Unidos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66
A desintegração da URSS . . . . . . 79 O Império de Stalin . . . . . . . . . . 231
Os limites do poder das Depois de Stalin. . . . . . . . . . . . . 241
superpotências . . . . . . . . . . . . . . 96 Fim do Império . . . . . . . . . . . . . 253

7 Iugoslávia e Albânia . . . . . . . . 267


PARTE II A Iugoslávia federada . . . . . . . . 267
Extremo Oriente . . . . . . . . . . . . 105 Dissolução: sérvios, croatas e
eslovenos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 271
2 Japão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107 Divisão: a Bósnia-Herzegovina . 276
Kosovo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 283
3 China . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120 Macedônia e Albânia . . . . . . . . 286
O triunfo de Mao . . . . . . . . . . . 120 Notas
A China e as superpotências. . . 128
A. Irlanda do Norte . . . . . . . . . . 290
Ressurreição. . . . . . . . . . . . . . . . 142
B. Bascos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 299
Xinjiang e Tibete . . . . . . . . . . . . 155
C. Chipre . . . . . . . . . . . . . . . . . . 299
4 Coreia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159
12 | SUMÁRIO

PARTE IV A franja sul . . . . . . . . . . . . . . . . 408


Oriente Médio . . . . . . . . . . . . . . 309 A Grã-Bretanha e o Golfo
Pérsico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 411
8 Islã . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 311
Notas
9 Turquia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 313 A. Curdos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 415
B. Xiitas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 418
10 Os árabes e Israel até o C. Violência sectária . . . . . . . . . 418
Canal de Suez . . . . . . . . . . . . . 319
Criação de Israel . . . . . . . . . . . . 321 PARTE V
Revoluções árabes. . . . . . . . . . . 327
Sul da Ásia . . . . . . . . . . . . . . . . . 423
A Guerra de Suez . . . . . . . . . . . 332
16 O subcontinente indiano . . . . 425
11 De Suez a morte de Nasser . . . 339
A primeira divisão . . . . . . . . . . . 426
Reavaliações . . . . . . . . . . . . . . . 339
As fronteiras norte: Tibete,
O declínio de Nasser e a
Caxemira e os Estados do
Guerra dos Seis Dias . . . . . . . . . 342
Himalaia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 431
A segunda divisão . . . . . . . . . . . 438
12 A destruição do Líbano . . . . . . 350
A Guerra do Yom Kippur . . . . . 350 17 Península Indochinesa. . . . . . . 451
Guerra Civil . . . . . . . . . . . . . . . . 354
Camp David . . . . . . . . . . . . . . . . 358 18 O sudeste asiático e a ASEAN. . 467
A invasão israelense do Líbano 361
19 Afeganistão . . . . . . . . . . . . . . . 488
13 Rumo a um Estado palestino . 366
Notas
A diplomacia do rei Hussein . . . 366
A. Ásia Central. . . . . . . . . . . . . . 494
O dilema de Israel . . . . . . . . . . . 369
B. Sri Lanka . . . . . . . . . . . . . . . . 495
14 O Irã e as Guerras do Golfo. . . 377
Petróleo e nacionalismo . . . . . . 378 PARTE VI
O xá e o aiatolá . . . . . . . . . . . . . 382 África . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 501
Saddam Hussein . . . . . . . . . . . . 387
O Kuwait e a Guerra do Golfo 391 20 Geral. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 503
A destruição do Iraque . . . . . . . 401
21 Norte da África . . . . . . . . . . . . 505
15 Península Arábica . . . . . . . . . . 404 Magreb . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 505
O reino Saudita . . . . . . . . . . . . . 404 Líbia e Chade . . . . . . . . . . . . . . . 516
SUMÁRIO | 13

22 África Ocidental. . . . . . . . . . . . 520 PARTE VII


Independência. . . . . . . . . . . . . . 520 América Latina . . . . . . . . . . . . . 657
A linha costeira do Senegal
ao Benim . . . . . . . . . . . . . . . . . . 527 27 América do Sul. . . . . . . . . . . . . 659
Sem acesso ao mar: Mali, Geral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 659
Burkina Faso, Níger . . . . . . . . . . 536
Nigéria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 537 28 América Central. . . . . . . . . . . . 694
23 África Central. . . . . . . . . . . . . . 547 29 Cuba e o Caribe . . . . . . . . . . . . 709
Congo-Zaire-Congo. . . . . . . . . . 547
Ruanda e Burundi . . . . . . . . . . . 559 Nota
África Centro-Ocidental . . . . . . 561 Guiana e Suriname . . . . . . . . . . 722

24 África Oriental . . . . . . . . . . . . . 564


PARTE VIII
Sudão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 564
Ordem mundial . . . . . . . . . . . . . 725
Darfur . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 569
O Chifre . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 570 30 Ordem mundial . . . . . . . . . . . . 727
Uganda, Tanzânia, Quênia . . . . 576
Prevenindo guerras. . . . . . . . . . 727
25 O extremo sul da África . . . . . 588 Prevenindo os desastres
econômicos . . . . . . . . . . . . . . . . 746
O legado de Cecil Rhodes . . . . . 588 Neutralismo e realinhamento . . 754
Moçambique-Angola-Namíbia 604 Pobreza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 764
África do Sul . . . . . . . . . . . . . . . 612
Notas
26 Russos, cubanos, chineses . . . . 635 A. Canadá . . . . . . . . . . . . . . . . . 774
Russos, cubanos, chineses . . . . . 635 B. Países muito pequenos . . . . . 779
C. Polos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 781
Notas D. A lei do mar . . . . . . . . . . . . . 783
A. A República Malgaxe e o
Oceano Índico . . . . . . . . . . . . . . 650 ANEXO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 786
B. Botsuana, Lesoto, Ngwane. . 652 O Estado soberano . . . . . . . . . . 786
C. As homelands ou
bantustões . . . . . . . . . . . . . . . . . 655 Índice . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 789
Introdução

A Segunda Guerra Mundial foi uma enorme catástrofe produzida pelo homem. Quando
terminou, duas questões se impunham sobre todas as outras: a recuperação e uma nova
ordem política.
Seus símbolos respectivos foram a ajuda financeira dos Estados Unidos (principalmente
o Plano Marshall) e a ONU. A principal tarefa dessa organização era impedir as guerras,
principalmente as de grande porte e, especificamente, a guerra nuclear, mas a ONU e seus
organismos afiliados também foram projetados para promover a prosperidade, aliviar a po-
breza e fortalecer a justiça. Ao mesmo tempo, o mapa político do mundo foi alterado pela
demolição dos impérios europeus fora da Europa. O principal objetivo deste livro é propor-
cionar material para ajudar a avaliar até onde esse programa de ambição sem precedentes foi
atingido no curto período de duas gerações.
PARTE
I
GUERRA FRIA
Guerra Fria
1
Primórdios URSS. Porém, para a maioria dos norte-ame-
ricanos, a URSS parecia estar se dedicando
A Guerra Fria entre as duas superpotências à conquista da Europa e do mundo para si e
do pós-guerra não foi um episódio como as para o comunismo, e era capaz de ter êxito,
outras guerras dos tempos modernos. A ex- ou pelo menos iniciar, nessa linha de ação
pressão “Guerra Fria” foi inventada para des- malévola por meio da força das armas ajuda-
crever um estado de coisas, cujo principal da pela subversão. Segundo essa visão, a res-
ingrediente era a hostilidade e o temor mú- posta necessária por parte dos Estados Uni-
tuos entre os protagonistas. Essas emoções dos era o confronto militar em uma aliança
estavam enraizadas em suas várias diferenças com europeus e outros, partindo do pressu-
históricas e políticas e foram incentivadas po- posto de que era impossível erradicar a hos-
derosamente por mitos que de vez em quan- tilidade soviética. Visto de Moscou, o mundo
do transformavam a hostilidade em ódio. A ocidental era inspirado por valores capita-
Guerra Fria dominou as questões internacio- listas que exigiam a destruição da URSS e a
nais por uma geração ou mais. extirpação do comunismo por qualquer meio
O presidente Franklin D. Roosevelt acre- disponível, mas, acima de tudo, pela força ou
ditava, ou talvez apenas esperasse, poder pela ameaça de uso de força irresistível. Essas
persuadir Joseph Stalin a não criar uma esfe- duas apreciações eram absurdas. Quando a
ra de influência soviética separada na Euro- Segunda Guerra Mundial terminou, a URSS
pa Oriental, e sim cooperar com os Estados estava incapacitada de realizar mais esforços
Unidos na criação de uma ordem econômica militares, enquanto os partidos comunistas
baseada no livre comércio e benéfica a todos além de sua esfera imediata eram incapazes
os envolvidos, principalmente à URSS. A lei de conquistar qualquer coisa significativa. As
conhecida como Lend-Lease, que estabelecia potências ocidentais, embora profundamente
o empréstimo de armamentos à URSS duran- desconfiadas da URSS e hostis a seu sistema e
te a guerra, foi um primeiro passo; o Plano suas crenças, não tinham intenção de atacá-la
Marshall do pós-guerra era para ser uma úl- e nem estavam dispostas a perturbar a domi-
tima esperança, de certa forma desesperada, nação das regiões central e leste da Europa
pois mesmo após a morte de Roosevelt, em garantida por seus exércitos nos últimos anos
abril de 1945, havia gente em Washington da guerra. Cada lado se armou para vencer
que preferia uma política de ressuscitar a Eu- uma guerra que esperava que o outro come-
ropa Ocidental sem confronto militar com a çasse, mas para a qual não tinha inclinação.
20 | PETER CALVOCORESSI

O foco principal da Guerra Fria foi a toda a participação no acordo pós-guerra


Alemanha, onde o confronto por causa de no Extremo Oriente.
Berlim, em 1948-1949, chegou próximo do No teatro de guerra europeu, o confli-
conflito armado, mas terminou com vitória to permaneceu velado por algum tempo.
do lado ocidental sem enfrentamento militar. Os órgãos e os hábitos da colaboração em
Esse teste de força controlado estabilizou a tempos de guerra deveriam ser adaptados
Europa, que se tornou a região mais estável aos problemas da paz, e não descartados. A
do mundo por várias décadas, mas as hosti- ofensiva dos russos na primavera de 1944
lidades foram transferidas quase que simul- colocou a URSS no caminho de uma domi-
taneamente para a Ásia, começando com o nação militar e uma autoridade política na
triunfo do comunismo na China e a guerra na Europa sem iguais desde que Alexandre I
Coreia. Esses eventos, por sua vez, levaram a entrara em Paris, em 1814, com planos para
uma aceleração da independência e do rear- uma reunião dos vitoriosos que ordenaria
mamento da Alemanha Ocidental dentro da as questões da Europa e as manteria orde-
nova aliança euro-americana e a uma suces- nadas. A natureza do controle das grandes
são de conflitos na Ásia, dos quais a Guerra potências em meados do século XX era
do Vietnã foi o mais devastador. Em nenhum uma questão a debater – até que ponto as
momento os protagonistas se enfrentaram potências deveriam ordenar coletivamente
diretamente, mas buscaram ampliar suas in- o mundo todo, até onde cada uma deveria
fluências e conquistar vantagem territorial dominar um setor. Os russos e os britânicos,
em partes adjacentes do mundo, principal- com a concordância relutante do presidente
mente no Oriente Médio e, depois de sua Franklin D. Roosevelt (e a discordância de
descolonização, na África. Nenhum desses seu secretário de Estado, Cordell Hull), dis-
eventos foi conclusivo e, por quase meio sé- cutiram os aspectos práticos de uma divisão
culo, a principal expressão externa da Guerra imediata de responsabilidades e, em outubro
Fria não foram avanços ou recuos, mas sim de 1944, em uma conferência em Moscou, a
a acumulação e o refinamento dos meios pe- qual o presidente não conseguiu compare-
los quais os dois lados tentavam intimidar-se cer devido à campanha eleitoral nos Estados
mutuamente, ou seja, sua corrida armamen- Unidos, essas disposições foram expressas
tista. O afrouxamento da Guerra Fria resultou em termos numéricos. Em relação à Europa
do efeito combinado do altíssimo custo des- Ocidental, não foi levantada qualquer ques-
ses armamentos e da gradual decadência dos tão, porque o controle do Ocidente era in-
mitos que estavam por trás dela. contestável. A Polônia não foi incluída por-
No verão de 1945, sabia-se, tanto em que, em algumas partes, efetivamente, em
Washington quanto em Moscou, que o Ja- outras, de forma iminente, estava sob con-
pão estava pronto para reconhecer a derrota trole militar de Stalin. Em outros lugares,
e abandonar a guerra que tinha começado as realidades foram expressas por Winston
com o ataque a Pearl Harbor em 1941. Em Churchill em termos percentuais. O grau
julho, os norte-americanos fizeram a explo- de influência dos russos na Romênia foi
são experimental da primeira arma nuclear descrito como sendo de 90%, na Bulgária e
da história da humanidade e, em agosto, na Hungria, de 80%, na Iugoslávia, de 50%,
lançaram duas bombas em Hiroshima e Na- e na Grécia, de 10%. Na prática, esses nú-
gasaki. O Japão se rendeu imediatamente e meros, embora expressos na forma de uma
essa consolidação da vitória iminente dos barganha, descreviam uma situação: 90 e 10
Estados Unidos privou os russos de quase eram maneiras educadas de dizer 100 e 0,
POLÍTICA MUNDIAL | 21

e o diagnóstico nos dois casos extremos da minada, o propósito da aliança foi atingido,
Romênia e da Grécia foi confirmado quan- e pouco havia nas mentalidades e tradições
do os britânicos tomaram o controle do país dos aliados para incentivar a ideia de que
grego sem protesto dos russos e a URSS ins- ela poderia ser convertida em uma enten-
talou um regime pró-comunista na Romê- te. Pelo contrário, a história diplomática de
nia com protestos apenas formais por parte todas as partes até 1941, e suas respectivas
dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha. atitudes em relação a problemas políticos,
A Bulgária e a Hungria seguiram o mes- sociais e econômicos internacionais suge-
mo caminho da Romênia por razões mili- rem exatamente o inverso.
tares. A Iugoslávia parecia se enquadrar na A eliminação permanente ou temporá-
esfera russa, mas em pouco tempo saiu dela. ria da ameaça alemã coincidiu com a explo-
A Europa se dividiu em dois segmentos per- são das primeiras bombas nucleares norte-
tencentes aos dois principais vitoriosos, os -americanas. Pela primeira vez na história
Estados Unidos e a URSS. Essas duas potên- do mundo, um Estado tinha se tornado
cias continuaram, por algum tempo, a falar mais poderoso do que todos os outros jun-
em termos de aliança, e faziam votos especí- tos. A URSS, não menos do que o país mais
ficos de trabalhar conjuntamente pelo con- trivial, estava à mercê dos norte-americanos
trole dos territórios alemão e austríaco, que se eles estivessem dispostos a fazer com
tinham conquistado junto com os aliados. Moscou e Leningrado o que tinham feito
A posição de URSS nesses anos era de com Hiroshima e Nagasaki. Havia razões
grande fraqueza. Para o país, a guerra foi para supor que eles não estavam dispostos a
um imenso desastre econômico acompa- isso, mas nenhum governo no Kremlin po-
nhado de uma perda de vidas tão penosa deria trabalhar responsavelmente com essa
que sua extensão total não foi divulgada. suposição. O único rumo prudente de Stalin
O Estado russo era uma potência terrestre nessa situação tão decepcionante era combi-
que havia se expandido geração após gera- nar a máxima força da URSS com uma boa
ção, dentro de uma zona que evocava uma avaliação do nível seguro de provocação aos
persistente ameaça alemã. Na fase sovié- Estados Unidos e subordinar tudo, inclusive
tica da história, a política externa russa foi a reconstrução depois da guerra, à ideia de
mais caracterizada por uma diplomacia que alcançar os Estados Unidos em tecnologia
levava ao isolamento, e assim, em 1941, ao militar. Ele possuía um grande exército, ti-
limiar da derrota militar. A URSS foi salva nha ocupado vastas áreas da Europa Orien-
por seus recursos geográficos e espirituais tal e Ocidental e tinha aliados e servidores
extraordinários e pela guerra simultânea naturais em várias partes do mundo.
no Ocidente, em que os alemães já estavam Em seu país, suas tarefas eram imensas,
envolvidos antes de atacá-la e que se tornou incluindo a salvaguarda da URSS contra
mais grave para eles quando, pouco depois, a repetição da catástrofe de 1941-1945 e a
Hitler declarou guerra aos Estados Unidos sua ressurreição da catástrofe que custara
da América gratuitamente. Para Stalin, con- 25 milhões de vidas, ou talvez 40 milhões,
tudo, a aliança antifascista de 1941-1945 a destruição ou destituição de uma grande
não deve ter parecido mais do que um casa- parte de sua indústria e a distorção de seu
mento de conveniência e de tempo limitado, padrão industrial em prejuízo de toda a pro-
e ela também não parecia diferente vista do dução, com exceção da relacionada à guerra,
lado ocidental, pelo menos pelos governos, à devastação e à despopulação de sua terra
se não na visão popular. Com a guerra ter- cultivada, fazendo com que a produção de
22 | PETER CALVOCORESSI

alimentos diminuísse quase à metade. Para inicialmente substituiu os alemães pelos


um homem com o passado e o tempera- norte-americanos como principal inimigo,
mento de Stalin, as tarefas da restituição mas depois do rearmamento da Alemanha
incluíam a reafirmação do governo do par- Ocidental, combinou as duas ameaças na
tido e da ortodoxia comunista, a redução americano-alemã. Contudo, esses eventos,
do lugar ocupado pelo exército e por outras para os quais o próprio Stalin contribuiu
instituições nacionais e o reenquadramento com suas ações na Europa Central e do Les-
de todos os modos de pensar fora do rumo te, podem ter sido uma decepção para ele,
doutrinário prescrito. Em questões de segu- se, como parece possível, ele tiver cogitado,
rança nacional, em questões econômicas e em algum momento, uma perspectiva mui-
na vida espiritual, a perspectiva era sombria. to diferente das relações russo-americanas.
Dentro do país, artistas e intelectuais eram Para Stalin, durante a guerra, os norte-ame-
arregimentados, marechais vitoriosos eram ricanos eram personificados por Franklin
postos de lado e a classe dos oficiais sofreu D. Roosevelt, que não escondia seu desejo
expurgos contínuos, ainda que discretos, de ter uma boa relação com a URSS nem
enquanto o primeiro plano quinquenal sua desconfiança diante da Grã-Bretanha e
pós-guerra prescrevia tarefas ferrenhas para de outros imperialismos ocidentais. Além
a indústria pesada e oferecia pouco conforto disso, Roosevelt queria uma aliança com a
a uma população cansada da guerra. Rússia contra o Japão e não parecia haver
Externamente, Stalin deixou claro que possibilidades de que fizesse o que Stalin
não abriria mão das aquisições preventivas temia, a saber, manter tropas permanente-
de 1939-1940 (os Estados do báltico, a re- mente na Europa e fazer dos Estados Uni-
gião leste da Polônia, que os russos chama- dos uma potência europeia. Pelo contrário,
vam de Ucrânia Ocidental e a Bielorrússia, Roosevelt não estava muito interessado na
Bessarábia e Bucovina do Norte, e o terri- Europa do pós-guerra e demonstrou poucas
tório tomado da Finlândia depois da guer- das preocupações de Churchill em relação
ra do inverno); em outras partes da Europa ao que aconteceria na Polônia ou na Gré-
Oriental e Central, todos os países deveriam cia. Enquanto as relações russo-britânicas
ter governos com boa disposição em relação chegaram quase a um ponto de ruptura por
à URSS, uma fórmula vaga que parecia que- causa da Polônia, com as russo-americanas
rer dizer governos com que se pudesse con- isso não aconteceu. E Stalin, por verdadeira
tar para que nunca mais dessem facilidades falta de interesse ou por diplomacia calcula-
a um agressor alemão, e que passou, depois da, evitava discordâncias graves com Roo-
de 1947, ou por volta dessa data, a signifi- sevelt sobre problemas de organização do
car governos hostis aos Estados Unidos na mundo (como a representação das Repúbli-
Guerra Fria. cas Soviéticas na ONU) na qual o presidente
Esses governos deveriam ser instalados norte-americano tinha um sério interesse.
e mantidos por quaisquer meios necessários. Partindo da ideia de que os norte-ame-
Em conferências realizadas em tempos de ricanos estariam afastados da Europa e, em
guerra entre Stalin, Roosevelt e Churchill, algum nível, teriam uma postura amigável
partes da URSS ainda estavam ocupadas por em relação à URSS, Stalin estava disposto a
forças alemãs, durante a guerra e em suas moderar seu apoio aos comunistas europeus
consequências psicológicas (um período de para não alarmar os Estados Unidos. Ele
duração indefinível), Stalin estava obcecado não previu que, ao abandonar a Grécia para
com esse problema alemão. A Guerra Fria a Grã-Bretanha, estaria abrindo caminho
POLÍTICA MUNDIAL | 23

para sua transferência para os Estados Uni- criou uma barreia protetora de suas regiões
dos, três anos depois, e pode não ter ajudado centrais vulneráveis e, na época, assustou os
os comunistas gregos principalmente por exaustos e hesitantes europeus e seus prote-
ter avaliado que não valia a pena ajudá-los, tores norte-americanos, fazendo com que se
mas também pode ter refletido que ajudá-los perguntassem se o avanço russo tinha real-
alarmaria e irritaria os norte-americanos do mente sido barrado pela rendição alemã ou
entorno de Roosevelt. Ele dava continuidade poderia ser retomado até que Paris e Milão,
a uma política aplicada na Iugoslávia durante Brest e Bordeaux fossem acrescentadas ao
a guerra, quando freou os desejos dos comu- pacote russo. Porém, ao manter um enorme
nistas do país de planejar e implementar sua exército mobilizado e reduzir a maior parte
revolução social com a guerra ainda em an- da Europa Central e do Oriental à vassala-
damento e exigiu que eles cooperassem com gem, enquanto o dinheiro e os cérebros rus-
outros partidos, até mesmo com os monar- sos estavam produzindo a bomba do país,
quistas. Também convenceu os comunistas Stalin aprofundou a hostilidade norte-ame-
italianos a serem menos antimonárquicos ricana que ele tinha motivos para temer.
do que o não comunista Partido da Ação; A paridade nuclear era um objetivo
foi o líder comunista Palmiro Togliatti que inescapável para o Kremlin, mas havia, teo-
propôs, depois da queda de Mussolini, que o ricamente, uma alternativa, que alguns nor-
futuro da monarquia italiana permanecesse te-americanos tentaram trazer para o âmbito
em suspensão até terminar a guerra. Contu- da política prática: sublimar e internaciona-
do, naquela época, Roosevelt tinha morrido lizar a energia atômica e assim removê-la
e, fossem quais fossem as políticas de Stalin da política entre países. Uma das primeiras
com relação aos Estados Unidos, elas não ações da ONU, em 1946, foi criar uma co-
poderiam se basear mais em suas relações missão de energia atômica.
com Roosevelt nem em suas avaliações so- Na primeira reunião dessa comissão,
bre as intenções deste. Se Roosevelt tivesse Bernard M. Baruch apresentou, em nome
sobrevivido, suas políticas poderiam ter sido dos Estados Unidos, um plano para uma
radicalmente alteradas – como foram as de autoridade de desenvolvimento atômico in-
Harry S. Truman, que o sucedeu em abril de ternacional que teria controle e propriedade
1945 – pela explosão exitosa de duas bombas exclusivos de todas as atividades nucleares
nucleares e pelo desdobramento das políti- com potencial bélico. Os russos apresen-
cas de Stalin na Europa. taram um plano diferente. Os dois planos
Para Stalin, que em 1945 estava diante eram irreconciliáveis e, em 1948, a Comis-
das evidências de Hiroshima e Nagasaki, o são de Energia Atômica decidiu suspender
fato visível era que a URSS não possuía uma suas atividades por tempo indeterminado.
força aérea estratégica que pudesse realizar A rejeição do Plano Baruch pelos russos foi
um ataque direto aos Estados Unidos. O me- mais um fator a convencer Truman de que
lhor que Stalin poderia fazer era representar a URSS não era mais um aliado, e sim um
uma ameaça à Europa Ocidental, que pu- perigoso adversário.
desse impedir os norte-americanos de ata- Os formuladores de políticas norte-ame-
car seu país. Os exércitos russos não foram ricanos tinham mais liberdade de escolha do
desmobilizados nem retirados das áreas que que seus colegas russos. A bomba nuclear era
haviam ocupado nas derradeiras campanhas uma arma que foi usada para dar um fim à
da guerra, e que incluíam as capitais Buda- guerra com o Japão e também uma arma po-
peste, Praga, Viena e Berlim. Assim, Stalin lítica com a qual conter o poder dos russos.
24 | PETER CALVOCORESSI

ISLÂNDIA

OTAN

Pacto de Varsóvia

A
UEG
OCEANO ATLÂNTICO

CIA
NOR

SUÉ
MAR DO
NORTE
REP. DA
IRLANDA DINAMARCA ICO
LT

AR
HOLANDA M
REINO UNIDO

ALEMANHA POLÔNIA
BÉLGICA ORIENTAL
OCIDENTAL
TCH
ECO
SLO
VÁQ
FRANÇA UIA

SUÍÇA ÁUSTRIA
HUNGRIA

IU
GO
AL

SL
M ÁV
G

AR
RTU

IA
ESPANHA AD
IT
PO

RI
ÁL

ÁT
IC
IA

MAR MEDITERRÂNEO

0 200 400 km

0 150 300 milhas

Figura 1.1 A divisão da Europa na Guerra Fria.


POLÍTICA MUNDIAL | 25

DIA
FINLÂN

UNIÃO DAS REPÚBLICAS SOCIALISTAS SOVIÉTICAS (URSS)

ROMÊNIA

MAR NEGRO

BULGÁRIA

CIA
GRÉ TURQUIA

CHIPRE
26
NORUEGA Fronteira da URSS anterior a 1991
|

SUÉCIA

FINLÂNDIA Murmansk
POLÔNIA

São Petersburgo
BIELORÚSSIA
Arkhangel’sk
PETER CALVOCORESSI

UCRÂNIA
Moscou
Noril’sk

Nizhniy Petropaviovsk
Novgorod
Novorossiysk
Yekaterinbug FEDERAÇÃO RUSSA
Samara
Tyumen

TURQUIA
Omsk
Krasnoyarsk
Novosibirsk
CAZAQUISTÃO
Irkutsk

CHINA Nakhodka
Vladivostok

IRÃ MONGÓLIA
ÃO

COREIA
JAP

CHINA DO NORTE
0 500 1000 km
AFEGANISTÃO COREIA
0 250 500 milhas
DO SUL

Figura 1.2 A Federação Russa e seus vizinhos.


POLÍTICA MUNDIAL | 27

MAR
NEGRO
URSS
(agora Federação Russa)

Geórgia

Armênia
PIO

Ca
Azerbaijão za
ÁS

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RC

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DE ARAL tã
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Irã
tão

Ta Quirguistão
djiq
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st
ão
China
Afeganistão
Fronteira entre repúblicas

0 500 1000 km Fronteira internacional soviética até 1991

0 300 600 milhas

Figura 1.3 Os cinco Estados da Ásia Central e o Cáucaso.

A guerra deixou os Estados Unidos na condi- A partir disso, os norte-americanos


ção de grande potência na Europa, com for- implementaram políticas que combinavam
ças militares consideráveis e armas nucleares ameaçar com esperar para ver. Todas as ar-
como pano de fundo. Dotados de uma forte mas têm implicações políticas, e as armas
superioridade técnica, os norte-americanos maiores têm as maiores implicações. Uma
poderiam atacar ou ameaçar, ou esperar para arma cujo uso seja muito assustador – ou
ver. Atacar – começar uma guerra preventi- passe a ser inútil em termos militares, exce-
va – era impossível, na prática, porque eles to nas circunstâncias excepcionais – tem as
não conseguiam reunir a disposição para isso. máximas implicações, pois quem a possuir
Uma guerra preventiva é uma guerra reali- quererá lhe dar uso político para compensar
zada para remover uma ameaça potencial por as limitações anômalas de sua inutilidade
um povo que se sente ameaçado, e os norte- militar. A posição de Truman passou a ser
-americanos não se sentiam ameaçados pelos automaticamente diferente da de Roosevelt
armamentos russos: a guerra preventiva é um assim que Hiroshima foi destruída. A ques-
conceito intelectual abstrato. (Para os russos, tão não era se ele faria uso político da nova
era substantivo, mas também suicida.) arma, mas com que finalidade a usaria. O
28 | PETER CALVOCORESSI

contexto em que essa questão surgiu pela somente uma participação minoritária nos
primeira vez não foi asiático, e sim europeu, governos da capital e do país. As eleições na
pois era na Europa onde estavam situadas as Bulgária foram adiadas por insistência nor-
principais questões políticas. Aos Estados te-americana e contra a vontade dos russos.
Unidos não agradava a ideia de esferas de Na Romênia, os Estados Unidos se alinha-
influência e a perspectiva de controle exclu- ram com os anticomunistas e o rei contra o
sivo russo sobre metade da Europa, já que os primeiro-ministro Petru Groza, que os rus-
russos descumpriram promessas de instalar sos nomearam quando entraram no país em
governos democráticos em países libertados 1944 (embora não fosse comunista). Mas o
da dominação alemã. Além disso, o clima campo de teste fundamental foi a Polônia,
da opinião estava mudando. Truman era onde o governo de coalizão, sob comando de
um homem muito diferente de Roosevelt, um primeiro-ministro socialista, foi manti-
e ciente dessas diferenças: norte-americano do até 1947, mas transformado aos poucos
com algum destaque, mas de forma nenhu- naquele ano e nos seguintes – os anos que
ma uma figura mundial, homem respeitado assistiram ao fim de qualquer esperança de
pelas qualidades que acompanham a fran- impedir a divisão da Europa em esferas de
queza em vez da sutileza, no qual a coragem influência e a formalização da Guerra Fria.
política teria de substituir a sofisticação po- As políticas dos Estados Unidos na
lítica, um homem tipicamente norte-ame- Europa deram uma guinada, afastando-se
ricano em seu vínculo com alguns poucos da tentativa de maximizar sua própria in-
princípios básicos em que Roosevelt em ge- fluência, em favor de fazer a URSS enten-
ral tinha preferido as formas de pensamen- der que estavam proibidos mais avanços no
to do pragmatismo. Truman, como último continente. Essa proibição seria garantida
recurso, fazia política por preceito e não de por uma série de arranjos políticos sus-
ouvido, e, onde Roosevelt tinha estado in- tentados por esquemas militares. O poder
teressado no problema das relações entre as avassalador dos Estados Unidos seria usa-
duas grandes potências, Truman era mais do para obstruir, mas não para destruir.
influenciado pelo conflito entre comunismo Enquanto representasse uma ameaça ma-
e uma entidade cada vez mais vaga chamada terial, a URSS seria contida por meio de
anticomunismo. Mais uma vez, desde que barreiras físicas; enquanto representasse
se considerem essas generalizações compre- uma ameaça ideológica, seria contida pelo
ensíveis, Truman era um norte-americano exemplo democrático, pelo dinheiro e pelas
mais representativo em finais dos anos de sementes da decadência que os ocidentais
1940, e mais inclinado a considerar o encon- viam no sistema comunista (como os mar-
tro de norte-americanos e russos no meio xistas no capitalismo). As políticas dos Es-
da Europa como um confronto de sistemas tados Unidos também eram construtivas e
e civilizações do que de Estados. Os relatos reconstrutivas. A Agência das Nações Uni-
de indisciplina por parte de soldados russos, das para o Auxílio e a Reabilitação (UN Re-
muitas vezes descritos como asiáticos ou lief and Reconstruction Agency, UNRRA)
mongóis, aumentariam essa propensão. foi financiada principalmente com dinhei-
Os Estados Unidos tinham algumas ro norte-americano; sua ajuda foi enorme,
razões para esperar que as implicações de principalmente à URSS e à Iugoslávia. Em
Hiroshima para a Europa não passassem março de 1947, os Estados Unidos assumi-
despercebidas aos russos. As eleições na ram o papel tradicional da Grã-Bretanha,
Hungria, em 1945, deram aos comunistas agora muito oneroso, de manter os russos
POLÍTICA MUNDIAL | 29

fora do Mediterrâneo Oriental: Truman contenção, e a segunda, que deveria per-


tomou a Grécia e a Turquia sob o cuidado manecer unificado. Essa dependia daque-
norte-americano e prometeu ajudas mate- la, que ia contra as premissas de então (em
riais a países ameaçados pelo comunismo. grande parte inconscientes), de que, pri-
Três meses depois, os Estados Unidos inau- meiro, a Europa tinha se dividido em duas
guraram o Plano Marshall para evitar um partes e, segundo, os aliados ocidentais e
colapso econômico da Europa, que pode- os russos deveriam, cada um, controlar as
ria, temia-se, deixar o continente como um partes conquistadas em sua metade. Hou-
todo exposto ao poder russo e aos engodos ve conversas, e mesmo uma concordância
comunistas. A oferta de ajuda econômica geral, em relação ao controle aliado con-
norte-americana foi feita ao conjunto da junto sobre todo o continente, mas a rea-
Europa, incluindo a URSS, mas Moscou a lidade, a partir da conquista da Sicília em
recusou para si e para seus aliados. Pela se- 1943, foi outra. Dentro de uma década, a
gunda vez – o Plano Baruch foi a primeira Alemanha se dividiu em dois Estados se-
– os russos rejeitavam uma generosa aber- parados, por razões que incluíam a inca-
tura por parte de Washington, em vez de pacidade dos vitoriosos de chegar a um
aceitar uma colaboração que teria possibi- acordo sobre o problema alemão, a im-
litado aos norte-americanos e a outros des- portância intrínseca da própria Alemanha
locar-se na URSS e observar sua verdadeira e circunstâncias externas, entre as quais a
situação. Afirmou-se o desenvolvimento guerra da Coreia foi a mais importante.
separado das regiões ocidental e ociden- Sendo assim, também a Alemanha foi
tal da Europa. O continente ainda era um dividida, a exemplo da Europa como um
campo de batalha – não como os europeus todo, em consequência da rivalidade rus-
em sua maioria o viam – uma zona em que so-americana na sala de conferências e em
há pouco terminara mais uma guerra. O terra, na Europa e em outros lugares. A bi-
golpe que substituiu o governo comunista polaridade da política baseada nas potên-
por uma coalizão em Praga no ano seguinte cias do pós-guerra levou inevitavelmente à
tornou mais nítida a imagem de campo de delineação e demarcação – mesmo em um
batalha, pois, embora as únicas lutas fos- episódio célebre e tardio – à construção de
sem esporádicas e localizadas, todos con- um muro, uma reminiscência tática de me-
cordavam na descrição da situação como canismos tão antigos quanto a tentativa de
uma guerra. Sendo assim, a luta pela úni- impedir a entrada de navios no Chifre de
ca parte importante da Europa em disputa Ouro ou de exércitos no istmo de Corinto.
entre os dois campos gerou um desafio que Os principais vitoriosos concordaram,
parecia fadado a levar ao conflito armado. no princípio, em que a Alemanha deveria
ser desarmada e desnazificada, dividida ad-
ministrativamente em zonas de ocupação,
A divisão da Alemanha mas tratada economicamente como uma
unidade que pagaria pelos produtos impor-
No final da Segunda Guerra Mundial, os tados de que necessitava com a produção de
Estados Unidos, a URSS e a Grã-Bretanha então. O desmembramento, que havia sido
estavam aparentemente de acordo em re- discutido e pode ter permanecido na ideia
lação a duas propostas sobre a Alemanha de alguns franceses, foi abandonado tacita-
e deixaram de cumprir ambas. A primei- mente sem ser repudiado oficialmente, e as
ra era que o país deveria ser mantido sob amputações territoriais sofridas pela Ale-
30 | PETER CALVOCORESSI

manha foram a perda da Prússia Oriental dado que as várias zonas eram economica-
para a URSS e de todos os outros territórios mente desiguais, tanto em indústria quanto
para além dos rios Oder e Neisse ociden- na produção agrícola. Também tornava sem
tal, que foram deixados sob administração sentido o princípio de pagar por importa-
polonesa, esperando a delimitação final do ções da produção corrente, já que permitia
Estado alemão pela conferência de paz que aos ocupadores destruir as fontes da produ-
nunca aconteceu. Churchill se opôs à desig- ção. A Alemanha poderia ser pilhada ou ex-
nação do Neisse ocidental em vez de orien- plorada – embora não as duas coisas simul-
tal como o limite ocidental da esfera polo- taneamente – por muito tempo. Os aliados
nesa (o Neisse ocidental flui para o norte ocidentais se deram conta pouco depois de
até o Oder, em um ponto onde seu sentido que o desmantelamento os deixava com uma
contracorrente vira subitamente para o lado obrigação de fornecer às zonas mercadorias
oriental), mas não se sentiu capaz de susten- importadas que tinham de ser pagas por
tar uma atitude aparentemente antipolone- seus próprios contribuintes, já que a produ-
sa. A decisão de Potsdam sobre as fronteiras ção alemã não era capaz de dar conta.
da Alemanha, embora expressa em termos Mais além, o desmantelamento e as re-
provisórios, foi, na verdade, uma vitória dos moções em grande escala por parte dos rus-
russos. A Alemanha tinha perdido quase sos, associados à escassez grave na própria
um quarto de seu território anterior a 1938. URSS, impuseram aos ocupantes ociden-
Os vitoriosos estavam divididos em tais e seus contribuintes o fardo adicional
suas visões sobre a política econômica da de fornecer alimentos e bens essenciais à
ocupação e sobre a futura estrutura do Es- zona russa. Embora os norte-americanos
tado alemão. Os princípios gerais da uni- pudessem estar dispostos a ajudar os rus-
dade econômica e o equilíbrio de importa- sos diretamente com equipamento para a
ções e exportações, adotados em Potsdam, reconstrução, estavam descontentes com a
entraram em choque com o problema das forma direta com que os russos tomaram
indenizações que tinha sido discutido de equipamento alemão com um custo final
forma não conclusiva em Ialta e depois ar- para os norte-americanos, enquanto, de sua
quivado em Potsdam. Concordou-se, em parte, os russos não se importavam de tirar
Ialta, que a soma de 20 bilhões de dólares da Alemanha aquilo que seu amour propre
deveria ser tomada como base para outras os impedia de aceitar dos norte-americanos.
discussões, sendo que metade desse mon- Esse conflito foi acompanhado por dis-
tante era reivindicada pela URSS para si e cordâncias semelhantes em relação à estru-
para a Polônia. Em Potsdam, os russos, que tura da Alemanha e seus vínculos políticos.
tinham muita necessidade de indenizações Os britânicos estavam pragmaticamente
em mercadorias ou em dinheiro, garan- predispostos a uma estrutura unitária em
tiram acordos de retirada de sua zona de vez de federal, mais por razões econômicas,
ocupação para cumprir as reivindicações do que políticas. A principal preocupação
de indenizações russas e polonesas, mas russa era estratégica: manter sua posição na
nada foi acertado com relação à extensão Alemanha Oriental – o mínimo essencial
dessas reivindicações. a que eles aderiram depois, sem titubear, e
Os aliados ocidentais também teriam di- que foi reforçado, em novembro de 1945,
reito a remover propriedades de suas zonas, pelo primeiro evento importante na Europa
mas esse acordo acabaria por tornar sem em recuperação do pós-guerra: as eleições
sentido o princípio da unidade econômica, na Áustria, nas quais os comunistas foram
POLÍTICA MUNDIAL | 31

derrotados de forma inquestionável. Se, aceitou um rearmamento modificado da


compatível com o objetivo de se manterem Alemanha; por fim, De Gaulle, avançando
firmes no controle da Alemanha Oriental, o a política de reconciliação de Schuman,
poder russo pudesse ser estendido a toda a concluiu com o antigo colega desse, Kon-
Alemanha, tanto melhor; mas esse objetivo rad Adenauer, uma aliança bilateral fran-
mais amplo parecia muito problemático de- co-germânica. Nos três anos posteriores
pois dos primeiros e conturbados meses de à conferência de Potsdam, os ocupantes,
paz. Desde que a possibilidade continuasse não tendo conseguido produzir uma polí-
existindo, os russos seriam favoráveis a um tica coerente para a Alemanha, deixaram
governo central forte para a Alemanha, na de ver o país como algo a ser contido, e
esperança de que ele fosse capturado pelo passaram a considerá-lo algo a ser adqui-
Partido de Unidade Socialista (SED – uma rido – de uma posição basicamente de co-
tentativa de criar um partido de esquerda laboração a uma posição basicamente de
sob controle comunista e impedir a opera- competição.
ção de um partido socialista distinto). Eles Duas conferências de ministros do exte-
só abandonaram essa política indireta de- rior em 1947, em Moscou em março, e em
pois que ficou claro que uma Alemanha uni- Londres em novembro, foram incapazes de
ficada não seria mais comunista na década elaborar o tratado de paz que deveria re-
de 1940 do que tinha sido depois de 1918. sultar delas. No mesmo ano, que também
Sendo assim, eles mudaram não para uma foi o ano da Doutrina Truman e do Plano
solução federal relativa à Alemanha como Marshall, as zonas norte-americana e bri-
um todo, mas sim para uma política de duas tânica foram dotadas de um conselho eco-
Alemanhas. nômico de 54 membros. No ano seguinte,
Quem apoiava a criação de uma fede- norte-americanos e britânicos avançaram
ração com um governo central fraco, eram com determinação para transformar sua
os franceses. Incapazes de impor qualquer zona conjunta em uma democracia parla-
controle sobre a Alemanha e duvidando da mentar solvente e autônoma. O conselho
capacidade de seus aliados de fazer isso por econômico foi duplicado em tamanho e re-
muito tempo, queriam um Estado alemão cebeu uma segunda câmara; produziu-se um
fraco, desarmado e incapacitado pela frag- plano para a internacionalização do Ruhr,
mentação política interna. Também que- com vistas a se contrapor aos temores de
riam carvão para seus planos de recons- quem achava difícil digerir o ressurgimen-
trução e o domínio do Sarre. As mudanças to de um Estado alemão autônomo. Norte-
de postura vieram em etapas: inicialmente, -americanos e britânicos desvalorizaram o
quando era ministro do exterior, Geor- marco em suas zonas, uma reforma há muito
ges Bidault reconheceu, relutantemente, a discutida e necessária, que os russos tinham
hostilidade entre a URSS e os aliados oci- obstruído apelando ao princípio da unidade
dentais, direcionou a França para o lado econômica; e uma assembleia constituinte se
desses e aceitou o estabelecimento de um reuniu em Bonn. Esses passos foram com-
novo Estado alemão, incluindo uma zona plementados em abril de 1949, quando a
francesa; a seguir, Robert Schuman bus- zona francesa se uniu à anglo-americana. Os
cou, em um contexto europeu mais amplo, ocupantes ocidentais fortaleceram essa zona
conquistar a amizade da Alemanha em conjunta (um estado embrionário) com aju-
vez de se garantir contra a hostilidade do da financeira norte-americana e uma refor-
país, e René Pleven, no mesmo contexto, ma de sua moeda, e prepararam a extensão
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do novo marco a seus setores em Berlim. A que aconteceram em outubro de 1946, frus-
essas alturas, os russos decidiram questionar traram o plano russo de colocar a adminis-
toda a política do Ocidente de desenvolver tração da cidade nas mãos de comunistas.
separadamente um Estado alemão ocidental, Em 1947, Ernst Reuter, socialista ex-co-
e escolheram Berlim, onde sua posição era munista, foi eleito prefeito em uma disputa
especial. simbólica na qual os ocupantes não russos
Berlim foi excluída do sistema de zonas estiveram claramente, ainda que de forma
e posicionada em uma autoridade separada, discreta, alinhados com Reuter contra os
exercida em conjunto pelos aliados. A cida- russos e os comunistas.
de foi dividida em quatro setores, mas eles A vida política independente da cidade
não tinham a autonomia administrativa das tinha revivido antes de os russos consegui-
zonas. Contudo, a posição russa em Berlim rem impor um substituto asfixiante, de for-
era distinta por duas razões. Eles foram os ma que, embora a posição estratégica russa
primeiros a entrar na cidade, ocupando-a permanecesse forte, sua posição política não
alguns dias antes da rendição alemã e co- tinha crescido e os ocupantes ocidentais se
meçando o trabalho de limpar o entulho, viram obrigados a ajudar as atividades antir-
organizar rações, instalar novas autoridades rusas dos berlinenses. Em troca dessa ajuda
locais e estabelecer uma força policial antes informal, os ocupantes ocidentais se senti-
da chegada de unidades norte-americanas e ram comprometidos com a manutenção da
britânicas. Segundo, o desenho dos limites independência de Berlim da zona russa e
das zonas deixou Berlim como um enclave sua sucessora, a Alemanha Oriental, ou Re-
dentro da zona russa, e a 260 km do ponto pública Democrática Alemã.
mais próximo sob controle britânico. Poste- Os passos dados pelos ocupantes oci-
riormente, muito se discutiu a falta de visão dentais em 1947 e 1948 para estabelecer um
e sensibilidade política dos aliados ociden- Estado alemão ocidental ameaçavam a am-
tais ao permitir que os russos chegassem a bição russa de manter a Alemanha inteira e
Berlim antes e aceitar o que, na prática, era transformá-la em comunista. Eles também
um isolamento da cidade, sem ao menos ga- prenunciavam o ressurgimento de uma
rantir direitos de acesso a ela definidos clara potência alemã independente na política
e formalmente. Embora se deva relevar um mundial, armada e hostil à URSS. Os russos
pouco em função do equilíbrio e das exigên- decidiram dar importância a esses desdo-
cias da colaboração em tempos de guerra, bramentos e recorrer à força para pará-los.
restam poucas dúvidas de que os norte- Interromperam as rotas rodoviárias, ferro-
-americanos e os britânicos teriam obtido viárias e aquáticas pelas quais os ocupantes
uma barganha diferente se tivessem se dado ocidentais se comunicavam com Berlim e
conta de que estavam, na prática, entregan- impediram que os alimentos, a eletricidade,
do Berlim aos russos, sujeitos apenas ao di- o gás e outros artigos necessários fossem
reito de ficar presos dentro dela. fornecidos regularmente aos setores ociden-
Berlim foi o ponto central de uma ten- tais a partir do leste. O direito legal de usar
tativa russa de obter controle da Alemanha, as rotas ininterruptamente era vago, além
que, tendo começado com uma rapidez aus- de irrelevante, dado que era claramente um
piciosa, logo se complicou. Os socialistas se teste de força. Os ocupantes ocidentais, ten-
recusaram a formar um partido único com do examinado e rejeitado a possibilidade de
os comunistas e promoveram, em vez disso, garantir seus direitos enviando um com-
uma coalizão antirrussa que, em eleições boio armado para forçar sua passagem pela
POLÍTICA MUNDIAL | 33

estrada que levava da zona britânica à fron- tamente um mês depois da fundação da Re-
teira da cidade, decidiram, em vez disso, fu- pública Federal, seu rearmamento passou a
rar o cerco russo por via aérea, colocando ser uma questão premente: como resultado
os russos na posição de ter de atirar primei- da erupção da guerra na Coreia em junho
ro. Também impuseram um contrabloqueio de 1950, os norte-americanos se convence-
à zona russa, e os norte-americanos leva- ram e, com mais dificuldades, convenceram
ram parte de sua força de bombardeiros de seus aliados britânicos e franceses, além de
longo alcance para pistas de decolagem na Adenauer (que inicialmente se opôs), de
Inglaterra. Entre julho de 1948 e maio de que a República Federal deveria contribuir
1949, as forças aéreas dos Estados Unidos e ao armamento do Ocidente.
da Grã-Bretanha transportaram mais de 1,5
tonelada de alimentos, combustível e ou-
tras mercadorias para Berlim (a maior car- A OTAN e o império soviético
ga em um dia passou de 12 mil toneladas), até a crise cubana
atendendo assim às necessidades de toda
a população civil nos setores bloqueados, A aliança ocidental criada para travar a
bem como de seus guardiões ocidentais. Guerra Fria começou a existir em 4 de abril
Esse feito duplamente extraordinário – pelo de 1949, durante o cerco de Berlim. Dois
que se fez e por ser feito sem levar a hos- anos antes, essa aliança teria parecido im-
tilidades abertas – derrotou os russos, que possível, em função da força dos partidos
abandonaram o bloqueio em maio, depois comunistas da França e da Itália, mas em
de 318 dias, em troca da promessa de mais 1947 os comunistas foram excluídos do go-
uma conferência sobre a Alemanha, que foi verno desses dois países, e a crença de que
realizada em Paris, mas sem resultados. A eles seriam ingovernáveis sem participação
vitória do Ocidente em Berlim foi seguida comunista se mostrou falsa. A Organização
da transformação da zona ocidental da Ale- do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) era
manha em um Estado soberano e membro uma associação de 12 países que declarou
armado da aliança euro-americana contra que um ataque armado a um deles, na Eu-
a URSS. A República Federal da Alemanha ropa ou na América do Norte, seria consi-
passou a existir em 20 de setembro de 1949, derado como um ataque a todos, e que cada
com sua capital em Bonn e o Dr. Konrad um, em um caso desses, sairia em defesa de
Adenauer como chanceler. Adenauer, con- um aliado atacado, incluindo o uso da força
cordou tacitamente com a protelação da caso considerasse necessário. A área cober-
reunificação da Alemanha ao se unir ao ta pelo tratado era definida pelos territórios
campo ocidental. Um estatuto de ocupa- de qualquer signatário na Europa ou na
ção e uma série de acordos (os acordos de América do Norte, Argélia e ilhas, embar-
Petersburgo) definiram as relações entre cações ou aviões de qualquer um deles no
o novo Estado e as potências ocidentais e Atlântico, a norte do Trópico de Câncer;
impuseram determinadas restrições à sua o tratado também seria posto em marcha
soberania, mas essas disposições detalhadas por um ataque às forças de ocupação de
não tinham importância comparadas ao qualquer signatário na Europa. A Grécia e
fato transcendente de que a maior parte da a Turquia aderiram à aliança em 1952, e a
Alemanha foi tirada do controle conjunto República Federal da Alemanha, em 1955.
de seus conquistadores e vinculada a uma A criação da OTAN foi uma afirmação da
nova aliança ocidental anticomunista. Exa- dissolução da aliança dos tempos de guerra.
34 | PETER CALVOCORESSI

Ela se baseava no temor à agressão russa, A Guerra Fria foi um episódio curto na
potencializado por uma revolta contra a história da Europa, mas, na época, tomou
natureza da dominação dos russos no Leste ares de permanência devido às metáforas
Europeu, a frustração que se transformava de frieza e rigor com que era discutida. Suas
em hostilidade nas questões alemãs, a ex- duas principais características ficaram visí-
posição da Europa Ocidental como resulta- veis em 1946, nos discursos de Churchill em
do de danos de guerra e desmobilização, e o Fulton, Missouri, em fevereiro, na presença
fracasso em internacionalizar o controle da de Truman; e do secretário de Estado desse,
energia atômica. James F. Byrnes, em Stuttgart, em setembro.
Em 1945, a capacidade bélica dos Esta- Esses discursos mostraram que a aliança
dos Unidos tinha sido suprema mesmo sem tripartite dos tempos de guerra estava sen-
armas nucleares, mas, nos anos seguintes, a do substituída por um novo padrão de dois
desmobilização norte-americana criou um contra um e que os Estados Unidos, longe
novo padrão. Embora a supremacia do país de dar as costas à Europa (apesar da redução
estivesse garantida pela bomba nuclear, os das forças norte-americanas no continente,
russos, ao não se desmobilizarem, estabele- de 2,5 milhões de homens a menos de meio
ceram superioridade em termos de capaci- milhão na data do discurso de Fulton), con-
dade mobilizada em terra na Europa. Dessa sideravam a Europa como uma esfera de in-
forma, todas as tentativas futuras de desar- fluência essencial para si. Embora Truman
mar foram atrapalhadas pela impossibilida- tivesse de aceitar ser praticamente excluído
de de se compararem item por item; a defe- da Europa Central e do Leste, ele garantiu,
sa da Europa Ocidental passou a depender por meio da Doutrina Truman, de março de
do poder e da estratégia nuclear, e a defesa 1947, uma base de operações nos Bálcãs e
coletiva da região acabou provocando diver- no Oriente Médio na época em que se pre-
gências sobre o controle de armas nucleares parava para consolidar o anticomunismo e
entre os aliados. Enquanto, em 1945, havia as posições antirrussas na Europa Ociden-
alguma apreensão e, no lado russo, algumas tal, combinando ajuda econômica e aliança
esperanças de recuo norte-americano na militar – concretizadas no Plano Marshall e
Europa, quatro anos mais tarde, os Estados no Tratado do Atlântico Norte. Esses foram
Unidos estavam formalmente comprometi- os primórdios da política de contenção, que
dos com um papel dominante nas questões visava a conter o poder russo e mudar a sua
europeias pelos 20 anos seguintes. Dando- disposição, mas pouco mais de um ano após
-se conta muito tarde do que tinha causado, a assinatura do Tratado do Atlântico Nor-
Stalin propôs em 1948, a retirada de todas as te, essa política essencialmente europeia foi
tropas estrangeiras da Alemanha, mas essa complicada por um evento distante, a defla-
oferta foi considerada apenas um dispositivo gração da guerra na Coreia, que se tornou
para fazer com que os norte-americanos to- um dreno para forças disponíveis à conten-
massem o longo caminho do qual não retor- ção na Europa e fez com que essa contenção
nariam, enquanto os russos permaneceriam deixasse de ser uma política europeia e se
a uma distância de ataque da Alemanha. tornasse mais global.
Enquanto a Alemanha estivesse em dis- A Guerra da Coreia também exasperou
cussão, os Estados Unidos se manteriam ali, a atmosfera. Nos Estados Unidos, foi trata-
daí o lugar que a Alemanha Ocidental aca- da como evidência para fortalecer o mito de
bou ocupando na OTAN, junto com seus uma grande conspiração comunista visan-
inimigos recentes. do conquistar o mundo. O senador Joseph
POLÍTICA MUNDIAL | 35

McCarthy, alegando que essa conspiração se com raízes no Leste Europeu, tem sido ra-
estendia inclusive para dentro dos Estados pidamente esquecida depois da vitória. Em
Unidos e outros centros de influência, rea- lugar disso, Dulles deu continuidade à po-
lizou uma campanha repulsiva e maliciosa lítica de contenção, preenchendo a lacuna
na qual ele e seus comparsas intimidaram entre a OTAN e a posição norte-americana
importantes segmentos do serviço público, no Japão ao estimular a Organização do
denunciando como comunista (ou homos- Tratado do Sudeste Asiático, SEATO (South
sexual) qualquer um que não concordasse East Asia Treaty Organization), e o Pacto de
com suas visões extremas de como os norte- Bagdá. Ele também tentou escapar das frus-
-americanos leais deveriam pensar. Vários trações da contenção, que ele havia criticado
cidadãos foram levados ao exílio, e alguns por ser uma série de respostas às iniciativas
ao suicídio, e a formulação e a condução das russas, desenvolvendo uma estratégia de re-
políticas externas dos Estados Unidos foram taliação massiva a ser posta em prática em
corrompidas e desmoralizadas antes que o determinados lugares e momentos, segundo
macarthismo fosse suavizado por alguns escolha dos Estados Unidos. Mas quando,
indivíduos corajosos, por seus próprios ex- na Indochina em 1954, tiveram de optar
cessos e pelo bom senso residual do povo entre a retaliação massiva e deixar que um
norte-americano, sem muita ajuda de seus aliado fosse derrotado, os Estados Unidos
passivos líderes eleitos. Essa pressão atmos- escolheram a segunda opção, e assim reco-
férica afetou a campanha para a eleição pre- nheceram que a retaliação massiva continha
sidencial de 1952, na qual os republicanos, um grande elemento de blefe.
em sua tentativa de retornar a presidência Na Europa, tendo conseguido anexar a
pela primeira vez desde 1932, adotaram o Alemanha à OTAN, os norte-americanos
general Dwight D. Eisenhower como can- aceitaram, como corolário, a impossibili-
didato. O principal porta-voz republicano dade de desalojar os russos da Alemanha
sobre questões externas era John Foster Oriental, que tinha se transformado em
Dulles, que em pouco tempo viria a ser se- um satélite comunista, anexado ao Império
cretário de Estado. Russo na Europa. Depois de passar por eta-
Independentemente do macarthismo, pas semelhantes – um conselho econômico,
havia bases para se questionar as políticas um parlamento, uma constituição, a eleição
externas dos Democratas. Os Estados Uni- de um presidente (Wilhelm Pieck) e de um
dos estavam envolvidos em uma guerra pe- primeiro-ministro (Otto Grotewohl) – a
nosa; a URSS não estava; a contenção pare- zona oriental se tornou, em março de 1954*,
cia significar paz para os russos que, embora um Estado separado sob o nome de Repú-
impedidos de se expandir, continuavam ir- blica Democrática Alemã. A integração da
restritos em seu tratamento de seus satéli- Alemanha Ocidental ao campo ocidental
tes, cujos destinos causavam desconforto à envolveu o fim da ocupação e a negociação
consciência norte-americana.
de acordos que aliariam a República Fede-
Em seus discursos de campanha, Dulles
ral a outros Estados ocidentais e dariam a
dava a impressão de que os republicanos sai-
riam em auxílio aos povos escravizados da
Leste Europeu e de alguma forma os liberta- * N. de R.T.: A criação oficial da RDA ocorreu em 7 de outu-
riam da dominação russa. Essa foi a contri- bro de 1949 (semanas após a criação da RFA), com um parla-
mento provisório que tornou afetiva a constituição. Em março
buição de Dulles à eleição de um presidente de 1954, a URSS reconheceu a soberania da RDA, embora já
republicano, dirigida aos norte-americanos tivesse relações diplomáticas desde sua fundação.
36 | PETER CALVOCORESSI

eles algum controle sobre o rearmamento propôs uma reunião pessoal de chefes de
alemão. As três principais potências ociden- governo, mas o clima da época era hostil:
tais ofereceram o fim de sua ocupação da os norte-americanos (e muitos na Grã-Bre-
República Federal se ela entrasse para uma tanha) estavam impassíveis; os alemães oci-
Comunidade Europeia de Defesa na qual dentais, desconfiados; e o próprio Churchill
forças nacionais estariam sujeitas a controle sofreu um derrame pouco depois. Revoltas
internacional. Em maio de 1952, assinou-se na Alemanha Oriental, em junho, incenti-
uma convenção em Bonn pondo fim à ocu- varam aqueles que preferiam, no Ocidente,
pação e, no ano seguinte, um Tratado Euro- esperar que a URSS se complicasse ainda
peu de Defesa. As eleições de 1953 deram à mais, enquanto lá, a morte de Stalin foi se-
União Democrata-Cristã de Adenauer e à guida por um interlúdio de três anos. Mas
sua equivalente bávara, a União Social-Cris- nem nesses anos, ou uma geração depois
tã, uma vitória de dois terços, e, em 1954, disso, qualquer líder russo fez alguma ten-
a República Federal ratificou o Tratado tativa radical de mudar o sistema que Stalin
Europeu de Defesa. O parlamento francês, tinha herdado de Lênin. Nikita Khruschev
contudo, recusou-se a ratificar um tratado atacou Stalin como indivíduo e ícone, Leo-
que restaurava a força militar alemã sem um nid Brejnev aderiu ao sistema por medo de
compromisso britânico que a contrabalan- algo pior; Yuri Andropov, que estava lúcido,
çasse, e a Grã-Bretanha abriu mão de parte e Konstantin Chernenko, que não estava,
de sua tradicional aversão a associações em aceitaram a ideia de que não era aconselhá-
tempos de paz e promoveu a União da Eu- vel agir diferente. Somente depois de 1989,
ropa Ocidental (Western European Union, Mikhail Gorbachev iniciou reformas e Boris
WEU) criada pelo Tratado de Paris em 1954 Yeltsin liderou uma revolução.
e incluindo a Grã-Bretanha, a França e os A morte de Stalin aconteceu pouco de-
países do Benelux (que estavam associados pois da eleição de Eisenhower à presidência
pelo tratado desde 1948) junto com a Itália e dos Estados Unidos. Eisenhower foi um pre-
a República Federal. O fim da ocupação da sidente que teve mais contato com o mundo
Alemanha Ocidental foi confirmado, e a Re- e suas questões do que seu antecessor ime-
pública Federal entrou para a OTAN. Com diato ou que qualquer de seus sucessores no
a ratificação desses acordos em maio de século XX. Ao concorrer a esse cargo, ele
1955, a República Federal se tornou quase impediu uma vitória do setor isolacionista
um membro com plenos direitos da alian- potencial ou macarthista do Partido Repu-
ça ocidental. Abriu mão da fabricação de blicano e, em parceria com seu secretário
armas nucleares, bacteriológicas e químicas de Estado, John Foster Dulles, ajustou de
e aceitou uma forma de inspeção sobre in- forma sutil, mas decisiva, o estilo nuclear
dústrias. Em troca, recebeu uma promessa mais combativo de Truman. Ele deu con-
reiterada de reunificação, o reconhecimento tinuidade à política de Truman de ajuda a
do governo em Bonn como governo de toda aliados anticomunistas e desenvolveu a po-
a Alemanha e o privilégio de contribuir com lítica de controle de armamentos que, de-
12 divisões para às forças da OTAN. pois de vários anos de tédio, tornou-se um
Em março de 1953, Stalin morreu. importante elemento no desmantelamento
Churchill achou que era uma oportunida- da Guerra Fria. Ele evitou o estilo pessoal
de de interromper a rota de colisão entre as que caracterizou Nixon e Reagan, cada um à
duas alianças. Mantendo suas preferências sua maneira, e era de natureza tão reservada
em termos de diplomacia internacional, ele que foi acusado de indolência, mas pode ser
POLÍTICA MUNDIAL | 37

considerado, em um retrospecto mais longo, tória inicial foi garantida em aliança com
o presidente mais importante dos Estados Beria, mas não durou muito. Malenkov e
Unidos na metade relativamente pacífica do Beria podem ter tido algumas ideias seme-
século XX. lhantes, notadamente ao ajudar as indús-
No ano anterior à morte de Stalin, o Par- trias de bens de consumo à custa das indús-
tido Comunista da União Soviética tinha rea- trias pesadas e de armamentos, mas Beria
lizado seu 19º congresso depois de um atraso era um homem excepcionalmente impopu-
inconstitucional de 13 anos, provavelmente lar e perigoso, pessoalmente e por dever de
pela necessidade dos líderes de pôr ordem ofício, e, para Malenkov, o apoio do chefe
em várias casas. Embora ninguém soubesse de toda a polícia do país era compensado
o quanto a morte de Stalin estava próxima, pela hostilidade das forças armadas, que
a sucessão ocupava um lugar importante na não gostavam do exército privado de Beria
mente de todos. Pela forma como lidou com e das políticas econômicas de Malenkov:
as questões do congresso, Stalin indicou uma Beria foi morto poucos meses depois da
preferência por G. M. Malenkov que, tendo morte de Stalin.
sobrevivido a A. A. Zhdanov, parecia supe- Pouco tempo depois do fim da guerra,
rar seu rival mais sério, N. S. Khruschev. A Stalin, que não se via como um Bonaparte e
morte de Zhdanov, em 1948, foi seguida, em não queria Bonapartes por perto, tinha co-
1949, por um expurgo de seus parceiros; os meçado a colocar o exército e seus líderes de
homens mais velhos vinham voltando há al- volta em uma posição de subordinação ao
guns anos, e os dois mais destacados, Molo- poder civil, mas, na luta pelo poder depois
tov e Mikoyan, tinham perdido seus cargos de sua morte, o exército era inevitavelmen-
ministeriais (embora não seus outros cargos) te um antagonista, e Khruschev, que tinha
em 1949; o chefe de polícia, Lavrenti Beria, amigos militares desde seus dias como co-
também parecia um pouco menos favoreci- missário na frente de Stalingrado, decidiu
do e menos poderoso no princípio dos anos usá-los. Inicialmente, ele não precisou dis-
de 1950, apesar de seu controle sobre uma so. A entrega da posição de Stalin a qualquer
força policial de 1,5 milhão de homens e indivíduo era mais do que qualquer dos
uma milícia de 300 mil. principais líderes estava preparado para to-
Então, em janeiro de 1953, em uma lerar, com exceção do próprio Malenkov e,
onda crescente de antissemitismo, nove talvez, de Beria. O poder foi quase que ime-
médicos, dos quais sete eram judeus, fo- diatamente dividido. Malenkov foi forçado a
ram acusados de cumplicidade na morte de escolher entre ser chefe do governo ou chefe
Zhdanov. A chamada “conspiração dos mé- do partido, e optou pela primeira posição,
dicos”, que foi declarada infundada depois cedendo a segunda a Khruschev; assim, o
da morte de Stalin, combinou antissemitis- antagonismo entre os dois foi instituciona-
mo com um ataque aos inimigos de Zhda- lizado. Dois grupos de cinco se confronta-
nov – e não era segredo que seu principal ram: Malenkov e outros quatro formavam
inimigo era o homem que mais tinha lucra- a camada superior do governo, enquanto
do com sua morte, Malenkov. Assim, quan- Khruschev e outros quatro constituíam o
do Stalin morreu, a posição de Malenkov secretariado do partido. Essa posição durou
era menos promissora do que parecia um até 1955, quando Khruschev derrotou Ma-
ano antes, mas ainda era sólida o suficiente lenkov, em parte ao reviver os rumores da
para garantir sua subida às posições mais cumplicidade dese na morte de Zhdanov e
elevadas no governo e no partido. Essa vi- no expurgo posterior, e ao acusá-lo de ter
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conspirado com Beria para estabelecer um errático, ainda que agradável e extrovertido.
domínio pessoal em vez de coletivo a partir Esse último período incluiu importantes
da morte de Stalin, e, em parte, fabrican- eventos: levantes na Polônia e na Hungria, o
do um pânico de guerra que deu origem à lançamento do primeiro Sputnik, a constru-
aliança entre ele e o exército. Em fevereiro ção do muro de Berlim, disputas insolúveis
de 1955, Khruschev garantiu a remoção de com a China e a tentativa de instalar mísseis
Malenkov e sua substituição à frente do go- nucleares em Cuba.
verno por Bulganin, que estava destinado Nos anos incertos que se seguiram à
a permanecer até que Khruschev achasse morte de Stalin, a política externa russa foi
oportuno reivindicar o cargo para si. Bul- cautelosa. Os problemas da Alemanha e da
ganin foi sucedido no ministério da defesa Áustria foram levados à mesa de conferên-
pelo marechal G. K. Zhukhov. Outras alte- cias, assim como o da Coreia, onde foi as-
rações foram feitas no mais alto nível minis- sinado um armistício em julho de 1953, e o
terial, no qual se parecia passar de veteranos da Indochina. Bulganin e Khruschev fize-
políticos a especialistas técnicos, embora os ram a paz com Tito, entregaram Porkkala,
cortes e as mudanças desses anos refletissem na Finlândia, e Port Arthur, apresentaram
mais provavelmente incertezas e incoerên- novas propostas de desarmamento, visita-
cias no planejamento econômico. ram a Índia, a Birmânia (Mianmar), o Afe-
A proeminência pessoal de Khruschev ganistão (o primeiro país não comunista
durou de 1957 a 1964, mas nunca foi segu- a receber ajuda russa) e a Grã-Bretanha, e
ra como parecia aos que olhavam de fora. voltaram a comparecer, em julho de 1955, a
Ela foi conquistada apesar de erros que não uma reunião em Genebra com o presidente
foram esquecidos, principalmente seu fra- norte-americano e os primeiros-ministros
casso quando foi colocado no comando da britânico e francês. Essa reunião foi uma
agricultura por Stalin. Sua política de ex- demonstração em favor de relaxar a Guerra
plorar as terras virgens no Cazaquistão era Fria e gerou algumas noções eufóricas – um
radical e sólida, mas foi aplicada de forma tratado de não agressão entre a OTAN e o
desastrosa no curto prazo. Pacto de Varsóvia, proposto pela URSS; uma
Seu discernimento e agilidade política zona de inspeções livres proposta por Eden;
lhe possibilitaram sobreviver a esse revés e uma política de céu aberto proposta por
e, alguns anos depois disso, ao desdém e às Eisenhower. Uma conferência secundária
maquinações de seus colegas que, depois de primeiros-ministros voltada a dar mais
de forçar Malenkov ao ostracismo, des- objetividade à atmosfera de Genebra foi um
cobriram que Khruschev era igualmente fracasso, essa primeira tentativa de degelar
ávido pela autoridade pessoal e impaciente a Guerra Fria foi anulada pelas revoltas po-
com o sistema de comitês. Todavia, quando lonesa e húngara de 1956. Mas os líderes se
os estadistas mais antigos no partido tenta- reuniram e deram o exemplo de boa condu-
ram removê-lo em 1957, ele foi mais esper- ta e busca de tolerância. No final da década
to e fortaleceu sua posição até perdê-la por de 1950, as forças armadas russas foram re-
teimosia. duzidas de 5,8 para 3,6 milhões de soldados.
Nas questões externas, o mandato de O outro corte de 1,2 milhão, anunciado em
Khruschev consistiu em um curto e maleá- 1960, foi adiado, supostamente como resul-
vel prelúdio, quando ele estava manobrando tado de pressões militares que se tornaram
contra rivais domésticos, e em um período mais potentes depois do fracasso da confe-
mais longo, que mostrou seu temperamento rência em Paris, em 1960.
POLÍTICA MUNDIAL | 39

Em relação à Alemanha, os sucessores Áustria ocupada e aos direitos concomi-


de Stalin cogitavam esquemas de reunifi- tantes de acesso através de territórios ad-
cação, evacuação e neutralização, mas sa- jacentes.). Mas Bulganin e Khruschev não
bendo que os norte-americanos estavam garantiram um esquema comparável para
comprometidos com duas proposições a Alemanha, ainda que tenham reconhe-
inaceitáveis à URSS: reunificação por meio cido a República Federal e intercambiado
de eleições livres e não manter as duas Ale- embaixadores com ela. A tentativa de parar
manhas juntas (o que os russos queriam e o rearmamento da República Federal como
implicava tratar a República Federal e a Re- parte da aliança antirrussa tinha fracas-
pública Democrática, muito menor e cons- sado. No mesmo ano, os russos criaram a
tituída de forma antidemocrática, como contrapartida à OTAN no Tratado de Var-
iguais), e liberdade para o Estado reunifica- sóvia, e, em 1956, A República Democráti-
do estabelecer alianças (ou seja, entrar para ca Alemã passou a fazer parte dele.
a OTAN). Em uma conferência em Berlim Ainda naquele ano, o congresso do
em 1954, Eden e Molotov apresentaram Partido Comunista da União Soviética,
planos que demonstravam a impossibili- reunido em sua 20ª sessão, ficou pasmo ao
dade de se chegar a um acordo. O primei- ouvir, inicialmente de Mikoyan e depois de
ro propôs a reunificação em cinco etapas: Khruschev, amplas e veementes denúncias
eleições livres, uma assembleia constituin- sobre Stalin e o stalinismo, remontando ao
te, uma constituição, um governo exclusi- que tinha dito a mulher de Lênin mais de
vamente alemão e um tratado de paz. 30 anos antes e ao assassinato de Kirov em
Molotov parecia pronto a concordar 1934. Esse repúdio ao passado, que não per-
com eleições em determinadas condições, maneceu secreto por muito tempo e incluiu
mas também queria um tratado europeu de uma aceitação específica da revisão das re-
segurança de 50 anos (do qual, mais tarde lações da URSS com seus satélites vizinhos
se explicou, os Estados Unidos também fa- contribuiu para os levantes na Polônia e na
riam parte) com a proibição de participar Hungria. Em Poznan, na Polônia, houve
de outras alianças, ou seja, abandonava greves por melhores salários e um conflito
o método russo anterior de reunificação dentro do Partido Comunista Polonês en-
para tentar garantir a dissolução da OTAN. tre a facção de Boleslaw Bierut, que morreu
Quando esse plano fracassou, a URSS naquele mesmo ano, e a facção mais nacio-
chegou a sugerir sua entrada para a orga- nalista liderada por Wladyslaw Gomulka,
nização. Em 1955, Bulganin e Khruschev recentemente libertado da prisão onde es-
concordaram com a evacuação e a neutra- tivera desde 1949. Khruschev, Bulganin e
lização da Áustria e, segundo o Tratado de outros líderes russos foram a Varsóvia de
Estado daquele ano, a Áustria recuperou uma hora para outra e interferiram dura-
sua soberania integral dentro de suas fron- mente nas discussões do comitê central do
teiras de janeiro de 1938, sujeita apenas a partido polonês. Porém, não conseguiram
duas proibições: nada de Anschluss com impedir a vitória da facção de Gomulka, que
a Alemanha nem com qualquer lado da foi nomeado primeiro-secretário, e os rus-
Guerra Fria (como, pelo Tratado de Var- sos, dando-se conta de que tinham de optar
sóvia do mesmo ano, a URSS adquiriu o entre permitir que Gomulka assumisse o
direito de estacionar tropas na Hungria e governo e usar a força para impedi-lo, es-
na Romênia, nada perdeu estrategicamente colheram a primeira opção e aceitaram mu-
ao renunciar a seus direitos pós-guerra na danças que incluíam a demissão do primei-
40 | PETER CALVOCORESSI

ro-ministro, o marechal russo Konstantyn o serviço, pôs em desgraça os veteranos Vo-


Rokossovsky. Na Hungria, a natureza dos roshilov e Kaganovich e praticamente exi-
problemas e o resultado foram diferentes. lou até mesmo Molotov, o mais velho dos
Em julho, os governantes estabelecidos, Ma- bolcheviques e o homem que tinha sido
tyas Rakosi e Erno Gerö, foram a Moscou segundo na época de Stalin entre os civis
exigir reformas para prevenir os problemas. que tinham comandado a guerra contra
Em outubro, manifestantes exigiram melho- os alemães. Em outubro, Zhukhov foi re-
res salários e liberdade. A política húngara e tirado e substituído pelo marechal Rodion
as tropas russas não foram capazes de impe- Malinovsky. Nesse ano, Khruschev triunfou
dir que essas manifestações se transformas- sobre seus adversários e sobre a doutrina
sem em uma revolução anticomunista. Imre da liderança coletiva. Em março de 1958,
Nagy, que tinha sido primeiro-ministro des- tornou-se primeiro-ministro e primei-
de a morte de Stalin até 1955, foi reempo- ro-secretário, e permaneceu predominante
sado. Mikoyan e Suslov chegaram de Mos- até sua queda inesperada, em 1964. Ele co-
cou para dirigir as operações e decidiram lheu os benefícios, em questões externas, da
apoiar Janos Kádár, o primeiro-secretário dramática aparição do primeiro míssil ba-
do Partido Comunista, que tinha uma ima- lístico intercontinental, em 1957, e do pri-
gem razoavelmente boa e representava um meiro satélite da Terra (Sputnik). De uma
meio-termo entre o grupo de Rakosi/Gerö plataforma fortificada com esses elementos
e Nagy. Mas a revolução ganhou força e, de- e observando o alarme nos Estados Unidos
pois de retirar suas tropas de Budapeste por diante da ideia de que a vantagem tecnoló-
razões táticas, os russos recorreram à ação gica norte-americana tinha sido eliminada,
militar total. Khruschev adotou a coexistência pacífica
Diante desse rumo tomado pela situa- como descrição geral de suas intenções. A
ção, Kádár ficou do lado dos russos, enquan- coexistência pacífica foi um slogan políti-
to Nagy nomeou um novo governo de coali- co benevolente e tranquilizador (mas não
zão, prometeu eleições livres, propôs retirar novo) de importância vaga e variabilidade
a Hungria do Pacto de Varsóvia e apelou a útil. Com ele, Khruschev reverteu a crença
outros países para que lhe dessem ajuda. de que o comunismo, enquanto permane-
Com as potências ocidentais enredadas em cia inabalavelmente hostil ao capitalismo,
Suez, e a URSS vetando a ação da ONU, a prevaleceria sobre este sem guerras. (A re-
revolução foi extinta na primeira semana de afirmação dessa doutrina pretendia, entre
novembro. A realidade do poder russo foi outras coisas, conquistar a simpatia do Ter-
sublinhada pelo fato de que o governo dos ceiro Mundo emergente.)
Estados Unidos não apenas deixou de agir, Os problemas de Khruschev na Eu-
mas nunca pareceu que poderia fazê-lo. ropa Central, em 1956, e em seu país, em
Esses eventos representaram um revés 1957, foram seguidos de desdobramentos
para Khruschev e para a política de apro- fundamentais na Alemanha e nas relações
ximação entre Ocidente e Oriente, mas sino-soviéticas. Durante o ano de 1958, as
ambos se recuperaram. Em junho de 1957, interações entre as duas Alemanhas tinham
Khruschev foi atacado por Malenkov no turvado a atmosfera, e os poloneses estavam
presidium do Partido Comunista e derrota- exigindo que a URSS encontrasse uma for-
do em uma votação, mas, resistindo, convo- ma de impedir que a República Federal se
cou uma reunião do comitê central e expul- tornasse uma potência nuclear e causasse
sou Malenkov do presidium. Para completar problemas na Europa Central, associada à
POLÍTICA MUNDIAL | 41

OTAN. Khruschev estava ansioso para ga- fossem tornadas públicas por qualquer dos
rantir um reconhecimento internacional lados. O presidente dos Estados Unidos ou
mais amplo para a República Democrática não sabia dos voos ou não tinha pensado
Alemã, com vistas a estabilizar o mapa da em cancelá-los nas semanas anteriores à
Europa e suas próprias fronteiras e facilitar conferência, e o governo russo ou não ti-
a redução dos onerosos compromissos mi- nha pensado em dizer às suas defesas que
litares da URSS no exterior. Ele escolheu deixassem de tentar derrubá-los nesse pe-
começar com ameaças e, quando elas não ríodo delicado, ou – uma visão alternativa
funcionaram, passou a agrados. Ameaçou plausível – tinham ordenado que o fizes-
transferir a autoridade da URSS em Berlim sem. Declarações falsas em Washington
para a República Democrática a menos que sobre a missão do avião só aumentaram a
se encontrasse uma solução para os pro- derrota norte-americana, porque foram
blemas alemães dentro de seis meses, mas rapidamente desmascaradas pelos russos,
quando os ocupantes ocidentais se conten- que tinham capturado o piloto vivo com
taram com questionar o direito da URSS a seu kit de espionagem.
agir como propunha, ele baixou o tom de Depois do consequente fracasso da
seu ultimato e deixou que ele morresse. conferência de Paris, Khruschev repetiu, em
O fracasso dessa aposta, associado à Varsóvia e em Moscou, sua crença na polí-
crescente convicção de Khruschev de que tica de aproximação num futuro próximo,
os Estados Unidos não pretendiam atacar mas por ora os avanços foram paralisados
a URSS e à apresentação ao 21º congresso pelo U-2, como acontecera em 1956 pela
do Partido Comunista, em janeiro de 1959, revolução húngara, e é possível que Khrus-
do plano econômico septenal, que depen- chev tivesse deliberadamente maquinado
dia de realocar verbas de armamentos para essa interrupção em resposta a pressões de
a produção, levou à segunda tentativa séria parte dos militares e dos lobbies pró-China.
de degelar a Guerra Fria. Depois de uma Sua aproximação com os Estados Unidos
visita do vice-presidente Richard Nixon afrontou os chineses, que não compar-
a Moscou, Khruschev visitou os Estados tilhavam de sua visão sobre as intenções
Unidos, manteve encontros privados com agressivas dos norte-americanos, não gos-
Eisenhower em Camp David, apresentou à tavam das confabulações russo-americanas
Assembleia Geral da ONU um plano para e se recusaram a ser contidos quando ele
o desarmamento geral e completo em qua- foi para Pequim em sua volta dos Estados
tro anos, e anunciou o segundo maior corte Unidos. Essas visões encontraram algum
no pessoal militar russo. A peça central da eco no Kremlin. Além disso, as políticas de
détente de 1959-1960 deveria ter uma se- defesa de Khruschev, de basear-se em mís-
gunda conferência de cúpula em maio de seis nucleares e cortar forças não nucleares,
1960, mas foi destruída pela derrubada de eram ousadas demais para alguns de seus
um avião de reconhecimento norte-ameri- colegas. Embora se tenha estabelecido um
cano sobre território russo em 1º de maio. Comando de Foguetes sob a liderança do
Os voos de reconhecimento, feitos por marechal Nedelin (depois sucedido pelo
aviões U-2 a grandes altitudes entre bases marechal Moskalenko), o segundo corte foi
na Noruega e no Paquistão, forneciam aos cancelado e, no 22º congresso, em outubro
Estados Unidos informações valiosas sem de 1961, Malinovsky declarou que não es-
qualquer risco político, desde que o avião tava de acordo com Khruschev. (Esse con-
não fosse interceptado e suas missões não flito voltou em 1963-1964, quando foram
42 | PETER CALVOCORESSI

propostos cortes mais uma vez e, de novo, setores oriental e ocidental de Berlim, para
sofreram oposição. Khruschev foi forçado que o segundo se tornasse parte da Repúbli-
a prometer que os cortes seriam razoáveis, ca Democrática Alemã e o primeiro ficasse
mas essa persistência provavelmente foi a desconfortável demais para a contínua ocu-
causa de sua queda.) Por fim, Khruschev ti- pação ocidental. Na noite de 12 para 13 de
nha descoberto que sua tentativa de garantir agosto, o muro foi construído e o fluxo de
reconhecimento à República Democrática refugiados praticamente parou. Kennedy
Alemã ao levantar a questão de Berlim po- tinha dito a Khruschev, algumas semanas
deria ser usada contra ele pelos norte-ame- antes, em Viena, que os Estados Unidos
ricanos, que continuaram a condicionar um permaneciam comprometidos com o uso
acordo sobre Berlim a uma retirada russa de todas as forças necessárias para defender
geral da Europa, para a qual nem o próprio o status e a liberdade de Berlim. A constru-
Khruschev nem o grupo dominante como ção do muro foi um ato de provocação que
um todo estava preparado. os Estados Unidos aceitaram e que pode
Depois das experiências sinistras dos ter influenciado a avaliação de Khruschev
anos de 1950, a década seguinte começou sobre até onde seria seguro provocá-los: no
com sinais contraditórios. A divergência ano seguinte, em Cuba, ele se aventuraria
russo-chinesa tinha se tornado domínio muito além dos alemães orientais.
público e foi considerada um incentivo aos Kennedy herdou de seu antecessor
acordos russo-americanos. Em Washing- um problema cubano que inicialmente foi
ton, a Era Eisenhower foi sucedida pela um capítulo das relações entre os Estados
curta presidência de John F. Kennedy, cuja Unidos e a América Latina. Kennedy esta-
juventude e cujo intelecto pareciam prome- va mais irritado com Fidel Castro do que
ter que os anos de 1960 seriam diferentes Eisenhower, mais sensato, tinha estado e,
e menos sombrios do que os de 1950. Foi em abril de 1961, ajudou em uma tentativa
assinado um cessar-fogo no Laos, mas, em de refugiados de invadir Cuba para derru-
um encontro com Khruschev em Viena, bar Castro, que fracassou total e imediata-
Kennedy não conseguiu muita coisa e pode mente. Em algum momento depois disso,
até ter deixado Khruschev com a impres- Khruschev, que já estava dando ajuda fi-
são de que os presságios eram propícios nanceira e diplomática a Fidel, decidiu-se
para um ataque antiamericano. De qual- por uma jogada audaciosa. Em lugar de
quer forma, Khruschev deu permissão para simplesmente ajudá-lo no poder, ele deci-
uma nova tentativa em relação a Berlim. O diu converter Cuba em uma base russa que
governo da República Democrática Alemã ameaçava diretamente os Estados Unidos
estava ameaçado de colapso. Seus cidadãos com mísseis nucleares. Mísseis terra-ar fo-
estavam fugindo ao ritmo de mil por dia, ram despachados no verão de 1962, segui-
o que representava uma ruína em termos dos de caças MiG 21, 28 bombardeiros nu-
econômicos e políticos. Seu chefe, Walter cleares a jato e mísseis terra-terra (ou seja,
Ulbricht, teve que agir com urgência para ofensivos) dos quais 42 dos 64 planejados
sustentar seu regime, enquanto Khruschev chegaram no início de outubro. Esse con-
provavelmente foi convencido de que, se junto incluía mísseis Frog de curto alcance,
não o apoiasse, a crise na República Demo- projetados para proteger os soviéticos SS 4 e
crática Alemã levaria a uma grande guerra 5 contra ataques ou invasões e com coman-
na Alemanha. Assim, deu seu consentimen- dantes soviéticos autorizados a dispará-los
to para a construção de um muro entre os por iniciativa própria.
POLÍTICA MUNDIAL | 43

Os norte-americanos tomaram conhe- ção. Em mais uma mensagem de 26 de ou-


cimento desse incremento, mas só sou- tubro, Khruschev sinalizou um recuo, mas
beram dos locais e dos mísseis em 14 de acompanhado de repetidas reiterações de
outubro, quando o reconhecimento aéreo que a operação russa não incluíra armas
mostrou inequivocamente uma platafor- ofensivas (e estava terminada) e que seu
ma de lançamento e pelo menos um mís- objetivo era impedir que os Estados Unidos
sil. A essas alturas, Kennedy tinha alertado invadissem Cuba. Essa negociação foi en-
publicamente a URSS contra a instalação durecida por mais uma mensagem nos dias
de capacidade ofensiva russa em Cuba, e seguintes, na qual Khruschev pediu uma
Khruschev afirmou abertamente que isso troca na forma da remoção dos mísseis
não estava sendo feito. Depois daquela data, norte-americanos da Turquia, cuja utilida-
Kennedy sabia que as garantias de Khrus- de tinha sido questionada até mesmo por
chev eram falsas e sofria pressões conside- Eisenhower, que os instalou. Nesse dilema,
ráveis dos chefes do Estado-Maior das for- Kennedy escolheu responder à mensagem
ças armadas para realizar ataques aéreos e do dia 26, ignorando a do dia 27, enquanto,
invadir Cuba. O próprio presidente e seus em conversações com o embaixador sovié-
principais assessores civis, especialmente o tico em Washington, Robert Kennedy pro-
secretário de defesa Robert McNamara e o duziu um acordo informal para retirar os
procurador-geral Robert Kennedy, recua- mísseis norte-americanos da Turquia. Com
ram desse passo e adotaram, em vez disso, o isso, Khruschev concordou em enviar todos
dispositivo de proclamar um embargo: den- os mísseis russos de volta para a URSS. Eles
tro de 1.200 km de Cuba, os navios que vies- foram removidos no final do ano, e os mís-
sem em direção ao ocidente poderiam ser seis norte-americanos, retirados da Turquia
parados e revistados. Ele explicou essa es- quatro meses depois.
tratégia pela televisão ao povo dos Estados Durante essas negociações, o secretá-
Unidos e à aliados e emissários especiais. rio-geral da ONU, U Thant, cumpriu um
O embaixador na ONU, Adlai Stevenson, papel tão crucial quanto discreto. A questão
mostrou ao Conselho de Segurança as pro- fundamental era se os barcos soviéticos que
vas fotográficas da ameaça que a desencade- se aproximassem de Cuba parariam antes
ara. Com a proclamação do embargo em 22 de chegar ao ponto em que o presidente
de outubro e sua implementação dois dias norte-americano tinha se comprometido
depois, chegou-se a um ponto crítico entre publicamente a forçá-los a fazê-lo. U Thant
o confronto e o entendimento. Em 24 de foi o primeiro a pedir que Khruschev or-
outubro, Khruschev enviou uma mensagem denasse que seus navios não cruzassem o
ambiguamente apaziguadora que sugeria ponto de interceptação norte-americano,
que ele estava pensando melhor no assun- ao que Khruschev prontamente concor-
to. Os norte-americanos interceptaram um dou. Khruschev também concordou, em
barco inofensivo com bandeira panamenha resposta a U Thant, com a remoção dos
e lhe permitiram seguir e – por sugestão mísseis e bombardeiros russos sob supervi-
do embaixador britânico em Washington, são da ONU. U Thant voou para Havana,
Lorde Harlech – Kennedy reduziu os 1.200 onde encontrou Fidel Castro muito menos
para 800 km. Os Estados Unidos pareciam tranquilo, em parte porque temia uma inva-
ter conseguido interromper qualquer refor- são norte-americana, mas também porque
ço dos armamentos russos em Cuba, mas Khruschev tinha omitido dele o que acerta-
não necessariamente garantido sua remo- ra com U Thant.
44|

EUA OCEANO
AT L Â N T I C O
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PETER CALVOCORESSI

Havana (capital)
Matanzas

Cienfuegos
CUBA
REPÚBLICA
Camaguey DOMINICANA

Gantánamo

MÉXICO HAITI

MAR DO CARIBE

JAMAICA

Kingston

0 250 500 km

0 150 300 milhas

Figura 1.4 Cuba e sua relação com os Estados Unidos.


POLÍTICA MUNDIAL | 45

Fidel Castro já tinha anunciado que iria coalhada de forma marginal por aventuras
fazer uma transmissão naquele dia e que periféricas (Etiópia, Afeganistão) e mantida
não poderia ser convencido a não fazê-la pela corrida armamentista. Do lado norte-
por mais de um dia, mas, em resposta aos -americano, ela também estava imbuída de
apelos de U Thant, baixou o tom de seu uma nova certeza. A bomba nuclear não era
discurso, principalmente em uma conde- a única invenção tecnológica de primeira
nação inflamatória de Moscou por aceitar importância.
sem consultá-lo a presença em Cuba de uma A partir dos anos de 1950, a inteligência
missão de supervisão da ONU. Mais tarde, foi transformada por acontecimentos sur-
U Thant elogiou a diplomacia e a qualidade preendentes na vigilância aérea, inicialmente
de estadistas de Kennedy e Khruschev, mas com aviões e depois com satélites no espaço,
a dele não foi menor. Estrategicamente, a que acabaram com a ignorância, acalmaram a
crise terminou com uma vitória da sensatez paranoia e armaram os Estados Unidos com
e da gestão prudente. Em termos políticos, conhecimento factual, bem como força bruta.
foi uma vitória dos Estados Unidos: os bar-
cos e mísseis russos voltaram. Por razões
domésticas, o governo norte-americano A corrida armamentista
tinha aumentado a ameaça nuclear russa a
ponto de apresentar a URSS como líder na Em 1946, os Estados Unidos apresentaram
corrida armamentista nuclear, uma ava- o Plano Baruch para uma Autoridade de
liação alarmante que não era verdadeira e Desenvolvimento Atômico Internacional
nunca foi. O recuo de Khruschev possibili- que teria controle e propriedade de ativi-
tou a Kennedy e seus sucessores se livrarem dades nucleares com fins bélicos e direito
dessa pretensão. de inspecionar todas as outras. Depois do
O conflito relacionado a Cuba, assim início do controle internacional eficaz, os
como o de Berlim, 16 anos antes, fez com Estados Unidos parariam de fabricar ar-
que as superpotências se encarassem e, mais mas e destruiriam seus estoques existentes,
uma vez, não foi disparado um tiro. A tenta- transferindo-os para um orgão internacio-
tiva de Khruschev de atingir uma igualdade nal. Mas não poderiam destruir seu conhe-
em relação aos Estados Unidos foi dupla- cimento tecnológico avançado e, portanto,
mente insana. Primeiramente, porque os Es- manteriam uma enorme vantagem sobre a
tados Unidos estavam dispostos a ir ao ex- URSS que, aceitando o plano norte-ameri-
tremo para impedir que as armas nucleares cano, inibiria seus próprios avanços na físi-
fossem instaladas em Cuba e, em segundo ca nuclear. A. A. Gromyko propôs, em lugar
lugar, porque a URSS já estava bem avança- disso, um tratado banindo o uso de armas
da em termos de submarinos e outras armas nucleares, exigindo a destruição imediata
que ameaçariam as cidades norte-ameri- dos estoques existentes (que eram exclusi-
canas sem estarem situados em Cuba nem vamente norte-americanos) e a criação de
em outro lugar no continente americano. uma comissão internacional de controle que
Khruschev foi deposto pacificamente por seria subordinada ao Conselho de Seguran-
seus colegas. Os Estados Unidos se envol- ça e, portanto, ao veto; a inspeção estaria
veram profundamente no Vietnã depois do limitada a plantas oferecidas para inspeção
incidente do Golfo de Tonkin, em agosto. A pelo país em que estivessem localizadas.
partir de meados dos anos de 1960, a Guer- Os Estados Unidos insistiam em que
ra Fria assumiu uma postura estática, cha- não poderia haver destruição de estoques
46 | PETER CALVOCORESSI

até que se estabelecesse um mecanismo in- meios para lançá-las e, em 1961, ambos en-
ternacional e não estavam satisfeitos com viaram um homem ao espaço – sendo que
o alcance muito limitado da inspeção pro- o russo Yuri Gagarin levou seis meses de
posta por Gromyko. vantagem sobre o norte-americano John
A URSS aceitava o princípio do controle Glenn. Os estoques norte-americanos
internacional, mas rejeitava a propriedade sempre foram muito maiores do que os
internacional. O país concordava em que russos, e a superioridade dos Estados Uni-
um órgão internacional poderia proceder, dos foi aumentada no início dos anos de
em algumas questões, por votação majo- 1960, quando mísseis Polaris e Minuteman
ritária e sem veto, mas insistiam que qual- entraram em operação. Os temores infun-
quer ação proposta para aplicação dessas dados por parte dos norte-americanos de
regras deveria estar sujeita a veto. Segundo que a URSS assumisse a liderança em ter-
a visão russa, uma convenção internacio- mos de mísseis fizeram com que os Esta-
nal deveria ser reforçada por leis nacionais dos Unidos ampliassem o que já era uma
em cada um dos países que assinassem o liderança em seu favor.
tratado, mas não por qualquer transferên- O Plano Baruch foi abandonado tacita-
cia de poderes soberanos a um organismo mente. A URSS continuou a se opor a qual-
internacional com poderes para realizar quer coisa que pudesse ser vista como inter-
inspeções e observar se a convenção estava venção internacional em seus assuntos. Os
sendo cumprida. A inspeção não foi descar- Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a França
tada totalmente pela URSS, mas deveria se propuseram, em 1952, limites quantitativos
limitar à inspeção de estabelecimentos nu- para o pessoal militar de todos os países e,
cleares indicados, excluindo qualquer busca dois anos mais tarde, Grã-Bretanha e França
por atividades clandestinas. Essas atitudes apresentaram um novo plano gradual para
refletiam as realidades estratégicas do mo- reconciliar as prioridades diferenciadas de
mento. O mesmo se pode dizer da polêmica Estados Unidos e Rússia e um processo de
contemporânea sobre a redução das armas desarmamento passo a passo. A URSS con-
não nucleares, os Estados Unidos desejando trapôs um programa que começava com
vincular o desarmamento desse tipo a um uma redução nas forças convencionais e de-
acordo sobre armas nucleares, enquanto a pois nos estoques nucleares, e avançava para
URSS exigia uma redução proporcional de eliminação de bases em solo estrangeiro,
forças (de um terço) que alteraria o nível de corte na produção de armas nucleares e uma
armamentos sem perturbar as forças relati- conferência sobre um tratado de proibição
vas dos países nesse tipo de armamento. de armas nucleares. A URSS também acei-
Em 1949, o ano da conclusão do Tra- tava tetos quantitativos para quantidades de
tado do Atlântico Norte, a URSS explodiu pessoal, constrangendo os Estados Unidos,
sua primeira arma nuclear e, no ano se- cujos compromissos mundiais exigiam for-
guinte, abandonou a comissão de desarma- ças maiores do que as previstas.
mento da ONU (criada em 1948 pela fusão Em troca, os Estados Unidos propuse-
dos Comitês de Armamentos Convencio- ram tetos mais elevados (que, mesmo assim,
nais e Energia Atômica). Em 1952-1953, os teriam exigido alguma redução nas forças
Estados Unidos e a URSS explodiram suas norte-americanas) e uma licença total para
primeiras bombas termonucleares e de hi- inspeção aérea, em que cada lado manteria
drogênio com espaços de nove meses entre o outro em permanente observação a partir
si. Ambos rapidamente desenvolveram os de aeronaves ou satélites em órbita da Terra,
POLÍTICA MUNDIAL | 47

mas continuaram pressionando por um or- e 1957, de uma zona de limitação e inspe-
ganismo de controle internacional – mesmo ção, foram rejeitadas nas mesmas bases. Pla-
que sujeito a veto – e rejeitaram a ideia de nos semelhantes foram apresentados pelo
uma proibição do uso de armas nucleares e líder da oposição no Parlamento Britânico,
destruição dos estoques existentes. Segundo Hugh Gaitskell, que propôs uma redução
a visão norte-americana, havia passado o gradual de forças nas duas Alemanhas, na
momento de proibir armas nucleares. A ten- Polônia, na Tchecoslováquia e na Hungria,
tativa iniciada pelo Plano Baruch, de isolar a e uma proibição de armas nucleares na mes-
ciência da guerra dos mais recentes avanços ma zona; as duas Alemanhas seriam reunifi-
na física, foi abandonada. cadas, a República Federal seria retirada da
O fingimento de que esses planos de de- OTAN, e os três Estados do leste, da alian-
sarmamento estavam cumprindo qualquer ça militar de Varsóvia. Por fim, em 1957, o
finalidade prática desgastou-se e foram bus- primeiro-ministro polonês Adam Rapacki,
cados paliativos em esquemas de desengaja- com apoio russo, propôs na Assembleia Ge-
mento, desmilitarização e outras formas de ral da ONU uma proibição da fabricação
controle de armas. O “desengajamento”, ou e presença de armas nucleares nas Alema-
seja, distanciar máquinas de guerra opostas nhas. Ele prometeu que a Polônia seguiria o
por meio de um recuo mútuo de posições mesmo caminho e o governo tchecoslovaco
avançadas, era atrativo por uma série de ra- também prometeu fazê-lo. O plano Rapacki
zões: poderia minimizar o risco de conflitos só tratava de armas nucleares em uma de-
não premeditados e poderia se revelar um terminada área e não atacava abertamente
experimento bem-sucedido em desarma- as questões políticas em torno do tema: a
mento local que pudesse ser repetido em reunificação da Alemanha, a liberdade para
maior escala e reduzir tensões políticas no que o país participasse de alianças, a pre-
centro da Europa, levando a uma solução do sença de forças norte-americanas e russas
problema alemão. Em 1955, Anthony Eden consideráveis nos países da Europa Central,
propôs limitações nas forças na Alemanha o equilíbrio de poder dos Estados Unidos e
e em Estados vizinhos (não mencionados), da Rússia na Europa, que seria alterado pela
junto com um sistema de inspeção e veri- remoção das forças nucleares dos primeiros
ficação controlado por um Estado alemão sem uma retirada correspondente das forças
reunificado e seus quatro ocupantes anterio- não nucleares russas.
res. Eden também propôs um experimento O plano foi rejeitado pelos Estados Uni-
europeu de desmilitarização, começando dos em 1958. Sendo assim, o desengajamen-
com uma zona ao longo das fronteiras orien- to foi eliminado da agenda política, tendo
tais da Alemanha, e acrescentou, alguns dias sido derrotado pela tendência completa-
mais tarde, como experimento de controle mente oposta de armar as duas Alemanhas
de armas, um plano para inspeção mista como contribuições separadas à potência
em ambos os lados da divisão entre Europa das posições avançadas dos dois blocos ri-
Oriental e Ocidental. Essas ideias não foram vais, por temores ocidentais das grandes
bem recebidas pelos norte-americanos nem forças não nucleares da URSS, pela política
pelos alemães ocidentais, a quem Eden não da OTAN de colocar armas nucleares em
consultou de antemão e que se opuseram ao posições avançadas, e pela falta de confian-
reconhecimento que isso implicava da Re- ça nos métodos de inspeção e verificação. O
pública Democrática Alemã. As propostas fortalecimento das alianças tinha prioridade
russas apresentadas por Gromyko em 1956 sobre seu desmantelamento.
48 | PETER CALVOCORESSI

Entretanto, havia alguma inclinação plano russo, apresentado por Khruschev à


mútua a restringir os testes nucleares. O Assembleia Geral da ONU em 1959, foi se-
desenvolvimento de variedades de armas guido, em 1960, por duas declarações norte-
nucleares, pequenas e grandes, evidenciou -americanas e uma conferência de desarma-
a necessidade de testes, que geraram alar- mento de 10 países em Genebra, que teve
me em nível mundial sobre os efeitos de um vida curta, mas também representou uma
conflito radioativo, principalmente depois oportunidade para uma iniciativa conjun-
de testes norte-americanos no Pacífico em ta russo-americana na forma de uma série
1954, que mataram alguns pescadores japo- de recomendações formuladas por John
neses, envenenaram grandes quantidades J. McCloy e V. Zorin. Em 1961, não houve
de peixes e infectaram uma área de 18.000 conferência. Os norte-americanos e os rus-
km2. Em 1957, houve uma interrupção de sos concordaram com uma série de princí-
testes nucleares por meio de um acordo tá- pios, mas não sobre uma declaração acerca
cito – em parte, consequência da conclusão de controles, apresentada pelos primeiros.
de séries de testes norte-americanos e rus- Ambos os lados apresentaram propostas de
sos na época – e um exame preliminar da tratados sobre o desarmamento geral e com-
possibilidade de uma proibição mais formal pleto a tempo para a sessão de outono da
e permanente. Mas havia uma lacuna grave Assembleia Geral.
entre o que seria aceitável à URSS e aos Es- O ponto alto dessas negociações foram
tados Unidos sobre a formação de um órgão as recomendações McCloy-Zorin, que con-
de controle e as votações dentro dele, sobre sistiam em um conjunto de princípios para
a operação dos postos de controle por ob- comandar negociações permanentes sobre
servadores de nacionalidade estrangeira e desarmamento, a começar pela aceitação de
sobre o número de inspeções locais a serem um desarmamento geral e completo como
realizadas por ano em uma determinada objetivo final. Na verdade, esse documento
área. Em todas essas questões, as lacunas foi uma declaração consensual sobre o que
entre os protagonistas foram reduzidas du- deveria ser acordado por consenso, que es-
rante as discussões de 1958-1960, mas não o clarecia as questões, mas não as resolvia.
suficiente para gerar acordo antes que a des- Ele previa a necessidade de estabele-
truição do avião norte-americano U-2 sobre cer procedimentos confiáveis para a solu-
a URSS, em maio de 1960, e o abandono da ção pacífica de disputa e a manutenção da
conferência de cúpula daquele mês pertur- paz, a retenção, por parte de cada país, de
bassem temporariamente a aproximação forças não nucleares para preservação da
russo-americana. lei e da ordem, o desmantelamento de for-
Com menos resultados, embora com ças supérfluas e a eliminação de todos os
toda a aparência de seriedade, ambas as su- armamentos nucleares, químicos e bacte-
perpotências patrocinaram planos irreais riológicos, todos os meios de lançamento
de desarmamento geral e completo, e pas- de armas de destruição em massa, todas as
saram muito tempo falando neles. As pro- instituições de formação militar e todos os
postas russas se concentravam em objetivos orçamentos militares, uma sequência con-
favoritos, como a retirada de tropas e bases sensual de etapas no processo de desarma-
estrangeiras, em vez de tópicos menos es- mento, sujeita à verificação na conclusão
petaculares de controle e verificação com de cada etapa, medidas equilibradas para
os quais os negociadores norte-americanos assegurar que nenhum dos lados assegu-
e britânicos estavam mais preocupados. O rasse uma vantagem temporária à medi-
POLÍTICA MUNDIAL | 49

da que o desarmamento avançasse e con- Para qualquer potência, os inspetores eram


trole internacional rígido e eficaz sobre o suspeitos de espionagem com licença para
processo e, depois dele, por meio de uma descobrir, e poderiam revelar como despo-
Organização Internacional para o Desar- jar o território de suas defesas com um só
mamento, no âmbito da ONU. Esse pacote golpe. Portanto, os impulsos dos políticos
visionário exigia acordo sobre a ordem em que assumiram o desarmamento por uma
que diferentes operações seriam levadas a razão ou por outra recebiam a oposição per-
cabo, sobre diferentes tipos de armamentos manente de questionamentos mais cautelo-
e sobre a natureza e os modos de operação sos que impediam a conclusão de qualquer
de uma inspetoria. O acordo sobre esses e acordo que não fosse parcial.
outros pontos exigia um grau de confian- Porém, foram estabelecidos acordos
ça que nenhum líder político sentia ou parciais sobre a cessação dos testes nuclea-
poderia ter demonstrado sem incorrer em res na atmosfera e sobre a neutralidade do
acusações plausíveis de estar jogando com continente Antártico. Os russos reiniciaram
a segurança nacional. Os russos, por exem- os testes unilateralmente em setembro de
plo, aceitavam, em uma etapa, o princípio 1961, principalmente porque tinham che-
da inspeção, mas ficou claro que o que se- gado a um ponto em que tinham algo a ser
ria inspecionado eram as armas destruídas, testado, enquanto os norte-americanos e os
e não as sobreviventes; eles relutavam em britânicos ofereciam concluir um tratado
mostrar o que sobrara por medo de que proibindo os testes atmosféricos sem qual-
isso fosse atacado ou destruído. Engenho- quer disposição que previsse inspeções. Mas
sos esquemas para superar essa dificuldade, os russos não seriam parados em sua nova
como a proposta do professor Louis Sohn série de testes, e pouco depois os norte-ame-
de dividir o território nacional em zonas e ricanos também os retomariam.
dar aos inspetores o direito de revistar ape- No final do ano, os russos propuseram
nas um número limitado delas em interva- um tratado proibindo todos os testes, tanto
los definidos, não foram suficientes para subterrâneos quanto atmosféricos, sem ins-
superar o conservadorismo nacionalista. peção. A proposta foi imediatamente rejei-
A característica central da discussão re- tada, e as três potências informaram a ONU
vivida sobre o desarmamento foi o proble- de sua incapacidade de chegar a um acordo
ma da inspeção e verificação (um elemento e de sua desistência de tentar fazê-lo.
que não havia se intrometido em negocia- Alarmada por essa ruptura, a ONU re-
ções anteriores como as que precederam o solveu convocar outra conferência sobre
Tratado de Washington de 1922, embora desarmamento, desta vez com 18 membros,
tenha chamado a atenção da conferência incluindo 6 neutros, o que representava
sobre desarmamento de 1932, que propôs uma inovação, já que os neutros até então
uma Comissão Permanente sobre Desar- não participavam de discussões sobre proi-
mamento com poderes de inspeção, mas bição de testes, apenas sobre desarmamento
não de aplicação das regras). A evolução das completo e geral. Os franceses, que estavam
armas nucleares aumentou muito os riscos desenvolvendo um arsenal nuclear próprio
de se permitir que uma parte em um acordo e, portanto, não queriam proibir testes, não
de desarmamento enganasse e ocultasse e, participaram dos trabalhos, mas os neutros
fazendo isso, pudesse conquistar o mundo. (Brasil, Birmânia (Mianmar), Egito, Etiópia,
Mas a ocultação também era considerada Índia, México, Nigéria, Suécia) se mostra-
uma das condições para a sobrevivência. ram persistentes na formulação de compro-
50 | PETER CALVOCORESSI

missos e na manutenção das discussões. O rar fronteiras e outras transferências de ter-


debate sobre inspeções foi retomado entre ritório do controle de um país a outro. Entre
as potências nucleares e se encaminhou para as propostas com outras origens, estavam a
uma questão de números, com as potências destruição de bombardeiros (que se aplica-
ocidentais não aceitando menos de sete por ria aos B47 e Tu-16) e cortes percentuais em
ano e os russos se recusando a aceitar mais orçamentos militares. Na Polônia, Gomulka
de duas ou três. No início de 1963, já havia reformulou e reapresentou o Plano Rapacki
uma expectativa geral de fracasso das nego- ao propor, em 1963, um congelamento nu-
ciações, mas ela foi convertida em sucesso, clear na Europa, mas que não foi do agrado
em grande parte pela obstinação não impo- dos norte-americanos, em parte porque eles
sitiva do primeiro-ministro britânico Ha- davam pouco valor ao controle sobre a loca-
rold Macmillan. Khruschev deu a entender lização dos armamentos sem controle sobre
publicamente que se poderia chegar a um sua produção, e em parte em função da des-
acordo sobre uma proibição parcial e, em confiança de seus aliados alemães.
julho, os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e Esses planos não deram qualquer fruto
a Rússia acertaram, em Moscou, os termos imediato por três razões. Em primeiro lu-
de um tratado proibindo testes nucleares gar, a conquista da proibição de testes nu-
na atmosfera, no espaço exterior e debaixo cleares era o máximo que os líderes de am-
d’água por tempo indeterminado, mas su- bos os lados conseguiam digerir e tornar
jeito ao direito de qualquer das partes de se palatável em seus próprios países em um
retirar desses compromissos se seus interes- futuro próximo. Poderia ser possível fazer
ses supremos fossem ameaçados por even- mais, mas não dentro de tão pouco tempo.
tos extraordinários relacionados ao tema do Em segundo lugar, as discussões no âmbito
tratado. Muitos outros países aderiram ao da OTAN sobre controle conjunto das dis-
tratado, entre os quais não estavam a China posições nucleares geraram temores sobre
nem a França. uma Alemanha nuclear no bloco do Leste.
A conclusão desse tratado levantou a Os Estados Unidos ficaram entre o desejo
questão de o que se tentaria depois disso, de um diálogo continuado com a URSS e
dando incentivo à abordagem parcial e, o de dar a seu aliado continental mais efi-
portanto, à busca de tópicos que estives- caz o status e a autoridade nos conselhos
sem prontos para serem tratados. Lyndon de aliados que sua contribuição à aliança o
B. Johnson, que se tornou presidente dos fazia merecer. (Para os russos, a força mul-
Estados Unidos depois do assassinato de tilateral da OTAN que estava sendo propos-
Kennedy em novembro de 1963, listou al- ta era uma forma de proliferação de armas
guns tópicos no início do ano seguinte, nucleares, embora os norte-americanos a
entre os quais um programa de antipro- tivessem concebido como uma política an-
liferação para incluir a proibição total de tiproliferação para satisfazer a República Fe-
testes nucleares, proibição de transferência deral da Alemanha e a França com algo me-
de materiais nucleares e inspeção de ati- nos do que forças nucleares independentes.)
vidades nucleares pacíficas, uma rede de E, terceiro, o envolvimento cada vez maior
postos de observação para proteção contra dos Estados Unidos no Vietnã desgastava
ataques-supresa, um congelamento de mís- ainda mais as relações entre russos e norte-
seis com verificação, a interrupção, também -americanos. A tentativa desses de fortale-
com verificação, na produção de material cer um Vietnã do Sul independente e não
físsil e a proibição do uso da força para alte- comunista implicava guerra contra o Vie-
POLÍTICA MUNDIAL | 51

tcong, que era, na terminologia comunista, Mas um lado poderia concluir que a única
um movimento de libertação nacional, e forma de evitar um ataque era agir antes.
guerra contra o Estado comunista do Viet- Usando a versão nuclear da pré-nuclear
nã do Norte, além de algo como uma guerra Blitzkrieg, esse lado adotaria uma estratégia
contra o muito mais importante Estado co- de contragolpe e aumentaria, divulgaria e,
munista da China. Para os russos, deixar de possivelmente, usaria seu poder para des-
apoiar o presidente Ho Chi Minh, do Vietnã truir a capacidade bélica do oponente com
do Norte, seria como uma traição da solida- um único ataque. Para neutralizar essa es-
riedade comunista, representando um risco, tratégia, era necessário proteger aeronaves e
em qualquer momento, à posição russa no plataformas de lançamento de mísseis com
mundo comunista e duplamente perigoso eficácia suficiente para tornar improvável
em um momento em que a proeminência que todos pudessem ser destruídos por um
e a pureza doutrinais russas estavam sendo primeiro ataque-surpresa. Sua proteção por
atacadas pelos chineses. defesas antiaéreas e bombardeiros tinha fi-
Além disso, deixar de apoiar o Vietcong cado obsoleta com o enorme aumento no
era duplamente perigoso para os russos, poder destrutivo de cada bomba e na velo-
porque se perdessem, os comunistas culpa- cidade e precisão dos mísseis.
riam os russos, ao passo que, se os vietcon- Foram desenvolvidas duas formas no-
gs vencessem sem ajuda russa, a influência vas e extremamente caras de defesa: mísseis
chinesa poderia aniquilar a influência russa foram instalados em locais dispersos e su-
na Ásia. Quando, em 1965, os norte-ame- perprotegidos e, no caso do Polaris, debai-
ricanos tinham se tornado participantes xo do mar, em submarinos, e um sistema
explícitos da guerra e não meramente co- de alerta precoce dava à defesa tempo su-
laboradores dos sul-vietnamitas, a escala ficiente para colocar no ar as aeronaves e
e a natureza da luta haviam mudado, e os impedir que elas fossem destruídas no solo.
Estados Unidos tinham de enfrentar pro- Antes do surgimento do míssil intercon-
testos mundiais contra os horrores que se tinental, os norte-americanos chegaram a
seguiram. Os russos se juntaram a esses um alerta precoce de duas a três horas e,
protestos. Embora a evolução das estraté- quando isso foi considerado inadequado,
gias nucleares e o ressurgimento da China, melhorou-se para meia hora, momento
juntamente com a passagem do tempo, es- em que parte da força de bombardeiros
tivessem se combinando para dar um fim à era mantida sempre no ar e uma parte em
Guerra Fria bipolar, os principais adversá- prontidão de 15 minutos no solo. Essas me-
rios foram impedidos, pela guerra na Ásia didas para garantir a sobrevivência de uma
e pelo hábito, de reconhecer o fato e agir a parte da força de retaliação, bombardeiros
partir disso – somente De Gaulle fez ambas e mísseis fizeram com que ambos os anta-
as coisas. Não obstante, seja por entendi- gonistas se concentrassem em estratégias
mento, seja por resultado de forças mais de segundo ataque. Era essencial ao suces-
obscuras, tinha surgido um grau significa- so dessa atitude que cada lado considerasse
tivo de estabilidade e tolerância em torno que o outro a tinha adotado, e foi um con-
da maior questão da época: se a Guerra Fria solo dos últimos anos da Guerra Fria que
geraria uma guerra nuclear. Na era nuclear, cada lado tenha conseguido (com a ajuda
a paz poderia ser preservada desde que do fato de que uma força de primeiro ata-
cada lado deixasse de atacar primeiro em, que diferia em tamanho e composição de
função da ameaça de retaliação do outro. uma força retaliatória) transmitir ao outro
52 | PETER CALVOCORESSI

mensagens tácitas nesse sentido. A proba- mum até que duas outras potências, Fran-
bilidade de um ataque-supresa diminuiu. ça e China, tivessem se tornado potências
Todavia, as forças nucleares poderiam nucleares e uma série de outras tivessem
ser usadas como resposta a um ataque não adquirido essa capacidade – e, na ausência
nuclear. O uso de armas nucleares não era de um sistema de controle internacional,
descartado pela reticência e contenção das a disposição de seguir o mesmo caminho.
duas principais potências nucleares, uma Durante a Guerra Fria, os dois protagonistas
em relação à outra. Ambas podiam amea- desenvolveram uma moderação crescente
çar ofensivamente em outros contextos, e entre si, até mesmo uma espécie de intimi-
o faziam. Em janeiro de 1954, Eisenhower dade temerosa, mas não havia razão para
e Dulles falaram, em diferentes ocasiões, de supor que outros detentores de armas nu-
retaliação massiva e imediata. A última fase cleares adquiririam moderação para com a
da guerra da França no Vietnã tinha come- força ou – no caso de Israel, Egito ou Iraque
çado, e os norte-americanos estavam dian- – desenvolveriam essa compreensão íntima
te da escolha entre ajudar os franceses com dos limites permitidos da política nuclear.
um ataque nuclear ou deixar que acabassem Tampouco havia razão para supôr que as
sendo derrotados. Os norte-americanos ten- duas potências gigantes teriam tanta faci-
taram usar politicamente seus arsenais nu- lidade de controlar os conflitos dos outros
cleares mesmo sabendo que não os usariam quanto os seus próprios.
militarmente; em uma atitude temerária, Esses dois problemas – como impedir
Dulles usou um linguajar duro para assustar uma guerra nuclear entre potências nuclea-
russos e chineses e impedir que passassem res e como impedir que mais países subis-
à guerra no mar – e, talvez, para assustar sem à elite nuclear – eram aspectos do pro-
também os britânicos e assim fazer com blema mais amplo do controle de armas que
que eles o impedissem de seguir um rumo ia além de abordagens mais tradicionais ao
que ele não queria mesmo seguir. Em 1956, desarmamento na década de 1960. O con-
diante, ao mesmo tempo, de uma guerra no trole de armas, ou seja, a regulamentação
Oriente Médio e uma revolução na Hungria, em lugar da eliminação do uso de armas
Khruschev fez vagas ameaças de usar armas de guerra, não era novo, e tinha sido apli-
nucleares em lugares não especificados para cado a armamentos navais pelo Tratado de
apavorar os governos e os povos britânico e Rush-Bagot de 1817, que proibia frotas nos
francês e ganhar crédito no mundo árabe; Grande Lagos, e pelos Tratados de Washing-
depois do episódio com os U-2 em 1960, ton de 1922 e 1930, que buscavam limitar o
ameaçou países menores com ataques nu- poder naval de um país em relação ao outro.
cleares se eles facilitassem as atividades de O interesse nesse tipo de sistema ressurgiu
reconhecimento norte-americanas. Mas, no nos anos de 1960 em função do ceticismo
evento, ambos os lados reservaram seus ar- em relação ao desarmamento geral, e a dis-
mamentos nucleares um para o outro, cada cussão acadêmica sobre controle de armas
vez mais se preocupando não simplesmente foi assumida por políticos, em Washington
em manter as armas nucleares fora de uso, e Moscou, que sentiam a necessidade de se
mas também com mantê-las longe das mãos comunicar entre si (como na crise dos mís-
de outros países. Mesmo assim, uma das seis de Cuba ou nas crises que ocorreram no
consequências mais sinistras da Guerra Fria Oriente Médio na década). A ideia de que as
foi o adiamento, durante as décadas de 1950 grandes potências tinham mais em comum
e 1960, da concretização desse interesse co- do que a necessidade de evitar a aniquila-
POLÍTICA MUNDIAL | 53

ção mútua foi fortalecida ainda mais por e também sobre o Japão. A China retomou
seu interesse comum em sua própria supe- os testes em 1993. O tratado de 1968 foi re-
rioridade. Nenhuma delas queria ver armas novado indefinidamente por 178 países em
nucleares nos arsenais de outros países e, 1995, mas não sem que houvesse críticas
em 1968, junto com a Grã-Bretanha, ambas dos países nucleares, principalmente França
concluíram um Tratado de Não Proliferação e Grã-Bretanha, em função de seu cumpri-
Nuclear, ao qual convidaram todos os ou- mento mínimo das obrigações contidas no
tros países a aderir. tratado. No mesmo ano, Jacques Chirac re-
O objetivo desse tratado era congelar tomou os testes franceses no pacífico, pou-
a hierarquia nuclear existente, mantendo a co depois de ser eleito presidente.
França e a China no nível de potências nu- Em 1998, Índia e Paquistão realizaram
cleares de segunda classe e todos os outros testes nucelares. Nessa época, Israel, Cuba,
países permanentemente excluídos da aqui- Índia e Paquistão não haviam aceitado o
sição desse tipo de arma. A França e a Chi- TNP, que foi superado em 1996 por um Tra-
na se recusaram previsivelmente a assinar tado para a Proibição Completa de Testes
nesse momento. Dos países não nucleares Nucleares que estendia a proibição a testes
vinham sinais de descontentamento. Antes subterrâneos, introduzia novas restrições à
de subscrever o tal ato de renúncia, eles re- fabricação de materiais físseis e ampliava a
clamavam que não deveriam ter de renun- divulgação de informações sobre esses ma-
ciar a armas modernas sem uma perspectiva teriais. Esse tratado identificava 44 países
melhor de escapar do enredo de uma guerra cujas assinatura e ratificação eram necessá-
nuclear e exigiam que as potências nucleares rias para que entrasse em vigor e dispunha
equilibrassem seu entusiasmo pela não pro- que uma nova conferência seria realizada se
liferação com uma tentativa mais séria de o tratado não estivesse em vigor dentro de
controlar sua própria corrida armamentista. três meses a partir de sua conclusão. Quan-
O tratado entrou em vigor em 1970, do esse período expirou, em 1999, todas as
com conferências de revisão a cada cin- assinaturas necessárias tinham sido obti-
co anos. As esperanças de uma proibição das, com exceção das de Índia, Paquistão e
mais abrangente eram vãs enquanto as duas Coreia do Norte, mas Rússia e China não
principais potências nucleares continuas- tinham ratificado e o senado dos Estados
sem a desenvolver e testar novas armas. Os Unidos rejeitou o tratado por 51 a 48, sem
avanços se limitavam a um acordo entre as um debate mais sério. (O desarmamento e
superpotências, concluído em 1974, mas só o controle de armas não se limitavam às ar-
ratificado em 1990, que limitava a escala mas nucleares. A Convenção sobre Armas
de testes subterrâneos, e outro acordo em Nucleares de 1972 ampliou a proibição ao
1976, também ratificado em 1990. A África uso desse tipo de arma e sua fabricação. A
do Sul aderiu ao TNP em 1991, e destruiu Convenção sobre Armas Químicas, con-
dispositivos nucleares construídos pelo re- cluída em 1993, depois de quase 20 anos de
gime antigo. O Brasil e a Argentina abriram discussão, e implementada em 1997, fez o
mão da produção de armas nucleares de mesmo para essas armas.)
longo alcance. As Coreias do Norte e do Sul O alarme em função da difusão das ar-
concordaram em tornar a Península Corea- mas nucleares foi acompanhado pelo alarme
na uma zona livre de armas nucleares, mas do desenvolvimento de tecnologia de arma-
isso não impediu que a primeira disparasse mentos. O MIRV (Multiple Independent
mísseis de longo alcance sobre a segunda, Re-Entry vehicle), cujas ogivas múltiplas
54 | PETER CALVOCORESSI

controladas separadamente aumentavam a gicas não é fechada, já que é discutível se se


ameaça de cada míssil, e os sistemas ABM deve incluir as armas nucleares de alcance
(mísseis antibalísticos), que poderiam com- mais curto, que mesmo assim são levadas ao
bater um primeiro ataque e assim destruir a alcance do inimigo por estarem instaladas
capacidade de contenção que se baseava na em território intermediário ou podem ser
suposta eficácia do primeiro ataque, estavam enviadas até lá em curto prazo.
aumentando enormemente o custo da corri- Dadas essas complexidades, é impres-
da armamentista. Ao mesmo tempo, o ca- sionante que, por um exercício de vontade
ráter mortífero de novos mísseis capazes de política aplicado a dificuldades técnicas, te-
aterrissar a alguns metros de um alvo, com- nham sido assinados dois acordos em maio
binado com novas defesas capazes de des- de 1972 (e dois menores no ano seguinte).
truir mísseis que se aproximassem somente Em demoradas negociações em 1970, em
ao custo de anular o fator de contenção pro- Viena e em Helsinque, os norte-americanos
jetado para impedir seu lançamento, fazia propuseram uma proibição total de platafor-
com que as superpotências se inclinassem a mas de lançamento terrestres móveis, uma
falar de controle de uso e desenvolvimento, limitação especial particularmente potente
bem como de proliferação, de armas nu- sobre armas e um limite numérico geral à
cleares. Foram iniciadas conversações para soma de plataformas terrestres e marítimas,
a limitação de armas estratégicas (Strategic e aos bombardeiros, que qualquer dos dois
Arms Limitation Talks, SALT) em 1969. países pudesse possuir. No ano seguinte,
As armas estratégicas são armas de lon- ambos chegaram a um acordo sobre um
go alcance que podem atingir alvos em ou- tratado relacionado ao leito do mar, proi-
tros territórios a partir de bases ou platafor- bindo a instalação de armas nucleares no
mas de lançamento no país que as lança, ou fundo do oceano, e atualizaram seu acordo
em alto mar. Elas incluem mísseis ou bom- de 1963 para uma linha telefônica direta en-
bas transportadas por aviões de longo alcan- tre Washington e Moscou ao se adaptar aos
ce, assim como mísseis lançados de platafor- novos meios de comunicação por satélite. A
mas móveis ou submarinas. A categoria das seguir, os Estados Unidos propuseram uma
armas estratégicas é complexa e se complica parada na instalação de mísseis terrestres
ainda mais pelo fato de que um único míssil intercontinentais e em todos os mísseis ins-
com muitas ogivas, cada uma podendo ser talados em submarinos. Ao mesmo tempo,
dirigida, de forma independente, a um alvo os negociadores trataram os aspectos de-
diferente, está longe de ser equivalente a um fensivos e ofensivos da guerra nuclear como
míssil com uma única ogiva que pode atin- elementos diferentes ao tentar restabelecer
gir apenas um alvo. Também existem duas limites à instalação de sistemas ABM, mas
outras formas incompatíveis de calcular a os problemas conhecidos de se tentar dife-
eficácia do arsenal estratégico de um país. renciar uma arma defensiva de uma ofensiva
Por um lado, ele pode ser avaliado pelo nú- impediram os avanços, já que seria impossí-
mero de alvos inimigos teoricamente vul- vel dizer que qualquer míssil ou lançador em
neráveis, uma avaliação que envolve contar um sistema ABM jamais poderia ser usado,
o número de ogivas independentes prontas exceto para propósitos defensivos.
para uso; ou pode ser avaliado pelo peso de Independentemente dessas dificulda-
explosivos que pode ser levado por todos os des, em 1972 foram concluídos um tratado
lançadores disponíveis em uma única oca- ABM e um acordo provisório sobre mísseis
sião. Por fim, a categoria de armas estraté- ofensivos. A URSS tinha, nesse momento,
POLÍTICA MUNDIAL | 55

um sistema ABM incompleto em torno de onde se sabia, não tinha MIRVs em opera-
Moscou, e os Estados Unidos estavam pla- ção, embora possuísse mais mísseis inter-
nejando dois sistemas para proteger suas continentais do que os Estados Unidos.
plataformas de lançamento intercontinen- Esses, contudo, tinham começado a
tais. O tratado, de duração indeterminada, instalar MIRVs em terra (Minuteman 3)
embora sujeito à revisão quinquenal, permi- em 1970 e no mar (Poseidon) em 1971.
tia que cada parte instalasse dois sistemas, Em 1972, acreditava-se que a URSS tivesse
um para defesa de sua capital e o outro para 2.090 mísseis estratégicos capazes de atingir
defesa de alguma parte de seus mísseis in- aquele número de alvos, enquanto os Esta-
tercontinentais, sendo que os centros dos dos Unidos tinham 1.710 com capacidade
dois sistemas não poderiam estar a menos para atingir 3.550 alvos e, em poucos anos,
de 1.300 km de distância e o raio de cada tendo-se reequipado com MIRVs, mais de 7
um não poderia ter mais de 150 km. Cada mil alvos. A expectativa era de que os rus-
sistema poderia conter 100 lançadores, to- sos começassem a instalar MIRVs em 1975,
dos estáticos e capazes de disparar apenas quando a eficácia de sua força em termos de
uma ogiva. O acordo sobre os mísseis ofen- alvos passíveis de ser atingidos começaria a
sivos era menos consistente. Tinha duração se multiplicar, enquanto que a norte-ameri-
limitada, expiraria em 1977 e não fez mais cana, já muito reequipada, estaria estática.
do que impor um congelamento a novas Sendo assim, para manter sua superioridade
construções, sujeitas a uma disposição que e se igualar ao número crescente de ogivas
permitisse a substituição de equipamentos dos lançadores russos, os norte-americanos
obsoletos por outros mais modernos, em teriam que aumentar o número de seus lan-
terra e em submarinos. Os Estados Unidos e çadores acima do limite estabelecido pelo
a URSS também concordaram em começar acordo provisório. Se não o fizessem depois
uma segunda rodada de negociações SALT. de 1977, os russos, supunha-se, teriam quase
A rodada SALT 2 deveria tratar do que o dobro dos alvos norte-americanos em sua
foi omitido nos acordos de 1972, o que já mira em 1980. Portanto, os Estados Unidos
significava muito. Os Estados Unidos man- estavam mais preocupados em estabelecer
tinham sua proposta, rejeitada pela URSS, limites à capacidade de mísseis baseados em
de proibir totalmente os lançadores terres- terra de cada lado. Os russos fizeram a con-
tres. Os russos tinham tentado, sem suces- traproposta de eliminar as bases avançadas
so, incluir no acordo provisório disposições norte-americanas (bases aéreas na Europa e
específicas sobre bombardeiros de longo bases submarinas na Espanha e na Escócia),
alcance, que ainda eram uma parte impor- uma limitação do número de porta-aviões
tante do arsenal norte-americano, embora que seriam permitidos em águas europeias
não do russo: os norte-americanos tinham (os russos não tinham porta-aviões do tipo
mais de 500 dessas aeronaves, e os russos, convencional, somente com helicópteros ou
que queriam que cada uma delas contasse com aviões de decolagem vertical) e que os
como um lançador, tinham 140. Não se ha- submarinos nucleares fossem relegados a
via chegado a um acordo sobre aviões de partes do oceano de onde não conseguissem
menor alcance baseados fora dos Estados atingir território inimigo. Portanto, os avan-
Unidos, que tinham cerca de 1.300 desses, ços no SALT 2 foram difíceis e desprezíveis
capazes de transportar armas nucleares, até que Nixon visitou Moscou em meados
sendo 500 deles na Europa. Acima de tudo, de 1974, quando o impasse foi substituído
havia o problema dos MIRVs. A URSS, até por três acordos de menor monta: uma mo-
56 | PETER CALVOCORESSI

dificação no tratado ABM, um acordo para Os mísseis, a partir de um determina-


banir testes subterrâneos de armas de 150 do tamanho, que os Estados Unidos não ti-
quilotons ou mais a partir de março de 1976, nham e a URSS tinha 308, foram proibidos,
e um acordo de que um novo tratado SALT assim como os mísseis lançados do ar, de
se estenderia até 1985. Esse último acordo se outras formas que não de aviões. Estabele-
refletiu em novembro, quando Gerald Ford, ceram-se limites ao número de ogivas por
que assumiu a presidência depois da renún- míssil e ao número de mísseis de cruzeiro
cia de Nixon em agosto, reuniu-se com Bre- por aeronave. Qualquer lançador que dispa-
jnev em Vladivostok, em uma tentativa de rasse um míssil levado por um MIRV antes
impedir que a détente russo-americana, em permanecia, para propósitos do tratado, um
geral, e os SALT, em particular, enfraqueces- lançador levado por MIRV, não importando
sem. Ford e Brejnev concordaram em que as quais armas pudessem ser instaladas nele.
conversações deveriam continuar com base Foram estabelecidas restrições, ainda que
na ideia de cada lado ter até 2.400 lançado- modestas, à modernização de armas, que
res estratégicos de todos os tipos (um teto não afetavam os sistemas submarinos de
um tanto alto) dos quais não mais de 1.320 lançamento nem os mísseis balísticos inter-
poderiam ser adaptados com MIRVs. continentais baseados em terra e, portanto,
A tentativa de transpor esse núcleo a permitiam a instalação dos sistemas mó-
um acordo formal levou dois anos. A vonta- veis de mísseis norte-americanos Trident
de política existia, fortalecida pelo desejo de 1 e 2 e seus equivalentes russos. As partes
ambos os líderes de chegar a um acordo an- do tratado aceitaram notificar certos testes
tes, no caso de Brejnev, do 25º Congresso do e estoques. Uma cláusula contra subterfú-
Partido Comunista da União Soviética em gios visava impedir que cada lado usasse
fevereiro de 1976, e no de Ford, da campa- uma terceira parte para evitar suas obriga-
nha presidencial que tomaria a maior parte ções – alarmando os membros europeus da
daquele ano. Mas as complexidades e tecni- OTAN, que temiam que os Estados Unidos
cidades, em fluxo constante, foram demais a pudessem interpretar como uma proibi-
para os negociadores. As discussões foram ção de transferência de novas tecnologias.
suspensas em 1977 por um novo presidente, Um protocolo sobre o tratado apontava o
Jimmy Carter, que colocou propostas novas caminho para mais restrições à instalação
na mesa e interrompeu o desenvolvimento de novas armas, embora não aos testes, de
da ogiva de nêutrons e do bombardeiro de mísseis de cruzeiro (que não fossem lança-
longa distância B-1. Em 1979, foi assinado o dos de aviões) com alcance ampliado. Nos
tratado SALT 2. Estados Unidos, o Comitê de Relações Exte-
Só em 1985, um terceiro tratado daria riores do Senado recomendou a ratificação
continuidade ao processo. Em seu centro do tratado, mas protestos públicos e inquie-
estava a restrição a sistemas de lançamento tação de especialistas (que se concentravam
nuclear a 2.400 de cada lado, reduzindo-se a naquilo que o tratado não garantia) e a in-
2.250 em 1985. Dentro dessa limitação geral, vasão russa do Afeganistão impediram-na.
havia sublimitações conectadas e categorias A não ratificação foi uma proposta impor-
definidas de forma mais precisa: sistemas tante na candidatura de Ronald Reagan à
MIRV junto com aviões transportando mís- presidência em 1980.
seis de cruzeiro; mísseis por meio de MIRV A atmosfera política tinha se torna-
baseados em terra e no mar e mísseis com do inadequada a esses acordos. O final dos
MIRV baseados em terra, sozinhos. anos de 1970 foi uma época de desconfian-
POLÍTICA MUNDIAL | 57

ça crescente. No lado norte-americano, a uma sucessão ordenada nunca evoluíram)


intervenção russo-cubana em Angola, em era prejudicada em seu país por uma econo-
1975, deu início a uma série de ações russas mia que não conseguira garantir confortos
– Etiópia, Vietnã e Afeganistão eram teatros básicos e estava destinando, talvez, 20% de
muito separados da atividade russa amea- seu PIB para armamentos e defesa.
çadora – que aumentaram a desconfiança Junto com essa piora do clima político,
norte-americana e sua preocupação com o havia avanços técnicos que estavam alteran-
rearmamento ao invés de controle de armas. do a natureza da corrida armamentista. A
Também nessa época, estimativas oficiais intimidação nuclear foi uma arma crua e in-
nos Estados Unidos sobre o tamanho do or- flexível, cuja eficácia dependia de sua crueza
çamento de defesa russo cresceram muito. A e sua inflexibilidade. Visava às cidades e a
passagem do navio de guerra Kiev do Mar seus habitantes. No lado norte-americano
Báltico ao Mediterrâneo, um incidente que havia, até finais dos anos de 1970, apenas
pouco teria importado alguns anos antes, le- dois rumos que um presidente poderia to-
vou a acusações de que a URSS tinha rompi- mar em caso de emergência: ordenar um
do a Convenção de Montreux de 1936 (sob ataque a todos os alvos para os quais suas
a alegação, contestada, de que o Kiev era um armas estavam apontadas ou ordenar a des-
porta-aviões que se enquadrava naquele ins- truição de todos esses alvos, exceto de Mos-
trumento). Em 1979, houve um pânico mais cou. Ele não teria terceira opção, e por não
grave, e deliberadamente divulgado, pela tê-la, seu arsenal representava uma ameaça
descoberta de uma brigada russa em Cuba. assustadora à URSS. Era uma intimidação
O presidente Carter tinha interrompido poderosa – desde que se pudesse acreditar
os voos espiões dos Estados Unidos sobre que o presidente a usaria.
Cuba como um gesto de conciliação, mas Porém, no decorrer de 1970, essa cre-
eles foram retomados quando se suspeitou dibilidade começou a se desgastar. Um pre-
que Cuba estivesse colaborando com a re- sidente teria coragem de ordenar um mas-
volução na Nicarágua. O que eles revelaram sacre tão imenso nos minutos disponíveis
foi uma unidade de treinamento russo que para tomar uma decisão? A questão em si
estava em Cuba há alguns anos, mas o cli- já solapava a estratégia de intimidação, além
ma daquela época a converteu em uma nova de ressuscitar o medo dos norte-americanos
ameaça aos Estados Unidos. de que a URSS seria tentada a regredir a
No lado russo, a entente entre os Esta- uma estratégia de atacar antes. Ao mesmo
dos Unidos e a China e a tentativa de Deng tempo, o refinamento das técnicas de pon-
Xiaoping de transformá-la em uma tríplice taria possibilitou aos estrategistas pensar,
aliança com o Japão pioraram os antigos mais uma vez, em termos de ir à guerra ao
medos de Moscou de ser cercada, que fica- invés de a conter. O agressor pode atacar um
ram ainda mais agudos quando a URSS se único alvo militar escolhido, como uma pla-
tornou cada vez mais dependente de grãos taforma de mísseis ou um quartel-general
dos Estados Unidos para alimentar seus ani- de comando, ou um Bunker onde está um
mais e seu povo. chefe de Estado. Cada lado poderia trocar
A URSS alegava, e talvez acreditasse, ataques nesse tipo de alvo único, em uma
que seus problemas no Afeganistão e na guerra de semanas ou meses. Sobreviver à
Polônia eram acentuados pela interferência guerra, até mesmo ganhá-la – conceitos que
norte-americana clandestina. Sua liderança pareciam sem sentido no início da era nu-
cada vez mais velha (os procedimentos para clear – se tornaram uma possibilidade.
58 | PETER CALVOCORESSI

Um elemento especial na competição armada, a URSS era, em um aspecto vital,


entre as superpotências, que a tornava glo- uma potência de tipo diferente dos Esta-
bal, foi o crescimento do poder naval russo dos Unidos, um poder ainda confinado,
nos anos de 1970. Se uma grande potência enquanto o poder norte-americano vagava
é uma potência que pode agir em qual- livre. Os oceanos e o espaço submarino ofe-
quer lugar do planeta – e essa definição é reciam uma possibilidade de escapar dessa
tão boa quanto qualquer outra – o poder inferioridade.
marítimo é crucial. Os Estados Unidos Em meados dos anos de 1970, a mari-
eram, sem dúvida, uma grande potência nha russa ultrapassou a norte-americana em
naval capaz de navegar todos os oceanos número de submarinos, mas era inferior em
do mundo e exigir passagem através de todos os outros aspectos. A quantidade de
todas as vias aquáticas, com exceção das pessoal naval dos Estados Unidos, incluin-
mais privadas. A URSS não era tão pode- do fuzileiros navais, era de 733 mil, contra
rosa, mas estava determinada e se tornar. 500 mil dos russos. Os Estados Unidos ti-
Como visava a se tornar o que não era, nham 15 porta-aviões, a URSS só tinha por-
seus esforços geraram um alarme conside- ta-helicópteros; com relação a cruzadores e
rável. O mundo não estava acostumado a destróieres com armas nucleares, os Estados
ver frotas russas em muitos oceanos, mas a Unidos tinham 110, e a URSS, 79; mas ela
universalização do poder russo exigia que tinha 265 submarinos contra 75, embora em
isso acontecesse. Em terra, a URSS tinha capacidade nuclear houvesse mais equilí-
avançado pouco desde 1945. Seu controle brio, com 75 russos contra 64 norte-ameri-
sobre o Leste Europa, embora passasse por canos. Esses números ignoram muita coisa,
problemas às vezes, permanecia inquestio- e uma comparação mais minuciosa das duas
nado, junto com a capacidade de represen- marinhas teria que levar em conta a idade
tar uma ameaça à Europa Ocidental, cuja dos navios, seus armamentos, as reservas de
credibilidade era uma incógnita constante. cada país, os gastos com pesquisa e outros
Nos anos de 1950, a URSS estabeleceu o indicadores de eficácia comparativa. Além
direito de ser considerada uma potência disso, eficácia política não é o mesmo que
no Oriente Médio, embora nos anos de eficácia militar. O que teria acontecido se as
1970 os limites desse poder tenham sido duas marinhas se enfrentassem em comba-
expostos com sua expulsão do Egito e seu te é uma pergunta quase acadêmica, mas o
papel negativo na diplomacia que seguia à efeito do surgimento de uma esquadrilha
guerra de 1973. Seus aliados no Congo, em russa de qualquer porte no Mediterrâneo
1960, e no Caribe, em 1962, fracassaram, não era. Essa frota variava entre 25 e 60
seu papel nas guerras do Sudeste Asiático embarcações de superfície e submarinas,
era periférico, os fracos desempenhos dos às vezes maior e às vezes menor em quanti-
comunistas em Portugal e Grécia em 1974 dade do que a sexta frota norte-americana,
foram decepcionantes, a doença e ausência mas sem cobertura aérea, menor do que a
de Brejnev e a incerteza da sucessão repre- francesa, muito menor do que a italiana e
sentavam uma fonte de hesitações. banal se comparada às forças combinadas
Sua economia e a qualidade de vida do da OTAN nesse teatro. Ainda assim, era um
povo permaneceram vulneráveis às oscila- portento e tinha seu efeito sobre a condu-
ções do clima e de um sistema burocráti- ção das relações entre a URSS, a Argélia e
co pesado, ambos capazes de desencadear a Líbia, dois países antiocidentais, mas não
enormes choques. Por toda a sua vasta força pró-russos, estrategicamente situados. Isso
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lembrava os governos ocidentais de que tinha um temperamento favorável a falar e


seus receios, intensos nos anos de 1940, de agir com firmeza (e também estava compro-
haver bases russas na Albânia e na Iugoslá- metida com políticas econômicas moneta-
via ainda poderiam vir a se concretizar, com ristas, que ela acreditava serem as mesmas
consequências incalculáveis para a política dele). O sucesso dela nas urnas se repetiu em
no Mediterrâneo. Uma prévia dessas con- 1983, quando o apoio do Partido Trabalhista
sequências foi dada pelo primeiro-ministro ao desarmamento unilateral foi um elemen-
de Malta, Dom Mintoff, cuja busca por di- to fundamental em uma campanha desas-
nheiro para sua empobrecida ilha o levou trosa, e novamente em 1987. Na Alemanha
a exigir da Grã-Bretanha um pagamento Ocidental, os conservadores triunfaram
cada vez maior pelo uso da baía de Malta, quando Helmut Kohl pôs fim a 13 anos de
com mais do que uma insinuação de que, governo socialista, em 1982, e deu início a
se a Grã-Bretanha não quisesse usá-la pelo um período que durou até 1998. Os partidos
preço oferecido, os russos o fariam. Como de esquerda perderam poder na Noruega
resultado, Mintoff garantiu, em 1972, um e na Bélgica (1981) e na Holanda (1982) e,
aluguel de 14 milhões de libras esterlinas embora a França tenha eleito um presiden-
por ano, por sete anos, dos quais os parcei- te socialista, em 1981, François Mitterrand
ros da Grã-Bretanha na OTAN deveriam mostrou-se mais abertamente favorável que
dar 8,74 milhões, mais somas adicionais de seu antecessor à instalação de mísseis de
2,5 milhões da Itália e 7 milhões de outros cruzeiro e Pershing II na Europa, ainda que
membros da OTAN. fosse crítico em relação às políticas norte-
A eleição de Ronald Reagan à presidên- -americanas na África e na América Central
cia dos Estados Unidos, em 1980, se deveu, e tenha chegado a encorajar os inimigos de
em grande parte, ao sentimento de que o Reagan na Nicarágua. Até o advento impre-
país deveria estar fazendo melhor uso de seu visto de Gorbachev, em 1985, a aliança oci-
poder em vez de fazer acordos com um ad- dental estava unida, pelo menos superficial-
versário que estava ficando mais forte e não mente, por trás das atitudes duras expressas
era digno de confiança. por Reagan, e o desarmamento em todos os
Reagan não foi escolhido pelos líderes níveis, do processo SALT às forças não nu-
políticos do país, e sim por um grupo de cleares, parecia estar paralisado.
conservadores reacionários com dinheiro Entretanto, havia correntes de outro
suficiente para comprar a candidatura do tipo. A virada à direita na Europa limpou
Partido Republicano e, em segundo lugar, o campo na esquerda para uma crítica mais
pelo povo em geral, que gostava de sua per- aguda às políticas norte-americanas do que
sonalidade e simplicidade, e respondeu à sua os partidos de esquerda estavam habituados
redução rasa das questões públicas a compe- a expressar quando governavam. A belico-
tições entre o bem e o mal, nas quais os bons sidade de Reagan em relação à URSS, ainda
precisavam se empenhar com mais fé do que que adequada nos Estados Unidos, encon-
avaliação. Reagan manteve sua popularidade trava pouco eco entre os europeus, que,
e foi reeleito em 1984 com uma margem es- mesmo não gostando e não confiando na
magadora. Ele tinha muito apoio na Europa URSS, estavam convencidos da necessida-
Ocidental, que também se deslocou à direita de de conviver com ela e não acreditavam
no início dos anos de 1980. Na Grã-Breta- que as ameaças e ofensas a que o presidente
nha, a vitória eleitoral de Thatcher, em 1979, parecia naturalmente inclinado fossem um
levou ao poder uma primeira-ministra que caminho sensato. Eles pouco concordavam
60 | PETER CALVOCORESSI

com sua afirmação de uma política de dois tados Unidos. Essa ameaça de estender os
trilhos – força e negociação – e faziam sua efeitos das sanções às empresas europeias
prontidão em negociar parecer vazia e pou- foi considerada impertinente e ilegal. Che-
co sincera, particularmente depois de seu gou-se a um acordo em Versalhes, em junho
discurso desenfreado em Orlando, Flórida, de 1982, que foi imediatamente rompido
em março de 1985, quando ele estigmatizou quando Reagan – contra a opinião de seu
a URSS como o império do mal destinado secretário de Estado, Alexander Haig, que
à lata de lixo da história. Sua crença apa- renunciou – impôs sanções, as quais os eu-
rente de que a URSS poderia ser forçada ropeus ignoraram. No final do ano, a ques-
a se desarmar por um aumento dos arma- tão tinha malogrado, com os governos em
mentos norte-americanos – um programa ambos os lados do Atlântico preocupados
Trident de maior porte, a ressurreição do em garantir a planejada instalação de mís-
descartado bombardeiro B-1, mísseis MX, seis de cruzeiro e Pershing sem muito alar-
todos aprovados pelo Congresso e, no caso de. Pela mesma razão – a solidariedade da
dos MX, ampliados posteriormente – desa- aliança – os desacordos em relação a outras
nimava muitos de seus aliados que o con- questões não eram tratados abertamente (a
sideravam perigoso e tolo, e seu programa parcialidade norte-americana em relação à
“Guerra nas Estrelas”, duas vezes mais. África do Sul e a consequente estagnação
Como pano de fundo, estavam os raios la- das negociações sobre a Namíbia, as políti-
ser, as armas químicas e outras alternativas cas dos Estados Unidos para o Oriente Mé-
às armas nucleares. dio e a América Central) e mesmo a invasão,
Quando o General Jaruzelski impôs a lei sem aviso, de um membro da comunidade
marcial na Polônia e prendeu muitos opo- Britânica, Granada, foi tratada por Thatcher
sitores, Reagan, tratando-o como uma sim- com contenção decorosa em público.
ples marionete do Kremlin, impôs sanções Havia um segundo problema, mais
à URSS e à Polônia, sem consultar seus alia- técnico. Era conveniente manter separadas
dos europeus, que consideraram essas ações as discussões sobre armas nucleares e não
ineficazes e economicamente prejudiciais. nucleares, e dividir as primeiras em dife-
Ele, por sua vez, achava que eles trata- rentes categorias – de longo alcance, inter-
vam a URSS com demasiada suavidade e mediárias e de campo de batalha, mas essa
suas propostas de simplesmente congelar os forma de lidar com o amplo campo do de-
empréstimos à Polônia, ridiculamente fra- sarmamento estava se mostrando irreal.
cas. Surgiu um conflito mais sério quando No centro do SALT estava uma tentativa de
Reagan passou a obstruir a construção de definir limites aos sistemas de lançamento
um gasoduto entre a URSS e a Europa – um que cada lado poderia possuir. A definição
projeto importante para a Europa Ocidental dos números era uma questão para regate-
e para a URSS, mas considerado nos Estados ar. Mais difícil era definir os sistemas que
Unidos como um fortalecimento maligno o tratado poderia cobrir. As armas de cada
dessa, que dobraria suas exportações de gás lado não eram precisamente comparáveis, e
até o final do século e daria a tão necessária tampouco continuava fácil concordar sobre
moeda estrangeira. Usando os eventos na quais eram estratégicas e quais não eram. Os
Polônia para impor sanções contra a URSS, norte-americanos queriam que o tratado in-
Reagan ameaçou as empresas europeias que cluísse o bombardeiro russo Backfire, que,
participassem da construção do gasoduto e com seu serviço de reabastecimento no ar,
tivessem subsidiárias em operação nos Es- podia ser considerado uma arma estratégica
POLÍTICA MUNDIAL | 61

capaz de atingir cidades nos Estados Uni- e 4.000 km. Junto com o avião TU-26 (Ba-
dos; e também aquelas categorias de mísseis ckfire), o SS-20 melhorou muito a posição
móveis (como os SS-16) que, embora clas- russa na Europa. Os membros europeus
sificados como intermediários, eram facil- da OTAN queriam uma arma semelhante
mente conversíveis em mísseis estratégicos dentro do teatro para fazer frente ao SS-20,
SS-20. Os russos estavam tão preocupados reafirmar a credibilidade da estratégia da
com as armas de alcance intermediário da OTAN na Europa e recosturar a ligação eu-
OTAN na Europa quanto com a maior força ro-americana que, os europeus temiam, es-
de contenção baseada nos Estados Unidos. tava ficando puída. Mas os líderes europeus
A URSS estava instalando SS-20s apontados subestimaram a oposição de seus eleitores
a cidades europeias em um ritmo de cer- a essa proliferação de armas nucleares, e a
ca de um por semana e esforçando-se para URSS conseguiu jogar com esse dissenso na
postergar a renovação de armamentos de esperança de fazer com que a determina-
defesa contra eles da OTAN no teatro eu- ção da OTAN de 1979 fosse revertida. Em
ropeu. Sendo assim, a limitação de armas 1981, a OTAN, tentando aplacar as críticas,
estratégicas – a esfera das negociações bi- adotou a “opção zero” para as INF – ou seja,
laterais SALT – já não podia ser desconec- sua eliminação total – na convicção de que
tada do desenvolvimento e da instalação de a URSS a rejeitaria, o que essa imediata-
armas de alcance médio (continental), que mente fez. As manobras continuaram com
envolviam todos os aliados da OTAN, e não uma oferta feita por Moscou de retirar os
apenas os Estados Unidos. SS-20 em troca de um abandono da insta-
A regulamentação de armas interme- lação de mísseis de cruzeiro/Pershing II e
diárias (INF) passou a estar interligada ao uma oferta posterior de destruir números
processo SALT, agora rebatizado de START. consideráveis deles pelo mesmo acordo. A
Durante os anos de 1970, a capacidade nu- chave para essas manobras estava em Bonn
clear da OTAN na Europa residia em aviões e terminou quando o Bundestag confirmou
que lançavam mísseis ar-terra – o britânico a aceitação da cota de Pershing II da Ale-
Vulcan e o norte-americano F-111 – mas manha Ocidental. Sua chegada no final de
diante da instalação do SS-20, a OTAN re- 1983 marcava o fracasso da tentativa russa
solveu, em 1979, instalar novas armas in- de interromper o programa. Moscou for-
termediárias (464 mísseis de cruzeiro, não taleceu suas forças nucleares na Alemanha
balísticos, de baixa altitude e muito preci- Oriental e na Tchecoslováquia e rompeu to-
sos, e 108 mísseis balísticos Pershing II) em das as negociações, incluindo as conversa-
cinco países europeus, reduzindo em cinco ções START sobre armas estratégicas, bem
vezes o tempo necessário para um ataque como as negociações sobre forças de alcan-
retaliatório contra alvos na URSS. Essa de- ce intermediário. Nesse momento, a URSS
cisão, exigida dos norte-americanos pelos se deparava com um evento novo, que ela
europeus e, particularmente, pela Alema- estava ainda mais ansiosa por obstruir do
nha Ocidental, foi, em certa medida, um que a instalação dos mísseis de cruzeiro e
erro de cálculo. O SS-20, que começou a Pershing II: a Iniciativa de Defesa Estraté-
substituir os SS-4 e os SS-5 a partir de 1976, gica (Strategic Defence Initiative, SDI) de
era um lançador móvel com três ogivas e Reagan, revelada em 1982. A SDI enfatizava
alcance de 5.000km: o SS-4 e o SS-5, em a distinção entre armas nucleares ofensivas
uso desde 1959 e 1961, respectivamente, ti- e defensivas. Consistia em novas propostas
nham ogivas únicas com alcances de 2.000 surpreendentes para a defesa contra ataques
62 | PETER CALVOCORESSI

nucleares que, se implementados, destrui- cortar custos para salvar a URSS da catás-
riam mísseis nucleares depois de eles serem trofe, e Reagan, coincidência ou não, deci-
disparados e, assim, davam proteção contra diu mudar de papel, passando de Grande
um primeiro ataque. O presidente propôs Flagelo a Grande Pacificador. Em 1985, os
gastar 26 bilhões em pesquisa nos primei- dois líderes se reuniram em Genebra. Não
ros cinco anos. Esse custo imenso e as im- se chegou a qualquer acordo de maior con-
plicações para a economia e o orçamento sequência, mas eles se reuniram e – como
norte-americanos (que ele prometera redu- quando Napoleão e Alexandre se reuniram
zir) aumentaram o ar de fantasia implícito em seu barco em Tilsit – havia uma espé-
no apelido de Guerra nas Estrelas da SDI. cie de humanidade no simples evento que
Também havia dúvidas mais sóbrias. Mui- agradava os observadores e foi considerado
tos especialistas consideravam as propostas uma demonstração de postura de estadis-
intrinsecamente inviáveis e mesmo absur- ta. Mais potente foi o fato inegável de que
das. Elas não eram passíveis de ser testadas a URSS era incapaz de financiar a Guerra
em qualquer grau preciso, com exceção da Fria e que os Estados Unidos também esta-
guerra. vam avançando rumo à insolvência. Quan-
Elas estavam sujeitas à objeção de que, do se deram conta da depreciação de seu
quando fossem desenvolvidas, também se- status de superpotências no mundo, ambos
riam desenvolvidas medidas contrárias. Elas foram forçados a reconhecer a necessidade
pareciam implicar a transgressão ou a críti- de se desarmar.
ca ao Tratado ABM de 1972, ou uma solici- A posição sobre o desarmamento
tação para emendá-lo, o que daria à URSS quando Gorbachev subiu ao poder era a
uma chance, ao recusá-la, de provocar no- seguinte: a redução de forças não nuclea-
vos atritos nas relações entre os Estados res na Europa estava sendo discutida em
Unidos e seus aliados europeus (Washing- Viena desde 1974 entre todos os membros
ton começou a afirmar, corretamente, que (22) da OTAN e o Pacto de Varsóvia, em
o tratado ABM já tinha sido rompido pela discussões chamadas de Redução Mútua e
URSS.) E mais importante: a SDI visava a Equilibrada de Forças (MBFR, Mutual and
substituir a dissuasão por defesa e estava Balanced Force Reductions). As primei-
fadada a minar a primeira, que, ainda que ras propostas para reduzir as forças con-
imatura e problemática, tinha ajudado a vencionais na Europa Central foram feitas
manter a paz entre as superpotências por pela OTAN em 1969 e 1970, e, em 1973, a
uma longa geração. Na Europa Ocidental, os organização propôs um corte de 15% por
governos não estavam dispostos a ser muito parte de ambos os lados no setor central,
críticos abertamente, em parte porque não a ser seguido de uma redução a 700 mil,
queriam aumentar as divergências dentro a qual, proporcionalmente, seria um corte
da OTAN, mas também porque Reagan os maior para a aliança de Varsóvia do que
convidou para participar das pesquisas, e para a OTAN. O Pacto de Varsóvia respon-
eles achavam, equivocadamente, que havia deu propondo cortes iniciais de 20 mil em
muito dinheiro a ser ganho com a aceitação. ambos os lados, seguidos de uma redução
O cenário do desarmamento foi trans- de 5% e de outra, de 10%. Esse esquema,
formado por uma mudança de liderança mais proporcional do que numérico, refle-
em Moscou e uma mudança de disposição tia, em números, a vantagem que o Pacto
em Washington. Gorbachev era uma vas- de Varsóvia estava disposto a manter. A
soura nova que precisava, acima de tudo, OTAN, por outro lado, privilegiava uma
POLÍTICA MUNDIAL | 63

abordagem principalmente numérica, le- tanques. Uma Convenção da CFE, de 1990,


vando a uma paridade em números que ela foi confirmada e aprofundada em 1997.
não possuía. Depois dessas primeiras apos- No campo nuclear, tanto armas estra-
tas, não aconteceu muito mais e ninguém tégicas quanto intermediárias estavam em
parecia ter pressa para que acontecesse, até discussão na esfera das superpotências, as
1979, quando Brejnev – possivelmente para primeiras integralmente, as segundas em
semear dúvidas entre os aliados da OTAN um nível básico. Em sua primeira reunião,
sobre a conveniência do programa da or- em Genebra, Reagan e Gorbachev se decla-
ganização para modernizar suas armas in- raram favoráveis a reduzir pela metade suas
termediárias – anunciou a iminente retira- armas nucleares de longo alcance e chegar
da de mil tanques e de 20 mil homens da a um acordo provisório sobre INF. Gorba-
Alemanha Oriental. As conversações con- chev herdou o fracasso de seus antecessores
tinuaram, contudo, a ser prejudicadas por em impedir a instalação das novas INF da
estatísticas inadequadas e suspeitas e pelo OTAN na Europa e estava ansioso para usar
problema da verificação. sua posição de barganha com relação a ar-
Elas foram finalizadas em 1989, depois mas estratégicas para interromper a SDI de
de quase 500 sessões, e incluídas em um Reagan. Depois de Genebra, ele tentou ace-
novo colóquio em Viena, no qual todos lerar o processo de desarmamento com uma
os países da Europa estavam envolvidos e proposta-surpresa para a eliminação de to-
a questão foi ampliada à região inteira, do das as armas nucleares de qualquer catego-
Atlântico aos Urais. Essa conferência foi ria até o ano 2000. Os Estados Unidos res-
chamada de Forças Convencionais na Eu- ponderam com um pacote misto que repetia
ropa (CFE, Conventional Forces in Europe). a meta de Genebra para armas estratégicas
Um grupo ainda maior, de 35 Estados – 33 e a acoplava à remoção de todas as INF da
na Europa, mais Estados Unidos e Canadá Europa dentro de três anos e à tentativa con-
– derivado do Helsinki Final Act, em 1975, tinuada de acabar com os desequilíbrios nas
e sua conferência de revisão, vinha discutin- forças convencionais dos dois lados. Gorba-
do desde 1983 a segurança e cooperação na chev se declarou flexível com relação às INF
Europa (Conference on Security and Coo- e disposto a aceitar um corte em armas es-
peration in Europe, CSCE) e convocou, em tratégicas – 30 em vez de 50% – e também
1986, em Estocolmo, uma Conferência so- alterou suas táticas sobre a SDI, sugerindo
bre Medidas para a Construção de Confian- que se poderiam permitir algumas pesqui-
ça, Segurança e Desarmamento na Europa sas desde que os Estados Unidos aceitassem
(Conference on Confidence-and Securi- seguir estritamente o tratado sobre ABMs
ty-Building Measures and Disarmament in pelos próximos 15 ou 20 anos. Assim, ele
Europe, CDE). Embora a função das nego- definiu o desenvolvimento da SDI firme-
ciações MBFR/CFE fosse reduzir o tamanho mente dentro do regime existente de ABM e
das forças armadas da OTAN e do Pacto de defendeu um tempo preciso durante o qual
Varsóvia na Europa Central e além, a CDE ele não seria emendado. Os Estados Unidos,
estava preocupada com os movimentos des- embora sustentando a proposta de redução
sas forças e a definição de regras para evitar de armas estratégicas à metade, propuseram
ataques-surpresa (e o medo deles) por meio que o tratado ABM fosse garantido por sete
de medidas como notificação antecipada de anos e meio, sob a condição de que as armas
movimentos que envolvessem mais do que da SDI pudessem ser instaladas a partir de
um determinado número de homens ou 1992 (na verdade, elas não poderiam estar
64 | PETER CALVOCORESSI

prontas para instalação antes dessa data) e concessões sobre a SDI, Gorbachev não as-
que depois desse ano, a tecnologia da SDI sinaria acordo algum. Ele tinha fracassado
seria compartilhada com a URSS. A essência em seu principal objetivo.
da posição norte-americana era garantir a li- Ele voltou ao ataque em 1987, repetin-
berdade de ação depois de um determinado do sua oferta de Reiquejavique sobre as INF
período durante o qual os limites do tratado (0 na Europa, 100 na Ásia), mas sem vin-
sobre ABMs seriam observados. Essa era a culá-la ao acordo sobre a SDI. Os Estados
posição quando Reagan e Gorbachev se reu- Unidos responderam concordando, desde
niram em Reiquejavique, na Islândia. Eles que as INF sobreviventes da URSS estives-
queriam, sem ter dito, dar um fim à corrida sem fora do alcance da Europa Ocidental e
armamentista. Gorbachev também queria do Japão. Essa aproximação trouxe à tona a
melhorar as relações com a Europa Ociden- questão das armas de curto alcance, que foi
tal antes de abandonar o restante dela. Seu evitada em Reiquejavique, e Gorbachev veio
objetivo explícito era afirmar a boa vonta- com mais uma surpresa ao propor sua eli-
de estabelecida em Genebra; interromper minação total (o terceiro “0”). Ele também
a SDI; afirmar o texto literal do tratado so- concordou em abrir mão das cem INF na
bre ABMs por um tempo determinado e, se Ásia. O resultado foi um tratado sobre INF,
possível, fortalecer suas disposições sobre os concluído em Washington no final do ano e
testes ao fazer os Estados Unidos concorda- em vigor a partir de junho de 1988, pela des-
rem com a proibição dos testes no espaço, truição de todas as armas INF até 1991, e a
ainda que fossem permitidos testes de labo- URSS deveria destruir mais do que o dobro
ratório; remover todas as INF da Europa; e dos mísseis e lançadores da OTAN.
negociar a redução de armas estratégicas em Um compacto START I foi finalizado
50 ou, pelo menos, 30%. depois de uma gestação de 10 anos, quando
Gorbachev estava disposto a limitar as foi assinado pelos presidentes Bush e Gor-
INF na Ásia a 100 e a discutir – e, nesse ín- bachev em 1991. Foi seguido, dois anos mais
terim, congelar – as armas de curto alcan- tarde, pelo START II, assinado por Bush e
ce (menos de 500 km). Ele rejeitou a oferta Yeltsin, para entrar em vigor desde que o
de Reagan para compartilhar a tecnologia START I entrasse. Segundo o START II, os
SDI. Esse, por sua vez, queria que todas as Estados Unidos e a Rússia deveriam redu-
INF fossem eliminadas da Ásia bem como zir seus estoques de armas nucleares estra-
da Europa, e não estava disposto a ceder em tégicas baseadas em terra, de 12.600/11.000
nada com relação à SDI. A surpresa diante a 3.500/3.000, armas baseadas no mar para
dessas interações se transformou em per- 1.750 cada, e eliminar todas as armas trans-
plexidade diante de uma nova proposta que portadas por MIRV – tudo isso em 10 anos.
parecia que seria aprovada por ambos os lí- Algumas variações, implicando conces-
deres, embora tenham surgido algumas dú- sões por parte dos Estados Unidos, foram
vidas posteriores sobre o apoio de Reagan. acertadas para dar conta de objeções espe-
A proposta era eliminar completamente as cíficas por parte dos russos. A implementa-
armas nucleares de todos os tipos dentro de ção desses acordos foi complicada quando
10 anos, na forma de eliminação de 50% de uma das partes se dividiu em vários países,
armas nucleares nos cinco anos seguintes e quatro dos quais – Rússia, Ucrânia, Bielor-
os outros 50% nos outro cinco anos. A eufo- rúsia e Cazaquistão – possuíam em seu ter-
ria confusa que emanava de Reiquejavique ritório armas que estavam dentro do âmbito
virou desânimo quando ficou claro que, sem dos acordos. Os três últimos desses países
POLÍTICA MUNDIAL | 65

aceitaram separadamente implementar os chegaram a existir, e a OTAN foi refor-


acordos, limpar seus territórios de todas as mulada como um elo em uma corrente
armas relevantes dentro de sete anos e tam- ou escada cuja credibilidade dependia da
bém aderir ao Tratado de Não Proliferação existência de armas nucleares de nocivida-
(A Ucrânia tergiversou, mas acabou se en- de cada vez maior. A doutrina de resposta
quadrando). Entre a assinatura dos dois tra- flexível passou por uma série de fases. A
tados, as superpotências tomaram decisões invenção de armas nucleares de curto al-
unilaterais que reduziram ainda mais seus cance possibilitou à OTAN planejar forças
arsenais estratégicos e não estratégicos. O menores com armas mais ferozes, mas, no-
START II foi ratificado pelo senado norte- vamente, os alvos (estabelecidos em 1957)
-americano em 1996, mas o parlamento rus- não foram atingidos. O papel da organiza-
so suspendeu sua concordância na esperan- ção foi definido como o de uma agência
ça (inicialmente) de garantir modificações de postergação. Com armas não nucleares,
favoráveis e constranger Yeltsin. com armas nucleares de curto alcance ou
Para desviar desse obstáculo, os gover- com armas nucleares intermediárias, a
nos dos Estados Unidos e da Rússia deram OTAN resistiria a um ataque e faria com
início a um START III. Segundo um acordo que o atacante pensasse duas vezes antes
estabelecido entre os dois presidentes em de ir adiante com suas operações. Embora
Helsinque em 1997, ele deveria entrar em não se pudesse provar o quão ridícula era
operação somente após a implementação essa visão de um futuro conflito, era difí-
do START II, que foi ampliado de 2003 até cil conceber uma guerra evoluindo dessa
2007. O START III deveria reduzir ainda forma, de modo que a função militar da
mais os arsenais nucleares dos dois países OTAN era sempre ambígua, baseando-se
e dispunha também, pela primeira vez, so- no pressuposto de que o primeiro passo
bre a destruição de ogivas, bem como sobre do agressor seria dado sem muita refle-
meios para seu lançamento – uma inovação xão, mas em pouco tempo se faria com que
que deve acarretar procedimentos de verifi- esse mesmo agressor imprudente pensasse
cação peculiarmente rigorosos. melhor. Entretanto, fossem quais fossem
A corrida armamentista das super- as prováveis questões práticas envolvidas,
potências foi uma catástrofe econômica a teoria demandava uma resposta gradual
sustentada pela psicologia da Guerra Fria, que, considerando-se a composição da
cuja suavização criou novos problemas OTAN, era uma resposta gradual nuclear.
para ambos os lados: para os russos, como Quando Reagan foi convencido, em Rei-
preservar uma imagem de superpotên- quejavique, a aprovar as opções zero para
cia; para o Ocidente, o que fazer com a as INF e as armas estratégicas, ele estava
OTAN. A organização devia sua eficácia a removendo os degraus na escada – e, ao
seu imenso poder – principalmente norte- mesmo tempo, desmantelando o guar-
-americano –, e esse poder tinha mascara- da-chuva nuclear norte-americano que os
do as dúvidas sobre a credibilidade de suas europeus tinham aprendido a considerar
sucessivas estratégias. Nos primeiros anos como a maior garantia de sua segurança.
de sua formação, a OTAN tinha adotado, O dilema europeu foi intensificado quan-
em Lisboa, em 1952, um programa para do Gorbachev propôs aplicar a opção zero
criar forças, incluindo unidades alemãs, também a armas nucleares de curto alcan-
capazes de lutar em uma guerra não nu- ce, ou de campo de batalha. A resposta
clear prolongada, mas essas forças nunca não poderia ser mais flexível, e um ataque
66 | PETER CALVOCORESSI

russo começaria com vantagens considerá- a Europa Central e Oriental, estava em de-
veis, compensadas somente pelo seu medo cadência econômica aguda e ameaçada de
de uma reposta total por parte dos Estados desintegração. A depreciação dos Estados
Unidos, com o que pudesse ter restado de Unidos, embora de uma ordem muito di-
uma força estratégica de mísseis. ferente, era muito menos impressionante,
As interações Reagan–Gorbachev de considerando-se sua superioridade inques-
1986-1987 e os posteriores acordos START tionada na geração passada, a continuidade
contiveram a corrida armamentista, mas de seus recursos massivos e sua produção
não deram a Gorbachev aquilo de que ele industrial e agrícola.
necessitava no longo prazo. Essa fase da O declínio no poder e no prestígio nor-
Guerra Fria terminou sem qualquer acor- te-americanos foi autoinduzido, uma con-
do, nem mesmo discussão, sobre as rela- sequência de erros e avaliações equivocadas
ções dos oponentes em seu principal cam- de gestão econômica e políticas externas. As
po de batalha: a Europa. trapalhadas nas questões externas ficaram
A questão foi tratada de forma apenas mais evidentes na América Central, onde
fugaz e indireta quando os Estados Uni- Reagan fracassou em sua intenção declarada
dos, em vez de fazer a paz ou pelo menos de pacificar a pequena república de El Salva-
tentar construir um relacionamento viável dor e torná-la segura para uma democracia
com a nova Rússia que surgia, deram prio- de direita razoável. No Panamá, os Estados
ridade a trazer os ex-satélites de Moscou Unidos subsidiaram um conhecido trafican-
para dentro da OTAN. O fato de Gorba- te de drogas e, quando seus crimes se tor-
chev não ter conseguido se sair melhor naram visíveis, não conseguiram tirá-lo do
provavelmente contribuiu para sua própria poder com subornos e então recorreram à
queda e para a política incoerente, embora invasão militar com um pretexto inconsis-
corajosa algumas vezes, de Yeltsin, legando tente. Na Nicarágua, Reagan não conseguiu
a Putin um país isolado e em desintegra- derrubar o regime sandinista, apesar de tra-
ção, com suas forças remanescentes mui- var uma guerra cara, por meio de outros, e
to superestimadas (como em 1945), mas de descumprir claramente as leis interna-
adequadas se ele fosse capaz de conquistar cionais, razão pela qual os Estados Unidos
pró-cônsules e oligarcas locais, derrotar o foram censurados pelo Tribunal Interna-
separatismo no Cáucaso e renovar a con- cional de Justiça. Mais tarde, o governo do
fiança do povo russo com a quantidade presidente Daniel Ortega foi derrotado não
certa de bravata. pelas armas, e sim pelas sanções econômicas
que levaram os nicaraguenses a votar contra
Ortega em eleições de retidão democrática
As perplexidades nos surpreendente. Esses fracassos contra vizi-
Estados Unidos nhos fracos no próprio continente america-
no indicavam uma compreensão inadequa-
Foi na década de 1980 que as superpotên- da sobre o uso do poder. Os Estados Unidos
cias deixaram de ser consideradas tão aci- eram a maior potência militar e industrial
ma de todos os outros países a ponto de do mundo e, mesmo assim, não foram ca-
constituir uma espécie separada. Isso se pazes de operar de forma eficiente em sua
aplicou permanentemente à URSS, que não condição de potência regional.
parecia mais ser páreo para os Estados Uni- No Oriente Médio, os Estados Unidos,
dos, não tinha mais capacidade de dominar diante da perda de seu aliado, o xá do Irã,
POLÍTICA MUNDIAL | 67

e da tomada de reféns na embaixada nor- de armamentos, mas também em termos


te-americana pelo novo regime, afunda- de concessões políticas, como a retirada is-
vam-se em contradições e subterfúgios: o raelense do sul do Líbano e das Colinas de
imperativo moral de resgatar reféns entrava Golan e a libertação de prisioneiros que esta-
em choque com a determinação publica- vam no Kuwait sob acusação de terrorismo
mente reiterada de não deixar que o terro- no Líbano. Um refém norte-americano foi
rismo compensasse. Nas eleições de 1980, libertado em troca de mais peças de repo-
a libertação dos reféns foi obstruída – para sição, e outro, por mais peças. Houve mui-
prejuízo de Carter e benefício de Reagan. tas reuniões clandestinas e muito engano
Sendo assim, ela foi realizada por meio de parte a parte, por meio de exageros. Os
de negociações secretas que envolviam o procedimentos se tornaram de conhecimen-
fornecimento de armas ao Irã via Israel, en- to público. Reagan demitiu seu assessor de
tre 1980 e 1986, quando o escândalo público segurança nacional, o almirante John Poin-
pôs um fim a isso. Eram cobrados preços dexter, e seu principal subordinado, o coro-
altos pelas armas, e o dinheiro era usado nel Oliver North, que conseguiram destruir
para armar os Contras da Nicarágua através muita documentação antes de sair de seus
de desvios, com que os conspiradores – que cargos. As primeiras declarações públicas
incluíam o presidente Reagan e o vice-pre- de Reagan eram falsas, e, embora ele sou-
sidente Bush – enganaram o Congresso e o besse que a emenda Boland estava sendo
povo: uma combinação de ilegalidade com descumprida de várias formas, seu conheci-
hipocrisia, que o presidente e seus assesso- mento concreto das operações Irã-Contras
res tentaram justificar com motivos vaga- não pode ser provado no restante de seu
mente ideológicos. mandato. Em testemunhos posteriores, ele
A segunda ação, associada a essa, surgiu alegou, mais de cem vezes, incapacidade de
a partir da determinação de seguir arman- lembrar de questões cruciais, de modo que
do e financiando a oposição dos Contras não ficou claro se não lhe contaram ou se ele
ao governo nicaraguense de forma oculta e não entendeu, ou se nenhuma dessas eva-
descumprindo a emenda Boland, segundo sivas era verdadeira. Sua reputação de falar
a qual, em 1984, o Congresso havia tomado diretamente, de ser competente e dedicado
uma decisão contrária ao fornecimento de às tarefas não se recuperou. A importância
mais ajuda militar. A abordagem em rela- da questão Irã-Contras não foi enfraquecer
ção ao Irã, implementada em conjunto com os Estados Unidos militarmente, e sim cha-
traficantes de armas israelenses e de outras mar a atenção do mundo e levantar questões
nacionalidades, envolvia o fornecimento de sobre a confiabilidade do país em questões
armas ao Irã para que esse guerreasse contra mundiais. O cheiro de escândalo foi mais
o Iraque. Nenhuma arma iria diretamente danoso por ter vindo não mais de uma déca-
ao Irã oriunda dos Estados Unidos, e sim da depois do comportamento espantoso de
de estoques em Israel, que os Estados Uni- Richard Nixon, que foi obrigado, em 1974,
dos reabasteceriam. Membros importantes pela exposição de sua velhacaria e falsida-
do governo norte-americano viajaram em de, a renunciar à presidência e a transferi-la
segredo a Teerã com uma remessa de peças a um parlamentar de capacidade medíocre,
para lançadores de mísseis. Ambos os lados Gerald Ford, para se livrar do impeachment.
estavam esperando mais do que poderiam Para a aliança euro-americana, es-
razoavelmente esperar obter naquela épo- ses problemas nos Estados Unidos foram
ca. O Irã elevou suas exigências, não apenas complicadores, já que a posição do país na
68 | PETER CALVOCORESSI

aliança era de importância singular: não era garantir o fluxo de petróleo pela força das
concebível qualquer aliança antirrusa sem armas, e relutavam em participar da confe-
os Estados Unidos enquanto prevalecesse a rência de consumidores proposta pelos Es-
Guerra Fria. tados Unidos como forma de fazer pressão
A aliança sempre sofrera pressões, em- sobre os produtores árabes. Por razões se-
bora elas geralmente fossem resolvidas pelo melhantes, a França se recusava a partici-
caráter crasso das políticas russas na Europa par da Autoridade de Energia criada pelo
e em outros lugares. O atrito mais grave nos comitê da Organização para a Cooperação
anos de 1960 foi a aspereza entre França e e Desenvolvimento Econômico (OCDE)
Estados Unidos, que fez com que a primei- ou de um acordo de compartilhamento de
ra permanecesse somente pela metade na petróleo entre consumidores. Os europeus
aliança, mas, pouco depois da saída de De preferiam uma conferência entre consumi-
Gaulle, unidades francesas mais uma vez dores e produtores, ou seja, negociação em
participaram de exercícios navais no Medi- vez de confronto.
terrâneo (1970). Mesmo assim, os anos de Nesse momento, a aliança estava prati-
1970 muitas vezes foram marcados pela in- camente em suspensão, e as questões não
quietude. A OTAN não era mais um grupo melhoraram com a invasão de Chipre pela
preponderantemente norte-americano com Turquia em 1974. A Grécia, responsabili-
instalações europeias: nos palcos de guerra zando os Estados Unidos por não assumir
e em águas europeias, os aliados europeus uma posição mais firme contra a explo-
estavam fornecendo 75% das forças aéreas, ração excessiva por parte da Turquia da
80% das forças navais e 90% das terrestres. inepta interferência da ditadura grega no
A contribuição dos norte-americanos era Chipre, deixou de participar ativamente de
simbólica e financeiramente crucial, de for- operações da OTAN – um protesto causa-
ma que eles foram levados a afirmar que a do pelos eventos no Chipre, mas também
Europa não poderia ter esse guarda-chuva baseado em um antiamericanismo mais
militar norte-americano oneroso e, ao mes- difundido que surgiu a partir da benevo-
mo tempo, obstruir as políticas dos Estados lência dos Estados Unidos para com os
Unidos em outras direções. A guerra no ditadores no período de 1967 a 1974. Essa
Vietnã foi ferrenhamente criticada na Euro- hostilidade grega não era ajudada por um
pa, mas a guerra de 1973 no Oriente Médio sentimento equivalente dos turcos, já que o
elevou a má vontade ao de nível governo. Os Congresso dos Estados Unidos, tomando o
Estados Unidos ficaram irritados pelas re- lado da Grécia, aprovou, em dezembro de
cusas da Europa de uso de seus aeroportos 1974, o corte da ajuda à Turquia quando
para a ponte aérea até Israel e por sua apres- o governo turco assumiu o controle de 24
sada aceitação das ameaças árabes de boi- instalações militares norte-americanas na
cote do petróleo. Os europeus respondiam Turquia, concluiu um tratado de amizade
dizendo que dependiam do Oriente Médio com a URSS e aceitou um empréstimo rus-
para 80% de seu petróleo, os Estados Uni- so de alto valor. Na esquina diametralmen-
dos, 5%, repreendendo Washington por im- te oposta do território da OTAN, dois ou-
plementar suas políticas no Oriente Médio tros membros estavam envolvidos em um
sem consultar seus aliados e depois esperar conflito diferente que também tinha impli-
que eles ajudassem. Os europeus ficaram cações para as instalações da OTAN. Em
ainda mais indispostos quando Washing- 1972, o parlamento islandês decidiu esten-
ton parecia estar cogitando esquemas para der os limites de pesca a 50 milhas, o que
POLÍTICA MUNDIAL | 69

afetava particularmente a Grã-Bretanha e Grã-Bretanha, já que não desejavam ver as


a Alemanha Ocidental, em uma alteração instalações estratégicas da organização pos-
unilateral de disposições do tratado de tas em risco pela ação islandesa, semelhante
1961. Ao mesmo tempo, o Althing* rejei- à da Grécia ou Turquia.
tou por antecipação um recurso ao Tribu- No meio desses complicados conflitos
nal Internacional de Justiça (o qual decidiu, e disputas políticas, Nixon repreendia seus
em agosto de 1972, que barcos da Grã-Bre- aliados por se unir contra os Estados Uni-
tanha e da Alemanha Ocidental tinham di- dos. Seu assessor de segurança nacional e
reito de pescar dentro de 12 milhas). secretário de Estado, Henry Kissinger, não
A Alemanha Ocidental e a Islândia che- menos irritado, mas mais construtivo, pro-
garam a um acordo sobre a disputa em 1975, pôs, em 1973, uma nova Carta Atlântica
mas, com a Grã-Bretanha, cujos interesses para definir metas comuns dos Estados Uni-
foram afetados com mais gravidade, a ação dos, Europa Ocidental e Japão (acrescenta-
da Islândia levou a conflitos armados na das em função dos conflitos que os Estados
medida em que aquela dotou seus barcos de Unidos tinham com europeus e japoneses).
pesca de proteção naval contra os guardas Os norte-americanos, dizia Kissinger, es-
costeiros armados da Islândia que tentavam tavam preparados para defender a Europa
afastá-los ou destruir seus equipamentos. Ocidental e continuavam a aprovar a unida-
No final de 1973, chegou-se a um acordo de europeia, mas ele se opunha a que os eu-
de dois anos que limitava as áreas onde os ropeus organizassem, entre si e sem consul-
barcos britânicos podiam pescar e o tipo de tar Washington, políticas a que os Estados
barco que poderia ser usado. Essa era uma Unidos pudessem fazer objeção – o que era
maneira de limitar a pesca. A Islândia, con- exatamente a que os europeus se opunham.
tudo, também declarou que estenderia seus Os anos de 1970 terminaram com a inva-
direitos exclusivos de pesca a 200 milhas em são russa do Afeganistão, que evocou em
1975. A disputa permaneceu sem ser resol- Washington propostas de ação que muitos
vida legalmente, mas as tensões foram redu- europeus consideravam inúteis, enquan-
zidas em 1976 por um considerável aban- to, em relação ao Oriente Médio, os líderes
dono por parte da Grã-Bretanha de direitos europeus, céticos em relação aos acordos
que tinham fundamentação razoável. Para a de Camp David, dispuseram-se a formular
Islândia, o episódio foi uma afirmação clara uma política europeia que, embora expressa
de reivindicações econômicas vitais, além como uma sequência de Camp David, era
das vantagens de operar em águas nacionais; mais uma alternativa a uma política que, na
o verdadeiro constrangimento dos britâni- visão deles, tinha fracassado.
cos como um todo (diferentemente da co- Além disso, havia a questão do finan-
munidade ligada à pesca); a probabilidade ciamento da aliança. Por anos, os Estados
de que a conferência de então sobre os di- Unidos assumiram uma parcela despropor-
reitos marítimos recomendasse, de qualquer cional dos custos e consideravam esse fardo
forma, ampliações substanciais de limites de como inevitável e justo, dado que a Europa
pesca geralmente aceitos; e a conexão da estava prostrada após a Segunda Guerra
OTAN, que poderia ser usada para que os Mundial, mas ela se recuperou (com muita
Estados Unidos exercessem pressão sobre a ajuda norte-americana) enquanto eles co-
meçaram a sentir as dores desconhecidas da
* N. de R.: Althing é como se chama o Parlamento Nacional sobrecarga econômica. Os europeus tiveram
da Islândia. que reconhecer a desigualdade desse fardo,
70 | PETER CALVOCORESSI

mas, quando a OTAN, em 1977, decidiu que cidiu-se usar a ocasião para obter condições
todos os seus membros deveriam aumentar da URSS. O Ocidente e os neutros combi-
seus gastos militares em 3% por ano em ter- naram de rejeitar uma proposta russa de
mos reais, muitos europeus não cumpriram declarar as fronteiras da Europa imutáveis,
suas promessas. Nesse contexto, a questão e a conferência só declarou que elas não de-
da liderança foi mais um elemento de indis- veriam ser alteradas pela força. Mais ainda,
posição. Só poderia haver um líder – o pre- o ocidente e os neutros insistiram em uma
sidente dos Estados Unidos. interpretação mais ampla de segurança, in-
Mas o respeito pela presidência foi pro- cluindo não apenas disposições militares,
fundamente arranhado quando Lyndon mas também entendimento mútuo. Con-
Johnson decidiu não concorrer à reeleição sequentemente, o relatório final, conheci-
porque achava que tinha fracassado. Todos do como Ato Final de Helsinque, continha
os presidentes depois dele contribuíram, às declarações – não obrigatórias legalmente,
vezes profundamente, para o declínio da mas, mesmo assim, formais e normativas
reputação da presidência entre europeus – relacionadas a contatos governamentais
e, assim, fortaleceram o antiamericanismo e não governamentais para cooperação
latente que estava muito abaixo da superfí- econômica, social e técnica e aquilo que se
cie na opinião europeia. Mesmo assim, esse chamou de cooperação em campos huma-
antiamericanismo não era tanto o alicerce nitários. Essa expressão abria as portas à
para uma política alternativa, sendo mais discussão sobre direitos humanos e suas
um luxo emocional. violações. Uma tentativa russa de limitar
Segundo esse padrão, a conferência de o alcance dessas declarações a discussões
Helsinque de 1972-1975 sobre Segurança entre sistemas, em vez de entre países, foi
e Cooperação na Europa (CSCE), com a derrotada. Se tivesse sido aceita, o Ato Final
participação de 35 países, incluindo os Es- teria permitido um debate abstrato sobre os
tados Unidos e o Canadá (que foram acei- méritos e os defeitos dos sistemas capitalis-
tos como membros plenos e essenciais da tas, mas sem críticas às políticas e às práticas
comunidade política europeia), foi a mais de determinados países. A URSS, que tinha
abrangente conferência reunida na Europa desencadeado a Conferência de Helsinque,
desde a guerra e se transformou em uma foi dominada e se arrependeu de ter inicia-
instituição permanente, que representava do esse processo.
um desafio à bipolaridade predominante A conferência estabelecia revisões pe-
gerada pelas superpotências. riódicas da implementação de seus compro-
Quem instigou a conferência de Helsin- missos. A primeira revisão aconteceu em
que foi a URSS. O ocidente correspondeu Belgrado, em 1977, em um clima de consi-
depois de insistir na inclusão dos Estados derável animosidade, nada realizando além
Unidos e do Canadá. O propósito russo era de concordar em se reunir de novo. A reu-
garantir o endosso das fronteiras pós-hitle- nião seguinte começou em Madri, em 1980,
rianas na Europa que não haviam sido rati- depois de prolongadas tentativas russas de
ficadas por qualquer conferência de paz e, suspendê-la. O ocidente fez muito barulho
em segundo lugar, discutir a segurança em com a invasão russa do Afeganistão e a si-
termos de bases militares e quantidade de tuação dos dissidentes da URSS. A França
tropas. Inicialmente, a abordagem ocidental propôs mais uma conferência sobre desar-
à conferência foi uma mistura de tédio com mamento na Europa, e Brejnev falou em
cinismo, mas, ao se aproximar do final, de- tom suave sobre medidas para construir
POLÍTICA MUNDIAL | 71

confiança, que ele estava disposto a estender OTAN e se opunha fortemente à ampliação
a toda a Europa, até os Montes Urais. da organização aos países europeus que es-
Nada havia de novo em qualquer dessas tavam em suas fronteiras. Estes, contudo,
propostas, que só geravam uma determina- queriam entrar para a OTAN assim que
ção de continuar conversando e encontrar fosse possível (a exemplo de vários países
algo para dizer. Mas o grande efeito de Hel- caucasianos e da Ásia Central): havia cerca
sinque estava fora dessas conferências de re- de 20 países batendo à porta da OTAN. En-
visão, já que o processo coincidiu com uma tre os membros europeus, a Alemanha era a
fermentação na Europa Central, que na Po- mais ávida para estender a organização aos
lônia chegou ao nível de revolução política. países entre ela e a Rússia. Em 1993, Volker
As declarações de Helsinque e seus comitês Ruhe, ministro alemão da defesa, defendeu
de supervisão estabelecidos em muitos paí- publicamente uma associação da Polônia,
ses (incluindo a URSS) para monitorar o Hungria e as Repúblicas Tcheca e Eslovaca
comportamento dos signatários contribu- com a OTAN (e UEO)*. Em termos gerais,
íram para essa turbulência de esperanças, os membros de então queriam preservar a
que não eram quantificáveis, mas estavam aliança como um símbolo da preocupação
longe de ser insignificantes. Depois de 1989, dos Estados Unidos com a Europa e seu en-
a CSCE se tornou o fórum pan-europeu volvimento nas questões do continente, e
considerado necessário depois da demoli- como um alerta de que um ressurgimento
ção da Rússia e do poder comunista na Eu- do poder russo não poderia ser descartado
ropa Central e Oriental e da consequente permanentemente. Os Estados Unidos con-
confusão com relação aos propósitos e uti- ceberam um plano chamado Parceria pela
lidade da OTAN. Em 1990, os participantes Paz, visando a associar os antigos inimigos
da CSCE estabeleceram uma sede perma- comunistas à OTAN, em grande parte para
nente como um passo para se afastar da bi- postergar a questão da participação plena:
polaridade rumo a uma ordem nova, ainda eles seriam admitidos em uma fila, ou an-
que pouco percebida, na qual o confronto tessala. Yeltsin solicitou a entrada (1992) se
entre europeus seria relegado, se não à lata qualquer outro fosse admitido; anunciou
de lixo, às páginas da história. A CSCE se (1993) em Varsóvia que não fazia qualquer
dispunha a se tornar a organização regional objeção à participação da Polônia, mas, em
da Europa nos termos do artigo 52 da Carta Moscou, algumas semanas mais tarde, co-
da ONU com os Estados Unidos e o Canadá municou formalmente a os Estados Unidos
como parte da Europa nesse contexto. Em e outros países líderes da OTAN que sua
1994, quando tinha 53 membros, a CSCE foi aliança não deveria se ampliar em direção
rebatizada de OSCE (O de Organização). ao leste; declarou (1995) sua disposição
Mas a OSCE não era – ou ainda não para se somar à Parceria e sua oposição aos
era – uma base segura para os Estados Uni- exercícios da OTAN em conjunto com os
dos na Europa. Não apenas não havia sido novos membros propostos (esse foi um ano
testada, como também não tinha forças ar- de nacionalismo pré-eleitoral na Rússia);
madas. A OTAN e o Tratado do Atlântico protestou em vão contra a insistência norte-
Norte continuavam sendo os instrumentos
práticos e legais para a participação norte-
-americana nas questões europeias. Por ou- * N. de R.T.: União Europeia Ocidental: Organização Intergo-
vernamental Europeia de defesa criada em 1948, que serviu
tro lado, embora fosse um membro aceitável de base para a criação da OTAN, embora mantivesse sua exis-
da OSCE, a Rússia era um óbvio inimigo da tência autônoma.
72 | PETER CALVOCORESSI

-americana de que as operações militares na comprometer com ações militares no caso


Bósnia estivessem sob comando da OTAN; de um conflito desse tipo, nem era prová-
aceitou (1997) um compromisso da OTAN vel que o fizessem (como testemunha a re-
de não instalar armas nucleares no território lutância do país em se envolver nas guerras
de novos membros (a OTAN não fez isso). da Iugoslávia). Ao aceitar as obrigações do
Yeltsin tinha poucas opções reais. Ele artigo 1 do Tratado do Atlântico Norte no
aceitou o que poderia obter, que era um contexto pós-soviético, os Estados Unidos
acordo estabelecendo consultas no âmbito deram o passo penoso de expôr sua integri-
da OTAN, sem qualquer participação em dade ao descrédito. Mas a OTAN era uma
operações nem em políticas. Uma posição organização consolidada, com um histórico
semelhante foi oferecida à Ucrânia. de eficiência, o que a OCSE não era. Sem ser
Os Estados Unidos tinham opções e redirecionada e ampliada, a OTAN prova-
estavam divididos em seus próprios órgãos velmente definharia; o grosseiro nacionalis-
superiores em relação a qual delas esco- mo russo de Zhirinovski e outros como ele
lher. E escolheram implementar a expansão lembrava os norte-americanos que a ami-
da OTAN à custa, se necessário, de atritos zade russo-americana poderia ser tão irreal
com a Rússia – fazendo isso em etapas, que nos anos de 1990 quanto tinha sido nos tem-
agradaram os poucos favorecidos e desagra- pos de Roosevelt e Stalin. A OTAN deveria
daram os demais. Por consenso dentro da permanecer e – ver o Capítulo 7 – ser usada
aliança, a Polônia, a Hungria e a República de forma mais agressiva do que nunca.
Tcheca foram postas no início da fila. Ou- Nas questões econômicas, Reagan her-
tros candidatos do primeiro lote, a Eslovê- dou problemas complexos e fez com que
nia, patrocinada pela Itália, a Romênia, pela piorassem. A supremacia dos Estados Uni-
França, e a Estônia, pela Suécia – foram bar- dos no mundo era, antes de tudo, econômi-
rados pelos Estados Unidos com o apoio da ca, e sua fama no decorrer do século tinha
Grã-Bretanha. As negociações com os três resultado de um desempenho incomparável
favorecidos começaram em 1997. do capitalismo norte-americano tanto em
Esse curso de ação tinha implicações tempos de adversidade quanto em épocas
desconfortáveis, pois dava garantias aos de facilidade. Um dos principais elementos
membros novos, sob o Tratado do Atlântico da ordem internacional pós-1945 foi o siste-
Norte, que seria difícil esperar que os anti- ma econômico concebido em 1944 em Bret-
gos cumprissem. Quando o tratado foi assi- ton Woods, que incluía o Banco Mundial e
nado, em 1949, seus autores vislumbravam o Fundo Monetário Internacional (FMI).
agressões por parte da URSS na Europa, Esse sistema pressupunha a ascendência
seus membros europeus estavam unidos na do dólar norte-americano e sacramentava
busca de uma garantia formal de parte dos a importância de taxas de câmbio estáveis
Estados Unidos de que agiriam militarmen- com o próprio dólar vinculado ao preço do
te contra ela, e estes achavam que era do seu ouro (em 35 dólares a onça) – ou o deter-
interesse fazê-lo. Com a URSS dissolvida minando. Em 1945, a pujança da economia
50 anos depois, e nenhum de seus Estados norte-americana e, portanto, do dólar, era
predecessores representando um risco da- axiomática, e, dentro dos anos correspon-
quela natureza em magnitude, a ameaça à dentes a Bretton Woods, os Estados Unidos
paz no continente vinha de disputas dentro exportaram capital em uma escala imensa,
da Europa Central ou Oriental, e os Esta- em parte na aplicação de políticas externas
dos Unidos não estavam interessados em se que demandavam gastos enormes com for-
POLÍTICA MUNDIAL | 73

ças no exterior e, acima de tudo, na Guer- existência de leis de oferta e demanda. Po-
ra do Vietnã, e em parte em desembolsos rém, durante as décadas de 1970 e 1980, os
de capital por corporações que investiam e governos não previam esse desfecho, estando
compravam empresas estrangeiras. mais pressionados pelo colapso do sistema
Ao mesmo tempo, os Estados Unidos monetário de Bretton Woods, particular-
começaram, de forma intermitente a partir mente a desvalorização do dólar em um ter-
de 1959, a ter déficit no comércio exterior e ço em relação ao ouro – uma consequência
a tentar financiar todas essas operações sem da Guerra do Vietnã e de seu financiamento
contribuição dos cidadãos norte-americanos por parte de Washington com empréstimos
na forma de mais impostos – ou, depois de – e o fim da estabilidade do câmbio. Na dé-
1968, com pouca contribuição. O cresci- cada seguinte, de Reagan-Bush, os principais
mento posterior, nos anos de 1960, de pilhas países do mundo em termos econômicos – o
de eurodólares (dólares fora dos Estados Grupo dos Cinco, que passaram a ser sete a
Unidos) aumentou a incerteza sobre a con- partir de 1986, e oito com a Rússia, a partir
tinuação da força do dólar e as dificuldades de 1997 – tentaram formar um sistema pro-
de administrar a moeda norte-americana, visório. A principal função ou esperança do
bem como a própria existência de uma or- Grupo era regular conjuntamente os proces-
dem econômica dominante no mundo. Nos sos econômicos que cada um tinha regulado
anos de 1970, o crescimento industrial dos separadamente até então, desde que houves-
Estados Unidos ficou atrás do japonês, do se soberania real. O Grupo estava tentando
alemão e do francês, e mesmo do italiano, encontrar um lugar entre dois mundos ine-
com os grandes aumentos no preço do pe- xistentes: o do Estado soberano e o de uma
tróleo em 1973 e 1979 – coincidindo com a central de potências. Sua liderança era origi-
conversão dos Estados Unidos em impor- nalmente europeia (franco-germânica, com
tador de petróleo em cifras líquidas e cho- Valéry Giscard d’Estaing e Helmut Schmidt),
cando com o hábito de ter energia barata e depois foi norte-americana. Os acordos
– aumentando o desgaste do dólar e o co- de Plaza (1985) e Louvre (1987) foram uma
lapso do sistema. O preço alto do petróleo tentativa, por parte dos bancos centrais, de
era decorrente, em primeiro lugar, da trans- gerenciar a desvalorização do dólar com me-
ferência de petróleo do Oriente Médio para didas financeiras que não tiveram sucesso
proprietários do próprio Oriente Médio e da porque não foram acompanhadas de medi-
manipulação política e, segundo, da guerra das fiscais também sincronizadas por gover-
e da revolução na região. A OPEP, o cartel nos. As somas muito grandes gastas pelos
formado em 1961, principalmente por pro- bancos foram usadas, em grande parte, em
dutores e exportadores da região, pouco fez vão. No final de 1987, a queda de preços em
para alterar os preços nos seus primeiros 10 Wall Street anunciava o tamanho do proble-
anos, mas eles estavam subindo no início dos ma e dos temores públicos e privados de que
anos de 1970 e aumentaram 10 vezes durante o governo dos Estados Unidos tivesse perdi-
aquela década, que incluiu a guerra de 1973 do o controle do orçamento e dos balanços
e a derrubada do xá do Irã em 1979. Esses comerciais. O crescimento, que tinha ficado,
aumentos foram interrompidos pela criação em média, em cerca de 3% por ano desde
de uma Agência de Energia Industrial e se 1945 até o início do mandato de Reagan, es-
inverteram quando a nova exploração e pro- tava quase em zero.
dução por grandes empresas fora do Oriente A poupança e os investimentos domés-
Médio lembrou os produtores da OPEP da ticos estavam no mais baixo nível registrado
74 | PETER CALVOCORESSI

e o desemprego oscilou entre 7,5 e 10% no ciados em parte por investidores japoneses e
decorrer dos 12 anos do governo republica- outros estrangeiros que poderiam mudar de
no. O Grupo dos Sete pôs de lado as ansie- ideia, a menos que fossem tentados por taxas
dades predominantemente norte-america- de juros cada vez mais elevadas. Deixou-se
nas com relação ao iene supervalorizado, os que o dólar se valorizasse, mas isso aconte-
superávits comerciais quase inimagináveis ceu em um nível tão alto que seu valor de
do Japão, a hiperinflação na Rússia e outras troca deixou de ser crível e caiu de forma
consequências ameaçadoras do colapso do ainda mais espetacular do que havia subido.
domínio comunista em metade da Europa e Quando Reagan deixou o cargo, em
a desintegração da URSS. 1989, os Estados Unidos passaram, em me-
Nesse contexto, as políticas de Reagan nos de uma década, da posição de maior
de financiamento do déficit (não limitadas credor do mundo à de maior devedor. Sua
aos Estados Unidos) e o enfrentamento da dívida externa, que passava de 660 bilhões
inflação cortando produção e empregos de dólares, aumentou 25% em um único
contribuíram para o declínio da posição ano. O déficit externo chegava a 12 bilhões
singular dos Estados Unidos no mundo. Sua de dólares por mês, e os juros sobre a dívida
determinação de dar um impulso ao orgu- externa estavam custando 50 bilhões de dó-
lho e à autoconfiança dos norte-americanos, lares por ano.
fazendo-os subir a seu próprio nível de entu- As exportações foram prejudicadas, e os
siasmo, era acompanhada de uma determi- ativos estrangeiros foram vendidos. Dentro
nação igual de reduzir impostos. Como sua dos Estados Unidos, os recursos de capital
via para o orgulho foi embalada em gastos encolheram em 500 bilhões de dólares ao
inéditos em armas de guerra, seu mandato mesmo tempo em que as ações em corpo-
foi marcado por empréstimos imensos e des- rações foram extintas ou substituídas por
cuido com os serviços sociais. Suas promes- dívidas (particularmente por meio da in-
sas de entrar na Casa Branca para equilibrar venção dos títulos podres). Metade da po-
o orçamento foram ainda mais temerárias do pulação estava em pior situação, em termos
que costuma ser esse tipo de promessa. Ele reais, do que estivera em 1980. A poupan-
parecia acreditar que a lacuna entre despesa ça pessoal caiu abaixo dos 15% (metade
e receita evaporaria porque os impostos mais da taxa japonesa); a educação superior em
baixos, em associação com controles mone- ciência e tecnologia estava ameaçada de
taristas, gerariam lucros mais altos e, assim, declínio; a infraestrutura econômica estava
mais receitas decorrentes de impostos para em decadência, e o mesmo acontecia com
tapar o buraco. Mas impostos baixos e di- a periferia das cidades, onde a situação da
nheiro mais difícil não puseram esse ovo de moradia e a mortalidade infantil se aproxi-
ouro. Os déficits cresceram, tanto em termos mavam dos pontos mais problemáticos do
absolutos quanto em porcentagem do PIB. Terceiro Mundo e a criminalidade e as dro-
Depois de 1982, as restrições monetárias fo- gas tinham uma predominância alarmante.
ram relaxadas, e as taxas de juros, reduzidas. A corrupção estava espalhada pelo setor
O crescimento continuou, mas também con- público, até o primeiro escalão do governo.
tinuou o buraco, e a única salvação estava em Esses males eram remediáveis, mas deman-
trazer dinheiro estrangeiro para financiar davam uma reversão clara de atitudes e um
despesas correntes de governo e o investi- forte exercício de vontade política. Dada a
mento doméstico: déficits orçamentários de força da indústria, os déficits orçamentá-
dezenas de milhões de dólares foram finan- rios podiam ser controlados com pequenos
POLÍTICA MUNDIAL | 75

aumentos de impostos; a decadência social representava um sub-reaganismo presidido


podia ser enfrentada abandonando-se a vi- por um vice-presidente que não tinha con-
são de Reagan de que o governo deveria ser seguido sair das sombras da vice-presidên-
minimizado – o que, em si, já significava re- cia, nem no país nem no exterior. O revés
nunciar à responsabilidade. foi a recusa do Senado em aprovar o nome
No futuro próximo, contudo, os Esta- indicado pelo presidente para secretário de
dos Unidos pareciam não ser mais os líderes defesa. Além disso, nos meses que precede-
isolados de um mundo em que o Japão e a ram as eleições intermediárias em 1990, o
Comunidade Europeia eram as sociedades presidente se envolveu de forma prejudicial
em crescimento. A confiança que Reagan com ambos os partidos no Congresso com
tinha dado aos norte-americanos por meio relação a formas de reduzir os déficits que
da força e do discurso militares estava sendo tinha herdado de seu antecessor. Bush era
colocada em risco por problemas econômi- mais dado aos assuntos externos do que aos
cos e sociais e por uma liderança medíocre. domésticos e chegou ao cargo do presiden-
Reagan armou os Estados Unidos contra a te no clímax do maior triunfo pós-guerra
URSS, mas os desarmou contra o Japão, um do país – a libertação da Europa Central e
adversário igualmente agressivo, mas cujas Oriental do domínio comunista e a elimi-
armas não eram militares. nação da segunda superpotência do mundo.
Os déficits orçamentários e externos, Ele teve êxitos importantes na guerra contra
independente de sua importância econô- o Iraque em 1991 e proclamou o advento de
mica, desgastaram a confiança domésti- uma nova ordem mundial. Mas o que era
ca e estrangeira e destruíram a posição do novo – uma ampla coalizão liderada pelos
dólar como moeda mundial por si só, ou Estados Unidos no Oriente Médio – não
como moeda de último recurso. Nesse cli- durou, e os esforços e as proclamações de
ma político e psicológico, o dólar tinha uma Bush não foram suficientes para lhe render
predisposição a afundar em relação a im- um segundo mandato diante do desconten-
portantes moedas e particularmente em re- tamento doméstico em termos financeiros e
lação ao iene, que tinha uma predisposição sociais (drogas e criminalidade, aborto, éti-
ainda maior a subir por uma razão especial: ca de governo). Em 1992, os democratas re-
os japoneses estavam poupando duas vezes cuperaram a Casa Branca com Bill Clinton
mais per capita do que os norte-america- na presidência.
nos, e não estavam usando poupança para Clinton assumiu tendo recebido 43%
comprar bens dos Estados Unidos nem de dos votos populares. Era inteligente, arti-
outros países. Embora os hábitos dos japo- culado e direto em sua fala, mas apenas de
neses em termos de gastos fossem, em gran- forma esporádica e inconstante ele se atinha
de medida, culturais, os norte-americanos a questões externas, e seus poderes como
acreditavam que eles fossem controlados – líder internacional sofriam restrições cons-
mais do que provavelmente era o caso – pelo titucionais e políticas. Sua primeira preocu-
protecionismo oculto dos governos japone- pação foi conquistar aprovação parlamentar
ses usando obstrucionismo e desvios buro- e popular para um orçamento combinando
cráticos para tornar impossível a vida dos medidas duras para a redução de um déficit
exportadores estrangeiros. federal assustador, que estava em 200-300
O governo Bush começou com uma fra- bilhões de dólares, mas ele venceu no sena-
gilidade geral e um raro revés. Para o bem do por não mais do que o voto de Minerva
ou para o mal, ele não era reaganista, mas de seu vice-presidente.
76 | PETER CALVOCORESSI

Esse início precário foi acompanhado terior dos Estados Unidos sem direção. Essa
por uma série de nomeações baseadas em falta de rumo coincidiu mais ou menos com
avaliações equivocadas para os altos car- a remoção da segunda principal premis-
gos de seu governo e pelo ressurgimento sa sobre a posição dos Estados Unidos no
de alegações de escândalos em relação à mundo: a de que, na economia internacio-
sua vida privada e seus negócios anteriores. nal, o país não apenas superava a economia
Seguiu-se a derrota de um plano modesto, de qualquer outro país, mas também sabia
mas supercomplexo, de sistema de saúde como dirigir a economia do mundo. Por um
independente de idade, que foi a pique. Es- lado, o fim da Guerra Fria foi uma vitória do
ses reveses pareceram pôr fim a seu apeti- capitalismo sobre o comunismo, deixando
te por reformas domésticas e ele se tornou o primeiro sem rival, mas o capitalismo es-
um presidente bastante negativo, mesmo tava triunfante sem estar em boa saúde, e a
antes do segundo mandato, quando o Con- destreza dos Estados Unidos em um sistema
gresso tentou seu impeachment por crimes capitalista era ambígua. Durante o período
públicos e contravenções pessoais – uma pós-guerra, houve uma falha ou armadilha
distinção rara cujo caráter de vingança oculta na posição norte-americana. Uma
partidária muito óbvio desacreditou seus recusa firme a voltar ao isolacionismo e a
inimigos tanto quanto a ele mesmo. Ele foi combater o comunismo em escala mundial
favorecido – e, em certa medida, recebeu tinha acarretado operações e gastos no es-
justamente os créditos – por uma virada trangeiro em escala não prevista, que só
na maré econômica. Durante seu primeiro poderiam ser financiados por meio de uma
mandato, os efeitos políticos foram peque- expansão proporcional das receitas estran-
nos porque as rendas da classe média con- geiras: daí a insistência dos Estados Unidos
tinuaram a decair, e as eleições intermediá- no desmantelamento da proteção imperia-
rias deram aos democratas um de seus mais lista e no livre comércio, geralmente nos
duros golpes do século, incluindo a perda, melhores termos que o dólar pudesse con-
pela primeira vez em 40 anos, da maioria duzir. Nessas questões, conseguiram grande
na Câmara dos Deputados (House of Repre- parte do que queriam, mas a escala seguiu
sentatives) e no Senado. Dois anos depois, aumentando, de forma que o problema não
contudo, ele foi reeleito enquanto a inflação desapareceu. O país encontrou dificuldades
e o desemprego caíam a seus níveis mais de financiar o que queria fazer no mundo.
baixos em uma geração, as taxas de juros Em termos domésticos, a economia estava
de hipotecas estavam em queda, o cresci- melhorando na década de 1990, mas tam-
mento já estabilizara em 4% por ano e os bém havia um sentimento de que o governo
déficits orçamentários estavam se transfor- carecia de coragem política para aproveitar
mando em grandes superávits. da melhor maneira as melhorias – uma fal-
Nas questões externas, o clima entre os ta de disposição no Congresso, bem como
norte-americanos era de perplexidade, o na presidência. As disputas comerciais com
que era estranho à primeira vista, pois fazia o Japão foram tratadas com inconstância
pouco que os Estados Unidos tinham con- errática, as reuniões do Grupo dos Sete se
seguido a dissolução da URSS, uma vitória tornaram pouco mais do que fotografias co-
clara em uma disputa global. Mas o comu- letivas anexadas a comunicados cheios de
nismo mundial tinha proporcionado uma lugares-comuns. Mesmo assim, os Estados
bússola nas questões globais, e seu desapare- Unidos continuaram em uma posição sin-
cimento deixou grande parte da política ex- gularmente favorável.
POLÍTICA MUNDIAL | 77

Sua economia tinha um desempenho como o homem mais poderoso do mundo,


excelente, sendo mais produtiva em volume seu poder era, pela Constituição, compar-
total do que qualquer outra e sendo alicer- tilhado com os representantes do povo, de
çada em um sistema educativo que (ainda modo a fazer com que ele tivesse, dentro de
que com aspectos ruins) incluía as melho- sua própria democracia, menos poder do
res universidades e institutos de pesquisa que muitos chefes de governo em outras de-
do mundo: essa excelência educacional mocracias, e ainda mais no caso de autocra-
tornou a economia inovadora, assim como cias abertas ou disfarçadas. Segundo, o cres-
enorme. E ainda tinha uma moeda singular, cimento da burocracia central, que vinha de
pois nenhuma outra competia com o dólar longa data, fazendo com que o Congresso se
como ímã para investidores estrangeiros ou transformasse de uma parceira com o exe-
oportunistas. O iene japonês não desviava cutivo proposta na Constituição em uma
dinheiro do dólar no período pós-guerra, oposição mais entrincheirada ao presidente,
muito menos nos anos de 1990, e nenhuma não importando o seu partido. Uma tercei-
moeda europeia isolada tinha alcance ou ra concepção equivocada e comum sobre o
base para isso. Se, depois de seu lançamen- sistema político norte-americano estava re-
to em 1999, o euro não sofresse algum de- lacionada ao caminho para se chegar à pre-
sastre, poderia com o tempo se tornar uma sidência. Um presidente dos Estados Unidos
atração alternativa ao dólar, pressupon- normalmente não participava do primei-
do-se que os Estados Unidos continuassem ro escalão de governo antes de presidi-lo
a ter déficits grandes nas contas externas, e, embora tão versado em política quanto
mas, no futuro previsível, o dólar, embora qualquer estadista em qualquer lugar, ele
constantemente descrito como supervalori- carecia da experiência de governo que um
zado, era insubstituível. presidente ou primeiro-ministro europeu
Militarmente, os Estados Unidos esta- adquiria durante uma vida participando de
vam em uma categoria própria. Seu poder uma série de departamentos antes de chegar
destrutivo era arrasador, mas também nesse ao cargo máximo. Por fim, os europeus, par-
caso havia perplexidade. Era mais fácil para ticularmente, consideravam os Estados Uni-
uma superpotência possuir vastas forças mi- dos como um país semelhante aos da Euro-
litares do que usá-las. Sucessivos governos pa, só que maior e mais rico, mas sem levar
se abstiveram, sob o impacto continuado do em conta um aspecto histórico importante.
fracasso no Vietnã, de se envolver em guer- Os Estados Unidos se desenvolveram ao
ras com forças terrestres. Mesmo no Iraque, longo de dois séculos em uma zona ampla,
em 1991 e 1998, onde os interesses nacio- onde não há outros Estados, e não tinha o
nais e as obsessões pessoais norte-america- tipo de ciência de governo que os europeus
nos foram adicionados às violações do direi- absorviam a partir da vida em uma multipli-
to internacional e dos direitos humanos por cidade de Estados hostis entre si, dependen-
parte do Iraque, os Estados Unidos queriam do de alianças e raramente fora da vista ou
usar o poder aéreo, que poderia ser aciona- do pensamento de seus vizinhos. O instinto
do e suspenso com mais facilidade. básico dos Estados Unidos em questões in-
A avaliação que o mundo fazia dos as- ternacionais era de fazer as coisas por conta
pectos fortes dos Estados Unidos era con- própria. A história da Europa foi marcada
fundida por concepções equivocadas – qua- pelos desastres decorrentes disso.
tro delas em particular. Embora o presidente A Guerra Fria tinha dado aos Estados
dos Estados Unidos seja geralmente descrito Unidos um propósito e aliados claros. A
78 | PETER CALVOCORESSI

política externa norte-americana fora hip- junto com os balancetes dos governos Rea-
notizada pela Guerra Fria, que, para o país, gan e Bush, mostrava que a questão crucial
transformou as questões mundiais em um de 2000 era a mesma de 1945. Nada havia,
drama monotemático. O final da Guerra nem mesmo o comunismo, que assustasse
Fria eliminou esse propósito, enfraqueceu o mais o povo norte-americano do que os per-
apoio quase automático de outros países às sistentes déficits nas contas nacionais, mas
políticas dos Estados Unidos e ressuscitou ele não tinha como ter certeza das habilida-
o Conselho de Segurança da ONU, onde o des e da sorte necessárias para fazer frente a
veto (sem o qual o país nunca teria entrado esses riscos econômicos.
para a organização) ameaçava se tornar um Os norte-americanos estavam tão im-
obstáculo às ações norte-americanas – prin- buídos quanto qualquer povo do respeito
cipalmente em relação ao Iraque, mas po- à legalidade e à moralidade. O que deixava
tencialmente em qualquer lugar do mundo. perplexos muitos estrangeiros e os próprios
Uma correção parcial pode ser encontrada norte-americanos era a própria ênfase que
na ampliação da esfera de ação da OTAN ao os políticos e outros líderes no país davam
se emendar ou remover os limites territo- às regras e à ética, sugerindo que políticas
riais estabelecidos pelo Tratado do Atlântico externas não eram, em última análise, mol-
Norte, mas, também nesse caso, os Estados dadas pelo conceito elíptico e essencial-
Unidos enfrentaram oposição à transforma- mente amoral de interesse nacional – o que
ção da aliança em um braço global de suas elas eram. Resumindo, na Guerra Fria, as
políticas. Mais do que isso: no final do sécu- presidências de Nixon e Ford, cujas políti-
lo, assim como em sua metade, os Estados cas externas foram definidas por Kissinger,
Unidos eram um país de produtividade eco- abandonaram – mesmo que de forma tácita
nômica sem igual e força militar superdo- e temporária – o revestimento ideológico
minante, mas sem conseguir fazer com que dessas políticas. Ao fazer com que Nixon
a segunda equivalesse à primeira. O elemen- visitasse Pequim enquanto desaprovava
to crucial dessa equação reside em um siste- a Ostpolitik da Alemanha Ocidental, Kis-
ma de comércio mundial aberto. Quando a singer reposicionou a política externa dos
Segunda Guerra Mundial terminou, os Es- Estados Unidos em um modo de balanço
tados Unidos enfrentaram mercados estran- de poder, que o povo norte-americano tra-
geiros fechados pela Comunidade Britânica dicionalmente condenou como imoral. Os
e outros impérios coloniais e pelo império norte-americanos assumiram com entusias-
soviético recém-inflado e com pretensões mo a volta de Reagan às posturas e à retó-
de autossuficiência. Demolir impérios era rica ideológicas. Mesmo assim, a ideologia
uma necessidade ideológica e material e, da Guerra Fria era cinicamente amoral no
nesse aspecto, os Estados Unidos tiveram sentido de que promovia aliança com ami-
um grande sucesso. Mas a Guerra Fria e gos ideológicos, alguns deles vilões. O resul-
seus compromissos militares relacionados a tado – uma ideologia que era mais fachada
ela exerciam pressões contínuas sobre a eco- do que princípio – era duplamente descon-
nomia norte-americana para que obtivesse, fortável. Os norte-americanos ansiavam por
por meio de comércio exterior, os superávits uma combinação mais defensável de inte-
necessários para atender às demandas que resse nacional com diretrizes éticas. Havia
se acumulavam em função das políticas ex- duas abordagens possíveis.
ternas do país, e, mesmo quando a Guerra A primeira era insistir na distinção en-
Fria terminou, a Guerra do Golfo de 1991, tre democratas e não democratas e favorecer
POLÍTICA MUNDIAL | 79

apenas, ou principalmente, os primeiros: a estava em questão. O fim da Guerra Fria não


ajuda norte-americana e internacional de- foi uma capitulação comum. Se, em um sen-
veria ser condicionada a credenciais ou pelo tido, foi uma derrota militar causada pela
menos a princípios democráticos. Mas o impossibilidade econômica de continuar a
critério da democracia – uma constituição guerra, o fracasso também permeou o sis-
parlamentar multipartidária – era falível. Os tema político e social, atrofiou o nervo e o
autocratas não tinham muitas dificuldades espírito e criou uma sensação de destruição.
em permitir que os partidos de oposição Depois da demissão de Khruschev em
existissem ao mesmo tempo em que garan- 1964, Leonid Brejnev surgiu como seu su-
tiam que não vencessem eleições, e esses cessor e permaneceu como chefe até mor-
autocratas poderiam até mesmo fortalecer rer, em 1982, depois de um mandato longo,
sua posição realizando eleições e afirmando mas estagnado em termos de questões do-
ter um mandato democrático. Uma segun- mésticas, e em um lento declínio pessoal.
da forma de higienizar a política baseada Ele teve três sucessores em três anos: Yuri
no poder era ir além das Constituições, Andropov, que morreu em 1984, Kons-
chegando ao comportamento real e recu- tantin Chernenko, que morreu em 1985, e
sando-se a ajudar qualquer regime culpado Mikhail Gorbachev, com o qual a tão espe-
de violações grosseiras dos direitos huma- rada nova geração chegava ao topo. Nessa
nos. Isso poderia ser mais satisfatório, mas época, a URSS não tinha mais qualquer as-
também era mais arriscado, acarretando pecto que a colocasse à altura dos Estados
admissões difíceis de engolir de erros pas- Unidos. Seu império na Europa Central e
sados, por exemplo, na América Latina e – Oriental era insustentável, e a própria União
mais constrangedor – limites inaceitáveis a estava ameaçada de desintegração em todos
políticas futuras em relação, por exemplo, à os lados de seu núcleo eslavo. Ela não esta-
China. Na prática, significava ser duro com va sem recursos materiais, mas, mal-admi-
canalhas menores, mas fazer vista grossa aos nistrados e subequipados (com exceção de
problemas dos poderosos: de volta à Real- algumas indústrias pesadas), eles não eram
politik com o mínimo de limitações éticas suficientes para alimentar o povo nem para
e à dúvida sobre declará-la abertamente ou proporcionar um padrão de vida,satisfatório
não, uma conclusão mais dolorosa para os tampouco para transformar a URSS em uma
Estados Unidos do que para a maioria dos potência mundial. Gorbachev – inteligen-
países. Foi um sábio norte-americano que te, corajoso e politicamente ágil – tomou o
expressou de forma mais clara esse óbvio di- rumo de reformas econômicas e políticas
lema: os homens bons não devem obedecer sob as bandeiras gêmeas da glasnost e da
muito às leis. Perestroika: a primeira significava abertu-
ra e, particularmente, o fim da falsificação
disseminada do desempenho econômico; a
A desintegração da URSS Perestroika significava a reestruturação da
economia no sentido mais amplo da palavra.
Os problemas da segunda superpotência Ele insistia em que a Perestroika não se-
eram muito diferentes dos enfrentados pelos ria atingida sem a glasnost, e essa implicava
Estados Unidos. Suas dificuldades econômi- não apenas avanços com relação à censura
cas eram de um grau de desespero diferente, ou hábitos de subserviência, mas a refor-
sua sociedade era mais corrupta, cruel e ine- ma de todo o sistema político, incluindo a
ficiente, sua própria existência como Estado abolição do monopólio de poder do Parti-
80 | PETER CALVOCORESSI

do Comunista e seu controle sobre as ins- cargos provavelmente seriam colocados


tituições do Estado e a máquina da econo- em risco por ela e ainda foi complicado
mia. A glasnost, ainda que impalatável para pelo estado da economia, que continuava
alguns, era fácil de entender. A Perestroika, a recuar em termos gerais e tinha as condi-
contudo, era um conceito mais ambíguo ções para cirurgia de um paciente com um
porque significava mudanças sem especifi- coração frágil. A economia sofreu golpes
car o ritmo em que elas aconteceriam nem com o surto dos preços do petróleo (em
definir o novo sistema pelo qual o antigo certa medida maquinados pelos Estados
seria substituído. Entre os primeiros pas- Unidos e seus aliados no Oriente Médio),
sos, estavam uma maior independência o desastre no reator nuclear de Chernobyl,
para cooperativas e para os administra- em 1986, e um terremoto excepcionalmen-
dores de empresas estatais, e a introdução te grave na Armênia em 1988.
de regulamentação por forças de mercado Uma primeira lei básica de reforma
em alguma medida. Mesmo que houvesse econômica, em 1987, deu início ao pro-
o consenso de que um sistema era certo e cesso de descentralização, desregulação de
outro era errado (o que não havia), ainda preços e recompensas financeiras para em-
haveria dificuldades para se passar de um presas, mas dava à indústria pouca liber-
para outro. Até onde se deveria permitir dade de fazer pesquisa de preços para seus
que os preços encontrassem seus próprios insumos, e pouco alterou o desacreditado
níveis, se isso significasse que eles iriam sistema de metas centralizadas.
explodir, deixando as mercadorias fora do Essas medidas parciais foram amplia-
alcance dos compradores e os produtores das um ano depois, embora ainda em um
sem mercado? Os preços de algumas coi- modo experimental e limitado a zonas es-
sas – alimentação, por exemplo – deve- peciais e empreendimentos abaixo de um
riam ser controlados e, caso fossem, por tamanho determinado. Elas foram prejudi-
quem, com base em que princípios e por cadas pela falta de gestores com formação e
quanto tempo? O governo foi pego entre pela inércia ou oposição da nomenklatura,
as necessidades conflitantes de deixar os os administradores privilegiados e ossifica-
preços subirem e de moderar seu aumento dos que, tendo sobrevivido aos anos Brej-
inevitável. Embora houvesse acordo uni- nev, não estavam dispostos a perder seus
versal sobre a necessidade de uma nova or- empregos e privilégios no período que se
dem econômica, não havia consenso sobre avizinhava.
como ela seria: a Nova Política Econômica Os objetivos políticos de Gorbachev
de Lênin (que promoveu pequenos varejis- não incluíam a redução da autoridade exe-
tas e empresas na esperança de atrair capi- cutiva no centro. O caminho para o poder
tal e habilidades estrangeiros), ou o estado na URSS poderia ser tornado mais livre,
de coisas anterior à NEP, ou uma mistura mas o poder ao final dele não seria menos
de capitalismo privado e livre comércio abrangente.
com socialismo de Estado, ou, ainda, um Como no caso do desenvolvimento
mergulho em algo que pouco se poderia da Perestroika na indústria e no comércio,
distinguir do capitalismo ocidental. Sendo bem como nas reformas políticas que a
assim, o desenvolvimento da Perestroika acompanhavam, Gorbachev não era tanto
foi experimental e desprovido de forma. um pensador estratégico, mas um tático
Foi contestado em diversos graus; sofreu ágil no controle de processos que ele de-
a oposição de milhares de pessoas cujos sencadeou por meio de percepção e ações
POLÍTICA MUNDIAL | 81

rápidas que o mantinham à frente – ainda de 1990, do ministro do exterior Eduard


que pouco – dos eventos. Em uma confe- Shevardnadze – um colega próximo, mi-
rência extraordinária do Partido em 1988, nistro de sucesso e conhecido defensor
ele prometeu convocar um Congresso dos das reformas liberais – fragilizou Gorba-
Deputados do Povo de 2.250 membros – chev e reforçou as suspeitas de que ele es-
alguns escolhidos por grupos especiais, tivesse sendo forçado a dar uma guinada
dos quais o Partido Comunista era um, conservadora e pudesse inclusive estar se
mas o maior número (1.500) nas regiões tornando refém dos líderes militares te-
eleitorais onde os votantes receberam merosos de perder as instalações de defesa
a promessa de alternativas de candida- essenciais nas repúblicas dissidentes. (As
tos. Todos os candidatos deveriam lançar forças armadas eram, junto com a KGB, o
manifestos eleitorais. Nas eleições que se principal sinal externo e visível de poder
seguiram no ano seguinte, não houve dis- centralizado em oposição a ambições cen-
puta em 384 regiões, ao passo que, em 271 trífugas de dissidentes bálticos e outros, ou
delas, nenhum dos candidatos teve metade os promotores de maior autonomia dentro
dos votos. O Congresso elegeu um Soviete da República Russa [RSFSR] e da Ucrânia.)
Supremo* menor, de 750 membros, que se A posição enfraquecida de Gorbachev
reuniu quando o Congresso se dispersou. foi exposta quando, buscando aprovação
Ao mesmo tempo, e por meio de uma es- para o nome que indicara ao novo cargo
pécie de golpe, Gorbachev garantiu o de- de vice-presidente da União – para o qual
saparecimento de centenas de membros Shevardnadze parecia destinado –, seu
regulares do Partido – que provavelmente candidato foi rejeitado pelo Congresso dos
se oporiam a seus planos –, realizou expur- Deputados do Povo e somente mais tarde
gos no Comitê Central do Partido Comu- aprovado em uma segunda votação, estri-
nista e fez com que ele próprio fosse eleito tamente inconstitucional.
presidente da URSS no lugar de Andrei Nenhuma dessas mudanças e redi-
Gromyko, que renunciou de forma obse- recionamentos produziu uma política
quiosa. Seus poderes como presidente de- econômica. À medida que a economia se
veriam ser consideráveis, mas não absolu- desfazia, duas estratégias conflitantes se
tos. O Supremo Tribunal poderia declarar impunham: avançar rápido ou muito rá-
seus atos inconstitucionais e dois terços do pido. Aos espíritos mais ousados e mais
Soviete Supremo poderiam derrubar um desesperados, a situação demandava uma
veto presidencial sobre novas leis. Ele foi arremetida em direção à mudança, des-
obrigado a dar destaque central às repúbli- considerando as consequências e manten-
cas ao instituir um Conselho da Federação do esperanças pelo melhor. Os protagonis-
que consistia nele mesmo e em todos os tas dessa estratégia produziram um plano
presidentes das 15 repúblicas, e ao abolir de 500 dias para instalar uma economia
o Conselho de Ministros – um baluarte do mista em quatro etapas. A primeira era
centripetismo – e o substituir por um ga- vender propriedades e empresas do gover-
binete de especialistas menos prestigiado no e do Partido Comunista, dissolver to-
e menos poderoso. A renúncia, no final das as fazendas estatais e coletivas, dar aos
ocupantes seus terrenos ou apartamentos e
cortar o orçamento em 5 milhões de rublos
* N. de R.: Soviete Supremo era o nome comum dos corpos
legislativos (parlamentos) das Repúblicas socialistas soviéticas em três meses (incluindo altos cortes nos
(RSS) na União Soviética. custos de defesa e com a KGB).
82 | PETER CALVOCORESSI

O objetivo principal dessa etapa era fa- Das 15 repúblicas da URSS (ver os mapas
zer com que o dinheiro armazenado – por- 1.2 e 1.3), somente três eram predominan-
que não havia em que gastá-lo – entrasse em temente eslavas: a Rússia (que incluía a Si-
circulação antes que os preços fossem libe- béria), a Ucrânia e a Rússia Branca (Bielorú-
rados e desencadeassem uma inflação muito sia). Os eslavos étnicos representavam não
alta. Na segunda etapa, os preços seriam li- muito mais do que metade da população e
berados aos poucos, e as taxas de juros, ele- a solidariedade da Ucrânia para com outros
vadas, mas os preços dos alimentos básicos eslavos não poderia ser considerado algo
permaneceriam controlados. Na terceira e natural, já que o país tinha um histórico
mais longa etapa (dias 250 a 400), metade de oscilações entre sujeição a Moscou (ou
das indústrias e serviços seria vendida e se Varsóvia ou Vilna) e surtos de afirmação
estabeleceria uma bolsa de valores e outras de independência até o século XX. Todas as
operações. Por fim, todas essas medidas se- outras 12 repúblicas – as repúblicas bálticas,
riam aceleradas e 90% das empresas vare- a Moldávia, três no Cáucaso e cinco na Ásia
jistas seriam postas à venda. Esse programa Central – tinham queixas e aspirações sepa-
recebeu a oposição, entre outros, do pri- ratistas desagregadoras.
meiro-ministro Nicolai Ryjkov, porque os Entre as repúblicas bálticas Letônia e
limites seriam muito rígidos e irreais, por- Estônia – representantes da medieval Livô-
que eram necessários mais paliativos para nia – tinham vínculos históricos e de outra
as classes mais pobres, os aposentados e os natureza principalmente com a Finlândia,
estudantes, e porque a máquina burocrática a Suécia e a Alemanha, ao passo que a Li-
para implementá-lo com tanta rapidez não tuânia, a maior das três, estava vinculada
existia, fazendo com que houvesse mais caos principalmente à Polônia e à Rússia. Os
do que reforma. Os que objetavam também russos representavam cerca de um terço
afirmavam que a desagregação econômica dos habitantes da Letônia e da Estônia,
que previam aumentaria as forças anárqui- mas apenas um décimo na Lituânia. Todos
cas que ameaçavam dissolver a União. Gor- os três países tinham sido tomados pelos
bachev, que parecia favorecer inicialmente exércitos de Stalin em 1944-1945 e incor-
um lado, depois o outro, e que não queria porados à URSS. Muitos lituanos fugiram
perder seu primeiro-ministro, tentou for- para o Ocidente, outros – talvez um quarto
çar os grupos discordantes a chegar a um de milhão – foram deportados ou mortos,
acordo. Não conseguiu. O Soviete Supre- e poloneses e russos passaram a represen-
mo preferiu lhe dar poderes de emergência, tar um quinto da população, os primeiros
transferindo à presidência a tarefa de encon- no sul e os segundos, principalmente em
trar uma resposta e a impor por decreto. O Klaipeda (antiga Memel).
resultado foi um novo plano, devidamente O movimento Sanjudis, da Lituânia, sur-
endossado pelo Soviete Supremo, mas vago giu em 1988 sob a liderança do nacionalista
a ponto de deixar o futuro não apenas ar- e músico romântico Vytautis Landsbergis e,
riscadamente obscuro, mas aparentemente como na Tchecoslováquia e na Hungria, evo-
fora do controle do governo. Havia esque- luiu para um partido político: seu objetivo
mas rivais, mas não uma política coerente. era a independência. Economicamente, as
A transformação política e econômica principais características da Lituânia eram,
da URSS foi atrapalhada pelo crescimento por um lado, um superávit agrícola expor-
simultâneo da dissidência, que em alguns tável e, por outro, total independência da
lugares chegava à tentativa de separatismo. URSS em termos de petróleo e gás. A econo-
POLÍTICA MUNDIAL | 83

mia como um todo sofria da má formação, tuânia voltou a um governo de esquerda em


embrutecimento e corrupção que caracteri- 1992-1996 e a Estônia, em 1995. A Letônia,
zavam a URSS. Em 1990, foram realizadas por sua vez, surpreendeu ao quase dar a vitó-
eleições para o Soviete Supremo da repúbli- ria, em 1995, a um partido de extrema direita
ca. Os candidatos aprovados pelo Sanjudis liderado por um imigrante da Alemanha que
conquistaram a maioria, que imediatamente não falava letão. Diferentemente da Lituânia,
declarou a Lituânia independente, repetindo a Letônia e a Estônia restringiram a cidada-
a declaração semelhante de 1918. Para Gor- nia a habitantes com antepassados residentes
bachev, esse era um desafio a ser enfrentado, antes de 1940, o que foi alterado no caso da
por sua repercussão não apenas em outras Letônia em 1991, para facilitar sua candida-
repúblicas bálticas, mas também em todas tura a membro da União Europeia. Todos os
as partes da URSS. Ele estava disposto a dar três países queriam entrar para a UE, ao que
às repúblicas mais liberdade em uma URSS a Rússia fazia pouca objeção, desde que não
relaxada, o direito constitucional de seces- entrassem também para a OTAN.
são, mas não estava disposto a aceitar um A Ucrânia – depois da Rússia a maior,
ato unilateral que destruiria a União antes mais populosa e mais produtiva das repú-
que ele tivesse tempo de reformá-la. Além blicas soviéticas, ocupando uma posição
disso, as repúblicas bálticas faziam parte de estratégica entre a Rússia e o Mar Negro,
um sistema de defesa geral que nem Gor- com 100 grupos étnicos entre os quais, de-
bachev nem seus chefes militares poderiam pois dos ucranianos, os mais destacados
se dar ao luxo de desmantelar às pressas. eram os grandes russos (22%) e os polo-
Gorbachev enviou tropas para a Lituânia e neses – declarou-se um Estado indepen-
impôs um bloqueio econômico que forçou dente e uma zona livre de energia nuclear
os novos líderes do país a moderar, se não em 1990, uma declaração posteriormente
seus objetivos, pelo menos seu calendário reafirmada por referendo. Foco de revol-
– mas não antes que eles tivessem encontra- ta contra o ímpeto centralizador da Rússia
do aliados no coração da União, na própria czarista nos séculos XVIII e XIX, o país
Moscou, onde o principal antagonista russo sustentava uma independência precária
de Gorbachev, Boris Yeltsin, tinha obtido o entre 1917 e 1920, mas foi invadido por
controle da vasta República Russa. Todas as uma Polônia ressuscitada (que capturou
três repúblicas declararam independência Kiev) antes de ser absorvida pela URSS.
em 1991, mas as alegrias da independência A parte ocidental da república pós-Se-
foram temperadas pelas dificuldades mate- gunda Guerra Mundial só foi acrescentada
riais e os vínculos econômicos com a URSS, em 1939. O nacionalista Rukh (ou Movi-
e as preferências comerciais foram rompidas, mento), ressurgido em 1989, conquistou
a inflação disparou e a produção industrial e 110 cadeiras no Soviete Supremo da Ucrâ-
agrícola foi prejudicada: na Lituânia, elas caí- nia naquele ano. Em 1990, surgiu uma
ram pela metade em três anos. Nenhuma das Igreja Ortodoxa Ucraniana, separando-se
três entrou para a Comunidade de Estados da Igreja Ortodoxa Russa e oposta aos ca-
Independentes (CEI) – A União Soviética II tólicos romanos e aos uniatas majoritaria-
de Gorbachev – e todas saíram da zona do mente poloneses. Os líderes comunistas,
rublo em 1992. Todas tiveram melhor de- incluindo Leonid Kravchuk, transforma-
sempenho do que outras partes da URSS no ram-se em nacionalistas e conquistaram
combate à hiperinflação e na criação de eco- apoio suficiente para que Kravchuk vences-
nomias independentes da Rússia, mas a Li- se a presidência em 1991.
84 | PETER CALVOCORESSI

Kravchuk foi um dos principais propo- nomia anterior à guerra. No início dos anos
nentes da CEI. Se, para Gorbachev, essa era de 1990, eles constituíam 10% da popula-
uma maneira de preservar a maior unida- ção, os ucranianos eram 25% e os russos,
de possível da desintegração soviética, para 62%. A língua russa era praticamente uni-
Kravchuk era uma maneira de minimizar a versal. Com a desagregação da URSS, a Cri-
interdependência das antigas repúblicas so- meia se tornou uma república autônoma
viéticas. Ele alegava que a Frota Soviética do dentro da Ucrânia. A eleição presidencial
Mar Negro, uma força de cerca de 300 navios em 1994, apoiada pelo governo de Kiev na
que já estavam ficando velhos, e uma parte falsa expectativa de uma vitória de seu can-
relativamente pequena da marinha soviética, didato, foi vencida por Yuri Meshkov, que
não deveria ficar com a Rússia, embora esti- defendia a união com a Rússia. Seu suces-
vesse disposto a dividi-la. As bases da frota so foi um constrangimento para Moscou,
estavam na Crimeia, que, em 1992, afirmou que, por um tratado tripartite com os Es-
sua independência da Rússia e da Ucrânia – tados Unidos e a Ucrânia, tinha garantido
mas abandonou essa reivindicação em troca simultaneamente a integridade territorial
de um grau substancial de poderes como re- da última em troca da entrega de suas ar-
pública autônoma dentro da Ucrânia. A Rús- mas nucleares. Mas Meshkov se mostrou
sia e a Ucrânia estabeleceram e suspenderam incompetente e inábil, a Ucrânia retirou
uma série de acordos sobre a frota e o uso seus poderes e aboliu seu cargo, sem provo-
da base naval de Sebastopol: controlar a fro- car qualquer protesto por parte de Moscou.
ta conjuntamente, dividi-la em partes iguais, As eleições na Crimeia foram seguidas
transferir toda ela para a Rússia em troca de de eleições na própria Ucrânia, onde um
dinheiro. Depois de resistir ao tão neces- amplo leque de partidos, além de candida-
sário dinheiro, a Ucrânia aderiu, em 1993, ao tos que não pertenciam a nenhum partido,
tratado russo-americano START I de 1991 enfatizavam as divisões entre ucranianos e
e aceitou despachar metade de suas armas russos, as dificuldades dos primeiros para
nucleares à Rússia para que fossem destru- afirmar sua identidade nacional separada
ídas, uma promessa que posteriormente foi sem abandonar à Rússia a metade leste do
ampliada para a entrega de todas essas armas país e toda a Crimeia. Em outras eleições
até 1999. A Ucrânia também obteve promes- para a presidência da Ucrânia, Kravchuk
sas de combustível barato e garantias de sua perdeu para Leonid Kuchma, que era a op-
integridade por parte da Rússia, dos Estados ção clara da parte leste do país, defensor
Unidos e da França. da renovação de relações próximas com a
A Crimeia, anexada pela Rússia czaris- Rússia e beneficiário do descontentamento
ta em 1783, tinha uma população tártara geral com a economia. As estratégias econô-
importante, que foi deportada em massa micas de Kuchma tiveram resultados con-
durante a Segunda Guerra Mundial, sob traditórios. A inflação foi reduzida, o nível
acusações de colaboração com os alemães. dos salários reais se manteve, as reservas fo-
Absolvidas de todas essas acusações depois ram aumentadas e os juros sobre as dívidas
da guerra, essas pessoas puderam voltar, com a Rússia pagos, mas a reforma agrária
mas muitas permaneceram no exílio de estagnou, o subsídio a indústrias e fazendas
sua terra ancestral. Em 1954, a Crimeia foi estatais (não vendíveis) continuou e, de-
transferida da RSFSR à República Soviética pois de um surto de contenção, os déficits
da Ucrânia, mas nem naquela época, nem explodiram. Kuchma não conseguiu conter
depois, os tártaros recuperaram sua auto- a corrupção e as extorsões gigantescas que
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corrompiam as reformas, reduziu em muito imemoriais) se tornou a independente Mol-


os investimentos e financiamentos estran- dova, com uma população mista de rome-
geiros e transformou o primeiro-ministro nos, ucranianos, russos, turcos gagaúzes e
Pavel Lazarenko, em um perigoso inimigo. outros. O elemento romeno adveio quando
Mesmo assim, foi reeleito em 1999, apesar a Bessarábia foi cedida à URSS pela Romê-
de uma década de pós-comunismo que re- nia em 1940.
duziu a economia pela metade sem conven- Todas as três repúblicas caucasianas se
cer muitos ucranianos de que essa era uma tornaram independentes em 1991-1992.
forma de melhorar as coisas. A Geórgia, um labirinto étnico e religio-
Politicamente, a Ucrânia também es- so que havia perdido sua independência
tava dividida entre os defensores de rela- quando seu último rei a deu para o czar em
ções próximas com a Rússia (liderados por 1800 (de forma semelhante à que o último
Viktor Yushchenko, presidente em 2004) e duque Médici da Toscana tinha legado seu
uma oposição que buscava oportunidades ducado ao imperador habsburgo), foi go-
e segurança no Ocidente (liderada por Vi- vernada por procônsules russos até 1917,
ktor Yanukovych) com um terceiro partido quando obteve sua independência com al-
mais inclinado à primeira opção, mas nem guma ajuda das tropas britânicas.
sempre (liderado por Yulia Tymoschenko). Ela foi conquistada alguns anos mais
Economicamente, o fator dominante era tarde pela URSS e declarou a independên-
a dependência da Ucrânia em relação à cia mais uma vez em 1989. Uma revolta
Rússia para petróleo e gás. Culturalmente, anterior, em 1972 (que levou Eduard She-
a metade leste do país pertencia à comu- vardnadze ao poder), foi uma antecipação
nidade ortodoxa de Igrejas, e os ocidentais das demonstrações antirrusas no final da
eram, em sua maioria, uniatas em comu- década de 1980, que foram reprimidas com
nhão com Roma. força considerável, provavelmente desne-
A noroeste da Ucrânia, a República cessária. Isso desencadeou especulações de
Bielorussa da URSS se tornou o Estado da que oficiais do exército hostis a Gorbachev
Bielorússia – em sua grande maioria rus- teriam provocado deliberadamente a si-
sa, mas com minorias polonesas pequenas tuação em um momento em que ele estava
e espalhadas, sua independência ameaçada fora da URSS. Da independência até 1991,
menos por divisões étnicas do que por sua a Geórgia rumou para a anarquia quando
natureza de criação artificial do regime so- seu presidente Zviad Gamsakhourdia, um
viético. Em um referendo de 1995, o povo nacionalista fervoroso, anulou todos os
aprovou enfaticamente alguma forma de poderes e privilégios das minorias osseta,
união com a Rússia, que o presidente Ale- abkhaz e outras. Os abkhazes – turcos cris-
xander Lukashenko, enfatizando a unidade tãos no canto noroeste do país (que havia
eslava, e Boris Yeltsin, buscando um escudo sido a terra de Medéia e do Velocino de
contra uma OTAN ampliada, concluíram Ouro) – constituíam 17% da população e
em 1999. Lukashenko, um autoritário ambi- foram incorporados à república somente
cioso, garantiu, em 1996, uma extensão de em 1930. Eles pegaram em armas e derro-
seu mandato presidencial. taram Gamsakhourdia, que foi forçado a
A oeste da Ucrânia, a República Sovié- fugir para a vizinha Chechênia (ele come-
tica Moldova (antes de 1940, uma república teu suicídio em 1994). Shevardnadze, mais
autônoma da Ucrânia e parte de uma das afeito à conciliação do que ao enfrenta-
zonas mais mistas da Europa desde tempos mento, foi convidado por Moscou a voltar
86 | PETER CALVOCORESSI

como presidente e se juntou relutantemente Aliyev. Ele voltou sua atenção à exploração
à CEI para receber ajuda russa, e concedeu do petróleo do Azerbaijão em parceria com
à Rússia o direito de manter forças na Ge- companhias estrangeiras e ao planejamen-
órgia – cujos portos do Mar Morto e linhas to de oleodutos em negociações com ou-
de comunicação (especialmente para pe- tros países ansiosos por acesso, direitos de
tróleo) eram estrategicamente importantes trânsito e vantagens políticas. O presidente
para a Rússia. A Abkhazia ficou pratica- armênio Levon Ter-Petrosian foi forçado
mente independente a partir de 1993 e se por escândalos a renunciar em 1998, e foi
manteve tranquila por cinco anos, mas não sucedido por seu primeiro-ministro Robert
era a única dor de cabeça do governo cen- Kocharian.
tral. Os adjares (muçulmanos) no sudoeste, Em todos esses países, o nacionalismo
com seu porto de Bakumi, os sul-ossetas, ao antissoviético que os criou foi modificado
norte, os mingrelianos entre Tiflis e Abkha- em uma década por uma sensação de que a
zia, os armênios no sul – todos ameaçavam independência sem vínculos especiais com
a integridade da Geórgia, eram parcialmen- a Rússia poderia ser estéril. Consciente-
te patrulhados por forças russas e deman- mente ou não, eles ansiavam por algo como
davam muita criatividade da Unomig (UN a natimorta CEI de Gorbachev. A parte
Observer Mission in Georgia, a Missão de norte do Cáucaso foi dividida não em repú-
Observação das Nações Unidas na Geór- blicas soviéticas, mas em regiões da Repú-
gia). Em 2003, Shevardnadze foi substituí- blica Soviética Russa, de forma que, quando
do por Mikhail Saakashvili, que trocou a re- da dissolução da URSS, elas não se torna-
sidência nos Estados Unidos por um papel ram Estados independentes. Contudo, em
no Cáucaso e incomodou Moscou ao falar 1998, as duas áreas maiores – o Daguestão
de participação da Geórgia na OTAN. Ele e a Chechênia – formaram um congresso
foi reeleito em 2008. conjunto que exigia independência. O Da-
O conflito entre a vizinha Armênia, guestão era um pobre aglomerado de 3 mi-
sem saída para o mar, de maioria cristã, e o lhões de pessoas e cerca de 30 línguas dis-
Azerbaijão, de maioria muçulmana e turca, tintas, com grupos que desconfiavam uns
antecipou a independência em alguns anos. dos outros. Era muito dependente da Rús-
No centro do enfretamento estava a área de sia para verbas (que não chegavam ou eram
Nagorno-Karabakh, que foi criada em 1921 desviadas quando chegavam), mas também
como uma região do Azerbaijão, mas na valiosos para a Rússia porque qualquer ole-
qual os armênios superavam em número os oduto que partisse do Cáspio deveria pas-
azerbaijanos em dois para um. Primeiro os sar pelo Daguestão e pela Chechênia para
armênios, depois os azerbaijanos, e depois alcançar o mundo pelo território russo e o
os armênios mais uma vez, preponderaram. Mar Negro. Os Estados Unidos preferiam
Ambos culpavam Moscou por seus proble- uma rota (mais longa) através da Geórgia
mas. Quando, em 1991, os armênios toma- e da Turquia até o Mediterrâneo, desvian-
ram áreas dos azerbaijanos e os expulsaram, do da Rússia. Em 1999, em Istambul, e na
esses pediram ajuda à Turquia, que com- presença de Clinton, foram assinados dois
partilhava religião e causa, e tinha uma lon- acordos que excluíram a Rússia – um en-
ga história de opressão de armênios. Mas o tre a Turquia, a Geórgia, o Azerbaijão e o
exército azerbaijano derrubou o presidente Cazaquistão com relação ao petróleo da
pós-comunista e pró-turco Abulfaz Elchi- Ásia Central rumo ao Mediterrâneo, e os
bey e recorreu ao ex-chefe da KGB Gaidar outros sobre gás natural do Turcomenistão
POLÍTICA MUNDIAL | 87

à Turquia. A desintegração progressiva da ciam, na primeira metade dos anos de 1990,


URSS foi um dos fracassos de Gorbachev. estar dando uma guinada em direção aos
Ele tinha esperanças de manter uma forma conservadores.
de unidade, mas o espírito dos tempos o Mas sua política econômica era confusa
contrariou. A CEI era pouco mais do que e a situação da economia, catastrófica. Não
um dispositivo transitório feito às pressas sendo adepto da economia de mercado, ele
no fim de seu mandato para garantir pelo permitiu que uma dúzia de planos de refor-
menos um livre comércio entre as antigas ma fossem elaborados sem serem imple-
repúblicas socialistas e encontrar uma nova mentados e não conseguiu impor qualquer
forma de lidar com armas nucleares nos programa sustentado para reformar a pro-
novos Estados diversificados. Seu segundo dução de alimentos.
maior fracasso foi a desvalorização e a des- As dificuldades eram imensas: falta de
tituição (em muitos lugares, o desapareci- moeda estrangeira, déficit orçamentário de
mento, na prática) do Partido Comunista um terço do PIB, quase todos os setores da
da União Soviética, por meio do qual ele economia perdendo dinheiro, a eterna pre-
esperara exercer poder na falta de qualquer sença opressiva dos monopólios estatais
outra base política. As grandes conquistas ainda em vigor, pouca ajuda estrangeira,
de Gorbachev foram a ousadia ao abando- muitos, mas maus, assessores estrangeiros.
nar o Império Soviético e suas iniciativas Depois da derrota, em março de 1991, de
rumo ao desarmamento mútuo da Guerra suas propostas para uma nova URSS de
Fria. Mas ele também queria preservar a repúblicas soberanas, através do voto po-
URSS de alguma forma modificada, bem pular em seis delas (as três repúblicas bál-
como um Partido Comunista reformado. ticas, a Moldávia, a Geórgia e a Armênia),
Nesses objetivos, ele tergiversava e acabou divulgou-se uma nova Constituição sovi-
abrindo caminho para um líder de pensa- ética com poderes restritos para o gover-
mento mais estreito: Boris Yeltsin, naciona- no central, que foi recebida com um golpe
lista russo com pouca preocupação com a contra Gorbachev por parte dos militares,
União e nenhuma utilidade para o Partido da KGB e reacionários civis, quando ele
Comunista, o qual ele dissolveu na Rússia. estava afastado, na Crimeia. O golpe se
Gorbachev tinha tirado do Partido o mo- desarticulou em três semanas. Os conspi-
nopólio do poder, realizado os primeiros radores eram incompetentes, mas tinham
intentos de privatização da terra e da indús- um objetivo. Eles haviam perdido a fé em
tria e tomado as primeiras atitudes em dire- Gorbachev, a quem responsabilizavam
ção a uma economia de mercado. Mas, em- por permitir que a URSS se desintegrasse
bora reformador e modernizador convicto, ao reagir de forma frágil às perturbações
ele não era democrata e não acreditava que no Cáucaso e nas repúblicas na Ásia e no
a reforma na URSS poderia ser eficaz a não báltico, e por permitir que a Rússia e ou-
ser por meio de uma autocracia benevolen- tras repúblicas centrais roubassem poder
te. Ele garantiu poderes ampliados para o demais da União. Seu objetivo era usurpar
presidente soviético, reassumiu o cargo de a autoridade de Gorbachev ou forçá-lo a
secretário-geral do Partido Comunista, ao lhes obedecer. Eles aceleraram sua queda,
qual tinha renunciado anteriormente, criou mas também a ascensão de Yeltsin e da
novos organismos assessores que, seja por Rússia e, portanto, a descentralização que
confusão ou intencionalmente, eram nu- deploravam. Antes que terminasse o ano,
merosos demais para ser coerentes, e pare- Gorbachev foi eliminado, renunciando à
88 | PETER CALVOCORESSI

presidência da URSS, que (foi criada em Algumas semanas antes do golpe de


1922, cinco anos depois da Revolução Bol- 1991, ele foi eleito presidente da República
chevique), deixou de existir. Russa pelo voto popular direto, com 57%
A história da Europa no século XX não dos votos, uma maioria estreita, mas muito
oferece um contraste mais claro do que a mais do que qualquer outro candidato. Essa
brevidade e as conquistas do governo de vitória acabou sendo o ponto alto de sua
Gorbachev. Ele enfrentou os problemas carreira. Com ela, gravou sua personalidade
mais assustadores, desde a continuação na cena russa, mas não conseguiu mostrar
impossível da Guerra Fria até as impossibi- qualquer domínio posterior sobre os dois
lidades internas da URSS e de seu império. grandes problemas dessa cena: a política
Sofreu as limitações, não apenas de sua si- econômica e as nacionalidades. A reforma
tuação, mas também o isolamento insepará- econômica ele apoiou até certo ponto, e o
vel de um temperamento autocrático e sua público não aceitava bem, pois sofria sem
incapacidade de buscar o apoio de assesso- entender porque ela seria necessária; e per-
res próximos ou competentes. Mas, acima mitiu que fosse subvertida por instituições
de tudo, Gorbachev fracassou porque estava do próprio Estado (incluindo o Banco Cen-
tentando reformar o irreformável. O comu- tral). Sua ambiguidade semelhante com re-
nismo soviético se baseava essencialmente lação aos direitos das nacionalidades levou
no planejamento central por parte de pla- ao malogro da revolta chechena, que lhe
nejadores que não tinham teorias nem insti- prejudicou tanto quanto qualquer outro epi-
tuições com as quais realizar as funções eco- sódio em seus anos como presidente.
nômicas proporcionadas por um sistema de Yeltsin recebeu poderes especiais para
mercado. O sistema soviético durou porque formular e implementar as reformas eco-
corporificava uma tirania que possibilitou a nômicas. Essas, apresentadas por Yegor
seus governantes exigir do povo os sacrifí- Gaidar, Anatoly Chubais, Gennady Bubulis
cios de um sistema incorrigível. Seu colapso e outros assessores aventureiros, incluíam
condenou o sistema sem apontar qualquer sérios cortes nas despesas de governo, pri-
alternativa. Ele deixou o capitalismo triun- vatização de empresas estatais de todos os
fante, mas – como Karl Marx tinha discer- tipos para as quais conseguissem encontrar
nido – profundamente insatisfatório. Os compradores, o desmantelamento de grande
sucessores de Gorbachev e seus seguidores parte da burocracia central e um tratamento
ficaram não apenas com uma bagunça, eles sem piedade aos que tivessem dificuldades.
ficaram entre a cruz e a espada. Esse programa se mostrou doloroso e durou
A base de poder de Yeltsin não era a muito mais do que havia sido previsto; aca-
URSS, e sim a Rússia. Ele tinha atuado com bou sendo cortado pelo Banco Central in-
coragem durante o golpe contra Gorbachev, dependente, que estava fora do controle do
arriscando sua vida ao enfrentar os golpis- executivo e continuava a imprimir dinheiro
tas e aumentando sua popularidade pessoal, para resgatar ou simplesmente agradar em-
que vinha crescendo desde 1990. Nesse ano, presas em apuros e seus gestores. A inflação
o Congresso dos Deputados do Povo, elei- disparou a quatro dígitos, a produção de-
to sob as reformas de Gorbachev de 1988 sabou e os reformadores pareciam só estar
(e contendo uma maioria arrasadora de beneficiando um punhado de empresários
comunistas assumidos) foi substituído por delinquentes especialistas em encontrar
um parlamento russo que escolheu Yeltsin oportunidades de enriquecer na confusão
como presidente. anterior. Antigos aliados de Yeltsin, entre os
POLÍTICA MUNDIAL | 89

quais o vice-presidente Alexander Rutskoi, Yeltsin continuou a ter aprovação po-


ex-general da força aérea e herói da guerra pular, que foi reafirmada em 1993. Ele não
no Afeganistão, recuaram, avaliando que tinha adversário de igual estatura ou des-
Yeltsin, sob influência dos reformadores, taque, pois nem Rutskoi, nem Khasbulatov
estava tentando fazer em cinco anos o que tinham muito apelo popular. E ele tinha
deveria ser feito em 20. Os críticos forma- apoio pelo menos suficiente nas forças ar-
ram a União Cívica, que se tornou um gru- madas, talvez dois terços entre oficiais de
po importante no Congresso e somou forças alta patente e mais nas inferiores. Por outro
com os ex-comunistas, ainda mais hostis lado, não tinha criado um partido político
a Yeltsin do que haviam sido a Gorbachev. do qual pudesse ser descrito como líder;
Yeltsin foi forçado a retirar sua indicação de era poderoso, mas isolado, menos deter-
Gaidar como primeiro-ministro e indicou minado do que, por exemplo, Walesa na
em seu lugar (1992) Victor Chernomyrdin, Polônia, e seu conflito com o Congresso
de quem se esperava que fosse um media- desviava sua atenção para o tratamento de
dor responsável entre Yeltsin e o presidente um declínio econômico assustador. Os pre-
do Congresso, Ruslan Khasbulatov, outro de ços continuavam a disparar: em um ano, o
seus ex-aliados que se tornou adversário. rublo perdeu 90% de seu valor em relação
A oposição a Yeltsin não se limitava à ao dólar, a ajuda estrangeira chegava com
sua política econômica e a seus assessores. muita dificuldade e, nos anos entre 1989 e
Sua força de caráter ofendia tanta gente 1993, a produção caiu quase pela metade.
quanto atraía. Sua firmeza beirava o auto- Em 1993, Yeltsin chamou Gaidar de volta,
ritarismo. Embora pudesse ser arrojado na afastou Rutskoi e, em uma ação quase ile-
defesa de um princípio ou visão ampla, ele gal, dissolveu o Congresso. A batalha entre
transmitia uma liderança incerta em relação Yeltsin e seus inimigos se tornou violenta,
às políticas, por ser naturalmente errante ou Yeltsin ordenou o bombardeio dos prédios
por já estar além de suas capacidades. Ha- do parlamento e colocou Rutskoi e Khas-
via no Congresso um núcleo duro de leais bulatov na prisão.
a Yeltsin, mas um número comparável de A eleição de um novo Congresso foi
oponentes com um grupo intermediário – contestada pelas três principais forças: re-
provavelmente o maior, mas também o mais formadores, comunistas/conservadores e
coerente, que aceitava a necessidade de re- nacionalistas. O próprio Yeltsin adotou uma
formas substanciais, mas via com temor e distância que não era facilmente distinguí-
desalento o sofrimento envolvido e queria vel de sua postura indecisa. Nem formou
menos descontrole de preços (especialmen- um partido próprio nem apoiou claramen-
te artigos de primeira necessidade), menos te qualquer dos outros, colocando-se auto-
privatização e, acima de tudo, menos velo- craticamente fora das batalhas partidárias.
cidade. Esse grupo não oferecia um progra- Metade do novo Congresso foi eleita por
ma alternativo convincente e teve influência representação proporcional em listas, me-
principalmente para impedir que os grupos tade por disputas em regiões eleitorais. Os
anti-Yeltsin conseguissem os dois terços ne- reformadores, que assumiram o nome “Op-
cessários para retirá-lo do cargo ou aprovar ção da Rússia” e tinham em Gaidar seu líder
seu impeachment. mais destacado, debatiam entre si em vez
Como a Constituição proibia o presiden- de apresentar uma frente unida ao eleito-
te de dissolver o Congresso antes do final de rado, e ficaram apenas em segundo lugar
seu mandato, em 1995, houve um impasse. (15% dos votos) na primeira seção, mas
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venceram em mais regiões do que qualquer trangeiros tinham dois motivos principais
outro partido. Os nacionalistas eram lide- para dar pronta ajuda à Rússia, mas nenhum
rados por Vladimir Zhirinovski, que havia deles estava relacionado ao futuro imediato.
ficado em terceiro na eleição presidencial O primeiro era que a Rússia soviética tinha
de 1991 e fazia campanha baseado em uma sido uma potência temida, e o segundo, que
mistura demagógica de xenofobia e popu- a nova Rússia continha recursos que um dia
lismo – da restauração do poder e do ter- poderiam render lucros substanciais. Um
ritório russos (incluindo o Alaska) à vodca motivo secundário era a grande incerteza
barata. Seu principal apelo, que parecia não sobre o que ela deveria ou poderia fazer se
depender de idade, era dirigido às pessoas se tornasse anárquica. No caso, a década de
que tinham medo do caos e da humilhação 1990 foi quando a Rússia deixou, aos olhos
nacional iminentes. Os comunistas tiveram ocidentais, de se qualificar para receber aju-
12% dos votos na primeira seção e ficaram da significativa e o Ocidente deixou de for-
em terceiro na segunda. Juntos, esses grupos necer o que quer que pudesse ter ajudado o
conquistaram metade – mas somente me- governo russo a se sair melhor.
tade – das cadeiras de cada seção. Embora Sob o comando de Gaidar e Chubais
tenha prevalecido sobre seus adversários, a em 1992-1994, metade da força de traba-
posição de Yeltsin não era firme. Ele queria lho industrial e dois terços das indústrias
um Estado russo forte e centralizado com – mais de 100 mil empresas diferentes – fo-
uma base econômica eficaz, e ele próprio ram privatizados, embora as transferindo
no comando, mas sua condição pessoal foi principalmente a seus administradores por
prejudicada por uma grave doença cardíaca preços baixíssimos (metade das ações foram
e excesso de bebida; ele vacilava com relação transferidas aos administradores e aos tra-
às políticas econômicas e se envolveu em balhadores e outros 30% foram leiloados,
uma guerra no Cáucaso que perdeu de for- com exceção das indústrias de petróleo, gás
ma humilhante. Sua reeleição, em 1996, não e defesa), mas a produção continuou a cair.
parecia provável. Para Yeltsin, como para Na agricultura, quase todas as fazendas co-
Gorbachev, dominar a confusão econômica letivas foram convertidas em companhias
era um passo grande demais. O problema limitadas, mas a distribuição permaneceu
central da Rússia nesse campo era a demo- insuficiente ou se tornou caótica. Somente
lição de uma economia de comando incom- o setor de serviços registrou avanços pro-
petente e corrupta e a substituição por um missores. O investimento estrangeiro defi-
novo sistema, principalmente instituições nhava, o rublo entrou em uma espiral des-
capitalistas e uma moeda estável. cendente e a inflação, depois de baixar de
Essa conversão requeria subsídios ou índices astronômicos para 25%, começou a
créditos estrangeiros muito elevados, uma subir de novo. O orçamento, sobrecarregado
grande medida de acordo no mundo políti- com subsídios contínuos para empresas e fa-
co russo e um nível mínimo de integridade zendas quebradas, não conseguiu chegar aos
administrativa e fiscal. Algo disso aconte- 7,7% do PIB estabelecidos pelo FMI como
ceu, mas o balanço líquido em uma década precondição para empréstimos (6,5 bilhões
ficou muito aquém do que era necessário, de dólares em 1995, 10,2 bilhões em 1996).
de forma que, no final dos anos de 1990, o Gaidar e Chubais foram afastados.
governo não inspirava qualquer confian- Os fracassos econômicos geraram cri-
ça no país nem no exterior. Nos primeiros minalidade, extorsão e corrupção. Os salá-
anos da revolução pós-comunista, os es- rios do serviço público, incluindo as forças
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armadas, muitas vezes não eram pagos e o de uma tentativa fracassada de reinstalar o
governo caminhava para o favorecimento governo regional pela força, Yeltsin retirou
de amigos. As inconstâncias de Yeltsin fa- as tropas russas e impôs um embargo eco-
ziam lembrar o começo errático do último nômico, que não foi eficaz. Ele ficou alar-
autocrata reformador da Rússia, o Czar Ale- mado com a possibilidade de revoltas em
xandre II, um século e meio antes. Mais pre- outras regiões étnicas e com o fluxo de pe-
judicial ainda era o mau gerenciamento de tróleo no Mar Cáspio, que chegava ao porto
uma crise na Chechênia, no Cáucaso, que se russo de Novorossisk através da capital che-
transformou em uma guerra tenebrosa. chena Grozny, onde estava a segunda maior
A Rússia era ainda menos Estado-Na- refinaria da Rússia. De sua parte, Dudayev e
ção do que a maioria dos países europeus. seus apoiadores temiam que as tropas russas
Era uma federação étnica e administrativa enviadas à Geórgia para ajudar Shevardna-
que continha 21 repúblicas e 10 distritos au- dze contra Gamsakhouria (que reconheceu
tônomos, todos elegendo seus presidentes a sozinho a independência da Chechênia)
partir de 1991; 52 regiões e 6 territórios que fossem usadas contra o chechenos. Yelt-
elegiam seus próprios governadores a partir sin jogava com vários antagonistas locais
de 1997; e cerca de 50 disputas internas de de Dudayev – aos quais teria dado menos
fronteiras. A situação econômica calamitosa importância se fosse mais bem-informado
e a situação política confusa alimentavam a – mas não com o mais sério deles, Ruslan
desintegração, forçando grupos étnicos lo- Khasbulatov, que foi um de seus mais fero-
cais ou meramente improvisados a assumir zes inimigos nos recentes conflitos com o
a autoridade em suas próprias mãos. Em parlamento em Moscou. As lutas esporádi-
1992, Yeltsin garantiu o acordo de todas as cas continuaram nas fronteiras da Chechê-
repúblicas, menos duas (Chechênia e Tartá- nia até 1994, quando Yeltsin decidiu extin-
ria), para uma federação russa na qual elas e guir o regime de Dudayev por meio de ação
as cidades de Moscou e São Petersburgo (re- militar plena. Mal feita, mas feroz, essa ação
batizada) teriam poderes ampliados sobre teria custado em algumas semanas mais vi-
suas próprias questões, mas os chechenos já das do que os russos perderam no Afeganis-
estavam em estado de rebeldia. tão. Os chechenos retaliaram com ataques
Eles vinham enfrentando a dominação dentro da Rússia e fizeram 1.500 reféns. As
russa por dois séculos. Houve uma revolta tentativas russas de resgatá-los custaram
grave em 1929 e, durante a Segunda Guer- mais vidas, a destruição de um hospital in-
ra Mundial, foram deportados de sua terra teiro e um acordo com os chechenos, pelo
natal – 250 mil pessoas, das quais quatro qual eles teriam permissão para recuar à sua
de cada cinco morreram e os sobreviventes terra de ônibus, levando alguns dos reféns.
permaneceram no exílio depois que Stalin A guerra era muito impopular na Rússia, le-
morreu. Eles tinham a reputação de ser os vantava questões incômodas sobre má ges-
principais traficantes de armas da Rússia, tão militar e as relações de Yeltsin com seus
com uma posição estabelecida no submun- chefes de exército; levantava questões ainda
do de Moscou. Em 1991, Dzokar Dudayev, mais incômodas sobre o controle da Rússia
um general soviético que serviu no Afega- sobre todo o Cáucaso, uma região do tama-
nistão, mas estava casualmente de licença na nho da França, que incluía 50 línguas, bem
Chechênia, onde nascera, foi levado à lide- como diversos tipos de cristianismo e Islã;
rança de um grupo que proclamou a inde- comprometia as chances da Rússia de rece-
pendência, com ele na presidência. Depois ber ajuda estrangeira – privada, nacional e
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internacional –; e colocava em risco as pers- de sua juventude na Arábia Saudita, buscou


pectivas de Yeltsin ser reeleito presidente. ajuda financeira nesse país e, possivelmente,
Quando Dudayev foi morto (provavelmente também do exilado wahabita saudita Osama
assassinado), Yeltsin aproveitou a oportuni- bin Laden no Afeganistão (por isso os waha-
dade de voar até a Chechênia com propostas bitas do Cáucaso eram chamados, às vezes,
de paz. Depois de sua reeleição, despachou de afegãos). Em 1999, os ataques a prédios
seu rival, de fala direta e perigosamente po- civis em Moscou e em outras cidades russas
pular, o general Alexander Lebed, para fina- fizeram com que Yeltsin retomasse a guerra
lizar um acordo com o sucessor de Dudayev, contra a Chechênia.
Aslan Maskhadov. Então, Yeltsin livrou-se Nas eleições do final de 1995, os comu-
de Lebed e concluiu um acordo que dava nistas, liderados por Gennadi Zyuganov,
à Chechênia – rebatizada de República da foram o partido com mais força, com os ul-
Ichkeria – independência na prática, mas tranacionalistas de Zhirinovski em segundo:
a postergava para 2002. Essa era uma ma- a maioria dos mais de 40 partidos não con-
neira de afastar a chance de desastre, mas seguiu atingir o patamar de 5% necessário
não resolvia a questão da Chechênia nem para um lugar no parlamento, enquanto os
a mais ampla, do nacionalismo antirruso reformadores estavam enfraquecidos por
no Cáucaso. Do ponto de vista de Moscou, sua divisão entre os seguidores de Gaidar e
Maskhadov revelou-se um fracasso, pois os de Grigori Yavlinski (o principal reforma-
não conseguiu controlar grande parte da dor dos anos Gorbachev). Esses resultados
Chechênia. Outros chechenos, como Sha- galvanizaram Yeltsin para manobras ativas
mil Basayev e Habib “Khattab”, opunham-se com vistas a manter a presidência no ano
a seu acordo com Moscou e buscavam apoio seguinte contra os comunistas e Lebed, que
dos descontentes no vizinho Daguestão – surgiu como o homem do momento. Quan-
um país muito maior e etnicamente menos do Lebed ficou em terceiro no primeiro tur-
homogêneo do que a Chechênia. no, Yeltsin o comprou com altos cargos e res-
No Daguestão, pouco se confiava nos ponsabilidades de governo, e mais uma vez,
chechenos e havia menos hábito de descum- triunfou, demitindo-o mais tarde. Deu a seu
prir a lei, mas se compartilhava a hostilidade governo um toque reformista ao reabilitar
da Chechênia em relação à dominação rus- Chubais junto com o jovem político provin-
sa e sua fé muçulmana sunita. Uma peque- cial Boris Nemtsov, mas depois de um ano
na minoria foi atraída para o wahabismo, a ele afastou Chubais (muito em função de
corrente puritana no Islã sunita que era en- uma transição financeira no mínimo duvi-
dêmica à Arábia Saudita. Os wahabitas de- dosa) e, em 1998, demitiu o primeiro-minis-
fendiam o governo clerical rígido segundo tro Victor Chernomyrdin e seu gabinete, por
as regras da xariá*, mas no Daguestão, eles falta de dinamismo, e indicou um de seus
não eram populares e se tornaram ilegais membros menos conhecidos, Grigori Kiri-
em 1997, porque seriam instrumentos de lenko, como primeiro-ministro. Duas vezes
forças estrangeiras. O wahabismo caucasia- rejeitada pelo parlamento, a indicação de Ki-
rilenko foi aprovada somente em uma tercei-
no, contudo, foi fortalecido quando se es-
ra tentativa, quando, sendo o voto secreto, os
palhou entre os chechenos mais militantes
líderes partidários puderam manter a oposi-
e quando Khattab, que tinha passado parte
ção a ela enquanto um número suficiente de
membros votava a favor, para evitar a disso-
* N. de R. Código de leis do islamismo. lução automática do parlamento. Foi uma vi-
POLÍTICA MUNDIAL | 93

tória de ninguém. Os adversários parlamen- dever cada vez mais. A terceira condição,
tares de Yeltsin fizeram mais para fustigá-lo econômica, era a mais desconcertante, prin-
do que para derrotá-lo. Eles esquivaram-se cipalmente porque envolvia indiretamente
das correntes de descontentamento popular o fornecimento de créditos em dinheiro em
(mineiros de carvão em greve, por exemplo) quantidades muito altas.
e o deixaram livre nas questões de política A necessidade política de promover a
externa. Ao obter acordos de fronteira com estabilidade e a democracia na Rússia por
a Lituânia e a Letônia, a China e (ainda que meio da ajuda econômica acrescentou-se a
de forma experimental) o Japão, Yeltsin con- perspectiva, em última análise, de lucros em
seguiu manter parte de sua reputação como um país com recursos naturais considerá-
homem de ação. Ele aparecia regularmente veis e uma necessidade evidente de tecno-
em importantes conferências internacionais logia e assessoria do Ocidente. Os doadores
e cultivava o apoio de seu mais firme aliado estavam divididos em relação ao ritmo em
estrangeiro, Helmut Kohl. Com os Estados que a antiga economia deveria ser substi-
Unidos e a OTAN, contudo, ele só obteve o tuída. Eles tendiam a favorecer uma via rá-
mínimo – uma aceitação por parte da orga- pida com choques bruscos para encurtar o
nização de não usar armas nucleares nos ter- processo doloroso, mesmo ao preço de au-
ritórios dos novos membros. mentar o desemprego e a privação, com as
O apoio a Yeltsin entre os estrangeiros pessoas passando fome em alguns lugares.
– particularmente entre os que achavam Alguns – especialmente a Comissão Econô-
que ele poderia ser alguma espécie de de- mica para a Europa, da ONU – se opunham
mocrata – foi anulado por seu histórico de a soluções mais desesperadas defendidas
equívocos, infortúnios e má gestão, e pelo pelo FMI, o Banco Mundial e os governos
entendimento da verdadeira escala da ajuda e especialistas ocidentais, não apenas por
financeira que se fazia necessária. Aqueles sua severidade, mas também porque uma
que poderiam fazer empréstimos finan- transformação curta e brusca demandaria
ceiros ficaram preocupados e, já em 1991, instituições, habilidades e hábitos que não
o Grupo dos Sete reduziu suas ofertas. A poderiam ser tirados do nada.
ajuda ocidental – tendo à frente o governo A transferência de ativos, inicialmente
e bancos alemães e o Banco Europeu para a bloqueada por questões práticas e jurídicas
Reconstrução e o Desenvolvimento, criado (escassez de capital privado, inexistência de
em 1989 – estava condicionada a três ob- administradores adequados), ganhou for-
jetivos ou expectativas: de que a Rússia se ça, mas foi acompanhada por extorsão, cor-
tornasse um Estado nacional em vez de im- rupção e consumo aberto por parte de uns
perial, uma democracia e uma economia de poucos e miséria e desilusão disseminados
mercado com o predomínio da propriedade entre a grande maioria. A boa vontade
privada. A interferência russa na Geórgia e inicial dos estrangeiros desapareceu. Em-
no Tadjiquistão foi tolerada, mas o ataque bora a inflação tenha sido reduzida a 15%
aos chechenos gerou muita inquietação. O durante o mandato do descartado Cher-
bombardeio do parlamento por Yeltsin foi nomyrdin, a economia estava sem direção
tolerado porque ele parecia um governante e, em 1998, desceu da recessão para a ca-
mais confiável do que qualquer um de seus tástrofe. A Rússia deixou de pagar suas dí-
prováveis sucessores, mas não sem descon- vidas anteriores a 1992 (soviéticas). O país
forto com relação aos papéis presente e fu- não conseguia coletar impostos nem con-
turo dos líderes militares a quem ele parecia trolar a corrupção. Com as dívidas interna
94 | PETER CALVOCORESSI

e externa fora de controle (a primeira em indicação por Yeltsin de Chernomyrdin no


cerca de 75% do PIB), com um serviço da lugar de Kirilenko. O conflito entre Yeltsin
dívida que se estimava chegar a 15 bilhões e os políticos também era um conflito en-
de dólares no ano 2000 e taxas de juros de tre políticos e magnatas, enquanto o exérci-
até 50% – em determinado momento, até to – que tinha perdido grande parte de seu
mesmo 150% –, com preços de petróleo, equipamento técnico, a lealdade e a solida-
ouro e commodities destruindo os balanços riedade de suas fileiras que ficavam sem pa-
comerciais comparativamente saudáveis: o gamento – permanecia em segundo plano.
rublo foi desvalorizado em agosto em 30%, Yevgeny Primakov, um competente político
o pagamento do serviço da dívida foi sus- ainda sem uma base de poder político, foi
penso por três meses, bancos faliram, os aceito como primeiro-ministro, mas depois
créditos estrangeiros foram suspensos, o de oito meses, também foi demitido su-
capital estrangeiro foi retirado a um ritmo mariamente, em teoria por incompetência
de 10% por mês e o nascente mercado de econômica, mas mais provavelmente por-
ações viu 85% do valor das ações comer- que tinha começado a construir um nome
cializadas desaparecerem. Em desespero, e estava combatendo a corrupção em áreas
o FMI deu, em 1999, novos créditos de 4,5 em que Yeltsin preferia deixar nas sombras.
bilhões de dólares em 18 meses, para possi- O sucessor de Primakov, Sergei Stepanshin,
bilitar que o governo cumprisse suas obri- teve um mandato ainda mais curto, tendo
gações imediatas, e os credores membros sido substituído depois de três meses por
do Clube de Paris reduziram o pagamento Vladimir Putin, a quem Yeltsin também in-
de juros para 1999 e 2000, de 8 bilhões de dicou como seu candidato favorito para a
dólares para 600 milhões por ano. presidência em 2000. A incoerência política
A demissão de Kirilenko, após a de foi aumentada pelo fracasso dos comunistas
Chubais, anunciava o fim de qualquer coisa em lucrar com o declínio de Yeltsin. O an-
semelhante a um programa de reformas. O tigo Partido Comunista da União Soviética
sistema comunista que desabara permanecia tentou se distanciar de seu passado ao se
sem uma alternativa econômica que funcio- transformar, em 1990, no Partido Comunis-
nasse, enquanto aproveitadores protocapita- ta Russo e ao assumir um nacionalismo rus-
listas escavavam em busca de ouro e o resto so menos ridículo do que o de Zhirinovski e
da população enfrentava a ruína e a fome. menos obviamente interesseiro do que o de
Quando colocou Kirilenko no lugar de Lebed, mas sofreu divisões e defecções.
Chernomyrdin, Yeltsin demonstrou que es- A indicação de Putin acelerou a forma-
tava no controle, mas quando reverteu sua ção de um novo bloco que incluía notáveis
indicação, foi porque foi forçado a fazê-lo. das grandes cidades e das províncias, com
Ele não mais ousava arriscar uma dissolu- Primakov como seu candidato presiden-
ção do parlamento, sendo obrigado a acei- cial, de inclinação mais antiocidental do que
tar uma redução dos poderes presidenciais Gorbachev ou Yeltsin, opondo-se à amplia-
e concordar em não concorrer à reeleição ção da OTAN e seu uso na Iugoslávia, pro-
em 2000. Isso foi um golpe, executado não metendo dar um fim ao descuido para com
pelo exército, e sim pelo equivalente russo as forças armadas russas e à fragilidade e de-
das grandes corporações, mas não foi acei- sordem que levaram à perda da Chechênia
to pelos políticos, que tentavam conseguir por parte do Estado russo em 1994-1996, e
uma transferência de poder maior ao parla- adotando a visão popular de que a economia
mento ao rejeitar repetidas vezes uma nova de livre mercado tinha sido uma catástrofe e
POLÍTICA MUNDIAL | 95

que a preocupação ocidental com os direitos superpoderosos – equivalentes modernos


humanos era uma fraude. O que eles esta- das revoltas de cossacos dos séculos XVII
vam dizendo, na verdade, era que, embora e XVIII, que tentaram derrotar a consoli-
a Guerra Fria tivesse sido perdida, quem li- dação e a expansão do Estado moscovita. A
dou com o que veio depois piorou as coisas. Rússia permanecia sendo a corporificação
A retomada da guerra contra a Chechê- na Europa de um Estado-Nação um tanto
nia em 1999 foi, em seus próprios termos, antiquado, e Putin era seu promotor. Por-
bem-sucedida e popular: a determinação tanto, quando seu mandato de presidente se
com que foi conduzida compensou na Rús- aproximava do final, ele manobrou sem di-
sia sua brutalidade e suas misérias. Trans- ficuldades para assumir o posto de primei-
formou 200 mil chechenos – quase metade ro-ministro, do qual poderia, se assim dese-
da população – em refugiados, e matou inú- jasse, voltar à presidência depois do tempo
meros civis inocentes, mas os russos acei- prescrito pela Constituição. Mas o legado
taram o estereótipo do terrorista checheno de Putin incluía – além de um certo grau de
bandido como uma ameaça à vida civilizada estabilidade, alguns pontos econômicos po-
e à integridade do Estado russo. sitivos (principalmente vendas de petróleo e
Putin ganhou mais do que Yeltsin, que gás) e ele mesmo como czar semipermanen-
já tinha sido forçado a abandonar qual- te – tolerância em áreas como corrupção,
quer esperança que pudesse ter de mais um um sistema de aposentadoria em colapso,
mandato. Putin se tornou uma alternati- educação, moradia e igualdade perante a lei.
va a Primakov como próximo presidente A Segunda Guerra Mundial e a Guerra
russo (tinha 20 anos menos) e nas eleições Fria se combinaram para garantir a URSS o
parlamentares do final de 1999, uma alian- status de superpotência. O desmantelamen-
ça em torno de Putin superou a aliança de to do Império Soviético, seguido da desin-
Primakov. Os comunistas, ainda o maior tegração da própria URSS, deixou a Rússia
partido, ganharam votos, mas perderam em uma posição não muito boa no mundo e
cadeiras; os reformadores econômicos de sem qualquer posição clara na Europa. Vista
Yavlinski e os ultranacionalistas de Zhirino- do Ocidente, a cena no Leste era de fragi-
vski mal conseguiram entrar no parlamento, lidade tendendo à anarquia. Mesmo assim,
com 6% dos votos cada um; o restante dos a Rússia se manteve como um Estado com
grupos não conseguiu nenhuma cadeira. alguma importância. Durante os anos de
No último dia do ano, Yeltsin transformou sua conversão em superpotência e de retro-
a cena política ao renunciar a seu mandato cesso, os outros principais países europeus
e indicar Putin como presidente interino, a – a Alemanha e a França – alteraram a na-
ser submetido a uma eleição que, segundo tureza da política europeia com uma aliança
a Constituição, teria sido realizada em mar- franco-germânica e a construção de uma
ço em vez de junho de 2000. Como Richard União Europeia, baseados na convicção de
Nixon, Yeltsin trocou o mandato pela imu- que o sistema dos velhos Estados europeus
nidade em relação a crimes cometidos con- provavelmente levaria à guerra. Esse em-
tra o Estado. preendimento carecia de um elemento es-
A primeira tarefa de Putin era a restau- sencial enquanto a Rússia estivesse excluída
ração da autoridade russa na Chechênia. ou sua posição fosse ambígua. Essa posição
Quase tão urgente era a restauração da au- nos anos de 1990 era semelhante à da Fran-
toridade do governo central contra chefes ça em 1815, ou à da Alemanha em 1919 e
provinciais, crime organizado, plutocratas 1945 – uma potência derrotada, mas ainda
96 | PETER CALVOCORESSI

existindo, a qual seus pares poderiam tentar importante nas questões europeias des-
subjugar ou incorporar a qualquer sistema de que Catarina, a Grande, e Frederico da
que pretendessem criar. Os europeus do Prússia dividiram a Polônia e Alexandre I
continente preferiam a segunda opção (ou derrotou Napoleão e marchou sobre Paris.
seja, Viena de 1815 em vez de Versalhes de
1919); os norte-americanos oscilavam entre
se reconciliar, fornecendo crédito, e prioro- Os limites do poder das
zar e ajudar estados intermediários criados superpotências
na Mitteleuropa depois de 1919 pela mágica
da autodeterminação, renascidos do resul- Na maior parte da segunda metade do sé-
tado da Guerra Fria e fundamentalmente culo XX e em grande parte do mundo,
hostis à Rússia. a Guerra Fria ditou o padrão da política
O Ocidente em geral, tendo apoiado mundial. Essa guerra foi um conflito imen-
Yeltsin como candidato democrata, na falta samente oneroso e destrutivo, apesar de seu
de alternativa melhor, foi pego no contrapé custo relativamente baixo em termos de vi-
quando ele foi derrotado pelo parlamento das. Foi uma luta de poder entre antagonis-
em nome da democracia, mas sem qualquer tas desconfiados, temperada com venenos
programa econômico ou democrático visível. ideológicos, mas também tinha duas carac-
A última década do século testemu- terísticas distintivas, ambas profundamente
nhou o final da dominação soviética na Eu- enganosas. Os protagonistas, para os quais
ropa Central e Oriental, a desintegração da foi inventada a nova categoria de superpo-
URSS e conflitos surpreendentemente vio- tência, opunham-se segundo um padrão
lentos no sudeste da Europa na medida em que não era um duelo entre autocracias ex-
que a federação Iugoslava também se desa- clusivas, como os Impérios Chinês, Roma-
gregava e a Sérvia fazia tentativas de ane- no ou Mogul, nem uma constelação mu-
xar grande parte da Bósnia e expulsar do tável de várias potências, como o sistema
Kosovo (uma província da Sérvia) os 90% de Estados europeus que ele superou. As
de seus habitantes que eram muçulmanos superpotências eram duas e, supostamente,
albaneses. Esses levantes balcânicos coin- mais ou menos equivalentes. Mas, na ver-
cidiram, inicialmente, com uma primeira dade, elas nunca foram iguais. Os Estados
etapa embrionária na evolução da União Unidos eram superiores à URSS em recur-
Europeia, particularmente na questão de sos materiais, em educação e criatividade e
forças militares conjuntas e seus propósi- em habilidades e princípios de governo, e
tos; segundo, com planos para a extensão essa disparidade ficou evidente quando a
gradual da OTAN sobre grande parte do Guerra Fria arrasou a economia comunista
antigo Império Soviético fora da URSS; e, soviética sem causar danos comparáveis ao
terceiro, com hesitações em relação ao lu- capitalismo norte-americano.
gar da Rússia na Europa. Por um lado, a A segunda característica especial da
Rússia era considerada, principalmente Guerra Fria foi a existência de armas nu-
por muitos norte-americanos, como uma cleares que eram consideradas específicas de
superpotência fracassada cujas pretensões superpotências – seu distintivo – e que jo-
e suscetibilidades poderiam ser ignoradas gavam uma sombra diabólica sobre a pers-
por algum tempo; por outro lado – prin- pectiva de uma guerra quente. No processo,
cipalmente para muitos europeus – como elas se espalharam para outros Estados em
um Estado que tinha cumprido um papel muitas partes do mundo, de forma que, no
POLÍTICA MUNDIAL | 97

final do século, pareciam menos perigosas velmente a derrota e a desintegração do Im-


nas mãos das superpotências do que em pério Soviético.
conflitos regionais. Um problema que surgiria, com ines-
Embora fossem potencialmente devasta- perada dificuldade, é a relação entre os Es-
doras, eram armas de guerra ineficientes, ar- tados Unidos e a ONU, entre uma potência
mas políticas dignas de pouco crédito e não e uma organização de âmbito mundial. A
usadas depois da Segunda Guerra Mundial. ONU, criada por uma lei internacional em
Tornavam a guerra extremamente irracional, solo norte-americano em 1945, representou
davam mais poder a fanáticos do que a es- uma etapa na cooperação entre estados para
tadistas agindo racionalmente e desviavam a uma série de propósitos, dos quais o princi-
atenção da incidência continuada e do custo pal era a prevenção de guerras entre os paí-
cada vez maior das guerras não nucleares. ses. Sua Carta proibia o recurso da guerra
As emoções corporificadas na Guer- por parte de um estado-membro se não fos-
ra Fria possibilitaram que os Estados Uni- se em defesa própria e transferia à ONU –
dos construíssem uma aliança – a aliança agindo a partir das conclusões do Conselho
da OTAN – que durou o tempo da própria de Segurança – esse direito. Além dessa nor-
Guerra Fria, mais do que a maioria das ma radicalmente nova, a Carta obrigava os
alianças na história moderna. O poder da membros da organização a manterem certos
aliança era baseado nos Estados Unidos e, padrões de comportamento interno, como
mas a OTAN era testemunha da determina- a proteção de minorias e o cumprimento
ção de uma dúzia de outros estados em dar de direitos humanos e políticos. Mas nesse
prioridade à Guerra Fria para a formação ponto residia, se não uma contradição, pelo
de suas próprias políticas. Quando a Guerra menos uma ambiguidade, já que a ONU era
Fria terminou, os Estados Unidos criaram uma associação de Estados comprometidos
uma nova aliança (contra o Iraque) que du- com o reconhecimento mútuo da indepen-
rou menos de um ano. Esse contraste, em- dência soberana de cada um, e proibida
bora não se dê entre situações estritamente explicitamente de intervir nas questões do-
análogas, marcou uma mudança na maré. mésticas dos outros (a menos que o Conse-
Bismarck tinha o costume de categorizar lho de Segurança concluísse que um Estado
os aliados como bündnisfähig ou o inverso. era culpado de ameaçar a paz, de rompê-la
Ele tinha em mente partes menores em uma ou de um ato de agressão). Essa imunidade
aliança, mas a distinção poderia muito bem fundamental, embora qualificada, do Esta-
ser aplicada à figura central, e a Guerra do do em relação à intervenção restringia gra-
Golfo de 1991 demonstrou, entre outras coi- vemente a capacidade da ONU de exercer
sas, que os Estados Unidos tinham deixado a obrigação de garantir os direitos huma-
de ser um líder praticamente inquestionável nos, já que, por um lado, ela muitas vezes
e necessário nas questões mundiais. Embora não poderia fazê-lo sem uma intervenção
fossem indubitavelmente uma potência do- forçada e, por outro, essa intervenção era
minante, não mais exerciam o mesmo tipo bloqueada, também com muita frequência,
de liderança, não tinham mais uma pedra por um veto – ou ameaça de veto – no Con-
de toque simples para testar e sintonizar selho de Segurança. A desunião no Conse-
suas políticas externas e não poderiam mais lho também poderia funcionar no sentido
escolher agir em conjunto em vez de sozi- inverso, quando um membro poderoso, de-
nhos. Essas confusões temperaram o alívio terminado a agir, enfrentava a oposição de
e o júbilo que acompanharam compreensi- uma maioria no órgão.
98 | PETER CALVOCORESSI

Esse membro seria forçado a escolher encontraram-se em uma posição decisiva. O


entre abandonar seu propósito ou agir, de- país poderia, em qualquer crise específica,
safiando a lei. As operações contra o Ira- agir por conta própria (com ou sem aliados)
que, depois da guerra de 1991, e contra a na busca de seus interesses nacionais e da-
Sérvia, em 1999, foram realizadas contra a quilo que achassem que a ordem e a justiça
lei da Carta, mas não sem uma boa causa. mundiais demandavam, ou poderiam seguir
As consequências foram a diminuição da estritamente a lei da Carta para recolocar a
eficácia e do prestígio da ONU e um golpe ONU no centro das questões mundiais e
no objetivo de fortalecer o Estado de Direi- afirmar a importância superior do Estado
to nas questões internacionais. de Direito. O fim da Guerra Fria não libe-
A agenda da ONU esteve mais ocupa- rou nem potencializou automaticamente
da do que a de sua antecessora, a Liga das a ONU, como era esperado, depois de um
Nações, principalmente a partir dos anos de período de obstrução temporária. Ele criou
1960, quando as ondas de descolonização uma nova situação inerentemente adversa
a transformaram em um orgão verdadeira- ao papel que lhe havia sido atribuído em
mente mundial. Onde ela pouco difere da 1945. Criada como auxiliar da lei e da or-
Liga é no fato de ter muitas funções, mas dem, ela parecia, do ponto de vista dos Es-
pouco poder. Os fundadores desses orgãos tados Unidos, ser um impedimento a esses
os projetaram como instrumentos auxiliares objetivos ocasionalmente.
para a regulamentação de (principalmente) As crises com relação ao Iraque e ao Ko-
questões entre países. Eles não tinham qual- sovo demonstraram uma disposição norte-
quer intenção de criar um foco superior ou -americana de dar à lei um lugar não tão
rival de poder acima do Estado. Mesmo as- absoluto na regulamentação das questões
sim, os fundadores da ONU queriam torná- mundiais. O mesmo aconteceu com o uso
-la mais forte do que a Liga das Nações, a da OTAN na Iugoslávia, contrário aos ter-
qual, na época de seu fim, era considerada mos do Tratado do Atlântico Norte e des-
medíocre. A Carta da ONU pretendia dar cumprindo a Carta da ONU, bem como a
autoridade e poderes à organização; contu- invasão do Iraque em 2003 e o bombardeio
do, ela não conseguiu exercer nas décadas no final dos anos de 1990 sem a autorização
seguintes, em parte porque foram aborta- explícita do Conselho de Segurança. Os Es-
dos pela Guerra Fria, mas, mais seriamente, tados Unidos tiveram dificuldades de defi-
por estar adiante das realidades e mentali- nir uma linha entre a liderança e a arrogân-
dades. A Guerra Fria destruiu o Comitê de cia. Mesmo assim, a ação norte-americana
Estados-Maiores Militares projetado para não podia ser simplesmente censurada. A
a ONU e planos para suas forças armadas lei não significa tudo em política. O Esta-
embrionárias. Os membros mais fortes da do de Direito, um objetivo válido e urgente,
organização simplesmente não acreditavam permanece sendo isso, e enquanto for mais
ou não se acostumavam com as limitações à objetivo do que realidade, há um “enquan-
sua margem de manobra. Assinaram a Car- to isso” durante o qual as crises específicas
ta sem pretender cumprir tudo o que eles serão tratadas com uma mistura de conve-
mesmos haviam posto nela, de forma que, niência, improvisação e impaciência.
no centro do sistema internacional, havia Forças policiais em todo o mundo, sem
tensões entre a ONU e seus membros mais conseguir capturar criminosos dentro das
poderosos, e com o fim da Guerra Fria, os regras, descumprem essas regras e depois
Estados Unidos, com um poder singular, afirmam que obtiveram o resultado certo,
POLÍTICA MUNDIAL | 99

mesmo que com algum custo em termos tação por uma crescente perspectiva de
de princípios. O que não se pode desculpar ação por parte de forças terrestres. Como
com tanta facilidade é zombar da lei e não Saddam Hussein, Milosevic sobreviveu à
obter os resultados. No Iraque pós-guerra, guerra aérea, mas não teria sobrevivido a
as políticas norte-americanas foram inca- um ataque por terra.
pazes de tirar Saddam Hussein do poder A guerra teve uma série de consequên-
e causaram mais sofrimento a inocentes cias políticas. Fortaleceu os argumentos
do que aos canalhas: as regras internacio- em favor de uma intervenção internacional
nais foram rompidas sem beneficiar quem (por parte da ONU) nas questões de um
quer que fosse. E depois veio o Kosovo. A Estado soberano por razões humanitárias
remoção de todos os albaneses do territó- e também a tendência à criação de insti-
rio – 90% da população total de 2 milhões tuições e capacidades militares unificadas
– era o objetivo declarado de líderes sér- na UE, independentes, embora não ne-
vios, incluindo Milosevic, desde 1980. Os cessariamente desconectadas, dos Estados
extremos de brutalidade com que isso foi Unidos. Esses argumentos tinham possibi-
realizado 10 anos depois estavam latentes lidades de continuar por décadas no século
nessa determinação criminosa, mas prova- seguinte. Kosovo foi um exemplo de como
velmente foram aguçados pela descoberta os argumentos podem ser aperfeiçoados
de que o KLA tinha se tornado mais do pelos eventos. Mais urgentemente, a guerra
que uma cansativa facção guerrilheira e levantou questões sobre a posição da Rús-
pelo recurso da OTAN à guerra para impe- sia nas questões europeias. Para os russos,
di-lo. Essa foi uma guerra ilícita com uma civis e militares, a questão principal era a
causa justa. Seus objetivos eram proteger expansão da OTAN em direção às suas
os albaneses do Kosovo e forçar Milosevic fronteiras e seu uso em ações no sudeste
a aceitar os termos apresentados em Ram- da Europa – que, aos olhos russos, repre-
bouillet para o futuro da província. Foi tra- sentavam uma política norte-americana de
vada por insistência dos Estados Unidos, ameaçar e humilhar a Rússia nos termos da
somente com poder aéreo e com aviões Guerra Fria. Defendendo a letra da lei, a
que voavam acima dos 15 mil pés. Muitos Rússia, embora disposta a cumprir as me-
na Europa estavam céticos em relação ao didas do Conselho de Segurança dirigidas
poder aéreo isolado, principalmente sobre contra a Sérvia, opunha-se firmemente às
o terreno em questão, mas a UE não tinha operações da OTAN e à participação rus-
instituições nem forças militares unifica- sa em uma força internacional de paz sob
das independentes dos Estados Unidos e, comando e controle da organização. Quan-
portanto, nenhuma voz independente. A do Milosevic se rendeu e as forças sérvias
guerra durou 10 semanas, sem conseguir começaram a evacuar, unidades russas na
impedir a matança nem a expulsão dos al- Bósnia foram despachadas através da Sér-
baneses do Kosovo e ameaçou seriamente via até o Kosovo, quando chegaram ao ae-
a estabilidade das vizinhas repúblicas Ma- roporto de Pristina antes da guarda avança-
cedônia e Albânia, mas forçou Milosevic a da da OTAN.
se render. As forças da OTAN não sofre- Com esse gesto, a Rússia tentava en-
ram uma única baixa, e os mortos eram al- fatizar que não poderia ser ignorada, mas
baneses ou sérvios. Ainda não se sabe com sua linha de ação, além de ser uma surpre-
certeza se esses resultados foram atingidos sa desconcertante, revelou divisões e au-
só com o poder aéreo ou com sua susten- sência de autoridade no regime de Yeltsin.
100 | PETER CALVOCORESSI

As consequências imediatas foram peque- um épico maniqueísta, mas como uma po-
nas, a Rússia mostrou que poderia causar tência entre outras, em um sistema de múl-
problemas, mas não que pudesse influen- tiplos Estados. Não muitos anos mais tarde,
ciar em muito os eventos. o último presidente norte-americano do sé-
A última década do século não deu um culo demonstrou sua crença de que a Chi-
final limpo à Guerra Fria. Ela afastou algu- na, junto com o Japão, Sudeste Asiático e a
mas percepções relacionadas ao conflito e costa do Pacífico, era estratégica e, acima de
assim, ajudou a estabelecer uma nova geo- tudo, economicamente tão importante para
grafia política que tinha tomado forma nas os Estados Unidos quanto seus interesses
sombras da Guerra Fria. Elementos que ha- fortificados na Europa e no Oriente Médio.
viam sido essenciais na formulação da po- Contudo, a posição norte-americana nessa
lítica mundial subitamente pareciam falsos. vasta esfera não poderia ser hegemônica
O primeiro deles foi a própria concepção no sentido que teve no padrão da Guerra
de bipolaridade. A ressurreição do Japão Fria, nem tão aberta às demonologias que
depois de 1945 e a posterior ressurreição haviam sido tão úteis durante o confli-
da China fizeram com que a bipolaridade to. Se fosse para haver uma Nova Ordem
parecesse estranha. Era tão grande a força Mundial, ela não viria, como proclamou o
da matriz da Guerra Fria que o Japão tinha presidente Bush (pai), da derrota do Ira-
sido considerado como um assessório dos que na guerra de 1991, mas de uma série
Estados Unidos e a China, da URSS. Como de causas, principalmente o ressurgimento
luta de potências, a Guerra Fria tinha a da China e o peso econômico da Ásia e do
aparência de uma competição tradicional Pacífico. E nessa Nova Ordem, os Estados
por território, mas suas embalagens ideo- Unidos – única superpotência sobreviven-
lógicas lhe davam um alcance sem limites te no mundo – seriam menos, e não mais,
territoriais. Do ponto de vista dos Estados dominantes, como parecia predizer inicial-
Unidos, ela se estendia à China e a todas as mente o colapso da URSS. No momento em
partes do mundo supostamente abertas à que se tornaram únicos, os Estados Unidos
influência chinesa. Mas a reintrodução da demonstraram – principalmente para si
China nas questões mundiais teve o efeito mesmos – ser menos do que onipotentes.
oposto, porque causou o primeiro grande Uma segunda mudança nas bases da po-
rompimento na miragem bipolar (a Iugos- lítica mundial estava relacionada ao próprio
lávia foi o primeiro, mas menos intenso). Estado. Ele continuava sendo a peça funda-
Tendo recuperado, em meados do século, mental do sistema internacional, havia mais
a independência que tinha deixado escapar Estados do que jamais houvera antes e eles
por 300 anos para uma dinastia manchu- eram mais diversificados cultural e politica-
riana e depois para os japoneses e (ainda mente. A principal fonte dessa multiplica-
que de forma marginal) para os invasores ção – a descolonização da Ásia e da África
europeus, a China, gigante do passado e do – produziu novos Estados que valorizavam
futuro, sofreu as calamidades do governo sua independência, mas descobriram que,
de Mao, mas pelo menos foi sempre tão economicamente, ela era um engano.
nacionalista quanto comunista e – como a Essa discrepância também foi vivencia-
surpreendente visita do presidente Nixon a da em outras partes do mundo. Os países
Pequim em 1972 demonstrou – estava fa- estavam acostumados a fazer e desfazer
zendo sua ressurreição, não como um ator alianças que eram, na maioria dos casos,
em uma ordem comunista sólida dentro de reconhecidamente temporárias, mas essa
POLÍTICA MUNDIAL | 101

mutabilidade política, inadequada ao pla- tinham dois objetivos amplos. Eles busca-
nejamento econômico de longo prazo, vam uma forma de impedir uma terceira
era, se não superada, complementada pela grande guerra contra as ambições hegemô-
construção de blocos voltados a persistir nicas do Estado alemão e, conjuntamente,
indefinidamente, até mesmo permanente- maximizar as forças econômicas da Euro-
mente, e a operar, com alguns propósitos, pa e sua criatividade técnica e política. O
como entidades únicas. principal obstáculo a esses objetivos era o
Os impulsos centrais por trás dessas nacionalismo divisivo baseado na competi-
associações foram as demandas e oportu- tividade antagônica, ainda que inspiradora,
nidades do comércio internacional e do dos Estados-“nação” separados, nos quais
investimento transnacional. Foram grupos o continente foi gradualmente dividido a
de países, geograficamente contíguos, cul- partir da Idade Média. Um obstáculo me-
turalmente afins, com interesses comuns nor – de certa forma, uma vantagem para-
e o sentimento de que nenhum deles po- doxal nas primeiras etapas – era a alienação
deria ter muita importância no futuro não da Mitteleuropa e dos Bálcãs sob governo
tão distante. Entre os protótipos estavam a comunista em relação à Europa Ocidental.
Associação de Nações do Sudeste Asiático No final do século, havia uma União Eu-
(ASEAN) e uma variedade de experimentos ropeia, mas agora ela desenvolveria uma
na América Latina e no oeste e sul da África. relação entre seus membros enquanto seu
Eles representaram um voto de censura por todo permaneceria desestabilizado e de-
parte dos próprios países que hesitavam e se sestabilizador. Ela colocou a prática antes
protegiam, mas até mesmo os mais podero- da constituição. A luz no final do túnel era
sos flertaram com essas iniciativas, incluin- para estar claramente visível já na metade:
do os Estados Unidos, com agrupamentos não era empreitada para corações frágeis.
pan-americanos ou do Pacífico. A perspectiva não era a extinção do Estado
Os principais empreendedores desse europeu, e sim o seu rebaixamento, deline-
tipo foram os fundadores e adeptos poste- ado de forma imprecisa.
riores daquilo que mais tarde se tornou a As questões mundiais são conduzidas
União Europeia. Essa foi a inovação políti- dentro de limites que não estão, ou estão
ca de destaque do século, um experimento pouco, sujeitos ao controle humano. Aqui
audacioso que tentava, na Europa como um não é lugar para um exame mais amplo
todo, o que os cantões suíços tinham logra- dessas forças superiores, mas se podem
do séculos antes: a subordinação de distin- mencionar duas: crescimento populacio-
ções políticas, econômicas e religiosas em nal e globalização.
uma nova base de poder, nova identidade O número de pessoas no mundo vinha
cultural e novas instituições comuns. Ao dobrando e redobrando em intervalos cada
ser derrubada, em meados do século, do vez mais curtos, e chegou a 6 bilhões no fi-
patamar superior do mundo, a Europa nal do século XX, tendo dobrado em menos
manteve vantagens especiais invejáveis. de 50 anos (em 1800, era de 1 bilhão).
Era um caso especial: pequeno, reconhecí- Esse tipo de crescimento não era neces-
vel, coerente, há muito contando com boa sariamente um desastre. O crescimento já
educação, tecnicamente avançado, compa- tinha sido contido no passado, até mesmo
rativamente rico, mais bem administrado e revertido, e não era impossível fazer com
organizado do que a maior parte do mun- que o fornecimento de alimentos corres-
do. Os defensores de uma Europa unificada pondesse às necessidades de populações
102 | PETER CALVOCORESSI

crescentes. Mas números cada vez maiores, incluindo o Estado, cujo alcance ela trans-
aliados à maior mobilidade, criaram proble- cende. Em questões econômicas, prejudica
mas políticos, além dos econômicos e hu- as atividades dos mercados livres ao ex-
manitários. As fronteiras entre os Estados pô-las à atividades de elementos malévolos
passaram a ser ultrapassadas mais e mais, e anárquicos, sejam indivíduos ou empresas.
não somente por refugiados da brutalida- Amplia, mais uma vez de forma anárquica,
de, mas também por migrantes em busca as oportunidades de manipulação demagó-
de sustento básico ou algo mais. Os países e gica da opinião, seja por políticos agindo em
seus cidadãos se ressentem e resistem a esses interesse próprio, seja por fundamentalistas
movimentos que, quando tornam-se mais intolerantes, mas, por isso, prefigura novas
fáceis, também passam a ser uma fonte de forças democráticas ao trazer mais e mais
desordens e desastres tão mortíferos quanto indivíduos em contato com as questões pú-
as guerras. Essa fluidez demográfica pertur- blicas e entre si, o que poderia ser seu pro-
badora poderia ser ampliada por mudanças duto mais revolucionário.
climáticas: no final do século XX, o aque- Em um prazo mais curto, a globalização
cimento global e as inundações resultantes pode ser vista, não tanto como uma força
estavam causando migrações e hostilidades destrutiva, mas como uma força limitadora.
no nordeste da Índia e em Bangladesh. Ela não destrói o Estado, mas, assim como
Em segundo lugar, a globalização: esse a Cidade-Estado desapareceu há séculos,
é um termo cunhado para descrever uma mas não as cidades, o Estado soberano de-
revolução de magnitude copernicana. Essa saparecerá, mas não os Estados. O mercado
revolução surge do impacto da tecnologia de produtos ou fundos não desaparecerão,
no espaço e no tempo como o vivenciam os mas sim a noção de que “quanto mais livre
seres humanos, e afeta o que homens e mu- o mercado, mais eficiente e benigno” pare-
lheres sabem e pensam uns sobre os outros, cerá tão simplista e exagerada quanto Key-
como negociam entre si e de que instituições nes a considerava há meio século. À medida
eles precisam para regular suas questões. O que encolhe em termos humanos, o plane-
processo não é novo, mas atingiu uma fase ta se torna mais complexo e contraditório,
crítica. Aquilo que foi iniciado pelo telé- demandando cooperação mais eficiente na
grafo elétrico e motor à combustão interna contenção dos conflitos armados, na pro-
assumiu um novo significado, diferente não teção dos direitos humanos e na gestão de
em grau, mas em tipo, quando a tecnolo- recursos e produção.
gia moderna possibilitou que as pessoas, Uma dimensão do poder é a distância.
as ideias, as tecnologias e o conhecimento As boas comunicações, sejam físicas ou
se movimentassem de um lugar para outro técnicas, estendem o poder. As estradas ro-
com uma velocidade impressionante, em manas foram um elemento importante no
volume inédito e por meios que estão fora imperialismo romano e na difusão do cris-
do controle de autoridades políticas e ins- tianismo; seu descuido e decadência, uma
tituições econômicas estabelecidas, e par- causa para a rápida dissolução do império
cialmente fora do próprio mundo. Baseada de Carlos Magno. Nos tempos modernos,
na invenção técnica, ela é irreversível. Um a tecnologia da informação acirra as atra-
de seus impulsos é em direção à anarquia, ções da guerra econômica como alternativa
porque coloca em questão a capacidade de à força militar crua, mas também perturba
organizações territorialmente delimitadas, padrões políticos estabelecidos ao permitir
POLÍTICA MUNDIAL | 103

que a informação e as transações cheguem ção anômala provocada pela globalização.


aos confins do planeta e assim escapem ao Os sucessos de sua expansão comercial e
controle do poder político e da lei. A glo- financeira as levaram para além dos limi-
balização cria hostilidade por servir aos tes e do controle do Estado em uma época
interesses de uma proporção inaceitavel- em que os padrões políticos predominantes
mente pequena da humanidade. Ela cria permaneceram nacionais, em vez de inter-
movimentos de protesto, dirigidos princi- nacionais. O big business estava se tornando
palmente contra o Estado, às vezes lutando uma lei, insuficientemente regulamentado
para parar o imparável, às vezes violentos, às ou responsabilizável – um resistente em um
vezes fechando os olhos para os benefícios novo mundo. Tinha poucos amigos.
que estão entre as transformações que os Por fim, a política de protesto ou mani-
protestos tentam impedir; mas muitos, tam- festação representava uma ameaça ao gover-
bém, agindo no espírito de Pascal quando no democrático. A democracia parlamentar
ele apontou que o coração tem razões que se baseia no acordo. Ela não é o que foi des-
a própria razão desconhece. Essas pessoas crito por Aristóteles nem o que se pratica-
ficaram profundamente comovidas quan- va na Atenas clássica, que cobria cerca de
do souberam que um quarto da população 1.500 km2 e tinha uma população política
do mundo estava subsistindo com um dólar (ou seja, excluindo-se mulheres, menores,
ou menos por dia. A conjunção de pobre- estrangeiros e escravos) de cerca de 80 mil
za abjeta com enriquecimento espetacular pessoas em seu pico clássico. Nunca foi re-
deu ao Terceiro Mundo e seus simpatizantes alisticamente possível para cidadãos rurais
força moral, mas ele próprio estava dividi- que viviam fora dos muros da cidade vir a
do. Alguns buscaram salvação por meio da ela a cada semana para debater e votar. Daí
cooperação com organizações internacio- a invenção do moderno Estado de demo-
nais, mesmo que essas fossem dominadas cracia parlamentar no qual milhões de cida-
por países ricos com suas próprias priorida- dãos delegam o governo a um parlamento
des. Ativistas mais radicais denunciaram a eleito por um número de anos limitado (fixo
ordem mundial existente, mesmo que suas ou não). Esse é um sistema frágil, dado que
perspectivas de mudá-la com esses ataques um ponto essencial da democracia é o di-
fossem poucas. reito ao protesto. Mas se o protesto ameaça
Havia outro aspecto de um evento que depreciar o poder ou o prestígio de um par-
parecia, à primeira vista, a versão atual do lamento – caso se recorra com frequência
velho conflito entre ricos e pobres. O princi- a um referendo para evadir ou passar por
pal alvo dos manifestantes antiglobalização cima das forças parlamentares – a única
eram as velhas grandes empresas malignas forma praticável de democracia, que é tão
e suas capacidades ou intenções, mas as valiosa quanto rara, é mutilada junto com a
próprias empresas se viram em uma posi- paz, a prosperidade e a justiça.
104 | PETER CALVOCORESSI

Leituras relacionadas: Parte I Malia, Martin: The Soviet Tragedy – A History of So-
cialism in Russia 1917-1990 (1994)
Estados Unidos Service, Robert: A History of Twentieth Century
Russia (1997)
Adams, Henry: The Education of Henry Adams (1907) Tolstoi, Leo: Hadji Murat (1912) [Chechens]
Kennan, George F.: American Diplomacy 1900-1952
(1957)
Gerais
Lasch, Christopher: The Agony of the American Left
(1970) Aron, Raymond: Memoirs – Forty Years of Political
Reflection (1990)
Rússia Halle, Louis J: The Cold War as History (1991)
Mitrany, David: Marx against the Peasants (1951)
Brown, Archie: Seven Years that Changed the World
(2007)
PARTE
II
EXTREMO ORIENTE
Japão
2
Em 1945, o Japão estava prostrado, seu po- Essa necessidade de garantir produtos bá-
der, aniquilado, e seu símbolo nacional, o sicos, seja participando da exploração ou
imperador, nada valia. Muitas cidades foram estabelecendo controle político-comercial
sido devastadas, algo como 10 a 15 milhões nos lugares onde eles estão, tornou-se um
de pessoas estavam desempregadas e o país importante imperativo da política externa
era ocupado e governado pelos Estados Uni- japonesa.
dos. No espaço de uma geração, o Japão re- O alcance da derrota do Japão que foi
cuperou o status de grande potência, não por de responsabilidade dos Estados Unidos
meio da reposição de seus arsenais, mas da tinha sido tão grande, que esses poderiam
reconstrução de sua indústria, da retomada reduzir a cooperação aliada na ocupação a
do comércio exterior e da reconstituição de um número quase simbólico. Foram criados
suas reservas de dinheiro e moeda estrangei- dois orgãos: o Conselho dos Aliados para o
ra. Era a única potência no mundo que po- Japão, com sede em Tóquio e composto por
deria ser chamada de grande potência, mas URSS, China, um representante da Grã-Bre-
não dispunha de capacidade nuclear, e era tanha e dos membros da Comunidade Britâ-
claramente mais poderoso do que algumas nica no Pacífico, e a Comissão para o Extre-
das outras potências – Grã-Bretanha, Fran- mo Oriente, com sede em Washington, com
ça, Índia – que já tinham realizado explosões 11 membros. Na prática, o Japão era gover-
nucleares. nado pelo comandante supremo, o general
Além disso, nesse período, o Japão ca- MacArthur, cuja maneira de tratar os cola-
recia dos aparatos militares com os quais os boradores, seguidores e os problemas era se-
países estão habituados a deixar suas mar- melhante à dos shoguns. A desforra veio na
cas no mundo; também carecia visivelmen- forma de desarmamento, desmilitarização e
te de recursos básicos. O país não tinha – ou julgamento dos criminosos de guerra. De-
praticamente não tinha – petróleo, urânio, pois, vieram uma nova Constituição, refor-
alumínio nem níquel, dispunha de muito mas administrativas e sociais e tentativas de
pouco carvão, minério de ferro, cobre e gás alterar os padrões industriais e culturais do
natural, e de somente metade do chumbo e país com base na manutenção do governo
do zinco de que precisava. Essas carências imperial e do próprio imperador (que viveu
eram pioradas em muito pela grande expan- até 1989). O regime de MacArthur era uma
são da indústria, uma expansão que foi es- autocracia rígida e paternal, mas também
sencial à recuperação do Japão e exacerbou radical. Os japoneses foram obrigados a se
sua dependência dos materiais estrangeiros. tornar uma democracia.
108 | PETER CALVOCORESSI

Península Kamchatka

Ilha de Sacalina
Fe de raçã o
MAR DE
Ru ssa

ilas
OKHOTSK

Kur
as
Ilh
C H I N A Ilha Erorufu

Ilha Kunashiri
Ilha Shikotan
Vladivostok Nemuro
Ilha Habnomai

C O R EIA DO NO RTE

MAR DO O C E A N O P A C Í F I C O
JAPÃO

C O REI A Tóquio
O
D O S UL PÃ
JA

0 150 300 km
0 75 150 milhas

Figura 2.1 Japão e seus vizinhos.

O imperador foi reduzido a uma dimensão desmembrados, a reforma agrária foi im-
humana, mais de 200 mil pessoas (em sua posta no papel e implantada na prática.
maioria militares) foram excluídas da vida Nada disso impediu a recuperação quan-
pública, o primeiro-ministro e seus colegas do a oportunidade se apresentou, e grande
deveriam ser civis, os grandes conglomera- parte até foi útil. O expurgo eliminou mui-
dos financeiros ou zaibatsus deveriam ser tos homens capazes, mas limpou o caminho
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para a ascensão de muitos outros que, sem audácia e aquela visão que tinham caracteri-
ele, não teriam chegado lá tão rapidamente. zado o mercador e industrial inglês do sécu-
A eliminação de grandes proprietários lo XIX antes que ele fosse transformado em
de terra, muitas vezes ausentes, facilitou a um financista conservador do século XX.
modernização e o reequipamento da agri- Por fim, uma condição do sucesso japonês
cultura, estabeleceu um setor rural rico jun- foi que seus novos líderes deveriam traba-
to com os setores industrial e comercial que lhar em conjunto com os norte-americanos
ressurgiam, e deu ao Japão a eficiente pro- que governavam Tóquio e Washington.
dução de alimentos que era vital para um Quando MacArthur saiu de Tóquio, em
país tão densamente populoso. Uma nova 1951, demitido por Truman, ele o fez como
lei do aborto reduziu a taxa de natalidade amigo e herói, e depois de uma visita de des-
em um período de cinco anos e estabilizou pedida pessoal por parte do imperador.
a população. Como na Alemanha, os norte- A primeira pessoa a ocupar o cargo de
-americanos passaram em pouco tempo, de primeiro-ministro japonês depois da guerra,
cobrar indenizações a consertar a econo- Shigeru Yoshida, já tinha 70 anos em 1948
mia japonesa, inicialmente em um contex- quando foi empossado no cargo que exerceu
to geral do anticomunismo da Guerra Fria por seis anos. Ele entendeu as limitações e
e, depois, mais específica e vigorosamente não teve constrangimentos para combater a
na Guerra da Coreia: entre 1948 e 1951, os alarmante inflação do Japão no pós-guerra
Estados Unidos deram ajuda pós-guerra com os dispositivos anti-inflacionários mais
ao Japão igual a duas vezes as indenizações conhecidos, extinguindo empresas fracas e
de guerra que cobraram dele. A guerra na aumentando o desemprego. Seu propósi-
Ásia, a Guerra da Coreia e, mais tarde, a to geral era restaurar o poder do Japão no
do Vietnã, deram ao Japão o impulso que mundo, mas não o poder dos militares no
transformou seu destino, em um tempo in- país. Teve sorte. Com a Guerra da Coreia,
crivelmente curto. Assim como os Estados a prosperidade cresceu e os Estados Unidos
Unidos na Segunda Guerra Mundial, o Ja- transformaram de bom grado um inimigo
pão se tornou um arsenal de guerra e uma derrotado em aliado principal, organizan-
economia movida por ela, com a vantagem do um tratado de paz que foi assinado em
de o próprio país não estar em guerra. O 1952 pelos dois países e por outros 40 – que
país construiu uma economia poderosa ba- não incluíam a URSS, a China, a Índia e Bir-
seada em empréstimos a juros baixos para mânia. Segundo o tratado de Portsmouth, o
a indústria, subsídios aos serviços públicos, Japão renunciava à Coreia, que governava
altos índices de poupança, o ressurgimento desde 1910; Taiwan e as Ilhas Pescadores,
dos zaibatsu anteriores à guerra e um capi- que tinham sido japonesas por mais de um
talismo dirigido, no qual o Estado regulava século; as ilhas do Pacífico que tinham sido
as prioridades e a alocação de recursos sem administradas sob mandato desde o final da
buscar controle gerencial das operações. No Primeira Guerra Mundial depois de terem
início, o governo autocrático de MacArthur sido tomadas da Alemanha; todos os seus
não permitiu qualquer interferência de gre- direitos e reivindicações sobre a China e a
ves nem de sindicatos no processo de pro- Antártica e o sul das Ilhas de Sacalina e Ilhas
duzir mercadorias e dinheiro e, junto com a Kurilas. O status desses últimos territórios
disciplina e determinação do povo japonês, permaneceu ambíguo porque a URSS, que
construiu uma cultura capitalista rígida que os ocupava desde 1945, não fazia parte do
eliminava os fracos, mas estimulou aquela tratado. Elas foram estabelecidas em 1947,
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como um distrito ou oblast da República descumprido em 1950 pela criação de uma


Federal Socialista Soviética Russa: a Ilha de Reserva Nacional de Polícia e de Forças de
Sacalina, que vai do extremo norte do Japão Autodefesa, que tinham forma e funciona-
em direção norte, percorre quase 970  km mento de exército. Essas forças se amplia-
próximos da costa da RSFSR; o arquipélago ram aos poucos para a quantidade compa-
das Kurilas, composto por 30 ilhas vulcâ- rativamente modesta de 250 mil membros.
nicas relativamente grandes e outras tantas Os gastos militares foram mantidos abaixo
menores, vai no sentido nordeste do Japão a de 1% do PIB (o qual subia muito) e em tor-
partir da península de Kamchatka. As Ilhas no de 6-7% dos gastos do governo – mais
Ryuku (incluindo Okinawa) e as Bonin, que uma vez, um número modesto. Nos anos de
foram anexadas pelo Japão no final do sé- 1970, iniciou-se um debate sobre se o Japão
culo XIX e foram ocupadas pelos Estados deveria desenvolver energia nuclear: sua
Unidos durante a Segunda Guerra Mun- importância no mundo apontava para essa
dial, foram gradualmente recuperadas pelo direção, mas havia obstáculos políticos, bem
Japão em 1968-1972, sujeitas à presença como constitucionais. O país assinara o Tra-
continuada de tropas e instalações militares tado de Proibição Parcial de Testes – uma
norte-americanas. redundância se a Constituição fosse tomada
As perdas territoriais do Japão foram ao pé da letra –, e a opinião pública na terra
consideráveis, mas o país não teve que pagar de Hiroshima e Nagasaki era ultrassensível
indenizações de guerra e nada sofreu que se ao uso da energia nuclear. Um incidente,
comparasse à bissecção da Alemanha. No em 1954, tornou esses sentimentos mais
mesmo dia da assinatura do tratado de paz, dramáticos. Um barco pesqueiro japonês,
o Japão e os Estados Unidos assinaram um o Fukuryu Maru, ou Dragão Afortunado,
tratado de segurança seguido de um acor- a algumas milhas de distância de uma área
do administrativo que deu a eles o direito de fechada à pesca em função de testes nuclea-
estacionar forças no território japonês com res norte-americanos na Ilha de Biquini, foi
propósitos definidos, como a manutenção atingido por partículas radioativas liberadas
da paz internacional e a segurança do Ex- por uma bomba H. Antes de se dar con-
tremo Oriente, a defesa do Japão contra a ta desse fato apavorante, o Fukuryu Maru
agressão externa e a repressão de rebeliões tinha voltado ao porto e vendido parte do
ou desordens instigadas por uma potência que pescara. O que se seguiu foi pânico. Um
estrangeira. Nenhum direito desse tipo po- membro da tripulação morreu e, posterior-
deria ser dado a qualquer outro país sem mente, os Estados Unidos pagaram 2 mi-
consentimento dos Estados Unidos. A ocu- lhões de dólares por danos ou desencargo de
pação norte-americana terminou formal- consciência por esse terrível acidente. Tam-
mente em abril de 1952. O que tinha come- bém tiveram de pagar um preço político,
çado como uma cruzada para tornar o Japão dado que a opinião pública japonesa ficou
seguro para a democracia no estilo ociden- mais hostil aos norte-americanos e a Yoshi-
tal foi suplantado pelo recrutamento do país da, símbolo da aliança nipo-americana.
para o lado anticomunista na Guerra Fria e, O episódio coincidiu com a conclusão,
menos obviamente mas não sem considerá- em 1954, de novos acordos militares, finan-
vel descontentamento popular, restringiu a ceiros e comerciais entre Estados Unidos e
renovada soberania do Japão. Japão, incluindo um acordo de Defesa Mú-
Embora a Constituição japonesa proi- tua que estabelecia assistência recíproca
bisse a criação de forças armadas, isso foi contra o comunismo e a reorganização das
POLÍTICA MUNDIAL | 111

forças pseudomilitares do Japão. Yoshida do comercial de cinco anos baseado em per-


estava fragilizado por escândalos, acusações mutas. A vastidão da China e sua população
de subserviência indevida a Washington e fascinavam alguns industriais japoneses,
divisões em seu próprio partido, e foi subs- mas o governo continuou inibido pela hos-
tituído no final do ano por um antigo rival, tilidade de Washington em relação ao país,
Ichiro Hatoyama, cujo ministro do exterior, os ganhos do comércio com a China na-
Mamoru Shigemitsu, manifestou intenções quele momento eram pequenos, e o comér-
de restabelecer relações normais com a cio com Taiwan era muito maior: o acordo
URSS e a China. Mas Hatoyama não durou de 1962 não era mais do que um gesto em
muito e foi substituído por Nobusuke Kishi, direção a um futuro vago. Mais concreta-
mais um dos muitos, mas não harmônicos, mente, o Japão deu início a uma política de
chefes do Partido Liberal Democrata. Kishi cooperação econômica no sudeste da Ásia e
preferia aplicar uma política de restaurar re- no litoral do Pacífico. Nos anos de 1950, o
lações com os antigos inimigos do Japão no Japão abriu caminhos com acordos para pa-
sudeste da Ásia, em vez da abordagem Ha- gamento de indenizações a Myanmar (Bir-
toyama-Shigemitsu à URSS e à China, que, mânia) (1956), Filipinas (1956) e Indonésia
em vista da continuidade do vínculo do Ja- (1958), e, em 1967, o primeiro-ministro Ei-
pão com os Estados Unidos, ainda era muito saku Sato percorreu as capitais do Sudeste
problemática. Kishi também negociou, em Asiático, com visitas anteriores e posteriores
1960, uma versão revisada do Tratado de Se- a Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia.
gurança de 1951, mas o novo tratado e, prin- Era a primeira vez que um primeiro-minis-
cipalmente, uma cláusula que fazia com que tro japonês visitava os dois últimos países. O
ele estivesse em vigor por 10 anos, eram im- caminho do Japão não era fácil. Além de ter
populares. O governo foi acusado de envol- sido um agressor imperialista com uma re-
ver o Japão na Guerra Fria ao permitir armas putação não esquecida de peculiar cruelda-
nucleares norte-americanas em território de, era um país em rápido desenvolvimento
japonês. Houve cenas de desordem no parla- em uma região bastante subdesenvolvida.
mento e fora dele, e, embora o novo tratado Sato esbanjava empréstimos para o desen-
tenha sido ratificado, uma visita programada volvimento e, no caso do Vietnã, para a re-
de Eisenhower teve de ser cancelada e Kishi construção pós-guerra, enquanto, ao apoiar
renunciou antes do fim do ano. empreendimentos como o Banco Asiático
Nos anos de 1960, o Japão impressionou de Desenvolvimento e o Fundo Agrícola
o mundo com a imagem de taxas de cres- para o Sudeste Asiático, ele esperava enfati-
cimento de 10% ou mais; a alternância de zar a postura pacífica do Japão em contraste
crescimento e queda que havia caracterizado não apenas com seu passado, mas também
os anos de 1950 parecia ter terminado para com as políticas militaristas dos Estados
sempre; a nova forma da indústria japonesa, Unidos, evidenciadas pela aliança da SEA-
com sua ênfase em mercadorias pesadas e TO e a guerra no Vietnã.
produtos químicos em lugar de têxteis, ficou O Japão estava se esforçando para for-
visível; o investimento e o desempenho do necer a seus vizinhos capital de alto nível e
Japão nas tecnologias mais avançadas ca- bens de consumo, em lugar de drenar os re-
tivou o mundo; e sua admissão nas fileiras cursos naturais deles no estilo colonial clás-
da OCDE o tornou publicamente um dos sico. Um pouco além, na Austrália, o Japão
pesos-pesados econômicos do mundo. Em se tornou um principal fornecedor de ver-
1962, o país concluiu com a China um acor- bas de investimento, superando a soma dos
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fundos de Grã-Bretanha, Estados Unidos e fazendo experimentos com automação e ro-


Alemanha. Em meados dos anos de 1960, a bôs, com investimentos massivos de dinhei-
Austrália estava importando mais mercado- ro público a juros baixos e com um amplo
rias do Japão e da Grã-Bretanha e vendendo processo de requalificação da força de traba-
mais de seus produtos minerais e agrícolas lho, mais uma vez, com verbas do governo.
(incluindo lã) ao Japão do que a qualquer Na década seguinte, a mesma combinação
outro país. Em menor escala, a Nova Zelân- de industriais, especialistas e governos obte-
dia ia na mesma direção. Até mesmo o Ca- ve o primeiro lugar no mundo em eletrôni-
nadá, outro país do Pacífico, embora mais ca. No mesmo período, os Estados Unidos
firmemente inserido na economia da Amé- estavam aplicando seu conhecimento e suas
rica do Norte, aumentou consideravelmente verbas na ida à lua e na criação de armamen-
seu comércio com o Japão e seus emprésti- tos imensos, mas inúteis.
mos e investimentos para o setor, no sudes- A prosperidade do Japão transformou o
te asiático, daquilo que estava se tornando país em um consumidor voraz dos produtos
uma imensa zona econômica da Ásia-Pací- mundiais: uma estimativa nos anos de 1970
fico dominada pelo Japão. As realizações da dizia que, em 1981, o país precisaria de um
década de 1960 foram coroadas pela espeta- décimo de todas as exportações do mundo
cular Expo 70 em Tóquio. e, em petróleo, mais de um décimo de toda
Porém, pouco depois da Expo 70, o Ja- a produção. Mas não havia caminho seguro
pão sofreu dois reveses graves. Sua recupe- para garantir as necessidades do país. A Grã-
ração industrial e sua expansão comercial -Bretanha, no século XIX, e depois os Esta-
dependiam do dólar forte (que tornou ex- dos Unidos haviam passado por um proble-
cepcionalmente lucrativas as exportações ja- ma semelhante e o resolveram por meios
ponesas a seu maior mercado) e petróleo ba- que atendem pelo nome de imperialismo.
rato. Em 1971, Nixon desvalorizou o dólar e, A essência do imperialismo, desse ponto de
em 1973, a guerra no Oriente Médio criou vista, não era a dominação de uma área em
uma crise econômica no Japão, que depen- nome da glória, era para garantir materiais,
dia totalmente de petróleo importado, 85% seja tomando-os, seja garantindo que os
vindos do Oriente Médio. A guerra reduziu produtores continuem produzindo-os e não
o fornecimento a tal ponto que os estoques mudem para outra coisa, ou incentivando
japoneses caíram para um nível que daria uma produção maior. Os meios incluíam in-
para o consumo de alguns dias, e quando vestimento e assim, propriedade parcial ou
o fluxo foi retomado como resultado de di- total de minerais, colheitas ou fábricas.
plomacia de urgência, até mesmo rastejante, O Japão tinha dinheiro sobrando para
o preço quadruplicou. Economias desuma- investir, mas havia dificuldades para fazê-
nas cortaram o consumo pela metade, mas -lo. Além de sua posição particularmente
muitas empresas quebraram, o desemprego delicada na região, a simples ideia de inves-
cresceu muito e os empregados tiveram que timento estrangeiro tinha se tornado suspei-
aceitar limitações rígidas em seus salários. ta. Por mais que as verbas de investimentos
Com a queda do xá do Irã, em 1979, ocorreu fossem bem-vindas em termos puramente
um segundo choque do petróleo, mas nesse financeiros, havia uma consciência incômo-
intervalo, o Japão, de forma singular entre da sobre conflitos de interesse entre investi-
os países industrializados, tinha recupera- dores e beneficiários, e um legado de hosti-
do sua saúde econômica abandonando, sem lidades em relação ao investidor financeiro,
remorso, indústrias velhas e moribundas, que se presumia que distorcesse e retardas-
POLÍTICA MUNDIAL | 113

se uma economia em desenvolvimento, e reviravolta política por parte de Washing-


o fizesse de propósito. No caso especial do ton, mas também o fechamento do mercado
petróleo, o problema do Japão era agrava- dos Estados Unidos aos produtos japoneses,
do pelo fato de que a maioria das oportu- em parte por demanda do lobby têxtil norte-
nidades de investimento conhecidas tinham -americano, mas, em termos mais gerais,
sido aproveitadas pelos Estados Unidos ou também para por um freio ao grande su-
pelos europeus ocidentais. Não obstante, o perávit japonês no balanço comercial entre
Japão, acelerando na década de 1970 uma os dois países. As propostas japonesas para
tendência que havia começado nos anos de restringir suas exportações para os Estados
1960, investiu somas consideráveis no exte- Unidos não deram resultado, e Nixon agiu
rior, especialmente na Malásia, Indonésia, de forma unilateral, incluindo uma sobre-
Tailândia e Filipinas. Ansioso para reduzir taxa de 10% sobre o comércio japonês. A
sua dependência em relação ao petróleo raiva dos japoneses aumentou quando se
do Oriente Médio, o país se engajou na ex- viu que a taxa de crescimento em 1971 ti-
ploração e investimentos na Indonésia, na nha sido reduzida a 6%, uma interrupção
Nova Guiné, na Austrália e na Nigéria. A da expansão japonesa pela qual a política e
vulnerabilidade do Japão em termos de pe- a má vontade norte-americanas foram res-
tróleo era aumentada pelo fato de que o pro- ponsabilizadas. Deixou-se que o iene sub-
duto do Oriente Médio passava pelo aper- valorizado, uma fonte de queixas por parte
tado estreito de Malaca, ficando à mercê de todos os parceiros comerciais do Japão,
de qualquer potência inimiga na Península flutuasse em agosto de 1971 e, como conse-
Malaia ou Sumatra. A escassez de petróleo quência, a moeda se valorizou em 16% até
daqueles anos dirigiu a atenção a algumas o final do ano. As relações entre o Japão e
pequenas Ilhas no Mar do Sul da China: as os Estados Unidos se tornaram temporaria-
Paracels, tomadas pela China, em 1974, ao mente más e não melhoraram muito com o
expulsar uma pequena força sul-vietnamita, retorno de Okinawa à soberania japonesa, já
e as Spratlys, mais ao sul, que eram reivindi- que não foi estabelecido qualquer limite ao
cadas por China, Vietnã, Filipinas, Holanda uso da ilha por tropas dos Estados Unidos,
e França, e algumas foram ocupadas pela nem proibiram as armas nucleares nela. O
China em 1988. imperador visitou os Estados Unidos, sua
Apesar das desvalorizações do dólar em primeira viagem para fora do Japão desde
1971, Nixon chocou o Japão quando, sem 1921, mas a visita foi tratada como uma
avisar Tóquio, anunciou que tinha aceitado curiosidade em vez de um evento político.
um convite para visitar a China. O governo O Japão se somou à tentativa norte-
japonês, cujas políticas tinham sido molda- -americana de fazer com que a ONU man-
das e limitadas pela aliança com os Estados tivesse Taiwan como membro separado
Unidos e pelas políticas norte-americanas quando a China foi admitida, mas a parti-
que baseavam-se na hostilidade para com a cipação japonesa pareceu, aos olhos de mui-
China, recebeu a notícia com surpresa e res- tos japoneses, lealdade indevida a um aliado
sentimento. O que, para o resto do mundo, instável. Mesmo assim, o drama da visita
parecia uma ação sensata para esfriar uma de Nixon a Pequim foi além de suas conse-
disputa superaquecida, no Japão, indicava quências imediatas, e nem Tóquio nem Wa-
uma reversão de alianças que não estavam shington queriam que suas discordâncias
desconectadas da rivalidade comercial e econômicas degenerassem para conflitos
econômica. O Japão não temia somente uma políticos graves. Em 1972, foram assinados
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novos acordos políticos, Nixon e Sato se alcance mundial com uma liderança estáti-
reuniram em Honolulu e o Japão prometeu ca e geriátrica corporificada pelo PLD.
fazer aquisições grandes de produtos norte- Esse rumo continuou pela década se-
-americanos (e outros produtos estrangei- guinte, apesar dos reveses: um declínio geral
ros) para compensar o desequilíbrio no co- na preferência eleitoral, graves escândalos
mércio exterior. financeiros, conflitos em função da reforma
Sato não sobreviveu à reunião de fiscal, alguma rusga com os Estados Unidos
Honolulu. Irmão de Kishi e não menos e uma diminuição da expansão econômica
pró-americano, ele tinha perdido muita do Japão, até então imparável. As eleições de
popularidade no país e em seu partido, e 1983, que registraram alguns reveses para
deu lugar a Kakuei Tanaka, que foi ime- o PLD, foram seguidas, três anos mais tar-
diatamente a Pequim e restaurou relações de, por uma campanha triunfante sob a li-
diplomáticas com a China. Tanaka estava derança de Yasuhiro Nakasone, que, como
fazendo simplesmente o que os Estados resultado, recebeu um mandato de premier
Unidos tinham feito no ano anterior, e mui- mais longo. Ele foi sucedido no final de 1987
tos outros países se apressavam em copiar. por Noboru Takeshita, que, diferentemen-
A China não era substituto dos Estados te dele, conseguiu impor a um parlamento
Unidos como aliado e parceiro comercial, que não queria, uma série de reformas de
nem Tanaka era muito pró-chinês. Ele era um sistema obsoleto de impostos – princi-
muito impopular para levar adiante novas palmente um impopular imposto sobre o
políticas e se retirou temporariamente para consumo (3%) – com o objetivo de compen-
o segundo plano em 1972, sendo forçado a sar o balanço fiscal para beneficiar a classe
renunciar em 1974 por estar envolvido no média urbana. Ao mesmo tempo, explodi-
suborno de figuras de alto nível no gover- ram escândalos em relação ao suborno ex-
no pela Lockheed Aviation Corporation. cepcionalmente generoso de partidos polí-
Seu sucessor, Takeo Miki, só sobreviveu até ticos e personalidades pelo conglomerado
1976, quando o Partido Liberal Democra- imobiliário Recourse Cosmos, e, em 1989,
ta (PLD) perdeu a maioria no parlamento Takeshita foi forçado a renunciar. Seu suces-
pela primeira vez. A condenação clamo- sor imediato em pouco tempo foi vítima de
rosa, por parte de Miki, da corrupção – e escândalos de natureza pessoal, mas o par-
por implicação, de seus rivais – rendeu-lhe tido conseguiu encontrar em Toshiki Kaifu
poucos amigos no partido e Takeo Fukuda, um primeiro-ministro – o décimo-terceiro
de 71 anos, assumiu o seu lugar. Mas Miki desde o final da ocupação norte-americana
teve sua vingança dois anos depois, quando – com reputação e habilidades suficientes
o partido depôs Fukuda e empossou Ma- para conter o Partido Socialista Japonês
sayoshi Ohira. Em uma eleição em 1979, (PSJ) liderado por Takako Doi.
Ohira decepcionou o partido, mas sobrevi- Em 1989, o PLD perdeu a maioria na
veu às intrigas vingativas de seus outros ca- Câmara Alta pela primeira vez, mas, como
ciques (chieftains) por um tempo curto. Em metade das cadeiras estava em disputa, per-
1980, o partido encontrou mais um líder maneceu sendo o maior partido. No ano se-
em Zenko Suzuki. Ao longo desses con- guinte, manteve a maioria na Câmara Baixa.
flitos entre barões, o partido manteve sua Kaifu, tendo durado mais tempo do que o
posição dominante. O que tornava o Japão esperado, reconstruiu a base tradicional do
singularmente estranho nessa geração era a partido entre fazendeiros, pequenos empre-
combinação de seu ímpeto econômico de sários e mulheres, com a ajuda de um novo
POLÍTICA MUNDIAL | 115

surto de crescimento e superávits continua- como comerciantes desleais e exigir que eles
dos no comércio exterior. negociassem a suspensão de práticas injus-
Nakasone, relativamente extrovertido, tas e, se isso não funcionasse, retaliar. Essas
só perdia para Thatcher em elogios a Ro- medidas eram uma indicação de alarma em
nald Reagan, mas também visitou Moscou, relação à crescente preeminência do Japão
tomou a iniciativa de acalmar suscetibilida- em indústrias que iam desde a automobi-
des na Coreia do Sul, visitou a China e o su- lística até a da informática, e seu avanço no
deste da Ásia, aumentou a já grande ajuda campo de supercondutores e defesa. Con-
que o Japão dava ao Terceiro Mundo e can- tudo, como não equilibraram gastos do go-
celou algumas de suas dívidas mais insolú- verno cortando programas ou aumentando
veis. Foram pequenas as mudanças subs- impostos, os governos Reagan e Bush per-
tanciais nas questões externas. Um discurso maneceram dependentes de empréstimos e,
tranquilizante de Gorbachev em Vladivos- como o Japão era o maior emprestador, as
tok em 1986, duas visitas de Shevardnadze ameaças norte-americanas de retaliação co-
a Tóquio em 1986 e 1988, e uma de Gor- mercial tinham pouca substância.
bachev em 1991 não produziram mais do A condição relativamente desarma-
que discursos sobre uma resolução formal da do Japão implicava grandes vantagens
acerca dos disputados Territórios do Norte. e grandes riscos. No lado positivo, havia
A proposta russa, apresentada pela primei- uma grande economia; ainda em 1980, as
ra vez em 1956, de ceder duas das quatro despesas militares do Japão representavam
maiores Ilhas Kurilas foi repetida por Gor- menos de 1% do PIB. Mais do que isso, a
bachev (e, mais tarde, por Yeltsin), mas re- ausência de pressões de setores militares
jeitada pelo Japão: as Ilhas, dadas à URSS possibilitava que o país planejasse sua pro-
na conferência de Yalta em 1945, nunca dução industrial e sua qualificação sem as
tinham sido parte da Rússia e, na visão do distorções impostas por esse tipo de exi-
Japão, não eram parte da cadeia kurila ce- gência, que havia nos Estados Unidos e na
dida pelo Japão depois da Segunda Guerra URSS. Dentro do complexo militar-indus-
Mundial. O Japão sequer cogitou dar ajuda trial do Japão, a ênfase era mais industrial
econômica à Rússia a menos que as quatro do que militar. O país relutava natural-
ilhas fossem devolvidas. (Um acordo sobre mente em mudar um padrão que o estava
direitos de pesca abriu a perspectiva de um ajudando a se igualar em superávit com os
tratado mais amplo até 2000.) Estados Unidos, do mesmo modo como
Em resposta às críticas norte-america- esses haviam superado a Grã-Bretanha um
nas a suas práticas comerciais, o Japão mo- século antes.
dificou algumas barreiras às importações e Em 1980, o Japão não apenas tinha su-
facilitou alguns dos obstáculos na forma de perado a Alemanha em muitos produtos im-
concorrências abertas ao exterior para con- portantes, mas estava fabricando mais aço e
tratos de construção civil, mas o balanço co- carros do que os Estados Unidos e, ao instalar
mercial entre os dois países permaneceu aci- equipamentos mais modernos, atingiu duas
ma dos 50 bilhões de dólares. Segundo a lei vezes a produção norte-americana per capita.
conhecida como Omnibus Trade and Com- O capitalismo japonês era planejado, guiado e
petitiveness Act (Lei Geral de Comércio e financiado centralmente e incluía educação e
Competitividade), de 1988, o Congresso formação, sendo um elemento importante no
dos Estados Unidos dava ao presidente au- quadro mais amplo da cultura neojaponesa.
toridade para considerar países estrangeiros Mesmo mais bem sucedido que a França do
116 | PETER CALVOCORESSI

Plano Monnet ou o Wirtschaftwunder ale- preciso ao debate sobre as responsabilida-


mão, aliava empresas privadas com o gover- des do Japão nas questões mundiais. Uma
no e os trabalhadores. Desconfiava das forças contribuição puramente financeira à mobi-
cegas do mercado e das panaceias simplistas lização internacional contra o Iraque pare-
nas quais se pedia que os Estados Unidos de ceria pouco heroica, mas uma contribuição
Reagan e a Grã-Bretanha de Thatcher depo- militar seria inconstitucional e impopular, e
sitassem sua fé. Seus sinais externos e visíveis Kaifu foi obrigado a abandonar uma tentati-
incluíam o mais elevado PIB per capita do va de mudar a Constituição para permiti-la.
mundo, várias indústrias que exportavam Mesmo assim, a contribuição não militar do
90% de sua produção e a maior quantidade de Japão foi grande: 9 bilhões de dólares para
ajuda financeira ao restante do mundo (mais o orçamento geral da guerra, mais 2 bilhões
de 10 bilhões de dólares por ano). Em alguns especificamente para o Egito, a Jordânia e a
aspectos, estava tão longe do capitalismo nor- Turquia, navios varredores de minas, ma-
te-americano quanto do comunismo. teriais médicos e aviões civis para o trans-
Inicialmente, esses triunfos se deveram porte de refugiados. Por uma maioria estrei-
muito à aliança com os Estados Unidos, ta, o parlamento aprovou o uso das forças
que fornecia a segurança por trás da qual as armadas em operações de paz da ONU e
energias do Japão podiam ser concentradas unidades japonesas foram enviadas para a
na geração de riqueza. A eficácia dessa alian- UNTAC, no Camboja, e em 1993, mais além
ça foi colocada em questão pela derrota nor- da Ásia, a Moçambique.
te-americana no Vietnã e por episódios aos Em 1991, terminou-se o tempo de Kai-
quais os Estados Unidos ficaram particular- fu. Com ele como premier, o PLD tinha se
mente expostos por suas políticas externas saído melhor do que o esperado nas elei-
mais ousadas – por exemplo, o fracasso em ções no final daquele ano, mas perdera ter-
libertar seus reféns no Irã. A autodefesa, mi- reno. A economia ainda estava crescendo
litarmente adequada no contexto da aliança, em um índice de 5%, o que é baixo para os
tinha de ser revista e realmente foi reinter- padrões japoneses.
pretada. Já nos anos de 1950, considerava-se Os preços das ações e valores de pro-
que o conceito de autodefesa incluia a bus- priedades estavam desabando, e ele foi subs-
ca de um inimigo em suas bases e ataques a tituído por Kiichi Miyazawa, outro indica-
essas bases. Também se estendia à proteção do pelo PLD, que enfrentou com fraqueza
de rotas marítimas vitais e, em 1980, a exer- a mais grave recessão japonesa em 20 anos
cícios navais conjuntos com outras potên- e as mais fortes reclamações por parte dos
cias. A autodefesa foi condenada a ser um Estados Unidos em relação ao esforço criati-
termo relativo cujo significado mudava com vo do Japão para manter os estrangeiros fora
o desenvolvimento da tecnologia militar do de seu mercado. Porém, havia mais em jogo
inimigo e as próprias necessidades estraté- do que a distribuição de cargos políticos em
gicas. Embora a rejeição do Japão às armas um sistema dominado por um partido. O fi-
nucleares fosse confirmada por sua adesão nal da Guerra Fria distorceu o sistema polí-
em 1970 ao Tratado de Não Proliferação de tico pós-guerra do Japão e colocou questões
1968, o fim da geração que tinha conheci- sobre a segurança e as políticas econômicas
do a guerra e a derrota foi marcado por um do país. O monopólio do cargo pelo PLD se
crescente apoio a orçamentos militares mais dava por meio da predominância da questão
elevados. A crise causada pela anexação do única do anticomunismo nas décadas se-
Kuwait pelo Iraque em 1990 deu um foco guintes à Segunda Guerra Mundial. Naque-
POLÍTICA MUNDIAL | 117

le período, os Estados Unidos conseguiram PLD fracassou. Em 1993, o partido perdeu


estabelecer formas democráticas no Japão e um número altíssimo de cadeiras (como o
pressionaram o país a entrar na Guerra Fria PSJ), mas continuou sendo o maior parti-
contra o comunismo. Por tratado, assumi- do no parlamento. Os dissidentes do PLD
ram a defesa do Japão e toleravam, enquan- formaram o primeiro governo que não era
to durasse a Guerra Fria, ainda que com do partido na história pós-guerra do Japão,
crescente irritação, sua recusa a conduzir com Hasokawa como primeiro-ministro.
suas questões econômicas segundo as regras Mas ele próprio foi atingido pelos escânda-
de abertura sacramentadas nos acordos de los financeiros, e a coalizão que ele liderava
Bretton Woods. O PLD tinha poder em um se dividiu em relação a impostos, reforma
sistema multipartidário, de modo que não eleitoral e políticas de defesa, e ele não con-
precisava cedê-lo a nenhum outro partido e, seguiu mais do que um avanço limitado com
principalmente, ao PSJ. Abrindo mão do or- planos para menos burocracia, descentrali-
gulho em nome dos benefícios, o país acei- zação de governo e abertura dos mercados
tou a proibição ao aumento de suas forças japoneses à concorrência estrangeira, e foi
armadas (pelo qual ele próprio pagaria) e substituído em menos de um ano por Hata,
fez da prosperidade a principal ocupação do cujo governo foi o de visão mais limitada
governo, considerando que a segurança na- no Japão pós-guerra. O PSJ fez um acordo
cional era garantida pelos Estados Unidos. com seus inimigos do PLD para derrubar os
O PLD evoluiu para um conluio de líderes reformistas que estavam se imiscuindo, e o
conservadores que se apropriavam dos mais PLD recuperou o poder ao preço de permi-
altos cargos políticos entre si (de forma se- tir que um socialista, Tomiichi Murayama,
melhante àquela com que as principais fa- fosse primeiro-ministro pela primeira vez.
mílias romanas alternavam o papado e suas O programa econômico de uma coalizão
vantagens no final da Idade Média antes de de equilíbrio precário foi atingido pelo ter-
sua remoção para Avignon), deixando a ad- remoto devastador em Kobe, em 1995, cujo
ministração, e mesmo a formulação de polí- custo recaiu principalmente sobre o gover-
ticas, a funcionários públicos de alto nível, no, e Murayama renunciou no início de
e surrupiavam compensações escandalosa- 1996, tendo passado a segunda metade de
mente altas para não interferir muito no go- seus 18 meses como primeiro-ministro em
verno ou nas empresas. evidente declínio.
Esse estado de coisas foi questionado no Ryutaro Hashimoto restaurou a maioria
início dos anos de 1990, não de fora do PLD, do PLD na Câmara Baixa, usando e depois
mas de dentro. Em 1992, Mori Hasokawa descartando os socialistas e levando a me-
saiu do partido e formou o Partido Novo lhor sobre o novo partido de Ozawa, mas
Japão: ele era um aristocrata e neto do prín- fez tentativas não convincentes de tratar dos
cipe Fumimaro Konoye, uma das figuras de problemas de uma dívida inchada e um iene
destaque no Japão pré-guerra. No ano se- supervalorizado. Ele sobreviveu por quase
guinte, outros dois dissidentes, Ichiro Oza- três anos até que o mal-estar econômico do
wa e Tsutomu Hata, formaram o Partido da Japão foi convertido em alarme pelos co-
Renovação: eles eram membros da maior fa- lapsos econômicos na Ásia Oriental (ver o
mília no PLD, liderada por Shin Kanemaru, Capítulo 18), para onde ia quase metade das
cuja ascensão ao cargo principal parecia ser exportações japonesas e para onde os ban-
barrada pelo nível espetacular de seu envol- cos japoneses tinham emprestado grandes
vimento com suborno. Mas esse desafio ao somas em dinheiro. Depois de resultados
118 | PETER CALVOCORESSI

muito ruins em eleições parciais para a câ- (por exemplo, de carros) não se esforça-
mara alta, em 1998, o PLD entregou o cargo vam para encontrar o que os compradores
de primeiro-ministro a Keizo Obuchi. O de- japoneses queriam, e, segundo a norte-
semprego estava em um nível que, subesti- -americana, porque o Japão usava proce-
mado oficialmente talvez pela metade, esta- dimentos burocráticos complicados para
va mais alto do que em qualquer momento frustrar as operações das forças de merca-
depois a guerra; a dívida, também oficial- do. Confusos na busca de uma solução, os
mente encoberta, provavelmente passava Estados Unidos alternavam negociações
dos 500 milhões. Obuchi planejava reascen- comerciais com fanfarronice e ameaças de
der a demanda dos consumidores por meio impor supertarifas retaliatórias punitivas.
de cortes de impostos e vales-consumo, bem As negociações de 1994 geraram um claro
como resgatar determinados bancos com impasse e ilustraram, em nível mundial, os
verbas públicas, mas com pouco efeito, e, perigos de más relações entre os Estados
em 1999, convidou Ozawa, o principal re- Unidos e o Japão. Quando o valor do dólar
negado do PLD, para participar de seu ga- caiu constantemente, em 1995, os Estados
binete. A aproximação de Obuchi a Ozawa Unidos passaram às ameaças. Não obstan-
demonstrava a pobreza do PLD, e a aceita- te, nenhum dos lados parecia ter coragem
ção por parte de Ozawa parecia marcar a para mais do que ameaças e blefes retóricos
inversão de seu desafio ao partido em 1993. (ou seja, usar força militar para fazer amea-
A chegada do presidente Clinton à ças políticas). As relações difíceis entre as
Casa Branca parecia prenunciar polêmicas principais potências econômicas do mun-
mais agudas e mais públicas com o Japão do também eram atingidas tangencialmen-
(bem como com a União Europeia) com te por protestos contra os Estados Unidos,
relação a questões econômicas, mas, inde- que surgiam em função da continuada pre-
pendentemente das intenções de Clinton, sença dos militares norte-americanos em
sua posição inicialmente não foi mais forte Okinawa e outras ilhas e devido ao com-
do que a de Reagan ou Bush. O desequilí- portamento dessas forças. Esses desconten-
brio comercial entre os dois países ainda tamentos foram tratados, por um tempo,
era crescente. As tentativas dos Estados com o aumento de aluguéis e a aceitação de
Unidos de obter acesso ao mercado japo- fechar 11 bases norte-americanas dentro de
nês definindo metas garantidas para certos um período de cinco a sete anos.
produtos foram um fracasso, e o governo O meio século posterior à Segunda
Clinton foi forçado a voltar aos expedien- Guerra Mundial não testemunhou trans-
tes crus de retaliação por meio de tarifas ou formação mais impressionante do que a
desvalorização do preço do dólar em rela- do Japão, mas, ao se aproximar o final do
ção ao iene – o primeiro mecanismo sendo período, as dúvidas começaram a aparecer.
um tipo geralmente reprovado pelos Esta- O Japão pós-guerra era uma democracia de
dos Unidos e o segundo, mal-recebido por partido único naquilo que havia sido, por
importadores norte-americanos, e que ne- 2000 anos, uma sociedade excepcional-
nhuma garantia dava de atingir seus obje- mente homogênea. O país tinha uma mo-
tivos. Em 30 anos, o valor das exportações narquia constitucional tão discreta como
norte-americanas ao Japão dobrou, mas o seus precursores pré-Meiji. Sua ascensão à
valor do comércio na direção oposta tinha condição de potência econômica global se
quadruplicado – segundo a visão japonesa, baseava em um sistema financeiro e em um
porque os exportadores norte-americanos caráter corporativo projetado para a recu-
POLÍTICA MUNDIAL | 119

peração da catástrofe e baseado em dinhei- causa, eram aumentados pelos transtornos


ro barato, subsídios públicos e um alto nível psicológicos nos mercados de dinheiro e
de poupança. de ações no Japão, na Ásia e no restante
O país superou, com grande habilida- do mundo. Os críticos, no Japão e em ou-
de, os desafios colocados pelos preços do tros lugares, questionavam mais do que a
petróleo nos anos de 1970. Mas, em 1990, economia: eles condenavam a flagrante
o milagre econômico evaporou até que, corrupção que definia o crédito do partido
em 1998, o Japão estava tecnicamente em governante e fragilizava sua capacidade de
recessão, para alarme e surpresa de todo o enfrentar questões graves, e se pergunta-
mundo. As taxas de crescimento desaba- vam se o estresse em função da demanda
ram; a moeda estava extravagantemente por alto desempenho nas escolas e univer-
supervalorizada; tomar dinheiro empresta- sidades japonesas não estava matando a
do virou algo irracional, já que os bancos iniciativa pessoal, a criatividade industrial
emprestavam de forma pródiga, aceitando e a resiliência social. Parte desses questio-
participação patrimonial como garantia namentos não deixou de ser marcado por
e, assim, criando um sistema baseado na uma satisfação pela desgraça alheia. As ten-
suposição de que os valores dessa partici- tativas de restabelecer o milagre econômico
pação subiriam indefinidamente; os japo- foram tíbias e com poucos efeitos. O Japão
neses e outros estavam hipnotizados por cedeu instalações navais aos Estados Uni-
superávits comerciais de 100 bilhões de dos durante a Guerra do Iraque (Capítulo
dólares por ano e pelas enormes reservas 14), mas se absteve de questões mais am-
estrangeiras do Japão; o sistema bancário plas das relações com esse país e a China.
estava trêmulo com dívidas da ordem de Os altos e baixos do Japão foram extre-
500 milhões de dólares – um milagre eco- mos no século XX. Seus grandes empreendi-
nômico do tipo errado. O longo surto de mentos – a tentativa de dominar a Manchú-
crescimento foi verdadeiro, mas negligente: ria, a China e o Sudeste Asiático, o desafio
os empréstimos excediam em muito a ca- aos Estados Unidos em Pearl Harbor, sua
pacidade de pagamento em dia, e os mer- participação na Segunda Guerra Mundial
cados de ações reagiam aumentando como – terminaram em desastre. Mas sua recupe-
se reinasse a exponencialidade. A crise que ração foi rápida e espetacular. Pode-se dizer
resultou daí foi complicada por discordân- que o país se tornou, por um tempo, a se-
cias sobre sua causa básica. Ou o sistema gunda potência do mundo, militarmente de-
não era sólido do ponto de vista estrutural sarmada, mas economicamente exuberante.
(particularmente ao dar dinheiro barato A ascensão foi interrompida por má admi-
demais e permitir que bancos insolventes nistração econômica e política monoparti-
florescessem) ou, alternativamente, foi san- dária esclerosada, mas conseguiu manter a
grado pela demanda inadequada. As solu- aparência de um potencial sem limites. Foi
ções apropriadas em um caso ou em outro uma das grandes potências da enorme zona
– controles monetários mais rígidos ou es- do pacífico, mas compartilhava essa distin-
tímulo monetário por meio de relaxamento ção com os Estados Unidos e a China, com
financeiro – eram incompatíveis, e os fra- os quais tinha estado em guerra alternada-
cassos econômicos, fosse qual fosse a sua mente durante a maior parte do século.
3 China

O triunfo de Mao setores não tiveram capacidade, de forma


que, 50 anos depois, o país ainda tinha tudo
Em 1949, pouco mais de um quarto de sé- para ser uma grande potência, mas não era
culo após seu nascimento, o Partido Comu- na realidade.
nista Chinês conquistou a capital, a cidade O mais destacado desses grupos su-
ancestral de Pequim. Um movimento havia cessores foi o de Sun Yat-sen (falecido em
se transformado em governo. O derrota- 1925), nacionalista, democrata e socialista,
do Kuomintang ficou reduzido à ilha de que queria reformar a China por meio de
Taiwan, onde seu líder, Jiang Kaishek, como seu instrumento, o Kuomintang. O Kuo-
o último dos imperadores Ming, 300 anos mintang estabeleceu um governo na capi-
antes, vestiu-se de pretensões imperiais que tal sulista de Nanquim, mas nunca conse-
lembravam os nobres franceses e banquei- guiu colocar todo o país sob seu controle.
ros italianos que percorriam a Europa Oci- Seguiu-se o colapso do antigo regime, prin-
dental no final da Idade Média chamando a cipalmente no norte, pelo surgimento de
si mesmos de imperadores de Bizâncio. Em chefes militares locais que criaram feudos
janeiro de 1950, o novo senhor da China, autônomos e se envolveram em guerras ci-
Mao Tsé-Tung, podia declarar, sem muito vis. Mesmo no sul, onde o Kuomintang im-
exagero, que toda a China era sua, com ex- pôs um certo grau de ordem e estabilidade,
ceção do Tibete. as imensas tarefas de reforma administrati-
As vastas terras e as tradições imperiais va e modernização foram enfrentadas, mas
que caíram nas mãos de Mao depois da Se- não resolvidas.
gunda Guerra Mundial vinham mudando O Kuomintang buscou ajuda no exte-
de mãos desde antes da Primeira Guerra. O rior e aceitou, do novo mas não menos revo-
declínio da última dinastia (Manchu), que lucionário governo da URSS, os serviços de
tinha exposto a China à intervenção estran- assessoria de Michael Borodin. Sob pressão
geira e quase ocasionado sua divisão na se- das circunstâncias, o partido começou a
gunda metade do século XIX, culminara na adotar, em sua luta contra os chefes milita-
revolução de 1911. Grupos revolucionários res locais, alguns métodos do comunismo
e sociedades secretas, em parte nativos e em europeu (a organização do partido e as rela-
parte fomentados entre chineses no exte- ções partido-Estado), embora não suas dou-
rior, causaram a desintegração do antigo re- trinas, e também estabeleceu uma aliança
gime. Diante da tarefa de restabelecer a co- com o Partido Comunista Chinês, que havia
esão, a dignidade e o poder da China, esses sido fundado em Xangai em 1922.
POLÍTICA MUNDIAL | 121

Os comunistas consistiam em peque- China). Ele propôs estabelecer uma peque-


nos grupos localizados em determinadas na república camponesa e criar exércitos de
províncias do sul e se tornaram parte do camponeses que um dia seriam fortes o su-
Kuomintang, sob a liderança geral de Jiang ficiente para conquistar cidades.
Kaishek, mas havia disputas endêmicas en- Nesse meio tempo, o Kuomintang, ten-
tre comunistas e outros líderes do partido (e do se livrado dos comunistas e avançado
entre facções não comunistas de esquerda contra os chefes militares locais (conquistou
e direita dentro dele). Também havia con- Pequim em 1928 e a Manchúria no ano se-
fusão entre os próprios comunistas, porque guinte, por meio de um acordo com o gene-
os comitês comunistas em Xangai davam ral Chang Hsueh-liang, o Jovem Marechal),
instruções equivocadas aos líderes que es- foi atacado pelo Japão, primeiro na Manchú-
tavam atuando nas zonas rurais, e ainda ria, em 1931, e depois na China, em 1937. A
mais porque Moscou tentava direcionar as partir dessa data, até 1945, o Kuomintang e
questões sem o devido conhecimento da os comunistas disputavam a honra de reali-
história e das condições da China. Em um zar o ressurgimento da China como grande
determinado momento, Moscou tinha dife- potência e o prêmio de governá-la depois
rentes emissários na China, defendendo po- que os japoneses fossem derrotados. Os re-
líticas incompatíveis. Nessa atmosfera, Mao manescentes comunistas que haviam che-
Tsé-Tung foi se tornando um dos principais gado a Yenan cresceram rapidamente até se
líderes nas regiões rurais, muitas vezes em tornarem um exército de cerca de 100 mil
conflito com seus superiores em Xangai e membros, atraindo recrutas em meio aos
ainda desenvolvendo suas próprias ideias e camponeses e jovens, geralmente por meio
táticas. Em 1931, o ataque japonês à Man- de uma perspectiva nacionalista antijapo-
chúria forçou Jiang Kaishek a enviar tropas nesa. Em 1941, os ataques japoneses contra
ao norte, mas a confusão nas fileiras dos co- os Estados Unidos em Pearl Harbor fizeram
munistas os impediu de aproveitar a vanta- com que essa guerra no Extremo Oriente
gem desse fator de distração dos não comu- se transformasse em uma guerra geral que
nistas e, em 1934, eles foram derrotados de temporariamente superava as divergências
forma decisiva, como resultado da adoção internas da China. O Kuomintang conquis-
de táticas mal-escolhidas, contra as quais tou aliados poderosos, mas sua sorte não
Mao tinha argumentado. Os comunistas estava fadada a ressurgir. Tinha fracassado
começaram sua mítica Longa Marcha des- em deter o colapso econômico; seus líderes
de o sul da China, inicialmente em direção permaneceram limitados e divididos; a ad-
ao oeste e depois ao norte, à província de ministração se tornou corrupta, autoritária
Yenan, no extremo noroeste, onde preser- e muito dependente da polícia secreta; e, por
varam seu movimento e esperaram a me- fim, seus exércitos se desintegraram. Em
lhor hora. Durante a Longa Marcha, Mao contraste, os comunistas cresceram na es-
ascendeu à posição de máxima autoridade. tima popular. Seu tempo na inóspita região
Ele vinha se afastando da estratégia marxis- lhes deu glamour e ocultou o lado desagra-
ta clássica de conquistar o poder através de dável de seus métodos de governo.
batalhas do proletariado industrial, e apro- Eles tinham uma reputação de lutar
ximou o comunismo da indignação campo- contra os japoneses com mais seriedade do
nesa (que representou periodicamente uma que o Kuomintang e, quando a guerra ter-
força subversiva poderosa na história da minou, estavam prontos para voltar da peri-
122
|

FEDERAÇÃO RUSSA

Harbin

Changchung
MONGÓLIA COREIA
Shenyang DO NORTE
COREIA
Urumqi DO SUL
PETER CALVOCORESSI

Pequim O

JA

AFEGANISTÃO Hohhot
Xinjiang

Yinchuan Huanghe Jinan MAR


(Rio Huang) AMARELO
Xining
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Hefei Xangai
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CHINA

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Zhujiang
Í ND IA SIQUIM
Kunming (Rio da Pérolas) Cantão Pescadores
Macau
Nanning Hong FILIPINAS
BANGLADESH MIANMAR Kong
(BIRMÂNIA) VIETNÃ MAR DO
0 500 1000 km
TAILÂNDIA LAOS SUL DA
0 300 600 milhas
CHINA
Hainan

Figura 3.1 China e seus países vizinhos.


POLÍTICA MUNDIAL | 123

feria ao centro. Poucos anos depois, eram o ras da Pérsia e do Afeganistão, estava diante
governo da China. dos britânicos na Índia, enquanto, mais ao
Quando Jiang Kaishek foi expulso do norte, um porto de água tépida no Pacífico
país, terminava uma geração de conflito e uma fatia do comércio chinês estimula-
civil, e os comunistas tinham diante de si a vam a imaginação imperial e financeira.
oportunidade de fazer o que nenhuma fac- A guerra entre os japoneses e os chine-
ção pudera desde a queda do império, e na ses na Coreia em 1894-1895 trouxe ganhos
qual o próprio império tinha fracassado: consideráveis ao Japão (incluindo Taiwan, as
transformar a China em um país forte e sau- Ilhas Pescadores e, temporariamente, a pe-
dável o suficiente para manter sua integri- nínsula de Shantung e Port Arthur) e mos-
dade e independência. No passado, houve trou o declínio do poder chinês. A Rússia, a
ameaças à integridade vindas de potências França e a Alemanha intervieram em defesa
imperiais da Europa Ocidental que atraves- da China, embora a Grã-Bretanha, descon-
savam o mar, dos russos que abordavam por fiada do avanço francês na Ásia, desse início
terra, e dos japoneses. Em 1945, as potências à sua política pró-japonesa como contra-
da Europa Ocidental não estavam mais em ponto. Os russos, tendo ajudado a China
posição de ameaçar quem quer que fosse, no a pagar a indenização de guerra ao Japão,
Extremo Oriente; e o Japão foi praticamente junto com os franceses, fizeram uma aliança
aniquilado. Os russos, contudo, ressurgiram com a China, tomaram Port Arthur e pla-
no cenário, enquanto os norte-americanos, nejaram as ferrovias chinesas no leste e no
tradicionais protetores da integridade da sul da Manchúria. Os russos e os japoneses
China contra intrusos, estavam desanima- disputavam a Manchúria. Em 1904, o Japão
dos com o Kuomintang em vias de retomar atacou Port Arthur; e, na guerra russo-japo-
uma política para a Ásia baseada no Japão, nesa que se seguiu, os russos foram derro-
como haviam feito no início do século. tados e forçados a recuar para a Manchúria
A contínua expansão russa para a Ásia e a Mongólia. A imagem do Japão na Ásia e
começou depois da Guerra da Crimeia. no mundo saiu enormemente fortalecida, e
Essa derrota inaugurou ensaios no campo o avanço russo no norte da Ásia foi contido
do liberalismo, no país e na aventura no por uma contraforça japonesa na Manchú-
Extremo Oriente, ambos esporádicos. Os ria. A Primeira Guerra Mundial eliminou
czares estavam mais ou menos permanen- temporariamente o poder russo, não causou
temente preocupados com os problemas da um ressurgimento chinês, tirou a atenção
Polônia, os Bálcãs e o Estreito [turco], mas de outras potências europeias das questões
havia um grupo em São Petersburgo que russas e deixou o Japão em uma situação em
olhava com atenção especial ao Extremo que, longe de conter os russos, ele próprio
Oriente. As décadas de 1860 e 1870 foram tinha que ser contido – e isso só poderia ser
um período de expansão: o grande pro- feito pelos Estados Unidos.
cônsul russo N. N. Muraviev estabeleceu Nos anos de 1920, os russos recupe-
as províncias Amur e Maritima em 1858 e raram posições na Mongólia Exterior e na
1860, respectivamente; Vladivostok foi fun- Ásia Central, e mais uma vez entraram em
dada em 1861; Sacalina foi adquirida (mas conflito com os japoneses na Manchúria nos
o Alaska, vendido); os casaques e os kana- anos de 1930, mas não voltaram seriamente
tos da Ásia Central, subjugados. Na década à luta por ela até a última semana da Segun-
de 1880, a Rússia tinha chegado às frontei- da Guerra Mundial.
124 | PETER CALVOCORESSI

Durante a maior parte da guerra, Stalin mas, na verdade, se situava dentro da esfera
estava muito preocupado com os alemães russa desde 1921 e fora concedida à URSS*
para prestar muita atenção à Ásia, e mais pelos aliados ocidentais em Yalta, foi aban-
ainda para intervir na região. A URSS assi- donada pelos chineses (que não tiveram
nou um pacto de neutralidade com o Japão escolha) segundo o tratado russo-chinês de
em 1941, e, antes do ataque a Pearl Harbor, 1945. Quando Mao sucedeu a Jiang em 1949,
o Japão buscou e recebeu garantias de que o território não foi recuperado para a China.
os russos cumpririam o pacto. Até a confe- A declaração de guerra de Stalin contra
rência de Teerã em 1943, Stalin nada pediu o Japão teve mais uma consequência im-
no Oriente, não estando em posição de de- portante na divisão da Coreia, pois, quando
mandar recompensas até estar pronto para os japoneses se renderam, definiu-se, por
ajudar contra o Japão. Na conferência de questões de conveniência, que as forças ja-
Moscou, em outubro de 1944, houve sinais ponesas ao norte do Paralelo 38 deveriam se
de mudança na atitude russa; e, em Yalta, render aos russos e as que estavam ao sul,
em 1945, os termos de Stalin foram estabe- aos norte-americanos.
lecidos e aceitos pelos aliados, que estavam O momento da intervenção russa no
ansiosos para evitar disputas, ainda supe- Extremo Oriente foi bastante oportuno.
restimavam a vontade e a capacidade do Como sabiam os russos, os japoneses esta-
Japão de seguir lutando, e – com exceção vam ansiosos por paz, estavam fazendo son-
de algumas atividades – ignoravam as ar- dagens em Moscou na esperança de garan-
mas nucleares que estavam por ser usadas. tir a mediação russa no final da guerra. A
Stalin pediu que seus aliados revertessem primeira bomba nuclear foi lançada em 6 de
o veredicto da guerra russo-japonesa de agosto de 1945, em Hiroshima, pelos norte-
1904-1905 e lhe garantissem determinadas -americanos, que também sabiam que havia
posições, em detrimento não do Japão, mas um grupo trabalhando pela paz no gabinete
da China. As posições perdidas pelos russos japonês. A declaração russa de guerra veio
na Manchúria e Sacalina, em 1905, deve- dois dias depois. Em 9 de agosto, a segunda
riam ser restauradas; as ilhas Kurilas tam- bomba foi lançada sobre Nagasaki. As hos-
bém deveriam ir para a URSS e seu controle, tilidades cessaram em 15 de agosto (no dia
na prática, da Mongólia Exterior, deveria ser em que os russos assinaram seu tratado com
reconhecido. Jiang Kaishek).
A política de Stalin na Ásia era de ir Embora Stalin quisesse uma China fraca
abordando aos poucos o perímetro chinês e possa ter se considerado exitoso, os norte-
e impedir o estabelecimento de qualquer -americanos queriam uma China forte, o
governo central chinês poderoso. Ao decla- que não conseguiram durante os anos da
rar guerra ao Japão, ele garantiu direitos e transição da guerra à paz, mas não por sua
plantou tropas na Manchúria, e conseguiu culpa, e mais tarde começaram a ver a pers-
confiscar as instalações industriais japone-
pectiva de uma China forte, mas de nenhu-
sas, embora isso não tenha acontecido sem
ma maneira a seu gosto.
gerar ressentimento chinês. Ele já tinha ma-
quinado uma revolta antichinesa no vale Ili,
em Xinjiang, onde, em 1944, surgiu uma re- * N. de R.T.: A República Popular da Mongólia, o segundo país
pública secessionista do Turquistão Oriental socialista e aliado de Moscou, teve sua independência reconhe-
cida por Pequim, que manteve o domínio sobre a Mongólia In-
sob proteção russa. A Mongólia Exterior, terior, uma região autônoma da RP da China. A URSS exercia
que oficialmente estava sob domínio chinês, influência sobre a Mongólia (Exterior), mas nunca a anexou.
POLÍTICA MUNDIAL | 125

As políticas dos Estados Unidos para fluência e defendendo as “portas abertas,”


o Extremo Oriente estavam condiciona- teve pouco efeito prático, embora elas tives-
das, no início do século, pela aquisição das sem popularidade nos Estados Unidos. Um
Ilhas Filipinas da Espanha em 1898 e pela segundo conjunto, na época da Revolta dos
suspeição das potências europeias, que, ten- Boxers e da intervenção aliada sob coman-
do transformado a maior parte do Sudeste do alemão que essa revolta causou em 1900,
Asiático em terreno colonial, pareciam es- indicava uma crescente preocupação por
tar dispostas a dividir a China. Com seus parte dos Estados Unidos; o mesmo se pode
interesses e seu sentido moral sintonizados, dizer da mediação de Washington na guerra
Washington reivindicava para si quaisquer russo-japonesa e da assinatura do Tratado
direitos ou privilégios que qualquer potên- de Portsmouth em solo norte-americano.
cia europeia fosse capaz de extrair dos chi- Mas passou algum tempo até que as polí-
neses (a política de “portas abertas”, ou seja, ticas norte-americanas e britânicas fossem
nenhuma preferência comercial entre es- harmonizadas. A Grã-Bretanha, buscando
trangeiros de países diferentes) e, ao mesmo um aliado em águas orientais e aparente-
tempo, defendia a integridade e a indepen- mente rejeitada pelos Estados Unidos, tinha
dência da China. se voltado ao Japão, ao passo que os Estados
A entrada dos Estados Unidos nesse ce- Unidos estavam se tornando os protetores
nário foi inesperada e não premeditada. A da China e os inimigos do Japão no mar. A
guerra de 1898 contra a Espanha, que come- discrepância continuou, não sem danos para
çou de forma confusa em Cuba, teve o re- as relações anglo-americanas, até depois da
sultado colateral de substituir o domínio es- Primeira Guerra Mundial, quando os trata-
panhol pelo norte-americano nas Filipinas. dos de Washington de 1921-1922 elimina-
Seguiu-se um debate público considerável ram efetivamente a aliança anglo-japonesa,
sobre a política e a moralidade do expan- estabeleceram uma proporção naval de 5:5:3
sionismo, com o conhecimento de fundo de entre as três potências e deram uma garantia
que, se os Estados Unidos não afirmassem de integridade à China e à política de “portas
seu poder no Pacífico, os britânicos, os ale- abertas”, que era sustentada por nove potên-
mães ou os japoneses o fariam. Esse debate cias. (Na Conferência de Londres de 1930,
coincidiu com o declínio visível da China. a parte japonesa foi elevada de 3 a 3,5.) O
Os britânicos, alarmados pela tendência Secretário de Estado Charles Evans Hughes
às anexações, arrendamentos e privilégios forçou os japoneses a retirar suas tropas da
comerciais especiais para determinados península de Shantung e da Sibéria, mas, em
grupos de estrangeiros, buscaram a coope- 1930, os norte-americanos, indecisos sobre
ração dos Estados Unidos para dar um fim se a ação forte pararia ou convenceria as
a essa vil corrida colonialista, mas Washing- facções expansionistas da política japonesa,
ton, a essas alturas, não estava interessada, tornaram-se menos eficazes, e houve pouca
e assim os britânicos entraram em um jogo reação por parte de Washington à conquista
que os norte-americanos deixaram de que- da Manchúria pelo Japão, à proclamação do
rer impedir e começaram eles próprios a de- Estado de Manchukuo em 1932 ou à ocupa-
marcar enclaves e fazer arrendamentos. ção japonesa de Xangai, no mesmo ano.
A mudança de atitude dos Estados O Japão se retirou dos tratados navais
Unidos veio com a nomeação de John Hay de Washington e Londres no final de 1936,
como secretário de Estado. Sua primeira sé- reivindicando paridade com os Estados
rie de notas, condenando as esferas de in- Unidos e a Grã-Bretanha, e entrou em uma
126 | PETER CALVOCORESSI

guerra com a China em 1937. Ao mesmo grande potência, com assento permanente
tempo, desafiou as potências europeias pro- no Conselho de Segurança.
pondo uma “nova ordem” para todo o leste A China deveria ser os Estados Unidos
da Ásia, e, quando os europeus (ocidentais do continente asiático, uma vasta e unida
e russos) deixaram claro que não queriam potência liberal-democrática: uma visão
problemas no Leste, Washington começou a que Churchill, entre outros, considerava
negociar com Tóquio. uma tolice romântica. Quando os fracassos
O início da guerra na Europa, em 1939, do Kuomintang se tornaram cada vez mais
deu ao Japão mais liberdade contra a China evidentes, o general Joseph Stilwell foi en-
e novas oportunidades no Sudeste Asiático. viado para ficar de olho em Jiang Kaishek,
Um novo governo, mais belicoso, instalado para fortalecer e, se possível, reformar o
em 1940, decidiu atacar a Indochina como Kuomintang, mas os comentários do gene-
primeiro passo, mas esperava evitar a inter- ral sobre o partido foram tão críticos que ele
venção dos Estados Unidos. Esse governo foi chamado de volta, a pedido dos amigos
caiu quando Hitler atacou a URSS. O mi- de Jiang. O general Patrick Hurley, que ha-
nistro do exterior, Yosuke Matsuoka, que via sido mandado à China em agosto como
queria participar do ataque, foi demitido; representante pessoal do presidente Roo-
e o general Hideki Tojo, que queria atacar sevelt junto ao Generalíssimo, tornou-se
os Estados Unidos, tornou-se o membro o principal veículo da política dos Estados
mais influente do gabinete, passando a ser Unidos com a nova tarefa de unir novamen-
primeiro-ministro em outubro de 1941, e te o Kuomintang e os comunistas. Hurley e
deu a ordem para o ataque a Pearl Harbor o general George C. Marshall, que o sucedeu
em dezembro. em 1945, tiveram sucesso limitado. O Kuo-
Até a mudança da maré, em meados de mintang e os comunistas estavam irreme-
1943, os Estados Unidos corriam o risco de diavelmente desconfiados um do outro e as
serem expulsos do Extremo Oriente, mas a discussões para uma acomodação se rom-
batalha de Midway e a vitória final sobre o peram em função da questão de unificar os
Japão os trouxe de volta com uma prepon- dois exércitos.
derância única, da qual potência alguma Quando os japoneses se renderam, os
jamais havia desfrutado. A guerra forçou norte-americanos levaram, por ar, forças
Washington a repensar sua política para o do Kuomintang para assumir o controle do
Extremo Oriente. Tudo combinava para tor- nordeste da China, enquanto os russos, que
nar os norte-americanos pró-chineses – as acabavam de entrar na Manchúria, davam ar-
políticas tradicionais, as conexões missio- mas e oportunidades aos comunistas daquela
nárias, o comportamento japonês e a atra- região. Até a segunda metade de 1947, hou-
tiva (em ambos os sentidos) Madame Jiang ve uma trégua apreensiva, mas conseguiram
– mas o governo do Kuomintang não teve evitar a guerra civil. Os norte-americanos,
êxito e estava deixando de valer a pena. Não que agora já não confiavam nem um pouco
obstante, Washington, que renunciou a di- no Kuomintang, retiraram suas unidades da
reitos extraterritoriais na China, em 1943, China, mas não tinham certeza se deveriam
como um gesto de boa vontade, determinou retirar todas as formas de apoio. O general
que o país deveria emergir da guerra total- Albert C. Wedemeyer, enviado à China em
mente soberano, com a extensão plena de julho de 1947, recomendou uma ampla aju-
seus antigos territórios (incluindo a Man- da por parte dos Estados Unidos, desde que
chúria, Taiwan e as Pescadores) e como uma o Kuomintang realizasse profundas reformas
POLÍTICA MUNDIAL | 127

sob supervisão norte-americana, mas nes- do assento chinês na ONU e que os chine-
sa época a China se aproximava do colapso ses acreditassem que Taiwan estava sendo
econômico e financeiro e as revoltas eram co- preservada como refúgio temporário para
muns. Mesmo assim, foi aprovada uma ajuda Jiang Kaishek, pendente de uma tentati-
temporária ao país antes do final do ano e a va de reconquista da parte continental. A
lei de ajuda financeira, a China Aid Act, foi guerra da Coreia também levou os chineses
aprovada em abril de 1948 e complementada a uma avaliação exageradamente confiante
por um acordo sino-americano, e o Kuomin- de sua força militar, manifestada na expres-
tang fez um esforço tardio para colocar a casa siva mas imprecisa descrição dos Estados
em ordem. Unidos como sendo um tigre de papel.
Mas era tarde demais. Os comunistas A vitória de Mao se mostrou tão des-
venciam batalhas sucessivamente. Toda a confortável para os russos como para os
Manchúria era deles no final de 1948, e, no norte-americanos. O mundo supunha que
ano seguinte, houve uma sequência de cida- os interesses e as políticas das duas prin-
des famosas conquistadas para o comunis- cipais potências comunistas deveriam ser
mo. Washington descartou o Kuomintang. muito semelhantes. Esse pressuposto se de-
Jiang, que havia cometido o erro de se com- via, em parte, à Guerra Fria e foi fortaleci-
prometer demasiadamente nas últimas eta- do pela guerra na Coreia entre comunistas
pas da guerra civil, renunciou à presidência e anticomunistas. Houve assombro e per-
no início de 1949, e o Kuomintang solicitou plexidade quando veio à tona, alguns anos
– em vão – a mediação dos Estados Unidos, depois, que Moscou e Pequim estavam em
da URSS, da Grã-Bretanha e da França. Os sérios conflitos. Na verdade, os interesses
comunistas não tinham mais interesse em da URSS e da China só eram congruentes
coalizões nem em acomodações, a Repú- em parte; os partidos comunistas dos dois
blica Popular foi proclamada em setembro países não tinham vínculos emocionais pró-
e Mao chegava em Moscou como chefe de ximos e, em Moscou, a lealdade do partido
Estado em 18 de dezembro de 1949. chinês à doutrina comunista e ao movimen-
A vitória dos comunistas chineses criou to mundial dominado pelos russos era con-
problemas para norte-americanos e russos. siderada duvidosa.
No que restava de 1949 e na primeira me- Após a morte de Stalin, as divergências
tade de 1950, os norte-americanos avança- em termos de políticas se tornaram mais
vam para o reconhecimento diplomático óbvias, em parte porque a passagem do
do novo regime, mas as possíveis negocia- tempo possibilitou que se sentissem cada
ções com essa finalidade foram suspensas vez mais as diferenças nas circunstâncias
com a prisão do cônsul-geral dos Estados dos dois países.
Unidos em Mukden, junto com quatro de Stalin não queria uma China poderosa.
seus colegas, por um mês no final de 1949, Enquanto o governo da China foi não co-
e depois foram canceladas pela guerra na munista, era relativamente mais fácil para
Coreia. Em algum momento desse período, ele implementar uma política de aliança
os Estados Unidos decidiram que Taiwan juntamente com pequenos atritos. O tratado
era uma parte necessária de uma linha de de agosto de 1945 com Jiang incluía atritos,
bases estratégicas e deveria ser mantida já que o Kuomintang reconhecia a absorção
fora das mãos comunistas. Essa decisão, da Mongólia Exterior pela esfera soviética e
que foi divulgada, fez com que os Estados deixou de obter, na Manchúria, direitos que
Unidos mantivessem o regime de Mao fora agora passariam do Japão à URSS. Os co-
128 | PETER CALVOCORESSI

munistas chineses eram, para Stalin, outro tação e o impulso pela educação superior
ponto de atrito com o qual atingiram o Kuo- nos acordos russo-chineses faziam parte dos
mintang, até que, em 1949, eles assumiram desígnios de Mao para uma nova China.
o lugar do Kuomintang e, assim, deixaram
de ser uma mera ferramenta. Quando Mao
chegou em Moscou, Stalin teve de formu- A China e as superpotências
lar uma política completamente nova para
a China, que levaria em conta o desejo da Nove meses depois da proclamação da nova
URSS de dominar as importantes áreas república chinesa, começou a guerra na Co-
centrais da Ásia e a expectativa inevitável reia. Esse evento imprevisto, e inoportuno
de amor fraterno e ajuda entre partidos co- para os chineses, teve um efeito profundo
munistas. Considerando-se o tamanho e as sobre a política da Ásia e as relações en-
potencialidades da China, esse foi um pro- tre asiáticos e não asiáticos envolvidos nas
blema que nunca havia surgido antes em questões do Extremo Oriente, e forçou os
Moscou. chineses a prestarem atenção a suas defesas
Mao também tinha o que aprender. Ele quando poderiam estar concentrados em
pouco sabia sobre a URSS (ou qualquer ou- questões internas. Também dominou as po-
tra grande potência) antes da visita a Mos- líticas dos Estados Unidos em um momento
cou, onde o fizeram passear por dois meses em que estavam sendo formuladas, levan-
antes que se concluísse um novo tratado tou questões relacionadas à comunicação e
russo-chinês, em 1950. Era uma medida à cooperação entre as principais potências
relacionada a negócios com ferrovias, crédi- comunistas, ameaçou importar uma guerra
tos e questões do tipo. Os russos deram um fria para a Ásia, incentivou o neutralismo
lindo presente aos chineses, que consistia indiano e fez com que os norte-americanos
na ferrovia Changchun e suas instalações. igualassem neutralismo e pacifismo a uma
Os chineses adquiriram o direito de admi- postura de indiferença e perversão moral.
nistrar Dalian, embora o destino final desse A história da península coreana é como
porto devesse ser reconsiderado quando da a de um pequeno país encravado entre vizi-
conclusão de um tratado de paz com o Ja- nhos mais poderosos. Por mil anos, a Coreia
pão. A URSS deu à China um crédito de 300 foi comandada por duas dinastias, separadas
milhões de dólares em um período de cinco por uma breve conquista mongol. O país so-
anos, com juros de 1% e pagáveis entre 1954 freu incursões por parte dos manchu e dos
e 1963. Outros acordos tratavam de coisas japoneses nos séculos XVI e XVII, época em
como a exploração conjunta de petróleo em que havia se tornado um peão no jogo dos
Xinjiang e de rotas aéreas compartilhadas conflitos sino-nipo-russos. As vitórias do Ja-
na Ásia Central. Esses acordos foram o iní- pão na guerra com a China, em 1894-1895,
cio da cooperação entre os dois países, que e com a Rússia, em 1904-1905, deram liber-
durou até final de 1950, e foram confirma- dade ao Japão na Coreia, que foi anexada em
dos durante uma visita a Moscou feita por 1910. Em 1919, o país fracassou na recupe-
Zhou Enlai em 1952, pouco antes do anún- ração de sua independência, embora tenha
cio do primeiro plano quinquenal da China, estabelecido um governo provisório sob a
da formação de uma poderosa Comissão presidência de Syngman Rhee, que tinha
Nacional de Planejamento sob direção de feito doutorado em Princeton. Pela Declara-
Gao Gang e da criação de um Ministério da ção do Cairo de 1943, Roosevelt, Churchill
Educação Superior. Com o plano, a contra- e Jiang Kaishek prometiam a independência.
POLÍTICA MUNDIAL | 129

Quando a guerra terminou, em 1945, A primeira metade de 1950 foi ocupa-


não houve disputa pelo status da Coreia, da por novas eleições na Coreia do Sul e
mas, no momento da independência, um por propaganda pela reunificação na Co-
acidente a privou de sua unidade. Com os reia do Norte, seja por meio de eleições
japoneses tendo se rendido em parte aos em todo o país (das quais Syngman Rhee e
norte-americanos e em parte aos russos, o outros seriam excluídos) ou por uma fusão
país foi dividido em duas áreas ao longo do dos dois parlamentos. Quando se tornou
Paralelo 38. Essa famosa linha surgiu como aparente que essas duas possibilidades não
resultado de negociações entre oficiais do estavam disponíveis, as tropas do norte
exército de patente relativamente baixa, não atravessaram a fronteira em 25 de junho,
sendo uma criação de decisões ministeriais; capturando a capital do sul, Seul, no dia
mas a conveniência administrativa se con- seguinte.
solidou como fato político, e, depois, todas Não se sabe se as tropas da Coreia do
as tentativas de dotar a Coreia de um gover- Norte teriam agido assim se o secretário
no único fracassaram. A causa desse fracas- de estado norte-americano, Dean Acheson,
so foi a presença de tropas russas e norte- não tivesse excluído a Coreia (e Taiwan), em
-americanas. Na mesma época, na Polônia janeiro, do perímetro de defesa por que os
– pela qual governos rivais também compe- Estados Unidos estavam dispostos a lutar
tiam –, havia apenas um exército de ocupa- para manter. Kim Il Sung, primeiro-minis-
ção e, assim, uma única resposta possível. tro (1948-1972) e presidente (1972-1994)
Na Coreia, havia dois exércitos e nenhuma da Coreia do Norte, que passou os anos da
resposta. guerra em Moscou e foi indicado pelos rus-
Em 1947, os Estados Unidos levaram o sos para seus cargos, foi incentivado à inva-
problema à ONU, que indicou uma comis- são tanto por Stalin quanto por Mao, que lhe
são temporária (UN Temporary Commis- deu a cobertura aérea. O que talvez nenhum
sion on Korea, UNTCOK) para implantar deles tenha previsto, em junho, é que a ati-
a unidade por meio de eleições. Essas elei- tude dos Estados Unidos em janeiro seria
ções foram realizadas no sul em 1948, mas revertida pela invasão e que Coreia do Sul e
a comissão foi impedida de atuar no norte, Taiwan acabariam sendo incluídas no perí-
e o resultado de suas atividades foi a criação metro de defesa norte-americano.
de um governo que afirmava ser de toda a O Conselho de Segurança se reuniu
Coreia, mas sem ter autoridade nem exis- imediatamente, por solicitação dos Es-
tência ao norte do Paralelo 38. O chefe des- tados Unidos, e aprovou, na ausência do
se governo era Syngman Rhee, já em idade membro russo, uma resolução que exigia
avançada, duro, reacionário, mas legenda- um cessar-fogo e o retorno das tropas do
riamente essencial e, como se revelou, uma norte a seu lado da fronteira. Truman ins-
figura de pai quase inamovível. Em 1949, os truiu MacArthur, em Tóquio, a apoiar os
russos (que haviam incentivado um gover- sul-coreanos e ordenou que a Sétima Frota
no rival ao norte) e os norte-americanos re- dos Estados Unidos isolasse Taiwan. Dois
tiraram suas forças armadas para que a Co- dias mais tarde (em 27 de junho), uma se-
reia se tornasse um país com dois governos, gunda resolução do Conselho de Seguran-
sustentado pelos russos na Manchúria e na ça conclamou todos os membros a ajuda-
Sibéria e pelos norte-americanos no Japão, rem a Coreia do Sul a repelir o ataque que
e cientes do surgimento de uma nova China sofrera e a restaurar a paz internacional. A
em suas fronteiras. resolução se baseou na premissa, posterior-
130 | PETER CALVOCORESSI

FEDERAÇÃO
RUSSA
Vladivostok
0 100 200 km

0 50 100 milhas

C H I N A

Chongjin
lu
Ya
Rio

ong

Antung
ed
Ta

Sinuiju
Ri
o

Anju Hungnam

Wonsan M A R D O J A P Ã O

Pyongyang
jin

Kosong
Rio Im

Panmunjom 38°N

Seul
Inchon Rio
Ha
n

Rio Kum
Rio Naktong

Taegu
M A R

A M A R E L O
Kwangju Pusan

Tsushima

Cheju

Figura 3.2 Divisão coreana entre norte e sul.


POLÍTICA MUNDIAL | 131

mente questionada pelos russos, de que a lhante às intervenções anticomunistas na


luta entre Norte e Sul era uma ameaça in- Rússia depois da revolução de 1917. Por
ternacional, embora não tenha ficado claro isso, os chineses atacaram primeiro.
se ela era internacional porque Norte e Sul A intervenção chinesa alterou a nature-
eram dois países diferentes ou porque uma za da guerra e fez surgir um debate acirrado
guerra assumidamente interna e civil esta- sobre como se deveria atuar nela. De junho
va fadada a ter repercussões internacionais. a novembro, a guerra, embora travada em
A China protestou contra a intervenção ile- um lado, basicamente pelos Estados Uni-
gal nas questões da Coreia. dos, poderia ser representada como uma
Inicialmente, o norte levou vantagem expedição punitiva internacional. Depois
na luta. Os sul-coreanos e as forças da ONU de novembro, ela foi se tornando um confli-
que vieram em sua ajuda foram empurrados to sino-americano aos poucos. MacArthur
para a ponta da península, mas, em setem- queria reconhecer esse fato e entrar em uma
bro, MacArthur, no comando dessas forças, guerra aberta com a China, usando os meios
desembarcou em Inchon, 240 km ao norte, militares mais eficazes. Isso significaria se-
e, como resultado dessa ação forte, unidades guir os aviões chineses além da fronteira da
sul-coreanas e outras atravessaram o Parale- Manchúria, em vez de interromper a perse-
lo 38 em outubro e pressionaram a fronteira guição ao chegar a essa linha de combate, e
da Manchúria. A guerra parecia ter acaba- bombardear as instalações chinesas no rio
do. Truman voou à Ilha Wake para parabe- Yalu e em outros lugares. Essa atitude po-
nizar MacArthur, cuja opinião era que nem deria levar ao uso de bombas nucleares no
russos nem chineses interviriam. Ele estava coração da própria China.
equivocado com relação aos chineses, que Porém, as ideias de MacArthur não
atacaram em 26 de novembro. Exatamente foram convincentes em Washington. Os
um mês mais tarde, estavam além do Parale- membros do Estado-Maior não aceitaram
lo 38 e os sul-coreanos e seus aliados haviam a proposta de entrar em uma guerra com a
recuado completamente. China, que poderia se arrastar por anos, en-
O ataque chinês foi uma ação preventi- quanto o presidente e seus assessores civis
va. Os chineses, que se lembravam do ata- estavam extremamente avessos a reentrar
que japonês a seu país através da Coreia em na política chinesa (da qual os Estados Uni-
1931, suspeitavam que os norte-america- dos tinham se retirado muito recentemen-
nos no Japão estavam por repetir a ação. A te) e muito cientes da desaprovação de uma
ajuda dos Estados Unidos a Jiang por meio aventura desse tipo em todo o mundo. Os
da China Aid Act, a visita de MacArthur a aliados de Washington ficaram alarmados.
ele em Taiwan pouco depois do início da O primeiro-ministro britânico Clement
guerra na Coreia, o cruzamento do Parale- Attlee foi a Washington para expressar esse
lo 38 pelos norte-americanos em outubro alarma, principalmente sobre o possível uso
e sua aproximação do Rio Yalu, o debate de bombas nucleares na Ásia pela segunda
aberto sobre os interesses estratégicos dos vez, e os neutros começaram a dar uma in-
Estados Unidos nas ilhas do Pacífico e so- clinação marcadamente antiamericana. A
bre a possibilidade de um retorno de Jiang falta de confiança nos Estados Unidos, em
à China continental – todas essas coisas se relação às questões mundiais, recebeu um
combinavam para convencer o novo regi- impulso que custou a desaparecer.
me de Pequim de que os norte-americanos Já em julho de 1950, Nehru, cujo gover-
pretendiam realizar uma campanha seme- no havia apoiado as resoluções do Conse-
132 | PETER CALVOCORESSI

lho de Segurança, fez contatos com Stalin e do o uso das tropas de Jiang. Em 11 de abril,
Acheson para dar um fim ao conflito. Sua ele foi demitido por Truman.
intervenção foi recebida de forma mera- A dramática demissão de MacArthur
mente cortês, mas, em dezembro, a Índia e causou tanto frisson que sua importância
outros países neutros apelaram a ambos os não foi imediatamente assimilada. O que
lados para que não atravessassem o Paralelo ela significava era que a Guerra da Coreia
38; e, durante aquele mês, o representante tinha que ter fim por acordo e mediação.
indiano na ONU, Sir Benegal Rau, teve uma O governo dos Estados Unidos rejeitou a
série de conversações em Nova York com alternativa da vitória completa através da
um emissário de Pequim, o general Wu Xiu- derrota militar da China. Mesmo assim,
quan. Esse, contudo, saiu de Nova York an- foram necessários mais de dois anos para
tes do final do ano sem que nada tivesse sido que fosse assinado um armistício em julho
conquistado; Pequim recusou a criação de de 1953.
um comitê da ONU com vistas ao cessar-fo- Pode-se descrever brevemente como a
go. Ainda não chegara a hora da mediação. guerra se arrastou e definhou. Novos ata-
No primeiro dia de 1951, os chineses ques chineses foram contidos em 1951, e
lançaram sua segunda ofensiva. Forças da ambos os lados começaram a entender que
ONU tiveram que sair rapidamente de Seul deveriam avançar para uma trégua. Um
e um novo apelo por um cessar-fogo foi re- discurso do membro russo do Conselho
jeitado. Mas o avanço chinês perdeu força. de Segurança, J. A. Malik, transmitido nos
Na ONU, a China foi declarada agressora e, Estados Unidos no final de junho, levou a
em Washington, em março, foi lido um te- negociações (em Kaesong, em julho, e de-
legrama de MacArthur no senado, no qual pois em Panmunjon) que foram tediosas,
o general exigia que os Estados Unidos ata- infrutíferas e pontuadas de medos em re-
cassem a China e não simplesmente aceitas- lação a uma retomada das operações totais
sem o restabelecimento do Paralelo 38 como e de acusações de os norte-americanos usa-
linha de fronteira. Agora era a vez dos chi- rem armas biológicas. A questão mais difí-
neses recuarem, a ONU recuperou Seul, os cil era o destino dos prisioneiros de guerra:
sul-coreanos, mais uma vez, atravessaram muitos, que estavam nas mãos do exército
o Paralelo 38 e MacArthur lançou, por sua do Sul, não estavam dispostos a retornar
própria iniciativa, um desafio peremptório a ao Norte, mas foi assinado um acordo para
seus adversários para que aceitassem um ar- a troca em junho de 1953 (pouco depois
mistício, junto com uma ameaça implícita de da morte de Stalin, embora não se possa
retaliação massiva. O desafio foi ignorado e provar definitivamente qualquer conexão
Truman alertou MacArthur de que ele esta- entre esses eventos). A seguir, o acordo foi
va excedendo seus poderes e aplicando uma prejudicado por Syngman Rhee, que liber-
política não aprovada por seu governo e seu tou os prisioneiros em vez de entregá-los
comandante e chefe. O general tentou apelar aos norte-coreanos, de forma que os chine-
ao Congresso e ao povo dos Estados Unidos, ses lançaram uma grande ofensiva. Apesar
passando por cima de seus superiores civis desses turbulentos episódios, em julho se
e militares. Ele enviou uma carta ao líder assinou um armistício.
republicano na Câmara dos Deputados, Jo- Uma conferência de paz em Genebra,
seph W. Martin, que foi lida no parlamento que começou em abril de 1954, não conse-
e na qual recomendava que se tomassem as guiu gerar um acordo final, e Syngman Rhee
mais fortes medidas contra a China, incluin- foi a Washington para tentar convencer os
POLÍTICA MUNDIAL | 133

Estados Unidos a apoiar uma invasão con- Os eventos de princípios dos anos de
junta pelos sul-coreanos e pelas forças de 1950 fortaleceram e prolongaram os víncu-
Jiang Kaishek. Ele afirmava que o regime los dos Estados Unidos com o Kuomintang.
na China estava à beira do colapso, mas não Ao estourar a Guerra da Coreia, Truman
conseguiu convencer o Congresso nem Ei- tinha se comprometido com Jiang Kaishek
senhower nem Dulles. No ano seguinte, as a manter o novo governo chinês longe de
tropas norte-americanas e chinesas foram Taiwan e das adjacentes Ilhas Pescadores.
retiradas gradualmente. Em vista da total incapacidade da China,
A conferência de Genebra, embora não esse era um compromisso fácil de cumprir,
tenha conseguido produzir um acordo so- mas envolvia Washington em rumos de
bre a Coreia, demonstrou que o país vol- ação que não eram aprovados por seus prin-
taria à posição de 1949, dividido e livre de cipais aliados e continham uma ambiguida-
ocupação estrangeira. No mesmo ano, os de incômoda. Quando foi expulso da China
Estados Unidos decidiram não intervir em continental, Jiang manteve controle sobre
Dien Bien Phu, mas, também no mesmo algumas ilhas próximas. O guarda-chuva
ano, concluiram tratados com o Paquistão norte-americano cobriria essas ilhas, além
e o Japão, e criaram a SEATO. A aceitação de Taiwan e as Pescadores? Em parte, essa
do status quo ante na Coreia e a recusa a se pergunta se referia ao alcance dos compro-
envolver na guerra na Indochina não indi- missos não escritos de Washington com
cavam uma retirada dos Estados Unidos da Jiang, mas levantava outras questões: es-
Ásia. Pelos 11 anos seguintes – até o início, sas ilhas eram necessárias para a defesa de
em 1965, do ataque norte-americano ao Taiwan? Era necessário que Jiang as man-
Vietnã do Norte – os Estados Unidos ten- tivesse para afirmar a solidez norte-ameri-
taram cumprir um papel importante no les- cana na Ásia em termos gerais?
te e no sudeste da Ásia, mostrando a força As ilhas eram as Tachens, Quemoy e as
militar sem usá-la, com o objetivo de pa- Matsus, situadas no litoral próximo a Amoy
rar o avanço territorial do comunismo por e Foochow, e que formavam uma corti-
conquista ou por subversão. Na Coreia, a na costeira semelhante à guarda avançada
agressão comunista tinha fracassado, mas, que as Pescadores proporcionavam para
aos olhos dos norte-americanos, avançava Taiwan no outro lado do Estreito. Em 1954,
perigosamente em outras partes da Ásia por Pequim começou a fazer exigências pela
meio da subversão. Embora fosse o con- libertação de Taiwan, quando Washington
trário no caso da Malásia, onde a maré ia respondeu que qualquer ataque a Taiwan
contra os insurgentes comunistas, o poder teria de enfrentar a frota norte-americana.
chinês, ainda contando com o apoio russo, Em setembro, os chineses bombardearam
fazia Washington temer pelos estados suces- Quemoy, aparentemente como resposta à
sores na Indochina e na Indonésia. criação da SEATO pelo Pacto de Manilha.
Sendo assim, a postura norte-ameri- O Kuomintang reagiu e, por várias sema-
cana era antichinesa porque a China tinha nas, esse fogo e contrafogo parecia ser o
se tornado o manancial de uma nova onda início de um confronto mais grave. Em 13
de comunismo e, pelas mesmas razões, era de novembro, 13 aviadores norte-america-
ideológica, reivindicando valor pela postura nos, capturados no inverno de 1952-1953
contrária aos males do comunismo e impu- quando o avião em que estavam caiu na
tando perversidade aos que se recusavam a Manchúria, foram condenados em Pequim
lutar a boa luta ou, ao menos, aplaudi-la. a sentenças entre prisão perpétua e quatro
134 | PETER CALVOCORESSI

anos por espionagem, e, em dezembro, os indicava uma quebra geral da disposição


Estados Unidos e o Kuomintang concluí- dos Estados Unidos. Essa determinação
ram um novo tratado, que declarava a defe- foi ainda mais enfatizada no Vietnã do Sul,
sa de Taiwan e das Pescadores como de in- onde os Estados Unidos deram ajuda eco-
teresse mútuo. Em 1955, Jiang abandonou nômica e militar ao regime anticomunista e
as Tachens sob fogo vindo do continente. depois se engajaram diretamente na guerra
Mao concordou em receber Dag Ham- no continente asiático. Esse engajamento
marskjöld para falar sobre os aviadores mudou a natureza das políticas norte-ame-
norte-americanos, mas, no verão de 1955, os ricanas no Extremo Oriente. A derrota do
chineses voltaram a bombardear Quemoy. Japão, em 1945, deu um domínio total do
Os norte-americanos, nesse meio-tempo, pacífico aos Estados Unidos. O conflito
decidiram que não se deveria ceder mais ter- entre Truman e MacArthur e seu resultado
ritório e Jiang foi aos poucos levando tropas mostraram que o controle do Pacífico ain-
para Quemoy, até que cerca de um terço de da era a base dessas políticas, fortalecido
suas forças estivessem estacionadas à pouca pelas unidades militares presentes nas ilhas
distância da costa da China continental. O japonesas e nas Filipinas e pela aliança com
novo bombardeio foi arrefecendo e se seguiu a Austrália e a Nova Zelândia (concluída
um período de relações sino-americanas em 1951 ao preço do consentimento desses
tranquilas, marcadas por encontros em Ge- países em relação ao tratado de paz com o
nebra, conferências diplomáticas em Var- Japão). Mas o colapso da tentativa francesa
sóvia e a libertação dos prisioneiros norte- de retomar seu império na Indochina, de-
-americanos. Em meados de 1958, falava-se pois do triunfo dos comunistas na China,
inclusive em reconhecimento de Pequim levou os Estados Unidos em direção a uma
pelos Estados Unidos, mas a administração nova política de domínio asiático, em vez
Eisenhower-Dulles negou formalmente que de se concentrar no Pacífico.
cogitasse dar esse passo. Essa declaração foi Os conflitos da China comunista com
seguida imediatamente por um novo bom- os Estados Unidos coincidiram aproxima-
bardeio e uma demanda chinesa pela entre- damente com um declínio brusco nas rela-
ga das ilhas, recebida com uma declaração ções com a URSS, em função de conflitos
de Dulles de que os Estados Unidos lutariam que se desenvolveram no final dos anos de
para proteger Taiwan, e outra de Eisenho- 1950 e se tornaram públicos em 1960. Uma
wer, afirmando que Quemoy e as Matsus das consequências mais impressionantes da
eram necessárias para sua defesa. morte de Stalin foi o conflito entre os tem-
Escoltas norte-americanas para as tro- peramentos incompatíveis de Khruschev
pas de Jiang navegavam a algumas milhas e Mao, que se sobrepunham aos interesses,
da costa. Temia-se a guerra. Os aliados de por vezes divergentes, dos Impérios Chinês
Washington e segmentos da opinião pú- e Russo e exacerbavam a disputa doutriná-
blica norte-americana ficaram nervosos e, ria. Quando Mao visitou Stalin, em 1949,
depois de alguns dias, a crise foi controlada havia um elemento de reverência em rela-
pela retomada das conversações sino-ame- ção a esse encontro entre o líder chinês e o
ricanas em Varsóvia. homem que, junto com Marx, Engels e Lê-
Ainda que possa ter sido arriscada, a nin, era mais do que simplesmente um líder
política de blefes de Dulles demonstrou russo. O poder de Stalin durara um quarto
ao longo desses anos que a decisão do país de século, seu prestígio tinha aumentado
de não intervir na Indochina em 1954 não muito com a Segunda Guerra Mundial, ele
POLÍTICA MUNDIAL | 135

era uma figura lendária, um pouco como China – dois anos depois da data estabe-
um imperador chinês com uma vida longa lecida pelo tratado russo-chinês de 1950.
e muito êxito. Mao, contudo, não gostara da Eles transferiram à China sua metade nas
URSS desde seus primeiros contatos com companhias conjuntas formadas em 1945
ela antes da Segunda Guerra Mundial e, se para explorar petróleo, metais não ferrosos
não ainda em 1949, passou a querer ver algo e a aviação civil em Xinjiang, e para operar
de sobre-humano em si mesmo. estaleiros em Dairen; e estabeleceram no-
Quando Stalin morreu, em princípio vos acordos para fornecer financiamentos,
não havia acordo em relação a seu sucessor, técnicos especializados e know-how.
e houve até uma opinião, que durou pou- A deterioração iniciou em torno de
co, de que ele não teria um sucessor único. 1956 e tomou corpo nas duas áreas a seguir.
Um Stalin composto – Bulganin/Khrus- No 20o Congresso do Partido Comunista da
chev – substituiu o governo de comitê do União Soviética, em 1956, Mikoyan, segui-
interlúdio Malenkov e visitou Pequim em do de Khruschev, deu início à demolição da
1954. A seguir, Khruschev surgiu como o memória de Stalin. A desestalinização estava
novo autocrata russo, e era considerado relacionada a pontos doutrinários nos quais
por muitos, na prática, também o chefe do Mao poderia muito bem afirmar que lhe es-
comunismo mundial. Para Mao essa ideia tavam dando ouvidos, mas ele não foi con-
não era evidente por si só; não havia regra sultado. Khruschev ainda não estava confir-
que dissesse que o principal comunista do mado em sua nova posição na cúpula e teria
mundo tinha de ser um russo, nem uma sido pelo menos conveniente consultar um
disposição para aceitar um chefe político líder mais antigo como Mao. Nas questões
impetuoso nesse papel. Durante sua visita externas, Khruschev estava demonstrando
a Pequim, em 1954, Khruschev não foi ca- uma incerteza perigosa. Uma das primei-
paz de estabelecer uma relação hierárquica ras iniciativas foi dar fim ao atrito com a
nem pessoal com Mao. Iugoslávia. As atitudes chinesas em relação
Por um tempo, as relações permane- a esse país foram perturbadas no final dos
ceram equilibradas. A China precisava anos de 1950. Por um lado, a independência
da ajuda econômica e técnica soviética e da Iugoslávia em relação a Moscou era atra-
continuava com a necessidade de apoio tiva aos chineses; por outro, os comunistas
militar, que o início da Guerra da Coreia iugoslavos cultivavam visões heréticas. A
aumentou. Os russos continuavam ajudan- independência prevaleceu, inicialmente, em
do os chineses a modernizar seu exército; relação às heresias, mas, a partir de 1957, as
o Quarto Exército de Campo Chinês, que heresias pareciam mais graves aos chineses.
entrou na Coreia em 1950, fazia parte da Mais além, em 1955, Bulganin e Khruschev
força que derrotara o Kuomintang e que os demonstraram apoio aos não comunistas,
chineses estavam ansiosos para transfor- especialmente os asiáticos, com suas visitas
mar em um instrumento mais moderno. a Índia, Birmânia e Afeganistão. As dúvidas
Os ressentimentos, como a sensação de que dos chineses foram reforçadas quando hou-
os russos tinham feito muito pouco para ve revoltas na Polônia e na Hungria. Segun-
ajudar os comunistas chineses antes que es- do a visão chinesa, os russos cuidaram mal,
ses conquistassem o poder, eram mantidos ou não da melhor maneira possível, desses
em segundo plano. Em 1954, com a Guerra dois novos eventos. No caso polonês, os chi-
da Coreia terminada, os russos deixaram neses intervieram em apoio ao comunista
Port Arthur e entregaram as instalações à mais independente Gomulka e alertaram os
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russos contra o uso de força militar; no caso lha de seu próprio júbilo, pois ao exagerarem
do levante anticomunista húngaro, exigiram seus êxitos técnicos, supunha-se que haviam
que os russos não retirassem suas tropas conquistado mais liberdade em questões
prematuramente. internacionais do que realmente era o caso.
Em 1957, em um novo acordo sobre Portanto, eles estavam desconcertados com
ajuda técnica, Khruschev (segundo disse- a visão chinesa de que as potências comunis-
ram posteriormente os chineses) prome- tas poderiam se dar ao luxo de políticas mais
teu à China amostras de material nuclear ousadas. Os chineses também mantinham a
e informações sobre a construção de armas posição marxista ortodoxa de que a guerra
nucleares. Esse foi o ano em que os russos seria inevitável, de alguma forma, em algum
concluíram o primeiro míssil intercon- momento, pois o imperialismo assim a tor-
tinental e lançaram o primeiro Sputnik: o nava, enquanto os russos tinham diluído a
mundo inteiro tirou conclusões exageradas doutrina básica da inevitabilidade da guer-
dessa conquista. Pensava-se que os russos ra, não tanto por razões de pura lógica, mas
estavam superando os norte-americanos, porque sua consciência das consequências
talvez até já o tivessem conseguido, e os assustadoras do uso das armas nucleares ti-
chineses esperavam que Khruschev explo- nha feito com que descartassem uma crença
rasse essa vantagem maravilhosa. Os co- tão terrível; eles estavam pensando especifi-
munistas há muito tinham superioridade camente na guerra nuclear e não na guerra
em números absolutos, e agora também em geral. O perigo nuclear também fazia
estavam à frente em tecnologia. com que divergissem dos chineses em sua
Os ventos do Oriente, na expressão de abordagem às guerras não nucleares: Mos-
Mao, estavam prevalecendo sobre o Oci- cou e Pequim apoiavam guerras de liberta-
dente. O arsenal nuclear russo poderia ser ção nacional, mas aquela se preocupava mais
usado para colocar os norte-americanos do que essa com os riscos de escalada rumo
contra a parede, enquanto os países comu- à guerra nuclear. Essas divergências foram
nistas ajudavam seus amigos a chegar ao aguçadas pela morte de Stalin, que desen-
poder em todo o mundo desfavorecido; na cadeou um debate abafado dentro da URSS.
Ásia, na África e na América Latina, havia Malenkov declarou que uma guerra mundial
movimentos revolucionários ávidos para se equivaleria a destruir toda a civilização; du-
livrar do imperialismo capitalista com a aju- rante seu mandato como primeiro-ministro,
da principalmente dos chineses, cujas pró- ele enfatizou a imbecilidade da guerra e vin-
prias experiências, entre 1922 e 1949, ensi- culou essa ideia à sua política de aumentar o
naram mais do que qualquer um sabia sobre fornecimento de bens de consumo. Khrus-
a estratégia da revolução em países pobres, chev, enquanto ainda competia com ele, ata-
atrasados e agrícolas. cou-o por derrotismo e por defender a coe-
Havia vários pontos na análise chinesa xistência com os capitalistas, e propôs uma
dos quais Khruschev e pelo menos alguns de política dura de aumento da força da URSS.
seus colegas mais antigos discordavam. Eles No entanto, quando ele próprio se tornou
podem muito bem ter sido as únicas pessoas primeiro-ministro, saiu em busca de aparar
no mundo que sabiam que o Sputnik russo as arestas da Guerra Fria porque, entre ou-
não posicionara a URSS à frente dos Estados tras razões, considerava as forças russas mal
Unidos e, portanto, não acreditavam poder organizadas. No 20o Congresso do Partido
imobilizá-los com a ameaça de aniquilação Comunista, ele disse que a guerra não era
nuclear. Até certo ponto, caíram na armadi- inevitável e poderia nem ser essencial para o
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triunfo mundial do socialismo. Essa visão foi ses, os russos estavam imperdoavelmente
repetida na declaração emitida em novem- indiferentes. Estes, embora simpatizassem
bro de 1957, ao final da conferência dos par- com os sentimentos de Pequim sobre ter-
tidos comunistas em Moscou (incluindo os ritórios chineses não resgatados, estavam
chineses), e a discussão parecia, a partir daí, cautelosos com relação a envolvimentos no
estar sendo redirecionada a discutir se todas Pacífico e decididos a não serem arrastados
as guerras, não apenas a nuclear, se torna- para a guerra por Taiwan. Eles se recusavam
ram inadequadas. Em 1958, a visão chinesa a estabelecer um comando conjunto para o
de que o vento do Oriente prevalecia sobre o Extremo Oriente e faziam demandas que os
Ocidente transformou um debate teórico em chineses consideravam como quebras ina-
uma questão tática ativa, com os chineses es- ceitáveis de sua soberania. Khruschev pa-
perando que os russos agissem de forma que recia disposto a estabelecer bases nucleares
não seria compatível com a tendência dos na China, mas somente com a premissa de
debates desde 1953. que elas seriam russas e não haveria dedos
Ao mesmo tempo, surgiu mais uma ra- nem gatilhos chineses. Alguns líderes chine-
zão para disputa. Em termos gerais, russos ses, incluindo o ministro da defesa, o mare-
e chineses estavam de acordo sobre a ne- chal Peng Dehuai, consideravam que valia a
cessidade de afastar Ásia, África e América pena pagar esse preço, mas Peng – gerando
Latina do campo capitalista, mas discorda- desconfiança em Mao, que não tolerava ri-
vam com relação aos meios. Os chineses, validades – foi demitido e desapareceu, e a
com intenções de multiplicar o número de tentativa russa (se é que era isso) de criar,
Estados sob domínio comunista, só queiram no leste da Ásia, o mesmo tipo de posição
ajudar comunistas, ao passo que os russos, estratégica dos norte-americanos na Euro-
assumindo a atitude mais pragmática de pa Ocidental fracassou. Para piorar as coi-
que qualquer regime antiocidental era uma sas, os russos jogaram água fria no Grande
vantagem, estavam dispostos a ajudar mo- Salto Adiante em um momento em que sua
vimentos revolucionários burgueses onde os cooperação era essencial para o futuro dessa
comunistas fossem inexistentes ou tivessem política, adotando uma atitude neutra nas
poucas chances de sucesso. Em uma confe- disputas da China com a Índia em 1959,
rência de partidos comunistas em Moscou, continuando a dar muita ajuda à Indonésia,
no final de 1960, essa divergência foi suavi- ainda que Pequim fosse levada a protestar
zada temporariamente pela adoção de uma contra o comportamento do governo desse
fórmula intermediária: as democracias na- país em relação à população chinesa, e se
cionais deveriam ser ajudadas se estivessem dispondo a melhorar as relações com os Es-
avançando em direção ao socialismo. tados Unidos. Os chineses foram forçados a
A aliança sino-russa, já prejudicada pela reavaliar as atitudes da URSS e o equilíbrio
desconfiança e pelos atritos em 1956-1957, das principais forças no mundo.
foi completamente perturbada nos dois Os eventos no Oriente Médio podem ter
anos seguintes, nos quais a URSS se mos- contribuído para essa reavaliação. Em julho
trou indiferente a interesses chineses vitais, de 1958, a monarquia iraquiana foi derru-
ou mesmo hostil a eles. A imunidade de bada e o rei, seu tio e seu primeiro-ministro
Jiang com relação a Taiwan, sob proteção Nuri es-Said morreram, junto com outras
da Sétima Frota norte-americana e com figuras de destaque. Por um tempo, parecia
sua posse das ilhas na costa chinesa, criava possível que norte-americanos e britânicos
feridas sobre as quais, aos olhos dos chine- pegassem em armas contra essa revolução e
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começassem uma guerra. Os chineses esta- tenha tido uma resposta palatável, e, no ano
vam interessados nesses eventos, exigiram novo, o ministro de relações exteriores e o
ser incluídos em qualquer conferência or- primeiro-ministro da China emitiram opi-
ganizada para lidar com a situação e, pouco niões que equivaliam a declarações de des-
depois do golpe iraquiano, voltaram a bom- confiança na política externa de Khruschev.
bardear Quemoy. Em uma reunião do presidium do Conselho
Talvez eles tenham calculado que os Mundial da Paz (uma organização de facha-
russos poderiam ser induzidos a usar a da dos comunistas) em Roma, em janeiro
ameaça nuclear contra os norte-americanos de 1960, a delegação russa atacou a China;
ou mesmo a se envolver na luta. Se tinham e, em uma conferência comunista em Var-
expectativas tão elevadas, sua decepção foi sóvia, em fevereiro, os chineses foram so-
profunda; e eles foram forçados a assumir mente observadores, embora a Mongólia
a visão profundamente melancólica de que, Exterior e a Coreia do Norte fossem parti-
pelo contrário, os russos estavam envolvidos cipantes plenos. Em abril, o 90o aniversário
em uma conspiração com os norte-america- do nascimento de Lênin deu a ambos os
nos para dominar o mundo e impedir que a lados uma ocasião para expor longamente
China se tornasse uma potência nuclear. suas visões, e uma forte campanha de pro-
Quando o mundo ficou sabendo, em paganda chinesa deixou explícita a dispu-
agosto de 1959, que Khruschev estava indo ta. Mao, saindo da semiaposentadoria, fez
aos Estados Unidos e se reuniria com Eise- cinco declarações separadas explicando a
nhower em Camp David, os chineses con- atitude chinesa e desdenhando a tolice de
cluíram que Khruschev rejeitara a tese de acreditar nos norte-americanos.
Pequim, de que a URSS deveria demons- Não restavam dúvidas de que os chi-
trar sua força em vez de negociar. Embo- neses esperavam converter ou derrubar
ra tivesse havido alguns sinais de apoio Khruschev, e o líder russo, preparando-se
chinês à política de Khruschev, uma mu- para a conferência de cúpula em Paris com
dança de posição em Pequim, coincidente os Estados Unidos, em meados de maio,
com alterações nos altos cargos do Partido corria algum risco. O Soviete Supremo se
Comunista Chinês, gerou um tom inequi- reuniu em 5 de maio, houve uma reformu-
vocamente duro em relação aos Estados lação no secretariado do partido e havia ru-
Unidos e alertas sobre o amadorismo ingê- mores de divisões e conchavos. Mas Khrus-
nuo daqueles que imaginavam ser possível chev foi a Paris e, apesar do incidente com o
conviver pacificamente com inimigos im- U-2 e o fracasso da conferência, reafirmou
perialistas. Não apenas os líderes da China sua crença na coexistência pacífica ao voltar
não compartilhavam o espírito de Camp para casa. Em Bucareste, em junho, ele ata-
David, mas também essas negociações pa- cou os chineses em uma reunião que deveria
reciam deixar de fora os interesses chineses, restaurar a harmonia; e, em agosto, os técni-
embora a China não fosse mais do que um cos russos na China, que chegavam a cerca
obstáculo à aproximação russo-americana. de 12 mil, receberam ordens de fazer as ma-
Pouco depois de seu retorno dos Estados las e voltar para casa, trazendo consigo os
Unidos, Khruschev foi a Pequim, uma visi- planos nos quais vinham trabalhando. Esse
ta que teve a consequência inédita de não ato extremamente hostil, coincidindo com
gerar qualquer comunicado. Caso seus anfi- os reveses domésticos dos anos da grande
triões lhe tenham perguntado o que disse a fome, parecia equivaler, para os chineses, a
Eisenhower sobre Taiwan, é improvável que um convite para que os Estados Unidos in-
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vadissem a China e que o Kuomintang inci- foram aumentadas nas décadas de 1970 e de
tasse um levante contra o regime comunista. 1980, de 33 para 56 divisões, e, desde 1979,
A correspondência e a propaganda con- a ameaça à China foi ampliada pelo estabe-
tinuaram com crescente aspereza, e a con- lecimento de bases navais e aéreas russas
ferência dos 81 partidos comunistas, reali- no Vietnã. As negociações em Pequim, em
zada em Moscou, em 1960, caracterizou-se 1969-1970, às quais a URSS mandou um de
pelo debate violento e por um comunicado seus mais elevados e capazes diplomatas,
que pouco tapava um buraco tão grande. Os foram longas e improdutivas, e novas con-
russos levaram a melhor no confronto na versações, em 1979, foram prejudicadas pela
hora do balanço. Nesse momento, a alian- invasão russa ao Afeganistão (com o qual a
ça russo-chinesa era inexistente e a solida- China faz fronteira).
riedade doutrinária, uma farsa. A retirada Alguma compensação para o colapso de
dos técnicos russos foi um cancelamento da uma grande aliança comunista veio à Chi-
cooperação econômica iniciada imediata- na, com sua readmissão da política de boa
mente depois do estabelecimento da Repú- vizinhança. Canadá e Itália estabeleceram
blica Popular da China, e as aproximações relações diplomáticas em 1970. No mesmo
de Khruschev a Eisenhower revelaram os ano, a maioria da Assembleia Geral da ONU
limites estritos do apoio russo à China nas (mas não os dois terços necessários) votou a
questões externas. A tentativa de estabe- favor da entrada da China e, no final do ano,
lecer uma aliança sino-russa em questões o regime de Mao foi admitido como ocu-
mundiais bateu de frente com a política de pante de um assento permanente no Conse-
Khruschev para os Estados Unidos. lho de Segurança. A China entrou na ONU
Todavia, no final de 1964, Khruschev foi em seus próprios termos, que incluíam a
derrubado, e o segundo triunvirato que assu- rejeição de uma proposta sino-americana
miu o poder interinamente (como a lideran- de manter Taiwan como membro separado
ça coletiva anterior, depois da morte de Sta- junto com a China continental. Mais impor-
lin) tentou uma reconciliação. Kosygin foi tante, as relações entre a China e os Estados
duas vezes a Pequim, mas os chineses se re- Unidos foram alteradas profundamente. Em
cusaram a participar de uma conferência de 1971, Nixon mudou a política dos Estados
partidos comunistas em Moscou, em 1965, e Unidos em relação à China quando decidiu
depois frustraram os planos russos para uma abandonar a políticas das duas Chinas se
conferência comunista mundial. A embaixa- isso fosse necessário para estabelecer rela-
da russa em Pequim foi atacada em 1967, e, ções diplomáticas com Pequim.
no ano seguinte, Pequim condenou a inva- Esse foi o ponto culminante de um
são russa da Tchecoslováquia e a doutrina processo lento e longo. Em Genebra, em
Brejnev sobre o direito da URSS de agir fora 1954, Zhou propôs discussões para relaxar
de suas fronteiras pela defesa do socialismo e as tensões, e aconteceu uma primeira reu-
do bloco socialista como um todo. Em 1969, nião depois da libertação dos 13 aviadores
houve incidentes no rio Ussuri, onde a posse norte-americanos capturados. As conver-
de algumas ilhas há muito era motivo de dis- sações fracassaram, em 1957, em função
puta (não muito acirrada). Houve mortos e do reconhecimento de Taiwan como Esta-
rumores sobre a possibilidade de um ataque do separado por parte dos Estados Unidos,
preventivo russo contra a China antes que mas foram retomadas em Varsóvia no ano
sua capacidade nuclear assumisse propor- seguinte, e os Estados Unidos começaram a
ções dissuasivas. As forças russas no Oriente conceder vistos a jornalistas norte-america-
140 | PETER CALVOCORESSI

nos que quisessem ir à China. A crise que posição doméstica, já que desde a Revolu-
se seguiu, em função das ilhas da costa chi- ção Cultural, seu incentivo aos guardas ver-
nesa. congelou as atitudes em ambos os la- melhos para que confrontassem o exército
dos; mas os contatos foram mantidos, e, em levou a prever – pelo menos em sua ima-
1960, Zhou propôs um pacto de não agres- ginação – um golpe por parte do marechal
são do pacífico. Durante alguns anos, houve Lin Biao, com apoio do exército. O novo
impasse. Em 1966, o secretário de Estado acordo tinha pouco conteúdo preciso (e a
norte-americano Dean Rusk disse que seu visita do presidente Gerald Ford a Pequim,
país não tentaria derrubar o governo de Pe- em 1975, não acrescentou nenhum), mas
quim pela força, mas a Guerra do Vietnã pôs foi uma demonstração política importante;
fim ao menor sinal de relações normais até um alerta conjunto à URSS – por parte dos
que a retirada norte-americana do Sudeste norte-americanos, para que não consideras-
Asiático revivesse a situação criada pela tré- sem a détente russo-americana como algo
gua na Coreia do Norte na década de 1950. garantido, e, por parte dos chineses, para
Os norte-americanos estavam reconhecen- que não houvesse problemas nas fronteiras
do a derrota de seus esforços para ser uma da China; um sinal de que a bipolaridade na
potência asiática continental. Em 1971, cúpula das questões mundiais estava che-
uma equipe de pingue-pongue dos Estados gando ao fim; e assim a abertura de uma
Unidos, que vinha jogando em vários países nova visão do futuro. No período seguinte,
asiáticos, foi convidada a ir à China, sendo a China permaneceu muito aquém do status
essa a primeira aparição desse esporte nas de superpotência em termos militares: não
esferas da alta política de que se tem notícia. poderia atingir os Estados Unidos nem cau-
Essa ação foi seguida por mais relaxamen- sar grandes danos à URSS, e não forçou os
to do embargo comercial norte-americano norte-americanos a alterar sua posição com
(tinha havido algum relaxamento em 1969). relação a uma Taiwan independente.
Em julho, o assessor de segurança nacional Na década seguinte, a China se dedicou
de Nixon, Henry Kissinger, foi secretamen- a tornar-se duas coisas: uma potência nu-
te a Pequim, sendo seguido pelo próprio clear independente e líder mundial em uma
presidente no ano seguinte. nova força internacional dos desfavoreci-
Nos anos seguintes, essas ações por par- dos. Em 1975, o país realizou cerca de 20 ex-
te dos Estados Unidos coincidiram com o plosões e possuía uma estimativa de 300 ar-
fim da Guerra do Vietnã e, mais importante, mas nucleares. Algumas delas eram mísseis
com um desejo recíproco de Mao de me- de médio alcance, mas a maioria só poderia
lhorar as relações com os Estados Unidos. ser lançada de aviões, com alcance de 2.400
No final da década de 1960, as relações da km. No final dos anos de 1970, contudo,
China com a URSS tinham se deteriorado havia boas bases para se supor que a China
a ponto de Mao recear uma guerra entre os possuía não apenas os mísseis, mas também
dois países. As disputas sobre as políticas os sistemas de lançamento necessários para
comunistas gerais no mundo foram exacer- atacar alvos nas áreas europeias da URSS.
badas por ameaças militares explícitas em Em segundo lugar, Zhou Enlai, que foi cons-
suas fronteiras na Mongólia, onde as forças truindo uma firme posição diplomática
soviéticas aumentaram de 15 para 44 divi- para a China na Ásia a partir da conferência
sões. As fronteiras terrestres da China fo- de Bandung em 1955, visitou países africa-
ram uma preocupação recorrente ao longo nos em 1963-1964, mas as despesas milita-
de sua história. Mao também temia por sua res comparativamente modestas da China e
POLÍTICA MUNDIAL | 141

suas dores do crescimento industrial a tor- do conquistado o Tibete porque podiam e


navam uma potência do futuro, em vez de postergado a conquista de Taiwan porque
uma potência a ser considerada no presente. precisavam, eles aplicavam uma política de
O que a China conseguiu nesses anos de es- atividade limitada, que se enquadrava em
forço foi projetar uma imagem ameaçadora suas capacidades limitadas. A decisão do
de seu poder futuro a ponto de fazer com Vietnã do Norte de participar ativamen-
que o mundo a levasse a sério no presente. te na guerra do sul foi, pode-se presumir,
Esse medo era alimentado pelo mistério em aprovada pela conferência de Moscou, que
que o país estava envolto em função da de- reuniu 81 partidos comunistas, e pelo go-
terminação dos países do exterior de tratá- verno da URSS, que não poderia resistir
-lo não apenas como diferente, mas também aos apelos à solidariedade comunista e não
como sendo de fora deste mundo. Era pro- tinha como negar seu apoio, e até sua assis-
duto, particularmente, das atitudes chinesas tência, a uma guerrilha com probabilidades
em relação à guerra nuclear e a uma cren- de se revelar constrangedora aos Estados
ça de que os líderes chineses olhavam essa Unidos. Quando, em 1963, os Estados Uni-
guerra com tranquilidade, com base na ideia dos decidiram assumir um papel importan-
de que a vastidão do país e suas poucas cida- te na guerra e elevar o nível dos combates
des grandes lhe possibilitariam sobreviver a para preservar um Estado independente no
um ataque nuclear. Na verdade, os chineses Vietnã do Sul, na verdade, enviaram um si-
estavam cientes de que uma guerra nuclear nal indicando a possibilidade de encerrar a
seria um desastre universal e que a China e política de não agressão à China. Os chine-
o Partido Comunista Chinês estariam entre ses, diante do conflito entre dois princípios
as vítimas, e, embora se agarrassem à tese – o de que uma potência nuclear não deve
plausível de que as guerras eram inevitáveis, ser provocada e o de que um movimento
aparentemente não consideravam a guerra de libertação nacional deve ser ajudado, es-
nuclear da mesma forma. Assim como ou- colheram o primeiro. Esse princípio domi-
tros, eles esperavam impedir uma guerra nante foi ilustrado ainda mais na Europa. A
nuclear por meio de uma política de conten- Albânia, um dos poucos amigos da China,
ção, mas, diferentemente de outros, não po- recebeu pouco mais do que a ajuda retórica
dia realizá-la por conta própria nos anos de que se poderia esperar que os russos tole-
1950 e 1960. Nesse período, a China ficou rassem. De qualquer forma, os chineses ti-
exposta a ameaças nucleares da mesma for- nham um interesse apenas marginal na Eu-
ma como a URSS esteve entre 1945 e 1949. ropa, estando mais interessados na África,
Nessa situação, os chineses, assim que apresentava, em sua visão, perspectivas
como os russos antes deles, e independen- excelentes para a revolução.
temente se suas intenções finais fossem A China dedicou mais tempo de trans-
malevolentes ou pacíficas, tiveram que re- missão a ouvintes africanos, inclusive mais
correr a fatores de contenção menores, não do que aos asiáticos, mas os resultados fo-
nucleares, ao mesmo tempo em que evi- ram decepcionantes, porque, quando a Chi-
tavam qualquer provocação desastrosa de na estava pronta para cumprir um papel in-
uma potência nuclear. Desafiaram e expu- tegral nas questões mundiais, a maioria dos
seram o maior país não nuclear da Ásia, a movimentos nacionalistas na África tinha
Índia, e chegaram a bom termo com países conquistado poder e independência e, com
menos importantes que poderiam ser ten- intenção de manter seu poder, eles eram
tados a entrar em um campo inimigo. Ten- qualquer coisa, menos insurrecionais. A
142 | PETER CALVOCORESSI

queda de Ben Bella na Argélia, em 1965, foi uma virtude e descontou os perigos con-
um revés especial, semelhante à perseguição centrando-se em um futuro mais distante
e massacre dos comunistas indonésios no no qual acabaria por ultrapassar e desarti-
mesmo ano. cular as principais potências cuja hostilida-
A China se encaminhava para tornar-se de tinha que suportar no presente. A China
uma potência regional, mas também estava estava acostumada a ter inimigos podero-
em busca de um papel que fosse além desse. sos. A Grã-Bretanha e a Alemanha foram
Seu surgimento como futura potência gi- sucedidas nesse papel pelo Japão, e este, em
gante foi um alerta de que o mundo bipolar 1945, pelos Estados Unidos – principalmen-
da Guerra Fria estava destinado a ter vida te depois do início da Guerra da Coreia. A
curta. A primeira explosão nuclear da Chi- URSS, em princípio um aliado natural, em
na, em outubro de 1964, foi seguida por uma uma década se transformara em inimigo,
segunda, em maio de 1965. Um ano mais uma potência estrangeira de cuja boa vonta-
tarde, foi explodida uma primeira arma ter- de a China tinha se deixado ficar muito de-
monuclear, provavelmente passível de ser pendente por engano, ainda que por pouco
usada em submarinos (dos quais o país ti- tempo. Nessa situação, os líderes da China
nha 30, recebidos da URSS). O primeiro tes- pareciam se encaminhar em direção a um
te com míssil guiado da China ocorreu em nacionalismo ainda mais intenso do que se
outubro de 1966, e a primeira bomba de hi- poderia esperar de um meio-século de im-
drogênio do país foi explodida em junho de potência e revolução, e buscar garantir-se
1967. Em pouco tempo, seria capaz de atin- no vasto tamanho e na esplêndida história
gir um raio de 1.600 km; poderia se esperar de seu país, em sua fé na revolução que ti-
que tivesse um estoque de armas nucleares nham realizado e em uma visão otimista da
de amplo alcance, ainda que limitadas, em política mundial. A seus olhos, Ásia, África
algum momento da década de 1970, e po- e América Latina eram domínios anticolo-
deria surpreender desenvolvendo, adiante niais e revolucionários onde seus principais
das expectativas, um arsenal de submarinos inimigos – os Estados Unidos, a URSS e os
nucleares para ameaçar os Estados Unidos e principais países da Europa Ocidental – te-
a América Latina a partir do Oceano Pacífi- riam problemas em função de suas atitudes
co. Mas, ao contrário dos Estados Unidos e políticas arcaicas e suas contradições econô-
da URSS, a China não estava se tornando o micas. A Europa Ocidental e a América do
centro de um grupo, pois não tinha conse- Norte também desenvolveriam movimen-
guido separar mais do que alguns partidos tos revolucionários semelhantes, nos quais
comunistas comparativamente insignifi- a burguesia seria ameaçada e finalmente
cantes do corpo principal do comunismo suplantada pelo proletariado.
internacional que, se tivessem que escolher, Nesse meio-tempo, a China deveria
continuariam optando por Moscou em de- reunir e desenvolver seus recursos e – na vi-
trimento de Pequim; somente os distantes são do próprio Mao e de alguns de seus par-
e ineficazes albaneses e neozelandeses se ceiros – preservar o ardor de sua revolução.
mantinham fiéis a Pequim.
Há sempre algo de grandioso no isola-
mento, e a Grã-Bretanha, o Japão e os Es- Ressurreição
tados Unidos tinham, em momentos varia-
dos, flertado com a sua sedução. A China O governo de Mao estava disposto a dar
comunista transformou seu isolamento em um fim à corrupção nos serviços públicos,
POLÍTICA MUNDIAL | 143

reverter a decadência econômica que tinha fato de não ser recomendável decepcionar e
esmagado o Kuomintang, fazer da China entrar em conflito com os camponeses que
uma potência industrial moderna e intro- acabavam de se tornar proprietários no lu-
duzir reformas totais na propriedade da gar dos donos de terras que foram embora,
terra e na agricultura: tarefas imensas que recomendava cautela. Em 1953-1954, Mao
demandavam dinheiro, autoridade e paz. estava doente e Gao Gang – o senhor se-
A corrupção, o desperdício e a burocracia miautônomo da Manchúria, pró-Moscou,
foram atacados na campanha Anti-três ini- pró-indústria pesada – estava temporaria-
ciada na Manchúria, em agosto de 1951, mente no comando. (Ele cometeu suicídio
e ampliada à China como um todo dois pouco tempo depois.) Ao voltar, Mao deci-
meses depois. Uma campanha Anti-cinco diu acelerar o ritmo da mudança, principal-
seguiu-se, dirigida contra o suborno, a so- mente na agricultura. Depois de dois anos
negação fiscal, a fraude, o roubo de proprie- ruins, a colheita de 1955 prometia; ele não
dades do Estado e a revelação de segredos queria deixar os novos proprietários-cam-
econômicos. Essas campanhas pareciam poneses quietos por muito tempo, por medo
indicar, por parte do governo, uma preocu- de que uma nova classe de kulaks pudesse
pação real em garantir a aprovação do povo surgir a partir de suas fileiras; o primeiro
chinês e, por outro lado, uma preocupação plano quinquenal, que cobria os anos 1952-
igual em garantir que o povo não apenas se 1957 (mas que não foi publicado até que ti-
comportasse, mas pensasse corretamente. vesse transcorrido cerca de metade de seu
As campanhas eram implementadas por tempo), foi fornecido de forma inadequada
meio de reuniões públicas, confissões, ex- pela fonte russa e necessitava mais um im-
purgos, delação e execuções, sendo indis- pulso que só poderia vir da organização dos
criminadas e usadas para atacar classes camponeses e levá-los a usar métodos mais
impopulares ou mais ricas, como missio- eficientes e maior produtividade. O objetivo
nários, comerciantes e empreendedores básico era abalar a resistência do camponês
privados. Proprietários de terras e kulaks ao Estado; enquanto tivesse a propriedade
foram escolhidos, em parte como reconhe- de sua terra, ele manteria o desejo de lutar,
cimento da dívida para com os camponeses mas assim que a perdesse, esse espírito o
mais pobres que tinham garantido a sobre- deixaria.
vivência e o sucesso final dos comunistas. Nos primeiro anos, a aproximação da
A expropriação de proprietários de terra e propriedade comunal tinha sido cautelosa-
kulaks, que começou em 1950, foi acelera- mente preparada por meio de uma série de
da, tornando-se horrível, pelo pânico que etapas, começando pela cooperação em ta-
se espalhou na China durante os primeiros refas definidas em determinadas estações,
meses da Guerra da Coreia e que fez 2 mi- passando a uma distribuição de recom-
lhões de vítimas ou mais: os governantes pensas, em parte com base no tamanho da
recém-instalados, como os líderes da Re- propriedade da pessoa e em parte na quan-
volução Francesa enfrentando os exércitos tidade de trabalho que ela fazia e, assim,
de émigrés e potências hostis, viviam na ex- a uma fase final na qual a propriedade da
pectativa de um levante contrarrevolucio- terra seria transferida ao grupo comunal
nário que pudesse ser apoiado e explorado (não ao Estado); as recompensas seriam
pelos Estados Unidos. calculadas com base no trabalho feito; e as
A coletivização começou em 1951. O questões do grupo seriam reguladas por
exemplo da URSS na década de 1930 e o reuniões gerais e comitês eleitos. Desde a
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segunda metade de 1955, essa progressão introdução do sistema de comunas nas áreas
foi acelerada em muito e, dentro de algo urbanas e rurais.
como dois anos ou dois anos e meio, estava O Grande Salto Adiante (precedido por
completa. A velocidade dessa vasta revo- um Pequeno Salto, anterior e malsucedido,
lução econômica e social era característica em 1956-1957) foi um estímulo a maiores
dos métodos e da perspectiva dos novos esforços, associado particularmente a Liu
líderes da China, mas também aumentava Shaoqi, líder da escola mais impetuosa que
os desconfortos e os ressentimentos (prin- ascendeu, no final de 1958, à posição mais
cipalmente entre os camponeses de melhor alta no Estado, diante da inesperada saída
nível de vida) que um programa desse tipo de Mao da presidência (mas, mais tarde,
teria evocado de qualquer forma. veio a lamentar sua contribuição às misérias
Durante esses anos, Mao, cuja rápida do Grande Salto). O Grande Salto Adiante
coletivização estava fadada a ofender os deveria ser um atalho para maior produção.
mais conservadores, também corria o ris- Depois de alguma experimentação, passou
co de descontentar a facção mais radical ao a ser uma determinação para todo o país
cortejar os intelectuais que, embora suspei- no outono de 1958. Os principais objetivos
tos em função de sua formação e seu pen- eram mobilizar a força de trabalho, liberar
samento ocidentais, eram úteis ao regime. as mulheres para trabalhos industriais, es-
Mao queria iniciar um debate real que en- tabelecer indústrias locais como um asses-
gendraria uma convicção verdadeira sobre sório para unidades de produção maiores e
a correção de suas políticas. Os intelectuais, apresentar os processos industriais às pes-
contudo, relutavam muito em começar, soas das zonas rurais. Um dos itens mais
mesmo depois que Mao, ao cunhar o slogan divulgados era a fabricação de aço nos quin-
das Cem Flores, praticamente os pressionou tais (uma ideia que produziu muito aço, mas
a acreditar que o regime queria que pensas- de má qualidade), mas a característica mais
sem por meios próprios e expressassem suas importante eram as comunas que se esta-
visões com mais liberdade e menos preocu- beleceram rapidamente pelas zonas rurais,
pação com a conformidade do que tinham acompanhadas por uma barragem de pro-
ousado fazer até então. Quando se evocou a paganda voltada a afogar as críticas em uma
postura crítica, ela se mostrou exuberante. A onda de entusiasmo.
desilusão inevitável que estava desgastando A propriedade foi estabelecida como
as elevadas esperanças e o otimismo auto- comunal e os indivíduos deveriam se voltar
confiante que se seguem à vitória tinha sido à comunidade para alimentos, serviços e en-
aguçada pela inflação, por problemas tra- tretenimentos gratuitos. Em muitos lugares,
balhistas e de escassez de alimentos e bens os resultados chegaram a ir ridícula e tragi-
de consumo; e, nessa atmosfera, a desejada camente longe: até cabanas, árvores, aves e
discussão sobre como avançar pelo caminho pequenos utensílios se transformaram em
do comunismo estendeu-se ao questiona- propriedade comunal. O governo central
mento mais radical de preceitos comunistas só tinha maquinário em mau estado para
básicos. Poucos meses depois da primeira garantir que seus desejos fossem bem im-
menção às Cem Flores, o debate desencade- plementados em toda a vastidão da China.
ado por esse slogan foi abruptamente encer- Ele operava por meio de recrutas, um dis-
rado, sendo sucedido no começo de 1958, positivo não comunista acrescentado pelos
no início do segundo plano quinquenal, comunistas ao sistema de governo. Essas
pelo Grande Salto Adiante e pela vigorosa ligações entre o governo central e o povo
POLÍTICA MUNDIAL | 145

foram responsáveis por grande parte da ine- feito de Pequim, Peng Zhen, para dirigi-la.
ficiência, crueldade e brutalidade com que Esse, contudo, em pouco tempo entrou em
se implementaram as novas políticas. Trinta conflito de propósitos com Jiang Qing, a ter-
milhões de pessoas, talvez mais, foram mor- ceira mulher de Mao, e, em algum momento
tas por inanição ou violência ao tentar fugir do primeiro semestre de 1966, foi demitido.
da fome ou sucumbindo a ela. Em algumas Em 1966, Mao reapareceu em público de-
áreas, um terço da população sofreu de pois de um sumiço de seis meses, e, algumas
morte prematura e em terríveis condições. semanas depois, a Revolução Cultural pas-
As ineficiências do Grande Salto Adian- sou a ser desenvolvida em público com uma
te foram potencializadas pelos desastres série de passeatas, manifestações e denún-
naturais, e o experimento como um todo, cias e um banho muito divulgado de Mao
voltado a racionalizar e dar um impulso à no Rio Yangtzé, próximo à capital provincial
produção agrícola, foi abandonado. Repre- de Wuhan. Foi assim que, nessa época, hou-
sentava a obstinação por parte de Mao, que ve um grande colapso no sistema educativo,
carecia da força de trabalho e do entusiasmo que forçou as autoridades a adiarem por um
necessários em campo: um enorme fracasso ano todas as entradas em universidades e
que foi ocultado durante um tempo por afir- instituições semelhantes, deixando milhões
mações falsas. Embora as comunas tenham de jovens temporariamente sem ter o que
sobrevivido como os novos elementos na fazer. Eles foram transformados em Guar-
sociedade e no governo, em 1960 a econo- das Vermelhos, que viriam a substituir a
mia rural voltara a se basear nas pequenas organização comunista jovem (que suposta-
equipes. A revolução teve sua imagem muito mente tinha perdido seu ímpeto) e trabalha-
desgastada durante os anos da grande fome, riam para aumentar a produção no campo e
tendo exacerbado uma crise inevitável com nas fábricas.
estimativas gravemente exageradas de pro- Dessas tarefas úteis, ainda que não
dução agrícola e feito experimentos malsu- relacionadas aos estudos, eles foram des-
cedidos com um novo padrão comunal que viados para uma cruzada ideológica e, em
os russos tinham criticado explicitamente. uma exuberância de espírito antirrevisio-
Na década de 1960, a revolução co- nista, manifestavam-se contra insuficiên-
meçou a devorar seus filhos. O grupo do- cias revolucionárias, e atitudes e símbolos
minante da China foi rompido com uma pré-revolucionários, atacando indivíduos
violência mais familiar na URSS do que na e destruindo propriedades, em um movi-
China, onde as únicas grandes figuras co- mento que se espalhou de forma tão inten-
munistas importantes a serem expurgadas sa que desarticulou as comunicações e fez
tinham sido Gao Gang, em 1954, e Peng parar as fábricas. Diz-se que cerca de 20
Dehuai, em 1959. Obcecado com o medo de milhões de jovens estiveram envolvidos,
que o trabalho de sua vida estivesse sendo na maioria adolescentes.
corroído por desvios burgueses, Mao deter- “Revolução Cultural” foi o nome enga-
minou a destituição de todos aqueles líde- nador para um reino de terror acompanha-
res cuja firmeza e cujo fervor estivessem em do pela mais revoltante crueldade. Ela teve
dúvida e a revitalização do partido e da po- suas fontes em problemas internos e exter-
pulação, voltando-se à juventude. Depois de nos – planejamento econômico, transferên-
alguns anos de preparação, em 1965 ele re- cia de autoridade, consolidar em detrimento
velou seus planos para uma revolução cultu- de forçar o ritmo do progresso, atitudes em
ral a seus colegas principais e indicou o pre- relação aos russos – que haviam atrapalhado
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o partido nos anos de 1950 e o desorganiza- que representou um revés para o vice e su-
do nos de 1960. A revolução dividiu o parti- posto herdeiro de Zhou, Deng Xiaoping, de
do em todos os níveis. Centenas de milhares 72 anos. Deng, secretário-geral do Partido
de líderes, desde o presidente Liu Shaoqi até Comunista em 1956, tinha sido expurgado
membros muito mais humildes, perderam durante a Revolução Cultural, mas reapa-
seus cargos, foram torturados e mortos. Ine- receu em 1974, e no ano seguinte foi no-
vitavelmente, o exército ganhou poder. Lin meado vice-presidente do partido, primeiro
Biao, que sucedeu Peng Dehuai em 1959 e vice-primeiro-ministro e chefe do Estado-
inventara e distribuíra o famoso livro ver- -Maior do exército. Manifestações em favor
melho, ficou do lado de Mao, garantindo de Deng em Pequim levaram à sua desgraça
sua vitória e a derrota da facção pró-russa e à maior promoção de Hua para ser o pri-
que fora representada por Peng. Lin Biao foi meiro vice-presidente do partido (próximo
proclamado o futuro herdeiro de Mao; mas, de Mao) e primeiro-ministro. Quando Mao
em 1971, desapareceu, e os rumores diziam morreu, Hua, temporariamente livre de ata-
que ele teria fugido para a URSS morrendo, ques da direita, avançou com toda a força
no caminho, devido à queda de seu avião contra a esquerda radical. A chamada Gan-
na Mongólia. Dois anos mais tarde, no con- gue dos Quatro, liderada por Jiang Qing, foi
gresso do Partido Comunista Chinês, ele foi presa algumas semanas depois, e Hua se tor-
acusado explicitamente de tramar o assassi- nou presidente do partido.
nato de Mao e cimentar uma aliança com a Porém, no ano seguinte, Deng retornou
URSS. Essas acusações foram repetidas no e, pelos três anos seguintes, partilhou com
julgamento conjunto, em 1980, dos líderes Hua os principais postos e palcos, até que,
da Revolução Cultural e dos militares que em 1980, Deng derrubou Hua após uma
um dia foram aliados de Lin. campanha na qual a posição desse como
Em 1976, Mao Tsé-Tung morreu. Ele sucessor de Mao foi minada em nome da
era um exemplo extremo no qual a ideo- liberdade democrática, e o próprio Mao foi
logia cobre o intelecto, o bom-senso e as criticado por ter agido de forma autocráti-
emoções humanas, e ajuda um homem ca ao nomear seu sucessor. Ao mesmo tem-
naturalmente autoritário a cometer abusos po, a Gangue dos Quatro foi levada a jul-
de poder monstruosos. Depois de uma luta gamento e ligada ao golpe abortado de Lin
singularmente longa e árdua, que culminou Biao em 1971. O efeito desse julgamento, e
na vitória de 1949, ele testemunhava suas supostamente seu propósito, era represen-
visões fracassarem. Para preservá-las, trans- tar a Gangue dos Quatro como um grupo
formou-as em políticas que criaram caos e conspirador na tradição das sociedades se-
brutalidade em enorme escala, arruinaram cretas da China; desacreditar as forças ar-
a China rural pela devastação e despovoa- madas como sendo traiçoeiras e incompe-
mento, e destruíram grande parte do patri- tentes; e indiretamente implicar o próprio
mônio material e espiritual da mais antiga Mao nos desastres econômicos e sociais da
civilização do mundo. Zhou Enlai morreu Revolução Cultural.
no mesmo ano que Mao, e essas duas mor- Nos termos comunistas chineses, Deng
tes desencadearam uma disputa por poder era um pragmático conservador. Sua vitória
entre três grupos principais. O primeiro be- significava um retorno a tipos tradicionais
neficiário foi Hua Guofeng, que era a opção de exames competitivos, a reabilitação da
de Mao para a liderança e sucedeu Zhou intelligentsia e de outras vítimas dos anos ra-
como primeiro-ministro (em exercício), o dicais, a restauração da motivação do lucro,
POLÍTICA MUNDIAL | 147

preços mais elevados para os camponeses e mesmo tempo que as temia. Estava ciente de
salários mais altos na indústria e no comér- sua dependência do exército e de seus che-
cio, e mais abertura ao Ocidente e ao Japão, fes conservadores de idade avançada, que o
e até à URSS. Contudo, embora fosse revi- derrubaram em 1966 e o colocaram de volta
sionista e modernizador, Deng não era nem no cargo em 1975; aumentou muito a força
um pouco liberal nem democrata. Ele que- policial armada. Oscilava entre um autori-
ria modernizar a economia chinesa sem re- tarismo inato e uma prontidão para aliviar
laxar o controle político do Partido Comu- as rédeas e estimular o progresso econômi-
nista. A Revolução Cultural fez regredir a co – e uma prontidão igual para apertá-las
modernização e, em seus anos de decadên- quando o relaxamento incentivava o pro-
cia, Mao não tinha sido capaz de cumprir testo político. Suas políticas engendraram,
sua tarefa básica de colocar a China de volta portanto, sua própria reversão. Ele tolerava
a seu lugar de direito como a maior potência e parecia encorajar o crescimento dos pro-
do mundo. Deng e seus colegas elaboraram testos que, em 1978-1979, tomaram a forma
programas para a modernização da indús- de queixas e reivindicações populares afixa-
tria, das forças armadas, da agricultura e da das no Muro da Democracia em Pequim, e
área de ciência e tecnologia. Grandes somas conseguiu combinar, por vários anos, uma
foram tomadas emprestadas e gastas, mas os expansão econômica substancial com liber-
programas foram limitados quando o esta- dades políticas toleráveis.
blishment financeiro (banqueiros que retor- Mas, em torno de 1985-1986, o avan-
navam a cargos que tinham tido antes da Re- ço econômico perdeu força enquanto as
volução Cultural ou mesmo antes do triunfo demandas populares, ao contrário, torna-
de Mao sobre Jiang Kaishek) descobriu que vam-se mais prementes. O preço do pro-
o financiamento estrangeiro estava superan- gresso econômico era o aumento de preços,
do as receitas domésticas (exportações, re- aumento de inflação, colapsos e gargalos nas
messas de chineses no exterior, turismo). O comunicações, escassez de capital e energia,
crescimento era forte – com algumas áreas e corrupção. O crescimento econômico, em
pobres em produção de energia de todas as vez de aliviar a escassez, estava tornando-a
fontes e em grãos – mas a demanda também pior e alimentando a indignação. Deng im-
o era. A inflação subiu para 20-30% ao ano pôs controles de importações e desvalorizou
e a corrupção aumentou à medida que cres- a moeda em uma tentativa de restringir a
cia a lacuna entre preços oficiais, inalterados economia e, em face do clamor estudantil
por anos, e os preços do mercado negro. A por mudanças maiores e mais rápidas, rela-
reforma dos preços era urgente, mas a ex- xou a censura e permitiu um debate político
pectativa em relação a ela acentuou ainda mais aberto. Mas, em 1987, assustado com
mais a lacuna, causou corridas aos bancos o resultado dessa tendência liberalizante,
à medida que os depositantes se apressavam ele mudou de rumo, amordaçou os acadê-
em trocar dinheiro por bens e, assim, for- micos liberais e forçou o secretário-geral do
çou o governo a adiar a reforma de preços. Partido Comunista, o relativamente liberal
Como na URSS, o problema de transplantar e jovem Hu Yaobang, a renunciar (como
mecanismos de mercado a uma economia ele próprio tinha sido forçado por Mao a
de comando gerou colapso econômico e renunciar em 1966). Depois de alguns me-
amargas disputas entre líderes políticos. ses, Deng mudou de rumo mais uma vez e
O próprio Deng foi pego nesses dilemas. voltou a uma posição relativamente liberal.
Ele viu necessidades de medidas liberais, ao No final do ano, ele cumpriu a intenção
148 | PETER CALVOCORESSI

frequentemente anunciada de se aposentar, da por imensas mas ordeiras multidões, o


levando consigo um grupo de velhos con- clima se transformou em hostilidade contra
servadores e deixando à frente das questões Deng, que resolveu usar a força para disper-
dois homens mais jovens – o sucessor de Hu, sar os manifestantes. Os primeiros deslo-
Zhao Ziyang, e um novo primeiro-ministro, camentos de tropas foram bloqueados por
Li Peng. A aposentadoria de Deng foi mais civis desarmados, o espírito dos soldados
aparente do que real, e nem tão aparente. parecia incerto e até mesmo simpático aos
Em 1989, Hu morreu. Seu funeral foi manifestantes, e duas operações foram sus-
transformado em ocasião de manifesta- pensas, mas o drama que prendeu a atenção
ções massivas nas quais os estudantes das de grande parte do mundo, desde o final de
universidades de Pequim tiveram um des- abril até os primeiros dias de junho, chegou
taque especial, expressando seus protestos ao seu final com um massacre. Somente em
contra o ritmo lento das mudanças, do Pequim, milhares foram mortos. Governos
fracasso econômico e da persistente cor- de todo o mundo expressaram seu ultraje
rupção. A eles se juntaram intelectuais abertamente, mas por pouco tempo.
descontentes e trabalhadores, e de uma Para Deng, o massacre de Tiananmen foi
hora para outra, eles estavam tendo um uma necessidade deplorável que abalou sua
grande impacto não apenas na capital, mas posição doméstica e prejudicou suas políticas
também em cerca de 80 cidades em toda a externas. Uma década antes, ele havia visita-
China, e representavam uma ameaça, não do Tóquio e Washington e, alguns anos mais
necessariamente ao Partido Comunista, tarde, recebeu Thatcher em Pequim e enviou
mas à sua velha classe dirigente. seu ministro de relações exteriores a Mos-
Ao octogenário Deng, contudo, e a cou. Um acordo comercial de oito anos com
outros de sua geração, essas duas ameaças o Japão, concluído em 1978, foi seguido por
eram indistinguíveis e correspondiam a um tratado de paz. Com os Estados Unidos,
uma ameaça à própria China. Deng igualava foram estabelecidas relações diplomáticas
o partido à revolução que ele tinha feito, e integrais em 1978: Washington concordava
essa, à China. Qualquer pessoa que se opu- em redirecionar o reconhecimento formal
sesse ao partido seria um traidor de seu país. de Taiwan a Pequim e retirar suas tropas
Nesse momento crítico, Zhao, que compar- da primeira, enquanto a China afrouxava a
tilhava da visão de Hu de que as reformas exigência de cancelamento completo de re-
econômicas demandavam também refor- lações formais de Washington com Taiwan.
mas políticas, estava fora, na Coreia. Em sua Reagan enfureceu a China pouco depois de
volta a Pequim, ele assumiu uma linha con- sua eleição ao tentar minar a nova harmonia
ciliatória, até mesmo simpática e arrepen- sino-americana com uma retomada das ven-
dida, mas, nos bastidores, esses adversários das de armas a Taiwan, mas foi rapidamente
mais conservadores persuadiram o mutável forçado a abandonar essa postura impossível.
Deng a tomar seu lado. Os estudantes eram Bush aplicou a política Nixon-Reagan de fa-
atacados e caluniados em publicações ofi- zer amigos e contratos com a China, igno-
ciais. Com um otimismo exagerado, recusa- rando a brutal repressão chinesa dos levantes
vam-se a ser intimidados. O confronto re- no Tibete, em 1987 e 1989, e uma rejeição
sultante foi congelado por algum tempo em pessoal quando o governo chinês impediu
função da chegada iminente de Gorbachev a que o eloquente crítico Fang Lizhi aceitasse o
Pequim. Na Praça da Paz Celestial (Tianan- convite para se reunir com Bush na embaixa-
men), que estava permanentemente ocupa- da norte-americana em Pequim. Ao mesmo
POLÍTICA MUNDIAL | 149

tempo, Deng melhorou cautelosamente as 1980, Reagan decidiu retomar a política das
relações com a URSS, enquanto, nos anos de duas Chinas, que se fundamentava em uma
1970, divulgou seu descontentamento com Taiwan independente.
Moscou ao enviar Hua em visitas à Romênia Jiang Jingkuo pôs fim à lei marcial em
e à Iugoslávia e defender publicamente uma 1987 e foi sucedido por Li Denghui, nasci-
aliança sino-nipo-americana contra a URSS. do em Taiwan e que, enquanto insistia na
Ele respondeu amigavelmente às primeiras independência e na soberania do país, pro-
indicações de Gorbachev, em 1986, de que a moveu vínculos econômicos com a China,
URSS estava disposta a fazer concessões em incentivou o investimento econômico no
disputas de fronteira, retirar tropas da Mon- continente e permitiu eleições pela primeira
gólia e do Afeganistão e encerrar o apoio à vez desde 1948. Em 1996, Pequim interrom-
ocupação do Camboja pelo Vietnã. O mi- peu esse estado de coisas comparativamente
nistro do exterior chinês visitou Moscou – a equilibrado ao disparar quatro foguetes nu-
primeira visita desse tipo em mais de 30 anos cleares nas águas próximas a Taiwan, prova-
– e Gorbachev foi convidado a ir a Pequim. velmente uma demonstração contra as repe-
Antes de ir em 1989, todavia, ele anunciou tidas referências de Li em relação à China e
a retirada de 500 mil soldados das frontei- a Taiwan como sendo dois “Estados iguais”
ras da China e uma redução em dois terços e por sua iminente reeleição pelo voto po-
dos 50 mil soldados da URSS na Mongólia. O pular. Os Estados Unidos, receando uma
primeiro-ministro Li Peng visitou seis países invasão de Taiwan a partir do continente,
do sul da Ásia em 1990. As visitas, em 1992, enviaram uma frota de navios de guerra e se
do imperador Akihito e de Boris Yeltsin re- restaurou o desequilíbrio normal.
colocaram a China definitivamente no mapa Mais ao sul, no estuário do Rio das Pé-
mundial no ano em que ela teve de ser cuida- rolas, estavam os dois enclaves estrangei-
dosamente cortejada em função da Iugoslá- ros de Macau e Hong Kong. A primeira era
via e outras questões internacionais, por ter composta por uma península e duas ilhas
veto no Conselho de Segurança. Deng apre- no lado ocidental do estuário, com pouco
sentava o mundo exterior como um campo mais de 10 km2 de extensão, ocupada pela
de operações em vez de um emaranhado de primeira vez por mercadores portugueses
forças hostis. no século XV. Foi considerada como pro-
Nesse mundo, a China, como a Índia víncia de Portugal a partir da conclusão de
meio século antes, tinha um programa ir- um tratado com a China em 1887. Mais de
redentista. Seu item mais importante era 90% de sua população de meio milhão eram
Taiwan, que estava sob comando da dinas- de chineses. Rebeliões, em 1966, demons-
tia Jiang (Jiang Kaishek, seguido de seu fi- traram a precariedade do domínio exercido
lho Jiang Jingkuo) e protegida pela marinha por Portugal e resultaram na humilhação
norte-americana. Quando Nixon deu início do governador português e em um poder
à détente sino-americana no início dos anos compartilhado de fato entre China e Portu-
de 1970, parecia possível que o segundo des- gal. Em 1993, a China promulgou uma Lei
ses fatores pudesse ser pelo menos relaxado, Básica para Macau, que entrou em vigor na
e Pequim concebeu a noção de “um país, posse da Região Administrativa Especial de
dois sistemas” para aproveitar essa oportu- Macau na China, em 1999.
nidade. Mas os destinos econômicos favorá- O destino de Hong Kong foi definido em
veis de Taiwan estavam tornando o país livre muito por duas características especiais: um
da tutela dos Estados Unidos e, nos anos de prazo ditado pelo fato de que grande parte
150 | PETER CALVOCORESSI

do território era comandada pela Grã-Bre- turo da colônia tinha de ser, de alguma for-
tanha em função de um arrendamento que ma, conciliada com a necessidade de melho-
acabaria em 1997, e a grande prosperidade rar relações com uma China que ressurgia.
pós-guerra que a tornou uma das maravilhas Em meados dos anos de 1970, a derrota da
da economia mundial e fez sua população Gangue dos Quatro e a restauração de Deng
inchar 10 vezes. Hong Kong foi adquirida tornaram possível e desejável a reaproxima-
pela Grã-Bretanha em três partes: a ilha, em ção com a China; e, no final daquela década,
1841, complementada por Kowloon do ou- o governador de Hong Kong foi a Pequim
tro lado das águas, em 1860, e pelos Novos para dar início a conversações. Deng, embo-
Territórios (que perfaziam 89% da colônia) ra não abrisse mão da soberania chinesa, fez
arrendados em 1898 por 99 anos. Quando ressurgir a visão dos dois sistemas em um
a Segunda Guerra Mundial terminou, a po- Estado, mas a subida de Thatcher ao poder
pulação da colônia era de cerca de meio mi- amargou as relações. Deng e Thatcher eram
lhão. Uma tentativa de ocupação por parte igualmente obstinados, mas aquele era mais
do Kuomintang foi frustrada, os comunistas realista, mais bem informado (pelo menos
vitoriosos misteriosamente se abstiveram de no início) e tinha praticamente todas as car-
uma tentativa semelhante alguns anos mais tas na mão. Thatcher, profundamente avessa
tarde, e os britânicos retornaram a um exem- a qualquer renúncia à soberania britânica e
plo cada vez mais próspero de comércio e tendo triunfado há pouco nas Malvinas, co-
finanças capitalistas com um prazo estabele- gitava a ideia de um governo compartilhado
cido pelo final do arrendamento dos Novos e, ainda mais fora da realidade, uma renún-
Territórios. Nenhum regime chinês aceitava cia de soberania tão limitada que chegava a
a validade de qualquer das transações do sé- ser uma não renúncia. As propostas de con-
culo XIX. Para a China, toda a colônia era e tinuidade da administração britânica depois
sempre foi território chinês soberano. Para a de 1997, com base na ideia de que só assim
realização prática dessa situação, Mao e seus se poderiam garantir a estabilidade e a pros-
sucessores estavam dispostos a assumir uma peridade de Hong Kong, irritaram Deng.
visão de longo prazo, que seria reduzida au- Depois de uma reunião áspera entre os dois
tomaticamente com a passagem dos anos. líderes em Pequim, em 1982, ele declarou
Hong Kong não era útil como base para um que, se não houvesse acordo dentro de dois
ataque à China pelo Kuomintang em Taiwan anos, a China apresentaria seus próprios
ou pelos Estados Unidos. As rebeliões de planos unilaterais para o futuro da região.
Macau se repetiram um ano mais tarde em No impasse que se seguiu, a confiança e os
Hong Kong, sincronizadas com ataques ver- preços das ações em Hong Kong desabaram,
bais e físicos aos britânicos em Pequim. Essa o dólar local perdeu um terço de seu valor
agressividade alarmou a comunidade em- de troca em um ano e o pânico aparecia no
presarial em Hong Kong e a elite democrá- horizonte. O único resultado concreto da vi-
tica da colônia, mas o governador e a polícia sita de Thatcher foi o prazo de dois anos de
tiveram uma atitude mais resoluta do que os Deng. Antes que ele terminasse, o ministro
de Macau, e o status quo não foi substancial- do exterior britânico anunciou, em Hong
mente abalado. Kong e Pequim, o abandono da proposta
No entanto, a violência na colônia e na britânica de continuação de sua administra-
capital chinesa serviu de aviso aos britânicos ção, e esse recuo abriu caminho para a re-
da aproximação de 1997, com a complicação tomada de conversações que produziram a
a mais de que a necessidade de resolver o fu- Declaração Conjunta de 1984.
POLÍTICA MUNDIAL | 151

Essa declaração era um compêndio mais amigável possível (Londres tinha pelo
que incluía uma declaração de princípios menos um olho nas relações anglo-chinesas
por parte da China e um acordo de que no futuro indefinido) e acalmar os medos de
apresentaria e promulgaria uma Lei Básica Hong Kong. Ele também resolveu introdu-
para Hong Kong a entrar em vigor em 1997, zir o máximo de democracia possível den-
quando a administração unicamente britâ- tro das graves limitações estabelecidas pela
nica seria substituída por uma administra- Declaração Conjunta. Os medos de Hong
ção unicamente chinesa. A declaração deu Kong já se manifestavam com a emigração,
origem a um Grupo de Contato com papel que dobrou ou triplicou em torno de 1990,
vagamente supervisor em um período de estimulado pelas perspectivas de governo
transição antes e depois de 1997 – uma pro- comunista e pela mesquinhez britânica em
posta originalmente chinesa, mas modifica- admitir fugitivos da colônia na Grã-Breta-
da na negociação para restringir a autorida- nha. Até 1962, todos os oriundos da colô-
de do grupo, postergar sua posse e ampliar nia tinham direito à cidadania britânica e à
sua existência até o ano 2000. Em 1985, a entrada na Grã-Bretanha, mas esses direitos
China estabeleceu devidamente um comitê foram cancelados e o país estava propondo
de 82 pessoas, incluindo 23 de Hong Kong, restringir a entrada a 50 mil indivíduos e
para elaborar uma Lei Básica. Publicada em seus dependentes. Esses poucos escolhidos
1988 e aprovada pelo Congresso do Povo estavam sendo selecionados a partir de um
em Pequim, em 1990, prometia a Hong complicado sistema de pontos que não con-
Kong um status especial por 50 anos, uma seguia esconder o fato de que a Grã-Breta-
participação eleita no conselho legislativo nha estava cumprindo suas obrigações, não
de um terço a partir de 1997 e de até metade para com o povo de Hong Kong, mas para
em 2003, e demandava que a Grã-Bretanha uma elite de empresários bem-sucedidos e
não passasse desses limites antes da transfe- servidores coloniais.
rência de soberania. A publicação dessa san- Patten contrapôs ao plano constitucio-
são relutante, que decepcionava as ilusões nal da China suas próprias propostas a se-
mais realistas estimuladas pela Declaração rem aplicadas nas iminentes eleições locais
Conjunta, causou desânimo em Hong Kong, e na eleição de um novo conselho legislativo
onde o medo do futuro foi exacerbado pelo em 1995. Ele reduziu a idade para votar de
massacre da Praça da Paz Celestial. 21 para 18 (a idade de voto na China), crian-
Pouco depois, um novo governador bri- do um eleitorado de 3 a 4 milhões; intro-
tânico, Christopher Patten, ministro conser- duziu distritos eleitorais que elegeriam um
vador que tinha perdido seu lugar no par- representante por votação única; tornou os
lamento nas eleições gerais de 1991, chegou dois conselhos para Hong Kong/Kowloon,
para presidir os últimos anos da colônia. os Novos Territórios e os 19 conselhos dis-
As mãos de Patten estavam atadas pelos tritais integralmente eletivos, em vez de dois
eventos de 1982-1984, que haviam piorado terços; reformou o conselho legislativo de 60
a disposição de Deng, introduzido o pra- cadeiras ao tornar 20 membros diretamente
zo de dois anos e garantido para a China o eletivos em vez de 18, 10 por representantes
direito de legislar sobre o futuro de Hong locais que foram eleitos por seus conselhos e
Kong apenas com a vaga limitação de um os outros 10 por eleitorados funcionais com
conjunto de princípios estabelecidos pela direito de voto ampliado. O limite de 20
própria China. Dentro dessas limitações, a membros da legislatura eleitos diretamente
tarefa de Patten era garantir a transferência estava em conformidade com a disposição
152 | PETER CALVOCORESSI

da Declaração Conjunta sobre mudança das pela longevidade de Deng Xiaoping. Ele
constitucional. renunciou a seu último cargo formal – pre-
Para Hong Kong, essas mudanças ti- sidente da Comissão Militar Central – em
nham a vantagem de ampliar, ainda que tar- 1991, quando tinha, provavelmente, 87 anos,
diamente, sua incipiente democracia, mas mas continuou sendo uma presença domi-
a desvantagem de ofender aqueles que em nante. Sua política de estabelecer relações
pouco tempo seriam seus mestres chineses, internas foi muito ajudada pelas evidências
cuja resposta foi de hostilidade clamorosa e do progresso econômico da China. As taxas
acusações de que o governador estava rom- de crescimento, que tinham ficado entre 4 e
pendo a Declaração Conjunta e os compro- 6% no final dos anos de 1980, chegaram a
missos britânicos assumidos nela. (Em sua 13% no início dos anos de 1990, principal-
partida de Hong Kong em 1997, Patten disse mente devido a projetos privados em áreas
que não ficou sabendo desses compromis- litorâneas. A desvalorização da moeda em
sos quando assumiu o cargo em 1991, nem 1990 foi recompensada por imensos supe-
depois.) As reformas de Patten, aprovadas rávits no comércio exterior. Mesmo assim,
por estreita margem pelo seu conselho le- o impulso de Deng por crescimento tinha
gislativo, eram uma aposta de que a China seus interrogações. O que poderia aconte-
engoliria um pouco de democracia em um cer quando ele morresse era especulação; a
canto de seu território, cujos enormes ga- política de liberalizar a economia enquanto
nhos materiais compensariam pormeno- mantinha o governo autoritário do partido
res ideológicos e constitucionais. Mas as poderia se tornar uma contradição insusten-
eleições de 1995 foram ignoradas por dois tável. Sua fé nas forças de mercado ignorava
terços do eleitorado, e a China reiterou sua as mudanças que as comunicações moder-
intenção de dissolver a nova legislatura em nas trouxeram aos mercados, tornando-os
1997. A aposta de Patten foi uma corajo- tão atrativos a especuladores predadores
sa irrelevância; seu objetivo de dar a Hong quanto a negociantes honestos e legítimos.
Kong o início da democracia foi elogiável, A China pós-maoista e pós-comunista era
mas não viável naquele momento, mesmo um Estado autoritário que continha uma
que ele não tivesse sido enganado por seus economia neocapitalista pulsante e crescen-
colegas em Londres. Em 1o de julho de 1997, te, bem como uma imensa população rural
Hong Kong passou ao governo chinês como de agricultores familiares – sobreviventes
uma Região Administrativa Especial sob a de antes das revoluções de Mao e das outras
Lei Básica de 1990. que caíram sobre eles. Não ficava claro se
O evento foi marcado, do lado britâni- essa complexidade estranha, talvez única,
co, por uma mistura de pompa pós-imperial era um bom terreno para o sucesso ou não.
e retórica democrática; do lado chinês, por A perspectiva imediata não era boa. Em
concessões consideradas necessárias para 1993, as tensões se transformaram em rebe-
manter o ímpeto econômico de Hong Kong, liões sérias depois de aumentos de impos-
sem importar a democracia. A China rece- tos, estabelecimento de preços de livre mer-
beu uma Hong Kong capitalista, mas não cado, inflação persistente entre 25 e 30% e
democrática. Esse foi um evento único: uma conflito entre o centro e as províncias, cida-
colônia imperial ocidental não libertada e des e zonas rurais. Uma migração massiva
entregue a um país comunista. para as cidades estava incentivando o crime,
Essas e todas as outras consequências a evasão fiscal e a corrupção (esta permean-
foram obscurecidas pelas incertezas causa- do as elites civis e militares). O entusiasmo
POLÍTICA MUNDIAL | 153

estava mesclado com medo e descontenta- como a China poderia ser desculpado por
mento. Se o comunismo seria sucedido por imaginar que outras partes do mundo não
um capitalismo chinês, ou uma anarquia importavam muito. Deng não cometeu esse
chinesa, era algo que não se sabia. Mesmo erro. Seja porque tinha um sentido mais
assim, a China se aproximava do final do sé- agudo das revoluções técnicas do século
culo como uma das maiores economias do XX ou porque foi sensibilizado pelo maior
mundo medida em poder de compra, como sucesso dos chineses fora da China (em
o país com a mais antiga tradição imperial e Taiwan, Hong Kong, Cingapura), ele resol-
como potência nuclear. A economia da Chi- veu voltar a China para fora e ir em busca
na não apenas estava crescendo, como tam- dos grandes ganhos potenciais a partir da
bém estava sendo transformada. Em mea- livre iniciativa. Embora tenha estado no
dos dos anos de 1990, três quartos de suas poder somente em uma idade avançada, ele
exportações eram bens manufaturados: uma viveu o suficiente e trabalhou sem pressa
evolução que causava algum desconforto a para estabelecer um rumo que tinha poucas
seus vizinhos japoneses e coreanos. Tinha probabilidades de ser revertido consciente-
um superávit de comércio com os Estados mente na geração seguinte. O 5o Congresso
Unidos que só perdia para o do Japão, e o do Partido Comunista Chinês confirmou o
valor de seus contratos de construção civil triunvirato de Jiang Zemin como presiden-
com corporações norte-americanas passava te, Li Peng como primeiro-ministro e Zhou
de 100 bilhões de dólares por ano. Rongji como primeiro vice-primeiro-minis-
Levando em conta essas realidades pre- tro. Li chegou ao fim de seu mandato não
sentes e possibilidades futuras, o presidente renovável em 1998 e foi sucedido por Zhou,
Bush vetava regularmente o desejo do con- um engenheiro da reforma econômica e bu-
gresso de negar à China (como consequên- rocrática dentro dos limites do controle par-
cia das mortes da Praça da Paz Celestial, de tidário absoluto – reforma econômica por
relatos de torturas persistentes e de campos meio da privatização no atacado reforma
de trabalho desumanos) o tratamento de burocrática demitindo burocratas. O país ti-
nação mais favorecida. nha reservas substanciais, equilíbrio externo
O presidente Clinton era menos caute- saudável e algum investimento estrangeiro,
loso, mas, em termos de defender os direi- e afirmava estar crescendo 8% (partindo de
tos humanos, não mais eficaz. Ao invocar os vertiginosos 15%). Apesar da migração para
direitos humanos, ele não apenas irritava os as cidades, 70% de sua população era rural e
líderes chineses, como lhes dava oportuni- dependente de uma economia agrícola que
dades para demonstrar antiamericanismo incluía 100 mil fazendas estatais, das quais
patriótico ao manobrar por poder ou sobre- metade era deficitária. Grande parte da in-
vivência na era pós-Deng. Suas ameaças de dústria era subsidiada de forma profunda e
impor supertarifas às exportações chinesas insustentável, era corrupta e tinha poucas
em retaliação à não observância dos direitos verbas. O novo regime começou a reduzir
autorais norte-americanos e outras proprie- subsídios às empresas estatais, o socorro a
dades intelectuais não foram mais eficazes bancos insolventes e a influência de chefes
contra a China do que contra o Japão, ou militares na indústria (e, assim, sua influên-
seja, tiveram um efeito marginal e provavel- cia nas políticas econômicas e estrangeiras).
mente temporário. Mas suas medidas estavam restritas, já que
Em 1997, Deng morreu. Qualquer pes- uma retirada ampla de subsídios e demis-
soa que morasse em um país tão grande sões em grande escala estaria fadada a gerar
154 | PETER CALVOCORESSI

desemprego em massa, mais corrupção e até econômicos positivos, apenas um – supe-


revolta. A China era impressionante em vá- rávits crescentes e balanço de pagamento –
rios aspectos – o tamanho, a população de era concreto. A economia da China era do-
1,2 bilhão, a homogeneidade étnica e a es- minada por uma rede de bancos e empresas
cala e variedade de seus recursos esperando estatais (isto é, instituições que faziam fi-
o capital, a energia e a educação avançada nanciamento e despesa) insolventes e im-
necessários para sua exploração. No final pedidas por controles políticos de declarar
dos anos de 1990, o país modificou sua as- e solucionar sua insolvência. Cinquenta
pereza em relação a Taiwan, concluiu acor- anos de governo comunista transforma-
dos de fronteira com a Rússia e três países ram o lugar ocupado pela China no mundo
da Ásia Central e assinou o Tratado de Proi- e os destinos e as esperanças de muitos no
bição Ampla de Testes e a Convenção sobre próprio país, embora a um custo terrível de
Armas Químicas (essa dispunha sobre ins- vidas humanas. A determinação da hierar-
peções em solo chinês); mas não conseguiu, quia comunista de permanecer no controle
diante da oposição dos Estados Unidos, ser do futuro se baseava, portanto, em duas ex-
admitida na OMC. Esse fracasso foi um alí- periências contraditórias, mas igualmente
vio para o setor rural chinês, que temia re- revolucionárias: miséria e expectativas.
duções de tarifas de importação sobre pro- Os sucessores de Deng permaneceram
dutos norte-americanos e, em termos mais vinculados a um sistema político autoritá-
gerais, sintonizava com uma fase antiameri- rio e centrípeto, aplicando políticas caute-
cana gerada por protestos norte-americanos losamente liberais e, em maior grau do que
contra a bem-sucedida espionagem chinesa o próprio Deng, cautelosamente ampliando
nos Estados Unidos e pelo bombardeio da políticas externas – essas através do assento
embaixada da China em Belgrado durante a permanente do país no Conselho de Segu-
Guerra do Kosovo. rança da ONU e da exploração de oportuni-
Mais sintomático, ainda que menos ób- dades proporcionadas por um fornecimento
vio, era o crescente valor para a China do aparentemente ilimitado (mas não necessa-
comércio com os Estados Unidos, que esta- riamente permanente) de dinheiro disponí-
va respondendo por quase 40% das exporta- vel para comprar amigos estrangeiros e as
ções chinesas no final do século. matérias-primas necessárias para sustentar
A China vivenciou períodos de grande uma economia doméstica que crescia a uma
poder, alternados com épocas de decadên- taxa de 10% ao ano. A força financeira da
cia e subjugação. O poder tinha sido exer- China era contrabalançada por uma ca-
cido em uma área ampla, mas delimitada, rência de matérias-primas necessárias para
não no modo universal conhecido na histó- crescer nesse ritmo. O presidente Hu Jintao
ria da Europa, do Islã e dos Estados Unidos. reviveu a tentativa de Zhou Enlai e lançou
A recuperação do poder na parte final do iniciativas de conquistar amigos na Áfri-
século XX e a perspectiva para o século XXI ca com empréstimos generosos a governos
de um Estado chinês coerente dominando africanos e uma série de empreendimentos
um sistema mundial de Estados era o item de engenharia, extrativos e outros. Ele pró-
de destaque em qualquer catálogo de dife- prio visitou vários países do continente em
renças entre os anos de 1900 e 2000. Con- 2002 e 2007; e, em 2006, promoveu uma
tudo, era uma perspectiva que devia muito grande cúpula em Pequim à qual compare-
à mítica impenetrabilidade das questões ceu uma grande maioria de Chefes de Esta-
chinesas. Entre um número de indicadores do africanos. Essa incursão foi ajudada pela
POLÍTICA MUNDIAL | 155

atenção um pouco desanimada e esporádica Kuomintang, que, legalmente, era seu suse-
dos Estados Unidos à África e pela descon- rano. Em 1944, os russos ajudaram a fomen-
fiança gerada em todo o mundo pela inter- tar e sustentar uma revolta no distrito Ili
venção desastrada do presidente Bush no de Xinjiang, em que fora proclamada uma
Iraque e em outros lugares do Oriente Mé- República Autônoma do Turquistão Orien-
dio, mas arriscava sair pela culatra em fun- tal, mas pelo tratado Stalin-Jiang de 1945,
ção dos salários miseravelmente baixos pa- Moscou reconhecia a soberania chinesa em
gos pelas empresas chinesas a trabalhadores Xinjiang e prometia não interferir na região
africanos e de sua falta de atenção a medidas – uma promessa que não parece ter sido
de segurança básicas bem como às susceti- cumprida adequadamente. Durante a última
bilidades africanas. Em termos gerais, o 17º fase do Kuomintang, os russos tentaram am-
Congresso do Partido Comunista, do qual pliar seu monopólio da aviação civil anterior
participaram 2 mil membros, não foi pro- à guerra em Xinjiang e recriar uma parceria
jetado para anunciar novos rumos, olhando sino-russa em oportunidades econômicas.
para 2012 mais em termos de personalida- Na época do colapso do Kuomintang, o pri-
des do que de políticas, e essas personalida- meiro objetivo foi atingido no papel, e, de-
des eram todas pessoas que já tinham cargos pois que o governador de Xinjiang recorreu
estabelecidos no partido. a Mao, os russos abriram negociações com
o novo regime. Em março de 1950, foram
assinados acordos para a criação de empre-
Xinjiang e Tibete sas conjuntas (meio a meio) para explorar
petróleo e metais não ferrosos por 30 anos
Apesar de seu tamanho, a China afirmava e para operar a aviação civil por 10. Mao
ser comparativamente livre de problemas não estava em posição de manter o controle
étnicos, mas tinha dois: Xinjiang e Tibete. chinês completo da província, ainda que ela
Xinjiang, conquistada pela dinastia fosse indubitavelmente chinesa, mas traba-
Manchu na metade do século XVIII, tinha lhou pela melhoria de suas comunicações
fronteiras, no século XX, com a Caxemira, com o resto da China por ferrovias e rodo-
o Afeganistão, três repúblicas soviéticas (o vias, incluindo a rodovia Tibete-Xinjiang
Quirguistão, o Cazaquistão e o Turcome- (desconsiderando os Panch Shila* acorda-
nistão) e a Mongólia Exterior. No passado, dos entre ele e Nehru em 1954). Além de
tinha sido uma dessas províncias onde um um levante de grandes proporções em 1962,
governador exerce poder incomum em fun- Xinjiang não representava mais do que um
ção de sua distância do centro imperial. Ele persistente incômodo, embora os uigures na
era um procônsul semi-independente que às província fossem muito mais numerosos do
vezes buscava ajuda no império russo, em que os chineses com o total de 20 milhões
vez do chinês, para resolver problemas dos de habitantes e tivessem membros de sua et-
quais não poderia dar conta (como duran- nia autoexilados no Cazaquistão, um Estado
te as revoltas muçulmanas de 1930-1934 e independente depois do colapso da URSS.
1937). Com a China em desordem, ele pou- Mesmo assim, embora de forma menos pú-
co poderia esperar do Oriente e teve que se
voltar ao Ocidente; mas, quando os russos
se ocuparam integralmente com a invasão * N. de R.: Os Cinco Princípios da Coexistência Pacífica ou
Panch Shila são acordos entre a República Popular da China
alemã na Segunda Guerra Mundial, ele deu e a Ásia Meridional que definem condutas às relações inter-
meia-volta e se tornou amigo e aliado do nacionais.
156 | PETER CALVOCORESSI

blica do que o Tibete, Xinjiang representava O século XIX também testemunhou a


uma escolha entre exterminar e acomodar aproximação dos britânicos e dos russos, e,
diferenças linguísticas, religiosas e étnicas. em 1903, Sir Francis Younghusband bateu
A tentativa de exterminar parecia tão tola na porta sul do Tibete, avançou para Lhasa
quanto irresponsável, mas não era certo que e assim deu um sinal da falta de disposição
Pequim pensasse assim. dos britânicos de deixar a China livre para
Para a China, o Tibete era uma parte agir no Tibete. Esse foi o período de desin-
integral dela e os tibetanos, uma das “cinco tegração da China, mas qualquer ideia bri-
raças da China”. Esses, contudo, conscientes tânica de assumir seu lugar no Tibete foi
de sua cultura, sua religião e sua língua to- abandonada em pouco tempo. O 13º Dalai
talmente diferentes, assumiam outra visão, Lama fugiu em 1903 para a Mongólia e daí à
em parte com base em que a independência China, onde sua recepção foi decepcionan-
de fato, desde 1911, tinha amadurecido para te. Ele voltou a Lhasa em 1909, mas fugiu
independência integral e, em parte, inter- de novo em 1910, dessa vez com medo dos
pretando declarações vagas e ancestrais de chineses e em direção à Índia. O colapso do
respeito chinês como concessões formais de império chinês, em 1911, parecia abrir ca-
independência e não meras cortesias, como minho para a independência real, mas na
os chineses afirmavam ser. conferência de Simla de 1913-1914 entre
O mongol Khan Kublai, neto de Jen- chineses, tibetanos e britânicos, estes pro-
ghiz, que se tornou imperador da China puseram um reconhecimento da suserania
no século XIII e se converteu ao budismo, chinesa em troca de uma promessa chinesa
concedeu favores e direitos a um lama que de autonomia tibetana, que incluiria o direi-
estabeleceu um governo dinástico de al- to de conduzir de forma independente sua
cance incerto no Tibete. Cem anos depois, política externa. Essa proposta, repetida em
surgiu uma linha cismática dos chamados 1921, nunca foi adotada como obrigatória.
budistas de Chapéu Amarelo que, depois A conferência de Simla também propunha
de mais de 200 anos, suplantou a linha es- uma fronteira entre a Índia, ao sul, o Tibete
tabelecida por Kublai como governantes e a China ao norte e nordeste (a chamada
efetivos do Tibete. O chefe dessa linha era linha McMahon) em um documento que
o Dalai Lama (ele afirmava ter ascendência foi iniciado pelos chineses, mas nunca rati-
espiritual de um Buda contemporâneo do ficado, não porque a China questionasse a
século XV a.C.), e, no século VII, recebeu linha, mas porque sua aceitação estava vin-
do primeiro imperador manchu na China culada a uma divisão do Tibete em zonas
sinais de consideração que poderiam equi- interiores e exteriores e à exclusão dos chi-
valer, ou não, a algo próximo da soberania. neses das primeiras.
No século seguinte, os chineses entraram Com a morte do Dalai Lama em 1933,
no Tibete para proteger o país contra os os chineses aproveitaram a oportunidade
mongóis e se recusaram a sair. Eles também para retornar a Lhasa. Uma missão levan-
o defenderam contra uma invasão gurkha do condolências chegou e permaneceu até
posterior e consolidaram sua posição no sé- 1949, quando foi expulsa como resultado do
culo XIX, ajudados pela tendência (às vezes colapso geral do Kuomintang. Antes desse
descrita como misteriosa) dos Dalai Lama êxodo, a China apoiou a revolta do regen-
meninos a morrer pouco antes de chegar à te do Tibete contra o 14o Dalai Lama, que
idade de assumir poderes integrais. ainda era uma criança sob sua tutela. O
POLÍTICA MUNDIAL | 157

Kuomintang favoreceu e reconheceu, assim caram propostas para discussão sobre o


como Panchen Lama, um menino que ha- futuro do Tibete, com base em que nada,
via sido descoberto na China em 1944 e que com exceção de independência completa,
ainda estava lá: o Panchen Lama, outro hie- poderia ser descartado de antemão.
rarca de Chapéu Amarelo com superiorida- Entretanto, nos anos que se seguiram, a
de pelo menos temporal sobre o Dalai Lama China foi menos enfática na busca de pro-
no Tibete Oriental, era um rival espiritual e postas do que no envio de colonos chineses
temporal do Dalai Lama. (O Panchen Lama ao Tibete em número suficiente para supe-
anterior tinha fugido para a China em 1923 rar os 6 milhões de tibetanos. Essa anexa-
e lá morreu em 1937.) ção por demografia foi complementada pela
A última jogada do Kuomintang se re- destruição das instituições e da cultura tibe-
velou útil aos comunistas, que assumiram o tanas, particularmente milhares de mostei-
controle do novo Panchen Lama e o coloca- ros e conventos cujos internos foram força-
ram à frente de um governo tibetano provi- dos a se dispersar e voltar às suas vilas ou a
sório no exílio. Ele morava em Pequim com escapar para a Índia.
uma esposa chinesa, mas, em 1962, desapa- A sujeição forçada do Tibete pela China
receu após se recusar a atacar o Dalai Lama. se baseou na força e em interpretações plau-
Ele reapareceu em 1979, parecendo ter sido síveis, ainda que discutíveis, de realidades
gravemente maltratado nesse meio-tempo, e históricas. Ela rejeitava ou menosprezava a
morreu em 1989, curiosamente jovem. Em- resistência tibetana e a condenação mun-
bora inferior em hierarquia ao Dalai Lama, dial de sua aspereza. O problema da China
o Panchen Lama tinha a função extrema- no Tibete tinha alguns ecos do problema
mente importante de autenticar um novo de Putin no Cáucaso, mas o Tibete era mais
Dalai Lama. Em 1995, o Dalai Lama e os inacessível ao mundo como um todo, e a
chineses tinham descoberto a nova encarna- China, menos vulnerável do que a Rússia ao
ção em dois meninos diferentes. O primeiro desagrado internacional. Em 2008, cerca de
desapareceu quase de imediato. 100 mil tibetanos já tinham fugido para a
Durante o ano de 1950, houve tenta- Índia e criado, em Dharmasala, uma comu-
tivas de autoridades em Lhasa de nego- nidade autogovernada que apoiava a autori-
ciar com Pequim em Hong Kong, Calcutá, dade do Dalai Lama, que em várias ocasiões
Delhi ou onde quer que se pudesse fazer reconheceu a suserania reivindicada por Pe-
contato, mas, naquele mesmo ano, a China quim sobre o Tibete.
invadiu e em pouco tempo garantiu o con- Deng e seus sucessores também desen-
trole da capital e de grande parte do país. volveram políticas mais positivas, gastando
O Tibete apelou sem sucesso à ONU, e o muito dinheiro em melhores comunicações
Dalai Lama fugiu em 1959 para a Índia. As para eliminar a famosa inacessibilidade do
autoridades que permaneceram em Lhasa Tibete e torná-lo um destino procurado por
aceitaram a suserania chinesa em retor- turistas.
no por uma promessa de alguma autono- A China é o país mais impressionante
mia como Região Autônoma da China, do mundo. Esse fato não era óbvio em 1945,
mas a fome causada por Mao à China em mas, 50 anos depois, isso se mostrava algo
1961-1962 matou 25-30% da população problemático e inevitável. Seu tamanho e
das várias províncias do Tibete. Depois da sua população enormes não ficavam atrás
morte de Mao, Deng e o Dalai Lama tro- de qualquer outro, sua história registrada
158 | PETER CALVOCORESSI

era mais longa do que todas, sua arte e sua todo governado – e a permanecer governa-
civilização estavam entre as maravilhas da do – pelo Partido Comunista. O controle
humanidade. Ela reivindicava uma identi- do governo sobre áreas – particularmente
dade consciente derivada principalmente de o Tibete e Xinjiang – era imperfeito, princi-
uma religião secular, mas também restringi- palmente porque carecia do necessário exér-
da por minorias étnicas. cito de administradores eficientes a serviço
O país enfrentou desafios externos du- do governo central. O Tibete representava
rante sua longa história (mongóis e man- problemas (étnicos e religiosos) para além
chus tinham ido e vindo) até que, no sé- dos administrativos, e Taiwan, problemas
culo XIX, europeus e japoneses pós-Meiji ainda mais difíceis de resolver. Os primeiros
infligissem morte e humilhação, as quais a atraíam a atenção do mundo pela evidência
China também acabaria por superar, mes- de cruéis maus-tratos e mesmo de tortura,
mo que somente depois de muito tempo e e porque o mundo não conseguia ter uma
a um alto custo. Mais próximo do final do ideia clara do que a China queria ou do que
mesmo século, recebeu uma das mais apa- se poderia obter, se é que havia algo, lamen-
vorantes visitas da peste que se conhecia tando a condição do Dalai Lama ou tentan-
na história humana. Perdeu uma dinastia do proteger Taiwan, a próspera relíquia cos-
quando o imperador e sua mãe morreram teira de um ancien régime. Mesmo assim, a
com um dia de diferença. Não podia colocar nova China tinha problemas proporcionais
os europeus contra os japoneses: em 1905, a suas conquistas e oportunidades, princi-
o Japão tinha marcado decididamente sua palmente, em seu empreendimento mais
subida ao poder afundando uma frota russa, bem sucedido: o crescimento fenomenal de
mas, no mesmo período, os europeus come- sua economia em cerca de 10% ao ano. O
çaram a desviar sua atenção das questões do país poderia atingir um crescimento em ní-
Extremo Oriente por nuvens de guerra que veis mais modestos a partir de seus próprios
pairavam sobre a Europa. O país fez expe- recursos, mas crescer em níveis recordes
rimentos desastrosos com republicanismo e demandava não apenas o capital necessário,
comunismo durante a maior parte do século mas também o de risco, o qual nem uma
XX e havia escapado do imperialismo japo- economia de comando estatal nem credores
nês em 1945 não por si mesmo, e sim devido estrangeiros estão geralmente dispostos a
aos Estados Unidos. fornecer. A China, no início do século XXI,
Depois da Segunda Guerra Mundial, estava expressando sua grandeza na esfera
foi considerada como um parceiro menor econômica em vez da militar ou diplomáti-
da URSS. Mas a própria China não se con- ca, e, nesse sentido, seu regime estava se tor-
siderava assim. No final do século, conside- nando extraordinariamente dependente de
rava-se o maoismo um interlúdio desastro- progresso econômico continuado e do bom
so, mas a experiência ímpar do Japão com comportamento econômico. Por trás de to-
a exploração ocidental também era algo a das essas questões estava outra: se o gover-
ser igualmente evitado. A China combina- no autocrático do Partido Comunista seria
va uma vasta e não reformada economia mais longo ou mais curto do que havia sido
rural com um capitalismo urbano vibrante, o do Partido Comunista da União Soviética.
Coreia
4
A Guerra da Coreia, deixou as Coreias do das duas divisões dos Estados Unidos foi
Sul e do Norte hostis entre si e condenadas retirada. A lei marcial foi reintroduzida
a décadas de desgoverno. A inferiorida- em 1972, com tal desconsideração pelos
de militar do Sul foi mitigada por reforços direitos humanos que o Presidente Carter
norte-americanos – uma força da ONU anunciou a retirada também da divisão res-
comandada por um general dos Estados tante – uma decisão revertida por Reagan
Unidos permaneceu no país – e por um quando pareceu que as grandes forças ar-
desempenho econômico amplamente favo- madas da Coreia do Norte estavam ficando
rável. A ONU votava anualmente em favor ainda maiores. Em 1979, Park foi assassi-
da reunificação do país por meio de eleições nado pelo chefe de seu serviço de inteli-
livres, mas essas resoluções não tinham efei- gência. O novo presidente Choi Kyu Hwa
to. Tampouco o tinham as negociações entre tinha boas probabilidades de injetar algu-
o Norte e o Sul a partir do início da década ma medida de democracia, mas em pouco
de 1970. tempo seu poder foi retirado por um gru-
Na Coreia do Norte, o Marechal Kim po de oficiais liderado pelo general Chon
Il Sung manteve o poder ininterrupto. A Doo Hwan. Manifestações que se transfor-
oposição não ousava se expor. Na Coreia maram em revolta em Kwangju, em 1980,
do Sul, o governo inescrupuloso de Syng- foram isoladas e brutalmente reprimidas
man Rhee, fortalecido por um tratado de (2 mil pessoas podem ter sido mortas), e,
defesa com os Estados Unidos em 1953, depois de nove meses de uma fachada civil
terminou em 1960 quando ele foi obriga- para o governo militar, Choi renunciou ao
do a renunciar e fugir para o Havaí, onde cargo em favor de Chon, que foi convidado
morreu em 1965, aos 90 anos. Um golpe por Reagan a visitar Washington. Em 1983,
militar de 1961 levou ao poder o general uma bomba provalvelmente colocada pelos
Park Chung Hee, que permaneceu por norte-coreanos matou 21 pessoas em Ran-
quase 20 anos, marcados por um suces- goon, incluindo quatro ministros do gabi-
so econômico considerável e contínuos nete sul-coreano. Chon, o alvo principal,
protestos, ainda que ineficazes, contra a escapou. Essa afronta interrompeu as ne-
crueldade e a corrupção. Em 1963, Park e gociações para a unificação, mas elas foram
seus principais colegas tornaram-se civis retomadas em 1984-1985, com resultados
e ele foi eleito presidente. Ele mandou um parcos: algumas dúzias de visitas a parentes
contingente para lutar ao lado dos norte- em ambos os lados, mas nenhuma redução
-americanos no Vietnã. Em 1971, uma na fortificação das fronteiras nem nos exer-
160 | PETER CALVOCORESSI

cícios militares. A escolha de Seul para os multiplicasse por quatro sua contribuição
jogos olímpicos de 1988 induziu a Coreia aos custos das forças norte-americanas na
do Norte a solicitar alguma participação. Coreia do Sul e se recusando a mandar
O Comitê Olímpico Internacional ofe- forças do país à Guerra do Golfo em 1991.
receu cinco eventos no Norte, mas em ter- Ele desenvolveu novas conversações com
mos que a Coreia do Norte não aceitou. a Coreia do Norte, as quais acabaram sem
Na década de 1980, a Coreia do Sul resultados; aprovou a admissão de ambos
emergiu de um período de desenvolvimen- os Estados coreanos na ONU; e se dispôs a
to por trás de forte capa protecionista, para agradar alguns de seus adversários domés-
se tornar uma potência industrial flores- ticos. Eles eram três: Kim Jong Il, ex-oficial
cente em uma ordem econômica interna- que teve um papel destacado no golpe de
cionalizada e majoritariamente neoliberal. 1961, mas rompeu com Park em 1973 e res-
A reunificação da península e as melhores surgiu em 1980 como líder do Novo Parti-
relações com inimigos ideológicos ofere- do Republicano Democrático; Kim Young
ceriam mais ganhos econômicos sem, no Sam, líder do Partido da Reunificação De-
entanto, ser essenciais a eles. Quando a pre- mocrata; e Kim Dae Jung, líder do maior
sidência de Chon terminou em 1988, a su- grupo de oposição, o Partido pela Paz e
cessão poderia se dar por meio de decreto, Democracia (posteriormente chamado de
golpe ou eleição. Chon decretou a terceira Partido Democrata). Os dois primeiros
forma e sua escolha demonstrou a ampla aceitaram a fusão com o Partido da Jus-
transformação que aconteceu: de um país tiça Democrata, de Roh, concorrendo ao
voltado à guerra, passou à concorrer com papel de seu sucessor favorito, e formaram
o Japão e outros gigantes econômicos. O com ele o Partido Liberal Democrata. Kim
amigo e sucessor escolhido por Chon, o ge- Young Sam sucedeu Roh em 1992 – era o
neral Roh Tae Woo, venceu a eleição com primeiro presidente civil em 30 anos, um
37% dos votos de uma alta participação e reformista cautelosamente conservador
contra uma oposição dividida. A iminên- comprometido em desmascarar a corrup-
cia das Olimpíadas pode ter ajudado, já que ção no governo e nas empresas e um assí-
os sul-coreanos queriam evitar problemas duo visitante dos vizinhos asiáticos. O ex-
durante os jogos e estavam cautelosos com -presidente Chon e outros foram acusados
as incertezas de mudanças radicais. Antes e condenados por traição e peculato, e sen-
das eleições, houve seis meses de violência tenciados à morte ou a longas penas de pri-
extrema, preocupando os Estados Unidos, são – penas que foram comutadas.
bem como o próprio Roh, que adotou um Na década de 1990, a economia sul-co-
tom conciliador dirigido principalmente reana retomou por algum tempo seu ver-
à classe média e à pessoas de meia-idade, tiginoso crescimento de 8-9% ao ano, mas
que começavam a dar sinais de simpatia à uma crise crescente em 1995-1997 expôs
indignação agitada da juventude radical. suas fragilidades, provocou greves generali-
Depois de sua vitória, Roh estabeleceu re- zadas e colapsos nos mercados financeiros,
lações diplomáticas com a China e a Rús- só sendo contida por uma intervenção in-
sia (em uma visita a Seul em 1992, Yeltsin ternacional sem precedentes em sua magni-
pediu desculpas pela derrubada do voo tude. Mais de um milhão de trabalhadores
007 da Korean Airlines em 1983), mas pio- com altos salários se manifestaram contra
rou as relações comerciais com os Estados a revisão de seus contratos e a estabilidade
Unidos, resistindo a solicitações para que vitalícia de seus empregos.
POLÍTICA MUNDIAL | 161

Bancos quebraram e os preços das ações capital emprestado. Era um país ao qual os
despencaram; descobriu-se que a indústria mais desenvolvidos, que tinham dinheiro de
estava flutuando em empréstimos excessi- sobra, emprestavam com entusiasmo, o que
vamente grandes e sem sustentação; as re- acabou prejudicando tanto quem fornecia
servas do país caíram abaixo dos 10 bilhões quanto quem recebia os empréstimos quan-
de dólares em relação à dívida externa de, do a bolha estourou. A crise de 1997-1998
talvez, 20 vezes mais. A moeda da Coreia do foi a mais difícil de enfrentar em função
Sul, o won, rapidamente perdeu metade de do histórico da Coreia do Sul nos anos de
seu valor de troca, e os credores estrangeiros 1980 (crescimento anual de 10%) e no iní-
foram chamados para emprestar mais, com cio dos de 1990 (8%). Uma das baixas foi
vistas a salvar o que já tinham emprestado e o presidente Kim Young Sam, substituído
perdido de forma imprudente. Os níveis de por Kim Dae Jung, que sempre corria por
confiança e crédito caíram tão subitamente fora (em uma aliança incômoda com Kim
que, com mais medo do que orgulho, o go- Jong Pil). Sua melhor promessa era de que
verno foi obrigado a aceitar a intervenção as coisas poderiam ser consertadas em 10
estrangeira e empréstimos no total inicial anos, mas, em pouco mais de um, a Coreia
de 57 bilhões de dólares: as contribuições do Sul recuperou a maior parte de sua taxa
incluíram 21 bilhões do próprio FMI, 10 de crescimento anterior à quebra e o supe-
bilhões do Banco Mundial, 4 bilhões do rávit comercial externo, embora sem fazer
Banco Asiático de Desenvolvimento e 20 bi- muito para se garantir contra catástrofes se-
lhões de 13 países. Essa série muito cara de melhantes no futuro.
empréstimos de emergência, inconcebível se Na Coreia do Norte, o governo decla-
o beneficiário fosse pobre e isolado em vez rou, em 1985, que iria aderir ao Tratado de
de rico e conectado globalmente, ilustrava a Não Proliferação de Armas Nucleares, mas
dependência irônica dos norte-americanos ainda assim parecia ter a intenção de en-
e de outras economias desenvolvidas em frentar, com esse tipo de arma, o arsenal su-
relação a economias desequilibradas, mal perior que a Coreia do Sul tinha em termos
administradas ou corruptas no mundo pou- de armas não nucleares. Privada da ajuda
co definido entre os velhos e os novos ricos. soviética em função dos eventos em Mos-
Mesmo assim, não foi suficiente. Foram cou, a Coreia do Norte aceitou, em 1991,
solicitados e concedidos outros 10 milhões permitir inspeções por parte da Agência
enquanto a moeda continuava a cair e as Internacional de Energia Atômica (AIEA),
empresas se viam incapazes de manter seus mas depois se recusou a assinar o acordo,
planos corporativos e até mesmo de susten- a menos que os Estados Unidos retirassem
tar as operações que já tinham, principal- suas tropas da Coreia do Sul. Kim Il Sung
mente as estrangeiras. No setor privado, os esperava reconhecimento norte-americano
bancos nos principais países capitalistas fi- e japonês como parte do preço por abando-
zeram empréstimos de cerca de 100 bilhões nar suas possibilidades nucleares; fez um
de dólares, a maioria programada para pa- jogo de provocações com a IAEA, concor-
gamento a curto prazo. dando com algumas das demandas, recuan-
A Coreia do Sul era um país com re- do em algumas de suas promessas e final-
cursos apenas modestos em termos de pro- mente fazendo com que a agência levasse
dutos primários – nesse sentido, diferente- a questão ao Conselho de Segurança e ao
mente do Sudeste Asiático –, de modo que presidente Clinton – temerosa da capacida-
sua expansão se baseou na indústria e no de e das intenções de Kim, mas também de
162 | PETER CALVOCORESSI

provocá-lo à guerra – para ameaçar sanções Norte estava consciente de que a boa vonta-
ou até mesmo uma intervenção armada. de dos chineses estava desaparecendo, dado
Kim fez abertura à Coreia do Sul para que as relações da China com a Coreia do
uma união econômica ou uma unifica- Sul e os Estados Unidos melhoravam. Sua
ção, mas, em 1994, ele morreu de repente, economia e, talvez, seu regime, pareciam
deixando seu filho recluso como herdeiro estar desabando e se dizia que milhões de
semidesignado até que, em 1998, foi no- pessoas estavam morrendo de fome. Em
meado chefe de Estado junto de seu pai, que 1999, o país participou de conversações com
recebeu a promoção póstuma de Presiden- os Estados Unidos, nas quais concordou ta-
te Eterno. Depois da morte desse, Clinton citamente com a suspensão do desenvolvi-
garantiu, com uma combinação equilibra- mento de mísseis em troca do cancelamento
da de ameaças, seduções e concessões, um das sanções que estavam em vigor desde a
acordo no qual a Coreia do Norte aceitava: guerra de 1950-1953. No final do século, os
interromper a construção de um novo rea- norte-coreanos passavam fome e seu país
tor capaz de produzir plutônio em grau ade- não tinha amigos, mas continuavam as acu-
quado à produção de armamentos; não re- sações agressivas até que, em 2007, a Coreia
processar suas varetas combustíveis usadas; do Norte concordou subitamente com a de-
e permitir inspeções regulares por parte da molição de todas as suas instalações e ativi-
IAEA em troca do fornecimento, até o ano dades nucleares, provavelmente forçada a se
de 2003, de dois novos reatores de capaci- submeter por sua própria incapacidade de se
dade militar insignificante. Os Estados Uni- colocar como superpotência, matando sua
dos concordaram em estabelecer relações própria população de fome nesse processo
diplomáticas, fornecer petróleo e suspender e pondo em risco o apoio de seu mentor, a
obstáculos ao comércio e ao investimento, e China. Então, o presidente Roo Moor-hyun
abandonaram demandas por inspeções do (da Coreia do Sul) fez uma visita a seu vi-
estoque de armas nucleares da Coreia do zinho do Norte que poderia ou não levar à
Norte. Esse acordo se rompeu pouco tempo reunificação da Coreia depois de quase 40
depois, com acusações mútuas de descum- anos de gélida separação. No mesmo ano,
primento. Em 1997-1998, a Coreia do Norte contudo, as eleições na Coreia do Sul para
testou mísseis com alcance de mil e 2 mil eleger o presidente, a partir de 2008, resulta-
quilômetros e os disparou sobre a Coreia do ram na vitória de um empresário de direita,
Sul e o Japão, e tentou, sem sucesso, lançar Lee Myung-lak, com probabilidades de ser
um satélite espacial. Essa demonstração de menos cordial com o Norte, ou pelo menos
força foi contestada por outros sinais, quan- não ter qualquer pressa para derrubar as
do um submarino norte-coreano encalhou cercas entre os dois lados: a reaproximação
na Coreia do Sul e sua tripulação, escapando na Coreia poderia representar fardos ao Sul,
para as margens, foi morta – supostamente semelhantes a alguns problemas aceitos pela
por seus próprios oficiais – e quando outro Alemanha Ocidental quando caiu o muro
submarino foi encontrado próximo à cos- com a parte Oriental (p. 252).
ta, um ano depois, com toda sua tripulação A Coreia do Norte sobreviveu ao ataque
morta. Além de perder o apoio dos russos militar, mas não ao econômico, e foi reduzida
com o advento de Gorbachev, a Coreia do ainda mais por isolamento e a intervenção.
POLÍTICA MUNDIAL | 163

Leituras relacionadas: Parte II Shilling, Ben Ami: Politics and Culture in Wartime
Japan (1981)
Avedon, J.: In Exile from the Land of the Snows Spence, Jonathan D.: The Gateway of Heavenly Pea-
(1984) [Tibet] ce – The Chinese and their Revolution 1875-1980
Milward, James A.: Eurasian Crossroads (2007) (1981)
PARTE
III
EUROPA REMODELADA
Europa Ocidental
5
Recuperação dos, em 1947, na Comissão Econômica das
Nações Unidas para a Europa (Economic
A recuperação da Europa Ocidental de- Commission for Europe, ECE). Essas orga-
pois de 1945 foi vigorosa. A recuperação nizações pressupunham que os problemas
econômica, que demandava a restauração da Europa poderiam ser tratados em base
de economias muito prejudicadas, mas es- continental, mas a Guerra Fria destruiu
sencialmente sólidas e especializadas, foi essa convicção, e, embora a ECE tenha con-
engendrada com força, por meio de ajuda tinuado a existir e publicado importantes
financeira norte-americana, movida por ge- estudos econômicos a partir de 1948, a Eu-
nerosidade e por receio de colapso dos paí- ropa se dividiu para propósitos econômicos
ses de interesse vital aos Estados Unidos na e políticos.
Guerra Fria. Junto com o Tratado do Atlân- Os precursores imediatos da ajuda
tico Norte (1949), o Plano Marshall (1947) econômica dos Estados Unidos foram o
foi um fator crucial no ritmo da recupera- fracasso da conferência de ministros do
ção material e da reafirmação espiritual da exterior em Moscou, em março e abril de
Europa Ocidental. 1947, e a Doutrina Truman, pela qual os
Quando a guerra terminou, os países Estados Unidos assumiram, em março, o
da Europa Ocidental se encontravam em papel da Grã-Bretanha na sustentação da
estado de colapso físico e econômico, ao Grécia e da Turquia e o racionalizaram em
qual se acrescentou o medo da dominação termos anticomunistas. Em junho, o gene-
russa através de ataque frontal ou subver- ral Marshall, então secretário de Estado,
são. Durante a guerra, foram feitos planos apresentava em Harvard o plano que leva
para atender as necessidades imediatas da seu nome e que oferecia ajuda econômica a
Europa. A Agência das Nações Unidas para toda a Europa (incluindo a URSS) até 1951,
Assistência e Reabilitação (United Nations desde que os governos europeus aceitassem
Relief and Rehabilitation Administration, a responsabilidade pela administração do
UNRRA) foi criada em 1943 e funcionou até programa e contribuíssem para a recupe-
1947: foram estabelecidas uma Organização ração da Europa por meio de algum grau
Central Europeia para o Transporte Interior de esforço unificado. O Plano Marshall era
(European Central Inland Transport Orga- uma ponte para a volta à normalidade, a ser
nization), uma Organização Europeia para financiado com 17 bilhões de dólares de
o Carvão (European Coal Organization) e dinheiro norte-americano para ressuscitar
um Comitê de Emergência para a Europa a indústria, modernizar a agricultura e ga-
(Emergency Committee for Europe), fundi- rantir estabilidade financeira. Era necessá-
168 | PETER CALVOCORESSI

ria a criação de uma organização europeia. Bélgica, Holanda e Luxemburgo (os últimos
A recusa da URSS à oferta, para si e seus três chamados resumidamente de Benelux
dependentes, deu à organização um caráter desde que formaram uma união alfandegá-
europeu ocidental. ria em 1947). Esse tratado, como o Tratado
Foi estabelecido, por 16 países, um Co- Anglo-Francês de Dunquerque de 1947, vi-
mitê para a Cooperação Econômica Euro- sava a combater o ressurgimento da ameaça
peia que avaliou suas necessidades em bens alemã, mas continha mais disposições para
e moeda estrangeira para os anos entre 1948 cooperação política, econômica e cultural
e 1952, e se converteu, em abril de 1948, na por meio de comitês permanentes e uma
mais permanente Organização para a Co- organização central, e era considerado, pelo
operação Econômica Europeia (OCEE). A menos por alguns de seus promotores, um
Alemanha Ocidental foi representada pelos passo em direção a uma aliança militar mais
três comandantes-chefe das forças de ocu- ampla com os Estados Unidos. Truman, fa-
pação até outubro de 1949, quando foram lando sobre a necessidade de treinamento
admitidos representantes alemães. Os Esta- militar universal e serviço militar seletivo
dos Unidos e o Canadá se tornaram obser- nos Estados Unidos, interpretou-o assim, e
vadores-membros da organização em 1950, o líder dos republicanos no Senado, Arthur
e posteriormente se desenvolveu a coopera- H. Vandenberg, sugeriu e apresentou uma
ção com a Iugoslávia e a Espanha. No lado moção em favor da ajuda norte-americana
norte-americano, a Lei de Ajuda ao Exterior a organizações militares regionais que ser-
(Foreign Assistance Act) de 1948 criou uma vissem aos propósitos das políticas dos Es-
agência para administrar a cooperação (Eco- tados Unidos. Em essência, o senador es-
nomic Co-operation Administration, ECA) tava defendendo um pacto militar entre os
para supervisionar o Programa de Recupera- Estados Unidos e a Europa Ocidental, uma
ção Europeia (European Recovery Program- contrapartida militar ao plano econômico
me, PRE). Nos anos seguintes, a OCEE se de Marshall. O Tratado do Atlântico Norte,
tornou o principal instrumento na transição assinado em abril de 1949 por Estados Uni-
da guerra à paz na Europa Ocidental. Ela re- dos, Canadá e mais 10 países europeus dava
avivou a produção e o comércio europeus ao a estes, por pelo menos 20 anos, uma garan-
reduzir quotas, gerar crédito e proporcionar tia de independência e integridade contra
um mecanismo para o acerto de contas entre ataques russos ao formalizar e institucio-
países. Embora fosse uma organização en- nalizar a intenção dos Estados Unidos de
tre governos, e não supranacional, inculcou permanecer na Europa e cumprir o papel de
atitudes internacionais e incentivou hábitos potência europeia. Nesse momento, os rus-
de cooperação econômica que sobreviveram sos, como os chineses 15 anos mais tarde,
ao fim do PRE. A organização foi substitu- tinham forças terrestres grandes e assusta-
ída, em 1960, pela Organização para a Co- doras que representavam um grande peso a
operação e Desenvolvimento Econômico todos os que estivessem ao seu alcance, mas
(OCDE), da qual Estados Unidos, Canadá e careciam de um armamento diversificado
Japão eram membros plenos, e que ampliou e moderno que fosse capaz de enfrentar os
o trabalho da OCEE para as áreas do mundo Estados Unidos. O Tratado do Atlântico
em desenvolvimento. Norte evidenciou na mesa o poder aéreo e
A fundação da OCDE coincidiu com as armas nucleares norte-americanas para
a assinatura, em março de 1948, do Trata- inibir o uso de forças terrestres russas na
do de Bruxelas, por Grã-Bretanha, França, zona estabelecida pelo tratado.
POLÍTICA MUNDIAL | 169

Os membros europeus dessa nova alian- das hostilidades aos alemães e à integração
ça eram beneficiários comparativamente da Alemanha Ocidental à aliança, mas esse
passivos que, apesar de fornecerem 80% passo foi precipitado por eventos a milhares
de suas forças na Europa, dependiam da de quilômetros de distância na Ásia: a Guer-
contribuição muito mais significativa dos ra da Coreia. Pouco mais de um ano após
Estados Unidos, sem a qual a sua era irrele- a assinatura do Tratado do Atlântico Nor-
vante em relação às principais necessidades te, o início dessa guerra gerou demandas
e receios que tinham. Embora os termos do elevadas por recursos dos Estados Unidos,
tratado fossem os de um mecanismo coleti- e Washington ficou ansiosa para que seus
vo de segurança, ele consistia mais em tra- aliados passassem de protégés passivos a
tados de protetorado de épocas anteriores, parceiros menores e para construir uma Eu-
em que uma potência maior tinha tomado ropa que fosse uma força para se contrapor
territórios mais fracos sob suas asas. O tra- aos exércitos russos, distinta do poder aéreo
tado criava uma organização permanen- norte-americano que, embora baseado na
te (a OTAN, a Organização do Tratado do Europa, estava sob comando exclusivo dos
Atlântico Norte) para discussão política e Estados Unidos e assim continuou mesmo
planejamento militar, e alguns de seus for- quando foram criados comandos conjuntos
madores visualizavam algo mais do que da OTAN. A Grã-Bretanha e a França, com
uma aliança militar – uma comunidade ou grande parte de suas forças comprometidas
união. Mas nada disso surgiu, por uma série fora da Europa, pouco podiam ajudar em
de razões: a enorme disparidade entre o po- termos imediatos e assim foram constran-
der dos Estados Unidos e de qualquer outro gidas mais facilmente a aceitar uma decisão
membro; o fracasso dos membros europeus norte-americana de rearmar os alemães. Em
de estabelecer uma unidade política propor- 1950, o general Eisenhower voltou à Euro-
cional aos Estados Unidos; a amplitude do pa como comandante supremo do tipo de
Oceano Atlântico; o apego inquestionável aliança antirrussa temida por Moscou no
dos norte-americanos à soberania, que lhes entre-guerras. No mesmo ano, a Grécia e a
parecia fora de moda quando era para ou- Turquia foram convidadas a cooperar com
tros; o ressurgimento da força e da confian- os aliados na defesa do Mediterrâneo, em-
ça europeias; e a diminuição da ameaça rus- bora não tenham se tornado aliados plenos
sa a meio caminho da duração do tratado. até 1952. Sua cooperação ajudou a estabe-
Por quase meio século, a OTAN foi o lecer um flanco oriental para proteger o se-
principal instrumento da Guerra Fria. A tor central aliado e ameaçar a URSS a par-
Europa Ocidental, com o Oceano Atlânti- tir do sul. Em 1952, em Lisboa, o conselho
co e o Mar Mediterrâneo, era seu teatro de da OTAN aprovou um plano para criar, até
operações. Os membros europeus da alian- 1954, uma força de 96 divisões ativas e de
ça forneciam a maior parte de suas forças, reserva, além de 9 mil aviões. Embora essas
os norte-americanos, a maior parte dos metas nunca tenham sido atingidas, as deci-
equipamentos e do dinheiro. Os europeus sões de Lisboa deram à aliança a forma que
eram cautelosos para evitar qualquer for- ela manteve a partir dali.
ma de associação militar que pudesse pa- Com uma exceção: o problema alemão,
recer fragilizar o vínculo euro-americano. ou seja, o status da Alemanha Ocidental
Eles eram mais relutantes do que os norte- como entidade política e seu papel no pla-
-americanos em reconhecer que a aliança nejamento e nas operações da OTAN. Com
antissoviética implicava um fim precoce a Guerra da Coreia, a pressão norte-ameri-
170 | PETER CALVOCORESSI

cana para acelerar a soberania da Alemanha caso de ataque a qualquer parceiro da CED.
Ocidental (e, assim, o seu rearmamento) Mas os franceses continuavam desconfor-
tornou-se irresistível, mas a França, parti- táveis e queriam participação britânica na
cularmente, estava ansiosa para encontrar organização, e não uma promessa de ajuda;
uma forma de impedir o ressurgimento do e não lhes agradava a disposição contida no
poder militar alemão autônomo. René Ple- tratado que permitia a formação de unida-
ven, o ministro da defesa francês, propôs des alemãs inteiras em lugar das unidades
que fossem constituídas unidades alemãs e menores propostas no plano de Pleven. Os
incorporadas a divisões multinacionais, mas Estados Unidos e a Grã-Bretanha pressio-
que a Alemanha Ocidental não tivesse qual- naram a França, os primeiros ameaçando
quer exército, Estado-Maior ou ministério uma “dolorosa reavaliação” de suas políticas
da defesa separados. Adotando o padrão da se o tratado da CED não fosse ratificado (o
Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, que foi interpretado como corte de ajuda
que foi lançada a partir de uma iniciativa norte-americana à França) e a segunda ofe-
francesa e estava às vésperas de ser instala- recendo, em 1954, mais cooperação militar
da, Pleven formulou uma Comunidade Eu- e política com a organização. Contudo, na-
ropeia de Defesa (CED) com um conselho quele ano, o parlamento francês finalmente
de ministros, uma assembleia e um ministro realizou uma votação e se recusou, por 319 a
da defesa europeu. O objetivo dos franceses 264, a debater a ratificação do tratado.
era minimizar a unidade militar alemã e, ao Com essa votação, a CED e os acordos
mesmo tempo, integrar a contribuição mi- de Bonn e Paris de 1952 entraram em colap-
litar do país, em termos operacionais e po- so. Houve raiva em Bonn, onde Adenauer
líticos, a uma organização internacional. A insistia que a Alemanha Ocidental deveria
participação britânica era essencial, já que, ter soberania mesmo assim, e em Washing-
sem ela, a organização internacional pro- ton, onde Dulles decidiu, de forma clamoro-
posta consistiria apenas em França e Alema- sa, cortar Paris de uma viagem que faria por
nha, com complementos não tão importan- capitais europeias. Em Londres, de modo
tes. Para a França, o compromisso britânico mais construtivo, ainda que tardio, Eden
era a única forma de compensar adequada- passou a trabalhar para juntar as peças no-
mente os riscos inerentes ao rearmamento vamente por meio de esforços diplomáticos
da Alemanha e ao ressurgimento de um e um compromisso mais específico do que
Estado alemão soberano, mas não se pôde aquilo que a Grã-Bretanha até então esta-
vislumbrar qualquer compromisso britânico va disposta a conceder. No final de 1954, o
satisfatório à França nos quatro anos em que Tratado de Bruxelas de 1948, ampliado para
a CED esteve em debate. incluir os ex-inimigos alemães e italianos,
Em 1952, acordos assinados em Bonn foi rebatizado de União da Europa Ociden-
e Paris criaram uma nova e complexa es- tal (UEO), assumindo as funções não mi-
trutura: seis estados europeus continentais litares da organização do Tratado de Bru-
assinaram um tratado criando a CED, os xelas e tornando-se, em termos militares,
três ocupantes ocidentais da Alemanha con- um ingrediente da OTAN; a Grã-Bretanha
cordaram em dar fim à ocupação sob ratifi- declarou que manteria no continente forças
cação do tratado que criava a organização, equivalentes àquelas já comprometidas com
e as potências da OTAN, incluindo a Grã- o Comando Supremo Aliado na Europa
-Bretanha, entraram em tratados secundá- (Supreme Allied Commander Europe, SA-
rios separados prometendo ajuda militar em CEUR), ou seja, quatro divisões e uma força
POLÍTICA MUNDIAL | 171

aérea tática; a ocupação da Alemanha Oci- ra pelo poder marítimo. No século XIX, o
dental foi finalizada; Adenauer aceitou não declínio da posição francesa na Europa foi
produzir armas atômicas, bacteriológicas ou compensado pela aquisição de um segundo
químicas, mísseis de longo alcance ou guia- império além-mar para substituir os ter-
dos, bombardeiros ou navios de guerra, ex- ritórios perdidos para a Grã-Bretanha nas
ceto com recomendação do SACEUR e com guerras do século XVIII; mas, no início do
o consentimento de dois terços do conselho século XX, a França, retomando a corrida
da UEO. demográfica e industrial, e espiritualmen-
A Alemanha Ocidental se tornou mem- te dividida entre os herdeiros do Iluminis-
bro integral da OTAN no ano seguinte. Ou- mo e da Revolução e os que não aceitavam
tra questão não resolvida foi enfrentada: nenhuma das duas coisas, estava ficando
França e Alemanha Ocidental concordaram desestimulada e tensa e não respondia ao
que o Sarre, que a primeira tentava anexar governo central. Os terríveis sacrifícios da
desde 1945, deveria se constituir em um ter- Primeira Guerra Mundial e a não menos
ritório especial autônomo inserido na UEO, terrível humilhação da Segunda, separados
mas seus habitantes rejeitaram esse mecanis- pela incapacidade de enfrentar os proble-
mo em um plebiscito, e a região se tornou mas da crise econômica ou o desafio de Hi-
parte da Alemanha Ocidental no princípio tler aos valores básicos, reduziram a França
de 1957. Sendo assim, a primeira década do diante de seus próprios olhos até que os atos
pós-guerra terminou com a OTAN existin- de bravura da Resistência e a liderança do
do para ampliar a proteção norte-americana general de Gaulle fizessem ressurgir e per-
da Europa Ocidental, a Grã-Bretanha como sonificassem o espírito francês. A identifi-
o mais firme e eficaz membro europeu da cação que de Gaulle fazia de si mesmo com
aliança, e um Estado alemão nascente na po- a França e seu uso constante da primeira
lítica de boa vizinhança da Europa Ocidental. pessoa do singular eram exatamente o que
O ponto fraco era a França. Enquanto se fazia necessário depois das feridas físicas
a Grã-Bretanha tinha se recuperado de for- e espirituais de um século.
ma enérgica depois da guerra e a Alemanha Quando a guerra terminou, os france-
Ocidental estava às vésperas de seu milagre ses tentaram lançar-se a um novo mundo
econômico, a França recaía na instabilidade com alguns dos mecanismos do velho, até
política que a tinha caracterizado entre as que descobriram que isso não funcionaria.
duas grandes guerras, acompanhada por sua Eles adotaram uma Constituição e métodos
ineficácia econômica e a pressão colonial. políticos desafortunadamente semelhantes
Mas também a França estava à beira de um aos da defunta Terceira República, fizeram
ressurgimento econômico que viria a reani- grandes esforços para manter ou recuperar
mar a agricultura, a indústria e o comércio seu império na Ásia e na África, tentaram a
varejista até meados dos anos de 1970; esta- velha jogada de fragilizar permanentemente
va para livrar-se de seus fardos imperiais e a Alemanha e estabeleceram tratados com
(da maior parte) de suas ilusões imperiais e, seus tradicionais aliados britânicos e russos.
com um salto político radical, ressituar seu Mas também revolucionaram suas políticas
problema alemão em termos de parceria em externas ao entrar para a aliança ocidental
vez de hostilidade. antirrussa, mesmo que ela implicasse o re-
A França foi uma importante potência armamento alemão, assumiram a liderança
terrestre e uma grande potência imperial, na elaboração de novas estruturas políticas
mas perdeu a concorrência com a Inglater- adequadas ao lugar diferente que a Euro-
172 | PETER CALVOCORESSI

pa ocupava no mundo, aceitaram o fim do comunidade econômica que evitava impli-


império e – mais importante – adotaram, cações políticas. A primeira dessas decisões
sob a liderança de Jean Monnet, uma forma estava em sintonia com ele, que acreditava
bem-sucedida de planejamento econômico que a França poderia ser uma importante
central para a modernização da indústria potência e que deveria ser moderna. Assim
e da agricultura. A filosofia econômica de como tinha sido especialista em guerra com
Monnet oscilava entre as cruezas de uma tanques quando muitos de seus colegas ain-
economia de comando comunista e as dos da eram favoráveis ao cavalo, agora, uma
defensores do livre mercado – ou, em outras geração mais tarde, ele sustentava que havia
palavras, buscava o melhor de dois mun- uma escolha a ser feita entre o poder nuclear
dos através de uma alocação dirigista de e nenhum poder, e que, depois de um certo
recursos e liberdade de iniciativa. Durante ponto, haveria pouca diferença entre uma
a guerra, a produção nacional tinha caído potência nuclear e outra: uma potência nu-
em 65%, mas, dois anos depois da liber- clear que chegasse àquele ponto faria parte
tação, em 1944, e antes do início do Plano do clube das primeiras, mesmo que possu-
Marshall, 90% dessa perda foi recuperada. A ísse armas menos sofisticadas e em menor
partir de 1947, uma série de Planos Monnet quantidade do que outros membros. A se-
elaborados e aplicados por um modesto de- gunda decisão pode ter sido menos adequa-
partamento do governo central, usando ver- da a ele, não tanto porque ele evitava todas
bas do Plano Marshall principalmente para as uniões e tinha noções antiquadas sobre
recondicionar e transformar as indústrias, a capacidade de um país como a França de
alocou recursos, determinou prioridades e agir sozinho, mas porque suas ideias sobre
concebeu a restauração da economia, setor a natureza das uniões úteis eram diferentes
por setor, em associação a empreendimen- daquelas dos autores do Tratado de Roma.
tos estatais e empresas privadas. A partir da Mesmo ciente de que os Estados inde-
data do segundo plano (1952-1957), setores pendentes da Europa não eram mais o que
socioeconômicos como educação, pesquisa haviam sido, ele não acreditava que a men-
e formação foram incluídos e levaram, na te dos europeus havia se tornado suprana-
segunda etapa, à direção central das polí- cional. Em sua visão, a ampla maioria deles
ticas sociais e a um estado de bem-estar fi- ainda respondia à ideia de nação, e, portan-
nanciado por empregados e empregadores. to, ele baseava suas políticas europeias nela
A renúncia ao império levou a França, (mas não necessariamente na soberania do
em função da Argélia, à beira da guerra ci- Estado). A patrie de de Gaulle não era o Es-
vil, da qual ela foi salva em 1958 pelo retor- tado (état) e poderia ser encaixada em uma
no de de Gaulle ao poder e a frustração de parceira ou associação com identidades
um plano militar de direita para assumir o nacionais reconhecidas e protegidas. Mais
controle da capital e do Estado. de Gaulle além, seu temperamento pragmático o le-
domou generais e coronéis, livrou-se dos vou a insistir nas diferenças entre Estados
políticos e das colônias restantes e, aprovei- mais ou menos poderosos e sustentar que
tando-se de uma situação econômica que qualquer associação deveria ser governa-
melhorava rapidamente, resgatou a França da ou orientada por um coletivo composto
de uma posição de escárnio. desses – nesse caso, França e Alemanha Oci-
De Gaulle herdou duas decisões recen- dental, com ou sem Itália. Ele considerava a
tes de seus antecessores: a de se tornar uma igualdade entre Estados, com seu corolário
potência nuclear e a de entrar para uma de “um Estado, um voto”, uma pretensão
POLÍTICA MUNDIAL | 173

equivocada, fosse aplicada na CEE ou pra- um pouco de sua credibilidade quando as


ticada na Assembleia Geral da ONU. (O co- cidades norte-americanas passaram a estar
letivo dos cinco membros permanentes do sob ameaça direta de mísseis intercontinen-
Conselho de Segurança, contudo, enquadra- tais russos: ou os russos não atacariam ou o
va-se em sua teoria, desde que se colocasse o fariam de forma calculada a evitar uma res-
delegado chinês certo na cadeira certa.) posta dos Estados Unidos.
de Gaulle também herdou uma posição Imediatamente depois do retorno de
que considerava intolerável em uma OTAN de Gaulle, Dulles ofereceu à França armas
que ele via como anacrônica. Seguindo nucleares em troca do direito de instalar
sua doutrina de coletivos, a OTAN deve- bases de lançamento norte-americanas no
ria ser dirigida por Estados Unidos, Grã- país. De Gaulle recusou e, em 1959, retirou
-Bretanha e França, mas era, segundo ele, o contingente francês da frota mediterrânea
dominada pelos primeiros, com um toque da OTAN. Ele se recusava a ser perturbado
de influência britânica adquirida à custa da pelas crises de Berlim ou Cuba e foi forta-
subserviência da Grã-Bretanha às políticas lecido por ambas em sua visão de que não
norte-americanas. Pouco depois de seu re- havia um perigo russo iminente. Em 1962,
torno ao cargo em 1958, de Gaulle tentou quando Kennedy ofereceu à França e à Grã-
estabelecer com os Estados Unidos e a Grã- -Bretanha armas nucleares, ele mais uma
-Bretanha um triunvirato dentro da OTAN, vez recusou e, em 1966, retirou as forças
mas suas ideias foram rejeitadas com base francesas de todos os comandos da OTAN.
em que a formação de uma aliança dentro Essa política teve algum eco na Europa.
de uma aliança levaria à perda dos outros A diminuição da ameaça russa e o fim do
aliados. Washington e Londres, além disso, medo de um colapso econômico, a realiza-
subestimavam a França nessa etapa, pois ção das metas básicas da OTAN e o Plano
ironizavam as ambições nucleares francesas, Marshall deram aos europeus uma nova
não viam como o país iria se desfazer de seu segurança que eles traduziram em desejo
pesadelo argelino e não conseguiam ver que de controlar suas próprias questões (ape-
o status da França estava mudando e iria sar de que, em grande parte, já o fizessem).
mudar ainda mais rapidamente no futuro. Esse novo nacionalismo foi aguçado nos
de Gaulle, não apenas desejava o ressur- anos de 1960 pelo ressentimento em rela-
gimento da França, ele via que isso estava ção à penetração econômica dos Estados
acontecendo. Ele também enxergava que a Unidos, o débito para com o investimento
Europa estava se transformando. A Guerra norte-americano que dava aos Estados Uni-
Fria tinha passado de seu ápice e deveria dos o controle sobre os empreendimentos
terminar um dia, e não se podia esperar que europeus e, portanto, sobre a contratação e
os norte-americanos ficassem na Europa in- a demissão de mão de obra. O antiamerica-
definidamente. A tecnologia de armamen- nismo de de Gaulle, enraizado na parciali-
tos estava convertendo a presença dos Es- dade de Roosevelt por Vichy e os generais e
tados Unidos na Europa de uma disposição almirantes franceses antigaullistas durante
estratégica necessária em um gesto político a guerra, não estava fora de sintonia com
dispensável que seria modificado em muito o clima na Europa – até que ele deu a im-
ou mesmo abandonado quando se tornasse pressão de que queria encerrar totalmente a
custoso demais. O caráter imediato auto- aliança com os Estados Unidos. Para isso, a
mático de uma resposta norte-americana a Europa Ocidental não estava preparada. A
um ataque russo na Europa tinha perdido Guerra Fria podia estar perdendo intensi-
174 | PETER CALVOCORESSI

dade, mas não tinha terminado e poderia de e a regeneração nacionais. Mesmo antes
recrudescer, e, enquanto houvesse dúvi- do Plano Marshall e de sua rejeição pela
da, era melhor que houvesse uma aliança. URSS, sua permanência no governo tinha
O próprio de Gaulle afirmou mais de uma se tornado quase impossível em função da
vez a necessidade de uma aliança, mas seu Doutrina Truman, da decisão de abandonar
desejo de ver os norte-americanos longe da as discussões com o Vietminh e combatê-lo,
Europa dava a impressão de que a aliança da dura repressão à revolta em Madagascar
era, em sua visão, dispensável. e das greves nas fábricas nacionalizadas da
A França dos anos de 1960 estava pron- Renault, junto com um congelamento de
ta para abrir mão de, ou relaxar de algu- salários. Os comunistas já tinham sido ex-
ma forma, uma aliança que lhe havia sido pulsos dos governos belga e italiano antes,
imposta na década de 1940 em função da em 1947. No final daquele ano, seus cama-
necessidade econômica. A alteração das radas franceses tentaram explorar politi-
circunstâncias econômicas do país foi tão camente greves sérias que tinham origens
importante para produzir uma mudança de econômicas reais nas políticas financeiras
política quanto a troca de governante em do governo de Paul Ramadier, mas fracas-
1958. de Gaulle não era diferente dos fran- saram, seus representantes foram demitidos
ceses e de muitos outros europeus em seu do governo e o partido entrou em um longo
desejo de reduzir a dependência política e período de oposição.
estratégica em relação aos Estados Unidos. O poder político passou à direita e, mes-
No final da guerra, ele e outros importan- mo quando oscilou de volta à esquerda em
tes políticos franceses queriam que a França meados dos anos de 1950, não voltou a in-
adotasse uma posição intermediária entre cluir os comunistas, e a França permaneceu
os Estados Unidos e a URSS, mas o início por uma década como membro submisso da
da Guerra Fria e a fragilidade militar e eco- aliança ocidental. Mas, nos anos de 1960, o
nômica francesa forçaram o governo a fazer país estava disposto a reconsiderar seu pa-
uma escolha pelo lado norte-americano em pel, devido ao golpe de 1958. Seu desliga-
1947. A necessidade de dinheiro e comida mento parcial da aliança norte-americana
determinou as políticas francesas. O Pla- aconteceu não por instigação dos comunis-
no Marshall oferecia a salvação, e a França tas, e sim sob orientação de de Gaulle.
a aceitou, mas – como os próprios norte- Um quarto e principal elemento na he-
-americanos – considerava o programa uma rança de de Gaulle em 1958 – junto com
operação de resgate de curto prazo e – di- o programa nuclear da França, o Tratado
ferentemente dos norte-americanos – pres- de Roma e a participação na OTAN – era
supunha que o alinhamento resultante tam- a reaproximação com a Alemanha. Os ar-
bém seria revisado no final desse prazo. quitetos dessa reaproximação foram Robert
O deslocamento posterior à guerra, de Schuman e Jean Monnet, do lado francês, e
uma política intermediária a uma de ali- Adenauer, do alemão. Em 1950, Adenauer
nhamento, foi facilitado pela retirada dos propôs uma união franco-germânica, à
comunistas do governo e, em certa medida, qual a Itália e os países do Benelux, e talvez
foi a causa. De seu papel de heróis nacionais a Grã-Bretanha, também poderiam aderir.
e parceiros ativos na resistência aos alemães, De Gaulle, então afastado, acolheu a ideia
os comunistas tinham passado a uma posi- e 10 anos depois a implementou por meio
ção suspeita e sectária na qual os interesses de um tratado franco-germânico em um
de Moscou contavam mais do que a unida- momento em que suas relações com a CEE
POLÍTICA MUNDIAL | 175

e a OTAN estavam desgastadas. O retorno Ele queria ser um presidente como Eisenho-
de de Gaulle coincidiu com uma fragiliza- wer ou de Gaulle, mas não um presidente
ção das relações germano-americanas. As como seus próprios antecessores ou seu vi-
atitudes políticas de Adenauer eram mar- zinho italiano. Quando ficou claro que seus
cadamente personalistas, e a morte de Dul- compatriotas não apreciavam uma demo-
les tinha acabado com o principal vínculo cracia presidencial, ele decidiu permanecer
entre ele e Washington. Ele desconfiava do como chanceler. Nas eleições de 1961, seu
espírito de Camp David e das tentativas de partido, a União Democrata Cristã, perdeu
Eisenhower de encontrar pontos de acordo a maioria parlamentar absoluta, e, nas ne-
com Khruschev. Em relação à Grã-Breta- gociações partidárias que se seguiram para
nha, os sentimentos de Adenauer tinham um novo governo, Adenauer foi forçado a
sido frios desde que, depois da guerra, um aceitar um quarto termo condicional como
oficial britânico o considerara inadequado chanceler – sendo que a condição era que
para ser prefeito de Colônia apesar de ele ele se retiraria em 1965, no máximo.
ter ocupado esse cargo entre 1917 e 1933. Durante reuniões com de Gaulle em
Ele não gostava de Macmillan, era cáusti- Rambouillet, em 1960, e em Paris, em 1962
co em relação à sua tentativa de cumprir – essa seguida de uma viagem triunfante na
um papel de mediador entre Washington Alemanha Ocidental por de Gaulle – Ade-
e Moscou e ficou irritado com sua visita a nauer optou por uma continuação do enten-
Moscou em 1959 para discutir um acordo dimento franco-germânico apesar de maus
europeu – que afetava, acima de tudo, Ber- pressentimentos sobre a versão que de Gaulle
lim – sem aviso prévio aos aliados alemães tinha de integração europeia e de sua oposi-
da Grã-Bretanha, mais afetados do que ção a uma união política da Europa e à inclu-
ninguém. Adenauer também se ressentia são da Grã-Bretanha na CEE. Em 1962, ele já
do distanciamento da Grã-Bretanha em re- estava mais desiludido com os Estados Uni-
lação à CEE e de sua tentativa de bloquear dos sob a nova administração Kennedy e com
o avanço formando a Associação Europeia as abordagens erráticas de Macmillan à CEE,
de Livre Comércio (European Free Trade e, em 1963, assinou com de Gaulle um trata-
Association, EFTA). Ele estava disposto a se do que formalizava a entente franco-germâ-
voltar à França e, depois de alguma hesita- nica e buscava fazer dela o núcleo da política
ção inicial, encontrar um amigo pessoal em europeia, uma alternativa viável ou um freio
de Gaulle. a OTAN, CEE, parceria anglo-germânica,
Em 1959, Adenauer, depois de 10 anos aproximação russo-americana ou à entente
como chanceler e agora com 83 anos, jogava germano-americana dos anos de 1950. Esse
com a ideia de aceitar a presidência da Ale- tratado foi um ponto culminante na diplo-
manha Ocidental. Para um homem que era macia de de Gaulle, mas ele não se manteve
mais velho do que Stresemann e tinha sido nele, pois o acordo aconteceu fora de hora. O
considerado para o cargo de chanceler da próprio Adenauer estava de saída e seus su-
República de Weimar em 1921 e em 1926, cessores imediatos não sentiam entusiasmo
o fim estava próximo; e seus colegas consi- com relação a essa realização pessoal dele,
deravam que era chegada a hora de ele se re- entre outras. O tratado franco-germânico se
tirar para um cargo menos ativo. Mas, para tornou letra morta quase que imediatamen-
Adenauer, a transferência só era palatável se te. de Gaulle não conseguiu as mudanças que
fosse acompanhada por uma transformação desejava no funcionamento da cúpula da
da presidência, de ornamental em executiva. OTAN. Ele acreditava que a Grã-Bretanha
176 | PETER CALVOCORESSI

era o Cavalo de Troia de Washington dentro tária, ou deveria-se encontrar alguma forma
dos muros da Europa, mas teria mais razão de criar uma força nuclear conjunta entre
para isso se visse Bonn ocupando esse papel, Estados Unidos e Europa. A primeira so-
pois mesmo que a Grã-Bretanha fosse depen- lução – uma força europeia distinta – pres-
dente dos Estados Unidos economicamente, supunha uma autoridade política europeia
a Alemanha Ocidental dependia deles para para controlá-la, e, embora a ideia dessa for-
sua própria defesa. ça pudesse ter agradado aos europeus, eles
No final da década de 1950, problemas não deram sinais de desenvolver a autorida-
relacionados à distribuição de poder e ar- de política necessária. A solução, portanto,
mas dentro da OTAN geraram alguns me- deveria estar em linhas americano-euro-
canismos estranhos. As próprias propostas peias, e havia duas escolas de pensamento, a
de de Gaulle, em 1958, de um colegiado da multinacionalista e a multilateralista.
OTAN que comprometesse as três potências Os multinacionalistas aceitavam a so-
com interesses extracontinentais foram fei- berania nacional e não pretendiam mais do
tas em resposta a uma solicitação dos Esta- que o compromisso revogável das forças na-
dos Unidos de ideias sobre esse problema. cionais para com um comandante da OTAN,
Mas não foram aceitas em Washington nem junto com uma maior participação de todos
em Londres, onde foram consideradas não os aliados em planejamento estratégico e
mais do que uma reivindicação francesa de consulta política. Os multilateralistas visua-
igualdade com os Estados Unidos e a Grã- lizavam um esquema para forças mistas no
-Bretanha. Um ano mais tarde, depois da qual as armas nucleares seriam operadas por
instalação dos Mísseis Balísticos de Alcance unidades cujo pessoal viria de diferentes paí-
Intermediário (Intermediate Range Ballistic ses. A administração norte-americana ado-
Missiles, IRBM) na Europa, em um sistema tou o multilateralismo em 1962, não muito
de controle duplo ou de “duas chaves”, o co- antes que os governos britânico e francês
mandante supremo, general Lauris Norstad, demonstrassem sua adição continuada, no
enfatizou a necessidade de uma autoridade caso britânico, ao multinacionalismo como
nuclear multinacional, e, nos anos de 1960, o entendiam os norte-americanos e, no caso
os Estados Unidos propuseram instalar na francês, um multinacionalismo que os ex-
Europa 300 mísseis Polaris móveis em es- cluía. Como os Estados Unidos esperavam
tradas, ferrovias e rios, sob seu controle. De que o multilateralismo desse a resposta à
Gaulle, a quem foi pedido que aceitasse 50 questão alemã – como dar aos alemães uma
desses mísseis, disse que só o faria se a Fran- participação satisfatória nas operações nu-
ça produzisse suas próprias ogivas, tornan- cleares sem alarmar os russos – persistiram
do o controle francês uma condição para a nisso apesar da oposição de seus principais
aceitação, diante da qual os norte-america- aliados. Propuseram, em 1963, uma Força
nos abandonaram o plano. Multilateral (FML) de 25 embarcações de
Essas discussões, ainda que tenham sido superfície com tripulação mista, cada uma
malogradas, demonstraram que, com a ela- levando oito mísseis Polaris, dos quais três
boração de armas nucleares de médio alcan- quartos seriam pagos pelos Estados Unidos
ce, a OTAN não poderia seguir para sempre e pela Alemanha Ocidental.
baseada em um monopólio nuclear norte- Os alemães ocidentais aceitaram o es-
-americano. Ou os europeus produziam quema como forma de restaurar as relações
uma força de contenção e assim transforma- próximas com os Estados Unidos que ti-
riam a OTAN em uma parceira mais iguali- nham caracterizado os anos de 1950. Des-
POLÍTICA MUNDIAL | 177

confiados da aproximação russo-americana seu tom paternalista e os liberais com suas


que produziu o tratado sobre a proibição tentativas de dirigir o rádio e a televisão e
de testes de 1963, eles viam nas FML uma controlar a imprensa: o elemento progres-
forma de garantir uma posição especial sista no gaullismo foi reduzido em 10 anos,
equivalente à posse de meios de contenção desde que de Gaulle retornou para salvar a
nucleares independentes pela França e Grã- França do fascismo e do controle militar.
-Bretanha. Os russos, pelas mesmas razões, A posição em universidades e escolas
faziam firme objeção à FML e insistiam em francesas estava longe de ser a pior do con-
considerá-la como um caso de proliferação tinente (em algumas partes da Itália, os alu-
nuclear. Os franceses a ignoravam e os bri- nos de escolas tinham que se revezar, porque
tânicos desdenhavam de seu valor militar, não havia lugar para todos ao mesmo tem-
mas aceitavam, por razões políticas e depois po), mas era ruim o suficiente para inflamar
de forte pressão norte-americana, participar uma geração que estava sintonizada com o
dela. Italianos, gregos e turcos concordaram ativismo político pela guerra na Argélia e
em participar. No final de 1964, o novo go- estava melhor organizada politicamente do
verno trabalhista apresentou um esquema que em qualquer outro lugar da Europa.
alternativo sem apelo nem virtude eviden- Desde a guerra, o número de alunos que
tes. A partir dali, as FML definharam porque ingressavam na universidade se multiplicou
os norte-americanos concluíram que não por quatro em função, entre outras coisas,
precisavam seduzir a Alemanha Ocidental de uma crescente taxa de natalidade e a re-
a se afastar da França e porque passaram a gra de que qualquer menino ou menina que
crer que as objeções russas eram verdadeiras concluísse um baccalauréat tinha direito a ir
e fatais à tentativa de controlar a prolifera- à universidade. Novas universidades esta-
ção nuclear. Eles retomaram propostas de vam sendo construídas em Paris e fora dela,
dar aos aliados uma participação maior nos mas foram iniciadas tarde demais. O caos
comitês de planejamento, e, em 1965, essas resultante foi amplificado pela centralização
questões estavam temporariamente sub- burocrática, pelo descontentamento com
mersas em função da decisão francesa de se planos de ensino ultrapassados e por regras
retirar de todos os organismos militares da antiquadas sobre conduta pessoal (às vezes
OTAN e os retirar do país. A França con- implementadas pela polícia).
tinuou sendo membro da aliança, mas não A nova universidade em Nanterre, perto
tomaria parte em suas operações enquanto de Paris, ficou conhecida por conflitos en-
ela não fosse reformada. tre estudantes e funcionários, mas não era a
Recuperada o suficiente para se retirar única, e foram os problemas na Sorbonne,
da aliança, a França foi sacudida, em maio no coração da capital, que transformaram
de 1968, por uma onda de violência revo- esses conflitos em algo próximo de uma re-
lucionária em Paris, sem causas peculiares volução. Depois de uma ocupação dos pré-
ao país. Em toda a Europa Ocidental, havia dios da universidade pelos estudantes, as au-
profundas fontes de descontentamento que toridades universitárias chamaram a polícia,
se sobrepunham e se fundiam: miséria ur- que se comportou com tal brutalidade que
bana, revolta contra os horrores da Guerra a opinião na cidade, que normalmente não
do Vietnã, universidades e escolas super- ficava do lado dos estudantes, virou-se mas-
lotadas, luta por salários mais elevados em sivamente em favor deles. Os problemas cul-
uma época de preços crescentes. Na França, minaram em uma noite de batalha na qual
o governo de Gaulle irritava os jovens com a polícia (desta vez a partir de instruções
178 | PETER CALVOCORESSI

do governo) e os estudantes se enfrentaram franceses assustados e demitiu Pompidou.


pelo controle da Margem Esquerda, enquan- A seguir, apoiou o ministro da educação
to as cenas de violência eram transmitidas à Edgar Faure, que fez um ataque radical ao
França e ao exterior por repórteres de rádio problema da educação superior indepen-
que perambulavam pelas ruas. A polícia dentemente de seus colegas e de grande
venceu a batalha, mas os estudantes conti- parte da opinião pública conservadora.
nuaram, por um tempo, a ocupar parte da Faure introduziu a gestão conjunta en-
universidade. Ao mesmo tempo, os traba- tre professores e estudantes, aboliu o siste-
lhadores, em Paris e em outras cidades, en- ma centralizado sob o qual a França tinha,
traram em greve, ocuparam fábricas e esta- na prática, uma única universidade e o subs-
beleceram comitês de ação que começaram tituiu por 65 delas (13 em Paris), nenhuma
a parecer um novo governo em estado em- tendo mais de 20 mil alunos, e descentrali-
brionário. A autoridade do governo legítimo zou ainda mais o controle em cada universi-
ficou muito abalada. O primeiro-ministro dade ao criar conselhos conjuntos para cada
Georges Pompidou aconselhou de Gaulle a núcleo de 2.500 estudantes.
renunciar. Falava-se em uma nova Revolu- Mas os dias de de Gaulle estavam con-
ção Francesa, mas, meses depois, de Gaulle tados. Uma de suas aversões era o Senado
foi às urnas e teve uma vitória arrasadora. francês; e uma de suas preocupações era
Houve várias razões para isso. Embora a reforma da máquina de governo, com a
um núcleo entre os estudantes tivesse ob- criação de assembleias regionais. Ele propôs
jetivos políticos revolucionários, muitos vincular essa reforma à abolição do Senado
deles não queriam mais do que a reforma e submeteu as duas questões juntas ao elei-
universitária, e os grevistas não eram nem torado em um referendo, mas o Senado não
um pouco revolucionários. Eles não es- tinha baixa popularidade, e o uso que de
tavam tentando derrubar o governo, mas Gaulle fez do referendo, junto com a impli-
obter dele melhores salários, assim como cação de que um voto negativo acarretaria
menos desemprego. Os líderes do Parti- sua própria renúncia, era considerado por
do Comunista estavam muito envolvidos muitas pessoas como uma tática injusta.
no sistema para querer arriscar sua desa- A maioria votou pelo não e de Gaulle re-
gregação, tinham receio dos grupos mais nunciou imediatamente (e morreu no ano
à esquerda e não tinham simpatia pelos seguinte). O presidente do Senado, Alain
estudantes. Acima de tudo, o vigor de de Poher, assumiu as funções da presidência
Gaulle aguentou. Embora tenha tido que interinamente até que o candidato gaullista
voltar às pressas de uma visita de Estado Georges Pompidou venceu a eleição em se-
à Romênia, ele não se deixou atrapalhar gundo turno. Pompidou, banqueiro influen-
quando chegou. Tendo-se certificado, com ciado por temores da estabilidade exagerada
uma expedição secreta aos quartéis, de que do dólar, assumiu com mais paixão do que
nada tinha a temer em relação ao exército, de Gaulle a causa da entente franco-germâ-
ele avaliou corretamente a situação, espe- nica dentro da União Europeia.
rou que as autoridades universitárias e os
sindicatos começassem a retomar o con-
trole em suas respectivas esferas e então, A entente franco-germânica
desdenhando da proposta de François Mit-
terrand de substituí-lo na presidência, teve O papel de Konrad Adenauer na Alema-
uma vitória arrasadora com os votos de nha Ocidental (1952-1963) estabeleceu na
POLÍTICA MUNDIAL | 179

Europa um novo Estado que estava reto- novas relações com a França e a Rússia. A
mando a predominância econômica ale- primeira estava firmemente estabelecida,
mã no continente, com base nas políticas mas a segunda foi interrompida pela cons-
econômicas dos países ocidentais (reforma trução do Muro de Berlim em 1961, que
monetária e ajuda do Plano Marshall) e na não apenas isolou uma parte da Alemanha
divisão da Alemanha. Os territórios perdi- da outra, mas também isolou a Alemanha
dos na parte oriental tinham valor menor Ocidental da URSS. A partida de Adenauer
do que os que foram mantidos na parte foi seguida por um breve interlúdio com
ocidental. A mão de obra dos refugiados Ludwig Erhard como chanceler, até que,
orientais era oportuna para a reconstrução em 1966, ele foi forçado por seu próprio
e era móvel. O investimento incentivou o partido a abandonar o cargo. De 1966 a
crescimento sem inflação, e o crescimento 1969, os democratas-cristãos e os social-
restaurou o moral. Os elevados padrões de -democratas governaram em coalizão, com
educação, formação industrial e disciplina, Kurt Kiesinger como chanceler e Willy
além da gestão eficiente, também contribu- Brandt como vice-chanceler e ministro do
íram. Nos quatro anos anteriores à sobe- exterior. Esses três anos constituíram uma
rania, as zonas ocidentais combinadas tri- ponte entre a era Adenauer e a quase tão
plicaram a produção industrial e elevaram longa era socialista que estava por vir. A
o PIB em dois terços. A população voltou grande coalizão abandonou a atitude de
a seu nível anterior à guerra e se estabili- Adenauer de considerar metade da Europa
zou, na década de 1960, em 60 milhões (a praticamente inexistente. As fontes des-
da Alemanha Oriental era de 17 milhões). sa evolução eram a détente na Europa e a
Como a produção subiu e o desemprego preocupação crescente de Washington em
não, as provisões generosas para serviços ter melhores relações com Moscou sem
públicos e o Estado de Direito atraíram muita consideração pelas suscetibilidades
mínima oposição. O sucesso material teve alemãs como tinham sido evidenciadas no
equivalente no êxito político em duas fren- passado; o abandono da pretensão de que
tes: internamente, uma democracia que a segurança europeia e o problema alemão
funcionasse e uma parceria entre capital eram inseparáveis e que nenhum sistema
e trabalho; externamente, a aceitação na europeu poderia ser cogitado utilmente na
aliança mais forte do mundo. A Alemanha ausência da reunificação alemã; o apetite
era o único país com uma população subs- das economias da Europa Oriental, que le-
tancial nos dois lados da Cortina de Ferro. vava à rebelião contra a condição de satélite
Nos primeiros anos de Adenauer, Oci- e a um desejo pelos produtos da nova tec-
dente queria dizer principalmente Estados nologia (computadores, por exemplo) que
Unidos, mas em seus últimos anos, orien- a Alemanha Ocidental poderia fornecer; e
tou-se em direção a uma postura mais eu- a avaliação entre os alemães ocidentais de
ropeia, particularmente em suas relações que a promessa de reunificação por meio
com de Gaulle. Seus sucessores começaram de uma aliança ocidental era vazia e que
a penetrar nas tradicionais associações da o caminho para a reunificação não passa-
Alemanha na Europa Central. va por Washington. Bonn, portanto, en-
A tarefa de Adenauer foi reposicionar trou na discussão com os países da Europa
a Alemanha na Europa depois dos desas- Oriental e, em 1967, estabeleceu relações
tres dos anos nazistas. Sua aliança com os diplomáticas com a Romênia. Essa política
Estados Unidos era uma precondição para oriental ganhou mais ritmo depois de 1969,
180 | PETER CALVOCORESSI

quando Brandt se tornou chanceler e abriu Esses vários acordos solucionaram mui-
discussões com a Alemanha Oriental, a Po- to, mas não tudo, como se poderia esperar
lônia e a URSS. de uma conferência de paz em 1945. Berlim
Além de renovar relações normais com não havia sido purgada de suas anormalida-
inimigos dos tempos de guerra, Bonn teve des. As quatro potências mantinham seus
de negociar com a Tchecoslováquia, que direitos sobre a cidade, que continuava sen-
exigia a anulação do acordo de Munique do duas. O deslocamento dos moradores da
de 1938, e com a Alemanha Oriental, que parte ocidental à oriental ficou mais fácil,
demandava reconhecimento de um Esta- mas não normal, Berlim Ocidental passou
do soberano independente. Essa última a estar constitucionalmente integrada à Ale-
questão era complicada pelos problemas de manha Ocidental, mas fisicamente contígua
Berlim, uma cidade dividida, onde os qua- apenas à Alemanha Oriental. A reunificação
tro principais conquistadores da Alemanha da Alemanha não estava descartada, mas
ainda tinham direitos especiais. Um novo sim sua realização pela força. A Ostpolitik
acordo das quatro potências sobre Berlim de Brandt era foi muito criticada por seus
dispunha, entre outras coisas, sobre comu- conterrâneos e, embora tenha fortalecido
nicações mais fáceis por ferrovia, estradas e sua posição parlamentar em 1971, ele per-
vias aquáticas entre a Alemanha Ocidental e deu terreno nos anos seguintes. Em 1974,
Berlim Ocidental, e acesso mais livre para os ele teve que renunciar ao cargo de chanceler
moradores de Berlim Ocidental à Alemanha quando foi descoberto um espião que traba-
Oriental por vários propósitos. Por meio de lhava em seu escritório privado, e foi sucedi-
um Tratado sobre Relações Gerais, as duas do por Helmut Schmidt.
Alemanhas reconheciam a soberania e as Mais uma vez, por coincidência, a
fronteiras uma da outra e prometiam resol- mudança em Bonn foi seguida de perto
ver disputas de forma pacífica. Foram esta- por mudanças em Paris. Pompidou mor-
belecidas relações diplomáticas entre Bonn reu em 1974, e, na eleição seguinte, Fran-
e Praga, declarando-se inválido o acordo de çois Mitterrand venceu o primeiro turno,
Munique. Tratados com a URSS e a Polônia, mas foi derrotado no segundo por Giscard
que incluíam o reconhecimento da linha d’Estaing, por uma margem extremamente
Oder-Neisse, foram concluídos em 1970 pequena. Sete anos depois, Mitterrand foi
e ratificados em 1972. As duas Alemanhas eleito e permaneceu como presidente até
se tornaram membros da ONU (1973). Um 1995. Na Alemanha Ocidental, Schmidt
estranho capítulo final dessas transações foi continuou como chanceler até 1982, quan-
uma reivindicação da Alemanha Oriental, do seu governo foi derrotado no Bundestag
em 1975, pelo retorno a Berlim de obras e seus parceiros do Partido Democrático
de arte retiradas durante a Segunda Guerra Liberal (FDP) redirecionaram sua fidelida-
Mundial e levadas a lugares mais seguros no de para dar a chancelaria ao conservador
Ocidente – cerca de 600 quadros de impor- Helmut Kohl, que a manteve até 1998. Du-
tantes artistas, incluindo 21 de Rembrandt, rante grande parte de seu longo mandato,
mais de 200 desenhos de Dürer e Rembran- seu equivalente em Paris foi Mitterrand.
dt, a Rainha Nefertiti e possivelmente mi- Mitterrand era um político de conside-
lhares de peças egípcias, e mais. rável inteligência e autoconfiança, astúcia e
Porém, a aplicação da Convenção de paciência, essencialmente não dogmático e
Haia de 1954 a essas circunstâncias era pou- até mesmo apartidário. Ele também era um
co provável politicamente. modernizador e, nesse sentido, mais radi-
POLÍTICA MUNDIAL | 181

cal do que conservador, mas, como muitos gem estreita. Michel Rocard, extremamente
modernizadores, pouco preocupado com os hábil, tornou-se primeiro-ministro, mas
custos humanos da modernização. Interna- Mitterrand não gostava dele e imprudente-
mente, sua primeira tarefa era reafirmar a mente o substituiu em 1991, por Edith Cres-
predominância dos socialistas sobre os co- son, cujos erros graves e falta de tato cau-
munistas à esquerda e o mais ao centro pos- saram sua saída em pouco mais de um ano.
sível. Para isso, necessitava recuperar os vo- Pierre Bérégovoy preencheu o cargo antes
tos que as classes mais pobres tinham dado a das eleições de 1993, que foram desastrosas
de Gaulle, mas não estavam tão dispostas a para a esquerda. Chirac, pensando nas elei-
dar aos sucessores do general na direita, e ele ções presidenciais seguintes, esquivou-se da
precisava abrir caminho em áreas comunis- presidência, que foi ocupada por Edouard
tas para tornar os socialistas independentes Balladur por um curto período, até 1995.
do apoio deles. Essas metas foram facilitadas Nesses últimos anos, as relações de Mitter-
quando a candidatura de Giscard para a pre- rand com seu próprio partido se tornaram
sidência em 1974, em oposição ao herdeiro incertas, e com seus primeiros-ministros,
gaullista por direito, Jacques Chirac, dividiu pouco generosas, até mesmo desleais. Ele
a aliança de direita. Quatro anos mais tarde, dava uma impressão de desleixo (era um
os socialistas superaram os comunistas em homem doente) e se tornou distante, capri-
todas as áreas em que esses predominavam, choso, nepotista e (como Thatcher, a quem,
com poucas exceções, e, em 1981, Mitter- em outros aspectos, ele não lembrava nem
rand venceu a presidência. Tendo derrotado um pouco) semiafastado do parlamento e
os comunistas, ele surpreendeu e fragmen- do parlamentarismo.
tou o Partido Socialista, primeiro, abando- Contra esse pano de fundo caleidos-
nando as políticas tradicionais de esquerda cópico, Mitterrand enfatizava o papel da
(em parte para manter o terreno intermediá- presidência como algo acima do partido e
rio e em parte porque suas tentativas iniciais se concentrava em questões internacionais.
de praticar políticas econômicas expansio- Pragmático na tradição que ia de Talleyrand
nistas naufragaram nas impossibilidades do a de Gaulle, político profissional mais do
socialismo em um só país). Mesmo com um que pensador político, ele afirmava a alian-
PIB mais elevado do que o da Grã-Bretanha, ça franco-germânica e aceitava um papel
a França tinha passado pelas tempestades secundário para a França nas questões eu-
econômicas dos anos de 1970 com um de- ropeias – secundário em relação à Alema-
sempenho inferior ao da Alemanha. Suas nha para não ser secundário em relação a
indústrias mais antigas, em transição, tive- nenhum outro país. Depois da reeleição de
ram de enfrentar a depressão bem como as Kohl como chanceler em 1987, ele apoiou
pressões da mudança; as novas indústrias, propostas para uma cooperação mais ínti-
incentivadas com sucesso, oscilavam. ma entre os dois países, uma brigada e um
A cena política era ambígua. Eleições conselho de defesa franco-germânicos. O
apertadas, em 1986, impuseram ao presi- colapso da URSS e a consequente reuni-
dente um primeiro-ministro de direita (Chi- ficação da Alemanha criaram um dilema
rac) cujo próprio domínio em sua maioria e grave. Ele aceitou a unificação porque não
seu cargo era incerto. Nas eleições de 1988, estava em posição de fazer qualquer outra
Mitterrand teve um resultado melhor do coisa – e o mesmo com relação à admissão
que o esperado, mas os socialistas recupera- dos ex-satélites soviéticos na UE – mas o
ram sua posição parlamentar por uma mar- ressurgimento da Mitteleuropa como um
182 | PETER CALVOCORESSI

fator importante nas questões europeias de- pessoas a uma determinação de acompa-
pois de meio século ampliava a influência da nhar o ritmo da insistência da Alemanha em
Alemanha para a Europa Central e Oriental, inaugurar uma União Monetária Europeia
e lhe dava uma série de escolhas internacio- com uma moeda única até 1999. Esse des-
nais alternativas à aliança franco-germânica contentamento era reforçado por dúvidas
e à direção franco-germânica da UE. A in- persistentes sobre a posição da França no
tegração acelerada da Europa e a expansão mundo, principalmente na África, onde o
da UE eram políticas alemãs, não francesas. experimento francês com a influência pós-
Elas desagradavam grande parte da opinião -colonial começava a parecer, nos anos de
francesa, e ainda mais quando implicavam 1990, um engano incapaz de dar conta da
dolorosas medidas anti-inflacionárias (para anarquia do continente ou de se contrapor
manter a união monetária em andamento), à influência norte-americana que se opunha
agravavam o desemprego e causavam vio- aos protegidos da França; ao mesmo tempo
lento clamor popular por subsídios prote- em que era o segundo país da Europa, de-
cionistas, controles mais rígidos de imigra- pois da Alemanha, a França estava sendo
ção e direitos de cidadania mais limitados. relegada a um papel menor na África. Esse
O conservadorismo leve e a segurança desconforto fez parte da decisão de Chirac,
econômica de Balladur neutralizavam al- em 1997, de tentar interromper o declínio da
guns desses problemas, davam segurança direita que o havia colocado no poder rea-
ao eleitorado francês e o transformavam em lizando eleições prematuras antes que a es-
candidato à presidência, mas ele carecia dos querda socialista pudesse estabelecer Lionel
dons necessários para vencer o mais extro- Jospin como verdadeiro herdeiro de Mitter-
vertido e flexível Chirac, e ficou em terceiro rand. A coalizão de centro-direita de Chirac
em um primeiro turno que gerou pouco en- foi amplamente derrotada. Somente a Frente
tusiasmo. O socialista Lionel Jospin, empur- Nacional de extrema direita, de Jean-Marie
rado à batalha quando Jacques Delors desis- Le Pen, surgiu como vencedora clara. Jospin
tiu, era favorito nas pesquisas, mas Chirac se tornou um primeiro-ministro dividido
venceu no segundo turno. Por tempera- entre gastar dinheiro para reduzir o desem-
mento, ele era, assim como Mitterrand, um prego ou aplicar políticas mais rigorosas ne-
homem com mais capacidade de encontrar cessárias pelos critérios de Maastricht para
formas de se desviar de problemas do que, entrar para a UME. Melhorias na economia
como Delors, ávido por enfrentá-los. Cons- – inflação zero, aumento de investimentos e
titucionalmente, ele chegou a uma posição despesas do consumidor – facilitaram a so-
que por quase 30 anos tinha sido excepcio- lução do dilema, e a coabitação entre Chirac
nal na Europa Ocidental. e Jospin se mostrou mais harmoniosa e bem-
Moldada segundo o modelo norte-ame- -sucedida do que se esperava. Os conflitos
ricano por um grande homem e voltada a ele políticos apareceram na direita depois que
(de Gaulle), a presidência francesa foi ocu- mais perdas em eleições locais, em 1998, fi-
pada de forma adequada por uma sucessão zeram com que alguns cogitassem a ideia de
de homens, mas o amável Chirac era um po- uma aliança com a Frente Nacional, o que
lítico menos capaz e enfrentou um acúmulo era um anátema para outros. Jospin, enquan-
de problemas, principalmente um nível de to isso, sustentava o centro a partir de uma
desemprego alto (12%), corrosivo e aparen- postura inicial decididamente esquerdista,
temente imutável. A opinião pública acusava um endosso daquilo que havia sido a estraté-
os governos de sacrificar as necessidades das gia eleitoral de Mitterrand e seria a de Blair.
POLÍTICA MUNDIAL | 183

Na Alemanha, 16 anos seguidos de Partido Verde. Contudo, dentro de um ano,


Kohl como chanceler excederam até mes- os eleitores da parte oriental começaram a
mo o tempo de Mitterrand no cargo, mas, abandoná-lo. Os Verdes mostraram mais
em 1998, a União Democrata-Cristã/Social inclinação a combater seus parceiros de
Democrata (CDU/CSU) perdeu as eleições coalizão em função de questões ecológicas
com uma derrota profunda nos Länder específicas do que enfrentar a oposição ao
ocidentais e retumbante na parte oriental lado deles. E as medidas econômicas de
(onde as expectativas tinham sido frustra- Schröder – imediatamente questionadas
das profundamente); o desemprego em toda por seu colega mais grandiloquente e mi-
a Alemanha estava bastante alto e o apoio nistro das finanças Oskar Lafontaine (do
à unidade da Europa – com a consequen- qual ele rapidamente se livrou) – eram mais
te extinção do simbolicamente poderoso centristas do que esquerdistas e enfurece-
Deutschmark – vacilava. O longo reinado ram muitos apoiadores, mais ainda porque
de Kohl era notável pela unificação da Ale- ele não havia deixado clara sua postura an-
manha, que ele tinha assumido com ousada tes das eleições. Várias eleições regionais,
determinação ainda que com um custo su- em 1999, o deixaram dependente da CDU
bestimado, e pela transformação da unida- no Bundesrat e o forçaram a cogitar uma
de europeia que ele promovera em aliança grande coalizão com a direita – o oposto
constante com a França e ampliara, da CEE de seu propósito aparente antes das elei-
nos anos de 1950 à UE dos anos de 1990. ções. Diferentemente dos conservadores
Onde Adenauer havia vislumbrado uma Eu- britânicos nessa época, a CDU continuava
ropa agrupada em torno da Renânia, Kohl a comandar grande parte do terreno inter-
não teve dúvidas em adotar a visão mais mediário entre os dois extremos.
ambiciosa de uma União Europeia que in-
cluísse a Mitteleuropa e mais. Ao se preparar
para voltar a Berlim, a capital alemã levava A Grã-Bretanha no limite
consigo duas grandes mudanças: a Alema-
nha reivindicava a liderança na Europa, mas A recuperação da Grã-Bretanha depois da
não o domínio; e as terras há muito deba- guerra foi forte, rápida, mas não susten-
tidas entre a Alemanha e a Rússia gravita- tada. O moral dentro do país e o prestígio
riam não em direção à primeira, mas à UE. fora dele eram elevados. As perdas de guer-
Schröder foi o primeiro chanceler alemão ra foram graves, mas a gestão financeira do
a considerar inequivocamente uma aliança conflito fora prudente. Metade dos custos
com a França e a integração da Grã-Breta- foi pago com impostos e a outra metade,
nha à UE não como manobras alternativas vendendo reservas de moeda estrangeira e
na Europa Ocidental, mas como postulados tomando dinheiro emprestado. O final súbi-
básicos de uma política pan-europeia e um to do empréstimo-arrendamento de armas
trampolim para mais expansão. por parte dos Estados Unidos (lend-lease)
Porém, a posição doméstica de Schrö- em agosto de 1945, seguido de um emprés-
der era frágil. Baseava em uma forte osci- timo norte-americano decepcionantemente
lação dos Länder orientais da CDU para o baixo e acompanhado de condições impos-
Partido Social-Democrata (SDP), a partir síveis (a convertibilidade da libra esterlina
da imagem desse como o partido do alto dentro de um ano), deu ao novo governo
emprego, das melhores aposentadorias e uma tarefa assustadora, que foi enfrenta-
do mais bem-estar; e em coalizão com o da no curto prazo por uma combinação
184 | PETER CALVOCORESSI

de gestão sábia e ajuda norte-americana. controles e a liberalização do comércio, reti-


As verbas do Plano Marshall, embora esti- rando-se a proteção de indústrias nascentes,
vessem disponíveis por quatro anos, foram criaram graves desequilíbrios nas contas ex-
dispensadas depois de dois, tendo sido usa- ternas a partir dos anos de 1950 e desviaram
das basicamente para restaurar as indústrias atenção e recursos de uma renovação mais
danificadas pela guerra e financiar um am- radical da base industrial britânica. Essa
bicioso programa de reforma social em edu- base sempre foi relativamente estreita – car-
cação, saúde e seguridade social – mas não vão e algumas indústrias de primeira linha,
para a reestruturação mais ampla e mais ra- como têxteis e engenharia – e respondeu de
dical da economia industrial, de que a Grã- forma lenta ao desenvolvimento de novos
-Bretanha necessitava para manter sua posi- métodos, novos concorrentes e novas indús-
ção no mundo, a qual havia perdido desde trias. Houve adaptação, mas não o suficiente
o final do século XIX para a Alemanha, os para proteger a economia dos contratempos
Estados Unidos e novos concorrentes. Os inescapáveis em uma economia mundial
impostos continuavam altos, mas as taxas não mais controlada pela Grã-Bretanha.
de juros, baixas, o desemprego estava redu- Além disso, o país estava perdendo sua pri-
zido e os salários, sob controle; o crescimen- mazia na prestação de serviços financeiros
to econômico era, em média, de 4% ao ano. e outras exportações invisíveis. Somente em
A produção, o valor das reservas e o nível raras ocasiões durante os séculos XIX e XX,
de renda pessoal anteriores à guerra foram a Grã-Bretanha teve superávit em comér-
todos recuperados no final da década. Ao cio e produtos industriais, mas a lacuna foi
mesmo tempo, a educação foi ampliada e coberta por superávits em invisíveis, até os
foi introduzido um sistema abrangente de anos Thatcher, na década de 1980.
seguridade social. Mas a Grã-Bretanha não No período entreguerras, Keynes,
se recuperou tanto de sua posição anterior à ciente, como deve estar qualquer econo-
guerra como grande potência independente mista, da importância fundamental dos
quanto supôs que tinha feito. mercados, mas também profundamente
No lado negativo, os governos de Attlee perturbado pelas consequências sociais e
(1945-1951) comprometeram o país com econômicas do desemprego, afirmava que
um arsenal nuclear e políticas de defesa ca- não se poderia confiar em um sistema de
ras que, apesar de causarem a renúncia de mercado sem limitações que regulassem
Aneurin Bevan e outros ministros, tiveram uma economia da melhor forma. Ele de-
efeitos fiscais e orçamentários consideráveis fendia um regime misto no qual os gover-
pelo restante do século. nos usariam medidas monetárias e fiscais
Esse fardo era ainda mais pesado vis- para limitar ou se contrapor a forças cegas
to que o longo declínio industrial da Grã- de mercado. Ele negava que os mercados
-Bretanha não foi controlado, e o país per- livres pudessem dar conta dos ciclos co-
maneceu muito vulnerável às vicissitudes merciais e que houvesse uma correlação
externas e à má gestão doméstica, como, por direta e precisa entre políticas de emprego
exemplo, aumento no custo das matérias- e inflação de preços. Sua grande influência
-primas importadas, como o que foi causa- estabeleceu uma ortodoxia que mostrava
do pelas guerras da Coreia e do Vietnã, e as a economia como um móvel delicado que
enormes subidas nos preços do petróleo de- exigia um equilíbrio habilidoso por parte
correntes de guerras e revoluções no Oriente de gestores inteligentes e bem informados,
Médio nos anos de 1970. O relaxamento de em sintonia com forças de mercado. Con-
POLÍTICA MUNDIAL | 185

tra essa prescrição, os monetaristas extre- minaram em uma greve de mineiros e a


mos proclamavam que os governos não queda do governo. Nos anos de 1970 (assim
podiam nem deveriam intervir na econo- como nos anos de 1930, ainda que em me-
mia, exceto ao regular a oferta de dinheiro, nor nível), os líderes políticos estavam, e a
o que poderiam e deveriam fazer. maioria assim se sentia, pouco capacitados
A economia mista demandava habili- para entender ou dar conta de múltiplas
dades excepcionais e um contexto benig- desordens econômicas – a grande crise do
no. Politicamente, a questão central era um petróleo daquela década, inflação, lutas sa-
conflito entre os dois imperativos de con- lariais, colapsos bancários – e foram levados
ter o desemprego e de conter a inflação. A a soluções desesperadas. Os governos traba-
economia mista adotava o planejamento de lhistas de Harold Wilson e James Callaghan
curto e médio prazos, a nacionalização de (1974-1979) foram desunidos ou hesitantes
determinadas indústrias, investimentos do em questões importantes, começando pelo
governo em setores privados, parceira entre valor de câmbio da libra, que Wilson defen-
trabalho e capital, e taxação progressiva. Em deu obstinadamente, mas ao final, em vão,
termos gerais, a meta era o crescimento para contra vários de seus colegas de gabinete.
sustentar as obrigações básicas do Estado e, (Uma moeda supervalorizada – uma forma
além disso, o cumprimento de aspirações de machismo financeiro – era uma doença
sociais do pós-guerra: estabilidade financei- recorrente na economia britânica duran-
ra e paz industrial, emprego sem inflação. te grande parte do século). O gabinete de
Mas ela não conseguia controlar a inflação Wilson ficou dividido também com relação
e os níveis salariais, e a ênfase no crescimen- ao governo da Irlanda do Norte, à transfe-
to estimulava o financiamento imprudente. rência de poderes para a Escócia e o País
Após o desastre de Suez em 1956-1957, as de Gales, à participação na UE, às relações
principais preocupações dos governos de industriais e políticas salariais e à gestão
Harold Macmillan eram estrangeiras: a re- monetária diante de inflação mundial e do
cuperação da derrota, a reparação da aliança crescente desemprego doméstico. No que
com os Estados Unidos, a descolonização na tange às relações trabalhistas, um eufuísmo
África e as relações com a CEE. às vezes para conter o poder dos sindicatos
Nas questões domésticas, esses anos e às vezes para manter os salários baixos,
foram descritos, de forma pouco amável, Wilson recuou quando ficou claro que ar-
como desperdício de tempo. Os sucessivos riscava dividir seu partido. Um resultado
governos trabalhistas deram passos experi- dessa compreensível pusilanimidade foi
mentais para apertar a política monetária, fortalecer os dissidentes de esquerda contra
mas perderam o cargo para os conserva- os mais cautelosos tradicionalistas sindi-
dores em 1970, que, com Edward Heath e cais. Em 1976, uma crise financeira impre-
Anthony Barber como primeiro-ministro e vista obrigou o governo Callaghan a buscar
chanceler do Exchequer, geraram um surto um empréstimo no FMI para firmar o va-
de crescimento que, no entanto, era espe- lor da moeda. A libra caiu de 2,40 dólares
culativo, desviando lucros e poupança em para 1,70; a taxa bancária subiu a 15% e as
jogos de curto prazo e aumentando ainda reservas caíram a um valor alarmantemen-
mais os salários. te baixo; as despesas do governo passaram
As tentativas de estabelecer restrições de 45% do PIB. As implicações disso para o
salariais voluntárias ou semivoluntárias padrão de vida e o balanço de pagamentos
foram progressivamente ineficazes e cul- causaram uma espécie de pânico. O recurso
186 | PETER CALVOCORESSI

ao FMI era considerado vergonhoso, mas ção pós-guerra, era descendente do Império
fortaleceu a posição do chanceler do Exche- Britânico e um acidente histórico. A disso-
quer Denis Healey – que esteve quase que lução do domínio britânico na Ásia, África
isolado no gabinete por um tempo – e lhe e no Caribe começou com uma retirada da
possibilitou impor a seus colegas e ao país Índia e da Birmânia (Mianmar) em 1947-
medidas deflacionárias que muitos de seus 1948, um passo há muito vislumbrado, mas
antecessores tinham evitado. Nenhuma não programado com precisão antes do final
parte do crédito disponibilizado pelo FMI da guerra. Essa ação dramática teve conse-
(3 bilhões de dólares entre 1977 e 1979) foi quências inesperadamente precipitadas em
realmente usada. Esses rumos monetários todo o império colonial, que (com exceção
mais estritos adotados pelo governo e a da Rodésia) foi abandonado de bom grado
perspectiva de lucros não previstos do pe- e sem espalhafato nos 20 anos que se se-
tróleo do Mar do Norte amenizaram o cli- guiram. Mas a Comunidade que surgia não
ma na economia, mas o governo trabalhista era um centro de poder, e menos ainda um
não sobreviveu o suficiente para aproveitar instrumento para o exercício do poder bri-
os benefícios desse tempestuoso episódio. tânico. Sua sede estava em Londres, mas as
Com a inflação em 10% e subindo – inferior reuniões de seus chefes políticos deixavam a
ao que havia sido, mas ainda assim preocu- Grã-Bretanha em minoria – nos tempos de
pante no contexto de uma perda geral da Thatcher, uma minoria de um –, e, embora
confiança na maneira com que o governo a Comunidade desse à Grã-Bretanha conta-
lidaria com as relações trabalhistas –, o elei- tos e oportunidades especiais, não reforçava
torado optou por uma nova proposta. seu poder no mundo. Depois da transferên-
Os desconfortos da Grã-Bretanha não cia de Hong Kong em 1997, a Grã-Bretanha
se limitavam aos domésticos e econômicos. ainda tinha 16 colônias ou territórios de-
O país estava incômodo com sua posição no pendentes, a maioria deles muito pequena e
mundo e incerto com relação a que parte apenas alguns – Gibraltar, as Ilhas Falkland
dele pertencia. – representavam problemas políticos. A Co-
Tendo perdido suas possessões conti- munidade foi transformada, de um saco de
nentais próximo ao final da Idade Média, os gatos histórico em uma organização inter-
britânicos exaltavam sua situação de ilha e nacional da qual países sem qualquer cone-
a fortaleceram com a secessão protestante xão britânica desejavam participar porque
e seu gosto pela navegação. Consequente- dava a vantagem do companheirismo sem
mente, lutaram menos contra outras potên- a mancha do fracasso que prejudicava orga-
cias europeias do que os europeus lutaram nismos mais destacados.
entre si, mas esse traço amigável era mais A relação especial da Grã-Bretanha
de recusa do que pacífico, e a sensação de com os Estados Unidos era uma realidade,
distância – nem sempre distinguível de uma mas não dava àquela aquilo que ela pensa-
sensação de superioridade – estava longe da va estar recebendo. (A única relação verda-
extinção no século XX. Em 1945, a visão a deiramente especial de Washington se dava
partir da ilha se concentrava mais facilmen- com Israel.) Antes da guerra, as relações an-
te na Comunidade Britânica e nos Estados glo-americanas iam de mal a pior. Durante
Unidos do que na Europa. o confito, elas foram excelentes, mas a ex-
A Commonwealth, originalmente Bri- celência se deveu à crise e a personalidades:
tish Commonwealth, ou Comunidade Bri- o que havia de especial na relação durante
tânica, mas rebatizada à luz da descoloniza- esse período foi a colaboração íntima entre
POLÍTICA MUNDIAL | 187

Churchill e Roosevelt. Depois da guerra, não entrou para a Comunidade Europeia


muitos amigos e canais dessa época persis- do Carvão e do Aço (o Plano Schuman)
tiram, facilitados por um idioma comum e que continha em sua Autoridade Superior
por experiências e ideais compartilhados, uma semente de supranacionalismo. A se-
mas ressurgiram velhas divergências – co- guir, propôs uma Comunidade de Defesa
merciais e imperiais –, e as tentativas de concebida em um momento de desespero
primeiros-ministros britânicos, em visitas e que nunca chegou a existir. Macmillan foi
à casa Branca ou em telefonemas, de cum- o primeiro ocupante do cargo de primeiro-
prir o papel de Churchill degeneraram em -ministro a se envolver com a CEE, como
troca de favores e elogios. A relação espe- era conhecida nesse momento. Ele se di-
cial desviou a atenção britânica dos desdo- vidia em relação a isso, uma tendência à
bramentos políticos na Europa continental fanfarronice romântica interferia em sua
e deu aos continentais – particularmente a inteligência racional. Wilson também es-
França – razões para barrar a Grã-Bretanha tava dividido e não sabia como solucionar
na Comunidade Europeia. isso; ele foi conquistado aos poucos pelos
As atitudes britânicas em relação à argumentos econômicos em favor de en-
Europa eram essencialmente dispersas. A trar para a CEE, mas não agiu a partir de
Grã-Bretanha se manteve ausente da Euro- suas conclusões por medo de dividir seu
pa por tanto tempo que os britânicos não partido. Heath, embora fosse mais decidi-
enxergavam o que estava acontecendo ali e do e pragmático, também foi prejudicado
não foram informados por seus líderes, que por conflitos partidários e por uma inca-
tampouco viam. Eles se limitavam a assinar pacidade de informar e instruir a opinião
ou não acordos, em qualquer dos casos, com pública. Ele sabia o que estava por fazer,
a ideia de que não eram muito importantes. mas deu um jeito de fazê-lo com pouca
Com a União Europeia cada vez mais intensidade, mais uma questão de necessi-
concretizada, os britânicos continuavam ig- dade do que de oportunidade para a Grã-
norando ou apáticos, à medida que seus lí- -Bretanha. Callaghan, como major muitos
deres se esquivavam do debate aberto sobre anos depois, considerava os europeus con-
seus objetivos e suas implicações para a Grã- tinentais como pessoas que viviam em um
-Bretanha. Consequentemente, os precon- mundo diferente e menos sadio. Thatcher
ceitos e dogmas cumpriam um papel depri- era muito mais vigorosa do que seus an-
mentemente ignóbil em uma transformação tecessores, mas estranhamente incoerente
política tão importante e impressionante e, por fim, desastrosa. Ela assinou um dos
quanto qualquer outra em dois séculos de grandes passos para a evolução da UE – o
história britânica. Até mesmo os defensores Ato Único Europeu de 1985 – mas depois
de vínculos institucionalizados mais estrei- deixou que seus preconceitos se tornassem
tos com a Europa continuaram, por anos, a uma obsessão que justificava que ela igno-
acreditar que poderiam construir um tipo rasse seu gabinete, demolindo seu partido e
de associação que nunca esteve disponível. pondo fim a seu notável reinado.
Jamais se colocou em dúvida que a Quando se tornou primeira-ministra
Grã-Bretanha deveria fazer parte da OCEE em 1979, Margaret Thatcher foi a primeira
(o Plano Marshall). O país juntou-se a ela mulher a ocupar esse cargo, o qual desem-
imediatamente, mas também garantiu que penhou com domínio excepcional e por
ela deveria ser uma associação de Estados mais tempo do que qualquer outra pessoa
soberanos e nada mais. A Grã-Bretanha no século. Era determinada, vigorosa e es-
188 | PETER CALVOCORESSI

forçada – talvez a pessoa mais esforçada no dependentemente do que se pense de seus


cargo desde William Pitt, mas não a mais méritos ou de sua condução, deu ao governo
inteligente. Ela foi prejudicada pelo fracas- altas somas que foram creditadas em conta
so de seus antecessores em compreender os corrente e possibilitaram orçamentos iluso-
problemas econômicos de longo prazo, por riamente equilibrados. Ela controlou a infla-
entender pouco o clima popular e pela má ção, mas, ao mesmo tempo, alimentou uma
escolha de colegas de gabinete. Era delibera- explosão de crédito e um surto de consumo.
damente desagregadora e rude. Expressava A libra foi mantida em um valor elevado,
desprezo pelo consenso e desconsideração com altas taxas de juros concomitantes, que
por governos locais e manipulava o siste- sufocaram a indústria, extinguiram em-
ma de gabinete de governo para interrom- presas viáveis junto com as que mereciam
per discussões e suprimir as discordâncias. estar moribundas, reduziram a produção
Diferentemente de Winston Churchill, a industrial em um terço e assim diminuí-
quem ela invocava com frequência, não foi ram a base fiscal, tornaram a Grã-Bretanha
uma parlamentar vigorosa, com exceção incapaz de financiar sua própria educação
de seu domínio dos truques para lidar com pública e seus serviços sociais e elevaram
as perguntas dos membros da Câmara dos o desemprego a níveis não previstos pelo
Comuns. Suas receitas econômicas eram próprio governo. Nos anos Thatcher, uma
caricaturas cruas de doutrinas monetárias, nação de poupadores se tornou uma nação
nenhuma de suas metas monetárias foi de jogadores. A dívida interna privada tri-
cumprida, nem ela foi capaz de cumprir a plicou, as dívidas hipotecárias quadrupli-
promessa de reduzir as despesas de governo caram e a poupança pessoal – um elemento
em relação ao PIB; suas políticas foram reti- importante e distintivo na economia britâ-
radas de cena de forma rápida e silenciosa. nica – afundou de 16% da renda nacional a
Suas contribuições mais duradouras às algo próximo de zero. Houve um retorno à
questões públicas foram os golpes que ela pobreza generalizada que, embora causasse
deu em dois establishments inchados. Ela muito menos problemas do que a da gran-
relembrou líderes sindicais, cujo poder exa- de depressão entreguerras, foi sentida do-
gerou em muito (como o líder dos mineiros lorosamente e ficou evidente e refletida em
Arthur Scargill), que seu movimento se be- uma série de estatísticas eloquentes, como
neficiaria definindo suas questões de forma os processos por mendicância ou vadiagem,
mais limitada e as conduzindo com menos que subiram a 4 mil por semana. Ao cortar o
violência. Ela facilitou para que figuras de controle sobre créditos e impostos, Thatcher
segunda ordem nas finanças e na indústria estimulou a especulação, incentivou o país a
fossem removidas, embora muitas vezes, viver além de seus meios e criou demandas
com altos custos; e, ao estimular a livre mo- sobre a economia que só podiam ser aten-
vimentação de dinheiro, apressou o eclipse didas por importações que prejudicavam o
do papel internacional que a libra cumpria balanço de pagamentos. Grandes quantida-
há tanto tempo. des de dinheiro foram emprestadas a espe-
Thatcher subiu ao poder em uma reces- culadores e perdidas.
são e saiu em outra. Ela teve, mas desper- O talento de Thatcher era para o comba-
diçou, duas vantagens incomuns: o lucro do te. Ela pertencia emocionalmente à tendên-
petróleo do Mar do Norte, que atingiu seu cia xenofóbica no Partido Conservador (ha-
ápice na década de 1980, e os rendimentos via um equivalente significativo, ainda que
de seu programa de privatização que, in- menos estridente, na esquerda), foi aplau-
POLÍTICA MUNDIAL | 189

dida por sua resposta à tomada das Ilhas os conservadores estavam divididos em
Falkland [ou Malvinas] pela Argentina e seu uma facção, e leal às atitudes thatcheristas,
triunfo a incentivou a tomar atitudes de des- outra, disposta a seguir Major na reivindi-
dém glorioso por todos, com exceção dos cação de um papel construtivo para a Grã-
Estados Unidos. Ela passou a atacar o poder -Bretanha nas questões europeias, e uma
sindical como um todo, mas foi frustrada terceira, tão preocupada com criticar a CEE
quando tentou lidar da mesma maneira com quanto entender seu funcionamento. Major
questões externas e da Commonwealth. Sob foi prejudicado por assumir o cargo em um
seu comando, as relações com a UE foram momento em que as receitas originárias do
condicionadas por antipatia inata com re- petróleo, que haviam ocultado os truques
lação aos estrangeiros, má compreensão de orçamentários de Thatcher, estavam em de-
questões externas e hostilidade dogmática clínio e forçavam o governo a elevar impos-
a qualquer coisa que fosse além da coope- tos, em vez de cortá-los, para evitar um nível
ração mínima com a Commonwealth e um arriscado de empréstimos públicos e manter
mínimo abandono da soberania formal. Ela serviços públicos pelo menos adequados. A
perdeu o poder subitamente quando meta- vitória conservadora de 1992 foi seguida de
de dos membros conservadores da Câmara recuperação econômica, que gerou cresci-
dos Comuns se revoltou contra seu estilo mento de cerca de 4%, mas também deixou
de governo, seu desdém pelos colegas, sua visível a armadilha criada pela política dos
atitude arrogante em relação à Constituição anos de 1980. Com a produção industrial
(particularmente sua manipulação do sis- ainda inadequada, o crescimento estimulava
tema de gabinete), as divergências dentro as importações para atender a um poder de
de sua administração com relação à CEE e compra crescente, mas assim, ameaçava o
sua obsessão com uma questão – a unidade balanço de pagamentos e o valor da moeda e
europeia – que não era o primeiro interes- obrigava o governo a elevar as taxas de juros
se do eleitorado, acumulando dificuldades (para o desalento dos industriais) com vis-
econômicas, e, acima de tudo, a perspectiva tas a restringir o crescimento, que, mesmo
de perder suas cadeiras na eleição geral que assim, ele buscava com determinação. Nas
se aproximava se ela continuasse como líder. questões externas, a Grã-Bretanha era um
Thatcher foi sucedida por John Major, país lutando em desvantagem com proble-
cuja aparente modéstia e falta de qualifi- mas de grande porte – grandes na Irlanda
cação pareciam recomendáveis, diante do do Norte e na União Europeia e menores em
desempenho de Thatcher, e que teve uma Hong Kong.
vitória inesperada nas eleições de 1992. Ma- Thatcher deu um argumento político
jor tinha uma convicção tenaz de que, com para a xenofobia que não acontecia desde
a concretização da UE e sem a alternativa de a geração dos Tories, que se dedicavam a
uma área de livre comércio, a Grã-Bretanha odiar os hanoverianos. A oposição britânica
precisava cumprir um papel de liderança à CEE era emocional, irracional, mal infor-
no centro da CEE em lugar de atacá-la dos mada e, ainda assim, popular em um quadro
flancos, mas a transição de Thatcher não de decepção ressentida. Por mais convenci-
deu liberdade de ação ao primeiro-ministro. do que pudesse estar da inevitabilidade de
A própria Thatcher, magoada por ter sido um compromisso britânico para com a
retirada do cargo por seu próprio partido, CEE, Major não foi capaz de sair nem de
tornou-se um foco rancoroso de desunião tirar seu partido do buraco cavado por Tha-
dentro dele. Na nova Câmara dos Comuns, tcher, que colocava em risco, com sua iras-
190 | PETER CALVOCORESSI

cibilidade, o título de Londres como capital te fundamental, na Grã-Bretanha como em


financeira da Europa. Thatcher chegou ao outros lugares, residiria no aumento ou na
poder como líder do Partido Conservador, queda do desemprego – o ponto de conflito
mas, em espírito, era líder de uma ala direita dos imperativos econômicos e sociais.
dentro dele. No início do século XX, a Grã- Tony Blair era um político articulado
-Bretanha tinha recuado daquilo que Lorde e inteligente com um programa impressio-
Salisbury chamou, em 1885, de “o abismo nante de reformas domésticas. Ele dominou
do isolamento”, mas nunca (em tempos de a política britânica por uma década, mas foi
paz) passou da substituição desse isolamen- derrotado por um grande erro de cálculo
to pela ambiguidade. A minoria thatcherista que o forçou a renunciar em 2007. Blair es-
no Partido Conservador ansiava pela inde- tava convencido da necessidade de acordo e
pendência sem limites que havia desapare- cooperação entre Europa e Estados Unidos
cido em torno de 1900, quando conservado- e da convicção nem tão completa de mui-
res como Balfour e Lansdowne entenderam tos europeus continentais nessa questão. Ele
que, nem política nem economicamente, ela achava que a Grã-Bretanha tinha um papel
era sensata ou segura. singular como ponte entre as duas meta-
O período pós-thatcherista foi curto. A des do que tinha sido a aliança da OTAN,
vitória surpreendente de Major em 1992 foi dedicou-se a cumprir esse papel, mas teve o
seguida, cinco anos depois, pela mais de- azar de coincidir no cargo em Londres com
vastadora derrota conservadora na história George W. Bush em Washington, e desco-
britânica. O partido perdeu todas as cadei- briu que, seus esforços dando mais frutos
ras na Escócia e no País de Gales e conquis- em cordialidade do que em substância, sua
tou apenas 164 na Inglaterra, e a renúncia influência sobre Bush na crise crucial do
imediata de Major da liderança precipitou Iraque não era suficiente. Em particular, sua
uma competição que expôs e amargou ain- insistência na necessidade de um claro man-
da mais as divergências externas. O Partido dato da ONU para ação militar contra o Ira-
Trabalhista, liderado por Tony Blair, assu- que sem uma resolução clara do Conselho
miu o poder com uma maioria esmagadora. de Segurança foi desconsiderada.
O partido vitorioso chamou a si mesmo de
Novo Trabalhismo, o que, psicologia tática
à parte – significava que estava mais incli- União Europeia (Oeste)
nado do que antes a aceitar o capitalismo,
em vez de estigmatizá-lo, e, ainda assim, A União Europeia foi criada com dois pro-
pretendia aplicar princípios de igualdade e pósitos fundamentais: encontrar uma solu-
serviços públicos com mais responsabilida- ção para o problema da Alemanha na Eu-
de e energia do que os conservadores. Essas ropa e tornar seus membros mais ricos e
metas eram contraditórias e, na busca de di- mais influentes no mundo como parceiros
recioná-las em sintonia, o novo governo deu do que eles poderiam ser como Estados se-
ênfase à primeira, como precondição às ou- parados. No pano de fundo dessas metas,
tras. Blair, buscando o mais amplo consenso está a história da Europa como criadora do
onde Thatcher tinha ridicularizado essa pa- Estado soberano e o lugar de seus exemplos
lavra, cortejava o apoio popular para recon- de maior êxito. O principal obstáculo ao de-
ciliar de forma igualitária os incompatíveis e senvolvimento de uma união europeia era
considerar a política como um empreendi- a força psicológica e institucional arraigada
mento pragmático e não dogmático. O tes- do nacionalismo.
POLÍTICA MUNDIAL | 191

Desde a época de Bismarck até a de Hi- te mais enfática do que a da França – ou por
tler, com breves intervalos, a Alemanha foi isso mesmo – não percebeu a vantagem eco-
o Estado temido pela maioria dos europeus. nômica nem o cálculo político por trás dos
Em um sistema de Estados europeu, o ale- movimentos em direção a uma parceira que
mão era inevitavelmente o mais poderoso, pudesse tornar os Estados soberanos menos
pois, mesmo derrotado duas vezes na guerra soberanos. As atitudes britânicas foram par-
e podendo ser contido no pós-guerra ime- cialmente revertidas nas décadas de 1960 e
diato, seus recursos e habilidades garantiam de 1970, quando governos de direita e de es-
seu ressurgimento. querda passaram a temer as consequências
Além disso, embora pudessem temê-la, da exclusão de uma associação econômica
seus vizinhos dependiam de uma Alemanha europeia. Mas, nos anos de 1980, Thatcher
próspera para sua própria prosperidade. personificou e inflou a aversão atávica bri-
Mesmo depois do final da Segunda Guerra tânica à associação política, com o resulta-
Mundial, uns poucos europeus, principal- do de que a Grã-Bretanha caiu no papel de
mente holandeses e belgas, enfrentando esse membro insatisfeito, até mesmo subversivo,
dilema de conciliar sua dependência econô- da Comunidade Europeia, cujo desenvol-
mica em relação à recuperação alemã com vimento foi prejudicado e não fortalecido
seu medo da força militar do país, vislum- quando o país se juntou a ela.
bravam uma nova ordem europeia na qual No continente, o prestígio do Estado-
o Estado-Nação soberano não seria mais -Nação foi desgastado durante a guerra. Os
fundamental. Enquanto o sistema de Esta- governos nacionais foram incapazes de im-
dos, por sua própria natureza, incentivava pedir que Estados-Nação fossem atacados
a agressividade nacional, em uma parceria, ou que seus cidadãos fossem mortos, tor-
cada nação – incluindo a alemã – poderia turados ou escravizados. Na Grã-Bretanha,
desenvolver seus próprios recursos, preser- contudo, as instituições do Estado não fo-
var sua identidade e cultivar seu orgulho em ram diminuídas, permanecendo intactas e
um contexto que levasse mais à cooperação funcionando com eficiência e imparcialida-
do que à agressão. A opinião nos países mais de notáveis. Aos olhos dos britânicos, a se-
poderosos – França, Grã-Bretanha – não paração do continente pelo Canal da Man-
simpatizava com qualquer coisa que restrin- cha continuava axiomática. Os britânicos
gisse tanto a soberania e a independência estavam desinteressados em dar a liderança
formais, mas, passados alguns anos do fim a essa forte e mais permanente associação
da guerra, os líderes franceses se converte- que a Grã-Bretanha, de forma única em
ram às ideias de uma associação da Europa 1945, teve força e prestígio para oferecer. Os
Ocidental que, nas questões econômicas, britânicos ainda se consideravam uma po-
maximizaria o comércio e a produção e, po- tência marítima e uma potência mundial,
liticamente, limitaria o poder predominante apenas perifericamente europeus, e não
da Alemanha e redirecionaria suas ambi- concebiam serem menos do que soberanos.
ções. A França abandonou a política, cogi- Por dois séculos e meio, a Grã-Bretanha não
tada em 1945 e 1919, de enfraquecer a Ale- teve fronteiras terrestres, já que até mesmo
manha, de dividi-la e desarmá-la, em favor seus problemas na Irlanda estavam no além-
de uma política de apoio e participação na -mar. Suas principais preocupações eram a
recuperação do país. A Grã-Bretanha, por liberdade do mar, os movimentos comer-
outro lado, embora sua própria recuperação ciais e a paz. Os primeiros dois objetivos
econômica da guerra tenha sido inicialmen- ela buscava mantendo uma liderança naval
192 | PETER CALVOCORESSI

sobre a força combinada de todas as outras destruídos e decepcionados, estavam em


potências navais importantes e garantindo, busca de um novo começo e não da res-
até onde fosse possível, que as nações euro- tauração de uma ordem antiga que tinha
peias que dominavam o mundo incluíssem fracassado. As atitudes de britânicos e eu-
uma série de potências terrestres de primei- ropeus continentais em relação ao passado
ra linha, mas apenas uma grande potência eram completamente diferentes, e aqueles
naval. Nesse contexto, o continente europeu que esperavam que os britânicos tivessem
era um lugar onde se aplicavam princípios simpatias por experimentos políticos radi-
negativos: não se deveria permitir que dis- cais na Europa estavam se esquecendo não
traísse nem ameaçasse a Grã-Bretanha e não apenas do desenvolvimento histórico sepa-
deveria cair no domínio de alguma de suas rado do país, mas também de sua psicologia
principais potências terrestres. pós-guerra, da intenção de reparar e melho-
A diplomacia britânica foi direcionada rar a estrutura da vida britânica, mas não
à manutenção de um equilíbrio e a impedir alterá-la nem questioná-la.
uma hegemonia na Europa. Se essa diplo- O advento de um governo trabalhista na
macia fracassasse, as armas britânicas te- Grã-Bretanha, em 1945, deveria ter revelado
riam de assumir a tarefa que, embora nega- a diferença, pois o Partido Trabalhista, em-
tiva em um certo sentido, também era vital bora defensor de reformas, não era menos
para os interesses do país que se desenvol- tradicionalista do que o dos conservadores.
veram desde que os Tudors estabeleceram Ele consistia em radicais pragmáticos e so-
os alicerces de um tipo de poder britânico cialistas que queriam tornar a vida mais feliz
totalmente diferente do imperialismo con- para as classes mais baixas ao continuar a
tinental dos Plantagenetas. Sendo assim, os adaptação gradual e não revolucionária da
britânicos desenvolveram um estado de es- estrutura social da Grã-Bretanha às noções
pírito que não fazia distinção entre o próxi- modernas de justiça social. O partido não
mo e o distante. Os geógrafos poderiam fa- tinha qualquer intenção de virar o jogo na
lar de “Extremo” Oriente e medir a distância Grã-Bretanha nem muito interesse em in-
até a Índia em milhares de quilômetros, mas verter o jogo. Era uma administração esfor-
para muitos ingleses, Délhi ou Cingapura e çada que se mantinha na via intermediária e
Hong Kong não estavam psicologicamente que estava tentando, em circunstâncias eco-
mais distantes do que Calais; eram mais co- nômicas excepcionalmente difíceis (agrava-
nhecidas e, é claro, mais britânicas. das pelo fim do Lend-Lease e pela insistên-
Em 1945, a desatenção inata da Grã- cia dos Estados Unidos na convertibilidade
-Bretanha às questões europeias foi au- prematura da libra), restaurar a economia
mentada pelos destinos da guerra e pela britânica e reformar a sociedade, e não que-
perspectiva da paz. Durante a guerra, todos ria ser desviada dessas tarefas por enredos
os combatentes europeus do continente, estrangeiros nos quais não havia muitas
incluindo a URSS, foram superados e, em vantagens. O continente estava caótico e
algum momento, derrotados, ou quase. A empobrecido e, como mostrou a transferên-
Grã-Bretanha sofreu pressões terríveis e foi cia dos compromissos britânicos na Grécia
bombardeada pelo ar, mas não foi invadida, e na Turquia para os Estados Unidos, teria
ocupada nem derrotada. Suas vitórias justi- mais condições de lutar para sair de seus
ficavam seu direito de seguir como antes, já problemas com a ajuda norte-americana do
que é prerrogativa de um vitorioso manter que com a britânica. Além disso, os novos
seu passado, enquanto vizinhos europeus, líderes na Europa eram (além de estrangei-
POLÍTICA MUNDIAL | 193

ISLÂNDIA

Reiquejavique

NDIA
IA

FINLÂ
ÉC
A

SU
EG
Helsinque

RU
Oslo

NO
Estocolmo ESTÔNIA
IRLANDA DINAMARCA
LETÔNIA
REINO
Dublin
UNIDO Copenhague LITUÂNIA

Londres BIELORÚSSIA
HOLANDA
Haia Berlim
POLÔNIA
Bruxelas
ALEMANHA
Paris
BÉLGICA
REPÚBLICA UCRÂNIA
LUXEMBURGO TCHECA
REPÚBLICA
FRANÇA Berna Viena ESLOVACA

SUÍÇA ÁUSTRIA
HUNGRIA
ESLOVÊNIA ROMÊNIA
CROÁCIA BÓSNIA
PORTUGAL
IT

Madri
SÉRVIA BULGÁRIA
ÁL

Lisboa CÓRSEGA
IA

ESPANHA M MACEDÔNIA
Roma
A
ILHAS BALEARES
SARDENHA GRÉCIA

SICÍLIA Atenas

MALTA

Membros fundadores da UE em 1957: CRETA


Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Alemanha Ocidental, França e Itália.
Outros membros da UE com data de adesão entre parênteses:
Reino Unido, Irlanda e Dinamarca (1973), Grécia (1981), Espanha e Portugal (1986), Áustria,
Suécia e Finlândia (1995), Chipre (não aparece no mapa), República Tcheca, Estônia, Hungria,
Letônia, Lituânia, Malta, República Eslovaca, Eslovênia (2004), Bulgária e Romênia (2007).

0 200 400 km
M = Montenegro
A = Albânia 0 150 300 milhas

Figura 5.1 Crescimento da União Europeia.


194 | PETER CALVOCORESSI

ros), na maioria, conservadores e católicos – meta de atrair o Novo Mundo para criar um
adversários, era uma convicção equivocada, equilíbrio na Europa. Além disso, a postu-
de economias planejadas, parceiros incômo- ra hostil em relação aos Estados Unidos na
dos para os socialistas britânicos. Grã-Bretanha, ou prudente diante de sua
À medida que foram atraídos pelas preponderância, não vinha dos federalistas
ideias federalistas, esses líderes foram con- europeus, em sua maior parte. Se havia um
siderados como utópicos com pouco senso setor na Grã-Bretanha pensando em termos
prático. Para os britânicos, o Estado-Nação de “terceira força” nas questões mundiais,
era um desses pedaços do passado que pra- essa força era concebida nesse momento
ticamente ninguém questionava. O fato de como algo oriundo da Commonwealth em
que esse Estado veio a existir por meio de lugar de provindo de uma Europa unida. A
uma série de acordos federais era ampla- Commonwealth, junto com as armas nu-
mente ignorado. cleares e a libra esterlina como moeda in-
Winston Churchill disse aos britânicos ternacional, manteria a Grã-Bretanha como
durante a guerra que eles haviam opera- uma categoria separada.
do em três círculos – o anglo-americano, o A mudança de espírito na Grã-Bretanha
imperial britânico e o europeu – e que esse só começou uns 10 ou 15 anos depois do fi-
caráter triangular deu à Grã-Bretanha opor- nal da guerra, e, mesmo assim, manifestava-
tunidades especiais e uma posição única -se de forma mais vacilante do que a revolu-
no mundo. Até Harold Macmillan solicitar ção comparável no pensamento continental
a participação na Comunidade Econômica que foi imposta pelas derrotas na guerra. A
Europeia em 1961, o círculo europeu era o Grã-Bretanha continuava a se considerar
que parecia oferecer menos à Grã-Bretanha. uma potência mundial, ainda que não mais
O mais importante era o anglo-americano. imperial – uma substituição de adjetivo pou-
A Grã-Bretanha, ou, de qualquer forma, co importante. Uma das consequências mais
Ernest Bevin, que se tornou ministro do impressionantes da guerra foi a saída britâ-
exterior em 1945, considerava que a conso- nica da Índia em 1947 (seguida mais rapida-
lidação da Europa sob a égide de uma úni- mente do que o esperado por sua saída da
ca potência não poderia mais ser impedida África), mas essa renúncia ao império acon-
somente pela diplomacia ou pelas armas teceu em uma atmosfera de autocongratula-
britânicas, e, para que esse bicho-papão da ção tal que a perda de poder que veio com
política externa britânica fosse evitado, os ela foi desconsiderada. A perda da Índia foi
Estados Unidos deveriam ser transforma- considerada uma vitória do bom senso bri-
dos em potência europeia. A OTAN era o tânico, mas não uma redução do poderio
sinal externo e visível desse sucesso, mas os britânico. Por gerações, a Grã-Bretanha foi
empreendimentos para criar um viés anglo- uma potência mundial porque possuía, na
-americano nas questões europeias no lugar Ásia, uma área onde poderia manter, trei-
do poder britânico de intervir e retificar, nar e aclimatar exércitos para uso em partes
que havia se esgotado, fez com que ele ficas- distantes do planeta, e essa reserva de poder
se desconfiado em relação aos federalistas era, no mínimo, tão importante quanto o co-
continentais que poderiam estar ansiosos mando dos mares para fazer da Grã-Breta-
por uma potência europeia independente nha o que ela era no mundo.
com a exclusão dos norte-americanos. Suas A saída da Índia, juntamente com a per-
políticas eram, na melhor das hipóteses, ir- da de riqueza e força durante a guerra, re-
relevantes, possivelmente prejudiciais, à sua duziu sua força no Oriente Médio e fez com
POLÍTICA MUNDIAL | 195

que a Austrália e a Nova Zelândia recorres- acusados – uma acusação digna de crédi-
sem aos Estados Unidos para sua segurança. to – de fazer vista grossa aos rebeldes por-
A Grã-Bretanha não era integrante do tri- que eles eram brancos, e, em casa, o mesmo
partite Pacto Anzus de 1951, que confirmou governo se expôs a acusações ainda mais
essa lição da Segunda Guerra Mundial e foi graves. Em 1963, a Grã-Bretanha deu aos
uma das alianças mais igualitárias do mun- asiáticos no Quênia o direito de optar pela
do até os anos de 1980, quando o retorno cidadania britânica, o que muitos aceitaram.
dos governos trabalhistas antinucleares na Em 1968, o elemento mais importante desse
Austrália e na Nova Zelândia criou dificul- direito – o de entrar na Grã-Bretanha – foi
dades para os exercícios navais. Em 1984, a cancelado sumariamente por um governo
Nova Zelândia baniu de seus portos todas as que, ignorando os verdadeiros fatos e núme-
embarcações movidas por energia nuclear ros da imigração coloured, deixou-se entrar
ou que portassem armas nucleares. em pânico e bateu a porta na cara de alguns
No entanto, a Grã-Bretanha não tirou de seus próprios concidadãos. Esse ato sem
a conclusão de que o fim do império e dos precedentes, baseado no preconceito de cor
compromissos de defesa na Ásia, África e de parte da sociedade britânica e na discri-
Austrália a tinham convertido em um Es- minação racial por parte do governo, deixou
tado basicamente europeu. O império foi sem sentido o ideal da Commonwealth – e
substituído pela Commonwealth, um con- posteriormente foi questionado e condena-
ceito mais enaltecedor, mas de menos subs- do pelo Conselho da Europa. Mesmo que a
tância, já que carecia dos vínculos de lealda- Grã-Bretanha considerasse a Commonwe-
de do império para com a Coroa Britânica, alth como fonte de força política, seus go-
de um governo de uma classe dominante vernantes, a partir dos anos de 1960, a viam
cujos membros se consideravam todos se- tanto como um constrangimento quanto
melhantes, de compreensão mútua por como um apoio.
meio de uma troca pródiga de telegramas Grupos de pressão extraoficiais em fa-
secretos e de um compromisso britânico vor de uma União Europeia foram incenti-
com a defesa de todos os seus territórios. A vados, principalmente por Churchill, que
Commonwealth se tornou uma associação mais de uma vez durante a guerra falara
de monarquias e repúblicas de tradições e sobre a necessidade de haver unidade eu-
inclinações muito diferentes, demandando, ropeia e defendera um Conselho da Europa
acima de tudo, capital para o desenvolvi- em um famoso discurso em Zurique, em se-
mento, que a Grã-Bretanha não poderia for- tembro de 1945. Esses grupos organizaram
necer, e aplicando políticas externas inde- uma convenção em Haia, em maio de 1948,
pendentes e até mesmo contraditórias com que foi realizada com o apoio de muitas
base em que essa amplitude permissiva era das principais figuras europeias, incluindo
um preço necessário para a associação con- Churchill, e que conseguiu convencer as
tinuada com o que ainda valesse a pena. E cinco potências de Bruxelas a estabelecer
assim talvez o fosse, já que a Commonweal- um conselho da Europa que consistia ini-
th se revelou uma organização internacional cialmente nelas próprias e na Noruega, Di-
que funcionava até certo ponto, mas conti- namarca, Irlanda e Itália – às quais se soma-
nha conflitos raciais que representavam tes- ram em pouco tempo a Islândia, a Grécia, a
tes de capacidade de governo que os gover- Turquia, a Alemanha Ocidental e a Áustria.
nos britânicos dessa época não conseguiram Os membros deveriam respeitar o Es-
superar. Na Rodésia, os britânicos foram tado de Direito e os direitos humanos fun-
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damentais. A Constituição era um híbrido, europeu. Já se discutiu se a Grã-Bretanha


uma assembleia sem poderes legislativos, se recusou a entrar para a CECA ou se a
semelhante a um comitê de ministros. Os França tornou isso impossível, uma visão
membros da assembleia eram indicados por não exclui a outra. Em abril de 1951, seis
parlamentos nacionais, na prática, segundo países (França, Alemanha Ocidental, os
a representação partidária em cada parla- três do Benelux e a Itália) assinaram um
mento. O comitê de ministros, que foi in- tratado fundando a CECA, que passou a
cluído na Constituição por insistência bri- existir no ano seguinte. Ela consistia em
tânica e escandinava contra os desejos mais uma Autoridade Superior de nove indi-
federalistas de outros membros, garantia víduos atuando a partir de votações por
que qualquer autoridade que o Conselho da maioria, com poder para tomar decisões,
Europa pudesse exercer deveria estar sujei- fazer recomendações, taxar empresas,
ta ao controle de ministros nacionais, que aplicar multas e controlar de forma geral a
responderiam aos parlamentos nacionais. produção e o investimento nos seis países;
A assembleia nunca adquiriu qualquer au- um tribunal de justiça com poderes para
toridade real, e, no final de 1951, seu pre- decidir sobre a validade das decisões e as
sidente Henri Spaak renunciou por falta de recomendações da Autoridade; em um
esperanças. conselho de ministros, e uma assembleia
Mas outra iniciativa mais substancial com mandato para censurar a Autoridade
estava em andamento. Em maio de 1950, o e, por uma maioria de dois terços, aplicar
ministro das relações exteriores da França a renúncia do conselho de ministros. No
Robert Schuman propôs uma Comunida- final dos anos de 1950, quando a demanda
de Europeia do Carvão e do Aço (CECA pelo carvão diminuiu, surgiram diferenças
– European Coal and Steel Community). entre a Autoridade Superior e o conselho
Embora tivesse alcance multinacional, era de ministros, com a primeira sofrendo al-
uma iniciativa essencialmente franco-ger- guma atenuação, na prática, de sua com-
mânica com objetivos políticos, bem como petência supranacional.
econômicos. Ela marcava a conversão da No início da década de 1950, o Conse-
França a uma parceria com a Alemanha lho da Europa recebeu a companhia, no pal-
que se tornou uma das principais caracte- co europeu, da Comunidade do Carvão e do
rísticas da Europa do pós-guerra. O carvão Aço e da incipiente Comunidade de Defesa;
e o aço estavam no centro da concorrência em 1952, Eden propôs a junção desses três
econômica e militar franco-germânica, orgãos e suas instituições paralelas. O Con-
e, ao propor colocar essas indústrias sob selho da Europa indicou uma assembleia
controle internacional conjunto, a Fran- ad hoc para elaborar um esquema nessas
ça estava, abertamente, propondo a paz linhas, com vistas a incluir a disposição de
e, em particular, reconhecendo que não uma assembleia diretamente eleita e um ga-
tinha sentido tentar concorrer. Portanto, binete europeu.
aceitou, conscientemente ou não, que na Essa foi uma tentativa de construir uma
nova Europa ela seria um parceiro menor associação política, chamada experimental-
da Alemanha e que isso era mais sensato mente de Comunidade Política Europeia,
do que tentar ser um ator independente. baseada em cooperação econômica e mili-
A Grã-Bretanha estava cética em princí- tar, e deveria incluir a maior parte dos países
pio, e levemente hostil, pois esperava que não comunistas da Europa. O número de
o aço britânico venderia mais do que o membros potenciais era grande, embora o
POLÍTICA MUNDIAL | 197

neutralismo empírico da Suécia, o neutra- diram com à CECA. O Tratado de Roma


lismo doutrinário da Suíça e as impalatáveis criou uma Constituição em quatro partes:
autocracias de Espanha e Portugal pudessem um Conselho de Ministros, uma Comissão,
excluir esses países em curto ou longo pra- um Parlamento e um Tribunal. O tribunal
zo. Mas o esquema nasceu morto. O fim da de sete membros era o guardião e intérprete
Comunidade de Defesa, em 1954, a matou, do direito da Comunidade. O parlamento
e, mesmo sem esse golpe, é difícil acreditar unicameral era fundamentalmente um or-
que a associação institucional rudimentar gão de discussão. Criado de um só golpe
atingida até então fosse suficiente para sus- por Estados-membros do tratado, só tinha
tentar uma estrutura parlamentar tão ambi- poderes embrionários do tipo que os parla-
ciosa. À medida que se recuperavam de suas mentos nacionais haviam acumulado com o
angústias pós-guerra, os Estados-Nação da tempo em suas tentativas de limitar o poder
Europa ficavam menos dispostos a abando- executivo. Poderia rejeitar, mas não emen-
nar suas identidades. dar, o orçamento da Comunidade e demitir
A Comunidade do Carvão e do Aço foi, a Comissão em sua totalidade, mas não em
desde o início, um primeiro passo, mais do parte. Possuía uma participação limitada
que um fim em si. Para os devotos da uni- na estruturação da legislação, mas nenhum
dade europeia, foi uma jogada em um pro- controle sobre o Conselho de Ministros. Os
cesso de criação de uma série de associações membros da Comissão, inicialmente dois
funcionais que poderiam ser aglomeradas por Estado-membro, mas depois da am-
mais tarde. O carvão e o aço não eram mais pliação da Comunidade apenas um para
as principais fontes de energia em um mun- cada um dos membros menores, estavam
do movido a petróleo e esperando ser movi- completa e exclusivamente ocupados com
do à energia nuclear. Em 1955, os seis mem- as questões da Comunidade em sua sede
bros da CECA tinham avançado o suficiente em Bruxelas. A maioria deles teve experiên-
para realizar uma reunião formal em Mes- cia ministerial em seus próprio país, mas
sina, onde decidiram formar uma Comuni- desempenhava em Bruxelas funções mais
dade Econômica Europeia (CEE) e uma Co- próximas às de chefes de repartição em um
munidade Atômica Europeia (EURATOM). serviço público nacional. Por fim, o Conse-
Os britânicos compareceram à conferência lho de Ministros, representando os vários
como observadores e depois se retiraram, Estados-membros da comunidade, era,
em parte, porque achavam que o novo em- dentro dos termos do Tratado de Roma, seu
preendimento seria um fracasso, em parte órgão dominante.
porque se opunham a uma tarifa externa Era uma réplica do Conselho semelhan-
comum que seria incoerente com o que so- te que havia sido incorporado, em uma eta-
brara das preferências da Commonwealth, e pa posterior, aos planos da Comunidade do
em parte porque queriam limitar a coope- Carvão e do Aço, para garantir que ela fosse
ração para a formação de uma área de livre mais um coletivo nacional do que uma en-
comércio, EFTA – o que fizeram, e que, dife- tidade supranacional, e o Conselho da CEE
rentemente da CEE, foi um fracasso. foi ainda mais claramente superior à Co-
Os tratados estabelecendo a CEE e a Eu- missão em Bruxelas do que o Conselho da
ratom foram assinados em Roma em março CECA era em relação à Autoridade dessa.
de 1957, e os dois orgãos passaram a existir Consequentemente, os debates e decisões
no início de 1958 e começaram a funcionar mais importantes sobre o desenvolvimen-
um ano mais tarde. Em 1967, eles se fun- to da CEE aconteceram no Conselho e não
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giraram em torno da distribuição de poder landa, da Dinamarca, em 1981, da Grécia e,


entre os principais orgãos da Comunidade, em 1986, de Espanha e Portugal. A adesão
mas ao redor do exercício de poder dentro da Noruega, negociada junto com Grã-Bre-
desse Conselho – quais questões poderiam tanha, Irlanda e Dinamarca, foi rejeitada em
ser resolvidas por maioria e quais deman- plebiscito, e a Groenlândia, que entrou junto
davam apenas uma maioria “qualificada”. com sua mãe dinamarquesa, saiu em 1986.
(Isso significava maioria atingida depois de De todas essas adesões, a mais importan-
atribuir ao voto de cada membro um peso te e mais polêmica era a da Grã-Bretanha,
consoante a seu poder econômico). postergada e mais tarde complicada por sua
A primeira etapa na integração econô- própria ambivalência, mas também vetada
mica, que seria completada em 12 anos (e o durante vários anos pela França.
foi), era comercial – uma união aduaneira O ceticismo britânico em relação à CEE
com uma tarifa externa comum e, interna- levou o país, em 1959, a formar uma Asso-
mente, a suspensão de todas as tarifas e a ciação Europeia de Livre Comércio, AELC,
eliminação de quotas. Uma segunda etapa, junto com os países escandinavos, a Suíça,
sobreposta, visualizava uma união econô- a Áustria e Portugal. (A AELC era uma
mica mais ampla com uma política agrí- versão reduzida de uma organização com
cola comum (PAC); livre movimentação o mesmo nome, mas de 17 países, incluin-
de mão de obra e capital; homogeneização do os seis fundadores da CEE, que viria a
de políticas sociais, leis (principalmente abolir as tarifas entre seus membros dali a
direito empresarial) e padrões de saúde e 10 anos, mas não estabelecer uma tarifa ex-
segurança; e a união monetária com uma terna comum nem qualquer forma de união
moeda comum e um banco central único. política.) Os britânicos acreditavam que de
A integração política, visto que poderia ser Gaulle – que voltou ao poder na França
necessário garantir as metas econômicas da nessa época – extinguiria a CEE, mas essa
Comunidade, era um corolário inevitável, foi uma interpretação equivocada, já que ele
mas o Tratado de Roma era omisso nesse não pretendia minar a Comunidade, apenas
aspecto. Para alguns, a integração política postergar seu desenvolvimento enquanto a
era um fim em si e um meio necessário para recuperação da economia da França ganha-
fortalecer a influência da Comunidade, não va ritmo e o peso político do país aumenta-
apenas na Europa, mas também em outras va proporcionalmente.
áreas de interesse especial para os europeus, A objeção proclamada de de Gaulle,
principalmente os impérios coloniais à beira com base em que a Grã-Bretanha servia aos
da independência e o Oriente Médio, cujo interesses dos Estados Unidos, tinha plau-
petróleo era o produto de importação mais sibilidade suficiente para convencer outros
crucial da Europa Ocidental. As metas para- membros da CEE, apesar da ansiedade
lelas da Euratom, corporificadas no tratado dos Estados Unidos de ter a Grã-Bretanha
separado que criava a comunidade, eram como membro para compensar a domina-
conduzir a pesquisa nuclear, construir ins- ção alemã e francesa. Em 1960, contudo, de
talações nucleares, elaborar um código de Gaulle estava pronto para cogitar a partici-
segurança e estabelecer um orgão para ter pação britânica e a propôs publicamente.
propriedade e garantir direitos preventivos Macmillan, que tinha restaurado as rela-
sobre matérias-primas nucleares. ções britânicas com os Estados Unidos e a
Os primeiros seis membros receberam Commonwealth depois do fiasco de Suez
a adesão, em 1973, da Grã-Bretanha, da Ir- de 1956-1957, também estava ansioso para
POLÍTICA MUNDIAL | 199

dar a seu país um papel mais forte na Euro- muitos franceses e durante o ano de 1962,
pa. Sua visita a Moscou, em 1959, mostrou os membros foram ficando cada vez mais
que ele era um intermediário honesto em hostis à entrada da Grã-Bretanha, mas, para
questões internacionais, mas não neces- de Gaulle, essas eram questões menores se
sário. O cancelamento do míssil britânico ele conseguisse fazer com que o país entras-
Bluestreak, em 1960, expôs as dificuldades se em uma associação que pudesse ser tanto
de manter uma força nuclear independen- estratégica quanto econômica. Depois de
te com uma economia esporadicamente junho de 1962, ele parece ter se sentido se-
desequilibrada. Em 1961, ele respondeu à guro para fazê-lo. As eleições francesas, em
abertura de de Gaulle, e as negociações para novembro de 1962, confirmaram sua au-
a adesão da Grã-Bretanha ao Tratado de toridade ao lhe dar uma maioria no parla-
Roma começaram naquele ano. Essas nego- mento e um êxito que era bem-vindo depois
ciações, embora difíceis, avançavam a uma de um revés em outubro, quando um refe-
conclusão aparentemente bem-sucedida rendo constitucional tivera um resultado
quando foram atrapalhadas por um grave negativo. Ele estava ciente das dificuldades
desentendimento anglo-francês. Em junho domésticas de Macmillan quando o Partido
de 1962, Macmillan visitou de Gaulle no Trabalhista se manifestou, em outubro, con-
Château de Champs. O que aconteceu en- tra a entrada na CEE, mas provavelmente
tre eles não se sabe e cada um pode ter in- viu poucas razões para supor que o governo
terpretado mal a intenção do outro – uma britânico seria derrotado. Talvez estivesse
conversa entre um homem errático e outro equivocado. Macmillan pode ter se sentido
calado pode deixar muita coisa obscura. obrigado a se dirigir ao país antes de dar um
Contudo, parece que Macmillan, que havia passo tão importante como entrar para a
feito da admissão à CEE um ponto central CEE, e ele poderia ter perdido uma eleição
de suas políticas externa e econômica, não que se disputasse com base nessa questão.
apenas subestimou as dificuldades de en- Os principais argumentos contrários à CEE,
tão em relação às preferências e à política além da desconfiança nacional em relação
agrícola na Commonwealth, como também a uma associação exagerada com estrangei-
deixou de Gaulle com a impressão de que a ros, eram: que a CEE era uma burocracia e
Grã-Bretanha estava preparada para se in- não uma democracia, em termos constitu-
tegrar a seus vizinhos continentais na esfera cionais, uma forma irresponsável de gover-
militar. Essa integração era uma questão da no que estava dedicada à livre concorrência
maior importância para de Gaulle, que que- e entrar nela significava abandonar o plane-
ria uma Europa independente dos Estados jamento nacional, não pelo planejamento
Unidos, mas não podia visualizar uma força internacional, mas pelo laissez-faire; que o
de defesa europeia sem uma Grã-Bretanha parlamento teria que renunciar ao controle
igualmente independente, a qual não exis- sobre aspectos vitais dos assuntos públicos
tia segundo sua avaliação. Sendo assim, da Grã-Bretanha; que a CEE era uma or-
sua objeção à participação britânica era de ganização eurocêntrica, voltada para den-
princípios, e as negociações em torno dela tro, com tradições não britânicas, como
não tinham sentido. governo multipartidário e direito romano-
Na França, a opinião estava dividida em -holandês, na qual os funcionários públicos
relação à admissão dos britânicos na CEE. britânicos estariam em desvantagem; e que
Discussões confusas em Bruxelas com re- o processo de governo por maioria qualifi-
lação a preços de alimentos perturbaram cada – ou seja, de dar poder de veto a uma
200 | PETER CALVOCORESSI

combinação de um parceiro maior e um que afirmavam que isso daria um incentivo


menor – era uma forma certa de criar fac- à proliferação nuclear.
ções insatisfeitas. De Gaulle recusou a oferta. Ele e Mac-
Próximo ao final de 1962, quando os millan insistiam em sua soberania nuclear.
líderes britânicos e franceses pareciam que- De Gaulle recusou-se a aceitar o Polaris.
rer que a Grã-Bretanha entrasse na CEE e o Macmillan, embora o aceitasse e compro-
governo dos Estados Unidos estava abenço- metesse as forças aéreas táticas e bom-
ando a união, uma decisão tomada no Pen- bardeiros, bem como as unidades Polaris
tágono desencadeou uma cadeia de eventos britânicas, com a OTAN, insistia em ter o
que levaram à ruptura das negociações: a comando final e o direito de retirada. Uma
decisão de cancelar a fabricação do míssil atitude não era tão diferente da outra, e am-
nuclear ar-terra Skybolt, o qual os britâni- bas eram essencialmente nacionalistas. Os
cos tinham encomendado dos Estados Uni- norte-americanos, contudo, buscavam uma
dos. Tomada em novembro em função de solução supranacional para o problema da
custos, essa decisão privou a Grã-Bretanha quota nuclear na OTAN e podem ter acre-
do instrumento com o qual esperava, de- ditado que Macmillan, ao contrário de de
pois do cancelamento de seu próprio Blues- Gaulle, tinha concordado em aceitar seus
treak, manter uma força nuclear indepen- planos em troca do Polaris.
dente até 1970. Pagando metade dos custos Macmillan e de Gaulle decepcionaram
de desenvolvimento, a Grã-Bretanha pode- um ao outro, e a abordagem britânica em re-
ria ter salvado o Skybolt e seu próprio pro- lação à Comunidade Europeia foi interrom-
grama nuclear, mas o preço era alto demais pida. Quando o Partido Trabalhista voltou
e, em dezembro, Macmillan foi a Nassau, ao poder em 1964, Harold Wilson refez a
nas Bahamas, para se reunir com Kennedy solicitação britânica de adesão.
e encontrar uma alternativa. Para desgosto Sua abordagem era diferente. Mac-
e talvez surpresa de de Gaulle, ele não se millan tinha dado a impressão de que o
voltou à França e transformou o fracasso principal propósito da adesão era resgatar a
do Skybolt na ocasião para mudar de uma economia de seu país e que, para a Grã-Bre-
associação nuclear anglo-americana para tanha, os benefícios econômicos dessa ade-
uma anglo-francesa ou anglo-europeia. são seriam consideráveis e compensariam
Essa demonstração de onde estava a fideli- a perda de soberania e as inconveniências
dade maior dos britânicos levou de Gaulle a de contatos mais próximos com povos não
declarar, em 14 de janeiro de 1963, a exclu- britânicos. Essa perspectiva não era atrati-
são da Grã-Bretanha da CEE. va na Grã-Bretanha nem na Comunidade,
Em Nassau, Kennedy ofereceu a Mac- e era adotado um estranho procedimento
millan o míssil submarino Polaris, em lugar de implementação, enviando um ministro
do Skybolt. Macmillan aceitou, e Kennedy importante a Bruxelas para conduzir de-
fez a mesma oferta a de Gaulle, reverten- moradas negociações com relação a deta-
do uma decisão do ano anterior de ofere- lhes (o que foi apelidado, não muito gen-
cer armas nucleares à França. Essa decisão tilmente, de síndrome de rabo de canguru)
foi tomada depois de uma divisão entre e sem uma decisão firme em termos de
os que esperavam melhorar as relações políticas sobre a questão principal relativa
franco-americanas (um rumo iniciado por à adesão ou não da Grã-Bretanha. Wilson
Kennedy em uma bem-sucedida reunião disse ao público britânico que as desvanta-
com de Gaulle em junho de 1961) e outros gens econômicas de aderir seriam conside-
POLÍTICA MUNDIAL | 201

ráveis, afirmando apenas que as vantagens entrada da Grã-Bretanha. Ele convidou


mais consideráveis se dariam a longo pra- o recém-indicado embaixador britânico
zo. Ele formulou a meta de maneira inequí- Christopher Soames, que era cunhado de
voca: aderir à Comunidade, aceitar todas Churchill, para uma discussão geral sobre as
as suas regras de antemão. Ele próprio, que relações franco-britânicas, na qual falou so-
havia se convertido à participação britâni- bre cooperação mais próxima entre quatro
ca na Comunidade, era muito influencia- potências na Europa (França, Grã-Bretanha,
do pelo conflito entre a CEE e os Estados Alemanha Ocidental e Itália) e adaptação
Unidos com relação à Rodada Kennedy da CEE para que a Grã-Bretanha se enqua-
(do General Agreement on Tariffs and Tra- drasse. Essas eram ideias gaullistas básicas
de), que revelou a vulnerabilidade de uma de longa data, mas, como resultado de uma
Grã-Bretanha economicamente isolada em série de inabilidades, as interações – em
caso de uma guerra comercial entre a Eu- grande parte, um monólogo de de Gaulle –
ropa Ocidental e a América do Norte. Mas geraram uma altercação diplomática públi-
o principal obstáculo se mantinha. Embora ca quando os britânicos divulgaram o teor
cinco entre os seis estivessem prontos, e até das conversas a outros governos e deixaram
ávidos, para a entrada da Grã-Bretanha, de a impressão de que a França estava ofere-
Gaulle ainda poderia impedi-la. Os víncu- cendo à Grã-Bretanha um lugar no coletivo
los britânicos com os Estados Unidos, suas dos principais países em troca da supressão
dívidas recorrentes em contas externas e da CEE e talvez da OTAN. As chances de a
seus compromissos continuados para além Grã-Bretanha entrar na Comunidade, fosse
da Europa davam argumentos, se fossem pela porta da frente ou pela de trás, dimi-
necessários, para classificar a Grã-Bretanha nuíram, mas não por muito tempo.
como algo à parte. Naquele ano, de Gaulle renunciou à
A questão era se a França continuaria a presidência e foi sucedido por Pompidou.
insistir nesses argumentos. Mesmo na men- Em alguns meses, uma mudança de gover-
te de de Gaulle, eles sempre foram contra- no na Grã-Bretanha fez de Edward Heath
balançados por outros, principalmente pelo primeiro-ministro. Ele foi protagonista da
desconforto da França em relação a uma participação britânica na CEE na época da
Comunidade Europeia na qual dois países primeira solicitação em 1961. Em dezem-
– ela própria e a Alemanha – superavam o bro de 1969, os chefes de governo dos seis se
resto e poderiam se confrontar algum dia comprometeram em uma reunião em Haia
com relação a alguma questão fundamental. com a participação britânica, e Heath não
Sendo assim, a Grã-Bretanha tinha duas ca- perdeu tempo em confirmar que a França,
ras. Enquanto, por um lado, era inaceitável também sob nova liderança, apoiaria uma
como apêndice dos Estados Unidos, era, por segunda solicitação. Heath visitou Pompi-
outro, desejável como contrapeso à Alema- dou em Paris em maio de 1971 e, segundo
nha. Ao longo de 1967-1969, esse último tratados assinados em janeiro de 1972, a
aspecto começou a superar o primeiro, em Grã-Bretanha, a Dinamarca e a Irlanda se
parte por causa de evoluções dentro da Co- tornaram membros da CEE a partir do pri-
munidade e em parte porque a renúncia de meiro dia de 1973. Uma conferência reu-
de Gaulle, em 1969, facilitou uma mudança nida em 1972 por Pompidou, com os seis e
de ênfase em Paris. mais esses três, decidiu completar a União,
Em 1969, de Gaulle mais uma vez deu incluindo uma união monetária, até 1980.
um sinal de que poderia ser hora para a O governo norueguês, que negociou com a
202 | PETER CALVOCORESSI

CEE em companhia dos três, também con- termos com poucas divergências. O eleito-
cordou em aderir, mas seu ato foi rejeitado rado, certamente confuso com argumentos
por um referendo. Na Dinamarca e na Ir- econômicos complexos e contraditórios,
landa, um referendo endossou o tratado de provavelmente um pouco entediado por
adesão. esse tema que se arrastava há tanto tempo,
O caso britânico era peculiar. O poder e nenhum pouco convencido de que seria
do governo para estabelecer tratados não errado desfazer o que o governo anterior
exigia confirmação popular nem parlamen- tinha feito de forma apropriada, disse sim
tar. Não obstante, considerou-se que era à participação em junho de 1975, por exa-
adequado promover um referendo, mesmo tamente dois a um. Sendo assim, 25 anos
que ele não tenha acontecido até dois anos após ter conseguido entrar na Comunida-
e meio depois da data estabelecida para a de Europeia praticamente em seus próprios
adesão da Grã-Bretanha. Esse procedimen- termos, a Grã-Bretanha teve que regatear
to incomum surgiu de equívocos do Parti- para entrar na Comunidade que havia sido
do Trabalhista, que estava mais dividido do construída sem sua presença.
que os conservadores em relação à CEE; e No centro da Comunidade estava a
Wilson, com sua ambivalência natural agu- entente franco-germânica, estabelecida de
çada por temores de dividir seu partido e forma experimental, mas duradoura, pela
destruir as perspectivas eleitorais, declarou Comunidade do Carvão e do Aço. Espera-
que os termos garantidos pelos conserva- va-se que a entrada da Grã-Bretanha am-
dores poderiam e deveriam ser melhora- pliasse e fortalecesse esse núcleo, mas isso
dos. Ele dizia que, quando os trabalhistas não aconteceu.
voltassem ao poder, esses termos poderiam Embora a iniciativa de criar a entente
ser renegociados. Com efeito, essa era uma tenha sido francesa, sua afirmação foi ale-
ameaça de condenar o tratado a menos que mã. A primeira preocupação de Adenauer
os outros signatários concordassem em alte- depois da formação do Estado alemão oci-
rar seus termos. Wilson também prometeu dental em 1952, foi ancorá-lo ao Ocidente
que os termos revisados seriam submetidos através de uma associação inquestionável
ao país, bem como ao gabinete. No início de com os Estados Unidos e da participação
1974, Heath, tendo calculado com algum na OTAN, mas, em seus últimos anos, ele
equívoco sua vantagem eleitoral, convocou deu cada vez mais atenção ao lugar ocupado
uma eleição e perdeu, de forma que o novo pela Alemanha na Europa. A França esta-
governo, de Wilson (um governo de mi- va se tornando, na expressão de Bismarck,
noria até que uma segunda eleição lhe deu mais bündnisfähig – um aliado mais valio-
uma maioria apertada), abriu discussões so – e ao mesmo tempo desencantada com
com a CEE, nas quais o principal esforço a Grã-Bretanha e livre das disputas com a
britânico era obter novos termos, suficien- Alemanha posteriores à guerra. O plebiscito
temente diferentes dos que constavam no no Sarre, em 1955, eliminou a última dife-
tratado, para mostrar que os conservadores rença grave entre a França e a Alemanha na
deveriam ter se saído melhor. A principal agenda política, enquanto o abandono uni-
questão era o tamanho da contribuição bri- lateral do fiasco no Suez, por parte da Grã-
tânica ao orçamento da Comunidade, sobre -Bretanha, sob pressão norte-americana,
a qual o secretário de relações exteriores, Ja- prejudicou as relações franco-britânicas. A
mes Callaghan, obteve importantes conces- França estava superando sua reputação de
sões. O gabinete britânico aprovou os novos instabilidade política e econômica, e o trato
POLÍTICA MUNDIAL | 203

firme da crise argelina, em maio de 1958, foi voto de maioria. Deixou-se que o tema mor-
seguido por duas reuniões entre Adenauer e resse. Como tinha sido levantado pela Fran-
de Gaulle em Colombey-les-Deux-Eglises e ça, esse resultado era um revés, mas também
Bad Kreuznach, que colocaram as relações uma evidência de que o país estava disposto
entre os dois países em um novo patamar. a aceitar alguns reveses em vez de acabar
Entre essas reuniões, uma declaração fran- com a Comunidade.
cesa rejeitou duramente propostas para uma Outra disputa surgiu com relação à ela-
área de livre comércio com definições pou- boração de uma política agrícola comum. O
co rígidas (sustentadas pelo ministro das principal ponto polêmico no seu início foi
finanças, Ludwig Erhard, mas não pelo pró- o nível de preços uniformes a ser estabele-
prio Adenauer). cido para os cereais. Em 1963, o Dr. Sicco
Mesmo assim, havia divergências sérias Mansholt, um dos dois vice-presidentes da
entre as atitudes alemã e francesa. A Fran- Comissão e encarregado especialmente de
ça, com apoio dos italianos, propôs, em questões agrícolas, apresentou um plano
1959, reuniões regulares dos seis ministros para estabelecer um preço comum que seria
do exterior, apoiadas por um secretariado mais baixo do que o valor predominante na
com sede em Paris. O Tratado de Roma era Alemanha (na Itália e em Luxemburgo), de
omisso em termos de integração política, e modo que a avidez francesa colidia com as
parecia, aos alemães e aos membros da Co- ressalvas em Bonn, muito inflexíveis, pois o
munidade pertencentes ao Benelux, que os comando passara a Erhard em 1963, cujos
franceses estavam tentando criar, em Paris, olhos estavam voltados à eleição geral a ser
uma organização política de caráter inter- realizada próximo ao final de 1965.
nacional distinta das instituições de Bruxe- De Gaulle jogava com o fato de que
las e voltada a desviar, suprimir ou mesmo Erhard, embora relutante em acelerar a
assumir o lugar das atividades econômicas PAC, estava ansioso para estabelecer uma
supranacionais que estavam acontecendo posição acordada na CEE nas seguin-
ali. Essas suspeitas foram aguçadas no ano tes negociações com o GATT (a Rodada
seguinte, quando os franceses elaboraram Kennedy) na qual os seis estavam propondo
seu plano e propuseram um conselho de barganhar como uma equipe única. O pre-
chefes de governo com um secretariado em sidente norte-americano ganhou poderes
Paris. Essa “união de Estados”, resultante de pela Lei de Expansão do Comércio (Trade
uma bem-sucedida pressão de de Gaulle Expansion Act) de 1962, reciprocamente,
sobre Adenauer em Rambouillet, em julho, para cortar tarifas em até metade, mas seus
era incompatível com ambições federalistas. poderes terminariam em 1o julho de 1967.
O assunto como um todo foi enviado pelos As tarifas impostas pelos seis estavam, em
seis a um comitê especial (o comitê Fouchet, sua maioria, fechadas em uma faixa que ia
posteriormente Cattani), que discutiu dois de 6 a 20%, ao passo que as tarifas norte-
planos sucessivos de origem francesa e as -americanas e britânicas eram mais altas
objeções a eles. Essas objeções se resumiam ou zero. Consequentemente, a comissão
à afirmação de que os planos deixaram de da CEE e também o governo francês pres-
fora todas as principais características da sionavam pelo corte das tarifas mais altas
própria Constituição da CEE, já que não (écrêtement) em vez de cortes gerais (no
continham qualquer disposição que previs- que acabaram sendo forçados a ceder quan-
se um elemento parlamentar ou um execu- do os norte-americanos se mostraram in-
tivo independente, nem decisão final por flexíveis). Alguns norte-americanos e britâ-
204 | PETER CALVOCORESSI

nicos tinham expectativas e esperanças de tunidade de saída. O embaixador francês


que os seis se dividissem em relação a uma na Comunidade foi retirado e a França não
abordagem comum à Rodada Kennedy, participou de reuniões do Conselho por seis
mas, no final de 1963, compromissos foram meses. Essas táticas funcionaram. A crise
aceitos para permitir que a rodada e a PAC da “cadeira vazia” foi resolvida no início de
avançassem. 1966 com uma série de reuniões em Luxem-
Ao longo de 1964, as diferenças entre a burgo (e não em Bruxelas), que foram ne-
França e a Alemanha ficaram piores, com gociações governamentais entre a França e
aquela ainda impedindo um acordo sobre seus cinco parceiros. Pelo Compromisso de
preliminares essenciais à Rodada Kennedy, Luxemburgo, os membros da Comunida-
para extrair a aceitação de Bonn de um pre- de aceitavam informalmente que qualquer
ço uniforme para cereais e também para membro poderia insistir na discussão de
impedi-la de entrar para a Força Multila- uma determinada proposta que considera-
teral. O ano terminou com outro dos com- va de interesse especial até que se chegasse à
promissos pelos quais a Comunidade estava unanimidade.
se tornando conhecida. Com o governo dos Dessa forma, a França garantiu o veto
Estados Unidos tendo abandonado tacita- em circunstâncias a serem avaliadas e de-
mente a Força Multilateral, Bonn concor- finidas em cada ocasião. Ao aceitar esse
dou com um preço uniforme para os cereais compromisso, seus parceiros, embora ce-
em troca de subsídios especiais (também dendo pouco no papel, reconheciam impli-
pagáveis a Itália e Luxemburgo) e com o citamente que a participação e a cooperação
protelamento da política agrícola comum integral dela era essencial à Comunidade.
de 1966 a julho de 1967. Foi uma vitória Portanto, o Compromisso de Luxemburgo
para de Gaulle, mas deixou Bonn ressentida foi relegado ao segundo plano, não sendo
e pronta a ir contra a França na nova crise invocado pela Grã-Bretanha quando, na dé-
que as políticas de de Gaulle evocaram no cada de 1980, ela sucedeu a França no papel
ano seguinte. de parceiro relutante ou rebelde: naquelas
A crise surgiu a partir de propostas do alturas, uma Comunidade que tinha exis-
Dr. Walther Hallstein, o presidente (alemão) tido sem a Grã-Bretanha por décadas não
da Comissão, para ampliar a autoridade, sentia sua existência ameaçada por ameaças
dentro da Comunidade, da Comissão e da como as que a França havia representado
Assembleia, à custa do Conselho de Mi- nos anos de 1960.
nistros, inicialmente acelerando a troca no Essas eram disputas constitucionais.
Conselho, do voto por unanimidade pelo Também havia problemas financeiros, prin-
voto por maioria, e, em segundo, canalizan- cipalmente na conexão com a PAC, que,
do os impostos agrícolas diretamente à Co- nos anos de 1980, estava gastando mais na
missão, em vez de governos nacionais para compra de superávits para revenda do que
que os transmitissem a ela. Essas propostas em subsídios a agricultores. A Comunidade
eram um desafio às visões de de Gaulle, e precisava de uma política agrícola porque
alguns dos colegas de Hallstein o alertaram muitos de seus habitantes trabalhavam na
de que ele estava avançando com uma pres- agricultura e porque não era autossuficien-
sa imprudente. Além do mais, ao apresentar te em muitos produtos alimentícios, mas a
sua proposta inicialmente à Assembleia em política se desviou, e em lugar de transfor-
vez de ao Conselho, como dispunham as re- mar a subprodução em suficiência, acabou
gras, Hallstein deu a de Gaulle uma opor- produzindo superávits constrangedoramen-
POLÍTICA MUNDIAL | 205

te grandes. Além disso, a Comunidade foi Para financiar a PAC, a Comissão tinha
levada à concorrência com os Estados Uni- a seu dispor as verbas dos impostos agrí-
dos, onde os subsídios aos agricultores tam- colas e de importação e 1% do PIB de cada
bém geraram superávits que tinham de ser membro, mas essas receitas pretendiam co-
vendidos ou jogados nos mesmos mercados brir todas as despesas da Comissão, e não
dos superávits da Comunidade. Financei- apenas a PAC. A partir de 1979, a Comissão
ramente, o problema da Comunidade era poderia cobrir o déficit de um ano requisi-
agravado pela flutuação nas taxas de juros tando uma contribuição extra dos menbros
entre seus membros. Para reduzir o impacto que não passasse de 1% de suas receitas do
desses altos e baixos, a Comunidade criou imposto sobre valor agregado.
uma moeda “verde” especial, que sofreu Nos anos de 1980, essa fonte extra dei-
abusos dos que negociavam com ela. xou de cobrir a lacuna, e como a principal
O principal mecanismo da PAC era um causa do desequilíbrio era a PAC, os mem-
tabelamento anual de preços por parte da bros tinham fortes razões para exigir uma
Comissão. Esses preços eram estabelecidos revisão radical desses subsídios aos agricul-
um pouco acima dos preços mundiais para tores como condição para aumentar a par-
dar um padrão de vida atrativo aos agricul- cela do IVA (Imposto sobre o Valor Agrega-
tores e trabalhadores rurais. A Comissão do) a ser transferido à Comissão. Mas, nesse
aceitou comprar superávits a preços tabela- empreendimento respeitável, eles – particu-
dos e estabeleceu impostos de importação larmente a Grã-Bretanha de Thatcher – exa-
sobre produtos alimentares estrangeiros geraram tanto a retórica e subestimaram a
sempre que os preços caíam abaixo dos ní- tal ponto os obstáculos sociais verdadeiros
veis prescritos. Quando esse sistema trans- à mudança radical que pouco se conseguiu
formou a produção em superávit, a Comu- e, em 1984, o teto do IVA foi elevado sem
nidade enfrentou a necessidade de reduzir qualquer avanço sério sobre os excessos da
sua área agrícola. Em 1974, o Dr. Mansholt PAC. Além do problema específico da PAC,
propôs um programa de 10 anos com essa a unidade da Europa avançava para águas
finalidade, mas ele foi rejeitado pelo Conse- mais agitadas. A principal meta imediata de
lho de Ministros, os quais, individualmente, uma união alfandegária entre os seis mem-
tinham medo de perder votos em suas próxi- bros, todos relativamente prósperos, foi
mas eleições nacionais se apoiassem o plano. atingida antes da data prevista, mas chegou
Também havia uma segunda e mais respei- com problemas incômodos: a admissão de
tável objeção ao plano. Cortar a produção novos membros. Os seis originais foram se-
agrícola significava fazer quebrar pequenos guidos, em 1972, por Grã-Bretanha, Irlanda
agricultores, que não apenas atraíam admi- e Dinamarca e por três países mediterrâneos
ração emocional e sentimentos, mas muitas (Grécia em 1981, Espanha e Portugal em
vezes eram o centro econômico da comu- 1986), mas o colapso, em 1989, do domínio
nidade como um todo: o fim da agropecu- soviético sobre metade da Europa colocou
ária em um determinado distrito poderia em questão se Europa realmente queria di-
empobrecê-lo e despopulá-lo totalmente. zer Europa e, caso quisesse, em que ritmo.
Enquanto uma revolução industrial mais an- Para atender a essas várias preocupações em
tiga implicava uma passagem de um tipo de um contexto de rápidas mudanças, não cau-
indústria a outro, a revolução agrícola ame- sadas por ela, a Comissão elaborou uma sé-
açava extinguir uma atividade econômica rie de programas para assimilar as moedas e
sem a substituir por outra. políticas de crédito – duas de Raymond Bar-
206 | PETER CALVOCORESSI

re, da França, e uma de Gaston Werner, de uma moeda única, a ser chamada de ECU
Luxemburgo. Todas foram postas de lado. (depois rebatizada de euro).
A última propunha, em 1974, um período Dentro de um ano, estavam sendo ne-
de 10 anos no qual as flutuações nas moedas gociados empréstimos e títulos emitidos em
seriam restritas progressivamente, os movi- ecus e, 10 anos mais tarde, os empréstimos
mentos de capital se tornariam ilimitados nessa moeda excederam o valor em moedas
e as políticas econômicas e orçamentárias que não o dólar, o iene, o marco alemão e o
nacionais seriam tema de consulta na Co- franco suíço.
munidade, com a união monetária integral O Ato Único Europeu de 1985 foi mais
dotada de uma moeda única e um banco uma tentativa daqueles que queriam avan-
central comum no final do período. O pla- çar em vez de ficar para trás. O resultado foi
no era economicamente incompetente, já mais humilde: manter o processo em anda-
que propunha muita coisa em um tempo mento através de avanços graduais, o que
curto demais, mas se conseguiu algo pare- tornava mais difícil interromper ou reverter
cido durante a presidência de Roy Jenkins a unificação. No entanto, esses sinais de pro-
na Comissão e por meio de um novo im- gresso não conseguiam disfarçar o fato de
pulso franco-germânico de Valéry Giscard que quem fazia campanha pela unificação
d’Estaing e Helmut Schmidt. Formulou-se ficou na defensiva até a situação ser trans-
um Sistema Monetário Europeu (SME) com formada pelo colapso da potência soviética
limites rígidos a flutuações de moedas, uma na Europa em 1989-1990.
moeda de reserva e uma reserva central de
50 bilhões em ouro e moeda estrangeira. O
SME, implementado em 1979, foi criado por União Europeia (Oeste-Leste)
todos os 12 membros da comunidade, mas
quatro deles – Grã-Bretanha, Grécia, Espa- Esse colapso foi o evento mais extraordi-
nha e Portugal – ficaram de fora do Meca- nário nos destinos da União depois de sua
nismo da Taxa de Câmbio (Exchange Rate inauguração em 1957. Como consequência,
Mechanism – ERM) formulado para operar a Alemanha Oriental se tornou parte da
o sistema. Sua função era manter as moedas Alemanha reunificada; a reunificação fez da
fixas entre si, sujeitas a variações que não Alemanha incontestavelmente o país mais
passassem de 4,5% (com uma latitude maior importante da Europa – tanto que Tha-
para a Itália) e também sujeitas a revisão e tcher e Mitterrand (esse de forma apenas
reajuste anuais dos valores fixos. O sistema passageira) tentaram pensar em maneiras
também tinha dois propósitos principais. de pará-la ou neutralizá-la. A saída dos rus-
As taxas de câmbio administradas também sos dobrou a conta dos membros da união.
eram um meio-termo entre as taxas flutu- Mas essas consequências não ficaram claras
antes e as fixas, uma forma de controlar as imediatamente. Uma delas foi o enfraque-
flutuações de moeda, cuja volatilidade não cimento do marco alemão. O sucesso eco-
apenas desestimulava o comércio ao tornar nômico da Alemanha Ocidental tinha sido
incertos principalmente os preços futuros, um ingrediente essencial na economia da
mas também possibilitava que rivais comer- integração econômica e monetária da CEE,
ciais se enfrentassem em inflação competi- embora a força do marco também tivesse
tiva por vantagem de curto prazo. Segundo, sido fonte de apreensão entre outros mem-
o sistema era um passo em direção a uma bros. Com a unificação, o marco não ficou
União Monetária Europeia (UME) com forte, e sim fraco demais. Por um tempo,
POLÍTICA MUNDIAL | 207

não conseguia dar conta dos custos da uni- um determinado limite, manter os déficits
ficação – converter o marco oriental e salvar orçamentários abaixo de uma determinada
as indústrias e a agricultura devastadas da porcentagem de despesa total de governo e
Alemanha Oriental – e, ao mesmo tempo, manter o total de seus empréstimos abai-
servia de âncora para o SME. Em parte em xo de uma certa porcentagem do PIB – ou
resposta à exuberância generosa e, em parte, seja, adotar políticas financeiras e sociais
para ganhar votos, Kohl, passando por cima aceitas pela União – e sofrer pesadas mul-
do Bundesbank alemão, prometeu resgatar tas se descumprissem as regras. Essas con-
o marco oriental em paridade com o oci- dições mostraram, em pouco tempo, que
dental. Em teoria, o governo da Alemanha não eram tão seguras no caso de membros
Ocidental tinha opções sobre como se pro- existentes, quando a Alemanha e a França
teger contra a inflação inerente a essa gene- as romperam impunemente.
rosidade e ao financiamento da reabilitação Em um último passo, que pretendia fe-
do leste, mas uma desvalorização do marco char a porta a importantes revisões por al-
era considerada inconcebível, e mais impos- gum tempo, pediu-se que o ex-presidente
tos, um fardo maior do que fazer emprésti- Giscard d’Estaing propusesse mudanças
mos. Sendo assim, as taxas de juros tiveram constitucionais (como direito de voto no
de ser elevadas e, dada a posição do marco Conselho de Ministros) para lidar com a du-
em toda a CEE, as taxas de juros em outros plicação no número de membros da União
países também tiveram de ser aumentadas – – o que ele fez com uma cautela desconcer-
ou, pelo menos, não puderam ser reduzidas. tante. No final de 1990, cinco membros cen-
Dito cruamente, o restante da CEE estava trais da Comunidade concordaram em abo-
pagando, na forma de juros mais altos, parte lir vistos de entrada e controles de fronteira
do custo de ressuscitar a Alemanha Orien- recíprocos. O chamado acordo Schengen
tal, quando aquilo de que necessitava era di- (baseava-se em um programa de computa-
nheiro mais barato para reacender seu pró- dor Schengen) foi introduzido em 1995 por
prio crescimento. O Bundesbank foi pego seus cinco membros originais além de Espa-
entre a necessidade, por um lado, de altas nha e Portugal, e ampliado para nove com a
taxas de juros para combater a inflação na adesão da Itália e da Áustria em 1997, quan-
Alemanha e, por outro, uma necessidade em do uma corrida de refugiados curdos para
toda a Europa de taxas de juros mais baixas a UE, principalmente através da Itália, tor-
para combater a recessão. O banco deu prio- nou urgente que os parceiros do Schengen
ridade à primeira, como era sua obrigação, formulassem uma política comum sobre
segundo a sua Constituição. De qualquer asilo político e uma força policial integrada.
forma, não estava muito entusiasmado em Também reforçou a decisão de membros
relação à integração monetária que poderia que não participavam do acordo Schengen
transferir seu poder para um Eurobanco de não fazê-lo.
central. Esses foram elementos preliminares à
Em relação à questão de se a CEE de- conferência realizada em Maastricht no iní-
veria pisar no freio ou acelerar, a Alema- cio de 1992. Nela, todos os 12 membros da
nha escolheu apostar na tentativa de fa- Comunidade assinaram um tratado cujo
zer com que suas contribuições fossem principal propósito era dar mais precisão
reduzidas. Em troca, os beneficiários dos e progresso à união monetária e econômi-
empréstimos eram relembrados de suas ca, e acrescentar uma série de princípios e
obrigações de manter a inflação abaixo de mecanismos às políticas econômicas para a
208 | PETER CALVOCORESSI

coordenação de políticas em outras áreas. O econômica e monetária. Nessas questões, a


tratado criou uma União Europeia à qual a União era o Conselho de Ministros da Co-
Comunidade e seus órgãos foram integrados. munidade agindo em esferas das quais essa
A União Europeia era uma federação estava totalmente excluída, e o parlamento,
em tudo, menos no nome (sendo que uma quase totalmente. Essas esferas eram as po-
federação é essencialmente uma união es- líticas externa e de segurança e as políticas
tabelecida por tratado, e não por conquis- internas relacionadas a elas, por exemplo,
ta). A primeira proposta do acordo reco- imigração, drogas, terrorismo e alguns tipos
nhecia esse fato, mas a palavra “federal” foi de crime. Essa parte do tratado se resumia a
retirada em deferência às suscetibilidades pouco mais do que declarações de intenção.
britânicas, o que não afetou a substância, O tratado não revogava a competência da
já que em todas as associações políticas, Comunidade especificamente para negociar
independentemente de como forem cha- acordos econômicos em nome próprio com
madas, a questão inescapável é a delineação países nem grupos de países fora dela.
de poderes entre autoridades de diferentes A parte mais concisa do Tratado de
níveis. Nessa questão, o tratado afirmava o Maastricht lidava com a união econômica
princípio da “subsidiaridade” que atribuía e monetária, cuja primeira etapa já estava
autoridade ao Estado-membro em todos os em vigor. A segunda, voltada a preparar o
casos de dúvida ou aparente sobreposição caminho para a terceira (implementação
entre esse e a Comunidade ou União: esse integral), estava marcada para começar em
princípio foi assumido por três sucessivos 1994. Na segunda etapa, o Instituto Monetá-
presidentes da comissão – François-Xavier rio Europeu, uma associação de bancos cen-
Ortoli em 1975, Roy Jenkins em 1977, e Ja- trais dos países-membros, deveria supervi-
cques Delors, que insistiu em sua inclusão sionar e tentar garantir as precondições para
no Tratado de Maastricht. uma moeda e um banco central únicos. As
A União Europeia introduziu uma ci- precondições essenciais eram práticas orça-
dadania europeia além da cidadania de seus mentárias sustentáveis e mecanismos para
vários membros e deu a todos os cidadãos as sustentar. Elas foram definidas como
o direito, a partir de 1994, de votar em elei- referências, mas não como condições rígi-
ções no país em que estivessem residindo, das, em termos de convergência em quatro
desde que as regras fossem adotadas por categorias: inflação de preços (5,1%), ren-
unanimidade pelo Conselho de Ministros. dimentos sobre títulos de 10 anos (8,5%),
(Essas disposições eram semelhantes a pro- déficits orçamentários como porcentagem
postas feitas por Churchill a Roosevelt para do PIB (3%) e dívida pública bruta como
uma união anglo-americana, Churchill tam- porcentagem do PIB (60%). A terceira eta-
bém propôs uma moeda única). pa deveria ser alcançada em 1999. Desde
Foi criado um Conselho da Europa o início de 1997, o Conselho de Ministros
composto por chefes de governo e do pre- poderia decidir que a maioria dos membros
sidente da Comissão, encarregado de se (sete) tinha atingido a convergência neces-
reunir uma vez por ano e apresentar ao sária e poderia, assim, marcar uma data
parlamento europeu um relatório sobre o para a inauguração da união integral des-
estado da União. A União também estava ses membros. Na ausência dessa decisão, a
encarregada de desenvolver políticas co- união integral seria igualmente inaugurada
muns em áreas fora das preocupações ime- a partir do início de 1999, sujeita a dispo-
diatas da Comunidade com a integração sições relativas a membros ainda não em
POLÍTICA MUNDIAL | 209

condições de aderir. A primeira data pres- vertia o desdém de Thatcher em relação à


sionaria os retardatários se quisessem evitar Comunidade e a alienação da Grã-Bretanha.
a criação de uma Comunidade em dois ní- Os outros membros estavam satisfeitos em
veis. Essa era a única parte do tratado que situar as questões sociais em um protoco-
comprometia os signatários especificamente lo opcional como preço de manter a Grã-
com qualquer coisa não contida no Tratado -Bretanha no grupo. O próprio protocolo
de Roma ou no Ato Único Europeu. A Grã- era uma declaração de princípios gerais
-Bretanha estava isenta de suas disposições. inapeláveis que poderiam ser evocados pela
Em termos mais gerais, o tratado também Comissão se estivesse disposta a formular
redefinia ou ampliava o compromisso da diretivas relacionadas a isso, que depois
Comunidade com a harmonização de políti- poderiam ser aprovadas ou não pelo Con-
cas e de leis em certas áreas, como transpor- selho de Ministros. O protocolo cobria te-
tes, movimentação de fundos, qualificações mas como saúde e segurança no trabalho e
profissionais e meio ambiente. Também era salários iguais para homens e mulheres, mas
importante pelo que excluía da ação ou con- excluía outros, como o direito de associação
sideração conjuntas, por exemplo, a presta- entre trabalhadores, greves e níveis salariais.
ção de serviços de saúde e princípios gerais A estrutura da Comunidade foi pouco
da Comunidade em relação a esses serviços. afetada pelo tratado de Maastricht. O Con-
A principal fragilidade dessa parte do tra- selho de Ministros, baluarte dos governos
tado era uma discrepância enorme entre o nacionais, manteve sua dominação, embo-
programa de unidade econômica e o calen- ra dentro dele o veto de cada membro te-
dário incorporado ao programa. nha sido diluído pela expansão do voto de
Os serviços sociais e as áreas pouco cla- maioria em lugar de unanimidade. A partir
ras entre políticas econômicas e sociais se de 1995, o presidente da Comissão deve-
tornaram tema de debate acirrado, princi- ria ser nomeado por governos-membros
palmente entre a Grã-Bretanha e os outros depois de consultas com o parlamento, e
membros. Esses últimos queriam ir além todos os outros membros da comissão se-
da Carta Social adotada em 1989, mas os riam nomeados por governos depois de
conservadores britânicos se opuseram fir- consultas com o presidente. A autoridade
memente a essa parte do tratado, que foi do parlamento recebeu um impulso margi-
reformulado como protocolo separado não nal. Além de poder dar opiniões e emendar
aplicável aos britânicos. Na raiz dessa dis- diretivas, ele adquiriu um novo direito de
cordância estava a continuada disposição veto em circunstâncias limitadas e poderia,
britânica (fortalecida em muito por Tha- por maioria de dois terços, censurar e ga-
tcher) de tratar as relações de trabalho como rantir a demissão de toda a Comissão. Se-
uma forma de combate, diferente da visão, ria eleito pelo mesmo método em todos os
que cumprira um papel notável no milagre Estados, segundo regulamentações a serem
econômico alemão do pós-guerra, de que a aprovadas pelo Conselho de Ministros. O
prosperidade econômica demandava uma Banco Europeu de Investimentos também
parceria entre capital e trabalho. O suces- recebeu um modesto impulso e foi criado
sor de Thatcher, John Major, recusou-se a um Comitê Regional com 169 membros e
ter qualquer envolvimento com qualquer poderes vagos de assessoria. Parecia impro-
Carta, na esperança de reafirmar suas cre- vável que tivesse mais influência do que seu
denciais nacionalistas dentro do Partido predecessor igualmente indefinido, o Co-
Conservador, ao mesmo tempo em que re- mitê Econômico e Social. Todos os mem-
210 | PETER CALVOCORESSI

bros, com exceção da Dinamarca e da Grã- qualquer das etapas. O plano endossava a
-Bretanha, ratificaram o tratado até o final extensão do SME com seu ERM a todos
de 1992. Ele foi rejeitado por 50,7% em um os membros da CEE, e, embora Thatcher
referendo da Dinamarca, mas essa decisão continuasse a se opor, a lógica dos eventos
foi revertida depois que o país adquiriu o obrigou a Grã-Bretanha a aderir ao ERM
direito (já concedido à Grã-Bretanha) de em 1990. Mas o país o fez com uma super-
poder se retirar de partes importantes do valorização insustentável da libra e com
tratado sob alegação de que ele próprio uma taxa estabelecida sem consultar os ale-
permitia essas manobras. Na Grã-Breta- mães e outros parceiros que poderiam ser
nha, onde a adesão foi sujeitada ao endosso chamados a sustentá-la. A Grã-Bretanha
parlamentar (embora, apenas suas implica- cortou simultaneamente as taxas de juros
ções fiscais demandassem a aprovação da e levantou dúvidas sobre seu compromis-
Câmara dos Comuns), Major conquistou a so com a redução da inflação e a busca das
ratificação por pequena margem, depois de convergências necessárias para implemen-
alguns equívocos e acordos secretos com tar a união monetária.
partidos irlandeses na Câmara. O SME/ERM era, a um só tempo, um
O tratado de Maastricht de 1992 foi mecanismo para regular os valores de troca
concluído por meio de concessões e ex- de suas várias moedas e um passo em di-
clusões para sacramentar o maior fator de reção à substituição dessas por uma moeda
acordo comum em um momento em que a única. Como mecanismo, demandava re-
UE estava enfrentando uma confusão de so- ajustes periódicos de taxas de câmbio por
licitações de adesão por parte de países ex- meio de acordos governamentais organiza-
-comunistas. Os membros existentes espe- dos, em vez de especuladores de curto pra-
ravam manter o processo ordenado (ou seja, zo que operam nos mercados de dinheiro
lento), mas o ritmo dos eventos na Europa em busca de seu próprio lucro imediato.
depois de 1989 derrotou em muito as táti- Em uma etapa em direção à moeda única,
cas empregadas. As solicitações foram divi- incentivou a crença de que os ajustes de-
didas em lotes: 10 países centro-europeus veriam ser cada vez menos frequentes até
(além de Malta, Chipre e, talvez, Turquia) não serem mais necessários: a estabilidade
estariam em primeiro, a serem seguidos por passou a ser confundida com tabelamento.
Romênia e Bulgária. Havia problemas reais Em seus primeiros anos, o ERM foi usa-
e, no papel, condições rígidas. O problema do, como era a intenção, para fazer ajustes
mais grave era financeiro; a antiga União era pequenos, mas frequentes, nas taxas, mas
financiada por seis membros que contribuí- nenhum a partir de 1987; e depois da uni-
am com mais do que recebiam; na nova, es- ficação da Alemanha, perdeu sua âncora
ses seis ainda seriam contribuintes líquidos essencial – uma moeda central não vulne-
e os recém-chegados seriam todos acrescen- rável à inflação. Em 1992, nem a lira italiana
tados à carga financeira que recaía sobre ela. nem a libra esterlina poderiam ser susten-
O Tratado de Maastricht foi seguido tadas dentro dos limites prescritos. A lira
rapidamente pelo colapso do ERM e a fra- foi desvalorizada em 7% e temporariamente
gilização do SME. A CEE tinha aprovado excluída do sistema por especuladores aos
em 1989 um plano (aceito até mesmo por quais o papel intervencionista atribuído ao
Thatcher) para a integração econômica e ERM tinha sido entregue por inação. A li-
monetária, e esse plano foi incorporado bra também foi atacada. Nem Major nem
ao tratado, mas sem limites de tempo para seu chanceler Norman Lamont influencia-
POLÍTICA MUNDIAL | 211

ram a adesão ao UME (o que foi feito por ve algumas das objeções de seu predecessor
Thatcher). Lamont não gostava da União à forma como a União estava avançando,
Monetária Europeia e estava determinado a abandonou sua postura de obstrução teimo-
não desvalorizar a libra, cujo valor de troca sa, declarando, de antemão, sua disposição
ele visava a preservar elevando as taxas de de adotar a Carta Social de Maastricht (e
juros. Ele subestimara em muito até onde incorporar às leis britânicas a Convenção
o Deutschmark tinha sido fragilizado pela Europeia de Direitos Humanos) e afirmou
unificação da Alemanha e rejeitou ofertas um importante papel construtivo, enquanto
alemãs para um realinhamento negociado insistia em manter o controle soberano so-
de moedas. A libra caiu abaixo de seu limite bre a imigração e o asilo e freava a evolução
pelo ERM, foi suspensa e depois desvalori- de políticas de defesa comuns. Mais des-
zada em 17%. O Exchequer britânico per- concertante foi o advento de Jospin como
deu bilhões de libras. primeiro-ministro francês, aparentemente
Não disposto a abrir mão do cargo, La- pego de surpresa por sua vitória e inseguro
mont foi demitido por Major. Houve com- sobre como manobrar entre a determinação
pensações, principalmente para os exporta- de Chirac de ser parte de uma moeda única,
dores, nesse grave e mal gerenciado ajuste, em 1999, e o ceticismo de seu próprio parti-
mas a tentativa de Lamont de mostrar que do, o socialista, nessa questão.
poderia administrar a economia da Grã-Bre- O impulso por trás do plano para uma
tanha sem levar em consideração os princi- moeda única o mais cedo possível e com am-
pais parceiros europeus não foi sensata nem pla participação estava na impetuosidade de
bem-sucedida. O próprio ERM perdeu credi- Kohl e na colaboração de Chirac. Kohl, em
bilidade, mas os caprichos de outras moedas particular, estava cada vez mais imbuído do
foram resolvidos mais rapidamente do que o medo de um renascimento do nacionalismo
esperado, e, no princípio de 1994, o Instituto alemão se a UE fracassasse. Mas havia sérias
Monetário Europeu, o Eurobanco em exercí- dúvidas sobre se os critérios de Maastricht
cio, abriu suas portas em Frankfurt. poderiam ser cumpridos, mesmo na Alema-
Quando o mandato de Delors na presi- nha. Além das precondições de Maastricht,
dência da comissão chegou ao fim, em 1994, que comandavam a admissibilidade de cada
Major vetou o belga Jean-Luc Dehaene para moeda nacional, ainda havia o problema de
sucedê-lo, mas aceitou Jacques Santer, de administrar uma moeda única depois de sua
Luxemburgo, cujas visões eram praticamen- criação. A Alemanha e a França vislumbra-
te as mesmas das de Dehaene. No mesmo vam um pacto de estabilidade para salva-
ano, a Áustria, a Suécia e a Finlândia se tor- guardar a força da nova moeda impondo
naram membros. regras – com multas por descumprimento
O caminho de Maastricht rumo à maior – para impedir que os membros da União
integração e o ímpeto pós-comunista de Monetária Europeia relaxassem suas prá-
extensão da união para a Europa Central e ticas orçamentárias e, assim, fragilizassem
Oriental levaram a outra reunião em Ams- a moeda. Quaisquer regras desse tipo en-
terdã, em 1997, cujos resultados foram mo- volviam alguma forma de controle central
destos. Pouco antes do evento, a debandada sobre as estratégias financeiras nacionais e
dos conservadores britânicos e a inespera- a independência. Kohl pretendia uma pre-
da queda do governo francês alteraram o cisão rigorosa; Chirac e o então primeiro-
clima político. O novo governo trabalhista -ministro Alain Juppé estavam dispostos a
britânico, ao mesmo tempo em que mante- subscrever o programa alemão, embora não
212 | PETER CALVOCORESSI

sem receios em relação aos efeitos do pacto se sustentar por si só. O teste do euro viria
sobre os gastos do governo, os quais os so- em momentos em que o dólar se fragili-
cialistas franceses, em particular, queriam zasse. Como no final do século a economia
estar livres para ampliar com vistas a comba- norte-americana floresceu e o dólar se forta-
ter o desemprego. Em Amsterdã, os alemães leceu, o euro viveu sua infância sem passar
prevaleceram, Jospin seguiu a orientação de por esse teste.
Chirac, e a conferência adotou o princípio de Em Amsterdã, o acordo Schengen foi
que os orçamentos nacionais deveriam ser ampliado para toda a União, com licenças
equilibrados a médio prazo. para Grã-Bretanha, Irlanda e Dinamarca
A meta principal foi endossada deixan- ficarem de fora. As políticas externas deve-
do-se muitas outras coisas não ditas. riam ser integradas apenas por discussões
No início de 1999, 11 Estados-membros intergovernamentais – ou seja, os orgãos da
adotaram uma moeda comum, o euro, sob UE seriam excluídos – mas as políticas con-
controle do Banco Central Europeu com sensuais seriam implementadas pela União
bastante independência em relação aos go- sujeitas apenas à votação por maioria quali-
vernos e com uma taxa de juros inicial de ficada no Conselho de Ministros. Não houve
3% em todos os 11 territórios (com exceção muitas mudanças nas regras relacionadas à
da Itália, onde era de 2,5%). Grã-Bretanha, unanimidade ou votações por maioria, nem
Dinamarca, Suécia e Grécia postergaram qualquer acordo sobre reforma da comissão
sua adesão, esta última porque não tinha (que agora tinha 15 membros, mas menos
cumprido os critérios de Maastricht e os departamentos realisticamente distintos)
outros, por opção. Fora da zona do euro, a além de dispor que, na próxima entrada de
oposição a uma moeda única se tornou mais membros, os que tivessem dois lugares na
simbólica do que econômica. Um mercado Comissão perderiam um em troca de mais
único não exigia uma moeda única, mas um peso no cálculo dos votos ponderados no
mercado único com concorrência justa, sim. Conselho. Depois de Amsterdã, a Comissão
A questão real era o fato de poder ou não retomou a abordagem para a ampliação da
permitir que um país desfrutasse do direito União e o Conselho de Ministros sancio-
de fazer desvalorizações competitivas unila- nou a abertura de negociações com – além
terais de sua moeda. de Chipre, já aprovada – Polônia, República
O euro foi concebido com duas funções Tcheca, Eslovênia e Estônia, sujeitas (pro-
distintas. Deveria refletir e promover ainda posta de 1993) a condições satisfatórias em
mais a integração econômica e política da termos de democracia política, economia de
Europa, da mesma forma que as moedas livre mercado, direitos humanos e salvaguar-
nacionais unidas tinham substituído e uni- das para minorias. Em 1998, uma conferên-
ficado as várias moedas nacionais de países cia especial em Londres teve a participação
como França, Alemanha e Itália. Em segun- de 11 candidatos à admissão (mas não da
do lugar, deveria passar a ser uma moeda Turquia), bem como de todos os membros
mundial no sentido de pronta aceitabilida- existentes, e, no ano seguinte, Polônia, Re-
de e uso difundido em toda a economia do pública Tcheca e Hungria começaram nego-
mundo, junto com o dólar e o iene. Estava ciações para admissão. Em 1999, a Comis-
pensada, não para suplantar o dólar, mas são propôs a abertura de negociações com
para fortalecer um sistema mundial no qual outros seis países: Letônia, Lituânia, Eslo-
o dólar, cuja função central era de servir à váquia, Romênia, Bulgária e Malta, e que a
economia dos Estados Unidos, não poderia Turquia fosse reconhecida como candidata.
POLÍTICA MUNDIAL | 213

Nas questões externas, a União já tinha mentavam essa meta. Na esfera militar, os
operado como entidade única na última proponentes de uma estrutura e de forças
rodada (Uruguai) do GATT. A guerra na integradas para a UE e a absorção da UEO
Iugoslávia reforçou a necessidade de algu- não eram bem vistos por aqueles, princi-
ma integração de políticas na Europa. No palmente pelos britânicos, que temiam
Oriente Médio, os europeus tinham fortes qualquer redução do papel da OTAN e dos
razões para articular suas políticas: pe- Estados Unidos na Europa. Os empreen-
tróleo e geografia. A UE retirava mais da dimentos conjuntos se limitaram a uma
metade de seu petróleo do Oriente Médio força franco-germânica à qual se juntaram
– três vezes mais do que as importações Bélgica, Luxemburgo e Espanha e duas
que os Estados Unidos faziam da mesma forças (aérea e terrestre) configuradas por
região. (As exportações da UE ao Oriente França, Espanha e Portugal. Os europeus
Médio superavam as norte-americanas em não viam muitas ocasiões para o uso da
quatro vezes.) Além disso, o Oriente Mé- força armada dentro da UE, exceto como
dio e a África do Norte ocupavam metade reforço ao poder civil durante perturba-
do litoral mediterrâneo, com os europeus ções civis, mas as guerras na Iugoslávia
ocupando a outra metade. A crescente la- nos anos de 1990 demonstraram a neces-
cuna entre ricos e pobres nessas regiões, sidade de ação conjunta fora de território
apesar de ameaçar a estabilidade que era da UE, a dependência dos Estados Unidos
vital para a produção e o transporte con- e as diferenças entre eles, e a necessidade
tinuados de petróleo, incentivavam a imi- de a União estar mais bem equipada para
gração para a UE em um volume alarman- administrar suas próprias questões. Em
te. A UE implementou um programa de 1998, a França e a Grã-Bretanha iniciaram
acordos comerciais com os países árabes um plano para uma força de reação euro-
e Israel, que se ampliou para uma política peia rápida com instituições e inteligência,
endossada em 1995 pelo Conselho de Mi- sob controle do conselho de ministros da
nistros, com vistas a uma zona de livre co- UE, dentro do quadro da ONU e coerente
mércio geral voltada não apenas a aumen- com as obrigações do Tratado do Atlântico
tar o comércio mas também a afastar os Norte; e, em 1999, a UE criou o novo cargo
riscos da instabilidade, com uma perspec- de Secretário-Geral do Conselho de Mi-
tiva, ainda não declarada, de ampliar essa nistros e Alto Representante para Política
zona do Mediterrâneo ao Iraque e ao Irã Exterior e de Segurança. Tendo em conta
– países estigmatizados pelos Estados Uni- a necessidade de não parecer uma rejeição
dos como párias terroristas. Os europeus aos Estados Unidos, a UE deu esse cargo
temiam que a retórica anti-islâmica dos ao secretário-geral da OTAN que encerra-
Estados Unidos e o compromisso com Is- va seu mandato, Javier Solana. Ao mesmo
rael estivessem desestabilizando a região, e tempo, a OTAN indicou para o cargo de
se ressentiam de sua exclusão por parte dos Solana o secretário de Estado para a defe-
Estados Unidos das conversações de paz sa britânica George Robertson, um firme
entre israelenses e palestinos em Madrid e atlanticista e europeísta.
Washington. Embora tivessem em comum A UE sofreu, em 1999, um duro golpe,
com os Estados Unidos um desejo urgente ainda que salutar, quando um relatório en-
de paz no Oriente Médio, não confiavam comendado pelo parlamento sobre o fun-
nos meios e, até certo ponto, nas motiva- cionamento da Comissão foi tão negativo
ções com que os norte-americanos imple- que ela renunciou em conjunto.
214 | PETER CALVOCORESSI

As críticas do relatório eram dirigi- original e incontestado da OTAN e da CEE.


das com mais intensidade contra um dos O recuo do país em relação ao fascismo o
membros franceses, Edith Cresson, pes- converteu em uma democracia, mas não o
soalmente e contra o presidente ex-officio, tornou próspero. Os governos pós-fascistas
mas o parlamento, sem poderes para de- herdaram uma situação na qual dois mi-
mitir indivíduos, renovou a comissão em lhões de pessoas, em uma população de 20
bloco. Os chefes de Estado e de governo milhões, estavam desempregadas e quase
não perderam tempo e selecionaram como metade dos trabalhadores estava emprega-
sucessor de Santer o ex-primeiro-ministro da (ou desempregada) na agricultura. Em
italiano Romano Prodi, que formou uma 1970, essa proporção foi reduzida a 20%,
comissão majoritariamente nova, prome- mas os problemas fundamentais de super-
teu acabar com a malversação e a ineficiên- população econômica continuavam, para
cia e se deparou com um novo parlamento os quais a solução clássica era a emigração
disposto e mais combativo. Com a saída de (que não era nova, já que Júlio César fun-
Prodi para se tornar presidente da Itália, dara Narbonne, na Gália, com esse propósi-
José Manuel Barroso herdou os problemas to). O principal refúgio, os Estados Unidos,
da reforma constitucional necessária para foi fechado aos poucos por cotas e testes de
a expansão da UE para 27 membros, que nível de instrução. Cerca de 150 mil italia-
acabaram sendo resolvidos pelo Tratado nos deixavam seu país todos os anos para ir
Europeu de Reforma, concluído em Lisboa para Austrália, Canadá e outros lugares, mas
em 2007, que, entre pressões aos menores, ainda não havia trabalho suficiente para os
reduziu o tamanho da comissão e o exercí- que permaneceram (e que, como os que se
cio de veto e também – esperava-se – abriu iam eram mais jovens, passaram a ser uma
caminho para um retorno a questões subs- população em processo de envelhecimento).
tantivas relacionadas à política. Os esquemas para ajudar o sul empobrecido
não eram capazes de dar conta da crescen-
te lacuna entre as duas metades do país, e
O flanco sul os problemas gêmeos de excesso de mão de
obra e regiões deprimidas se tornaram duas
O comando do Mediterrâneo, embora dis- das molas-mestras das políticas da Itália na
putado durante a Segunda Guerra Mundial, Europa do pós-guerra. Na primeira eleição
não foi questionado depois dela, e todos os democrática de um primeiro-ministro no
Estados europeus que tinham litoral nesse país depois da guerra, o eleito, Alcide de
mar (e Portugal) entraram para a OTAN Gasperi, estava convencido de que a cura
com o passar dos anos e depois se tornaram era participar em uma confederação eu-
membros – no caso da Turquia, membro-as- ropeia, de forma que a Itália entrou para a
sociado – da Comunidade Europeia. Malta e Comunidade Europeia do Carvão e do Aço
Chipre, membros da Commonwealth desde como membro fundador em 1951, mesmo
1964 e 1961, também se tornaram associa- que não tivesse carvão nem, fora de Elba,
dos da CEE. minério de ferro.
Um acidente histórico – sua transferên- Em lugar de plantar laranjas e limões
cia para a aliança anglo-americana contra a para deleite dos europeus mais ricos além
Alemanha em 1943 – e o predomínio inin- dos Alpes, a Itália os imitaria, mesmo tendo
terrupto do Partido Democrata Cristão de- que importar ferro da Venezuela para ali-
pois da guerra fizeram da Itália um membro mentar as modernas siderúrgicas que esta-
POLÍTICA MUNDIAL | 215

vam sendo construídas em Taranto, e, duas manter no poder, como haviam feito os fas-
décadas mais tarde, o país estava exportan- cistas imediatamente após 1922, por meio
do 20 milhões de toneladas de aço por ano. de alianças com partidos menores e subor-
Nos anos de 1950, o PIB foi dobrado através dinados, mas, sem descansar dos ataques à
da modernização da indústria, do investi- oposição e sem disposição ou capacidade
mento na formação e do bom uso do su- para produzir uma nova geração de líde-
perávit de mão de obra; a produção indus- res, mostrava uma queda em seu sentido de
trial aumentou de um quarto até cerca de propósito, uma incapacidade de dar conta
metade da produção total. A descoberta de dos problemas econômicos e uma negligên-
gás natural no vale do Pó deu um impulso cia com relação a padrões de moralidade
inesperado a partir de 1958, embora as re- pública que teriam garantido sua derrota
servas tenham se mostrado limitadas e esse mais cedo se seus principais adversários
benefício imprevisto tenha durado apenas não fossem os comunistas, considerados
alguns anos. um tabu. Esses perderam algum apoio en-
de Gasperi governou a Itália até morrer, tre a classe média e os intelectuais a partir
em 1954, como líder incontestado do Par- dos choques de 1956 e 1968, mas mantive-
tido Democracia Cristã (DC), intimamente ram – mais uma vez, até 1987 – a maioria
associado à Igreja Católica em todos os ní- do considerável setor popular que era seu
veis, desde o Vaticano até o padre de cada seguidor. Durante o breve pontificado de
paróquia, a qual, no contexto da Guerra João XXIII (1958-1963), houve uma dimi-
Fria, proibia uma coalizão com os comu- nuição da interferência papal nas questões
nistas – o segundo maior partido da Itália italianas, mas nenhuma renúncia ao direito
e o maior partido comunista europeu fora especial do Vaticano de intervir no Tratado
da URSS. Seu sucessor como primeiro-mi- de Latrão de 1929. A excomunhão dos co-
nistro, Amintore Fanfani, não era afeito à munistas por Pio XII foi suspensa, não se
interferência clerical em questões de Esta- repetiram os ataques ao presidente Gronchi
do e gostaria de retomar alguns aspectos do por visitar Moscou, e, embora o debate so-
Estado corporativista anterior à guerra, mas bre o divórcio civil na Itália em 1969-1970
carecia do domínio pessoal e político de de tenha levado a um recrudescimento clerical,
Gasperi (e muito mais do de Mussolini), e a questão Igreja-Estado não passou do nível
era líder não do DC, mas de uma facção – de uma costumeira disputa familiar, ainda
a maior – dentro dela. Em 1962, Fanfani, que, por vezes, exageradamente incômoda.
junto com o mais flexível Aldo Moro, mon- A democracia italiana não sucumbiu ao co-
tou uma coalizão com os socialistas e, em munismo nem ao clericalismo, nem teve o
1964, ele concorreu, sem sucesso, a presi- destino da democracia grega, embora tenha
dente. (Voltou a fazê-lo em 1971 e morreu sido detectada uma trama fascista por parte
em 1999.) A partir de meados da década de do príncipe Valerio Borghese em dezembro
1960, ele se voltou a políticas radicalmente de 1970. Mesmo assim, nos anos de 1970, a
de direita, à medida que a política italiana se Itália estava em mau estado, política e eco-
tornava cada vez mais um campo de confli- nomicamente.
to dentro de um partido e – embora o pró- O governo inspirava pouca confiança,
prio Fanfani fosse um exemplo de impecá- os serviços públicos falhavam regularmen-
vel integridade – tornava-se mais corrupta te, a corrupção era um tópico aberto e até
(não muito diferente da política no Japão). popular de conversas, a inflação subiu e, em
Até as eleições de 1987, a DC conseguiu se 1974, o ano da primeira crise do petróleo,
216 | PETER CALVOCORESSI

o déficit no balanço de pagamentos chegou cegamente subservientes a um movimento


a 825 milhões de dólares (dos quais 500 internacional e, particularmente, ao Parti-
milhões eram relacionados ao petróleo). A do Comunista da União Soviética (PCUS).
Alemanha Ocidental e o FMI vieram resga- Foi uma tentativa de negar o passado stali-
tar, mas a Itália parecia ser um dreno per- nista. Também foi uma tentativa de forta-
manente para a CEE e, particularmente de- lecer a tradição comunista central contra a
pois das eleições regionais de julho de 1975, Nova Esquerda que, ainda mais à esquer-
um risco político, já que os votos comunis- da, estava apresentando os partidos comu-
tas se aproximavam dos democratas cris- nistas como anacronismos fossilizados. O
tãos e os aliados da Itália se perguntavam o PCI estava retomando a visão do século
que fariam se os comunistas entrassem no XIX de que o socialismo poderia ter ga-
governo (eles tinham participado pela últi- nhos substanciais por meios democráticos
ma vez em 1947) ou se seus êxitos eleitorais – que eleições livres entre diversos partidos
provocassem a direita a dar um golpe. O poderiam dar bons resultados. Essa visão
problema foi ignorado e prolongado quan- foi enterrada no século XX pelo centra-
do, na eleição geral de 1976, os democratas lismo democrático disciplinado de Lênin,
cristãos conseguiram manter uma pequena pela imagem dos democratas assumindo o
vantagem em relação aos comunistas, mas lado dos Brancos na Rússia depois de 1917
foram forçados a formar um governo de e, posteriormente, pela preferência que os
partido único, sem maioria parlamentar e democratas ocidentais tinham pelo fascis-
dependente das abstenções comunistas. A mo em detrimento do comunismo. Mas a
queda desse governo, dois anos depois, re- visão mais antiga nunca chegou a ser per-
avivou os argumentos a favor e contra uma dida na Itália.
coalizão entre os dois principais partidos, Palmiro Togliatti era um crítico explí-
o democratas cristão e o comunista. Entre cito da URSS, mesmo nos anos de 1950, e,
os opositores estavam os Estados Unidos na conferência de partidos comunistas em
e o Vaticano, por um lado, e a extrema es- Moscou em 1969, ele se opôs sozinho às te-
querda, por outro, que considerava a parti- ses de Brejnev que tentavam justificar a in-
cipação comunista nessa aliança como uma vasão russa da Tchecoslováquia e que foram
traição. Aldo Moro, presidente da Demo- aceitas até mesmo pelos partidos espanhol e
cracia Cristã, foi sequestrado e assassinado francês – esse último sem reservas.
por extremistas que queriam afirmar esse Togliatti encontrou um aliado para sua
argumento. perspectiva mais nacionalista no líder es-
O Partido Comunista Italiano (PCI) era panhol Santiago Carrillo, que, depois de se
o maior fora da URSS e cumpria um papel opor ao eurocomunismo, converteu-se e
de destaque na política nacional e local do escreveu seu texto básico, O eurocomunismo
país, estando ou não no poder, e tinha uma e o Estado. O PCI apoiou o chamado com-
longa tradição intelectual nativa que o torna- promisso histórico na Itália, uma aliança de
va menos estrangeiro do que outros partidos todos os partidos antifascistas. Aprovou a
comunistas pareciam ser. Era o centro do participação da Itália na CEE em contras-
eurocomunismo, que estava muito em voga te com o ambivalente PCF, que boicotou o
na década de 1970 e atraía em particular os parlamento europeu até 1975 e se opôs a
partidos espanhol e francês (PCE e PCF). eleições diretas para essa casa até 1977. Em
O eurocomunismo foi uma afirmação 1974, o PCI declarou não exigir que a Itália
de que os comunistas não precisavam ser saísse da OTAN.
POLÍTICA MUNDIAL | 217

O exemplo italiano levou o partido es- ciada saqueando os cofres públicos. A mal-
panhol e, com mais hesitação, o francês, a versação, que incluía o tráfico de influências
uma entente eurocomunista sem contornos por parte dos líderes políticos na alocação
rígidos, mas havia pouca substância positiva de contratos públicos lucrativos, com o pri-
nisso para além de se desligar da mácula da meiro-ministro socialista Bettino Craxi tão
tutela russa. Os comunistas da Europa nor- profundamente implicado quanto os líderes
te-ocidental, incluindo a França, quase não democratas cristãos, estava difundida a pon-
tinham perspectiva de chegar ao poder por to de o sistema não poder ser salvo por falta
meio das urnas, principalmente em função de segmentos suficientemente imaculados.
da existência de partidos socialistas consi- A ação corajosa por parte de juízes e promo-
deráveis. No sul da Europa, eles poderiam tores contra os chefões da Máfia foi seguida
ter esperanças de um melhor desempenho, de ações penais contra eminentes políticos e
mas, se o conseguissem, muito provalvel- empresários. As eleições locais e nacionais
mente seriam impedidos de assumir o cargo em 1991 reduziram os restos respeitáveis da
por exércitos anticomunistas inflexíveis. Democracia Cristã à insignificância. Com
A ordem política italiana entrou em co- milhares de políticos sob investigação po-
lapso de forma desconcertante abrupta nos licial, milhares de servidores públicos com
anos em torno de 1990. O princípio funda- medo de serem processados ou demitidos e
mental da política italiana, a partir de 1947, todos os partidos estabelecidos tendo mais
tinha sido a exclusão dos comunistas do ou menos caído em descrédito, novos par-
governo. O Partido da Democracia Cristã tidos surgiram com promessas de limpeza
governou por todo esse período, sozinho ou radical da vida pública e curas vagamente
em coalizões das quais era membro essen- milagrosas para uma imensa dívida pública
cial, e formou o núcleo de uma classe gover- que crescia em quantias equivalentes a 10%
nante mais ampla que incluía financistas, do PIB ao ano. A política estava polarizada
industriais, elementos de contato com seus em torno de um centro vazio.
parceiros no Vaticano, na Máfia e em outras Duas forças surgiram desse complexo
forças mais ou menos direitistas. O antico- cataclismo: uma força nova de esquerda,
munismo comum a essas forças e a devoção cujo principal ingrediente era o Partido
a seus vários interesses materiais superava Democrático da Esquerda (formado pelos
suas diferenças, subordinava o caráter justo segmentos mais flexíveis do antigo Partido
e livre da política democrática e alimenta- Comunista) e uma aliança de direita que
va uma corrupção generalizada tanto por consistia em um velho partido, um partido
parte dos partidos menores, que cobravam novo e algo que nem era um partido. O ve-
um preço por ajudar a manter os comunis- lho partido era o Movimento Social Italiano
tas fora do governo, quanto pelos maiores, (MSI), formado em 1946 como uma relíquia
que precisavam de cada vez mais dinheiro do fascismo. O partido operou de forma
para manter seus aliados contentes e seus lí- discreta dentro das regras da política de-
deres em um estilo de vida condizente. Com mocrática, atraiu gradualmente membros e
o colapso do domínio comunista na Europa, votos de outros grupos de direita, tornou-se
o elemento anticomunista que dava coesão um parceiro de mais importância e, ocasio-
ao sistema desapareceu. Por coincidência, nalmente, fornecia os votos parlamentares
as pressões econômicas, além de ameaçar a necessários para manter o governo Demo-
economia e o ânimo nacionais, foram des- crcia Cristã no poder. Depois de quase meio
gastando a ordem política, que era finan- século, seu líder, Giorgio Almirante, cedeu
218 | PETER CALVOCORESSI

lugar (1987) a Gianfranco Fini, que, embo- mídia) de qualquer tentativa de regulamen-
ra deposto temporariamente em 1990-1993, tação, receio diante da economia e da ordem
recuperou o poder a tempo para as eleições política em frangalhos do país, a perspectiva
em 1994, ano em que o partido mudou de de vitórias eleitorais comunistas e a necessi-
nome para Aliança Nacional (AN). Fini re- dade de que algum novo partido preenches-
presentava o núcleo conservador tradicional se a lacuna entre a AN-MSI e a Liga Nor-
de um partido que também tinha uma ala te. Com esses e outros partidos de direita,
radical revolucionária. Além de causas ca- Berlusconi criou, em janeiro de 1994, o Polo
tólicas, comuns a muitos partidos de direi- da Liberdade, que venceu as eleições dois
ta na Europa, a AN-MSI preservava noções meses mais tarde. Seu programa político
fascistas, como o Estado corporativista, o era mais retórico do que preciso. Prometia
destino da Itália como potência mediterrâ- libertar a iniciativa privada, reduzir o gover-
nea e suas reivindicações sobre territórios no, diminuir as despesas governamentais,
na costa leste do Adriático. Tinha mais força criar um milhão de novos empregos e intro-
no sul e no centro do que no norte. duzir uma democracia presidencial em vez
Em contraste, a recém-criada Liga Nor- de parlamentar, mas seu principal atrativo
te tinha pouco apoio no sul e no centro. Era era a novidade.
um amálgama de ligas menores, começando Berlusconi e seus aliados obtiveram 366
com a Liga Veneziana, fundada em 1983, de 630 cadeiras na Assembleia Nacional,
e corporificava o conservadorismo de pe- com 43% dos votos. Os partidos de esquer-
quenas empresas contra os conglomerados da conquistaram 213 cadeiras, com 34%, e
superpoderosos e o Estado superinvasivo. os grupos de centro, não mais do que 46 ca-
Considerava a região central e Roma como deiras. Essa foi uma vitória da direita, mas
terra de parasitas corruptos e o sul como não, obviamente, da limpeza política. Com
uma terra de delinquentes preguiçosos, a Força Itália surgindo como o maior par-
e defendia a autonomia regional em uma tido isolado no parlamento, Berlusconi se
Itália federada em contornos pouco rígi- tornou primeiro-ministro com promessas
dos. Seus líderes, em 1994, eram Umberto constrangedoramente grandiosas de impos-
Bossi e Gianfranco Miglio, líderes da Liga tos mais baixos, mais empregos e governo
Lombarda, que haviam assumido a Liga limpo. Ao poder que já tinha através de seus
Veneziana como a voz do norte da Itália. jornais e televisão, ele acrescentou o endos-
A esses partidos se acrescentaram a Força so das urnas. Não se sabe ao certo até onde
Itália e Silvio Berlusconi, a primeira pouco ele considerava compatíveis essas duas fon-
mais do que um slogan e o segundo, um dos tes de poder, e essa era uma questão muito
empresários mais bem sucedidos da Itália, premente, já que a Força Itália, sozinha, não
presidente da Fininvest, a holding criada por tinha maioria na assembleia, onde dependia
ele, cujos bens incluíam grande parte da im- dos interesses explicitamente regionais da
prensa e da televisão italianas. As razões de Liga Norte e dos inquietantes preconceitos
Berlusconi para entrar na política à direita da semifascista AN-MSI. Como magnata
(anteriormente, ele tinha apoiado e estabe- bem-sucedido, Berlusconi tinha uma visão
lecido vínculos com políticos de esquerda) europeia e internacionalista, mas a de seus
incluíam a derrocada do Partido Democra- aliados era indiferente a essas questões mais
cia Cristã e o desejo de ocupar o lugar desse, amplas ou oposta à sua. Ele se apresentava
a necessidade de defender seu império em- como um rompimento com um passado
presarial (principalmente seus interesses na desagradável, mas seus próprios vínculos
POLÍTICA MUNDIAL | 219

com esse passado não eram desprezíveis. nos pela UE, mas era o segundo grupo mais
A diferença mais óbvia entre a Força Itália forte da coalizão do primeiro-ministro.
e os Democratas Cristãos eram os vínculos No extremo leste do Mediterrâneo, a
mais frágeis da primeira com o Vaticano e aliança ocidental garantia uma posição de
a hierarquia eclesiástica italiana – vínculos vantagem na Turquia e na Grécia que era
mantidos pelo que restou dos Democratas estrategicamente importante, mas também
Cristãos, rebatizados como Partido Popular. constrangedora, em função da hostilidade
As promessas de Berlusconi deram em mútua entre os dois paises. A luta contra ita-
nada. Ele próprio passou a ser investigado lianos e alemães na Grécia, na Segunda Guer-
por corrupção (e foi condenado por subor- ra Mundial, foi dura, mas curta, e a ocupação
no em 1998), elevou impostos e introduziu que se seguiu foi excepcionalmente severa.
um orçamento que foi condenado pelo Ban- A economia predominantemente agrí-
co Mundial e outros orgãos internacionais cola estava devastada, as pontes e a rede
por não atacar um déficit assustador, e se ferroviária, quase que totalmente destruí-
recusou a abrir mão do controle sobre seu das, três quartos da marinha mercante grega
império jornalístico e televisivo. (Berlus- foram perdidos, a fome em Atenas era mais
coni, pode-se dizer, entendeu a política de grave do que em quase qualquer outra parte
poder de sua época como tinha feito Pom- da Europa. A guerra engendrou uma outra,
peu, o Grande, 2 mil anos antes. Pompeu civil, que durou vários anos mais do que a
arriscou perder o cargo de cônsul em Roma primeira e, como consequência de atroci-
antes de renunciar ao comando de seu exér- dades em ambos os lados, marcou a cons-
cito. Berlusconi arriscou o cargo de premier ciência grega por algumas gerações. Uma
em vez de abrir mão do poder que seu im- tentativa comunista de tomar o poder foi
pério de mídia lhe dava.) Seu mandato du- frustrada por tropas britânicas em 1944. A
rou sete meses, menos do que a média dos derrota final dos comunistas, em 1949, foi
50 ministros que o precederam desde o final realizada com ajuda dos Estados Unidos,
da Segunda Guerra Mundial. Ele foi forçado que incluiu o uso de napalm pela primeira
a renunciar quando a Liga Norte se retirou vez. Por mais que o resultado pudesse ter
da coalizão. Suas demandas por uma dis- sido bem-recebido, os gregos não gostavam
solução da assembleia e novas eleições (na da insistência dos britânicos na restauração
qual ele esperava conquistar mais cadeiras) da monarquia e do apoio norte-americano à
foram negadas pelo presidente Oscar Scal- direita política que caracterizou os 50 anos
faro, que encontrou em Lamberto Dini, um seguintes. A linhagem real, inaugurada por
primeiro-ministro “tapa-buraco” de discre- um príncipe dinamarquês 100 anos antes,
ta competência, que foi nomeado no final estava não apenas maculada pela aquiescên-
de 1994 e tapou o buraco por um ano in- cia na ditadura anterior à guerra do general
teiro. Dini foi sucedido por Romano Prodi, Joannis Metaxas, como também era suspeita
que ocupou o cargo (com interrupções) até de ter uma predisposição a servir aos inte-
2008, quando seu governo “colcha de reta- resses de uma ou outra potência estrangeira.
lhos” se desintegrou e Berlusconi voltou ao O rei George II voltou a Atenas depois da
poder com o controle de ambas as casas do guerra de forma muito semelhante ao retor-
parlamento, mas desconfortavelmente de- no de Luís XVIII a Paris em 1814 – no trem
pendente da Liga Norte separatista de Um- de carga de estrangeiros –, e, ainda que seu
berto Bossi, que tinha pouca consideração irmão Paul, que o sucedeu em 1947, tenha
pelos interesses do sul da Itália e ainda me- sido aceito como símbolo de unidade an-
220 | PETER CALVOCORESSI

ticomunista enquanto durou uma ameaça derança de George Papandreou, conquistou


plausível, a derrota dos comunistas o deixou mais cadeiras no parlamento do que qual-
vulnerável a acusações de ser instrumento quer outro partido. Nos anos seguintes, Pa-
dos Estados Unidos e da direita grega. A pandreou iniciou um programa de melho-
derrota foi garantida pela secessão iugoslava rias sociais, principalmente em educação e
do bloco stalinista (Tito precisava restabe- saúde, mas em pouco tempo teve problemas
lecer suas relações com os Estados Unidos) com o palácio, onde, desde a morte de Paul,
e pela criação de um exército grego grande, seu jovem e mal assessorado filho, Constan-
bem equipado e bem treinado, com oficiais tine, reinava e provocava a hostilidade da
direitistas rigorosamente escolhidos. A con- classe de pessoas que associavam todas as
tinuação da guerra civil até o final dos anos reformas sociais ao comunismo.
de 1940 foi um desastre econômico e social, A hostilidade foi acentuada pelas ativi-
parcialmente aliviado por ajuda norte-ame- dades do filho do primeiro-ministro, An-
ricana, e o principal determinante da políti- dreas, um economista que tinha sido indu-
ca externa grega. A Grécia aderiu à OTAN zido por Karamanlis a trocar um emprego
em 1952, um aliado dos Estados Unidos de professor universitário nos Estados Uni-
contra a Europa Oriental e a URSS, mas um dos por um cargo profissional apartidário
parceiro incômodo, já que a preocupação em Atenas. Andreas Papandreou era um
permanente da política grega era a hostili- social-democrata do tipo que se encontra
dade não à URSS, mas à Turquia, uma valio- na Escandinávia ou na ala esquerda do Par-
sa amiga dos Estados Unidos. tido Democrata nos Estados Unidos (tinha
Depois da guerra civil e de um curto pe- feito campanha para Hubert Humphrey),
ríodo de instabilidade política, os governos sua incursão na política grega irritou ou-
conservadores do marechal de campo Ale- tros líderes mais exatamente porque a União
xander Papagos e de Constantine Karaman- de Centro liderada por seu pai não era um
lis (1952-1963) proporcionaram o início da partido de esquerda como o Partido Traba-
recuperação econômica. Sob Karamanlis, lhista Britânico, e sim mais um partido de
que teve um mandato inédito de oito anos centro como o francês Radicais Socialistas.
no cargo, a moeda foi resgatada, e o turismo, Ele se tornou um espectro útil para a direita,
que se tornou uma fonte de riquezas com a que começou a soar o alarme de que o país
invenção do pacote de viagens, foi desen- corria o risco do comunismo e, em 1965, foi
volvido com habilidade, mas a moderniza- dito que ele se envolvera com uma socieda-
ção era interpretada como industrialização de secreta de esquerda no exército grego,
que, em concorrência com outros países chamada Aspida – uma sociedade que não
industriais, tinha resultados decepcionantes pode ter sido muito de esquerda, se é que
e ampliava a distância entre as cidades e o existiu no exército.
campo negligenciado. Um mal disfarçado Enquanto o rei e o primeiro-ministro
Partido Comunista voltou à arena política, trabalharam em harmonia, houve poucas
mas nunca recebeu mais de 15% dos votos, chances de um golpe, mas após uma boa
exceto nas circunstâncias especiais de 1958, convivência inicial, eles entraram em co-
quando seus 25% incluíram um grande voto lisão pelo controle das forças armadas. O
de protesto contra o tratamento que o go- rei considerava esse controle parte de suas
verno deu à crise do Chipre. O centro foi prerrogativas reais, a ser exercido através de
fragmentado por ciúmes pessoais e ficou um ministro da defesa aceito por ele. Papan-
fora do governo até que, em 1963, sob a li- dreou, embora mantivesse no cargo o ho-
POLÍTICA MUNDIAL | 221

mem indicado pelo palácio, acreditava que tro que foram derrubados pelo golpe, mas,
as forças armadas deveriam estar subordi- entre a variedade de possíveis golpes que se
nadas a um controle civil exercido pelo pri- discutiam de forma mais ou menos aberta,
meiro-ministro e pelo gabinete. O enfren- pode-se presumir que os Estados Unidos
tamento veio quando Papandreou tentou preferiam algo mais tradicional do que o
trocar o chefe do Estado-Maior e o ministro que acabou acontecendo.
da defesa se recusou a demiti-lo e a aceitar Os coronéis Papadopoulos e Maka-
sua demissão do governo. Papandreou de- rezos e o Brigadeiro Pattakos não tinham
cidiu resolver a confusão tornando-se seu destaque particular nas forças armadas
próprio ministro da defesa, mas o rei se re- nem um apelo especial junto ao público.
cusou a nomeá-lo e o demitiu do cargo de O que é certo, contudo, é que havia uma
primeiro-ministro. Nesse meio-tempo, o ampla pressuposição de que os norte-ame-
rei esteve tramando com alguns colegas de ricanos tinham participado do golpe, e eles
partido de Papandreou, que foram induzi- se comportaram posteriormente como se
dos a abandoná-lo e, assim, causar a queda realmente tivessem.
do governo no parlamento. Seguiu-se um Depois do golpe, pouco se ouviu falar na
período de manobras sujas acompanhadas ameaça comunista que supostamente era sua
de pequenas demonstrações nas ruas e al- justificativa, e os documentos confiscados
gumas greves, até que elementos moderados no partido de esquerda não geraram qual-
da direita e do centro se uniram para dar quer evidência que sustentasse isso. O golpe
um fim ao espetáculo pouco edificante que foi uma tomada de poder por um punhado
foi desencadeado pelo comportamento an- de fanáticos intolerantes. No final do ano, o
ticonstitucional do rei. Mas os extremistas rei tentou um contragolpe que foi incompe-
da direita pressupondo, como a maioria das tente e, depois de algumas horas, fugiu para
pessoas, que a União de Centro venceria as Roma. O novo regime desmantelou o apare-
próximas eleições, decidiram que elas não lho do Estado, expurgou as forças armadas
deveriam acontecer. e a Igreja, cancelou as reformas sociais de
Essa foi a causa imediata do golpe de Papandreou, intimidou o judiciário e estabe-
abril de 1967, dado por um pequeno gru- leceu um rígido controle sobre a imprensa.
po de oficiais do exército, logo abaixo das Além disso, recorreu à tortura e à brutalida-
patentes mais altas e fora da camada supe- de em grande escala como instrumento deli-
rior que normalmente monopolizava essas berado de suas políticas, segundo a conclu-
patentes e que devia seu avanço à expansão são posterior de uma comissão internacional
do exército depois da Segunda Guerra Mun- de juristas. A tortura por parte da polícia
dial. Eles eram salvacionistas anticomunis- não era algo desconhecido na Grécia, mas o
tas fanáticos, ainda que pouco inteligentes, nível em que foi praticada pelo regime apa-
que viam a política como uma competição vorou o mundo quando os fatos se tornaram
simples e dura entre o bem e o mal. Seu gol- inescapáveis. Como resultado, as acusações
pe não era conservador, mas radical, embo- de rompimento das salvaguardas democrá-
ra tivesse, no início, a aquiescência e o apoio ticas feitas contra a Grécia pelos governos
dos conservadores tradicionais. Não se sabe holandês e escandinavos no Conselho da
se o golpe também teve apoio dos Estados Europa foram ampliadas para acusações
Unidos, cuja interferência nas questões gre- mais graves segundo a Convenção Europeia
gas era certa, bem como a suspeição norte- de Direitos Humanos, e a Grécia foi força-
-americana em relação aos políticos de cen- da e abandonar o Conselho para evitar ser
222 | PETER CALVOCORESSI

suspensa. O governo dos Estados Unidos, nos Bálcãs e em outros países comunistas.
contudo, considerava esses procedimentos Estava ansioso por desfazer conflitos com
como não mais do que um constrangimento a Turquia, que tinham se tornado numero-
e, depois de um breve período de indecisão, sos e agudos. Ele tinha um apoio popular
deu ao regime sua solidariedade na forma excepcionalmente grande e uma maioria
de fornecimento de armas. A Grécia parecia absoluta rara no parlamento. As eleições
mais importante como praça de armas para de 1977 reduziram, mas não destruíram,
a OTAN do que como um membro cumpri- sua maioria, e, quando ele ascendeu à pre-
dor de seus deveres da sociedade de nações sidência em 1980, seu colega George Rallis
livres e democráticas que a OTAN dizia ser. passou sem problemas para o cargo de
A ditadura grega, que começou como primeiro-ministro.
um triunvirato de coronéis, foi modifica- A mais premente das disputas greco-
da em 1971, quando dois deles foram eli- -turcas estava em Chipre (ver a Nota C no
minados pelo terceiro. Em 1973, depois de final desta parte) mas não era a única. Tam-
um motim na marinha, a monarquia foi bém havia um complexo de disputas em re-
abolida, e, naquele mesmo ano, o exército lação ao Mar Egeu. Na época da invasão do
transferiu o poder efetivo ao brigadeiro Di- Chipre pelos turcos, a Grécia fortificou ilhas
mitrios Ioannides, chefe da polícia militar. no Egeu Oriental, que tinham sido desmili-
O funeral de George Papandreou em um tarizadas pelos tratados de Lausanne (1923)
momento anterior do mesmo ano oferecera e Paris (1947). Também havia disputas so-
uma ocasião para uma imensa manifestação bre as águas territoriais, a plataforma conti-
em Atenas, e os estudantes, em particular, nental e o controle de tráfico aéreo.
fustigaram-na com uma ousadia indignada Águas territoriais – ou seja, o alcance
que lhes custou muito. O regime caiu em da soberania para além do limite da água –
1974, sob o peso de sua incompetência em não criavam problemas desde que ambos os
Chipre, onde tentava se livrar do arcebispo lados observassem, como faziam, o limite
Makarios e anexar a ilha, na crença de que tradicional de seis milhas. Com base nis-
os Estados Unidos impediriam a Turquia de so, a Grécia tinha soberania sobre 35% do
interferir. Os norte-americanos já tinham Mar Egeu, e a Turquia, sobre menos de 10%.
bloqueado duas vezes uma invasão turca, Todavia, se o limite fosse ampliado para 12
mas desta vez não o fizeram. Makarios es- milhas, a área da soberania grega seria qua-
capou, os turcos invadiram, e o movimento se dobrada, enquanto a turca seria amplia-
grego, tendo atraído para si um confronto da apenas um pouco. Os pontos de contato
com a Turquia, ordenou uma mobilização direto entre águas internacionais e turcas
geral para a qual não havia sido feita ne- seriam reduzidos drasticamente, e os barcos
nhuma preparação. Karamanlis, que estava turcos seriam obrigados a passar por águas
exilado em Paris, voltou para formar um go- gregas ou a ficar na Turquia.
verno de coalizão democrática e consolidar A comunidade internacional não ti-
sua posição ao conquistar para seu partido nha endossado o limite de 12 milhas para
uma clara maioria sobre todos os outros. O águas territoriais, mas avançou nessa dire-
eleitorado aprovou a abolição da monarquia ção quando a primeira conferência interna-
em uma proporção de dois votos a um. cional sobre direito marítimo (1958) reco-
Karamanlis sabia que a Grécia preci- mendou que, para determinados propósitos
sava de amigos, ele retomou a campanha (alfândega, imigração e controles de saúde),
para entrar para a CEE e visitou capitais a jurisdição nacional fosse ampliada de 6
POLÍTICA MUNDIAL | 223

para 12 milhas. Nem a Grécia nem a Tur- vio de pesquisas Candarli para o Egeu com
quia assinaram a convenção proposta pela uma escolta de navios de guerra. Essa ação
conferência, mas a tendência incomodava foi seguida de forma rápida, embora como
os turcos. coincidência, pela invasão do Chipre e uma
A plataforma continental, um conceito consequente exacerbação do conflito sobre
do pós-guerra introduzido no direito inter- o controle de tráfico aéreo.
nacional pelos Estados Unidos, levantava A partir de 1952, o controle de tráfico aé-
questões sobre o direito de explorar o leito reo sobre o Egeu foi exercido pela Grécia. Os
do mar e de explorá-lo para além dos limites voos turcos tinham que ser notificados a Ate-
das águas territoriais. Os direitos na plata- nas e os pilotos turcos na área recebiam ins-
forma não acarretavam direitos nas águas truções da capital grega, mas, durante a crise
nem no espaço aéreo acima delas. A Con- do Chipre, a Turquia reivindicou o direito
venção de Genebra, formulada pela confe- de assumir o controle da metade oriental do
rência em 1958 e assinada pela Grécia, mas mar. A Grécia rejeitou a demanda e declarou
não pela Turquia, definia a área em discus- que o Egeu era espaço aéreo inseguro como
são como a do leito do mar para além de consequência do conflito. Mais tarde, a Tur-
águas territoriais, desde que não fosse mais quia ampliou sua exigência de cobrir voos in-
profunda do que 200 metros, nem capaz de ternacionais, bem como gregos e turcos e, no
ser explorada para extração de minerais. Ela caso grego, militares e civis.
dispunha que as ilhas deveriam dar a seus Os anos de 1974 e 1975 foram um pe-
proprietários soberanos os mesmos direi- ríodo tenso, esporadicamente aliviado por
tos – e a Grécia tinha mais de 2 mil ilhas rodadas de discussão entre ministros ou ju-
no Egeu. Mas a exploração dos direitos na ristas gregos e turcos. Em ambos os lados,
plataforma deveria estar sujeita à liberdade a oposição parlamentar estava mais belicosa
de navegação, pesca e pesquisa científica. do que os governos. Em fevereiro de 1976,
Onde dois Estados soberanos se confron- outro navio turco, o Sizmik I, realizou uma
tavam de forma a criar plataformas sobre- série de pesquisas, desta vez acompanhado
postas, a linha média deveria normalmente por um único navio de guerra. Os nervos
ser sua fronteira submarina. Nas disputas começaram a tremer mais uma vez, prin-
sobre o Egeu, a Grécia sustentava que essa cipalmente quando o governo turco, sob
convenção, sendo declaratória do direito pressão de sua própria oposição, rejeitou
internacional, era legalmente inalterável e uma proposta grega para renunciar à força
politicamente inegociável. A Grécia tinha como modo de resolver a disputa entre os
algum apoio para essa disputa em decisões dois países. Recursos gregos do Conselho de
do Tribunal Internacional de Justiça e tam- Segurança e ao Tribunal Internacional não
bém para a ainda mais contestada afirmação conseguiram dar qualquer alívio. A Corte
de que as ilhas tinham suas próprias plata- recusou dar uma ordem preventiva provisó-
formas. A Turquia se opunha a todas essas ria ou aceitar jurisdição, enquanto o Conse-
afirmações. lho de Segurança devolveu o problema aos
A questão se tornou mais aguda em protagonistas com exortações triviais para
1973, quando a Turquia publicou um mapa que resolvessem seus próprios problemas.
provocativo da plataforma continental do De certa forma, essa foi uma vitória dos tur-
Mar Egeu e concedeu licenças de explora- cos, que preferiam as discussões bilaterais à
ção submarina a uma empresa paraestatal. intervenção internacional, fosse ela jurídica
Alguns meses mais tarde, despachou o na- ou política. Karamanlis e Ecevit se reuniram
224 | PETER CALVOCORESSI

em 1978 e instituíram reuniões regulares em tribuíram favores de vários tipos. Para isso,
níveis inferiores, em ritmo de três ou qua- inflacionaram a oferta de dinheiro, com o
tro por ano. Elas serviram para impedir que resultado de que os afortunados que foram
a situação piorasse, mas não houve alívio privilegiados estimularam uma explosão
substancial até o golpe militar na Turquia de importações que prejudicara em muito
em 1980, quando o novo governo turco fez o balanço de pagamentos e produzira pesa-
uma concessão em outra frente. das dívidas de curto prazo. A inflação che-
Como protesto pela inatividade de seus gou a um nível reconhecido de 35% e, com
aliados na época da invasão turca de Chipre certeza, era mais alta.
em 1974, a Grécia tinha se retirado da co- Como país predominantemente agríco-
operação com a OTAN. Karamanlis queria la, a Grécia enfrentava um problema básico
retomar a parceria integral, mas a Turquia, que era politicamente insolúvel sem o estí-
sob domínio civil, tentou estabelecer con- mulo de pressões estrangeiras como as que
dições, principalmente garantindo de ante- a CEE poderia proporcionar. A agricultura
mão uma redefinição das responsabilidades empregava 40% da população trabalhadora
gregas e turcas no Mar Egeu. Essas precon- da Grécia, mas contribuía com apenas 16%
dições foram abandonadas pelo novo gover- do PIB. (Na data da entrada na CEE, esses
no turco em troca de uma promessa grega números tinham mudado pouco: a agricul-
de excluir a questão greco-turca de futuras tura ainda proporcionava trabalho a 32%
discussões. Sendo assim, a Grécia voltou à dos trabalhadores e contribuía com 14%
OTAN com todas essas questões não decidi- do PIB.) A propriedade da terra era divi-
das, mas admitidamente negociáveis. dida em terrenos pequenos e muitas vezes
A meta mais importante da política ex- separados (a média nacional era de cerca
terna de Karamanlis era entrar para a CEE, de 12 acres); a convenção e a lei de heran-
por razões políticas e econômicas. No lado ças do país promoviam a fragmentação, e a
político, quase todos os gregos, em 1974, consequente ineficiência fazia com que os
consideravam a dependência dos Estados pequenos proprietários de terra fossem para
Unidos prejudicial porque acreditavam que as cidades, quando deixavam de cuidar de
eles não apenas tinham apoiado a ditadura suas propriedades por absenteísmo ou em
dos coronéis, mas os tinham colocado no função de disputas de família – uma conse-
poder. Não se considerava, exceto entre os quência comum da divisão da propriedade
comunistas, que tinham se saído mal nas segundo a lei. O que se produzia na terra ia
eleições, passar para o campo russo, mas, principalmente para mercados estrangeiros
na CEE, Karamanlis esperava encontrar ricos da Europa Ocidental; o mercado do-
amigos contra a Turquia e uma barreira méstico ficava com o que sobrava, e, como a
contra mais uma recaída da Grécia para di- demanda era maior do que a oferta, o con-
tadura. Também em termos econômicos, a sumidor grego tinha de pagar preços altos.
Grécia precisava da CEE. A ditadura tinha O comércio, exterior e doméstico, estava
revertido o desempenho econômico favo- nas mãos de intermediários que lucravam
rável dos anos de 1960 quando os preços não apenas nas exportações, mas também
no país estavam bastante estáveis, e a eco- no país, já que compravam toda a colheita
nomia crescente da Alemanha deu algum de um agricultor no início do ano, antes de
alívio para o estado crônico de superpopu- os preços domésticos começarem a subir, e a
lação econômica da Grécia. Os ditadores, vendiam (depois de satisfazer os mercados
ansiosos por conquistar apoio em casa, dis- de exportação) em um mercado em alta.
POLÍTICA MUNDIAL | 225

Para agradar os agricultores, que eram uma rompido depois que Espanha e Portugal
parte importante do eleitorado e geravam também aderiram) e ajuda financeira subs-
mais simpatia do que os intermediários, tancial que não conseguiu potencializar a
os governos desembolsavam subsídios que reorganização industrial, atrair investimen-
corroboravam os problemas estruturais da tos estrangeiros, nem aliviar os graves défi-
indústria, pagando por eles com dinheiro cits comerciais e de pagamento do país.
dos cofres públicos. Embora os economis- Em 1981, o partido conservador Nova De-
tas considerassem isso como má gestão, os mocracia perdeu o poder para o PASOK
políticos não encontravam alternativa – a como consequência de um desejo avassa-
menos que a participação na CEE garan- lador de mudança e da personalidade de
tisse mudança nas práticas incompatíveis Andreas Papandreou, que, além de ser um
com as da própria Comunidade. O caso eminente economista, tinha todas as carac-
grego levantou questões mais amplas para terísticas (e muitos dos defeitos) de um paxá
os membros da CEE. Além da Itália (mem- no comando. Ele entendia que a Grécia não
bro-fundador), a Grécia era o primeiro país era nem tinha capacidade de se tornar um
mediterrâneo a aderir, e sua frágil economia Estado industrial moderno, e era um país
agrícola causava receios, que eram compen- pobre, a meio caminho entre o Ocidente
sados pelo desejo de não dar à Comunidade rico e um Terceiro Mundo dependente dos
um ar de clube de ricos. países mais ricos.
Além disso, a entrada da Grécia, supon- Ele era agressivamente antiamericano e
do-se que a Turquia seguiria pouco tempo prometia fechar as bases dos Estados Uni-
depois, criava uma perspectiva de conflito dos na Grécia (mas não o fez). Seu partido
entre dois membros que a Comunidade te- tinha um programa social que correspondia
ria pouco poder para resolver. As discussões ao início do estado de bem-estar social, que
preparatórias para a admissão grega foram ele propunha financiar fazendo as pessoas
interrompidas pelo golpe militar de 1967, pagarem seus impostos e cortando gastos
mas retomadas quando o país restaurou a na administração pública. Ele introduziu re-
democracia em 1974. A causa grega foi pro- formas sociais sensatas e moderadas e teve
movida com força pela França e, em 1979, sucesso modesto e temporário na redução
assinou-se um tratado de acessão e a Grécia da inflação e do déficit nas contas exter-
tornou-se membro com plenos direitos em nas. Mas não tratou da máquina de governo
1981. O PASOK socialista de Andreas Pa- incomodamente supercentralizada e ine-
pandreou e os comunistas boicotaram o de- ficiente da Grécia, seu comando era auto-
bate parlamentar sobre a ratificação do tra- crático e imprevisível, suas políticas sociais
tado e se opuseram à participação da Grécia foram furiosamente atacadas pela Igreja e
na CEE, principalmente pelo argumento de pelas classes abastadas, e a acumulação de
que ela iria inibir o desenvolvimento da in- obstáculos destruiu seu governo quando
dústria grega e intensificar a relação parasí- ele foi golpeado por escândalos públicos e
tica dos gregos com a economia da Europa, privados. Esses escândalos, o fracasso eco-
mas, quando Papandreou chegou ao poder nômico e o trato autoritário de seu líder em
naquele mesmo ano, não tomou qualquer relação a um gabinete medíocre causaram o
atitude para anular a participação da Gré- colapso do governo do PASOK em 1988.
cia. No caso, as consequências econômicas Nas questões externas, Papandreou se-
de aderir à CEE foram decepcionantes: um guiu o exemplo de Karamanlis na busca
grande impulso para fruticultores (inter- de relações com os vizinhos balcânicos da
226 | PETER CALVOCORESSI

Grécia, mas não com a Turquia. Karaman- vo para afirmar a simpatia grega para com
lis cultivou a tradicional amizade da Grécia o governo sérvio) assim como à também
com a Iugoslávia sem, contudo, chegar ao antiga amizade com a Romênia, apesar de
ponto de um pacto formal, e tentou promo- que Iliescu era quase tão comunista quan-
ver algumas formas de entente balcânica. Ele to CeauŞescu tinha sido. Ele protelou o re-
recebeu Zhivkov em Corfu em 1979 e, mais conhecimento internacional da República
tarde, no mesmo ano, a Grécia, a Iugoslá- Iugoslava da Macedônia como Estado inde-
via, a Bulgária e a Romênia participaram pendente sob o nome de Macedônia, mas ao
de uma conferência sobre comunicações na custo de acrescentar as emoções naciona-
capital turca. Com Karamanlis, pela primei- listas já tão instaladas nos Bálcãs. Refugia-
ra vez um primeiro-ministro grego visitou dos da Albânia foram bem recebidos pelos
Moscou desde 1917, e ele também foi o pri- gregos (também foram bem recebidos por
meiro a visitar Pequim. sua disposição para fazer trabalhos sujos e
Papandreou melhorou as relações com mal pagos), mas a quantidade deles aumen-
a Albânia, mas deixou que as relações com tou, junto com os roubos e o vandalismo
a Turquia chegassem a quase um ponto de por parte de alguns, desgastando muito sua
ebulição em 1987, em função da exploração imagem e fazendo com que muitos fossem
de petróleo no Mar Egeu. Em 1988, o pri- enviados de volta à Albânia sem cerimônia
meiro-ministro turco fez uma visita inédita e indiscriminadamente. Questões de fron-
a Atenas, e predominaram as relações mais teira, que estavam adormecidas por mais
moderadas. de uma geração, recobraram sua relevância
O sucessor de Papandreou, Constantine junto a queixas, por parte dos albaneses, de
Mitsotakis, tinha pouca margem de mano- comportamento agressivamente nacionalis-
bra. Sua vitória, em 1988, não foi definitiva. ta dos clérigos gregos ortodoxos. Em 1993,
Ele foi forçado a fazer uma aliança com par- Papandreou teve sua revanche eleitoral so-
tidos incompatíveis, unidos apenas por não bre Mitsotakis, cujo governo foi acusado de
gostarem do PASOK; garantiu uma maioria ineficácia e nepotismo e não tinha planos
(estreita) somente em 1990; e sofreu com plausíveis para controlar a inflação de dois
a crise econômica – a mais elevada taxa de dígitos e o desemprego próximo dos 10%
inflação na CEE, uma dívida que se aproxi- da força de trabalho, mas Papandreou não
mava dos 150% do PIB, o não cumprimento sobreviveu a essa última vitória, e, depois
das condições prescritas para ajuda do FMI de sua renúncia, o PASOK escolheu como
e greves contra as tentativas de combater o seu sucessor Costas Simitis. Simitis, cujo es-
excesso de funcionários no setor público. A tilo pouco entusiasmado foi um bem-vindo
desintegração da Iugoslávia, o ressurgimen- contraste às improdutivas polêmicas do
to da questão da Macedônia e a abertura da passado recente, era um modernizador dis-
fronteira grega com a Albânia (que tinha creto que pretendia reestruturar a economia
sido fechada com cercas de arame pelos grega, aderir à UME e melhorar as relações
governantes comunistas albaneses) trans- com a Turquia, a UE e os Estados Unidos.
formaram os Bálcãs em pântanos onde era O final da Guerra Fria afetou profunda-
difícil para a Grécia não se atolar. Apesar do mente a Grécia. O país foi vinculado à Eu-
comportamento brutal dos sérvios da Bós- ropa Ocidental para conveniência da OTAN
nia, Mitsotakis aderiu à antiga amizade da e, assim, cortado da região balcânica à qual
Grécia com a Sérvia (posteriormente, ele pertencia geograficamente. Karamanlis for-
visitou Belgrado no ápice da crise do Koso- taleceu seu vínculo levando a Grécia para
POLÍTICA MUNDIAL | 227

dentro da CEE em 1981, mas essa estraté- um alcance de 1.600 km, a Turquia prome-
gia política se revelou equivocada quando teu destruí-los. A Grécia declarou que essa
a Grécia passou a ser constrangedoramente reação era um ato de guerra. Nenhuma das
cara para a CEE, bem como politicamente duas coisas aconteceu, e, no final do século,
desagregadora em função da hostilidade a Grécia adotou uma postura mais concilia-
com a Turquia (e, ainda que menores, em tória, à qual a Turquia correspondeu. A Gré-
função de suas simpatias para com a Sérvia). cia, que havia se voltado aos Estados Unidos
Ela se tornou o país mais isolado da Europa para combater inclinações pró-turcas nesse
e, correspondentemente, desorientado e até país e na ONU, tornara-se impopular com
mesmo paranoico. seus parceiros europeus e muito ciente da
Como a Finlândia e Portugal, era uma insensatez que representavam as disputas
nação menos importante, mas, diferente- eternas com seu vizinho muito mais forte –
mente dessas duas, carecia de apoio regio- não importa o que estivesse certo ou errado
nal. E, ao contrário da Turquia, não tinha no caso. Nas eleições em 2004, a direita teve
para onde ir, com exceção da UE. uma vitória arrasadora (Costas Karamanlis)
Simitis reconhecia esse fato, pelo menos e, em 2007, por uma pequena margem de
em parte, e colocou todos os ovos da Grécia vantagem.
na cesta da UE. Desvalorizou a dracma em No outro extremo do Mediterrâneo, ti-
14% para aderir ao ERM em 1998 e à UME, nha se tornado evidente supor que nada de
com sua moeda única, em 2001. Essa polí- mais aconteceria até que Franco morresse.
tica implicou medidas monetárias estritas A Espanha saiu da Segunda Guerra Mun-
que estavam fadadas a agravar o desempre- dial em posição ambígua. Franco quis jun-
go, um ataque doloroso à inchada burocra- tar forças com a Alemanha e a Itália, mas
cia e ao mercado de trabalho rígido, graves não conseguiu, com exceção do envio de
mudanças na seguridade social e um onero- uma força simbólica para lutar com os ale-
so desenvolvimento da infraestrutura para mães contra a URSS. Seu preço para maior
fazer de Tessalônica e Piraeus importan- cooperação, que Hitler se recusou a pagar,
tes portos para o comércio entre o restan- era a liberdade para a criação de um novo
te da Europa e pontos ao leste – uma meta império espanhol no noroeste da África.
que também demandaria relações políticas À Espanha foi negada a participação na
igualitárias com os vizinhos da Grécia, prin- ONU em 1945, mas a Guerra Fria fez com
cipalmente com a Turquia (que poderia, que Franco passasse de ditador do tipo
em um caso extremo, sufocar Tessalônica) fascista a leal parceiro anticomunista da
e com a Macedônia e a Sérvia, que estavam aliança da OTAN. Foram estabelecidas ba-
entre o norte da Grécia e a Europa Central. ses norte-americanas na Espanha segundo
Mais amplamente, implicava um reconheci- acordos de 1953. O nacionalismo católico
mento que nem Grécia nem Turquia tinham conservador e paternalista de Franco in-
feito de forma adequada (se é que o tinham cluía uma tentativa de tornar a Espanha
em algum nível) por 50 anos: de que a ad- autossuficiente economicamente. Ele fez
missão desses dois países nas associações com que o país chegasse perto do colap-
internacionais – verbas Truman, OTAN e so econômico no final da década de 1950,
UE – demandava, em troca, a solução das mas foi convencido, contra seus instintos,
disputas que as tinham dividido e mono- a aprovar uma política econômica mais in-
polizado. Em 1997, quando o governo de ternacional, para benefício considerável da
Chipre comprou da Rússia 300 mísseis com Espanha – e seu próprio, já que ele rece-
228 | PETER CALVOCORESSI

beu o crédito pela recuperação econômi- socialistas, liderados por Felipe Gonzalez,
ca e morreu no cargo e em sua cama em mostraram ser o mais forte entre os dois. A
1975. Sua morte fez da Espanha um reino direita estava dividida entre os que queriam
de fato, além do nome. Franco declarou um novo Partido Democrata-Cristão puri-
Espanha um reino em 1947, mas não gos- ficado e os que queriam um partido mais
tava do filho do rei, Don Juan, e não tinha amplo, incluindo o maior número possível
intenção alguma de abrir mão de seu con- de franquistas. No primeiro teste popular,
trole do estilo monárquico. em 1977, os comunistas e a direita se saíram
Sendo assim, ignorou o ato de renún- mal e a centro-direita de Suarez triunfou.
cia de Alfonso XIII em favor de Don Juan e Em outras eleições em 1979, a direita foi di-
gradualmente preparou o filho desse, Don zimada, os comunistas tiveram uma peque-
Juan Carlos, para a sucessão. Juan Carlos na recuperação e os eleitores optaram pelos
cumpriu um papel incerto em uma posi- dois grupos de centro, dando a Suarez uma
ção incerta, de modo que, quando Franco pequena vantagem sobre Gonzalez. Mas o
morreu, seu caráter e suas ideias políticas tratamento de Suarez das questões econô-
eram um mistério. Seu primeiro governo micas era experimental, e dos separatistas
era uma mistura de franquistas e demo- bascos, insensível e indeciso (ver a Nota B
cratas, mas em um ano ele nomeou como no final desta parte).
primeiro-ministro Adolfo Suarez, de 47 Em 1981, a monarquia constitucional e
anos, um político hábil que não se enqua- democrática patrocinada pelo rei foi desa-
drava em nenhuma facção. Essa foi uma fiada por um golpe armado. O exército era
ação habilidosa que alarmou conserva- dominado por oficiais com ideias arcaicas
dores e o exército sem lhes dar uma cau- e antidemocráticas, que se envolviam em
sa distinta para revolta, e agradou grupos tramas esporádicas que, embora ridículas,
moderados à direita e à esquerda que acre- também eram perigosas, até que uma ten-
ditavam que a Espanha precisava de mu- tativa de ataque ao parlamento forçou o rei
danças. A indicação de Suarez significava a desautorizar seus líderes e confrontar o
a intenção do rei de acelerar a mudança e exército como um todo, fazendo com que
também de ser visto como monarca capaz tivessem que escolher entre ele próprio e as
de fazer sua própria escolha. Ele foi forta- predileções franquistas deles. Mas Suarez
lecido pela aprovação do parlamento e por não sobreviveu, nem seu bloco de centro-
um referendo em favor de mudanças cons- -direita. Ele renunciou e foi sucedido por
titucionais importantes. Dois anos depois Leopoldo Calvo Sotelo, mas, no final de
da morte de Franco, o rei e Suarez estavam 1982, novas eleições levaram Gonzalez ao
fortes o suficiente para enfrentar eleições poder. Seus apoiadores incluíam muitos dos
parlamentares com confiança. que queriam que a Espanha saísse da OTAN
A modernização de Franco foi mal re- (à qual ela acabava de aderir), e ele prome-
gulada e descuidou das classes mais pobres, teu realizar um referendo sobre a questão:
e o novo regime herdou uma economia dis- posteriormente, ele se declarou favorável
torcida. Herdou também o problema perene à continuidade da participação e venceu o
de descontentamento regional, particular- referendo, embora a Espanha continuasse
mente na Catalunha e entre os bascos. Os a insistir na retirada dos aviões norte-ame-
partidos socialista e comunista foram lega- ricanos até 1992 (a Itália concordou em
lizados, esse, apesar de pressões norte-ame- recebê-los). A economia espanhola cresceu
ricanas e militares para que não fosse. Os dentro da CEE, com mercados mais amplos,
POLÍTICA MUNDIAL | 229

investimento estrangeiro, uma participação nha tratou suas províncias descontentes –


na explosão de crescimento mundial e nos catalães e bascos – com generosidade sufi-
benefícios de mão de obra relativamente ciente para evitar a desintegração repulsiva
barata, mas essa explosão trouxe seu conhe- da Iugoslávia e a separação da Liga Norte da
cido acompanhamento, de especulação e Itália. Sua política pós-Franco foi um mode-
corrupção. lo de justiça democrática. A esquerda abriu
Nos anos de 1990, Gonzalez foi enfra- caminho para a coalizão direitista de José
quecido pelo crescente desemprego e por Maria Aznar, que, por sua vez, cedeu o po-
divergências dentro de seu próprio partido, der à esquerda quando seu apoio à invasão
incluindo uma divisão que causou a de- do Iraque por Bush lhe custou votos. Depois
missão de seu vice Alfonso Guerra. Tendo da reeleição em 2008, esse governo esquer-
vencido por uma maioria apertada em 1986, dista tinha um gabinete com mais mulheres
ele a perdeu depois de eleições intermediá- do que homens.
rias em 1990 e convocou uma eleição geral As transformações na Espanha foram
em 1993 em uma tentativa de reavivar sua precedidas por mudanças em Portugal
autoridade. Ele sobreviveu no cargo, mas quando, em abril de 1974, um grupo de ofi-
somente com o apoio de um pequeno par- ciais do exército de patentes intermediárias
tido catalão de direita. O conflito com a e inferiores derrubou a ditadura e instalou
Grã-Bretanha sobre Gibraltar foi descon- uma junta de sete membros, sob a presi-
gelado a ponto de a fronteira, recentemente dência do general Antonio de Spinola, um
fechada, ser reaberta e o governo britânico, ex-governador africano com uma postura
enquanto repetia seu compromisso com os crítica. Seguiu-se uma disputa pelo poder
desejos dos habitantes de Gibraltar, aceitar dentro do predominante Movimento das
que a soberania fosse um item para discus- Forças Armadas e entre partidos políticos
são futura. Conversações, em 1987, preser- que tomou forma depois do golpe. O gene-
varam a boa vontade sem alterar a postura ral Spinola renunciou em setembro e fugiu
de cada uma das partes. Gonzalez perdeu o do país no março seguinte, depois de se en-
cargo em 1996. O conservador José Maria volver em um golpe anticomunista malsuce-
Aznar formou um governo com apoio de dido. Uma tentativa comunista de assumir o
catalães e bascos, e manteve o cargo aumen- poder fracassou. As eleições de abril de 1975
tando os poderes autônomos desses. deram aos socialistas, liderados pelo Dr.
A Espanha era diferente em uma série Mario Soares, 38% dos votos e relegaram os
de aspectos. Era a principal herdeira do comunistas, com 12,5%, a um terceiro lu-
conflito da Europa com o Islã, mas também gar, atrás do Partido Popular Democrático,
mais informada em relação ao mundo ára- de centro-direita (26%). Portugal parecia,
be e mais simpática a ele. Era tão católica em muitas ocasiões, à beira de uma guerra
quanto, por exemplo, a Polônia ou a Irlanda, civil. O Movimento das Forças Armadas e
e sede da maior ordem católica fundada na o próprio exército estavam divididos, mas
Europa desde o renascimento, mas não era um golpe em favor da extrema esquerda deu
militante e a influência política da Igreja – e errado, e oficiais superiores, alarmados com
do exército – estava tão limitada quanto em a perspectiva de anarquia, combinaram-se
qualquer momento desde o século XVIII. para apoiar um governo socialista de mino-
Foi também o país onde a palavra “liberal” ria e instalar como chefe do Estado-Maior
entrou no vocabulário político europeu. o general Antonio Ramalho Eanes, relativa-
Restaurada a democracia em 1975, a Espa- mente sem compromissos.
230 | PETER CALVOCORESSI

As eleições de 1976 não deram maioria Sá Carneiro pretendia levar a economia de


clara a nenhum partido, sendo que o mais volta aos caminhos da livre iniciativa. O
bem sucedido foi o Partido Socialista, que presidente Eanes foi eleito para mais um
conquistou 107 de 263 cadeiras. Na eleição mandato em 1980. A política portuguesa
presidencial que se seguiu, o general Eanes continuava a oscilar entre centro-direita
conquistou 61,5% dos votos distribuídos e centro-esquerda. Em 1983, Soares, não
entre quatro concorrentes. Soares formou tendo obtido maioria absoluta, formou
um governo de minoria socialista que foi um governo com os social-democratas à
atacado pela esquerda comunista e pela di- sua direita, mas essa aliança caiu em 1985,
reita que representava não apenas o velho e ele renunciou. Ele se tornou o primeiro
regime mas também os agricultores pobres, presidente civil de Portugal em mais de 60
anticomunistas e conservadores do norte. anos, com o conservador Aníbal Cavaco
Soares renunciou no final de 1977, for- Silva como primeiro-ministro – um econo-
mou uma nova coalizão, mas foi demitido mista que já tinha sido ministro duas vezes
em 1978 pelo presidente, que nomeou um sob o governo de Sá Carneiro e teve uma
governo de técnicos, e, quando este fracas- vitória esmagadora em 1987 com mais da
sou por falta de base parlamentar, formou metade dos votos. Foram feitas pequenas
outro, sob o comando da primeira mulher mudanças na Constituição para acelerar a
a ocupar o cargo de primeira ministra em desnacionalização de indústrias e a desco-
Portugal, Maria de Lurdes Pintassilgo. O letivização da agricultura. Em 1991, Soares
presidente estava tentando encontrar uma foi reeleito presidente por cinco anos com
coalizão parlamentar ou uma alternativa um convincente apoio popular. Pobre, se-
não parlamentar que contivesse a oscilação gundo padrões da Europa Ocidental, mas
pós-revolucionaria do país de volta à direi- ordenado e desfrutando dos benefícios da
ta, mas essa tendência ficou mais evidente participação na CEE, Portugal se inclinou
no final de 1979, quando Francisco Sá Car- à esquerda em 1995, quando o Partido So-
neiro conquistou quase metade das cadei- cialista, liderado por António Guterres,
ras do parlamento. Ele se tornou primeiro- teve quase metade dos votos, ocupando o
-ministro, mas entrou em conflito com o terreno intermediário entre os comunis-
presidente, que, usando seu direito consti- tas, à esquerda, e os social-democratas e o
tucional de interpretar a Constituição, blo- Partido Popular, à direita. Eles mantinham
queava uma série de medidas com as quais essa posição em 1999.
Europa Central
e Oriental 6
O Império de Stalin de todas ao princípio da autodeterminação.
Sendo assim, os Estados europeus mais for-
Quando o Império Otomano desapareceu tes existiam porque eram fortes, enquanto
(ver Capítulo 9), partes dele conquistaram os mais fracos existiam porque parecia cor-
autonomia ou independência, os impérios reto aos mais fortes que assim fosse. Porém,
adjacentes, Habsburgo e Russo, calcularam com a redução da força dos fortes, o elemen-
o que poderiam tirar disso e três forças de- to básico no padrão da Europa desapareceu
ram forma ao futuro: religião – o cristianis- e os europeus não foram mais capazes, para
mo, em sua maioria, de variedade ortodoxa o momento, de manter seus Estados verda-
e essencialmente antiturco; o nacionalis- deiramente independentes. A questão era:
mo, jogando um Estado emergente contra quais seriam as novas formas impostas pela
o outro; e uma megalomania romântica, dependência?
sonhando com antigos impérios e cuida- A resposta a essa pergunta foi determi-
dosamente esquecida de maiorias inseridas nada por acidente, pelo fato de que a causa
(Grande Grécia, Grande Sérvia, Grande Al- que precipitou a guerra estivera localizada
bânia). Entre as duas guerras mundiais, ha- no centro do continente – na Alemanha –,
via peças que a Alemanha movia com mais de forma que os rumos da guerra signifi-
eficácia do que outros europeus, em termos cavam uma convergência de forças antia-
de comércio e influência. Depois da Segun- lemãs ao centro, a partir dos lados. Apesar
da Guerra, eles se tornaram satélites soviéti- de alguns planos opostos, os avanços anglo-
cos (com exceção da Grécia) e, junto com a -americanos e russos eram, na verdade,
Europa Central, constituíram, contra a sua operações separadas que criaram domínios
vontade, a metade leste da Europa dividida norte-americanos e russos separados nas
durante a Guerra Fria. partes ocidental e oriental da Alemanha. O
A divisão da Europa depois da Segunda poder marítimo anglo-americano modifi-
Guerra Mundial foi consequência de uma cou esse padrão decretando que a Europa
tendência e de um acidente. A tendência mediterrânea até o Mar Egeu deveria cair
foi o declínio, acentuado pela guerra, dos na esfera norte-americana e não russa. Essa
Estados-Nação europeus. A Europa era um nova distribuição de poder foi reconhecida
continente que funcionava na forma de en- pelo abandono da Grécia por Stalin a Chur-
tidades comparativamente pequenas e com- chill, sua recusa a prestar atenção à revolta
parativamente fortes, capazes de manter comunista grega ou a ajudá-la, e pela vin-
existências separadas em função da sofisti- culação posterior da Grécia e da Turquia à
cação industrial de algumas e da inclinação OTAN.
232 | PETER CALVOCORESSI

FINLÂNDIA
Helsinque

Talin
ESTÔNIA

Riga
RÚSSIA
LETÔNIA
LITUÂNIA
Kaliningrado Vilna
Minsk
Berlim
Varsóvia
BIELORÚSSIA

ALEMANHA P OLÔN IA
(RDA)
Praga
REPÚBLICA UCRÂNIA
TCHECA REPÚBLICA
Viena ESLOVACA
MOLDÁVIA
ÁUSTRIA Budapeste
HUNGRIA
ESLOVÊNIA ROMÊNIA
IU Bucareste
G BÓSNIA
Mar Negro
CROÁCIA O Belgrado
SL
Á SÉRVIA BULGÁRIA
VI
A Sofia
MACEDÔNIA
MONTENEGRO

ALBÂNIA TURQUIA
GRÉCIA

milhas

Países pertencentes ao Pacto de Varsóvia (a Albânia se retirou formalmente em 1968)


1989-90 Colapso do bloco oriental; Pacto da Varsóvia dissolvido em 1990; Comecon dissolvido
em 1991.
A Tchecoslováquia deixou de existir em 1993. Novas repúblicas eslovacas e tchecas surgiram.
Outubro de 1990: a RDA (Alemanha Oriental) foi absorvida pela República Federal da Alemanha.
A Rússia concedeu a independência à Letônia, a Lituânia e à Estônia em 1991 – a retirada
final das tropas russas se completou em agosto de 1994.

Junho de 1991: Eslovênia e Croácia declararam independência unilateralmente, seguidas por


Macedônia e Bósnia-Herzegovina; a Macedônia se separou em setembro de 1991; abril de 1992:
Sérvia e Montenegro formaram a República Federal da Iugoslávia.

Figura 6.1 A Europa Oriental.


POLÍTICA MUNDIAL | 233

No outro extremo da Europa, a Fin- nham suas instituições jurídicas separadas


lândia caiu na esfera russa, não apenas em – entre si e da URSS –, mas estavam sujei-
função de sua importância estratégica para tos aos propósitos russos pelas realidades do
a defesa de Leningrado, mas porque o poder poder militar da Rússia e das modalidades
marítimo anglo-americano não ia tão longe de governo do Partido Comunista e da po-
na Europa ao norte quanto ia ao sul. Apenas lítica, e por tratados econômicos desiguais.
a Alemanha e a Áustria foram designadas Em pouco tempo, havia pouca diferença en-
como terreno comum, e, mesmo ali, o novo tre antigos inimigos como a Hungria, a Ro-
princípio de divisão russo-americana pre- mênia e a Bulgária, e aliados dos tempos de
valeceu e criou uma divisão dentro da divi- guerra como a Polônia, a Tchecoslováquia
são na Alemanha, que assumiu importância e a Iugoslávia. Essa indiferença já se mani-
crucial e fundamental nas questões mun- festava cedo: na Polônia, o Comitê Lublin
diais como foco da Guerra Fria. No restante (Comitê Polonês de Libertação Nacional),
da Europa, os norte-americanos e os russos um grupo de líderes dominado pelos comu-
deixavam quietos um ao outro. nistas, formado em 1944 a partir da resis-
Já se disse que a divisão da Europa e tência polonesa e formatado em Moscou, foi
a resultante dominação russa na Europa estabelecido em Varsóvia como governo da
Oriental foram consequência não de um Polônia para frustrar os poloneses de Lon-
acidente, mas de um acordo, principalmente dres que tinha conduzido a luta contra os
em Yalta, entre Roosevelt e Churchill, para alemães desde o exílio. Na Romênia, o rei
dar a Stalin uma posição de poder que de foi forçado, em março de 1945, a indicar um
outra forma ele não teria adquirido. Roo- governo controlado por comunistas e a ce-
sevelt e Churchill não concederam em Yal- der à URSS a província da Moldávia (que ti-
ta coisa alguma que pudessem manter. Os nha sido parte da Rússia de 1812 a 1917). Na
exércitos russos já estavam ocupando posi- forma, os inimigos derrotados foram igua-
ções na Europa, das quais não poderiam ser lados aos aliados pela conclusão de tratados
expulsos, e o domínio pós-guerra de Stalin de paz em 1947, e de outros tratados entre
na Europa Oriental derivava de suas vitó- cada um deles e a URSS ao longo de 1948
rias e não de nenhuma barganha com seus (com os aliados, a URSS já tinha tratados
aliados. O máximo que Roosevelt e Chur- que datavam dos anos de guerra). Os trata-
chill poderiam fazer era tentar que Stalin dos de paz custaram a Transilvânia húngara,
aceitasse certas regras que comandariam o que (como em 1920) foi para a Romênia,
exercício do poder que ele possuía. Isso eles e uma pequena parte do território dada à
conseguiram convencendo-o a endossar Tchecoslováquia; confirmaram a perda da
uma Declaração sobre os Países Libertados, Bessarábia pela Romênia, e a Bucovina do
que prometia eleições livres e outras práticas Norte à URSS e a Dobruja do Sul para a Bul-
e liberdades democráticas. Quando, mais gária; e deram à URSS a região finlandesa
tarde, Stalin ignorou os compromissos con- de Petsamo e um arrendamento de 50 anos
tidos nessa declaração, os governos do Oci- da base naval de Porkkala com um corredor
dente nada puderam fazer além de protestar. de acesso.
Agir era impossível. Os tratados de 1948 proporcionaram a
Dentro da esfera russa, o problema de ajuda mútua contra a Alemanha e proibiram
Stalin era a natureza do controle russo e qualquer aliança por parte de um dos signa-
seus mecanismos. Ele criou um império tários que pudesse ser considerada dirigida
satélite cujos Estados componentes manti- contra o outro.
234 | PETER CALVOCORESSI

Stalin, porém, queria mais do que acor- 1947-1948, embora, na Iugoslávia, o mono-
dos formais e, no final dos anos de 1940, pólio comunista de poder trabalhasse con-
com exceção da Iugoslávia e da Finlândia, tra os interesses russos e tenha culminado,
transferiu a máquina de governo para as em junho de 1948, na expulsão da Iugoslá-
mãos de obedientes comunistas, que não via da fraternidade de Estados comunistas.
apenas estavam conscientes das realidades A luta histórica da Polônia contra seus
do poder russo, mas determinados a servi- vizinhos chegou ao comunismo polonês:
-lo como marionetes. Essa transferência en- Rosa Luxemburgo questionava a política de
volveu a supressão ou restrição de partidos Lênin para os camponeses, e o Partido dos
não comunistas e a eliminação, das fileiras Trabalhadores da Polônia desaprovou pos-
dos comunistas, daqueles que fossem mais teriormente a campanha de Stalin contra
nacionais do que moscovitas. Esse processo Trotsky. A liderança do partido polonês foi
foi realizado com sucesso no curto prazo, varrida em 1937-1938, e o próprio partido
sem sucesso no longo, no sentido de que foi dissolvido pelo Comintern (Internacio-
não conseguiu garantir para Moscou uma nal Comunista) quando Stalin fazia planos
zona de influência livre de problemas em para seu pacto com os nazistas. Ele foi res-
torno das fronteiras europeias da URSS. A suscitado em 1942 e alimentado pelo com-
Iugoslávia rejeitou a dominação russa em portamento odioso dos alemães na Polônia,
1948, a Polônia e a Hungria se revoltaram que causou alguma reviravolta nos senti-
contra ela em 1956, e a Romênia liderou mentos em relação a russos e comunistas. A
uma campanha contrária em meados dos descoberta do massacre de Katyn em 1943,
anos de 1960. Na década de 1970, ela estava relembrou aos poloneses que, para eles, a es-
em decadência evidente, mas ainda era sus- colha entre russos e alemães era impossível,
tentável, mesmo que o uso da força – que mas os alemães eram, na época, a desgraça
era sua garantia em última análise – esti- presente da qual os russos seriam os futuros
vesse se tornando mais uma memória e um libertadores. No início de 1944, os russos
blefe do que uma viabilidade plausível. O entraram na Polônia perseguindo os ale-
advento de Gorbachev desencadeou o co- mães e, em julho, aceitaram a Linha Curzon
lapso em 1989. como fronteira da Polônia no leste e aprova-
Em 1946, a Iugoslávia, a Tchecoslová- ram o Comitê Lublin, que pouco depois se
quia, a Bulgária e a Albânia tinham primei- tornou o governo provisório do país.
ros-ministros comunistas: Tito, Klement Em agosto, o povo de Varsóvia se le-
Gottwald, G. M. Dimitrov e Enver Hoxha. vantou contra os alemães na expectativa de
Na Hungria e na Romênia, o cargo era ocu- receber ajuda rápida dos russos que avança-
pado por líderes do Partido Camponês, na vam, mas ela não veio. As vítimas incluíam
Polônia e na Finlândia, por socialistas. To- muitos líderes da resistência, comunistas
dos esses países tinham governos de coa- nacionais, bem como não comunistas. O
lizão, embora somente em Praga e Helsin- levante, além de ser dirigido contra os ale-
que os governos dessem aparência de uma mães, foi uma tentativa por parte dos polo-
distribuição real de poder. Na Finlândia, os neses de Londres e seu exército secreto na
comunistas foram deixados de fora de um Polônia de estabelecer sua autoridade em
novo governo formado depois das eleições Varsóvia antes da chegada dos russos.
de julho de 1948, nas quais tiveram um mau O problema polonês persistia em dois
resultado. Em outros lugares, o controle co- níveis: quais seriam as fronteiras da Polônia
munista foi intensificado durante os anos de e quem governaria? Os russos queriam redi-
POLÍTICA MUNDIAL | 235

recionar a Polônia ao Ocidente com vistas a janeiro de 1947, com todos os abusos elei-
ganhar território para si mesmos no leste e, torais concebíveis, que não conseguiram,
talvez, perpetuar uma inclinação pró-russa esconder a força popular do Partido dos
e antialemã ao acrescentar terras na parte Camponeses, que foi declarado vencedor
ocidental do Estado polonês. Os russos tam- com 10% dos votos e 28 cadeiras das 444
bém estavam determinados a insistir em um no parlamento. Mas Mikolayczyk se sentiu
governo completa ou preponderantemente obrigado a fugir para garantir sua seguran-
comunista. Segundo a conferência de Yalta, ça, como muitos outros. Grande parte do
em fevereiro de 1945, os russos controla- Partido dos Camponeses foi absorvida pelo
riam a Polônia. Norte-americanos e britâ- Bloco Democrático, que, criado em 1944,
nicos questionavam muito os planos russos, englobou o ressuscitado Partido dos Tra-
mas sem uma atitude decisiva, reconhecen- balhadores, o Partido Socialista e outros,
do a força dos argumentos de Stalin sobre a e se tornou em 1948 o Partido dos Traba-
importância de uma Polônia confiável entre lhadores Unidos. Os norte-americanos e os
a URSS e a Alemanha, não considerando a britânicos protestaram em vão contra pro-
questão polonesa como a mais importante cedimentos que não tinham como mudar.
da agenda, e acreditando que não poderia Mas dentro da liderança comunista, a velha
advir qualquer dano maior de deixar a com- divisão entre o comunismo polonês e mos-
posição do futuro governo polonês vaga, já covita, já visível nos dias de Rosa Luxem-
que Stalin havia concordado com a amplia- burgo, ressurgiu com Gomulka, agora secre-
ção do governo provisório e com eleições tário-geral do partido único, liderando uma
justas e imediatas após o fim da guerra. facção que queria tornar o comunismo mais
Antes da Conferência de Potsdam, em ju- polonês, mais popular e menos subserviente
lho, os russos tinham dado aos poloneses a Moscou. A disputa entre Stalin e Tito deu
as terras alemãs além de suas antigas fron- a ele uma ocasião de expressar seu apoio ao
teiras ocidentais, e, nessa conferência, os titismo e, por isso, ele foi perdendo todos os
pressentimentos e os protestos de Churchill cargos e desapareceu para o segundo plano
foram manifestados em vão. Os britânicos e pelos oito anos seguintes.
os norte-americanos aceitaram o fato con- Esses eventos coincidiram com a trans-
sumado, desde que fosse considerado como formação da cena política na Tchecoslová-
uma medida provisória que seria reaberta a quia. Antes da Segunda Guerra Mundial, o
partir da negociação de um tratado de paz Partido Comunista da Tchecoslováquia, ao
com a Alemanha. contrário de seus vizinhos, não era ilegal
Stanislaw Mikolayczyk, chefe do gover- nem clandestino. Era o segundo maior par-
no polonês no exílio em Londres e líder do tido político do país, e escapou de ser com-
Partido dos Camponeses Poloneses, tinha prometido pela aliança geral comunista com
sido incluído no governo provisório em Hitler em 1939-1941 porque a Tchecoslová-
Varsóvia como vice-primeiro-ministro. As quia já estava ocupada pelos alemães e seus
outras principais figuras no governo eram partidos estavam proibidos. Cumpriu um
oriundas do grupo Lublin: o comunista Bo- papel patriótico durante a guerra e surgiu,
leslaw Bierut como presidente, o socialista depois dela, como o maior partido, em fun-
Edward Osobka-Morawski como primeiro- ção da proibição do colaboracionista Parti-
-ministro e o comunista Wladyslaw Go- do Agrário, de forma que seu líder, Klement
mulka como vice-primeiro-ministro. As Gottwald, era o primeiro-ministro natural.
eleições prometidas foram realizadas em Antes da guerra, ele e seus colegas tinham
236 | PETER CALVOCORESSI

operado em um sistema democrático e ago- tiram em fundir os partidos tchecos ou o


ra cooperavam com outros partidos no que que sobrara deles com o Partido Comunista
foi, em princípio, uma verdadeira coalizão Tcheco, e o mesmo na Eslováquia, onde o
de partidos antifascistas. As primeiras elei- único partido eslovaco estava fundido com
ções depois da guerra confirmaram a po- o único partido tcheco para formar a frente
sição de Gottwald, dando aos comunistas nacional. A Tchecoslováquia se tornou um
39% dos votos em uma eleição livre, a maior Estado policial. Uma tentativa semelhante
porcentagem. Eduard Beneš, que retomou de estender o controle russo à Finlândia em
a presidência depois da derrota da Ale- 1948 foi abandonada porque enfrentou di-
manha, era o principal símbolo na Europa ficuldades. O golpe de Praga foi um evento
central do desejo de conduzir um Estado importante na Guerra Fria, porque reacen-
segundo valores ocidentais e em amizade deu medos de 1945 de que o comunismo
com a URSS. Essa fórmula, ainda que não russo planejava englobar toda a Europa.
fosse intrinsecamente inoperável, ficou sen- Ao mesmo tempo, na Hungria, tendo
do em função do desejo evidente de BeneŠ a monarquia sido abolida em janeiro de
e de seus colegas não comunistas de par- 1946 – quase 30 anos depois de ter deixado
ticipar do Plano Marshall, que parece ter de funcionar –, um governo de coalizão foi
sido aprovado inicialmente, mas, em uma formado pelo Partido dos Pequenos Pro-
segunda reflexão, negado por Stalin. Beneš prietários e o Partido Socialista. Os líderes
só sobreviveu uns meses. Em fevereiro de do primeiro, Zoltan Tildy e Ferenc Nagy,
1948, o ministro do interior, Vaclac Nosek, tornaram-se presidente e primeiro-minis-
demitiu oito inspetores de polícia em Praga. tro, e o partido teve 56% dos votos na pri-
O gabinete votou pela anulação dessa deci- meira eleição depois da guerra. No inverno
são, mas o primeiro-ministro apoiou Nosek, de 1946-1947, circularam rumores de uma
e um vice-ministro das relações exteriores trama contra o Estado, foram realizados jul-
da URSS, Valerian Zorin, chegou em Pra- gamentos, e o secretário-geral do Partido
ga. Nosek não aceitou recolocar os policiais dos Pequenos Proprietários foi sequestrado
em seus postos e 11 ministros apresentaram pelos russos.
suas renúncias. Eles eram os ministros não Os norte-americanos e os britânicos,
comunistas, com exceção dos socialistas parceiros dos russos na Comissão de Con-
que, embora tivessem votado com a maio- trole para a Hungria, protestaram, mas nada
ria do gabinete contra Nosek, relutavam em puderam fazer. Em maio de 1947, o primei-
romper sua associação com os comunistas ro-ministro foi à Suécia para uma consulta
no governo – apesar de três meses antes te- médica e, enquanto estava fora, pediram-lhe
rem escolhido um novo líder para substituir que ali ficasse e renunciasse. Descobriu-se
seu camarada Zdenek Fierlinger. Houve uma nova trama. As eleições de agosto fo-
manifestações anticomunistas em Praga e ram visivelmente fraudadas. Os membros
foram trazidos policiais de fora para a capi- dos partidos não comunistas fugiram ou
tal. Entre temores de aumento dos tumultos, foram levados a julgamento, seus partidos
Beneš tentava restaurar a calma aceitando as foram divididos e parcialmente absorvi-
11 renúncias. Dois ministros foram mortos dos, como em outros lugares, em uma única
ao cair de janelas, sendo que um deles – Jan Frente Nacional de Independência. Tildy
Masaryk – pode ter sido empurrado. Em renunciou à presidência em julho e foi suce-
junho, Beneš renunciou e foi sucedido por dido por um complacente social-democrata,
Gottwald. As operações de limpeza consis- Arpad Szakasits.
POLÍTICA MUNDIAL | 237

Na Romênia, o líder camponês Ion Ma- e de administração pública do que a URSS


niu foi acusado, em 1947, de tramar contra poderia oferecer, ou no desejo de Stalin de
o Estado com agentes britânicos e norte- evitar provocações desnecessárias às potên-
-americanos. Ele e outros foram julgados e cias ocidentais e lográ-las ao obter a subs-
condenados, e o Partido dos Camponeses, tância do império sem fazer as mudanças
dissolvido. Em dezembro, o rei abdicou. Em constitucionais que elas não digeririam.
fevereiro seguinte, o Partido Social-Demo- Stalin impediu os satélites de estabelecer
crata se fundiu com o Partido Comunista, e, associações políticas entre si. Todo mundo
em março, esse partido conquistou 405 das visitava todo mundo e acumulava tratados
414 cadeiras do parlamento. Mas antes des- bilaterais de amizade e assistência mútuas,
sa eleição, as divergências também tinham mas os esquemas de algum tipo mais radi-
atingido o Partido Comunista e um de seus cal murchavam. Vários esquemas desse tipo
líderes veteranos, Lucretsiu Patrasceanu, foi estavam no ar imediatamente depois da
demitido do governo, preso, expulso do par- guerra. As mentes tcheco-eslovacas rever-
tido e, segundo os rumores, posto na prisão teram à Pequena Entente com a Iugoslávia
de Lubianka, em Moscou. Na Bulgária, o e a Romênia; e a Hungria, cujas relações
líder do Partido Agrário, Nicola Petkov, foi com a Tchecoslováquia eram maculadas por
preso com outros em 1947 e executado. A problemas de intercâmbio de populações,
Frente Patriótica, produto da fusão inco- reagiu com algum alarme a um plano para
mum entre socialistas e comunistas, surgiu uma confederação danubiana. (Uma con-
no ano seguinte. ferência danubiana em Belgrado, em 1948,
Durante esse período de enquadra- deixou os russos com o controle efetivo do
mento, o propósito central de Moscou era rio. Os norte-americanos, os britânicos e os
remoldar todos os satélites segundo um pa- franceses, perdendo todas as votações, pro-
drão geral e vinculá-los à URSS por todos os testavam dizendo que a convenção de 1921
meios que não a anexação. Mas não poderia permanecia em vigor na ausência de um
haver anexação. Os novos Estados molda- substituto universalmente aceito.)
dos deveriam ser as Democracias Popula- Mais abaixo, a ideia de uma federação
res, não as Repúblicas Soviéticas. Menções eslava do sul cresceu por um tempo e pas-
à anexação eram afastadas por Moscou, que sou a se falar em um contrapeso romeno-
deixava claro que uma Democracia Popular -húngaro. A federação eslava do sul era a
era diferente de uma República Soviética. menos improvável dessas ideias federati-
Os entusiastas comunistas com ideias de vas, ainda que patrocinada por dois líderes
admissão em uma Comunidade Soviética de máxima importância, Tito e Dimitrov,
ampliada eram desenganados. As razões mas seus planos se tornaram grandiosos
para essa política podem ser encontradas na para o gosto de Moscou, e uma federação
natureza essencialmente cautelosa de Stalin iugoslavo-búlgara se parecia muito com
ou em seu entendimento de que essas áreas, uma tomada da Bulgária por parte da Iugos-
caso fossem absorvidas integralmente, dei- lávia: a principal cidade dessa união seria
xariam de ser uma zona de contenção, ou na Belgrado e não Sofia. Em 1947, Tito disse
incapacidade da URSS assolada pela guerra publicamente aos búlgaros que pensava em
de fazer transformações radicais em sua es- uma entidade monolítica de povos balcâni-
trutura em meados dos anos de 1940, ou na cos livres, e Dimitrov, em visita à Iugoslávia
ciência de que alguns dos satélites tiveram e para assinatura de quatro pactos, cedeu se-
esperavam um padrão mais elevado de vida cretamente a Macedônia Pirin à República
238 | PETER CALVOCORESSI

Iugosláva da Macedônia. Traicho Kostov, Comunista, políticas agrárias, a frouxidão


vice-primeiro-ministro da Bulgária, falava da Iugoslávia na liquidação do capitalismo
de uma união de todos os eslavos do sul em e a pessoa do ministro do exterior do país,
um futuro próximo, e Dimitrov falou, na ca- Vladimir Velebit, que os russos acusavam
pital romena, sobre uma união alfandegária de ser agente britânico. O atrito aumentou
que levasse à federação, que incluiria não com a presença de assessores civis e milita-
apenas os eslavos do sul, mas também os do res russos, que pareciam representar para os
norte (excluindo os da URSS) e a Hungria, iugoslavos uma afirmação de superioridade
a Romênia, a Albânia e a Grécia. A essas por parte daqueles e receber salários muito
alturas, Moscou interveio, convocou os lí- altos. As tentativas russas de pressionar os
deres iugoslavo e búlgaro e lhes disse que a iugoslavos incluíam ameaças de retirada
Romênia deveria ficar fora de seus planos, desses especialistas.
embora a Albânia pudesse ser acrescentada Em toda essa interação, os iugoslavos
mais tarde a um Estado iugoslavo-búlgaro. estavam evidentemente ansiosos para evi-
Os iugoslavos também deveriam abando- tar um rompimento, uma atitude que pode
nar os planos de envio de tropas à Albânia. ter fortalecido a decisão russa de arrancar
Nenhuma união de qualquer tipo realmente admissões de erro com relação aos pontos
aconteceu. Dimitrov morreu em Moscou em disputa. Mas o resultado foi uma negati-
em 1949, um ano depois da Iugoslávia ser va iugoslava de aceitar o status de pupilo, e,
expulsa do bloco comunista. em junho, o rompimento tornou-se público
Tito tinha irritado Stalin por suas po- com a expulsão da Iugoslávia do Comin-
líticas antiocidentais em Trieste e na Gré- form (Birô Comunista de Informação), a
cia no final da guerra, quando Stalin ainda associação internacional de partidos comu-
estava sendo relativamente amigável com nistas que tinha sido formada no mês de se-
seus aliados durante o conflito. Essas eram tembro anterior para garantir conformidade
questões menores, mas a visão de Tito de ideológica.
uma federação balcânica sob controle da Tito era um comunista convicto, mas
Iugoslávia era mais indigesta e foi segui- não obsequioso. Ele tinha vislumbrado a
da por sua insistência de que o país não só adesão de uma república comunista iugos-
era separado da URSS, mas diferente, e de lava à URSS, mas também, em seus dias de
que a doutrina e a prática comunistas não juventude, tinha se incomodado com os
eram tão rígidas que não pudessem levar em expurgos russos dos anos de 1930, abalara-
conta essas diferenças. Stalin decidiu se li- -se com o pacto russo-germânico de 1939
vrar de Tito substituindo-o por um de seus e teve experiência com a atitude de Stalin
subordinados (Andriye Hebrang ou Sreten para com líderes comunistas de nível infe-
Zujovic) e, assim, garantir na Iugoslávia um rior. Em 1948, abandonou o modo stalinis-
regime tão obediente quanto qualquer outro ta de comunismo internacional em função
na Europa Oriental. Ele não pretendia isolar de orgulho pessoal e nacional. Suas raízes
a Iugoslávia, mas descartar Tito, e a reação nacionais o diferenciavam de líderes co-
dura aos stalinistas (principalmente na Sér- munistas que tinham vivido mais tempo
via) depois desse rompimento sugere que a na URSS do que em seus países de origem,
luta dentro do partido iugoslavo foi aguda e e suas lutas vitoriosas contra os alemães ti-
a vitória de Tito, estreita. A disputa ia des- nham rendido a ele autoconfiança e segui-
de tópicos como a organização adequada de dores entre a população. Ele tinha a sorte
um Estado comunista, o papel do Partido de a Iugoslávia não ter fronteiras com a
POLÍTICA MUNDIAL | 239

URSS e de a ajuda ocidental lhe possibilitar seu rival anti-iugoslavo Enver Hoxha (que
aguentar o bloqueio econômico comunista. sobreviveu a uma tentativa anglo-americana
O país se tornou uma anomalia internacio- incompetente de tirá-lo do cargo em 1949,
nal, um Estado comunista dependente de e, a um golpe russo depois de uma dispu-
ajuda norte-americana e de outros países do ta com Khruschev em 1960, expulsou seus
Ocidente, aliado da Grécia e da Turquia no amigos chineses de primeira hora em 1978,
pacto balcânico de 1953 e, depois, protago- e morreu em 1985). Na Polônia, Gomulka
nista, com Nehru e Nasser, do neutralismo perdeu a respeitabilidade que lhe restava ao
e do não alinhamento. A secessão iugoslava ser expulso, com outros, do comitê central
implicou rompimentos diplomáticos e eco- do Partido depois de acusações de colabora-
nômicos com os satélites soviéticos e mu- ção com a ditadura de Pilsudski e a Gestapo,
danças nas relações da Iugoslávia com seus além de nacionalismo e desviacionismo.
vizinhos não comunistas. Contribuiu para a Mas ele não foi levado a julgamento.
derrota da rebelião comunista na Grécia e Moscou preferiu fortalecer sua posição no
para resolver, por meio de divisão em 1954, mais importante dos satélites enviando o
os problemas de Trieste (a Itália acabou re- marechal soviético Konstanty Rokossovsky
nunciando à sua reivindicação ao conjunto a Varsóvia, onde ele se tornou cidadão po-
do Território Livre em 1975). Acabou com lonês e ministro da defesa. Na Tchecoslová-
o mito de que um governo comunista não quia, a secessão de Tito e o julgamento Rajk
subserviente a Moscou era uma contradição foram seguidos de um expurgo de suspeitos
em termos. Deu origem a uma série de caça de ter simpatia por Tito e de comunistas
às bruxas no bloco dos satélites, onde os rus- que tinham passado os anos de guerra em
sos passaram a eliminar os comunistas que Londres. As vítimas incluíam o ministro do
pudessem ser simpáticos a Tito ou fossem exterior Vladimir Clementis, que renun-
tentados a seguir seus passos. ciou em março de 1950, mas não foi levado
A consequência mais espetacular des- a julgamento. No final de 1951, os comu-
se rompimento foi o julgamento de Laszlo nistas do grupo de Moscou dos tempos da
Rajk na Hungria. Ele e outros comunistas guerra, incluindo o secretário do partido,
húngaros foram levados a julgamento por Rudolf Slansky, foram levados a julgamento
uma série de acusações, que eles confessa- com processos que tinham uma marca dife-
ram e que incluíam espionagem para o re- renciada, antijudaica, e que fazia dos judeus
gime de Horthy, anterior à guerra, para a bodes expiatórios para a impopularidade
Gestapo nazista, para os Estados Unidos e do regime.
a Grã-Bretanha e para Tito. O julgamento Esses julgamentos consolidaram o po-
foi uma demonstração anti-Tito, ainda mais der de polícia no Estado e o controle de
intensa por ter terminado com a execução Stalin sobre os satélites. A rejeição do Pla-
dos acusados. Ele estabeleceu Matyas Rako- no Marshall, em 1947, foi seguida pelo blo-
si como o homem de Stalin na Hungria. queio russo de Berlim e por uma ação mais
Na Bulgária, o veterano comunista Traicho militante dos comunistas na Europa Oci-
Kostov foi expulso do partido, preso e, junto dental (principalmente na França e na Itá-
com outros, julgado e executado. As acusa- lia), mas esses empreendimentos fracassa-
ções iam de trotskismo a titismo, e sua es- ram e o fracasso coincidiu com um desafio
sência era a conspiração contra o Estado. Na à dominação russa na Europa Oriental, que
Albânia, Koci Xoxe, que tinha apoiado uma teve sucesso na Iugoslávia e parecia se tor-
união com a Iugoslávia, foi eliminado por nar contagiosa. A resposta de Stalin foi dura
240 | PETER CALVOCORESSI

e prática: onde podia, ele alegou ameaças quisas estatísticas, intercâmbios técnicos
aos interesses russos e aumentou o aparato e promoção de tratados comerciais bilate-
de integração comunista, criando uma insti- rais e triangulares, mas, a partir de 1956,
tuição para assimilação econômica e geran- introduziram-se mudanças consideráveis.
do os primórdios da coordenação militar. Foram estabelecidas 12 comissões perma-
O Comecon (Council for Mutual Eco- nentes em diferentes capitais, a Iugoslávia
nomic Assistance ou Conselho para Assis- e a China foram admitidas como observa-
tência Econômica Mútua), foi fundado em doras, foi elaborada uma Constituição que
1949 em contraposição ao Plano Marshall. entrou em vigor em 1960, inaugurou-se um
Seus membros fundadores foram a URSS, executivo internacional em 1962 e as reu-
a Polônia, a Tchecoslováquia, a Hungria, a niões desses vários órgãos se tornaram re-
Romênia e a Bulgária, que receberam a ade- gulares e frequentes.
são quase que imediata da Albânia e, um O Comecon organizou ajuda para a
ano mais tarde, da Alemanha Oriental. Era Hungria em materiais e créditos depois da
uma forma de associação de Estados sobe- revolução de 1956, promoveu planejamento
ranos: a propaganda comunista dessa época e investimentos conjuntos e ampliou a co-
estava atacando o Plano Marshall como um operação entre os satélites em uma ampla
mecanismo norte-americano para dominar base multilateral: por exemplo, para a dis-
as soberanias europeias. Mas no Comecon, tribuição de energia elétrica e a construção
por muitos anos não houve qualquer insis- de oleodutos. Introduziu-se um sistema in-
tência dar em direitos soberanos para a dis- ternacional de pagamentos com a criação,
sidência, e a predominância da URSS era em 1964, de um Banco Internacional para
acentuada pela exclusão da Iugoslávia. Por Cooperação. Esses eventos não alteraram o
10 anos, o Comecon não teve constituição, caráter básico da economia soviética, a sa-
dispunha de uma sede pequena e poucos ber, autossuficiência, que passou a significar
funcionários em Moscou, e de atividades autossuficiência do bloco em vez de cada
esparsas. Como significava pouco mais Estado, e uma economia de comando na
do que um gesto antiamericano, era um qual as empresas tinham de cumprir metas
anexo das políticas russas, implementadas de produção em vez de dar lucro. O bloco
principalmente com outros meios, de usar comunista continuou sendo um elemento
o planejamento para anexar as economias insignificante no comércio mundial.
satélites às necessidades russas e não desen- Em questões militares, Moscou exercia
volver a região como um todo, no interesse controle e supervisão por meio de oficiais
de todas as partes. Os próprios governos nas forças armadas dos satélites, que tinham
satélites estavam em processo de adotar o sido treinados na URSS. O envio do mare-
sistema comunista rígido de planejamento chal Rokossovsky a Varsóvia foi um gesto
estabelecendo metas nacionais e instruin- singularmente explícito e avançado, mas que
do cada empresa separada com quanto ela teve muitos paralelos em níveis mais baixos.
deveria contribuir para o todo (um sistema Em 1952, essa política de tentáculos foi su-
que o chefe da Comissão Estatal de Plane- plementada pela criação de um comitê co-
jamento em Moscou, Nikolai Voznesensky, ordenador militar presidido pelo marechal
estava tentando reformar até ser demitido Bulganin, e, em uma conferência em Varsó-
por Stalin em março de 1949). Até as cri- via no final do ano, instituiu-se um Estado-
ses de meados da década de 1950, o Co- -Maior geral combinado, com seu quartel-
mecon se ocupava modestamente de pes- -general em Cracóvia, sob comando de um
POLÍTICA MUNDIAL | 241

general russo. As instalações militares, que Na Hungria, milhares de pessoas foram


envolveram consideráveis deslocamentos de confinadas em campos em uma campanha
população, foram construídas na costa do dirigida em particular contra os campone-
Báltico, na Polônia, na Alemanha Oriental e ses, que eram a maioria da população. Em
em torno do Mar Negro. Nessa etapa, os sa- 1954, Moscou mostrou evidências de uma
télites estavam contribuindo com algo como nova concepção sobre relações com seus
1,5 milhão de homens para forças militares satélites ao vender a esses governos a par-
e de segurança, incorrendo em um custo fi- ticipação russa em companhias conjuntas
nanceiro incomensurável e sendo obrigados criadas depois da guerra para o controle
a ajustar suas indústrias, suas revoluções in- de empreendimentos industriais e comer-
dustriais e seus planejamentos econômicos ciais importantes. A eliminação de Beria
aos requisitos militares do bloco segundo a na URSS foi copiada em outros lugares: na
avaliação da URSS. Porém, não havia qual- Hungria, o chefe da polícia de segurança,
quer tratado de defesa multilateral formal Gabor Peter, foi sentenciado à prisão per-
até que, depois da morte de Stalin, a admis- pétua e o primeiro secretário do partido do
são da Alemanha Ocidental à OTAN gerou governo, István Kovács, foi forçado a con-
a fundação, em maio de 1955, do Pacto de fessar prisões injustas e falso testemunho.
Varsóvia. Esse tratado, do qual faziam parte Em 1956, a Polônia e a Hungria deram um
a URSS e seus satélites, foi expresso como testemunho muito mais visível da insegu-
um mecanismo regional para autodefesa no rança do domínio russo.
sentido do artigo 52 da Carta da ONU, e foi Em junho de 1956, houve greves e levan-
renovado em 1975 e 1985. Ele criava orga- tes na cidade polonesa de Poznan, dirigidos
nizações conjuntas com sedes em Moscou. principalmente contra os baixos salários
Ao mesmo tempo, regularizava a presença por longas jornadas. A agitação industrial
de tropas russas na Romênia e na Hungria, coincidiu com o fermento intelectual e com
onde elas não teriam status legal depois do demonstrações católicas em Czestocho-
fim dos direitos de ocupação na Áustria wa, onde estava um santuário venerado da
pelo tratado que restaurou a soberania do Virgem Maria. O primeiro-secretário do
país naquele ano. Em geral, o Pacto de Var- Partido dos Trabalhadores Unidos, Edward
sóvia era uma formalização de disposições Ochab, convenceu-se de que Gomulka de-
existentes e lhes acrescentava pouca subs- veria ser reabilitado e readmitido ao poder.
tância. A participação na aliança se tornou Em visitas à URSS e à China, Ochab parece
um teste de confiabilidade dos parceiros de ter convencido os chineses, mas não os rus-
Moscou na Guerra Fria. sos, da necessidade dessa reversão. Em outu-
bro, o politburo admitiu Gomulka e excluiu
Rokossovsky. Uma poderosa delegação russa
Depois de Stalin chegou, formada por Khruschev, Molotov,
Mikoyan e Kaganovich, e as tropas russas na
A morte de Stalin, em março de 1953, esti- Polônia e na Alemanha Oriental começaram
mulou a inquietação – não a iniciou, pois a se movimentar. Gomulka foi incluído na
havia greves na Tchecoslováquia, por exem- equipe polonesa escolhida para confrontar
plo, no ano anterior –, mas, em junho de os visitantes, que não tiveram permissão
1953, ocorreram transtornos na Alemanha para participar de uma reunião do comitê
Oriental, que o governo não conseguiu con- central polonês e foram embora depois de
trolar sem a ajuda de tanques russos. 24 horas. Falou-se duro, mas as ações duras
242 | PETER CALVOCORESSI

foram contidas. Gomulka foi nomeado pri- líderes dos satélites. Rakosi e Nagy se torna-
meiro-secretário e Rokossovsky foi embora ram vítimas centrais dessas questões. Rako-
para Moscou, seguido em poucos dias por si foi especialmente desagradável com Tito,
Gomulka. O desfecho foi que os russos, que com quem Khruschev estava ansioso para
supostamente foram a Varsóvia com a inten- se entender, ao passo que Nagy alimentava
ção de conter Gomulka e seu partido, decidi- expectativas exageradas de se tornar algo
ram, depois de uma rápida virada, aceitá-los. como um Tito. Rakosi perdeu todos os seus
A alternativa, o uso direto de forças russas cargos. Gerö foi promovido a primeiro-se-
na Polônia, era muito arriscada porque es- cretário e Nagy, à posição de primeiro-mi-
sas forças poderiam enfrentar resistência nistro. Mas a demissão de Rakosi desenca-
do exército polonês e uma luta na Polônia deou uma oposição que Gerö foi incapaz de
poderia ter levado a problemas graves em dominar (ele só durou três semanas) e Janos
outros países. Gomulka era comunista e não Kádár se tornou primeiro-secretário quan-
tinha ilusões com relação à necessidade que do os russos descobriram que, para manter
a Polônia tinha de manter relações razoa- seu controle sobre a Hungria, deveriam usar
velmente boas com a URSS. Ele não propôs a força militar.
retirar a Polônia do Pacto de Varsóvia nem Os russos, representados por Mikoyan
compartilhar o poder no país com os não e Suslov, que estavam de passagem por Bu-
comunistas. Ele poderia ser tolerado. Em dapeste a caminho de Belgrado, pareciam
dezembro, um novo tratado deu aos russos o apoiar um governo Nagy – mas, talvez,
direito de manter tropas na Polônia. sem saber que tipo de governo seria. Nagy
Na Hungria, a revolução que se seguiu anunciou que estava incluindo em seu go-
imediatamente ao acordo na Polônia passou verno dois líderes do proscrito Partido
dos limites que os russos estavam prepara- dos Pequenos Proprietários, Zoltan Tildy
dos para suportar. Algumas semanas depois e Bela Kovacs, e, no mesmo dia, as tropas
da morte de Stalin, Rakosi, o perfeito sta- russas que ameaçavam Budapeste começa-
linista, foi forçado a abrir mão do cargo de ram a se retirar. A seguir, Nagy anunciou o
primeiro-ministro para Imre Nagy, o que foi fim do governo de partido único e exigiu a
um revés, mas ambíguo, já que ele manteve completa evacuação das forças russas. Ele
o cargo de primeiro-secretário do Partido foi muito mais longe do que Gomulka. Em
Comunista Húngaro e seu apoiador mais 30 de outubro, parecia que as tropas russas
firme, Erno Gerö, continuou como ministro em retirada se preparavam para retornar. A
do interior. Dois anos depois, com a estrela sorte foi lançada em 31 de outubro, quan-
de Malenkov em declínio em Moscou, Nagy do se disse a Mikoyan e Suslov que a Hun-
foi removido e Rakosi voltou ao controle gria pretendia sair do Pacto de Varsóvia, o
total, mas, menos de um ano mais tarde, mais tardar, no dia seguinte, quando Nagy
Khruschev liderou o movimento que criti- fez uma declaração pública nesse sentido,
cava os procedimentos de Stalin (a partir de dizendo que a Hungria se tornaria um país
1934, mas não antes disso) e se apressou a neutro. Naquele dia, um governo alternati-
reparar as relações com Tito. vo foi estabelecido pelos russos, sob coman-
Os líderes dos satélites se viram em um do de Kádár, e, quando, dois dias mais tarde,
dilema: tiveram de descobrir as implicações o general Pal Maleter, ministro da defesa de
práticas da nova voga por liderança coletiva Nagy, foi negociar com os russos a retirada
e até onde a readmissão de Tito no grupo de suas tropas, ele foi sequestrado. Budapes-
comunista implicava novas liberdades aos te foi atacada em 4 de novembro (o dia em
POLÍTICA MUNDIAL | 243

que Gomulka foi a Moscou) e depois disso tas estremeciam diante da demonstração
a revolução foi rapidamente suprimida. Mi- da determinação russa. Em pouco tempo,
lhares de húngaros foram deportados para eles tinham novas causas para a preocupa-
a URSS ou executados. Kádár se dedicou a ção com a divisão russo-chinesa. Conside-
governar a Hungria dentro dos limites im- rava-se que os chineses tinham dado aos
postos por Moscou: nada de eleições e nada russos os conselhos certos sobre a Polônia
de sair do Pacto de Varsóvia. Ele governou e a Hungria – ou seja, ceder em relação às
por 32 anos em harmonia com Khruschev. mudanças e, na Hungria, usar a força so-
Proclamou uma anistia geral em 1963, cul- mente depois de Nagy ter dado um rumo
tivou um governo relativamente não auto- anticomunista à revolução –, e Zhou Enlai
crático, relaxou o uso de tortura e prisões e visitou a Polônia e a Hungria no início de
permitiu a discussão e introdução de refor- 1957 para consolidar essa vantagem e enfa-
mas econômicas. tizar a necessidade de boas relações russo-
Nos governos de Rakosi e Gerö, a pro- -chinesas. O tratamento que Khruschev
dução industrial da Hungria aumentou pela deu ao conflito com Pequim preocupou os
primeira vez, mas a produtividade de uma líderes dos satélites, que não gostaram da
força de trabalho muito ampliada não me- forma como ele insistiu em trazer a questão
lhorou, houve apenas um investimento mí- à tona e fazer com que os comunistas assu-
nimo em fábricas ou em tecnologia, e, quan- missem um lado. Em 1960, Khruschev usou
do a força de trabalho parou de aumentar, um congresso do partido romeno para fa-
o crescimento industrial caiu a zero. O in- zer uma demonstração contra os chineses,
vestimento em estradas, moradia, educação e, embora, em 1961, 81 partidos comunistas
e pesquisa era desprezível. Em meados dos (com a única abstenção da Iugoslávia) tives-
anos de 1970, os economistas estavam de- sem assinado, em Moscou, uma declaração
fendendo um abandono drástico do plane- destinada a solucionar as disputas, Khrus-
jamento econômico central, a liberação das chev continuou, até sua queda em 1964, a
forças de mercado da oferta e da demanda conduzir uma campanha pública contra os
e esquemas para alocar os lucros de deter- chineses.
minadas empresas entre os trabalhadores, o Nessa questão, a Romênia assumiu a
Estado e o reinvestimento. Essas discussões frente, inicialmente persistindo em tenta-
eram abertas e até mesmo transmitidas pela tivas de solucionar disputas e depois ao se
televisão, mas as barreiras intelectuais es- recusar a tomar partido. Gheorghe Gheor-
tavam caindo mais rapidamente do que as ghiu-Dej, o governante virtual do país des-
políticas. de o final da guerra (e governante inques-
As reformas reais eram modestas e o tionado depois da queda, em 1952, de Ana
partido do governo, pouco ousado e, dife- Pauker e Vasile Luca), desafiaram os russos
rentemente de seus equivalentes na Polônia no Comecon, no qual em 1962, Khruschev
e na Tchecoslováquia, pequeno. propôs criar um órgão de planejamento su-
A supressão da Revolução Húngara de pranacional com poderes para direcionar
1956 foi um desses atos brutais que causam investimento em todo o bloco e prescrever
danos ao autor, mas são levados a cabo com o que deveria e não deveria ser feito em cada
base no cálculo de que não fazê-lo causaria Estado-membro. Os romenos, que queriam
danos maiores. Os partidos comunistas da uma siderúrgica, mas lhes foi dado o papel
Europa Ocidental perdiam membros em de produtores de matérias-primas, invoca-
escala considerável e os governos comunis- ram o princípio da soberania nacional que
244 | PETER CALVOCORESSI

os próprios russos tinham promovido tan- presidente da república desde 1957. Novotny
to quando o Comecon foi fundado. Eles era um tcheco que desprezava os eslovacos
manifestaram sua insatisfação fazendo um e não escondia isso. Isso passou a ser usado
acordo separado com a Iugoslávia para um contra seu favor em um movimento contra
sistema hidrelétrico nas Portas de Ferro, sua liderança que fez com que ele fosse afas-
no Danúbio, propondo que a China fosse tado do seu cargo partidário em janeiro de
membro integral do Comecon e ameaçando 1968, da presidência em março, e do partido
se retirar dele. Os líderes romenos visitaram em maio. Isolado por Moscou, foi sucedido
Paris, Londres, Ancara e outras capitais não no primeiro cargo pelo primeiro-secretário
comunistas. Depois da morte de Gheorghiu- do Partido Comunista Eslovaco Alexander
-Dej em 1965, seu sucessor como secretário Dubček e, no segundo, pelo general Jan Svo-
do partido, Nicolau Ceauceşcu, também boda. A primeira e mais importante dessas
falou da dissolução do Pacto de Varsóvia e mudanças significou uma reversão de poder
da perda da Bessarábia para a URSS 25 anos dentro do partido, instigada em muito pelos
antes. Depois de uma habilidosa visita de eslovacos.
Brejnev a Bucareste em 1965, as propostas Dubček, apesar de ser um nacionalista
romenas mais implausíveis foram suaviza- eslovaco, era um reformista econômico, re-
das, à medida que a realidade da situação lativamente humano no governo e relativa-
ficou visível mais uma vez. A Romênia con- mente liberal na economia. Ele representava
tinuou afirmando sua idiossincrasia ao esta- um enigma para Moscou, que, por vários
belecer relações diplomáticas com a Alema- meses, não conseguiu saber o que fazer com
nha Ocidental em 1967. ele. As primeiras medidas do novo governo
O ano de 1968 trouxe um novo desafio eram vagas e não ameaçavam explicitamen-
de um lado diferente: a Tchecoslováquia. A te o monopólio de poder dos comunistas
secessão iugoslava deu a Gottwald um mo- nem o Pacto de Varsóvia, mas seu Programa
tivo e uma desculpa para tornar mais rígi- de Ação, publicado em abril, e uma promes-
do seu controle (houve mais execuções na sa de eleições em maio deixaram Moscou
Tchecoslováquia do que em qualquer outro em um dilema, resolvido no final de agosto
lugar), e os anos gelados da Guerra Fria, com a invasão.
com rumores sobre ações norte-americanas A Tchecoslováquia era um país indus-
para libertar a Europa Oriental, colocava trial que foi especialmente prejudicado pelo
um freio em todas as críticas significativas fato de a Cortina de Ferro ter sido fecha-
ao governo. da onde foi. Economicamente, sua metade
Embora o governo estivesse com pouca ocidental pertencia ao mundo ocidental,
credibilidade, não houve oposição séria. O ainda que a Eslováquia não pertencesse. A
medo da polícia suprimia as discussões e economia do país conseguiu se recuperar
impedia a organização. Dentro do partido decentemente da guerra, mas ficou estag-
governante, o debate foi atrofiado. Os even- nada nos anos de 1960. Sua força de antes
tos de 1956, na Polônia e na Hungria, não da guerra em indústria e exportação de bens
desencadearam nada visível na Tchecoslo- de consumo foi prejudicada pela insistência
váquia, que passou a ser considerada o mais da Rússia em expandir indústrias pesadas
dócil dos satélites. de cujos produtos necessitava, mas que não
Presidindo essa inércia estava Antonin tinham mercado fora do bloco de satélites,
Novotny, primeiro-secretário do Partido pois, em termos ocidentais, sua tecnologia
Comunista da Tchecoslováquia desde 1953 e estava ultrapassada. Seus métodos eram
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perigosamente poluidores, o país produzia da Tchecoslováquia para com a URSS e vi-


duas vezes mais aço do que conseguia ven- sitou Moscou imediatamente após sua no-
der e se isolou do restante do mundo. O pa- meação), alguns meses mais tarde, Brejnev
drão inicial de orientação e controle central e seus colegas estavam ficando preocupados
comunista engendrava uma ossificação, e o com o programa de Dubček e também com
retorno aos bens de consumo era obstruído a probabilidade de que ele fosse pressiona-
pelos novos grupos que tinham interesses na do em uma direção liberal pelo entusiasmo
indústria pesada. A Tchecoslováquia evitava desencadeado pela mudança de governo em
o endividamento excessivo para com o Oci- Praga. Essa mudança foi seguida por um
dente, na escala da Polônia ou da Hungria, considerável relaxamento na censura, por
mas não tinha como readaptar nem recons- uma série de mudanças ministeriais e pela
truir sua economia sem capital ocidental. perspectiva de uma democratização políti-
Os economistas estavam cientes desses ca, bem como liberalização econômica. Ha-
riscos. Algumas reformas, na maioria inefi- via pressão popular para que Dubček fizesse
cazes, foram iniciadas em 1958, e o comitê reformas internas radicais que levantariam
central do partido do governo aprovou em questões sobre as relações externas da Tche-
1965 um programa de alcance mais amplo coslováquia. Dubček tinha tomado cuidado
para descentralizar a gestão industrial, o para fazer contatos pessoais com líderes rus-
qual foi elaborado pelo Professor Ota Sik. sos, poloneses e húngaros antes de se reu-
Ideias semelhantes foram discutidas em paí- nir com os suspeitos romenos, e por alguns
ses vizinhos, incluindo a própria URSS, e a meses, seus vizinhos não demonstraram
Hungria adotou medidas mais radicais do qualquer desconfiança por ele nem por seu
que as de Sik. governo, mas, a partir de março, começa-
Em 1968, não havia razão convincente ram a surgir críticas na Alemanha Oriental
para supor que Moscou vetaria o tipo de po- e na Polônia, e os russos se perguntavam se
lítica econômica que o governo de Dubček as mudanças na Tchecoslováquia não eram
queria implementar. mais significativas do que pareciam no prin-
Porém, a pressão por mudanças veio cípio. Os reformadores estavam ganhando
acompanhada por um segundo tipo de fer- segurança e atiçando expectativas populares
mento. A descentralização da gestão eco- ainda maiores. Seu Programa de Ação con-
nômica era igualada à liberalização de con- tinha propostas radicais relativas às respec-
troles e participação dos trabalhadores (ou tivas funções do partido e do governo, à rea-
democracia industrial), e essas tendências bilitação de vítimas dos expurgos de 1949,
se sobrepunham naturalmente às deman- à posição da Eslováquia, ao ressurgimento
das por mais liberdade em termos gerais, do parlamento e a alguma liberdade para os
principalmente liberdade de expressão na partidos menores (dentro da Frente Nacio-
imprensa escrita e no rádio, e à democrati- nal, que os comunistas continuariam a con-
zação da política partidária e do parlamen- trolar). Dubček, que tinha uma confiança
to – todas representavam problemas mais imprudente em sua capacidade de remode-
graves para os guardiões russos da ordem lar o Partido Comunista e garantir seu apoio
estabelecida. Enquanto, em janeiro de 1968, ao programa, não deu ouvidos a alertas so-
os russos aparentemente tinham decidido bre a ação militar por parte de Moscou.
que Novotny perdera o controle e era dis- Aos russos, o Programa de Ação era
pensável, e que Dubček era aceitável em seu antipático em si, e duplamente no contexto
lugar (Dubček proclamou a solidariedade da Europa Central e Oriental. Ele trouxe a
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liberdade pessoal e política para o centro coslováquia para desmentir rumores de que
de um debate que dificilmente poderia ser eles e seus aliados estivessem instigando
limitado à Tchecoslováquia. O primeiro uma secessão no bloco de Varsóvia.
grande levante no bloco comunista pós- A intervenção nas questões de um vizi-
-guerra tinha sido causado pelo exemplo da nho não era nova nem ideologicamente in-
Iugoslávia em 1948; o segundo, por exem- justificável, mas a forma extrema de invasão
plos da Polônia e da Hungria em 1956. Era militar deveria ser evitada se possível, talvez
vital impedir que Dubček desse um terceiro descartada totalmente, segundo algumas
mau exemplo. Em maio, ele e outros líde- estimativas sobre os danos que esse tipo de
res da nova direção foram a Moscou. Duas método de força poderia ter para o comu-
semanas mais tarde, Kosygin fez uma lon- nismo internacional e para o lugar ocupa-
ga visita a Praga, assim como – ao mesmo do nele pela URSS. O debate sobre como e
tempo, mas separadamente – o marechal até onde intervir envolveu os líderes russos
A. A. Grechko, acompanhado do marechal durante julho e metade de agosto. Uma pri-
Epishev, o chefe da inteligência política do meira reunião em Varsóvia, que não contou
exército soviético. Kosygin parecia estar com a participação dos tchecos (nem dos
buscando um entendimento, enquanto os romenos), produziu uma carta alertando-os
generais pareciam estar se preparando para de que suas propostas de reforma significa-
a ação se esse entendimento não viesse. vam deixar que o poder escapasse do Partido
Em junho, as forças do Pacto de Var- Comunista. Pedia-se que explicassem suas
sóvia realizaram manobras na Tchecoslo- atitudes. Essa reunião foi seguida de outra
váquia, que tinham sido planejadas muito entre Rússia e Tchecoslováquia, realizada
antes, mas foram ampliadas consideravel- nesta e por sua insistência – em Ciernanad-
mente e os tanques russos que vieram com -Tisou, na fronteira eslovaca. Começou em
elas não pareciam ter pressa de ir embora. 26 de julho e durou quatro dias, sendo segui-
Esse sinal, ou demonstração, por parte dos da imediatamente por outra, em Bratislava,
russos, coincidiu com a publicação de um de todos os membros do Pacto de Varsóvia,
novo manifesto liberal – o Duas Mil Pala- com exceção da Romênia. Antes de Cierna,
vras – que fazia ainda mais pressão refor- os russos publicaram uma declaração amea-
mista sobre Dubček e acirrava as tensões çadora, dizendo que tinham sido encontra-
entre forças democráticas e reformistas das armas norte-americanas escondidas em
em Praga. Em agosto, houve a publicação solo tcheco e era difícil avaliar se Cierna era
dos novos estatutos do Partido Comunista pouco mais do que uma fachada. Bratislava
Tcheco, que significava o fim do centralismo reafirmou a ameaça militar. As tropas russas
democrático e a concessão de direitos subs- se retiraram da Tchecoslováquia. A propa-
tanciais a outros partidos. Posteriormente ganda de Moscou contra Praga parou, mas,
naquele mês, o independente Ceauceşcu e em 20 de agosto, os russos, acompanhados
Tito, o bicho-papão, visitaram Praga com por unidades alemãs orientais, polonesas,
grande aclamação, com alguns dias de dis- húngaras e búlgaras, invadiram.
tância um do outro. A situação estava agora A invasão foi precisa e eficiente em
tão perigosamente carregada que os parti- termos militares. As forças armadas da
dos comunistas francês e italiano tentaram Tchecoslováquia não ofereceram resis-
mediar, e os alemães ocidentais, igualmente tência – Dubček tinha dito que elas não o
preocupados com o rumo das coisas, reti- fariam. Ele não foi deposto, e sim preso,
raram suas forças da fronteira com a Tche- levado de avião a Moscou, possivelmente
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drogado e forçado a dar seu consentimen- xar claro que a détente implicava não mexer
to a uma invasão russa. Ele o fez na crença nos respectivos reinos de poder. A invasão
de que a invasão era inevitável e que sem e a doutrina inquietaram a Europa Oriental
seu consentimento, ela receberia a resis- pela violência da primeira e as implicações
tência inútil e sangrenta de seu povo. Se os da segunda, e o uso do ostensivamente an-
russos esperavam que o presidium em Pra- tiocidental Pacto de Varsóvia contra um de
ga depusesse Dubček e instalasse um novo seus próprios membros enfatizava as tensões
governo, estavam mal-informados e seus predominantes dentro do bloco 20 anos de-
preparativos eram insuficientes. Eles che- pois de sua consolidação.
garam como conquistadores e, embora seu Essas tensões tinham duas fontes prin-
poder fosse avassalador, negociaram com cipais: o nacionalismo e os conflitos de
Dubček e Svoboda. interesse econômico. O nacionalismo era,
Os 20 anos de governo comunista endu- em vários níveis, endêmico em todo o blo-
receram a vida política e cultural e criaram co. A Bulgária, em um extremo da escala,
um desastre econômico através da buro- endossou a doutrina Brejnev em uma nova
cracia estéril, de um lado, e irrealidade, de Constituição em 1971, e, assim, elevou o
outro – nenhum dos planos quinquenais internacionalismo socialista acima do na-
tinha funcionado como pensavam seus pla- cionalismo tradicional e da soberania de
nejadores. Os reformistas dos anos de 1960 Estado – um eco do comunismo interna-
visavam a um tipo melhor de socialismo, cional ao velho estilo de Dimitrov, junto
que os russos não aceitavam porque refor- com as eternas inclinações da Bulgária a
mas demais em qualquer parte dos satélites Moscou para compensar suas relações des-
significavam necessariamente uma ameaça a confortáveis com seus vizinhos. (No entan-
todo o sistema stalinista. O símbolo concre- to, na década de 1970, a Bulgária buscou
to desse imperativo foi um tratado assinado melhorar suas relações com a Romênia e
em outubro, que permitia às tropas russas com a Iugoslávia, e mesmo com a Grécia
ficarem estacionadas na Tchecoslováquia e com a Turquia). A maioria dos europeus
em quantidade indefinida. Dubček foi rebai- orientais, contudo, relutava tanto quanto os
xado aos poucos, enviado à Turquia como ocidentais a subordinar suas identidades
embaixador e depois chamado de volta para nacionais a organizações ou causas supra-
ser expulso do Partido Comunista e subs- nacionais. A URSS contribuiu para esses
tituído pelo mais submisso Gustav Hušak. particularismos com sua mão pesada em
Do ponto de vista russo, a invasão foi uma momentos de crise e ao obstruir associa-
necessidade lamentável bem executada. A ções regionais dentro de sua esfera. Qual-
reforma e os reformistas foram eliminados. quer associação deveria ter alcance geral e
Não obstante alguns temores ocidentais, não incluir a URSS. Dos dois principais órgãos
se criou nenhuma ameaça à paz internacio- da integração da Europa Oriental, o Pacto
nal e isso não interrompeu o curso da déten- de Varsóvia foi pouco mais do que uma
te russo-americana: não houve mais do que expressão e mobilização do poder russo.
uma breve interrupção nas conversações que Suas forças eram lideradas por um coman-
levaram à abertura do SALT em 1969 e ao dante em chefe russo, e seu quartel general
acordo com Bonn em 1970. Mas a invasão era um escritório de um departamento do
forçou Moscou a proclamar uma doutrina alto comando russo. Foi criado em oposi-
extrema sobre os limites da independência ção à OTAN, e sua função era enfrentar es-
soberana dentro do bloco comunista e a dei- sas forças desta na Europa. Mas, fosse qual
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fosse seu propósito declarado, as forças do era complicado harmonizá-los em função


Pacto tinham outras potencialidades, das da imensa preponderância do poder de um
quais a invasão da Tchecoslováquia foi um membro. Na Europa Oriental, a divisão do
lembrete desconfortável. Defender a Eu- trabalho significava duas coisas em parti-
ropa Oriental incluía, segundo a doutrina cular: que cada membro não russo deveria
Brejnev, combater militarmente inimigos se concentrar em uma ou duas atividades
internos. econômicas prescritas a si pela organização
As questões que a doutrina levantava como um todo (na prática, pela URSS) e que
não diziam respeito ao poder, mas à sobe- os intercâmbios resultantes dentro do grupo
rania. Todos os países do leste da Europa sa- deveriam consistir, em grande parte, na co-
biam que teriam de viver com o poder russo mercialização dessas manufaturas prescri-
e observar as limitações que ele impunha à tas em troca de produtos primários russos,
sua liberdade de ação, mas, ao mesmo tem- principalmente petróleo: as exportações de
po, desejavam manter direitos de soberania, petróleo a outros membros do Comecon su-
mesmo que não os exercessem. Em grande biram de 8,3 bilhões de toneladas em 1965
parte, essa era uma aspiração vã, um esper- a uma projeção de 50 milhões de toneladas
near contra um inimigo mais forte, exem- em 1975. Essa divisão de esforços dentro de
plificado pela constante recusa da Romênia um Estado pareceria natural o suficiente,
(mantida apesar de uma visita a Bucareste mas, quando aplicada antes da unificação
do marechal Grechko em 1973) a participar política, implicava um supranacionalismo
de atividades do Pacto de Varsóvia e da vi- de que os membros desconfiavam porque
sita simbólica de Ceauceşcu a Pequim em retirava as decisões do controle nacional
1971, e de ele ter recebido em Bucareste, em (as mesmas objeções se ouviam na Europa
1972, os presidentes dos Estados Unidos e Ocidental) e ameaçava reduzir membros
da Alemanha Ocidental. específicos à dependência de uma única
No Comecon, o segundo órgão do tipo indústria ou lavoura, resultando em mais
internacional, as tensões eram mais con- perda de independência política. Também
cretas. Tendo surgido no final dos anos de havia a questão dos pagamentos, o medo
1950, depois de um começo sonolento, o de que os termos e benefícios do comércio
órgão recebeu, em 1962, um Plano Básico com o Comecon fossem manipulados com
de Divisão Internacional Socialista do Tra- desvantagem para os membros mais fracos
balho. Esse título proclamava sua intenção. ao se estabelecerem taxas de câmbio arbitrá-
Em 1971, foi adotado um segundo docu- rias desfavoráveis. O Programa Complexo
mento básico: o Programa Complexo para o de 1971 reconhecia esses medos a ponto de
Desenvolvimento da Integração Econômica vislumbrar uma moeda comum ou um ru-
Socialista, incorporando um programa de blo conversível até 1980, depois de um pe-
longo prazo que alcançava 15 ou 20 anos à ríodo no qual as moedas separadas seriam
frente. (Nesse ano a Albânia voltou à orga- ajustadas de forma equitativa e permanente
nização, depois de uma ausência de nove entre si.
anos.) Os problemas práticos do Comecon Os membros do Comecon tinham um
não eram fundamentalmente diferentes interesse comum em elevar seu desempenho
daqueles de qualquer organização interna- econômico e o comércio entre si, mas alguns
cional tentando conciliar o bem de cada um deles também tinham interesse em realizar
com o bem de todos. Seus membros tinham comércio e, portanto, produzir, pois algumas
visões divergentes sobre seus interesses e de suas necessidades só poderiam ser satis-
POLÍTICA MUNDIAL | 249

feitas comprando de países ocidentais, para plano quinquenal em 1975, o país alterou
países de fora do bloco: seu comércio expan- suas primeiras intenções ao reduzir a parce-
diria mais rápido se eles negociassem com la de comércio que se propunha a realizar
países do Oeste bem como do Leste, e havia com o Ocidente. Mas, relutante em recuar
vantagens políticas em uma diversificação ao círculo fechado do Comecon, começou
comercial que reduzisse a dependência eco- a explorar as perspectivas de mais comércio
nômica de um ou dois vizinhos. com o Terceiro Mundo e, para esse propó-
A própria URSS deu um exemplo, pou- sito, candidatou-se e foi aceita como mem-
co podendo criticar outros, ao assinar com bro da conferência dos países não alinhados
os Estados Unidos, em 1972, um acordo vol- convocada em Lima naquele ano (mas rea-
tado a triplicar o comércio russo-americano lizada em Colombo, no ano seguinte). Até
até 1975. (Esse acordo foi encerrado pela a Tchecoslováquia, que continuava sendo a
URSS no início de 1975, depois que o Con- economia mais forte e um país credor den-
gresso dos Estados Unidos inseriu na Lei tro do bloco, foi pega nesse dilema, em par-
de Reforma do Comércio [Trade Reform te em função do vigor de seu comércio e de
Act], de 1974, uma emenda vinculando a sua indústria. O comércio com o Ocidente,
expansão do comércio russo-americano ao facilitado pelo estabelecimento de relações
relaxamento das políticas de emigração da diplomáticas com a Alemanha Ociden-
URSS. O autor da emenda, o senador Hen- tal em 1973, trouxe para si os produtos do
ry Jackson, esperava facilitar a emigração mundo, mas também os preços inflaciona-
judaica da URSS, mas só o que conseguiu dos do mundo, e, como não poderia aban-
foi interromper o comércio entre os dois donar projetos incompletos que dependiam
países.) A partir de 1973, o Comecon reali- de contratos estrangeiros, a Tchecoslováquia
zou conversações com a CEE sobre acordos teve que aumentar o valor de suas expor-
entre a Comunidade e determinados mem- tações ao Ocidente em mais de 20% para
bros do Comitê, criando reduções de quotas conseguir pagar por suas importações com
e cláusulas sobre “nações mais favorecidas”. comércio.
Os países ocidentais se sentiam atraídos pela Na Hungria, a descentralização das
possibilidade de aumentar suas compras de questões econômicas incomodava os russos
petróleo que não fossem provenientes do e a ala mais conservadora do establishment
Oriente Médio. comunista húngaro, mas a visita de Brej-
Todavia, nem todos esses horizontes nev a Budapeste, em 1972, foi interpreta-
eram tranquilos. O aumento do comércio da como a continuação do apoio a Kádár
entre Leste e Oeste coincidiu com o aumen- e à liberalização cautelosa. Mesmo assim,
to dos preços mundiais das mercadorias e Kádár permanecia sob pressão. A conta de
da inflação no Ocidente. A Europa Orien- importações do país aumentou muito, com
tal, vivenciando inflação em suas próprias os preços russos e mundiais subindo tanto
economias por razões domésticas, incluin- que o governo, incapaz de fechar a lacuna
do salários mais altos, deparava-se com as com maior produtividade e exportações,
alternativas de importar medidas contra a era obrigado a repassar ao consumidor os
inflação com produtos e matérias-primas aumentos de preços. No 11o Congresso do
ocidentais ou cortar seu comércio. Quan- Partido, Kádár sobreviveu às críticas, mas
do a Romênia, que tinha redirecionado seu primeiro-ministro Jenö Fock e outros
metade de seu comércio exterior a países personagens de destaque tiveram que re-
de fora do Comecon, preparava um novo nunciar, e foram adotadas novas políticas
250 | PETER CALVOCORESSI

de austeridade de recentralização, para dar externa, à medida que o governo atendia à


conta de um déficit inadministrável no ba- demanda do consumidor e às necessidades
lanço de pagamentos. de modernização industrial comprando no
Muito mais grave do ponto de vista exterior e tomando empréstimos estrangei-
russo era o caso da Polônia, onde as dificul- ros. Em 1974, a Polônia, assim como a Ro-
dades econômicas levaram à derrubada do mênia, estava realizando metade de seu co-
governo por manifestações de trabalhado- mércio com o Ocidente. Enormes aumentos
res, um fenômeno raro em qualquer lugar de preços, principalmente de alimentos, le-
do planeta e muito menos esperado em um varam, em 1976, a greves, revoltas, mortes e
país comunista autoritário. A Polônia era pesadas sentenças de prisão. Fundou-se um
uma espécie de caso especial no império Comitê para a Defesa dos Trabalhadores
de Stalin, já que os poloneses alimentavam (KOR) para ajudar os familiares de mortos
uma hostilidade nacional atávica em rela- e presos e para protestar contra a brutali-
ção aos russos, fossem czaristas ou bolche- dade autoritária da polícia. Os aumentos
viques, e, como católicos, eram igualmente de preços foram anulados, os salários na
hostis ao cristianismo ortodoxo e ao co- indústria e os preços para os agricultores,
munismo. Em 1970, o aumento nos preços aumentados, e Gierek convenceu Moscou
dos alimentos causaram greves e levantes a enviar quantidades substancias de comi-
que o governo não foi capaz de controlar. da e maquinário industrial à Polônia. Era
Quarenta e quatro pessoas foram mortas e uma política de repressão temperada com
mais de mil, feridas. Gomulka renunciou. O concessão, e não funcionou. Os aumen-
novo governo de Edward Gierek cancelou tos de salários acentuaram a demanda pe-
o aumento de preços, elevou os salários e o los bens de consumo importados e, assim,
pagamento da seguridade social, importou aumentaram a inflação e a dívida, já inad-
bens de consumo estrangeiros (a custo con- ministrável, com os parceiros comerciais
siderável) e expurgou o partido e a admi- ocidentais. As mortes de 1970 e 1976 não
nistração, demitindo funcionários em todos foram esquecidas, e outras manifestações e
os níveis e colocando novos homens e mu- greves de fome forçaram o governo a dar,
lheres em metade das posições superiores em 1977, uma anistia aos perseguidos pelos
no centro e além dele. A imprensa passou protestos do ano anterior, e considerava-se
a ter mais liberdade (mas foi restrita nova- que Gierek, que fez sua primeira reunião
mente em 1974), e, em 1972, os salários e com o cardeal Wysczynski, estava pedindo
benefícios foram aumentados mais uma vez ajuda à Igreja Católica. A eleição do cardeal
– com o governo exigindo, em troca, traba- Wojtyla para o papado – o primeiro papa
lho mais esforçado e mais pontual –, e foi polonês desde que o país foi cristianizado,
eleito um novo parlamento, com novas ca- mil anos antes – teve um efeito incomen-
ras, mas também com os tradicionais 99% surável, longe de insignificante, sobre um
de votos para os candidatos comunistas. país que se considerava como a joia da Con-
Em 1973, muitos indicadores econômicos trarreforma. O papa João Paulo II fez uma
eram tão propícios que se podia falar de visita emocionante à Polônia em 1979, que
uma explosão de crescimento: produção foi outro ano de más colheitas e crescente
industrial e agrícola em alta, assim como dívida externa. A tarefa de Gierek estava
os salários reais e o investimento, e preços indo além de seus poderes, e os trabalha-
estáveis. Mas o custo foi um grande au- dores industriais avançavam rumo a outro
mento na conta de importações e na dívida confronto com o governo.
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Em 1980, eles atacaram de novo, paran- carvão da Silésia e outras áreas, os grevistas
do os estaleiros ao longo do Báltico em um aceitaram o papel central do Partido Comu-
quadro de dívidas externas impossíveis de nista, o sistema socialista da Polônia e sua
administrar, preços em ascensão e escassez. participação no bloco russo. Em troca do
Os ganhos com as exportações eram quase reconhecimento desses limites, os líderes
que totalmente absorvidos pelos juros so- extremamente maduros e disciplinados da
bre uma imensa dívida externa de mais de oposição polonesa conquistaram, no papel,
20 bilhões de dólares, aumentando 2 bilhões vitórias impressionantes: o direito de greve,
por ano. A carne era impossível de se obter o direito de formar sindicatos independen-
ou tinha preços proibitivos. Os aumentos de tes do Estado, discussão mais ampla das po-
salários de 10-20%, dados pelo governo no líticas econômicas do Estado, diminuição
verão, ameaçavam agravar a inflação sem da censura, nomeações e promoções com
tornar a vida tolerável a quem os recebeu. base em mérito e independentes de partici-
Não havia ninguém a quem culpar, com ex- pação no partido, salários e aposentadorias
ceção do governo, mas, da mesma forma, mais altos, promessas relativas às condições
não havia forma constitucional de culpá-lo. de trabalho, acomodações e licença-mater-
Consequentemente, as greves que se segui- nidade, uma segunda folga por semana e
ram eram inevitavelmente políticas. Não transmissões regulares de cultos da Igreja
apenas elas não poderiam ser resolvidas Católica. Algumas das cláusulas eram vagas
pela negociação coletiva entre trabalhado- enquanto outras pouco poderiam ser im-
res e seus empregados, como essa negocia- plementadas sem um milagre econômico
ção era impossível, pois os trabalhadores pelo qual ninguém esperava. Mesmo assim,
não tinham permissão para ter organizações ninguém duvidava de que algo extraordiná-
legais através das quais negociar. O sistema rio tinha acontecido. Uma oposição oficial-
não tinha como resolver coisa alguma. Se os mente inexistente, usando força industrial
grevistas continuassem parados, o governo não violenta, forçou um governo totalitário
teria de escolher entre usar a força e ignorar a atender muitas de suas reivindicações, a
o sistema. mudar a Constituição do país e a reintrodu-
O próprio governo, contudo, não era zir o diálogo político onde ele não existira
livre para optar, pois tinha que consultar a por uma geração. A causa imediata e mais
URSS. Gierek voou para ver Brejnev e des- potente da derrota do governo pelo movi-
cobrir quanta margem de manobra tinha. mento dos trabalhadores, o Solidariedade,
Nem ele nem Moscou queriam um enfren- foi seu fracasso econômico, mas as reivin-
tamento com os grevistas (que em pouco dicações dos trabalhadores mostraram até
tempo passaria a ser um enfrentamento onde o descontentamento tinha se espalha-
com um segmento muito mais amplo da do para além da esfera puramente material,
população), mas o uso da força pela URSS passando a incluir questões de liberdade e
não poderia ser descartado. Gierek tinha de dignidade humanas, como o direito de gru-
descobrir o que não poderia conceder de pos industriais de gerenciar (algumas) de
forma alguma, e o acordo a que se chegou suas questões por conta própria e expressar
com os grevistas nos estaleiros de Gdansk, e tornar públicas suas visões.
em agosto, mostrou quais eram esses limi- O controle comunista foi preservado
tes. Nesse acordo, assinado em nome dos de forma diluída, quando o general Jaruzel-
grevistas por Lech Walesa e posteriormente ski, primeiro-ministro desde fevereiro de
copiado em termos similares nas minas de 1981, foi indicado como chefe do Partido no
252 | PETER CALVOCORESSI

mesmo ano. Para reafirmar esse controle, cretário-geral do Partido dos Trabalhadores
ele proclamou a lei marcial. O controle de da Polônia. O país poderia pagar suas dívi-
Walesa sobre o Solidariedade, em contraste, das ou se alimentar, mas não as duas coisas:
fragilizou-se quando as medidas do governo a carne, que estava no centro das insatisfa-
e a prisão de alguns de seus principais mem- ções do verão, poderia ser exportada para
bros geraram opiniões divididas. Quando a se obter moeda estrangeira ou liberada no
lei marcial foi suspensa, depois de um ano, mercado doméstico, onde, como resultado
o principal foco tinha passado do Solidarie- dos aumentos de salário concedidos antes e
dade às mãos mais dóceis da Igreja Católi- depois das greves, ela tinha mais demanda
ca, tradicionalmente acostumada e disposta do que nunca. Por coincidência, uma má
a lidar com o poder leigo. Com facilidade, colheita estava aumentando a importação
estabeleceu-se uma acomodação descon- de cereais e ração animal, e, embora os prin-
fortável, com uma visita do papa em 1983, cipais parceiros comerciais da Polônia no
seguida de uma anistia para (a maioria dos) Ocidente – com os Estados Unidos e a Ale-
prisioneiros políticos, o que enfatizou a se- manha Ocidental na dianteira – estivessem
gurança do exército. Mas a segurança era dispostos a dar novos empréstimos, somen-
equivocada, já que não havia respostas para te em Moscou o novo governo polonês con-
problemas econômicos que se acumulavam seguiria obter créditos à altura de suas difi-
nem para uma saída acelerada de membros culdades. Em 1980, a Polônia era um centro
do Partido Comunista, que era o único ins- de problemas dentro de um bloco, mas não,
trumento reconhecido de governo. O assas- como a Iugoslávia quando Tito enfrentou
sinato, em outubro de 1984, do padre Jerzy Stalin 32 anos antes, uma parte que se pu-
Popieluszko, um entre vários padres que se desse desligar dele. Como os próprios polo-
manifestavam, cujos sermões elogiavam o neses viam, a geografia descartava qualquer
Solidariedade em termos patrióticos, reve- coisa como a secessão iugoslava e, pela mes-
lou as brasas acesas debaixo da superfície. ma razão, a enorme ajuda financeira e polí-
Também revelou a inadequação do controle tica do Ocidente que sustentou Tito a partir
do governo sobre seus próprios órgãos, pois de 1948. O grau em que Kania poderia ter
o padre Popieluszko foi sequestrado e tortu- sucesso onde Gierek não tivera seria decidi-
rado até a morte pela polícia. do em Moscou, de modo que só o próprio
A importância extraordinária do pro- Kania poderia receber a ajuda ou as conces-
testo polonês estava em sua fonte – os traba- sões econômicas necessárias para manter o
lhadores industriais. Na URSS, os protestos tratado com os grevistas – um compromisso
contra o mau governo tinham sido endêmi- que Kania não poderia cumprir se Moscou
cos por mais de 100 anos, desde os tempos não lhe permitisse. A URSS permitiu o acor-
de Alexander Herzen, mas eram protestos do de agosto como sendo o menor de vários
intelectuais, tão ineficazes quanto honorá- males, mas não havia garantias de que esse
veis e admiráveis. Eles ressurgiram na URSS apoio continuaria, e menos ainda da apro-
pós-guerra e em outros lugares, por exem- vação de mais mudanças na Constituição
plo, na Hungria e na Tchecoslováquia. Mas nem na dominação do Partido Comunista.
somente na Polônia – e na Alemanha Orien- Nunca houve dúvidas de que a URSS
tal (1953) – houve, antes do final dos anos fosse capaz de reocupar a Polônia, e os
de 1980, qualquer protesto industrial em exemplos da Tchecoslováquia e do Afega-
escala politicamente importante. Stanislaw nistão mostraram que, ao Kremlin, não fal-
Kania substituiu Edward Gierek como se- tava coragem para usar a força, mas havia
POLÍTICA MUNDIAL | 253

razões fortes para imaginar sua aversão ex- teria de escolher entre tolerar um sistema
trema a fazê-lo. Essas razões não eram de- multipartidário e voltar a impor o governo
rivadas do espírito lutador da Polônia, que militar russo direto. A nomeação do general
se poderia supor que fosse tão esplêndido Jaruzelski como primeiro-ministro era uma
e ineficaz quanto tinha sido em 1939, nem resposta paliativa a um dilema sem espe-
de uma contenção norte-americana, já que ranças de solução. O governo militar polo-
uma ameaça militar por parte dos Estados nês poderia evitar os extremos do comando
Unidos não era crível e sanções econômicas russo explícito e da concorrência político-
levariam tempo para fazer efeito e seriam -partidária, mas não seria capaz de resolver
fáceis de romper. O que fez com que a URSS os principais problemas do país nem os da
recuasse da ideia de invadir a Polônia era URSS na Polônia. A lei marcial, entre 1981
a perspectiva de não encontrar quem go- e 1983, postergou o diálogo inevitável com
vernasse o país – nenhum Kádár, como na o Solidariedade ao mesmo tempo em que
Hungria em 1956, nenhum Hušak, como na causava mais prejuízos à economia, já que
Tchecoslováquia em 1968. Os comunistas irritava os países ocidentais, os quais, mani-
da Polônia, já identificados com a catástrofe festando na Polônia seu descontentamento
econômica e com a repressão interna, não com a URSS, recusavam-se a renovar seus
poderiam fazer frente ao nacionalismo cum- empréstimos ou a ampliar seu comércio.
prindo um papel semelhante, e, assim, uma
invasão russa implicaria um governo russo
direto, como nos tempos czaristas. Mas essa Fim do Império
política tinha sido rejeitada por Stalin em
1945, quando ele jogou água fria na ideia Em 1985, Gorbachev chegou ao poder em
de que os países da Europa Oriental ade- Moscou preparado para abandonar o im-
rissem à URSS como repúblicas soviéticas pério stalinista, que desapareceu em 1989.
(como esperavam os três países bálticos), e Os satélites que o compunham tinham
por Brejnev, ao rejeitar o apelo de Gomulka, sofrido sob o autoritarismo político e eco-
em 1970, para salvar seu regime da queda. nômico comunista russo. Tinham gerado
Sendo assim, Moscou adotou uma política movimentos de protesto, mas nenhum for-
mínima. Descartou o Partido Comunista te o suficiente para desmantelar o Império
Polonês e recorreu ao exército na esperan- Russo, até que Gorbachev avaliou que sua
ça de que Jaruzelski conseguisse, por meio preservação causava mais problemas do
da lei marcial se fosse necessário, manter a que valia a pena. Dessa agitação, surgiram
Polônia como Estado de partido único e no mais países do que existia antes. Em todos
Pacto de Varsóvia. Se isso falhasse, a receita os lugares, com exceção da Romênia, ele
de Stalin para o controle da Europa Oriental desapareceu quase que sem derramamento
estaria – o caso da Polônia, pelo menos – em de sangue. O Estado alemão oriental desa-
ruínas. Em 1944-1945, Stalin ocupou essa pareceu; na Europa Central, as tentativas de
área como prelúdio para estabelecer nela go- manter partidos comunistas em pé, encon-
vernos que fossem subservientes a Moscou e trando líderes menos repugnantes, não fun-
exercessem autoridade adequada, cada um cionaram; o governo comunista foi rejeitado
em sua própria zona. Feito isso, Stalin po- definitivamente e se instalaram governos de
deria retirar todas as suas forças armadas centro-direita; mais a leste, na Bulgária e na
ou parte delas. Mas se a autoridade desses Romênia, o velho regime, com nova cara,
governos caísse, o sistema cairia e a URSS não foi removido tão claramente.
254 | PETER CALVOCORESSI

Na Polônia, o governo de Jaruzelski ten- to de seu poder de compra, a inflação che-


tou impedir o colapso econômico impondo gou a cerca de 500% ao ano e a dívida da Po-
reformas dolorosas, mas, como carecia de lônia para com o Ocidente, de 35,5 bilhões
legitimidade popular, o programa foi rejei- de dólares era a maior entre os satélites. (A
tado em um referendo em 1987. Dois anos da Hungria, de 13,7 bilhões no início de
mais tarde, em abril de 1989, Jaruzelski, 1989, era mais alta per capita. Outras eram:
superando a oposição dos militares e dos Alemanha Oriental, 7,6 bilhões de dólares;
comunistas, legalizou o Solidariedade. Ele Bulgária, 5,4 bilhões; Tchecoslováquia, 4 bi-
concordou em introduzir um sistema multi- lhões; Romênia, 3,9 bilhões, paga quase que
partidário, suspender a censura da imprensa totalmente pela peculiar atitude decidida de
e das transmissões e realizar eleições para o Ceauceşcu. A Iugoslávia devia ao Ocidente
senado e o Seym (a câmara baixa), mas re- 17,6 bilhões de dólares.) Em 1990, Jaruzel-
servando para os comunistas e seus aliados ski se livrou de uma posição sem saída ao
menores dois terços de suas cadeiras. Dois renunciar prematuramente à presidência,
meses mais tarde, foram realizadas eleições que foi então disputada por Lech Walesa,
e os comunistas foram arrasados. Depois com demandas por ação mais rápida, mas
de um segundo turno, o Solidariedade con- não especificada, e, por outro lado, o mais
quistou 99 das 100 cadeiras do senado e o prosaico, mas mais reflexivo Mazowiecki –
máximo que podia no Seym (162 de 460). o personagem que tinha desafiado a ordem
Nas cadeiras reservadas, muitos candida- comunista contra o homem que parecia
tos comunistas oficiais não conseguiram os mais bem preparado para juntar os cacos.
50% dos votos necessários para a eleição no A competição entre eles foi estranhamente
primeiro turno, o que gerou consternação confundida pela introdução de um terceiro
nos círculos de poder e espanto em prati- candidato, Stanislaw Tyminski, que tinha
camente todas as partes. Jaruzelski, tendo passado os 20 anos anteriores no Canadá
renunciado a seu cargo no partido, foi eleito e no Peru transformando-se (segundo ele
para a presidência do país pelas duas câma- próprio) em milionário e que prometia fazer
ras do parlamento, mas os comunistas não o mesmo por inúmeros poloneses.
conseguiram formar um governo aceitável Ele venceu Mazowiecki, que ficou em
ao parlamento, e seus aliados menores pas- terceiro no primeiro turno e, embora arra-
saram para o Solidariedade, que se viu ine- sado por Walesa, teve um quarto dos votos.
xoravelmente forçado, mas não totalmente A terapia de choque para a economia
disposto, a governar. Depois de tortuosas impôs todos os pesos que não fossem in-
negociações, um de seus líderes, Tadeus toleráveis para dar conta das enormes dí-
Mazowiecki, foi escolhido como primeiro- vidas contraídas nas décadas de 1970 e de
-ministro, com a maioria dos comunistas no 1980 com o Clube de Paris de financiadores
Seym votando nele. Sua nomeação foi bem ocidentais e banqueiros privados. Os Esta-
recebida por Gorbachev, mas a economia dos Unidos, seguidos da Grã-Bretanha e
continuava a despencar de forma tão desas- da França, cancelaram dois terços de suas
trosa que a CEE criou um fundo especial de dívidas como contribuição e recompensa
emergência para comprar alimentos para a à democracia. A CEE concluiu um acordo
Polônia e dar subvenções de três anos, da de associação útil, e o FMI forneceu verbas
própria CEE, seus principais Estados-mem- em troca de reduções drásticas em gastos
bros, os Estados Unidos e o Japão. Durante de governo. Na década de 1990, a econo-
essa década, os salários perderam um quin- mia cresceu cerca de 6% ao ano, o desem-
POLÍTICA MUNDIAL | 255

prego caiu, o investimento estrangeiro foi correntes do antigo movimento Solidarieda-


encorajador, a hiperinflação foi reduzida, de – os sindicatos e os adeptos do livre mer-
mas essas melhorias chegaram tarde de- cado – com cerca de 30 grupos menores. A
mais e eram incompletas para salvar Wale- SLD se manteve, mas o PSL perdeu muito de
sa. Ele e o parlamento estavam em conflito seu voto rural. A política da Polônia estava
com relação às soluções para a distribuição se desenvolvendo como um sistema de dois
de poder: Walesa, tendo cumprido o papel blocos, em vez de bipartidário. As questões
central de se livrar do domínio comunista, externas do país estavam tranquilas, mas
não achou compatível adaptar-se à demo- eram complicadas por sua posição no meio
cracia parlamentar. Os partidos prolifera- da Europa. Ao reconhecer as fronteiras que
vam. Dos 67 que tomaram parte nas elei- o país tinha, Walesa e seus sucessores acaba-
ções, 29 obtiveram cadeiras – pluralismo ram com conflitos ao leste e esperavam ga-
na máxima potência. A União Democrática rantir os ganhos do país para com o Ociden-
de Mazowiecki e a (ex-comunista) Aliança te no pós-guerra. As fronteiras com a Rússia
de Esquerda Democrática (SLD) ficaram foram reduzidas em muito, não restavam
em primeiro e segundo lugares. Walesa não alemães na Polônia e, etnicamente, o país ti-
conseguiu se eleger primeiro-ministro nem nha adquirido uma homogeneidade singu-
presidente. Em 1993, a SLD e seus aliados lar. A Polônia entrou para a OCDE em 1996,
do Partido dos Camponeses (PSL) vence- e esperava entrar para a UE pouco depois de
ram as eleições, e o presidente desse, Walde- 2000. Sua participação na UE foi defendida
mar Pawlak, tornou-se primeiro-ministro. com vigor por Kohl, apesar dos temores ale-
Mas a personalidade inflexível de Walesa, mães de um enorme fluxo de trabalhadores
sua insistência em controlar as nomeações poloneses em um mercado de trabalho ale-
para cargos importantes e sua avidez por mão difícil. A leste, foram oferecidos ramos
ser reeleito, apesar de sua popularidade de oliveira à Rússia, mas as preocupações
em queda, geraram instabilidade políti- mais imediatas da Polônia eram a Lituânia,
ca. Pawlak foi forçado a deixar o cargo de- a Bielorrúsia e a Ucrânia.
pois de pouco mais de um ano, substituído Com a primeira, os conflitos históri-
pelo ex-comunista Josef Oleksi. As eleições cos foram superados com o reconhecimen-
presidenciais de 1995 se resumiram a um to mútuo de uma situação comum, mas os
concurso entre Walesa e Alexander Kwas- fracassos econômicos na Bielorrúsia e na
niewski, da SLD – jovem, inteligente, mas Ucrânia restringiram seu comércio com a
ex-comunista que tinha ocupado cargos no Polônia.
último governo comunista do país. Durante Na Hungria, no mesmo mês das eleições
a campanha, Walesa recuperou grande parte polonesas de 1989, o corpo do assassinado
de sua popularidade perdida, mas, apesar do Imre Nagy foi trazido a Budapeste e recebeu
apoio agressivo da hierarquia católica, que um novo sepultamento, que se transformou
se concentrou em batalhas ideológicas pas- em uma grande manifestação popular con-
sadas em lugar de problemas econômicos de tra o regime. O governo de 32 anos de Kádár
então, perdeu por pouco para adversários tinha sido encerrado no ano anterior (ele
melhor organizados e com uma visão mais morreu em 1989). Ele defendeu reformas
voltada para o futuro. Dois anos depois, a econômicas antes do advento de Gorbachev
coalizão SLD/PSL foi derrotada pela mais na URSS, mas, depois disso, seu conceito de
direitista Aliança Eleitoral Solidariedade reforma ficou parecendo capenga e foi atro-
(AWS), que consistia nas duas principais pelado por uma nova onda. Seu sucessor
256 | PETER CALVOCORESSI

na secretaria-geral do partido situacionista, foi de aceitar fronteiras em troca de garan-


Karolyi Grosz, entrou em colisão com seus tias de direitos às minorias. Sob sucessivos
colegas em função do alcance e do ritmo da governos nos anos de 1990, a principal meta
mudança, principalmente com Miklos Ne- da Hungria era a revitalização econômica
meth, o primeiro-ministro, e Imre Poszgay, com ajuda ocidental, tendo em mente seu in-
o especialista econômico do governo, que teresse substancial em relações econômicas
queria acelerar a reforma econômica e in- saudáveis com países ao sul e ao leste – seus
troduzir mudanças políticas radicais, como vizinhos próximos nos Bálcãs e na Ucrânia.
o abandono do monopólio comunista do Seus pontos fortes residiam em uma agricul-
poder político. Foram prometidas eleições tura em acelerado crescimento, no turismo
em sistema multipartidário para o início de e no desenvolvimento – para o qual eram
1990, e o partido tentou salvar parte de seu necessários parceiros e investimentos es-
poder mudando de nome e assumindo uma trangeiros – de indústrias siderúrgicas e quí-
nova cara republicana, o Partido Socialista micas, fábricas e montadoras de automóveis
dos Trabalhadores da Hungria passou a ser e, mais distante, petróleo. Os pontos fracos
o Partido Socialista Húngaro. Surgiram dois incluíam uma população em queda e enve-
principais partidos de oposição: o Fórum lhecendo (meros 10 milhões) e déficits orça-
Democrático Húngaro, um partido de cen- mentários desconfortavelmente altos.
tro-direita semelhante aos democratas cris- A Hungria cumpriu um papel elíptico
tãos da Europa Ocidental, e a Aliança dos no ato seguinte do drama do ano [1989].
Democratas Livres, veículo fundamental de Em maio, os alemães orientais começaram
intelectuais urbanos. Também surgiram 50 a desertar de seu país em uma imigração
outros partidos. Os não comunistas derro- em massa quando a Hungria, em um gesto
taram os comunistas (que foram reduzidos sem referência especial a questões alemãs,
a 10% dos votos) e formaram uma coalizão removeu restrições em suas fronteiras com
que, contudo, só resistiu intacta por alguns a Áustria. Os alemães orientais que esta-
meses e foi substituída por uma coalizão de vam de férias na Hungria se deram conta
centro-direita sob a orientação discreta, mas de que tinham um caminho aberto através
firme, de Josef Antall, que, até sua morte da Áustria à Alemanha Ocidental, onde
em 1993, foi o principal impulsionador da seus direitos de acesso e cidadania eram
transição menos turbulenta do comunismo automáticos. Eles tomaram esse caminho,
à democracia nos ex-satélites soviéticos. Seu em um ritmo inicial de 5 mil por dia. Esse
partido conquistou quase metade das cadei- êxodo aumentou uns meses depois, quando
ras (com um quarto do voto popular), mas a Hungria cancelou um acordo com a Ale-
não conseguiu encontrar curas econômicas manha Oriental e se constituiu praticamen-
milagrosas e era constrangido por uma mi- te em uma área de trânsito para emigração
noria de extrema direita – dois problemas de massas dos descontentes e desesperados.
que contribuíram para sua derrota em 1994 Outras pessoas na Alemanha Oriental reali-
para um partido socialista que ressurgia, zaram enormes demonstrações contra o go-
em grande parte ex-comunista, liderado verno em Leipzig, Berlim e outras cidades,
por Gyula Horn. Com quase um quarto dos e, sob essas pressões – e com o exemplo dos
húngaros morando fora do país – 2 milhões eventos em outras partes da Europa Central
na Romênia, 1 milhão na Eslováquia, na Sér- na televisão da Alemanha Ocidental –, fo-
via e na Ucrânia, quantidades menores na ram criadas novas rotas de fuga para o Oci-
Croácia e na Eslovênia – a política de Horn dente através da Tchecoslováquia, da Polô-
POLÍTICA MUNDIAL | 257

nia à Alemanha Oriental em trens especiais, tuído por Gregor Gysi, sob cuja orientação o
e, finalmente, da Alemanha Oriental à Oci- Partido abriu mão de seu monopólio de po-
dental. No final do ano, cerca de meio mi- der político, mudando de nome e se prepa-
lhão de pessoas tinha saído e ainda estavam rando para eleições multipartidárias. Hans
saindo 2 mil por dia. Modrow, prefeito de Dresden e um comunis-
No começo do ano, a inclinação de Erich ta comparativamente respeitável, tornou-se
Honecker tinha sido de se manter no poder, primeiro-ministro em uma administração
se necessário pela força, e tratar seu povo interina formada para conduzir negociações
como Deng tinha tratado os chineses na Pra- com grupos não comunistas que estavam
ça da Paz Celestial. Mas a posição de Hone- evoluindo para partidos políticos. Esses par-
cker era, em um aspecto crucial, a mais frágil tidos, fazendo campanha sob orientação de
entre os líderes comunistas, já que o Estado seus equivalentes na Alemanha Ocidental,
que governava era uma criação russa, sem fizeram com que os comunistas submergis-
identidade nacional própria. A URSS era a sem, mas não os destruíram, em eleições nas
fonte maior de poder do partido governante quais quase metade dos votos foram dados à
(como era em todo o império dos satélites), direita, menos de um quarto aos socialistas e
mas também, e unicamente no caso alemão, 16% aos comunistas.
a URSS era a fonte da legitimação ou a ra- O Muro de Berlim foi demolido, e a ci-
zão de ser do Estado. Sendo assim, quando dade, unificada, já que homens e mulheres
Gorbachev chegou a Berlim, em outubro das partes oriental e ocidental estavam, mais
de 1989, seu surgimento em meio a uma uma vez, livres para passar de um lado ao
crise não apenas lembrava o mesmo fato outro.
em Pequim, em circunstâncias semelhantes O desmantelamento do Muro de Ber-
seis meses antes, mas também sublinhava lim por seu povo precipitou a reunificação
a diferença essencial de que, enquanto em da Alemanha. As consequências foram
Pequim ele tinha sido um observador aci- controladas por Kohl e por Gorbachev. O
dental, em Berlim ele tinha a chave para os primeiro aproveitou sua oportunidade. De-
futuros eventos. Em termos que eram, ao pois de alguma hesitação inicial e incenti-
mesmo tempo, cuidadosos e inconfundíveis, vado por Washington, ele aprovou a queda
ele alertou Honecker contra os riscos de não do muro, anexou a Alemanha Oriental à
acompanhar o avanço dos tempos e deixou Ocidental e avançou, para colocar nos bol-
claro que o regime da Alemanha Oriental sos de alemães orientais, marcos reais no
não deveria esperar ajuda da URSS para re- lugar dos marcos sem valor, à taxa de um
primir manifestações violentas. Ele pode ter para um. A Alemanha Oriental foi trans-
ido ainda mais longe, frustrando a suposta formada em cinco Länder da República
disposição de Honecker de usar as forças Federal e as quatro potências de ocupação
da Alemanha Oriental à maneira de Deng e renunciaram a seus poderes em Berlim.
estimulando a remoção de Honecker do po- Gorbachev tentou, sem sucesso, garantir a
der. Em uma sequência de eventos inéditos, neutralidade da nova Alemanha ampliada,
Honecker foi substituído como secretário- mas, em uma reunião com Kohl no Cáu-
-geral do Partido da Unidade Socialista por caso, aceitou sua participação na OTAN,
Egon Krenz, um membro mais jovem, mas em troca do direito de manter tropas rus-
não muito menos comprometido, do núcleo sas no que tinha sido a Alemanha Oriental
central da elite comunista. Krenz, que durou até 1995, e em troca de uma contribuição
pouco além do que o final do ano, foi substi- substancial da Alemanha a seus custos e
258 | PETER CALVOCORESSI

um compromisso de que nenhuma unida- deu lugar à decepção e às tensões em ambos


de alemã comprometida com a OTAN nem os lados da divisão anterior. A República
nenhuma unidade da própria organização Federal, desesperada para impedir a migra-
estacionada na Alemanha seria instalada ção em massa da parte oriental – uma fuga
na antiga República Democrática Alemã. do que era não só um Estado policial, mas
Mitterrand e Thatcher, entre muitos outros, também um desastre econômico – tinha
foram pegos de surpresa pela reunificação, aceitado converter os marcos da Alemanha
o primeiro reconheceu rapidamente o fato Oriental a deutschmarks em paridade (havia
e recuperou seu equilíbrio, mas o antiger- exceções), mas essa promessa inflou a ofer-
manismo mais fervoroso de Thatcher só foi ta de dinheiro na parte ocidental em 14% e
mitigado com muito esforço por Bush. Os nada conseguiu impedir o colapso das in-
poloneses, que tinham as maiores razões dustrias alemãs orientais. A situação do leste
para preocupação, pediram nada mais do se revelou ainda pior do que o esperado, e,
que uma reafirmação de suas fronteiras an- em alguns aspectos, foi piorada pelo remé-
teriores à guerra, o que garantiram em um dio radical que lhe foi administrado: o de-
tratado assinado no primeiro aniversário semprego disparou quando as indústrias pa-
da queda do muro. A Prússia Oriental con- raram de trabalhar porque não conseguiam
tinuou sendo parte da URSS, de forma que encontrar compradores para seus produtos
o novo Estado não era a Alemanha anterior de baixa qualidade.
à guerra. Esses eventos correspondiam ao O governo federal foi obrigado a pagar
acordo que não tinha acontecido em 1945 um preço alto em subsídios, elevando as ta-
entre os combatentes de 1941-1945 na Eu- xas de juros e os déficits orçamentários para
ropa Oriental, e por eles foi aplicado. sustentar a parte oriental em níveis de sub-
Mais coisas tinham vindo abaixo além sistência pouco aquém da anarquia. Uma
do muro, também desabara a economia da agência especial, a Treuhandanstalt, criada
Alemanha Oriental. Os salários no leste para vender 14 mil empresas a proprietários
cresceram a níveis ocidentais, completan- privados o mais rápido possível, e a qual-
do a destruição das indústrias dessa região, quer custo em termos de perda de empre-
enquanto os custos da República Federal gos, concluiu que muitas delas tinham um
foram inesperadamente altos (aproxima- excesso de funcionários tão grande e eram
vam-se de 200 bilhões de dólares por ano) tão prejudiciais ao meio ambiente que não
e os alemães orientais que recebiam deuts- se podiam vender. (Seu primeiro chefe foi
chmarks também perderam seus empregos. assassinado e ela foi fechada em 1994.) Mes-
A unificação era uma designação equivoca- mo assim, o governo manteve o controle da
da. A Alemanha Oriental era não só muito situação, e, apesar de seus altos e baixos, a
mais fraca como muito menor do que sua economia dos Länder orientais apresentou
equivalente ocidental. Dezessete milhões de crescimento modesto, ainda que irregular, à
pessoas foram mescladas com 63 milhões, medida que suas infraestruturas se moder-
e, mesmo depois de 10 anos e enormes sub- nizavam; suas economias de comando eram
sídios, a produção em uma Alemanha uni- desemaranhadas, e as partes recuperáveis,
ficada era apenas 10% acima da que existia privatizadas.
na Alemanha Ocidental, e a contribuição da Com a reunificação, a Alemanha recu-
unidade para as exportações era de meros perou sua posição bismarckiana, como o
2%. A unificação enfraqueceu a Alemanha país mais importante da Europa – mas não,
no curto prazo, e, depois da euforia inicial, ao que parece, suas ambições.
POLÍTICA MUNDIAL | 259

Na Tchecoslováquia, a revolução che- quia do que nas “terras históricas” da Boê-


gou por último, mas, ao final, foi rápida. A mia e da Morávia. Dubček reapareceu e foi
oposição tinha se cristalizado em torno da recompensado por seus esforços e sofrimen-
Carta 77, que era uma declaração séria de tos passados com o cargo de presidente do
direitos básicos e um protesto específico parlamento. Como caso único nos antigos
contra a perseguição a um grupo de rock. satélites, os comunistas tchecos e eslovacos
Contava com 1.250 assinaturas e foi segui- decidiram não mudar o nome de seus par-
da pelo Fórum Cívico, de base mais ampla, tidos. Por acordo com Moscou, os 70 mil
que buscava discussões com o governo so- soldados soviéticos que estavam na Tche-
bre a libertação de prisioneiros políticos coslováquia seriam retirados até 1991 (Gor-
e a retirada dos cargos de determinados bachev já tinha concordado em retirar seus
comunistas acusados de comportamento 50 mil soldados da Hungria até aquela data).
desumano em 1968 e em repressões poste- Na Bulgária, Todor Zhivkov tinha subi-
riores. O movimento conseguiu comandar do degraus (primeiro-secretário em 1954,
manifestações de 1 a 2 mil pessoas. O Par- primeiro-ministro em 1962, presidente em
tido Comunista, ciente de sua impopulari- 1971) e tinha governado mais tempo até do
dade, da apatia em suas próprias fileiras e que Kádár na Hungria. A Bulgária teve su-
dos ventos da mudança que sopravam da cesso econômico limitado nos anos de 1970
Polônia e da URSS, preferiu, por pouco, a com o turismo e as exportações, principal-
discussão à força. Descartou Gustav Hušak mente dentro do Comecon, de maquinário
como secretário-geral (cargo que ele ocupa- agrícola e componentes para computadores,
va, junto com a presidência, desde 1968) e mas a década seguinte foi mais sombria.
nomeou um grupo de comunistas mais con- Zhivkov tentou dar mais força à sua posição
ciliadores, liderados por Ladislas Adamec, demitindo seu vice Chudomir Alexandrov e
para discutir mudanças com representantes embarcou no ano seguinte em uma campa-
do Fórum Cívico, liderados por Vaclav Ha- nha mal calculada contra as minorias turca
vel. Mas os comunistas estavam oferecen- e pomak (de fala búlgara) no país, que che-
do muito pouco, e, quando ficou claro que gavam a um milhão de pessoas. Em 1950, a
Gorbachev, em uma visita a Praga em 1987, Bulgária tinha pedido à Turquia que conce-
preferia Havel a Adamec, o último desistiu. desse vistos a 250 mil turcos na Bulgária, e,
Marian Calfa, membro do governo de Ada- por um acordo naquele ano, 154 mil saíram
mec, montou uma coalizão na qual os co- dessa para a Turquia sem seus parentes, que,
munistas e seus aliados dóceis tinham ape- contudo, tiveram permissão para emigrar
nas 11 dos 18 cargos. O rígido Milos Jakes, por um segundo acordo em 1968. Naquele
que tinha sucedido Hušak na presidência, momento, o governo Búlgaro declarou que
renunciou em favor do mais flexível Karel não havia mais turcos na Bulgária e que
Urbanek enquanto uma maré de manifes- todos os muçulmanos restantes eram des-
tações populares acelerou a dissolução do cendentes de búlgaros que tinham sido con-
velho regime, sem derramar sangue, mas de vertidos ao Islã à força. Em 1985, exigiu-se
forma resoluta. No final de 1989, Havel, que que esses muçulmanos, para fins de censo,
tinha cumprido mais sentenças de prisão do adotassem nomes búlgaros. Esse decreto
que qualquer herói nacional triunfante des- revelou um descontentamento enorme e
de Mahatma Gandhi, tornou-se presidente. até mesmo pânico, e, diante da obstinação
Sua posição foi confirmada por eleições em da Bulgária, a Turquia abriu sua fronteira a
1990, embora fosse menos sólida na Eslová- todos os candidatos a imigrantes, sem pe-
260 | PETER CALVOCORESSI

dir vistos. O resultado foi um êxodo. Em- ras. No entanto, em 1994, a esquerda, cuja
bora a Bulgária se recusasse a permitir que melhor organização compensava memórias
os homens em idade militar saíssem, pelo de ideologias rejeitadas, recuperou terreno
menos 300 mil pessoas o fizeram, então a perdido o suficiente para conquistar o con-
Turquia reinstituiu os vistos. A Bulgária ex- trole geral do parlamento. O novo primeiro-
pulsou cerca de 2 mil muçulmanos para a -ministro Zhan Zidenov era típico da nova
Romênia e a Iugoslávia, de onde a maioria estirpe de líderes de esquerda que estava em
foi para a Turquia. Depois da revolução de ascensão em grande parte do antigo império
1989, os muçulmanos remanescentes ti- dos satélites, jovens com mentes mais aber-
veram o direito de escolher seus próprios tas, melhor formação e dispostos a aplicar
nomes, e muitos refugiados voltaram para metas de esquerda dentro de um sistema
reclamar terras expropriadas. O golpe final democrático e de uma economia capitalista.
ao regime de Zhivkov não foi dado pelos Mas eles tinham que encontrar respos-
muçulmanos, e sim por uma conferência tas para problemas econômicos prementes
de ambientalistas em Sofia, que se transfor- em um país que não podia mais vender ta-
mou em exigências de glasnost. Elas foram baco à Rússia e tinha indústrias moribun-
enfrentadas pela polícia com brutalidade de das, uma moeda sem valor e um povo pas-
um tipo que havia funcionado no passado, sando fome. A violência e a contraviolência
mas que agora levou à derrubada de Zhi- por parte da polícia forçaram a saída de
vkov por seus colegas alvorotados. Assim Zidenov, e as eleições realizadas em 1997,
como Honecker, Zhivkov foi preso e acusa- por fim, removeram os sobreviventes comu-
do de crimes contra o Estado. No governo nistas. Fracassos e escândalos tornavam o
de seu sucessor, Petar Mladenov, o Partido país ingovernável, as manifestações estavam
Comunista Búlgaro mudou de nome para próximas da guerra civil e o impasse em
Socialista, renunciou a seu monopólio po- função do Kosovo arruinava o comércio no
lítico e começou negociações com outros Danúbio ou através da Sérvia, até o Adriáti-
– o Partido Popular Agrário e a União das co. O ex-rei Simeão II da Bulgária, que tinha
Forças Democráticas, uma junção de grupos perdido uma eleição para a presidência, tor-
anticomunistas – para formar um governo nou-se primeiro-ministro, em muito porque
de transição. Com essas conversações não não tinha nenhuma responsabilidade por
tendo dado resultados, os comunistas conti- esse estado de coisas.
nuaram no governo e tramaram para vencer Na Romênia, a queda da ditadura co-
o que pareceram ser eleições razoavelmente munista veio acompanhada de um banho
bem conduzidas, mas o clamor popular que de sangue repugnante, mas o poder dos
se seguiu forçou Mladenov a renunciar à comunistas não foi extinto imediatamente.
presidência em nome de Zhelu Zhelev, o lí- Nicolae Ceauşescu usou o Partido Comu-
der ex-comunista da UFD. O poder político nista Romeno, que nunca fora grande, como
oscilou entre os comunistas com novo nome base para converter o governo do partido
e seus adversários. Uma divisão no partido em uma tirania familiar de intensa perver-
comunista-socialista e um salto na infla- sidade, sustentada na delação, em um exér-
ção custaram ao primeiro-ministro Andrei cito privado, uma política sem escrúpulos e
Lukanov sua maioria e depois seu cargo. uma intensa megalomania. Como Stalin, a
Seu sucessor, Dimitru Popov, venceu uma quem ele admirava, Ceauşescu estava obce-
eleição apertada com a ajuda de um partido cado em fazer o que achava que devia, não
turco e impôs medidas econômicas seve- importando os custos humanos. Sua meta
POLÍTICA MUNDIAL | 261

era modernizar e engrandecer a Romênia assumissem o poder. Com o nome de Frente


pela força, não tanto pela doutrina comu- de Salvação Nacional, eles declararam um
nista e mais por sua própria autoridade e governo de transição que venceu eleições
personalidade; mas, como muitos ditado- com supervisão internacional e levou seu lí-
res, não sabia distinguir a Romênia de si der Ion Iliescu à presidência. Ele foi reeleito
mesmo, e embarcou em empreendimentos em 1992, mas derrotado em 1996 por Emil
espetaculares que lembravam os dos mais Constantinescu, que formou um governo
loucos imperadores romanos. Em seu país e não comunista.
no exterior, ele conquistou alguma aprova- Durante vários governos pós-Ceauşescu,
ção durante um tempo, através de políticas o padrão de vida caiu desastrosamente, e
e gestos antirrussos, incluindo sua recusa a manifestações violentas ameaçavam a ordem
cooperar com o Pacto de Varsóvia ou a per- civil. No final de 1999, Constantinescu de-
mitir tropas estrangeiras em solo romeno. mitiu o primeiro-ministro Radu Vasike, que
Foi recompensado com elogios pródigos se recusou a reconhecer sua demissão. Os
por parte, entre outros, de George Bush, e governos pós-CeauŞescu eram fugazes e frá-
recebeu o título de cavaleiro britânico, ten- geis, presos entre as mínimas condições para
do sido recebido em países tão distintos receber ajuda do FMI e a recusa de cidadãos/
quanto China, Índia e Israel. Em seu país, consumidores do país a aceitá-las. A disso-
contudo, ele destroçou a economia e orde- lução da URSS teve impacto na Romênia em
nou a destruição de 7 mil aldeias, cujos ha- função das declarações de independência
bitantes foram obrigados a migrar em busca por parte da República Socialista Soviética
de sustento e foram empregados na constru- da Moldávia, com sua população parcial-
ção de ostentosos palácios na capital, com mente romena, e da Ucrânia, que tinha re-
salários de fome. Protestos graves foram cebido uma parte da Romênia em 1939. As
registrados pela primeira vez em Brasov em tentativas de reconstruir as indústrias de
1987; e em Timisoara, na Transilvânia, no petróleo, gás e carvão com vistas a torná-
final de 1989, o exército se recusou a atirar -las lucrativas até 1996 atraíram quantidades
em manifestantes que protestavam contra decepcionantes de capital, mas em 2000 a
a perseguição de um religioso protestante Romênia recebeu a promessa de um proce-
que não tinha medo de expressar suas opi- dimento acelerado para sua entrada na UE.
niões, Laszlo Tokes. Essa fagulha acendeu o O ano de 1989 testemunhou revoluções
fogo que Ceauşescu, voltando de uma visita segundo a grande tradição – a afirmação
a Teerã, não conseguiu apagar. Sua polícia de identidades separadas, direitos civis e
de segurança ou exército privado foi enfren- valores humanos –, mas elas só eram sus-
tado pelo exército regular, bem como por tentáveis por meio de melhorias econô-
grandes multidões desarmadas, e milhares micas. Eram revoluções contra a tirania, a
foram mortos antes que Ceauşescu e sua corrupção e a incompetência. Como os par-
mulher fugissem. Eles foram capturados e tidos comunistas tinham sido responsáveis
executados depois de um julgamento com por esses males, essas revoluções também
as mínimas formalidades. Paradoxalmente, se davam contra esses partidos e contra o
Ceauşescu, o líder comunista com menos próprio comunismo. Eles foram depostos
visão de satélite, pagou o preço mais horrí- de suas posições privilegiadas e removidos
vel na queda do Império Soviético. Sua re- do poder na maioria dos lugares por (pro-
moção permitiu que outros comunistas, que vavelmente) muito tempo, mas não foram
vinham armando uma revolução palaciana, eliminados e se pode esperar que encon-
262 | PETER CALVOCORESSI

trem algum lugar no espectro da política ne foi a situação de Gorbachev, o presidente


multipartidária, em sua maioria sob um da URSS que tinha imposto os regimes que
novo nome. Os principais causadores da estavam sendo descartados.
derrubada do Império Soviético na Europa Em lugar de insultado, ele foi aclamado
foram o desastre econômico, Gorbachev, o por multidões que gritavam seu nome com
protesto intelectual e popular persistente entusiasmo agradecido e pareciam consi-
por décadas e a falta de legitimidade plau- derar periféricos os Estados Unidos e ou-
sível dos governantes. A principal conse- tras democracias ocidentais. Ainda assim,
quência foi a articulação nos dois sentidos Gorbachev, por mais crucial que tenha sido
da palavra: a expressão de opiniões triun- seu papel na transformação das questões na
fando sobre a supressão, e o ressurgimento Europa, não foi o único impulsionador das
do padrão meio enterrado de Estados-Na- revoluções no Centro e no Leste Europeus.
ção soberanos. Gorbachev viu que o siste- Elas não foram tão súbitas quanto muitos
ma stalinista era uma dispendiosa pedra em observadores perplexos imaginaram, mas
torno do pescoço de Moscou e havia per- foram parte de uma sequência (à qual de-
dido a argumentação estratégica que tinha vem muito) de levantes abortados que data-
sido sua justificação fundamental depois vam da primeira década pós-guerra: 1953,
de 1945. Quarenta anos depois, um ataque 1956, 1968, 1980. Todas essas comoções,
norte-americano contra a URSS, o qual, de incluindo a formação e as primeiras con-
qualquer forma, era muito menos provável quistas do Solidariedade na Polônia, vieram
do que o próprio Stalin pode ter imaginado, antes da ascensão de Gorbachev e foram
ignoraria os satélites ao passar muitos qui- feitas por pessoas – algumas delas não co-
lômetros acima de suas cabeças em vez de muns, mas muitas das pessoas ditas comuns
cruzar seu território. O desencantamento – que chamaram atenção para sua indigna-
de Gorbachev com o sistema de Stalin não ção e seus valores e acabaram triunfando
foi ocultado dos sátrapas regionais cuja ta- nas ruas, na tradição das barricadas. O So-
refa era operá-lo. Eles sabiam que não eram lidariedade, por exemplo, desencadeou um
mais desejados. Tinham se tornado pro- fluxo de pressões populares que não pode
cônsules em um império defunto e não po- ser contido. A destruição da superestrutura
deriam buscar apoio em seus concidadãos imperial pelos fogos da revolução mostrou
porque tinham abusado muito de seu poder a alternativa perene: uma Mitteleuropa ar-
e, apesar de destruirem liberdades básicas, ticulada em Estados separados, concebidos
tinham permitido que economias inteiras se como Estados-Nação, mas, na realidade,
esfarelassem. Embora, nos anos de 1950, o conglomerados de maior ou menor coerên-
crescimento econômico tenha chegado aos cia. Aos olhos dos novos homens e mulhe-
10% em partes mais favorecidas da zona, na res, esses Estados eram reais e legítimos. Os
década de 1980 ele era zero ou perto disso antigos governantes não tinham legitimida-
praticamente em todas as partes. Daí as di- de – na Alemanha Oriental, nem mesmo o
ficuldades, a indignação, as manifestações, próprio Estado. Sendo assim, a revolução
a repressão (muitas vezes extremamente teve fortes ingredientes nacionalistas. Para
brutal) e, também, a revolução. As revolu- essas pessoas, as décadas posteriores à Se-
ções foram rápidas e totais, os comunistas gunda Guerra foram, não uma Guerra Fria
de segundo nível que foram alçados a posi- entre superpotências, mas uma guerra de
ções de liderança desapareceram quase tão espera entre o imperialismo soviético e qua-
rapidamente quanto apareceram. Mais sole- se uma dúzia de nacionalismos separados.
POLÍTICA MUNDIAL | 263

As revoluções não resolveram proble- estava adequadamente capitalizada nem era


mas econômicos. Pelos padrões da Europa administrada de forma eficiente, os retornos
Ocidental, o estado material desses países sobre o investimento eram baixos e a dívida
era digno de pena. Mesmo assim, a maio- externa, alta. Em todos os três países, muito
ria das pessoas na Europa Central e Orien- esforço trazia pouca compensação.
tal estava em melhores condições materiais Alimentos e bens de consumo passa-
do que a maioria na África ou Ásia. Suas ram a ser mais procurados e mais escassos.
economias sofriam de distorções, e não de A poluição industrial era a pior do mundo.
esterilidade. Possuíam recursos minerais e O desempenho da Europa Oriental não era
agrícolas e vivenciaram crescimento de pro- melhor.
dução, chegando, em alguns lugares, a 10% A Romênia iniciou uma tentativa am-
por ano – embora fosse um crescimento a biciosa, até mesmo cruel, de modernizar
partir de uma base baixa do pós-guerra e, sua economia com base em carvão, pe-
cada vez mais, nas direções equivocadas. tróleo e outros minerais, suas indústrias
No grande setor agrícola da Polônia, qua- química, hidroelétrica e metalúrgica, e sua
tro quintos do qual em mãos privadas, a força de trabalho com salários baixos e jor-
produção cresceu nas décadas posteriores à nadas elevadas de trabalho. A megaloma-
guerra, mas o investimento foi inadequado, nia de Ceauşescu transformou o fracasso
e a força de trabalho agrícola não conseguia em catástrofe. Em 2000, a presidência foi
dar uma contribuição ao PIB proporcional a disputada por um comunista ao velho esti-
seus números nem alimentar a população. O lo e um nacionalista antissemita; o primei-
investimento na indústria polonesa aumen- ro, Ion Iliescu, venceu por 2 a 1. Na Bulgá-
tou a produção, mas não a produtividade; ria, uma expansão industrial semelhante,
as exportações decaíram e a dívida externa ainda que menos cruel, aumentou a pro-
acumulou. Sob domínio comunista, a Tche- dução, da qual grande parte era invendível
coslováquia, com uma longa história de boa por sua baixa qualidade. Em suma, esfor-
educação, boa administração e habilidades ços consideráveis para alcançar a Europa
técnicas, com a mais alta renda per capita da Ocidental deixaram a Europa Central e a
Europa Central, com um negócio de expor- Oriental ainda mais atrás, empobrecidas,
tações florescente e recursos naturais inve- poluídas e beirando o desespero.
jáveis, passou das coisas que fazia melhor A recuperação foi decepcionantemente
(principalmente indústrias médias, como a lenta e complicada. Os primeiros frutos da
fabricação de sapatos) a atender ao apetite libertação eram claros o suficiente: liber-
do bloco por produtos da indústria pesada e dade da dominação estrangeira hostil, do
armamentos. O país perdeu antigas capaci- Estado policial, da subjugação econômica,
dades e se concentrou em produtos que, no dos medos sempre perturbadores, mesmo
final da Guerra Fria, não tinham demanda quando não imediatamente agudos. Eles
nele próprio nem no exterior. A Hungria, o conquistaram o autogoverno, a participação
menor desse trio centro-europeu, possuía na OTAN e a promessa de adesão à UE. Mas
terras agrícolas ricas e bem irrigadas e im- muita coisa estava incerta, incluindo como
portantes recursos minerais, embora não se reconectar ao passado e até onde assumir
fossem – com exceção de sua bauxita – de os diferentes padrões políticos e econômi-
primeira qualidade. A modernização pós- cos da Europa Ocidental que eram o fator
-guerra impulsionou a produção e as ex- de destaque para cortar seus vínculos com
portações industriais, mas a economia não a Rússia.
264 | PETER CALVOCORESSI

No passado, a Polônia constituiu (com dias de glória em aliança com a Lituânia e a


a Lituânia) um dos maiores impérios pu- Ucrânia. Depois da Segunda Guerra, o país
ramente europeus dos tempos modernos. foi englobado pelo comunismo russo, mas
Também tinha sido a única a ser destruída escapou do colapso do Império Soviético e
duas vezes – nos séculos XVIII e XX – por se uniu à nova União Europeia, comprome-
seus vizinhos. O nacionalismo polonês foi – tendo-se com uma Europa democrática em
mais uma vez, singularmente – incentivado expansão.
pelo papado empolgante de João XXIII e Ao contrário da Polônia, a Tchecoslo-
pelo papel da Igreja Católica nos primeiros váquia não tinha história ancestral como
passos efetivos para livrar a Polônia da do- Estado. A união entre tchecos e eslovacos
minação russa. Portanto, em alguma medi- era comparativamente recente e foi impos-
da, a distinção convencional entre questões ta, inicialmente pelos vitoriosos da Primei-
externas e nacionais persistia de forma mais ra Guerra Mundial e, depois da Segunda,
clara do que em outros países europeus que pela URSS. Os tchecos foram sido parte da
estavam experimentando a nova divisão porção austríaca do Império Habsburgo,
tripartite entre questões externas, nacio- e Praga fora, por pouco tempo, sua capi-
nais e europeias. O nacionalismo europeu tal. Os eslovacos tinham sido cidadãos de
era mais profundo – mas, por isso mesmo, segunda classe, incluindo camponeses, e
menos frenético – do que o dos partidos governados pela Hungria. A união não so-
nacionalistas marginais em outros lugares, breviveu à libertação. A heroica estrela de
que eram resquícios do fascismo. A Polônia Havel murchou, e ele foi sucedido como
era um país grande, mas não estava entre primeiro-ministro por Vaclav Klaus, que se
os maiores da Europa. Não se sabia ao cer- deparou com exigências de autonomia por
to qual era o seu potencial e o quanto sua parte de seu colega eslovaco Victor Mecias,
lembrança de tempos terrivelmente ruins um comunista convertido ao nacionalismo.
no passado poderia ser deixada para os li- Mecias pedia mais do que Klaus estava dis-
vros de história, e o país era incapaz de fazer posto a conceder, e o Estado tchecoslovaco
frente à agressividade econômica de seus vi- se dividiu em dois. Havel se tornou presi-
zinhos. Em 2005, os irmãos Lech e Jaroslav dente da nova República Tcheca. Klaus fez
Kaczynski conquistaram uma vitória esma- um movimento brusco em direção à econo-
gadora para a centro-direita, que reanimou mia de livre mercado ocidental que levou a
medos de um nacionalismo polonês voltado taxas de crescimento econômico próximas
ao entorno russo-germânico, que tinha des- a zero, cortes de salários, colapso comercial
truído a Polônia no passado. Seu governo, e financeiro, evaporação das reservas de
no entanto (como presidente e primeiro- moeda estrangeira e sua renúncia em 1998.
-ministro) durou pouco mais de um ano e A Eslováquia, uma ruína pobre de cinco mi-
foi seguido de uma vitória igualmente en- lhões de habitantes, escorregou, em termos
fática da centro-esquerda. A Polônia se tor- econômicos, da Europa Central à Oriental,
nou, mais uma vez, fundamental na Europa. embora fizesse parte do Grupo de Visegrad
Depois da Primeira Guerra Mundial, o país com Polônia, Hungria e República Tcheca
surgira da destruição para se transformar (mais uma expressão geográfica convenien-
imediatamente no campo de batalha entre te do que uma associação ativa). Mecias se
o comunismo russo que esperava conquis- tornou cada vez mais autocrático, foi re-
tar Varsóvia (e Berlim) e os ultranaciona- movido do cargo duas vezes e se recuperou
listas que queriam recuperar algo de seus com uma surpreendente vitória na primeira
POLÍTICA MUNDIAL | 265

eleição geral da Eslováquia (1994) quando o Terceiro Estado e os outros dois, mas tam-
venceu 20 outros partidos com promessas bém entre aquele e elementos de fora – os
generosas sobre a economia e ataques a mi- sans-culottes e os babouvistas* – que foram
noria húngara no país, seus vizinhos tchecos facilmente anulados. (Na precipitada Revo-
e capitalismo ocidental. Em 1998, seus ad- lução Inglesa no século XVII, os vencedores
versários uniram forças para derrotá-lo. decapitaram o rei, ou seja, a Constituição,
A Hungria, o menor entre o trio centro- sem saber o que fazer depois.)
-europeu, foi a que sofreu de forma mais No século XIX, Macaulay identificou a
contínua no século XX. Depois de ser par- imprensa como o Quarto Estado, mas, no sé-
ceira da Áustria em igualdade de condi- culo XX, a imprensa não conseguiu estar à al-
ções no Império Habsburgo, o país decaiu tura desse papel ou o tornou trivial, e o avan-
ao optar pelo lado errado nas duas guerras ço da democracia na ala esquerda da política
mundiais, tentar, sem sucesso, escapar do europeia ainda estava em busca de uma voz
Império Soviético em 1956 e se tornar in- eficaz, atrativa e responsável, particularmen-
dependente com metade dos húngaros mo- te, talvez, na Europa Central, na medida em
rando fora de suas fronteiras. Economica- que ela surgiu de um regime que não era libe-
mente, o país lutou pelo restante do século; ral nem democrático. Aos olhos do Ocidente,
politicamente, suas posturas geraram mais a revolução parecia o alegre casamento do li-
impasses do que progresso. Mas as inimiza- beralismo (ou seja, uma forma de democracia
des históricas com a Romênia e a Sérvia fo- restringida pelo Estado de Direito), direitos
ram resolvidas, e a economia começou a se humanos individuais e participação intermi-
estabilizar e expandir no final do século. A tente em um processo parlamentar (eleições),
Hungria tinha terras bem irrigadas e signi- uma perspectiva insuficientemente democrá-
ficativos recursos materiais, embora estes – tica em um conflito entre o Terceiro Estado
com exceção de sua bauxita, não fossem da
(agora chamado de elite) e o povo. O comu-
melhor qualidade e tivessem sido capitaliza-
nismo, que pode ter cumprido um papel, foi
dos inadequadamente e mal administrados.
excluído das considerações a partir das cir-
Nas eleições de 2006, o primeiro-ministro
cunstâncias de 1989, deixando incompleto
Ferenc Gyurescy obteve a rara recompensa
o espectro político no Leste que, apesar de
da reeleição.
desorientar os novos-velhos países da região,
Para todos os povos da Europa Central
também enganou seus colegas ocidentais.
e Oriental, os eventos de 1989 constituíram
A eliminação da dominação russa so-
uma revolução. Os fatos básicos estavam
bre metade da Europa era um desafio para a
associados a incertezas desconcertantes.
União Europeia. De uma associação de seis
O interlúdio Kaczynski na Polônia sugeria
que o nacionalismo anterior à guerra estava Estados, ela passou em pouco tempo a uma
vivo, mas frágil; o desaparecimento de Havel aglomeração de 27 e, pela primeira vez, uma
sugeriu que a república liberal ocidental de entidade à altura de seu nome. Essa transfor-
Thomas Masazyk não era a opção preferida mação agravou problemas políticos e consti-
dos tchecos. Sem ser a primeira vez na his- tucionais. Não obstante, novos membros fo-
tória da Europa, a revolução colocou a ques- ram admitidos sem muito postergar até que
tão de o que se seguiria à derrota de um an- só sobrassem os casos difíceis, que incluíam
cien régime. Na revolução que irrompeu na
França em 1789, a questão foi debatida entre * N. de R.T.: Igualitaristas radicais liderados por Babeuf
os Três Estados, mais realisticamente entre Gracchus.
266 | PETER CALVOCORESSI

Chipre, ao qual se opôs a Turquia, mas ad- que entre os dois países) na Segunda Guerra
mitido, e a própria Turquia. Os ex-satélites Mundial. Os líderes britânicos, com exce-
soviéticos foram classificados e postos em ções desprezíveis, não visavam a criar uma
uma fila, uma prática que lhes dava garan- oposição anglo-russa à UE, e sim a se quali-
tia de aceitação, mas não, em princípio, uma ficar como elos entre os Estados Unidos e os
data precisa. A Rússia não era candidata e europeus desconfiados das políticas norte-
não pediu para ser. Embora tivesse cumpri- -americanas, principalmente as políticas
do um papel importantíssimo nas questões comerciais e a subserviência à Israel. Mas
da Europa (nas divisões da Polônia e nas esse ato de equilíbrio sofreu um grave revés
guerras napoleônicas), as mentes europeias quando a influência britânica não impediu
permaneciam se questionando se a Rússia o ataque ao Iraque, que pouco tinha a ver
era “realmente” parte da Europa. Mais im- com a Europa e recebeu forte condenação
portante, os Estados Unidos não a queriam dela. Quando a guerra acalmou, os Estados
na UE. Nem seus antigos satélites, e, se em Unidos deram passos para melhorar suas
algum momento houve alguma chance para relações com os novos líderes de Alemanha
relações mais formais entre a Rússia e a Eu- e França, Angela Merkel e Nicolas Sarkozy.
ropa, ela evaporou rapidamente nos anos de Em Lisboa, em 2007, todos os 27 mem-
1990, de forma que, depois dos complicados bros da UE aprovaram uma Lei de Reforma
tempos de Gorbachev e Yeltsin, Putin con- Europeia que dava ao Conselho de Minis-
solidou o novo Estado russo em um modo tros da entidade mais aparência de executi-
decididamente nacionalista e soberano. vo de um Estado nacional ao restringir os
Se a Rússia era diferente e estava fora poderes de veto de membros separados e
da Europa, a Grã-Bretanha era, por esco- criar o cargo de presidente do conselho, algo
lha própria, diferente, mas ainda assim, na como o Président du Conseil francês. O Tra-
Europa. Ela alimentava uma cada vez me- tado de Lisboa foi pensado para formalizar
nor – mas não totalmente irreal – crença em acordos como os que poderiam ser elabora-
uma relação especial com os Estados Uni- dos sobre questões administrativas e consti-
dos, uma sequela residual da relação entre tucionais e para dar mais atenção ao lugar e
Churchill e Roosevelt (entre eles mais do à atuação da UE no mundo.
Iugoslávia e Albânia
7
A Iugoslávia federada rocrático de uma economia de comando no
estilo russo, e foi sendo desfeito na década
Tito viveu 32 anos depois de seu conflito de 1950, principalmente porque era irre-
com Stalin em 1948. Após a morte de Stalin, mediavelmente confuso. Em 1950 e, mais
Khruschev fez duas visitas conciliadoras à uma vez, em 1961, o controle industrial foi
Iugoslávia. A primeira, em 1955, equivaleu transferido a conselhos de trabalhadores
a uma confissão de erro e a um pedido de com amplos poderes de gestão, incluindo o
desculpas pela postura russa em 1948. A direito de alocar fundos para investimen-
segunda, em junho de 1956, seguiu-se ao tos e decidir o que fazer com os lucros. No
20o Congresso do Partido Comunista da início dos anos de 1960, foram oferecidas
União Soviética, no qual, no mesmo ano, novas linhas de crédito por meio de bancos
Khruschev tinha indicado que as relações locais (em vez do banco central), e o siste-
com os satélites tinham que ser situadas em ma de tabelamento centralizado de preços
novas bases. Também se seguiu à dissolu- foi relaxado. Uma nova Constituição em
ção, em abril, do Comintern, o orgão que 1963 introduziu uma descentralização real
declarou a excomunhão de Tito. Mas as re- mas limitada, sem, contudo, retirar o poder
lações russo-iugoslavas permaneceram de maior do Partido ou do próprio Tito. Es-
desconfiança, ainda que menos amargas. sas meias medidas não conseguiram dar à
Internamente, Tito, tendo conquistado o indústria o estímulo esperado, a economia
direito de enfrentar seus problemas à sua permaneceu estagnada, a inflação cresceu
própria maneira, fez isso de forma apenas e, com ela, a dependência da Iugoslávia em
experimental, embora a introdução da ges- relação à ajuda do FMI e dos Estados Uni-
tão das indústrias por parte dos trabalha- dos. Houve uma breve reação na política
dores, em 1950, e o abandono da coletivi- econômica, mas se retomaram – também
zação no campo, em 1953, atestassem uma por pouco tempo – as linhas liberalizan-
disposição de moderar a rigidez doutriná- te e descentralizadora. Sendo assim, com
ria. A Constituição de 1945 nacionalizou impulsos e recuos, o setor econômico foi
todas as empresas industriais, comerciais fragmentado em dezenas de milhares de
e financeiras, limitou a propriedade indivi- unidades autônomas. Se os estímulos psi-
dual da terra a 60 acres e organizou a terra cológicos do relaxamento de controles e a
agrícola excedente em fazendas coletivas. autogestão superaram ou não as perdas em
O primeiro plano quinquenal foi um proje- eficiência e produtividade é um debate que
to imensamente detalhado, volumoso e bu- não chegou a uma conclusão final.
268 | PETER CALVOCORESSI

ÁUSTRIA
HUNGRIA

Eslovênia

I
U
G Croácia Voivodina ROMÊNIA
O
S
L
Á
V
I Belgrado
A

Bósnia
Herzegovina Sérvia

IA
GÁR
Montenegro

BUL
Kosovo

Mar
IT Adriático
ÁL Macedônia
AL

IA

NI
A

0 50 100 km GRÉCIA

0 25 50 milhas

Figura 7.1 A Iugoslávia e suas repúblicas, 1991.

Bihac Bihac
Banja Brcko Banja Brcko
Luca Luca
BÓSNIA SÉRVIA
BÓSNIA SÉRVIA
Srebrenica Srebrenica

Zepa Zepa
Sarajevo Sarajevo
Pale Gorazde Pale
Mostar Gorazde
Mostar

Mar MONTENEGRO Mar MONTENEGRO


Adriático Adriático
0 50 100 km 0 50 100 km

0 25 50 milhas 0 25 50 milhas
Maioria sérvia Maioria croata Áreas administradas por: ONU UE

Maioria muçulmana Mista Áreas dominadas por: Sérvios Muçulmanos


bósnios e croatas

Figura 7.2 O Plano Vance-Owen (abril de Figura 7.3 A proposta do grupo de contato
1993). (julho de 1994).
POLÍTICA MUNDIAL | 269

Bihac
Banja Brcko
Luca

BÓSNIA SÉRVIA

Srebrenica

Zepa
Sarajevo

Gorazde
Pale

Mostar

MONTENEGRO
Mar
Adriático
0 50 100 km

0 25 50 milhas

República Bósnio-sérvia
República Muçulmano-croata

Figura 7.4 O plano de paz de Dayton (novembro de 1995).

Essas mudanças industriais criaram montar uma liderança etnicamente diversi-


uma nova base para o poder político ao ficada no Partido Comunista e no exército.
abrir carreiras a profissionais da indústria, A integridade da Iugoslávia não estava se-
para além dos degraus tradicionais do Parti- riamente ameaçada enquanto essa geração
do Comunista e das forças armadas. permanecesse no poder. Nos anos de 1970,
Além da economia, a segunda preocu- contudo, uma nova geração tinha crescido,
pação principal de Tito era a coesão do Es- mais nacionalista e separatista, em parte
tado e a criação de uma identidade iugosla- porque a magia da época da guerra estava
va acima e além dos nacionalismos sérvio, desaparecendo e, em parte, porque a con-
croata e outros dentro da federação. Tito, corrência por mercadorias e investimentos
metade croata e metade esloveno, estava dos tempos de paz ultrapassou em muito as
determinado a preservar o Estado iugosla- feridas esquecidas. Na Croácia, a campanha
vo que surgiu da destruição dos Impérios por mais autonomia chegou ao ponto de ge-
Habsburgo e Otomano na Primeira Guerra rar demandas por independência soberana
Mundial. Ele foi ajudado pela camaradagem (mas dentro de uma confederação iugos-
dos partisans da Segunda Guerra Mundial, lava) e por um assento separado na ONU,
durante a qual tinha tomado o cuidado de como tinha sido dado à Ucrânia e à Bielorú-
270 | PETER CALVOCORESSI

sia. Aproximava-se um período conturbado, não pretendia que qualquer dos lados ven-
com Tito próximo dos 80 anos. cesse. Na atmosfera liberalizante dos anos
Em 1971, Tito decidiu combater seus de 1950, a primeira necessidade era conter
jovens colegas dissidentes. Deixou claro que os liberalizadores. Djilas foi perseguido e
ele era o juiz que decidia quando bastava, e preso. Rankovil permaneceu no cargo – e até
que, em sua opinião, o separatismo croata foi promovido – até que sua campanha anti-
estava ameaçando de forma imperdoável liberal passou dos limites e se concluiu que
a integridade e o bem-estar do Estado iu- ele estava espionando o próprio Tito quando
goslavo. Quando resolveu intervir, ele saiu foi demitido. No final dessa fase, Tito conce-
vitorioso. O velho estadista croata Vladimir beu uma nova Constituição que criava um
Bakaril colocou-se do seu lado. A seguir, Conselho Executivo ou uma Comissão Pre-
Tito repetiu seu comportamento na Sérvia, sidencial consistindo em dois representantes
onde os políticos mais jovens não eram me- de cada república federal e um de cada dis-
nos nacionalistas, e na Eslovênia e na Mace- trito autônomo, com Tito como presidente
dônia (mas, nesses casos, o dissenso não era federal permanente. (Depois de sua morte,
puramente nacionalista). a presidência seria rotativa.) Esse arranjo
O separatismo foi uma forma extrema visava a sinalizar um acordo, mas deixou as
assumida pelo problema permanente do realidades intocadas e o conflito abafado.
descentralismo, que colocava em questão O resultado das correntes separatistas
os poderes do governo central e os orgãos e descentralizadoras dos anos de 1950 e de
centrais do Partido Comunista. Nos anos de 1960 foi bloquear a secessão, mas, ao mes-
1950 e de 1960, questionaram-se o centralis- mo tempo, permitir que uma federação com
mo e o comando comunista permanente. O um centro forte evoluísse para algo próximo
primeiro foi atacado com base na eficiência de uma confederação menos rígida de enti-
e no patriotismo local ofendido. As críticas dades soberanas, segundo o modelo suíço, e
eram abertas e vívidas, levantando a ques- que o Estado permanecesse comunista. Em
tão de como a autoridade política poderia 1958, o Partido Comunista foi rebatizado
ser dispersada sem prejudicar o controle como Liga dos Comunistas. Essa mudança
comunista. Os descentralizadores debatiam foi considerada um indicativo de que o Par-
na posição de tecnocratas, gestores e polí- tido poderia não ser sempre o melhor ins-
ticos de base. Suas discussões evitavam as trumento para comandar os órgãos locais
consequências do controle comunista ou, de governo ou as plantas industriais, mas
como no caso de Djilas, aceitavam a conclu- o Partido, ou a Liga, permaneceu único, de
são de que o Partido Comunista não tinha forma que a unidade da Iugoslávia se man-
direito automático ao poder permanente. teve ligada ao governo comunista, em vez de
Eles se tornaram uma dupla fonte contra se desenvolver um nacionalismo iugoslavo.
os centralizadores que – principalmente o Os nacionalismos mais antigos sobrevive-
chefe de segurança e de polícia Alexander ram e floresceram, e, quando o federalismo
Rankovil – não apenas preferiam a autorida- iugoslavo se desintegrou, líderes das várias
de central à dispersa por si só, mas também repúblicas se transformaram, de comunistas
consideravam a descentralização como uma em nacionalistas extremos fazendo reviver
ameaça ao monopólio de poder comunista. os ódios étnicos e religiosos que tinham ser-
Tito deixou que o debate florescesse até pa- vido para se livrar de dominadores estran-
recer se tornar perigosamente desagregador. geiros (turcos, austríacos) na memória viva,
Ele não se opunha ao debate limitado, mas e agora se voltavam uns contra os outros.
POLÍTICA MUNDIAL | 271

Quando Tito morreu em 1980, a Iugos- reformas em gestão e financiamento foram


lávia era singular – o único país comunista aplicadas com lentidão e sem transformar
neutro no mundo –, mas também estava se o direito de gestionar em gestão compe-
fragmentando e em condições de indigên- tente. Os que forneciam ajuda a partir do
cia. Sua coesão como federação comunista Ocidente perderam interesse quando per-
não era mais consistente do que havia sido deram dinheiro e quando a ajuda à Iugos-
como reino trino e uno. A tarefa do últi- lávia deixou de render politicamente com
mo extremo da dinastia Karageorgević foi perda de força da Guerra Fria. A dívida ex-
compor sérvios, croatas e eslovenos em um terna aumentou de forma que o pagamen-
Estado e uma nação iugoslavos, mas essa to dos juros se transformou em um fardo
tarefa só se realizou, pela metade, antes de para a economia iugoslava maior do que
a Segunda Guerra Mundial reabrir velhas os benefícios dos empréstimos. Em 1989, o
divisões, principalmente entre sérvios e primeiro-ministro federal Ante Markovil,
croatas, cujo terrível líder durante a guerra, um croata, visando a fortalecer a economia
Ante Pavelic, tentou criar um Estado croa- para conter o nacionalismo sérvio, croata e
ta separado, comprando apoio da Itália ao esloveno, instituiu uma moeda conversível,
ceder terras croatas marginais à Itália fas- bancos comerciais, uma bolsa de valores e
cista (que tinha os olhos no outro lado do outros mecanismos de uma economia de
Adriático para sua versão do Lebensraum – mercado capitalista. Ele conquistou pouco
spazio vitale – na Albânia e na Dalmácia). apoio internacional. A inflação de 2.000%
Por outro lado, a resistência comunista aos foi reduzida em questão de meses, e as ex-
italianos e aos alemães produziu uma aura portações e reservas aumentaram, mas ao
de irmandade iugoslava, que, depois da preço de um desemprego e bancarrotas ca-
guerra, Tito buscou potencializar ao dar tastróficos, além de muita escassez. As ten-
às minorias étnicas – montenegrinos, ma- sões endêmicas entre as várias repúblicas
cedônios, albaneses (no Kosovo), húnga- foram acentuadas.
ros (15% em Voivodina) – status igual ou
quase igual ao dos três elementos consti-
tuintes do Estado iugoslavo. Mas Tito não Dissolução: sérvios, croatas e
poderia dar a esses grupos distintos qual- eslovenos
quer coisa que se aproximasse à igualda-
de econômica. Suas diferenças nacionais Em um determinado nível – o nível popu-
e econômicas – dentro da cristandade e, lar – a Iugoslávia era um país em que, nas
para os muçulmanos, além dela – não eram cidades e nos povoados, um em cada três
compensadas por qualquer fruto econô- casamentos unia um casal de comunidades
mico da federação. A ajuda do Ocidente étnicas e religiosas diferentes. Em outro – o
que se seguiu ao conflito com Moscou foi político – era um país cujas várias repúbli-
usada principalmente para desenvolver cas eram governadas por políticos que se
indústrias. O consequente êxodo rural foi, promoviam enfatizando suas raízes comu-
em princípio, um alívio bem-vindo para a nais e suas lealdades desagregadoras – ou
superpopulação rural, temperado de forma seja, construíam seu poder atacando outras
insuficiente pela emigração, mas, no lon- comunidades.
go prazo, fragilizou a agricultura sem que A proximidade pessoal e o comunalis-
um benefício proporcional fosse gerado mo político estavam em conflito, e quem
pela indústria, que cambaleou quando as liderava ou queria liderar considerava o
272 | PETER CALVOCORESSI

segundo como um caminho melhor até o sérvias sobre partes da Bósnia; obstruiu o
poder. Talvez eles fossem homens sem con- avanço constante do croata Stipe Mesić à
sistência, mas também eram homens baru- presidência federal e, no distrito croata de
lhentos, e, desde a morte de Tito ou antes, Krajina, fez vista grossa a atividades sérvias
a Iugoslávia dava mostras de tensões que que lembravam as desordens provocadoras
indicavam mudanças constitucionais em di- por Konrad Henlein e os alemães sudetos
reção a uma federação menos compacta ou, contra o Estado Tcheco em 1938. Ele defen-
em caso de não haver acordos, à desagre- dia a manutenção da Federação Iugoslava
gação ou guerra. A mais poderosa das seis dentro de suas fronteiras de então, e assim
repúblicas era a Sérvia, onde estava o maior conquistou a boa vontade da União Euro-
grupo e com o maior número fora de sua peia e dos Estados Unidos, que queriam
própria república: 2 milhões de sérvios na cortar os problemas pela raiz, de forma que
Croácia e na Bósnia, além de 10 milhões na Milosevic era o homem certo para a tarefa
Sérvia. Os líderes sérvios também tinham – por exemplo, instalando Mesić na presi-
apoio da Igreja Ortodoxa na Sérvia e em ou- dência sem problemas e pacificando, em vez
tros lugares – particularmente na Grécia e de inflamar, o conflito étnico no Kosovo.
em Chipre. A religião ainda fazia parte do Enquanto, para quem via de fora da Iugos-
nacionalismo nos Bálcãs e a intersecção de lávia, a federação representava continuida-
paranoias seculares e religiosas deu a esses de e estabilidade; para eslovenos e croatas,
conflitos uma desumanidade inescrupulo- parecia uma ameaçadora Grande Sérvia.
sa que foi banida da maioria do restante da Em junho de 1991, a Eslovênia e a Croácia
Europa. Mais importante do que tudo para se declararam independentes da Iugoslávia,
Belgrado era seu controle do exército fede- repudiando não apenas a federação existen-
ral iugoslavo, de 135 mil membros, cujos te, mas também qualquer modificação dela.
oficiais eram predominantemente sérvios. O governo iugoslavo enviou forças fede-
A disposição dos sérvios era corpori- rais a ambos os países, que não conseguiram
ficada por Slobodan Milosevic, que ascen- impedir a secessão eslovena, mas lutaram
deu pela Liga dos Comunistas Sérvios para uma guerra contra a Croácia com bastante
se tornar presidente da República Sérvia. sucesso. A Eslovênia, compacta, homogê-
Ele era adepto do nacionalismo sérvio e nea, periférica e com apenas um milhão de
um habilidoso político, com mínima leal- habitantes, possuía – como cada uma das
dade à ideia da Iugoslávia. Ele extinguiu, repúblicas iugoslavas – sua própria força
em 1989, a condição autônoma das duas de defesa distinta do exército federal, cujas
regiões do Kosovo e Voivodina – essa com unidades no país estavam isoladas entre si e
nove décimos de população albanesa, e isoladas de seus suprimentos.
aquela, predominantemente, ainda que não Elas foram contidas e repelidas. Milose-
tanto, húngara. O problema do Kosovo da- vic, querendo concentrar o exército federal
tava da Idade Média, quando a região con- contra a Croácia, ficou contente de ver a Es-
quistou um lugar sagrado na mitologia do lovênia partir, e ela se tornou independente
nacionalismo sérvio (o 600o aniversário da pela primeira vez na sua história. No entan-
fatídica batalha de Kosovo, que extinguiu a to, havia uma diferença crucial entre Eslo-
independência sérvia, foi em 1989). Milo- vênia e Croácia. Na primeira, havia poucos
sevic incentivou os sérvios na Croácia que sérvios; mas, na segunda, que cobria um
estavam fazendo campanha por uma região quinto da Iugoslávia, com uma população
sérvia autônoma; reviveu reivindicações de 4,5 milhões, eles eram 600 mil, princi-
POLÍTICA MUNDIAL | 273

palmente em seu extremo oriental (Eslavô- ministros do exterior da União Europeia foi
nia Oriental) e na Krajina, entre a costa do sucedido por um negociador único (lorde
Adriático e a Bósnia. Os sérvios conquista- Carrington, lorde Owen, Carl Bildt, suces-
ram o controle de um terço da Croácia. Na sivamente). A ONU indicou Cyrus Vance
Eslavônia Oriental, a devastação pelo exér- e depois Thorwald Stoltenberg para traba-
cito federal de Vukovar fez com que os cro- lhar com Owen até esse esforço ser substi-
atas conquistassem simpatia internacional e tuído, em 1994, por um Grupo de Contato
os ajudou a obter reconhecimento mundial de cinco membros (Estados Unidos, Rússia,
para sua independência – que haviam per- Grã-Bretanha, Alemanha e França). Todas
dido em 1102. (Na Krajina, os croatas foram essas pessoas eminentes se esforçaram para
derrotados por sérvios locais. A região tinha garantir acordos de cessar-fogo e para con-
sido originalmente uma zona-tampão, ou ceber uma alocação territorial que fosse de
Muro de Hadrian, entre croatas e sérvios, aceitação geral dentro de suas fronteiras
criada no século XVI pelos Habsburgos existentes, mas com uma nova Constituição.
contra os turcos, sendo que os sérvios eram Os acordos de cessar-fogo foram aceitos
refugiados do Império Otomano. Em tem- e rompidos com cinismo repugnante, en-
pos mais recentes, a Krajina foi ampliada ao quanto as propostas territoriais eram todas
sul para incluir Knin e arredores, habitados descartadas por uma ou outra facção, com
por sérvios que eram mais ativamente anti- uma leviandade que fazia pouca justiça ao
croatas do que os da própria Krajina tinham trabalho árduo e principalmente sensato de
se acostumado a ser.) seus autores.
A intervenção internacional nas guerras O segundo ramo da intervenção inter-
da Iugoslávia teve dois motivos. O primei- nacional era o socorro às vítimas de guerra e
ro foi interromper os combates por medo a proteção dos que prestavam esses serviços.
de que se espalhassem para o conjunto da Era feito por vários órgãos, incluindo agên-
Iugoslávia e além dela. Esses medos eram cias da ONU, e por uma Força de Proteção
bem fundamentados, a independência da da Organização (UNPROFOR) recrutada
Eslovênia e da Croácia tinha probabilidades entre mais de 20 países e despachada para
de gerar demandas semelhantes em outras ajudar a proteger os socorristas, mas não se
repúblicas, porque Sérvia e Macedônia con- envolver nas hostilidades. A UNPROFOR
tinham minorias étnicas e a Bósnia consis- não era uma força de paz. Uma força de
tia apenas em minorias, e porque os confli- paz da ONU foi enviada à Macedônia, mas
tos na Iugoslávia atraíam atenção nervosa a UNPROFOR foi estabelecida antes na
e suscetibilidades inflamadas na Albânia, Croácia e depois na Bósnia, para proteger
na Grécia e (em menor grau) na Bulgária. as agências de ajuda, para socorrer vítimas
Em 1991, na fase inicial da guerra, ou fase em várias áreas onde a paz não havia sido
servo-croata, a ONU impôs um embargo à garantida e para ficar longe dos combates.
entrega de armas a qualquer parte da Iugos- Ela foi enviada com propósitos huma-
lávia. A CEE – posteriormente em conjunto nitários, mas rompia com a prática normal
com a ONU – tentou, por vias diplomáti- da ONU de só enviar missões de paz ou
cas, negociar um acordo entre as partes em humanitárias a áreas onde haja segurança
conflito, o que poderia implicar a reformu- de que as hostilidades foram suspensas. A
lação da Federação Iugoslava existente – UNPROFOR era, em parte, uma aposta para
uma solução abandonada antes do final de conseguir essa suspensão e em parte uma rea-
1991 – ou aceitar sua dissolução. Um trio de ção às atrocidades inesperadamente pavoro-
274 | PETER CALVOCORESSI

sas que acompanhavam os combates. A Força ações mais decididas. A CEE pressionou
foi colocada em uma situação de guerra sem pela aceitação de Mesić como presidente
ter autoridade nem capacidade de guerrear iugoslavo, por uma suspensão de três meses
e na esperança de que pudesse cumprir suas nas declarações de independência croata
tarefas apesar das guerras que se travavam e eslovena, pela retirada de todas as forças
em suas zonas de operação. Foi uma opera- armadas para os quartéis e por uma confe-
ção de um tipo nunca realizado pelo Conse- rência sobre o futuro formato da Iugoslávia.
lho de Segurança da ONU. Em muitas áreas Nenhuma dessas coisas foi obtida e, embo-
e de várias formas, a UNPROFOR teve êxito, ra se tenha negociado uma série de acordos
mas foi sempre um peão esperando para ser de cessar-fogo entre sérvios e croatas, eles
tomado por um ou outro lado beligerante. eram desconsiderados rotineiramente. A
Seus destinos estavam inevitavelmente vin- luta na Croácia só foi interrompida porque
culados às tentativas diplomáticas paralelas os sérvios tinham conquistado a maior par-
de excluir a guerra da situação. te do que queriam e a Bósnia demandava
O esforço diplomático da CEE para atenção de ambos, sérvios e croatas.
pacificar a Iugoslávia, baseado no medo de A CEE – especialmente a Alemanha –
espalhar a desordem e aguçado pelo horror tomou a frente para exigir reconhecimento
diante da brutalidade impressionante usa- imediato e incondicional da independência
da pelos combatentes, tinha falhas desde o croata e eslovena. Esse foi um ato político.
princípio. Os membros da CEE discerniam Pela lei, um povo ou uma nação não tem
uma oportunidade de garantir – ou, pelo direito de se separar de um Estado sobe-
menos, testar – seu poder coletivo, mas rano invocando o princípio da autodeter-
nem a Comunidade como tal, nem seus minação, embora outros Estados possam,
vários membros tinham refletido muito usando critérios diplomáticos, optar por
sobre uma crise que vinha se desenhando reconhecer uma reivindicação à condição
por uma década ou mais. A CEE, estava mi- de Estado. A Eslovênia cumpria os crité-
nimamente preparada. Não tinha qualquer rios amplos da prática internacional, mas o
autoridade fora do território de seus mem- mesmo não se aplicava à Croácia. Um ár-
bros, nem forças armadas ou comunhão bitro consultado pela CEE, o ex-ministro
de propósito, nem tampouco mecanismos francês Robert Badinter, informou que o
estabelecidos para concertar políticas ex- estado de coisas na Croácia não recomen-
ternas comunitárias. Pelo contrário, esta- dava reconhecimento imediato.
va apenas dando os primeiros passos para O país não oferecia garantias a suas
a criação desses mecanismos e cometeu o grandes maiorias sérvias, nem lhe foi exi-
erro de supor que a única forma de fazê-lo gido que oferecesse. Aos croatas não foi
era agir como se já tivesse o que esperava lembrado que, caso a Croácia se separasse
obter. A CEE não era uma orgão regional da Iugoslávia, os sérvios do país poderiam,
para a Europa, nos termos do artigo 52 da com igual força, reivindicar o direito de se
Carta da ONU. As tentativas de investi-la separar da Croácia, e não havia um governo
de autoridade da OSCE (um organismo croata com controle sobre todo o território
ainda mais embrionário, que também care- reivindicado pelo novo Estado. A Croácia
cia de forças armadas) foram um subterfú- foi reconhecida como Estado independen-
gio não convincente, mais ainda levando-se te na esteira da independência eslovena e
em conta que a Iugoslávia era membro da na esperança de impedir o espalhamento
OSCE, com um poder de veto sobre suas da guerra para a Bósnia e além dela. A vi-
POLÍTICA MUNDIAL | 275

são oposta, expressa pelo secretário-geral da uma república independente na Bósnia em


ONU, Boutros Boutros-Ghali, era de que o 1992, representavam, para Milosevic, che-
reconhecimento nada faria para conter as fes sérvios rivais que ele havia mantido sob
hostilidades entre sérvios e croatas e evo- controle ou superado.
caria uma declaração de independência por Nesse período, Milosevic consolidou
parte da Bósnia-Herzegovina e sua invasão sua posição e se tornou a figura-chave na
por sérvios e croatas em aliança temporá- busca de paz através da negociação. Os es-
ria. A Bósnia-Herzegovina cumpria ainda trangeiros tinham de escolher entre buscar
menos os critérios para a independência do um acordo aceitável a ele ou travar uma
que a Croácia. guerra por meios econômicos ou, talvez,
A posição de Milosevic na Sérvia pas- mais. Como, nessa época, ele tinha invadido
sou a sofrer alguma ameaça em 1992. Mi- a Bósnia com rápido sucesso (ver a seguir),
lan Panic, que havia retornado dos Estados o único acordo disponível deveria incluir
Unidos depois de ganhar muito dinheiro alguma aceitação das conquistas sérvias na
lá e tinha sido indicado como primeiro- Bósnia e na Croácia, ambas internacional-
-ministro da República Sérvia, estava de- mente reconhecidas agora como Estados
sencantado com Milosevic. O mesmo sentia soberanos. A Eslovênia escapou de mais
Dimitri Cosic, um destacado nacionalista agitação e começou a se aproximar lenta-
sérvio indicado para a presidência Iugos- mente da condição de membro da União
lávia, que estava vaga. Em uma conferên- Europeia. A opção ou o risco de guerra
cia em Londres, Cosic chegou a um acordo militar contra a Sérvia levantava uma pers-
com o presidente croata Franjo Tudjman, pectiva de operações longas, onerosas, san-
a Sérvia reconheceria a independência da grentas, talvez ineficazes, com propósitos
Croácia e seu direito a Krajina em troca de mal definidos, consequências mais amplas
direitos garantidos internacionalmente para imprevisíveis e, mais significativo, desa-
os sérvios na Croácia. Esse acordo foi um cordo entre estrategistas sobre que tipo de
revés para Milosevic – mesmo que apenas operações e que magnitude de forças se-
por ter sido negociado por outros. Ele de- riam adequados. Um dos principais pontos
veria optar por endossá-lo ou não, ao custo fortes de Milosevic era sua consciência da
de entrar em conflito com os nacionalistas pouca probabilidade de se travar esse tipo
sérvios mais radicais na Sérvia e os sérvios de guerra por causa da Bósnia.
bósnios liderados por Radovan Karadzic e Ele pouco se incomodava com o embar-
seu colega militar, o general Ratko Mladić, go de armas imposto pela ONU em 1991 a
que declarou que anexaria a Krajina à Bós- todas as partes da Iugoslávia, já que a proi-
nia. Milosevic usou uma disputa sobre o bição atingia outras partes mais do que aos
controle do exército para garantir a demis- bem armados sérvios, e as sanções econô-
são de Cosic, derrotou Panic de forma clara micas, impostas à Sérvia em 1992 pela CEE
em uma eleição presidencial e afirmou sua e pela ONU, ainda tinham que fazer efeito.
autoridade em eleições parlamentares – as De meados de 1992 até 1995, seu problema
quais, contudo, Vojislav Seselj, fazendo central era o quanto da Bósnia anexar dian-
campanha pela expulsão de todos os não te, por um lado, de uma crescente hostilida-
eslavos do conjunto da Bósnia e do Kosovo, de e sanções internacionais e, por outro, dos
teve 20% dos votos e, assim, desafiou Milo- êxitos dos sérvios da Bósnia, cujos cálculos
sevic como porta-voz dos mais puros nacio- e ambições poderiam não estar de acordo
nalistas. Seselj e Karadzic, que declararam com os seus. Os sérvios na Sérvia estavam
276 | PETER CALVOCORESSI

dispostos a sofrer pela Grande Sérvia, mas A Igreja bósnia era católica, não ortodoxa,
não necessariamente por uma Grande Sér- mas era suspeita de heresia em Roma onde
via tendo Radovan Karadzic como herói. ninguém sabia muito sobre ela. A fragili-
Os arquitetos da Grande Sérvia estavam dade do vínculo eclesiástico, o crescimento
em Belgrado, e não na Bósnia, e eram Milo- das cidades sob domínio turco e a simples
sevic e a hierarquia ortodoxa Sérvia, e não conveniência de adotar a fé dos novos go-
Karadzic e Mladić. vernantes contribuíram para a incomum
conversão por atacado dos bósnios ao Islã.
Ao redor de 1600, metade deles era muçul-
Divisão: a Bósnia-Herzegovina mana. Camponeses tentando ganhar a vida
com uma interferência mínima dos supe-
A Bósnia-Herzegovina era diferente da riores, mercadores ansiosos para manter
Sérvia e da Croácia, não apenas como re- e ampliar seu comércio no novo ambiente
pública iugoslava separada, mas como en- de administração turca, leis turcas e favores
tidade política que, dentro de fronteiras turcos, não se sentiam constrangidos em
variáveis, foi formalmente aceita como tal descartar uma fé e adotar outra – ou o con-
desde o século XVI e, na prática, várias trário, quando fosse o caso.
gerações antes. Muitos de seus habitantes Do princípio ao fim da dominação tur-
tinham afinidades com sérvios e croatas; ca, os destinos da Bósnia foram condiciona-
outros eram diferentes por serem muçul- dos pelas frequentes guerras entre os Impé-
manos. Os sérvios da Bósnia representa- rios Otomano e Habsburgo, e suas fronteiras
vam menos de um terço da população; os eram estabelecidas por tratados que marca-
croatas, cerca de um sexto; os muçulma- vam aquelas guerras no século XVIII.
nos, quase metade. Todos esses povos eram À medida que o século seguinte avan-
eslavos de raça e língua como resultado das çou, os turcos perderam o controle e a Bós-
invasões eslavas de vários tipos no início nia ficou disponível a quem conseguisse se
da Idade Média, que sobrepuseram povos apoderar dela. Com Sérvia e Montenegro se
ibéricos, celtas e avares e outros que apenas tornando Estados independentes e clientes
deixaram vestígios. Entre esses invasores, da Rússia, o Império Austro-Húngaro pas-
os sérvios e os croatas eram os mais des- sou a se preocupar mais com os russos do
tacados e penetraram na Bósnia, estabele- que com os turcos, e a Bósnia ficou mais
cendo seus próprios principados nos três vulnerável a vizinhos expansionistas. Após a
lados da região. Chegaram aos Bálcãs como derrota dos turcos pelos russos em 1877, as
pagãos, mas se tornaram cristãos e, embora potências europeias se reuniram em Berlim
muitas vezes fossem aliados contra o po- para redesenhar o mapa dos Bálcãs, decre-
der dominante, mas decadente, do Império tando que a Bósnia deveria passar à admi-
Bizantino, dividiam-se na hora de dar sua nistração austro-húngara (o que foi conver-
fidelidade a autoridades eclesiásticas bizan- tido em anexação em 1908, mas a perdeu
tinas e romanas. Relativamente inacessível, para Viena no final da Primeira Guerra
a Bósnia se tornou uma colcha de retalhos Mundial, que começou na capital da Bósnia,
formada por domínios locais, grandes e pe- Sarajevo). Entre aquela guerra e a seguinte,
quenos, que eram relativamente indepen- houve amplo acordo sobre a ideia de um
dentes e fora da dominação até a conquista Estado iugoslavo, mas não sobre a divisão
de toda a região pelos turcos otomanos de- de poderes entre seu governo central e suas
pois da batalha de Adrianópolis em 1463. províncias.
POLÍTICA MUNDIAL | 277

A Bósnia, junto com a Croácia, opu- Sérvia (normalmente em torno de 45 mil


nha-se à centralização, que significava, na efetivos) e ao crescimento das unidades
prática, poder para os sérvios. O problema irregulares sérvias, impor seu embargo ao
ainda estava sem solução quando iniciou a fornecimento de armas a todas as partes
Segunda Guerra Mundial e foi reprimido da Iugoslávia, incluindo a Bósnia. A Sérvia
apenas parcialmente por Tito, que, como tratou esses eventos da primavera de 1992
comunista, era centralizador, mas como como um sinal para hostilidades abertas
esloveno-croata, não. Na Iugoslávia de Tito, por parte de forças regulares e irregulares.
a Bósnia se tornou uma das regiões mais Eles conquistaram o controle de metade da
deprimidas da federação. Uma consequên- Bósnia em poucos dias, usando as armas
cia foi o aumento da tensão local, outra foi metamilitares de selvageria e massacre e,
a partida de muitos sérvios bósnios para a assim, mudando a natureza da intervenção
Sérvia, uma fuga que tornou os muçulma- da ONU na Iugoslávia que, estava limitada
nos muito numerosos entre as três princi- a proteger as agências de ajuda e as vítimas
pais comunidades da Bósnia. Tito incenti- civis que necessitavam de alimentos e me-
vou os muçulmanos a se considerarem uma dicação, envolveu-se nos destinos de um
comunidade distinta, e assim eles foram milhão de refugiados reunidos e cercados
reconhecidos em 1971. Mas eles estavam em enclaves letais e clamando para escapar
divididos entre muçulmanos comunistas da Bósnia, em vez de ser socorridos nela.
e não comunistas. Ilia Izetbegovic, futuro Nesse momento, Sérvia e Montenegro, jun-
presidente da Bósnia-Herzegovina, era um tas, proclamaram uma nova Iugoslávia que
destacado líder anticomunista. consistia nelas próprias – mais um novo
Em 1990, o governo da Bósnia-Her- Estado.
zegovina (a Herzegovina era sua pequena Havia agora vários Estados no que tinha
parte sudoeste) era uma coalizão formada sido a Iugoslávia, e dois deles estavam em
depois das eleições daquele ano, que in- guerra com outro: a Bósnia-Herzegovina e a
cluía muçulmanos, sérvios e croatas, mas nova e reduzida Federação Iugoslava. O que
os sérvios abandonaram a coalizão – seu havia sido uma guerra civil na Iugoslávia se
primeiro passo rumo a um Estado sérvio convertera em uma guerra entre dois Esta-
separado na maior porcentagem da Sér- dos soberanos, membros da ONU, e o Con-
via que conseguissem conquistar. Quan- selho de Segurança poderia ter apontado a
do iniciou a luta na Croácia, o presidente Sérvia como agressora. Se a guerra fosse,
Izetbegovic se viu diante de uma escolha em qualquer sentido, uma guerra civil, seria
entre permanecer em uma nova Iugoslávia uma guerra civil na Bósnia, e não na Iugos-
privada da Eslovênia e Croácia ou reivin- lávia. Não haveria qualquer razão para apli-
dicar independência como haviam feito car um embargo à Bósnia se ele não existisse
essas duas regiões. Ele escolheu a segun- anteriormente, mas uma inclinação unilate-
da opção, temendo os desígnios sérvios e ral do embargo implicava um envolvimen-
croatas para o território de sua república to nas hostilidades que, em 1992, nenhum
e querendo estar em posição de apelar à governo parecia cogitar, em parte porque
ajuda externa para sua proteção. A Bósnia isso poderia colocar em risco as tarefas da
recebeu reconhecimento internacional e se UNPROFOR e dar fim à diplomacia media-
tornou membro da ONU no início de 1992, dora da CEE/ONU e em parte porque os go-
mas não antes de a organização, reagindo à vernos Bush e Clinton se colocaram contra o
duplicação das forças regulares sérvias na tipo de intervenção da ONU que poderia ter
278 | PETER CALVOCORESSI

acarretado um envolvimento norte-ameri- mulava o escárnio. Por três anos, os sérvios


cano em terra. O resultado foi um equívoco da Bósnia conheceram o êxito, mas seus
em nível internacional e em fornecimento excessos brutais levaram o Conselho de Se-
oculto de armas a todas as partes. gurança a designar, em 1993, áreas seguras
Entre 1992 e 1994, os negociadores da (como analogia aos portos seguros pro-
CEE/ONU e o Grupo de Contato apresen- clamados no Iraque em 1991, mas em cir-
taram uma série de planos para a divisão da cunstâncias muito diferentes) e a autorizar
Bósnia em segmentos sérvios, muçulmanos a UNPROFOR a usar a força para impedir
e croatas, continuando dentro de uma en- que elas fossem bombardeadas. Mas, como
tidade bosniana. Esses planos foram acei- os membros do Conselho de Segurança não
tos em um ou outro momento por todas davam à UNPROFOR, já sobrecarregada, os
as principais partes na Bósnia, mas nunca meios para desempenhar essas novas fun-
simultaneamente, e com mais intenções ções, as áreas seguras – todas elas habitadas
facciosas do que fervor pacífico. Elas acei- por muçulmanos e ameaçadas por sérvios
tavam o princípio da divisão, mas não as – só eram seguras enquanto os sérvios não
divisões propostas. Os muçulmanos as con- as atacassem. Havia seis delas, quatro no
sideravam como convites ofensivamente in- leste da Bósnia, próximas à fronteira com a
justos para cometer suicídio, enquanto para Sérvia e estrategicamente importantes para
os sérvios, elas eram um reconhecimento as comunicações entre aquela e essa, além
inadequado de suas conquistas e direitos de Sarajevo e Bihac, no noroeste da Bósnia,
étnicos. A essas alturas, as sanções, intensi- cruzando uma importante ferrovia e adja-
ficadas em 1993, estavam causando muitos cente ao principal bolsão de sérvios na Cro-
problemas na Sérvia, onde o desemprego ácia. (A cidade de Bihac e seu entorno eram
atingia metade da força de trabalho e a aju- enclaves bósnios vulneráveis ao ataque das
da e os investimentos internacionais foram três partes – sérvios de Krajina ao oeste,
cortados da economia. (Tentativas gregas, sérvios da Bósnia ao leste e muçulmanos
cipriotas e russas de burlar as sanções tive- dissidentes ao norte, liderados por um em-
ram efeitos apenas marginais). Milosevic preendedor excêntrico, em conflito com os
foi forçado a considerar a possibilidade de muçulmanos em Sarajevo e com ideias de
conter os sérvios bósnios aplicando suas estabelecer um Estado próprio.)
próprias sanções sobre suprimentos para A ONU não era a única adversária dos
a Bósnia – principalmente petróleo – e fe- sérvios. Também havia os croatas, com
chando as fronteiras entre as duas regiões, quem a Sérvia havia travado guerra em
mas divisões dentro da CEE e a indecisão 1991. Na Bósnia, a Croácia tinha opções.
dos Estados Unidos aliviaram seus medos e Poderia conspirar com a Sérvia para dividi-
o encorajaram a aplicar seus planos de criar -la ou estabelecer uma aliança com os mu-
uma Grande Sérvia por meio de conquistas. çulmanos contra os sérvios locais. A semi-
Karadzic, presume-se que com a aprovação -independente Croácia, criada pela Itália e
de Milosevic, rejeitou um plano do Grupo pela Alemanha durante a Segunda Guerra
de Contato que lhe dava controle de 49% da Mundial, incluía a maior parte da Bósnia,
Bósnia, e exigiu uma parte maior da região e, em 1993, os governos de Croácia e Bós-
leste, acesso ao Adriático no oeste e meta- nia concordaram em formar uma federação
de de Sarajevo. A intervenção internacional muçulmano-croata com vínculos confede-
mais o inflamou do que puniu, pois, na es- rativos pouco rígidos com a Sérvia. Os croa-
cala representada pela UNPROFOR, esti- tas esperavam pelo momento mais propício.
POLÍTICA MUNDIAL | 279

Tudjman sem ostentação reorganizava e re- Uma fonte de discordâncias entre Esta-
equipava seu exército antes de lançar ofen- dos Unidos e membros da CEE era seus ob-
sivas que recuperaram a Krajina com eficá- jetivos. O objetivo geral, quase que exclusivo
cia inesperada e expulsaram cerca de 200 da CEE era a restauração da paz, enquanto
mil sérvios apavorados que, fugindo para os Estados Unidos estavam seriamente
o leste, constituíram a maior migração for- preocupados em fazer justiça para com os
çada da guerra e uma de suas mais atrozes não sérvios, principalmente os muçulma-
calamidades humanas. As agências de as- nos. Em 1993, os europeus consideravam
sistência e seus protetores da ONU estavam que os sérvios tinham vencido a guerra na
sobrecarregados. As forças croatas também Bósnia e era fútil incentivar os muçulma-
recuperaram a maior parte da Eslavônia nos ou uma aliança muçulmano-croata a
Oriental que haviam perdido para a Sérvia continuá-la. A França e a Grã-Bretanha,
em 1991. Esses reveses para os sérvios, com- que forneciam os maiores contingentes da
binados com as tentativas da ONU de jogar UNPROFOR, opunham-se decididamente
uma rede de segurança sobre áreas escolhi- a qualquer medida que pudesse causar ata-
das, precipitaram novas ações conjuntas por ques a essa força, demandar sua retirada em
parte de Milosevic e Karadzic. conjunto com a das agências de ajuda e ilu-
A criação de áreas seguras, que não dir os muçulmanos com esperanças vãs.
eram seguras, foi um desastre que marcou Os norte-americanos, por outro lado,
uma etapa na finalização da guerra. Duran- foram forçados a uma política de ajudar o
te 1994, os Estados Unidos e Milosevic gira- governo bósnio a refazer o balanço militar
ram em torno de um possível acordo em que ao remover o embargo de armas e usar o
Milosevic reconheceria um Estado bósnio poder aéreo para parar a agressão sérvia
independente e se livraria de Karadzic, em e defender as áreas seguras. Sabendo que
troca da cessão à Sérvia dos enclaves sérvios uma resolução para suspender o embar-
no leste da Bósnia, incluindo Srebrenica e go seria derrotada no Conselho de Segu-
outras áreas seguras. Mas Milosevic deci- rança, Clinton decidiu chamar de volta
diu apoiar Karadzic, invadir junto com ele os navios norte-americanos da patrulha
esses enclaves e reviver o cerco e o bombar- no Adriático que estava garantindo sua
deio a Sarajevo. A capital bósnia foi reduzi- aplicação. O efeito prático desse passo foi
da à inanição, quase a totalidade da popu- pequeno, mas as implicações mais amplas
lação de Srebrenica foi massacrada e cerca de não se reconhecer uma resolução pela
de 400 holandeses e ucranianos servindo à qual os Estados Unidos tinham feito lobby
UNPROFOR foram feitos reféns e expulsos e votado no Conselho de Segurança eram
de forma humilhante. Os norte-americanos mais graves. A decisão de Clinton – que
decidiram que derrotar os sérvios era um foi tomada, mas não anunciada antes das
pressuposto necessário à paz. grandes perdas dos democratas nas elei-
Os Estados Unidos tinham o poder, mas ções intermediárias de novembro – signi-
não haviam decidido como usá-lo, incertos ficava apoiar muçulmanos e croatas contra
da cooperação de seus aliados europeus, in- os sérvios e arriscar um apoio explícito
comodados pela perspectiva de iniciar um dos russos a estes. Como na Guerra Civil
conflito com a Rússia e determinados a evi- espanhola na década de 1930, a guerra na
tar o risco a vidas norte-americanas. Essa Bósnia estava sendo internacionalizada de
última preocupação implicava o uso de po- forma oculta. Os Estados Unidos e a Rús-
der aéreo, não de forças terrestres. sia estavam incentivando as duas partes,
280 | PETER CALVOCORESSI

enquanto os países islâmicos do Oriente humilharam a Rússia, colocaram de lado a


Médio estavam competindo entre si para ONU – e obtiveram resultados. Um deles foi
fornecer ou prometer ajuda aos muçulma- prejudicar a imagem da ONU tanto quanto
nos. (Alguns desses países mandavam aju- a Grã-Bretanha e a França tinham desgasta-
da beneficente desde os anos de 1970. Nos do a Liga das Nações na crise da Etiópia na
anos de 1990, mercadorias mais robustas década de 1930.
entraram no fluxo.) No entanto, o resultado principal foi
A defesa que os Estados Unidos faziam uma perspectiva de paz. Os Estados Uni-
do ataque aéreo não era menos polêmica. dos efetivamente tomaram a frente contra
Ataques aéreos significavam ataques por os sérvios da Bósnia sem passar pelas for-
parte da OTAN, já que não havia mais nin- malidades de os condenar na ONU como
guém disponível, e isso era polêmico em ameaça à paz internacional e esperando co-
termos políticos e táticos. Os russos, com locar uma brecha entre eles e Milosevic.
quem o Grupo de Contato contava para per- Convocaram os presidentes da Sérvia,
suadir Milosevic a forçar Karadzic a aceitar Croácia e Bósnia-Herzegovina para conver-
seu mais recente plano de paz, tinham di- sações em uma base aérea em Dayton, Ohio,
ficuldade de engolir a introdução da extre- e os mantiveram ali por três semanas, até
mamente antirrussa OTAN na confusão que aceitassem os termos que foram apre-
bósnia, consideravam um ardil para evitar sentados. O governo bósnio, que tinha mais
o Conselho de Segurança e o veto russo, e razões para rejeitar os termos, os aceitou
estavam indignados em relação a trazer a sob a ameaça, sugerida ou explícita, de que a
OTAN para a batalha ao lado do governo ajuda norte-americana, que lhes havia possi-
bósnio contra os sérvios. Os europeus se bilitado seguir lutando, seria interrompida.
queixavam da recusa dos Estados Unidos a Os sérvios da Bósnia, que não foram con-
incorrer em baixas nas operações em terra vidados a ir a Dayton, aceitaram os termos
e, junto com alguns analistas e comandan- sem esconder sua repugnância. Milosevic
tes norte-americanos, contestavam a eficá- abandonou os líderes dos sérvios bósnios,
cia dos ataques aéreos dado que os alvos na mas não as perspectivas de uma Grande
Bósnia seriam difíceis de encontrar e ainda Sérvia. Em síntese, esses termos seguiram
mais difíceis de atingir. Sobre Bihac, parece propostas anteriores para a divisão da Bós-
que eles tinham razão. Quando os sérvios, nia-Herzegovina em duas metades mais ou
tendo resistido a ofensivas exageradamente menos iguais (uma república bósnio-sérvia
otimistas, controlaram a cidade, seus ad- e uma federação muçulmano-croata) den-
versários invocaram a retaliação aérea, mas tro de um Estado bósnio soberano com um
ela se mostrou de utilidade duvidosa e foi governo central frágil e uma capital de in-
suspensa. Em outros lugares, contudo, os tegração frágil, Sarajevo, sob controle geral
sérvios que estavam em torno de áreas segu- muçulmano-croata. Cada uma dessas duas
ras restantes foram atacados pelas unidades metades teria direito a montar seu próprio
aéreas da OTAN e pela artilharia de uma exército; era um Estado em tudo, menos no
nova Força de Reação Rápida criada por nome. Condenados por crimes de guerra se-
França, Grã-Bretanha e Holanda. As ope- riam proibidos de ter cargos públicos; cerca
rações aéreas, as maiores em toda a história de 50 pessoas, incluindo Karadzic e Mladic,
da OTAN, foram realizadas sem informar tinham sido apontadas pela acusação no tri-
a Yeltsin. Resumindo, os Estados Unidos bunal estabelecido pela ONU, mas apenas
desconsideraram seus aliados europeus, uma foi presa e denunciada, o restante esta-
POLÍTICA MUNDIAL | 281

va além do alcance do tribunal e havia uma não expressariam suas objeções às estraté-
boa chance de continuar assim. Foi montada gias norte-americanas.
uma força de implementação internacional Todos os outros países interpretaram
(I-FOR), substancialmente norte-americana muito mal os propósitos de Milosevic e su-
e fora do controle da ONU, para policiar o bestimaram a falta de escrúpulos dos sér-
acordo de Dayton. vios da Bósnia. Na rodada Bósnia do drama
Fazendo-se um balanço, essas guerras iugoslavo, os sérvios determinaram o ritmo
na Iugoslávia foram um fiasco do ponto de até serem parados pelos croatas.
vista internacional. Muito se fez para socor- Preferindo a diplomacia internacio-
rer vítimas dos riscos usuais da guerra e dos nal à ação internacional, a CEE e, por
horrores da vingança étnica. A primeira ro- um tempo, os Estados Unidos, avaliaram
dada entre sérvios e croatas foi interrompi- equivocadamente a disposição dos beli-
da por meio da mediação internacional, mas gerantes para dar atenção a propostas ra-
também porque os combatentes tinham ra- zoáveis para a paz e, depois, à capacidade
zões próprias para desistir: a propagação da ou disposição de Milosevic de controlar os
guerra para a Bósnia suspendeu seu conflito sérvios da Bósnia, em particular Karadzic,
por três anos. Também foi o teste real para a que era um potencial rival pela chefia do
intervenção internacional. nacionalismo sérvio.
O objetivo central dos principais órgãos A introdução da UNPROFOR na ausên-
internacionais da época era dar fim à guer- cia de um cessar-fogo foi uma aposta sem
ra. Eles fracassaram porque, inicialmente, precedentes que, apesar de algum potencial
não estavam dispostos a empregar a força na Croácia na primeira rodada, acabou de-
necessária e, mais tarde, não conseguiam sastrosamente na seguinte. As primeiras ini-
chegar a um acordo sobre que tipo de força ciativas da CEE foram movidas a boas inten-
usar. O descrédito por esses fracassos re- ções, sem a companhia de boas avaliações.
caiu sobre a ONU como organização, mas A solução finalmente imposta aos Esta-
a responsabilidade ficou mais vinculada aos dos Unidos tinha um forte ar de inconclusi-
principais membros do Conselho de Segu- va. Ela dava aos sérvios e aos croatas muito
rança da ONU, que evitaram o tema tentan- do que eles queriam e adquiriram de forma
do usar a UNPROFOR para propósitos que ilícita e brutal. Embora não convidados a
não eram dela e para os quais não estava Dayton, os sérvios bósnios tinham menos
preparada e, tendo reconhecido a Bósnia- motivos para reclamar, já que receberam
-Herzegovina como um Estado soberano mais da Bósnia do que seria ditado pela de-
independente, recusaram-se a agir segundo mografia, e seu território foi denominado
esse reconhecimento. uma república sérvia. Formalmente, o acor-
Não foi pedido que o Conselho de Se- do de Dayton preservava um Estado bósnio
gurança tratasse a guerra na Bósnia como único, mas, na realidade, consistia em duas
uma ameaça à paz internacional (o que ela partes esperando para serem anexadas pela
claramente representava) nem autorizasse Sérvia e pela Croácia. Os muçulmanos, a
as medidas condizentes, prescritas na Car- maior comunidade, mantinham alguma in-
ta da ONU. A ONU foi ainda mais reduzida fluência sobre metade do novo Estado, mas
quando os Estados Unidos, tendo resolvido nenhuma na outra metade. Cerca de 250
agir de forma eficaz, preferiram fazê-lo não mil de pessoas foram desterradas como re-
liderando a ONU, e sim por meio da OTAN, sultado direto das guerras de agressão e da
em cujos membros poderiam confiar que limpeza étnica. Em um mundo acostumado
282 | PETER CALVOCORESSI

a falar em transmitir a “mensagem correta”, de 1996 foram seguidas por demonstra-


esse resultado parecia terrivelmente perver- ções persistentes que forçaram Milosevic,
so, dando uma espécie de vitória, pelo me- admitindo implicitamente impropriedades
nos por um tempo, a pequenas panelinhas eleitorais, a ceder o controle de Belgrado e
que vinculavam o nacionalismo religioso a outros governos municipais a adversários.
seus objetivos egoístas. No entanto, esse era um conjunto de
Grande parte desse desempenho medí- elementos incompatíveis, cuja aliança não
ocre podia ser atribuída à falta de importân- se manteve: o novo prefeito de Belgrado,
cia relativa da Europa Oriental Meridional Zoran Djindic, era um liberal-democrata
em comparação com o Oriente Médio, cuja (que em pouco tempo foi forçado a se es-
importância econômica e estratégica tinha, conder), enquanto o mais destacado Vuk
quase que simultaneamente, predisposto as Draskovic era um nacionalista contrário a
grandes potências a ir à guerra e pagar por Milosevic que estabeleceu a paz com esse e
ela. Com a exceção parcial da Coreia do se tornou, ainda que por pouco tempo, vice-
Norte, 40 anos antes, não havia preceden- -primeiro-ministro. Em 1997, Milosevic se
te claro para intervenção da ONU em uma candidatou à presidência da federação iu-
guerra internacional como essa, dado o re- goslava reduzida, mas não conseguiu, em
conhecimento de uma Bósnia-Herzegovina repetidas eleições anuladas por participação
independente. Mais sintomaticamente, a in- abaixo de 50%, instalar a pessoa que indi-
tervenção norte-americana forçada quando, cou em seu antigo cargo nem na presidên-
onde e como fosse o caso – ou seja, em terra cia da Sérvia. Em 1998, o Partido Radical de
– não foi oferecida por meio da ONU nem Vojislav Seselj, extremamente nacionalista,
de outra forma. mais do que dobrou sua força parlamentar,
Nem a Croácia nem a Sérvia se sen- e demandou a incorporação do Kosovo a
tiam satisfeitas com o resultado. Tudjman uma Sérvia unitária e a expulsão de todos
morreu em 1999, foi chorado como pai da os albaneses. Milosevic fez de Seselj – outro
Croácia independente, mas, ao perder in- rival pela liderança do nacionalismo sérvio
fluência por sua intolerância e nepotismo, – vice-primeiro-ministro, dando-lhe meta-
deixou o país sem amigos no exterior e com de dos cargos do gabinete.
uma economia decadente. Aquela tampou- A Bósnia que resultou de Dayton não se
co era a Croácia pela qual tinha lutado. concretizou. Os sérvios estavam divididos.
Ele foi forçado a estabelecer uma mal vista Karadzic, agora indiciado como criminoso
aliança antissérvia com os muçulmanos da de guerra, perdeu a maioria na assembleia,
Bósnia, quando preferia um acordo claro e prevaleceu por pouco tempo uma fac-
com Milosevic para que parte dela fosse ab- ção que estava disposta a aceitar o acordo
sorvida pela Croácia. Também Milosevic, de Dayton. Mas, em 1998, os herdeiros de
com toda a sua habilidade política, foi fra- Karadzic recuperaram o controle até o ano
gilizado pela guerra na Bósnia. O acordo de seguinte, quando o administrador interna-
Dayton marcou um revés para as tentativas cional indicado em Dayton, Carlos Westen-
sérvias de anexar partes da Bósnia, a Gran- dorp, demitiu seu líder, Nikola Poplasen. Os
de Sérvia não se concretizou. As sanções croatas da Bósnia se recusaram a cumprir o
econômicas arrasaram a Sérvia, com os sa- papel que lhes fora atribuído na administra-
lários caindo em poucos anos a um terço ção central em Sarajevo e reduziram a quase
de seu nível anterior à guerra e, em 1998, a nada sua aliança com os muçulmanos, limi-
moeda desvalorizada em 45%. As eleições tados agora à indigência potencial revolu-
POLÍTICA MUNDIAL | 283

cionária. Em Montenegro, agora só vincu- rantir a deportação de grandes quantidades


lada à Sérvia, cuja população superava os de albaneses para a Turquia.
montenegrinos em 6 por 1, a independência Em 1989, Milosevic cancelou a autono-
se tornava cada vez mais atrativa. A presi- mia limitada concedida ao Kosovo 15 anos
dência foi conquistada por Milo Djukano- antes e repetiu a política de expulsar todos
vic contra o candidato de Milosevic, mas os os albaneses. Eles responderam com uma
eventos no Kosovo ameaçavam desagradar ineficaz declaração de independência em
o país à medida que a OTAN incluía instala- 1992, que os sérvios ignoraram. A seguir,
ções montenegrinas em seus alvos: o porto nem uns nem outros estavam dispostos a
de Bor era uma das principais rotas de abas- retornar à autonomia de 1974-1989. Alguns
tecimento da Sérvia. Montenegro se dividiu kosovares estavam dispostos a cogitar uma
igualmente entre os partidários da indepen- espécie de autonomia na forma da federação
dência e os de manter vínculos especiais iugoslava, igual à de Montenegro, mas não
com a Sérvia, sendo que estes iam ganhando tinham mais fé em qualquer coisa que não
terreno aos poucos. fosse a independência. A Liga Democráti-
ca do Kosovo (LDK) liderada por Ibrahim
Rugova e o Exército de Libertação do Koso-
Kosovo vo (UCK) estavam mais divididos em seus
meios – recorrer ou não às armas – do que
Milosevic foi a Dayton com um ás na man- em seus fins. O UCK tinha passado de um
ga e, quando a conferência terminou, esse pequeno grupo em 1983 a um rival ativo da
ás ainda estava lá. Nada se disse sobre Ko- LDK e tinha adquirido armas quando o re-
sovo. Os norte-americanos temiam que a gime de Berisha na Albânia (ver a seguir) foi
pressão por compromissos relacionados à derrubado e seus estoques foram desfeitos e
província destruísse qualquer acordo sobre dispersados.
a Bósnia. Em 1996, a UE afirmou a inte- Os problemas no Kosovo se interna-
gridade da Iugoslávia e, implicitamente, a cionalizaram muito quando se viu que Mi-
condição do Kosovo como parte da Sérvia, losevic estava movimentando unidades
e as sanções contra esta foram suspensas. militares e paramilitares para a província,
Os kosovares foram abandonados à própria repetindo a invasão da Bósnia em 1992,
sorte. Para os sérvios, Kosovo era um nome com a perspectiva de atrocidades como os
mágico que, com alguma história e muita massacres em Srebrenica e em outras par-
lenda, tinha sido exaltado como o berço do tes da Bósnia. Os Estados Unidos, a Rússia
Estado sérvio e o epítome do valor sérvio e os países da Europa concordavam que era
contra os turcos otomanos e o Islã no sé- necessário forçar Milosevic a retirar essas
culo XIV. A Sérvia tentou se apropriar do forças, mas a Rússia tinha fortes objeções a
Kosovo durante a guerra russo-turca de uso da OTAN para isso. Todos esses países
1877-1878 e o fez nas guerras balcânicas aprovaram uma resolução do Conselho de
de 1912-1913. Os políticos e os acadêmi- Segurança que exigia que a Sérvia retirasse
cos defenderam continuamente, por mais suas forças e interrompesse suas depreda-
de um século, a incorporação do Kosovo à ções e, juntos, convocaram uma reunião
Sérvia e a expulsão de sua população, cuja com Milosevic, o UCK e outros albaneses
maioria arrasadora era de albaneses. Tan- em Rambouillet, próximo de Paris (1995),
to antes quanto depois da Segunda Guerra para considerar – e aceitar: termos que in-
Mundial, os governos sérvios tentaram ga- cluíam a retirada de todas as forças sérvias
284 | PETER CALVOCORESSI

(com exceção das menores); o desarmamen- naram com a luta, já que o país estava cheio
to do UCK; a introdução de uma força de de bombas de fragmentação não explodidas.
paz internacional de proporções substan- Milosevic aceitou os termos de rendição
ciais e um corpo de 2 mil monitores desar- que lhe foram apresentados pelo presidente
mados da OSCE; o início de negociações da Finlândia, Martti Ahtisaari, em nome da
sobre o futuro do Kosovo; e o retorno dos OTAN, e pelo enviado especial de Yeltsin,
refugiados albaneses a suas casas (ou ao que Victor Chernomyrdin. Esses termos eram,
restava delas). Os albaneses concordavam basicamente, se não precisamente, os que
com esse programa com a condição de que haviam sido apresentados em Rambouillet:
seu conjunto fosse aceito por Milosevic e as forças sérvias deveriam deixar Kosovo
apesar da omissão de qualquer referência em 10 dias, seriam instalados regimes civis
direta à possibilidade de independência do e militares internacionais, os albaneses po-
Kosovo. Milosevic não foi a Rambouillet e deriam voltar para suas casas, o UCK seria
respondeu ao ultimato intensificando suas desmilitarizado. Eles representavam um
operações, que incluíam assassinar, estuprar golpe, não apenas a visões de uma Grande
e incendiar, para fazer com que os albane- Sérvia, como também à própria Sérvia, já
ses fugissem do Kosovo. Seguiu-se a guerra que, embora nada se tenha dito sobre o des-
– uma guerra travada pela OTAN contra a tino final do Kosovo, o futuro menos prová-
qual a Rússia protestou, não por ser pró- vel era que se unificasse a ela. O território
-Sérvia (como Milosevic pode ter imagina- estava entrando em um período de tutela
do), mas por ser anti-OTAN. internacional incompleta por parte (prin-
Essa guerra durou 10 semanas, sem cipalmente) de países europeus que não ti-
conseguir proteger os albaneses do Kosovo, nham sido capazes de encontrar uma solu-
mas forçando Milosevic a render-se. Os alia- ção durável para ele em 1913 e nem tinham
dos da OTAN, tendo montado uma força de tentado em 1995. Dois terços do Parlamen-
(inicialmente) 450 aviões, combateram (em to Sérvio aceitaram os termos da rendição,
grande parte, por insistência dos Estados contra os votos de Seselj e seu Partido Radi-
Unidos) somente com fogo aéreo e com os cal, e ele renunciou ao governo. Os refugia-
aviões voando acima dos 4,5 mil metros. As dos – cerca de 900 mil – voltaram em massa
forças da OTAN não sofreram baixas, to- ao que restava de suas casas e começaram a
dos os mortos foram sérvios ou albaneses. procurar o que poderia ter restado de suas
Os resultados pareciam confundir os vários famílias. A guerra ameaçara a estabilida-
céticos que sustentavam que fogo aéreo, iso- de das vizinhas repúblicas da Macedônia,
lado, seria inadequado, mas, depois de um Montenegro e Albânia, mas não durou o su-
começo experimental e apesar de alguns ficiente para causar levantes imediatos. Mi-
erros de alvo deploravelmente desastrosos, losevic e outros foram indiciados por crimes
o bombardeio de Belgrado e outras cidades de guerra e crimes contra humanidade, com
sérvias pôs fim à luta. Por outro lado, o fogo possíveis acusações de genocídio deixadas
aéreo da OTAN tinha apoio (incluindo inte- em suspensão. Depois de não conseguir
ligência) do UCK em terra, e a possibilidade anexar a Bósnia, Milosevic tinha perdido o
cada vez maior de intervenção internacional Kosovo. Ele também perdeu sua posição em
por forças terrestres pode ter influenciado a Belgrado (2000), foi preso e processado em
rendição de Milosevic. Haia e morreu na prisão em 2006, sendo su-
A morte e a destruição causadas pelo cedido pelo nacionalista moderado Vojislav
fogo aéreo eram indiscriminadas e não termi- Kostunica.
POLÍTICA MUNDIAL | 285

A guerra, para desconforto da OTAN e era preocupante. Os russos tiveram que re-
dos russos, levantou a questão do lugar da cuar e se contentar com uma contribuição
Rússia pós-soviética na Europa. Havia aque- pequena e muito dispersa à força de paz da
les, principalmente, mas não apenas, nos OTAN (K-FOR), abandonar sua demanda
Estados Unidos, para os quais a Rússia era de uma zona separada de ocupação e acei-
uma superpotência fracassada sem maiores tar uma fórmula, de complexidade insigni-
consequências; para outros, principalmente ficante, para a cadeia de comando que satis-
na Europa, embora não fosse uma super- fizesse a ambas as partes. A K-FOR obteve
potência mundial, ela tinha cumprido, por do UCK uma aceitação de entregar todas
mais de dois séculos, um importante papel as suas armas com exceção das portáteis,
nas questões europeias. Ao mesmo tempo deixar de usar fardas, desmontar postos de
em que apoiava medidas internacionais con- controle e ajudar a limpar os campos mina-
tra a Sérvia, o país se opunha firmemente a dos; mas o futuro dessas unidades perma-
expansão da OTAN a leste de suas fronteiras necia incerto.
e seu uso ativo nas questões europeias. Para Essa foi uma guerra ilegal com uma
alguns dos russos nas administrações peri- causa justa. A ação da OTAN fora dos ter-
clitantes e vacilantes de Yeltsin, essas ações mos o Tratado do Atlântico Norte foi um
indicavam tentativas norte-americanas de descumprimento da Carta da ONU. Em
ameaçar e humilhar a Rússia e desviar do uma perspectiva mais longa, ela fortaleceu,
Conselho de Segurança da ONU e do veto. ainda que somente pelo exemplo, os argu-
A primeira avaliação era um enorme exage- mentos da ação internacional (por parte da
ro, já a segunda era amplamente verdadeira. ONU) contra um Estado soberano por ra-
Para os Estados Unidos, por outro lado, as zões humanitárias, e foi tomada com base
forças da OTAN, que já haviam sido usadas em crimes contra a pessoa, todos cometidos
na Bósnia, não eram realmente uma alterna- dentro de território sérvio. Esses crimes
tiva à ONU, e sim a única máquina de guer- não eram novos, mas até então só tinham
ra alternativa disponível na ausência de for- sido alvo de processo no contexto de outras
ças e instituições regionais (ou seja, a UE). transgressões: em Nuremberg, no contexto
Quando a guerra terminou, os aliados da da guerra de agressão; contra a Argentina
OTAN saudaram a participação russa nas de Galtieri e o Iraque de Saddam Hussein,
negociações de paz e na aplicação dos ter- no contexto de crimes contra a proprieda-
mos da rendição, mas insistiram na inclusão de (as invasões das Malvinas e do Kuwait).
de unidades russas em um comando unifi- Em segundo lugar, a guerra fortaleceu ar-
cado, que poderia ser a OTAN. Os russos, gumentos em favor das instituições e forças
demandando uma zona separada no Ko- militares conjuntas da UE, substancialmen-
sovo e independente da OTAN, habilmen- te independentes dos Estados Unidos, em-
te deslocaram tropas da Bósnia, através da bora não totalmente desconectadas deles
Sérvia, até o principal aeroporto do Kosovo, – o que representava uma revisão funda-
onde chegaram antes da OTAN. mental do Tratado do Atlântico Norte. Ela
Esse gesto inesperado mostrou que a também fortaleceu a defesa de um tribunal
Rússia não poderia ser ignorada, mas teve internacional permanente com jurisdição
pouco impacto no rumo dos eventos, pois penal, mais universal do que o tribunal ad
haver conflitos em Moscou entre, em ter- hoc de Haia para os crimes na Iugoslávia
mos gerais, os ramos civil e militar do go- e mais poderoso do que o que fora criado
verno Yeltsin e uma falta de autoridade que em Roma em 1998 (ver o Capítulo 30). De-
286 | PETER CALVOCORESSI

pois de 12 anos de Rambouillet, o Kosovo Em 1389, ao extinguir o Império sérvio na


se tornou mais do que um imbróglio regio- batalha do Kosovo, o sultão Murad I anes-
nal: era um campo de testes para manobras tesiou por cinco séculos o que se tornaria a
entre Estados Unidos/União Europeia e a Questão Macedônia. O nome da Macedônia
Rússia. Nenhum deles estava interessado data da antiguidade e dos reis guerreiros que
fundamentalmente no Kosovo em si, que conquistaram a Grécia como preliminar à
declarou independência em 2008, criando conquista de grande parte do mundo que
na prática, um segundo Estado albanês. conheciam. Mais tarde, a Macedônia seria
A separação do Kosovo em relação à definida em termos territoriais ou linguísti-
Sérvia era uma conclusão prevista não ape- cos, duas abordagens incoerentes e nenhuma
nas porque 9 de cada 10 de seus habitantes precisa. Não havia existido Macedônia por
eram albaneses, mas pela decisão dos Esta- mais de 2 mil anos, nem uma concordância
dos Unidos, em 1998, de bombardear ambos sobre se o macedônio é uma língua distinta
em uma tentativa de pacificar o que tinha se ou um dialeto do búlgaro. Os macedônios de
tornado uma das partes mais inflamadas da épocas recentes são eslavos, mas se discute
Europa. Mesmo assim, uma minoria con- muito se são mais próximos dos búlgaros ou
siderável dos membros da União Europeia dos sérvios – os primeiros apontando as afi-
custou a reconhecer a independência do nidades linguísticas, os segundos, os rituais
Kosovo, pelo menos em parte porque se sen- culturais comuns desconhecidos entre os
tiam inclinados a manter a regra estabeleci- búlgaros. O refluxo acelerado do poder oto-
da de direito internacional, segundo a qual mano na Europa no século XIX ressuscitou
as fronteiras internacionais só poderiam ser antigos principados sérvios e búlgaros, fez
alteradas por tratados internacionais. Assim renascer Igrejas sérvias e búlgaras separadas,
sendo, o Kosovo, sem saída para o mar e sem ansiosas por se afirmar contra o patriarca
amigos, se tornou uma excentricidade à deri- helênico de Constantinopla, e criou entre
va sob a tutela da UE, mas com quase nenhu- Sérvia, Bulgária e Grécia tensões dirigidas
ma perspectiva de se juntar a ela. Na Sérvia, principalmente à Macedônia e ao porto de
esperava-se que os nacionalistas extremistas Tessalônica. Enquanto, em termos políticos,
(cujo líder Seselj estava preso em Haia es- o separatismo dos Estados eslavos emer-
perando julgamento) lucrassem com esses gentes era antiturco, em termos religiosos,
eventos, e eles quase venceram a presidência, era antigrego. Depois da guerra russo-turca
mas as eleições de 2008 deram uma vanta- de 1877-1878, o Tratado de Santo Estêvão,
imposto pela Rússia, deu à Bulgária toda a
gem inesperada, ainda que pequena, aos lí-
Macedônia, mas não Tessalônica. O Tratado
deres pró-ocidentais e pró-União Europeia.
de Berlim, pelo qual as outras Grandes Po-
tências insistiam em frear essa vitória russa,
Macedônia e Albânia devolveu a Macedônia aos turcos e dividiu a
Bulgária em duas partes (que conseguiram
Na Macedônia, cujo nome, por si só, já evoca se unificar em 1885). Na última década do
emoções poderosas na Grécia e na Bulgária, século, a Bulgária estimulou organizações
as tensões desses anos foram internaciona- macedônias ambiciosas, mas elas em pouco
lizadas por reações paranoicas, principal- tempo, se dividiram sobre suas táticas e es-
mente na Grécia, onde a história antiga foi tratégias e, quando o declínio progressivo do
invocada para dar um impulso ao nacio- Império Otomano levou às Guerras Balcâ-
nalismo moderno – e para vencer eleições. nicas de 1912-1913, Sérvia e Grécia tinham
POLÍTICA MUNDIAL | 287

descoberto o propósito comum de impedir maior parte do período entre 1992 e 1994.
que a Bulgária obtivesse Tessalônica. A se- Os albaneses da Macedônia tiveram melhor
gunda etapa das guerras balcânicas termi- sorte do que seus patrícios no Kosovo, mas
nou com o Tratado de Bucareste, segundo o foram excluídos do governo da república e
qual a Macedônia foi dividida de tal forma ansiavam por autonomia ou independência
que a Bulgária recebeu apenas um décimo ou união com uma Albânia ampliada – à
dela, com o resto sendo dado à Sérvia e à qual nem a própria Albânia estava inclinada
Grécia, essa recebendo uma parcela maior ou em condições de promovê-la.
do que aquela, além de Tessalônica. Houve A preocupação grega com o novo Es-
alguma migração como resultado disso, e tado tinha várias fontes. A mais recente
mais ainda após a Primeira Guerra Mundial, era a guerra civil grega, quando muitos
mais ou menos voluntária. Esses movimen- eslavos tinham sido recrutados às fileiras
tos deixaram apenas uma pequena popula- do Exército de Libertação do Povo Grego
ção de fala eslava na Grécia, mas um medo (ELAS). Havia profundas desconfianças
permanente entre os gregos de um retorno quanto a se intrometer em qualquer coi-
dos planos para um Estado macedônio dis- sa vinculada ao nome Macedônia; reações
tinto, que retiraria da Grécia sua província exageradas ao surgimento em Skopje de
mais fértil e 1,5 milhão de habitantes. mapas antigos, mas provocativos, mos-
Depois da Segunda Guerra Mundial, trando a Macedônia se estendendo sobre
os planos de uma união entre Iugoslávia e partes da Grécia; receio de que um Estado
Bulgária foram interrompidos por Stalin, e macedônio na fronteira com a Grécia pu-
a reorganização feita por Tito da Iugoslávia desse engendrar reivindicações por parte
tripartite anterior à guerra em uma federa- de minorias albanesas e turcas. Por fim, e
ção de seis partes criou a República Iugos- mais importante, os líderes políticos em
lava da Macedônia. Quarenta e cinco anos Atenas reviviam ilusões românticas sobre
mais tarde, essa república, com uma po- a continuação da relevância, para as ques-
pulação de 2 milhões, dos quais um quar- tões modernas, da trajetória de Alexandre
to era de albaneses concentrados no canto da Macedônia no século III a.C., a quem
noroeste e o restante estava dividido em os gregos daqueles tempos consideravam
uma dúzia de categorias, tinha uma econo- mais bárbaro do que grego. A participa-
mia em frangalhos, praticamente nenhuma ção da Grécia na UE garantia um grau
indústria nem compradores para seu prin- de atenção a posturas chauvinistas, que,
cipal produto agrícola (fumo), e não tinha caso contrário, passariam despercebidas.
moeda que não fosse o dinar iugoslavo A Macedônia foi obrigada a adotar a no-
nem exército. menclatura desajeitada de ex-República
A autoridade de Kiro Gligorov – um Iugoslava da Macedônia antes de ser ad-
ex-comunista que se tornou presidente em mitida na ONU, e se manteve desconfor-
1992 – ia pouco além da capital, Skopje. tavelmente em paz com a ajuda de uma
Em 1991, os macedônios confirmaram em pequena força de paz da Organização (à
um plebiscito uma declaração de indepen- qual, em 1993, os Estados Unidos forne-
dência, mas a parte albanesa do eleitorado ceram unidades) e apesar de surtos limi-
boicotou a votação e o governo grego impe- tados de violência em 1995. Menos volátil
diu, durante dois anos, o reconhecimento do que a Bósnia, contudo, tinha frontei-
internacional da independência do país e ras com quatro Estados menos amigáveis
manteve um bloqueio econômico durante a e mais estruturados – Albânia, Bulgária,
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Sérvia, assim como a Grécia – e não tinha seitas; o restante, cristãos ortodoxos ou ca-
saída para o mar. Em 1995, Gligorov es- tólicos, sendo que os primeiros eram mais
capou por pouco de ser assassinado. Ele numerosos do que os católicos em dois
havia conquistado reconhecimento de to- para um. Etnicamente, as principais mi-
dos os seus vizinhos e da Turquia, mas os norias eram gregos e vlachs. O número de
triunfos dos Estados sérvio e croata joga- gregos era definido em 40 ou 100 mil se-
vam contra a ideia do Estado como algo gundo o ponto de vista político: os censos
multiétnico, como a Macedônia deveria oficiais registravam afiliação religiosa, e
ser. Depois das eleições de 1998, o poder não étnica, e uma quantidade de albaneses
passou de centro-esquerda para centro-di- falava grego nos tempos da Turquia por-
reita, para reformas pós-comunistas mais que os turcos proibiam o ensino e o uso do
determinadas, e para melhores relações albanês, mas não do grego.
com a Grécia e a Bulgária, mas a onda de Durante a Primeira Guerra Mundial,
275 mil refugiados e desterrados albaneses parecia provável que a Albânia fosse dividi-
do Kosovo e a interrupção de seu comér- da entre a Grécia, a Itália e o novo reino da
cio com a Sérvia criou caos econômico e Iugoslávia, mas esses planos foram vetados
pânico étnico. Gligorov conteve os apoia- por Woodrow Wilson. Uma fronteira sul,
dores da ideia de uma Federação Iugoslava estabelecida inicialmente por uma comis-
que incluísse a Macedônia. Ele perdeu o são internacional em 1913, foi endossada
cargo em 1999. pela Liga das Nações em 1921 e aceita pelos
A Albânia, tendo fronteira com Mon- Estados interessados, incluindo a Grécia e
tenegro, Sérvia, Macedônia, Grécia e o mar, a Itália, em 1926. Depois da guerra, a Albâ-
conquistou a independência em 1912, tendo nia estava caótica até Ahmet Zogu afirmar
como rei um príncipe alemão (por alguns seu domínio sobre a maior parte do país e
meses). O novo Estado incluía apenas meta- se declarar rei, em 1928 (ele morreu duran-
de dos albaneses. te a Segunda Guerra Mundial). Em 1939,
A outra metade foi dada em 1913 à a Itália a anexou para atacar a Grécia, mas
Sérvia e a Montenegro e, em menores a Albânia conseguiu, com ajuda alemã,
quantidades, à Grécia. Esses albaneses fo- ganhar território da Sérvia e Montenegro,
ram os principais perdedores na alocação mesmo que apenas temporariamente. A re-
pós-otomana dos Bálcãs. Em várias oca- sistência aos ocupantes do Eixo foi liderada
siões desde 1978, a Grécia reivindicou o por Enver Hoxha com ajuda da Grã-Breta-
que chamava de Épiro do Norte, uma área nha. Hoxha, que era um paranoico de clas-
variável que chegava a um terço da Al- se média educado parcialmente na França e
bânia e era habitada por uma substancial na Bélgica, estabeleceu uma ditadura stali-
minoria grega. Dos 3 milhões de albane- nista. Eliminou Koci Xoxe e outros colegas
ses que viviam fora da Albânia depois da próximos dos quais tinha suspeitas plau-
Segunda Guerra Mundial, 400 a 500 mil síveis de que pudessem ser atraídos pelos
estavam na República da Iugoslávia Ma- esquemas de Tito para absorver a Albânia
cedônia, 50 mil em Montenegro e outros na Federação Iugoslava. Outro colega pró-
tantos na Grécia. Outros, ainda, residiam ximo, Mehmet Shehu, veterano da Guerra
na Turquia, Itália, Estados Unidos e Ca- Civil Espanhola, foi primeiro-ministro até
nadá, a partir de migrações antigas ou 1981, quando cometeu suicídio e foi acu-
mais recentes. Dois terços dos albaneses sado post mortem de ser agente da CIA e
na Albânia eram muçulmanos de diversas da KGB. Hoxha se tornou hostil à URSS de
POLÍTICA MUNDIAL | 289

Khruschev e cortou relações com ela em sequestrada por especuladores e bandidos.


1961. Elogiava a China de Mao até 1978, Os preços dispararam, o gangsterismo e a
quando a acusou de revisionismo. Isolou e corrupção floresceram, tolerados por Esta-
empobreceu a Albânia ao buscar a moder- dos Unidos e outros, que torciam para que a
nização e a revolução com incompetência coisa funcionasse. O Partido Democrático se
inescrupulosa, desperdiçando seus impor- dividiu; o envolvimento ativo da Igreja Or-
tantes recursos minerais (cromo, cobre, todoxa na política e uma visita do Papa João
níquel) e seus potenciais hidrelétricos. Ele Paulo II não ajudaram a conter a discórdia.
morreu em 1985, depois de um período de A ajuda estrangeira ainda não aparecia mais
senilidade no qual Ramiz Alia era o líder do que em gotas, Berisha se tornou cada
do país, na prática. vez mais autoritário; uma tentativa apoiada
Confirmado no poder, Alia deu alguns pelos Estados Unidos de fortalecer seus po-
sinais de reformas, mas eles eram frágeis e deres constitucionais foi rejeitada; em 1996,
o regime comunista começou a se desinte- ele saiu vitorioso de eleições que, contudo,
grar. A lei e a ordem se desfizeram, a divisão receberam críticas mordazes de observa-
subjacente norte/sul entre ghegs e tosks se dores da OSCE. Esquemas fraudulentos de
complicou em função de disputas violentas enriquecimento rápido cuja competitivida-
dentro dessas sociedades amplas, muitos al- de levava as recompensas prometidas a ri-
baneses fugiram para a Itália e para a Grécia. dículos 150% desabaram, arruinando cerca
Alia foi forçado a permitir eleições em 1991. de três quartos da população, precipitando
Elas foram bem conduzidas, a participação mais um êxodo para Itália, Grécia e Iugoslá-
foi impressionantemente alta e o Partido do via e desencadeando uma rebelião que divi-
Trabalho, de situação (posteriormente reba- diu o país. Berisha perdeu o controle do sul
tizado de Partido Socialista), fez muitos vo- e formou um governo de coalizão temporá-
tos em zonas rurais e obteve duas vezes mais rio com seu rival Fatos Nano. Sob liderança
votos do que todos os partidos de oposição italiana, os países da Europa enviaram uma
combinados. pequena força como meio rudimentar de co-
Alia tornou-se presidente sob uma nova locar alguma ordem e segurança em cidades
Constituição, com Fatos Nano como pri- escolhidas. Em outras eleições em 1997, Be-
meiro-ministro por pouco tempo, mas não risha e seu partido foram arrasados e ele re-
tendo conseguido a ajuda esperada dos Es- nunciou, sendo sucedido por Nano. Embora
tados Unidos, da UE e do FMI, e a crescente o advento de Berisha tenha marcado o fim
desordem e miséria mostrando que as coisas da ditadura comunista, seu declínio e queda
estavam fora de seu controle; foram realiza- foram marcados por confusão nos Estados
das novas eleições em 1992, que reverteram Unidos e na UE, onde ele foi vendido como a
o resultado do ano anterior. O novo Parti- cara aceitável da Albânia pós-comunista – o
do Democrático, liderado por Sali Berisha, homem que poderia estabilizar o país, for-
obteve quase dois terços dos assentos, e Be- talecer os desígnios norte-americanos para
risha se tornou presidente. bloquear o expansionismo sérvio e impedir
Cardiologista de profissão e comunista que o país servisse como posto avançado do
praticante convertido a um fervoroso anti- islamismo agressivo. Na própria Albânia,
comunismo, Berisha aplicou, com mais von- Berisha permanecia poderoso no norte, já
tade do que visão, políticas econômicas que que o governo de Nano não era capaz de es-
lhe foram impostas por assessores estran- tabelecer seu poder sobre o país como um
geiros e permitiram que a economia fosse todo. Berisha recorreu a poderes emergen-
290 | PETER CALVOCORESSI

ciais, mas foi forçado a abdicar na prática. Danzig entre as duas guerras mundiais. Ele
Seguiram-se o caos econômico, a fragmen- declarou a independência em 2008 e foi rapi-
tação política e a crescente criminalidade. damente reconhecido pelos Estados Unidos
As guerras na Iugoslávia nos anos de e pela maioria dos membros da União Euro-
1990 e seus efeitos colaterais foram uma peia (mas não por todos).
etapa no longo reordenamento do Sudeste
Europeu em resposta ao recuo do Império
Otomano durante séculos e a sua desinte- Notas
gração final. Em diferentes etapas, outros
Estados intervieram nesse processo, geral- A. Irlanda do Norte
mente em um espírito de hostilidade mútua.
A Irlanda do Norte, chamada muitas vezes,
Os conflitos dos anos de 1990 foram um
mas equivocadamente, de Ulster, era a par-
lembrete aos povos da região de que suas
te da Irlanda que permaneceu integrando
disputas endêmicas interessavam a forças
o reino Unido quando o restante do país se
mais distantes e mais poderosas.
separou da união criada em 1800. Durante o
Elas também eram testemunhas da
inverno de 1921-1922, havia duas questões
hostilidade muito reduzida entre os que se
principais em debate entre os ingleses e os
sentiam inclinados a intervir. Essas guerras
irlandeses. A divisão da Irlanda era conside-
destruíram a Iugoslávia. A principal perde-
dora foi a Sérvia, onde Milosevic agiu como rada por quase todos como inevitável, mas o
o sapo de La Fontaine*. Só sua fronteira leste status do Estado irlandês era debatido aca-
permaneceu intacta. A Croácia e a Eslovênia, loradamente. Os ingleses insistiam, e uma
no noroeste, tornaram-se Estados indepen- maioria estreita do provisório Parlamento
dentes. A oeste e sudoeste, a Bósnia-Herze- Irlandês concordava, em que deveria ser
govina mantinha um vínculo precário e, em um Estado livre dentro da Comunidade e
parte, ambíguo, com a Sérvia, assim como do Império Britânicos, devendo fidelidade à
Montenegro. Ao sul, a Macedônia se tornou Coroa e presidido por um governador-geral
independente. A parte mais difícil era o Ko- britânico. Na Irlanda, uma minoria republi-
sovo, espremida entre Sérvia-Montenegro, cana pressionou o caso até chegar ao ponto
Macedônia e Albânia. Como sua população de uma guerra civil, mas perdeu, e a Irlanda,
era, em grande maioria, albanesa, os estran- embora membro separado da Liga das Na-
geiros, com exceção da Rússia, desejavam ções desde 1923, só se tornou uma república
que ela se tornasse outro Estado. A oposição totalmente independente em 1937.
da Rússia poderia ser atribuída a vínculos No nordeste, uma fronteira foi acorda-
históricos ou afetos eslavos, ou à busca de da em 1925. A nova província da Irlanda do
Putin por peões que pudesse mover em suas Norte herdou do Ato da União, de 1800, o
jogadas diplomáticas contra os Estados Uni- direito de eleger membros ao Parlamento de
dos e a OTAN. A união do Kosovo com a Al- Westminster e recebeu do Ato do Governo
bânia era rejeitada por todos. O território foi da Irlanda, de 1920, uma legislatura bica-
deixado sob ocupação temporária da ONU, meral e um executivo com um considerável
de forma semelhante ao fatídico destino de grau de autonomia interna (ampliada em
1948). A província foi governada, até 1972,
por uma oligarquia protestante dominada
* N. do R.: Referência à fábula “O Sapo e o Boi”, na qual o sapo,
invejando o tamanho do boi, vai inchando-se, na tentativa de por proprietários de terras, mas passou a
alcança-lo, até o ponto em que explode. incluir, nos últimos anos, representantes de
POLÍTICA MUNDIAL | 291

classes urbanas e profissionais mais próspe- de pressionar a oligarquia da província para


ros, dos quais um, Brian Faulkner, tornou- estabelecer reformas civis e políticas, como
-se seu último primeiro-ministro. O poder questão de oportunidade e de justiça. Am-
dessa oligarquia residia em um eleitorado bos acreditavam, ou se comportavam como
no qual os protestantes eram o dobro dos se acreditassem, que nada mais do que isso
católicos romanos, mas essa divisão religio- era necessário, uma ilusão que deveriam ter
sa não era a única. perdido pelos eventos de 1969-1972.
Também havia conflito entre defensores Nesses últimos anos da velha ordem, a
e opositores de uma Irlanda unida e – uma província teve três primeiros-ministros. As
divisão mais recente – entre patrões e tra- desordens, principalmente em festividades
balhadores, ricos e pobres. Os patrões eram históricas ou religiosas, eram uma caracterís-
majoritariamente protestantes, mas nem to- tica normal da vida política, mas geralmente
dos os protestantes eram patrões. Os defen- não letal. Em 1966, essas desordens foram
sores de uma Irlanda unida eram, na maio- agravadas por uma onda de assassinatos por
ria, católicos romanos, mas nem todos os parte da recém-formada Ulster Volunteer
católicos romanos queriam uma Irlanda uni- Force (UVF – Força Voluntária do Ulster,
da, ou não imediatamente, nem pela força. O Protestante), mas as autoridades recupera-
objetivo da classe dominante era se manter ram o controle até que, em 1969, os assassi-
no controle, fazendo concessões reformis- natos políticos ressurgiram. Naquele ano e
tas segundo as necessidades (havia opiniões no seguinte, o número de vítimas foi peque-
diferentes sobre quais poderiam ser). Os no (13 e 20, respectivamente), mas suficiente
objetivos da oposição iam da unificação da para levar o governo britânico a enviar tro-
Irlanda ao fim da discriminação anticatólica, pas – uma reação necessária não pela escala
e, em 1969, o IRA (descendentes do Exército dos problemas e sim porque as forças locais
Republicano Irlandês formado para expulsar da lei e da ordem – o Royal Ulster Consta-
os ingleses da Irlanda) se dividiu. O grupo bulary (RUC) complementado por guardas
maior, adotando uma interpretação mar- conhecidos como B-Special Constables –
xista da situação, visava a ampliar sua base eram compostas por protestantes e conside-
entre a minoria católica romana desfavore- radas pelos católicos como instrumentos da
cida atraindo o apoio dos protestantes mais supremacia sectária dos primeiros. Seu uso
pobres, esse grupo colocava o socialismo para reprimir desordens era incompatível
em primeiro lugar e abandonou a violência com uma política de reconhecimento e re-
em favor da propaganda. O outro, chamado tificação das queixas dos católicos, mas, por
de IRA Provisório, manteve a política tradi- outro lado, a dissolução dos B-Specials e o
cional de unificar a Irlanda expulsando os desarmamento da RUC, nos quais o governo
ingleses pela violência, sua interpretação da britânico insistia em 1970, intensificaram a
situação não era de conflito de classes, mas apreensão protestante em relação a seu pró-
de guerra nacional, e seu apelo era ao nacio- prio destino e reforçaram sua intransigência.
nalismo e ao catolicismo. Os objetivos dos Tendo interferido até então, os britâ-
ingleses, por fim, eram negativos. Eles ha- nicos, ansiosos para se retiraram de novo
viam perdido a vontade de permanecer em assim que fosse possível, pressionaram o
qualquer parte da Irlanda, mas se sentiam executivo provincial para introduzir refor-
obrigados a defender a ordem estabelecida mas com vistas a satisfazer os católicos que
na Irlanda do Norte. Os governos conser- estavam agitando por direitos civis. Primei-
vadores e trabalhistas viam a necessidade ros-ministros sucessivos, Terence O’Neill e
292 | PETER CALVOCORESSI

James Chichester-Clark, estavam dispostos res do UVF, e alarmados porque se sentiam


em princípio, mas eram inibidos por seus expostos diante de uma crescente violência
próprios apoiadores, que consideravam as por parte do IRA e da debilitação de seus
reformas como um prelúdio a mais conces- próprios meios de garantir a lei e a ordem.
sões que levariam à unificação da Irlanda, Uma nova força de autodefesa protestante,
com consequências graves para os protes- a Ulster Defense Association (UDA – As-
tantes e para a economia dos condados do sociação de Defesa do Ulster), surgiu como
norte. contraponto aos Provisórios. O executivo da
O controle desses líderes sobre a maio- província se tornou ineficaz e, em março de
ria protestante foi mais fragilizado pelo sur- 1972, foi suspenso. O governo britânico as-
gimento de novos líderes, fossem eles, como sumiu responsabilidade direta. Ele também
Ian Paisley, eloquentes antipapistas de um perdeu sua credibilidade quando 14 católi-
tipo não mais encontrado fora da Irlanda do cos desarmados foram mortos por soldados
Norte ou, como William Craig, protagonis- britânicos em Londonderry.
tas do direito da maioria de decidir e lutar O governo direto a partir de Westmins-
por essa decisão. Não obstante, implemen- ter envolveu a Grã-Bretanha no confronto
tou-se uma série de reformas, com anos de com a oposição, que não mais se restringia
atraso, que dividiu protestantes e não mais aos partidos católicos nem ao movimento
satisfazia os católicos cuja atenção estava pelos direitos civis, mas incluía o IRA Pro-
sendo desviada dos direitos civis ao secta- visório. Mesmo assim, o governo Heath pas-
rismo pelos paisleyistas, por um lado, e os sou a trabalhar para encontrar uma resposta
Provisórios [do IRA], por outro. As mortes constitucional aos problemas da Irlanda do
se multiplicaram (173 no ano de 1971), e o Norte. A política tinha dois pilares incompa-
novo primeiro-ministro Brian Faulkner re- tíveis. Um deles era o poder compartilhado,
correu à detenção e à prisão sem julgamen- uma insistência de participação católica no
to. Em uma noite, 342 pessoas foram presas. governo em todos os níveis, incluindo um
Algumas eram visivelmente as pessoas er- executivo provincial restabelecido, que seria
radas e nem uma delas era protestante. Isso permanentemente uma coalizão e, segundo,
não surpreendia, dado que o objetivo da o endosso democrático por parte dos eleito-
operação era desmantelar o IRA. res da província. Em 1972, a maioria protes-
Mas a operação fortaleceu os Provisó- tante não estava disposta a apoiar esse tipo
rios, fazendo com que a opinião católica, de coisa. Os protestantes estavam furiosos
que em princípio tinha recebido bem as com as atividades assassinas dos Provisórios,
tropas inglesas como proteção contra mi- e os militantes protestantes passaram a ma-
litantes protestantes, oscilasse para o IRA tar duas vezes mais civis do que aqueles (que
e o forçasse a se juntar aos Provisórios na dirigiam seu fogo mais aos soldados ingle-
denúncia do governo britânico, cujo apoio ses). Sendo assim, a política do governo bri-
foi fundamental para que Faulkner agisse. tânico, sacramentada em 1973 no relatório
Casos de brutalidade e tortura por parte dos (White Paper) e aparentemente triunfante
ingleses, posteriormente endossados pela em uma conferência em Sunningdale, esta-
Comissão Europeia de Direitos Humanos, va, pela segunda vez, destinado ao fracasso
jogaram gasolina no fogo. Os protestantes diante da realidade. Um gesto em direção à
ficaram fortalecidos e alarmados, fortaleci- unificação, por meio da criação de um Con-
dos porque Faulkner não tinha se arriscado selho da Irlanda (norte e sul), acrescentado
a prender nem os mais combativos dos líde- em Sunningdale, garantiu rejeição dupla.
POLÍTICA MUNDIAL | 293

As eleições gerais britânicas, convocadas sições. Dublin não vislumbrava um fim dos
inesperadamente por Heath em 1974, deram problemas sem uma mudança política sig-
aos eleitores da Irlanda do Norte uma chance nificativa, não buscava mudanças imediatas
de mostrar suas opiniões, e eles rejeitaram, nem a curto prazo, mas as várias mudanças
sem lugar para dúvidas, o esquema de Sun- que defendeu em um ou outro momento
ningdale. O executivo restaurado sobreviveu apontavam naquela direção. Thatcher, por
por um tempo, mas foi derrubado por mani- outro lado, acreditava que a primeira tare-
festações protestantes e uma greve geral con- fa era controlar a violência pela força, e sua
tra o poder compartilhado, levando a uma disposição de cogitar a mudança, mesmo a
declaração de estado de emergência. A res- longo prazo, estava rigidamente limitada por
posta de Londres foi mandar mais soldados e seu argumento – conhecido das Falklands
retomar o governo direto, as duas coisas que (Malvinas), embora menos inflexível do que
menos queria fazer. em Gibraltar e descartado em Hong Kong –
A partir do inverno de 1972-1973, am- que as políticas britânicas deveriam ser su-
bos os lados dentro da província produziram bordinadas aos desejos da maioria nos terri-
grupos que estavam tentando estabelecer tórios em questão. Quando, em 1984, o New
contato entre si, mas eram experimentais e Ireland Forum, uma associação de partidos
submersos para serem escutados em meio ao republicanos irlandeses, apresentou uma sé-
choque de armas e retórica. Foram providen- rie de possíveis fórmulas para a manobra po-
ciadas tréguas, mas funcionaram mal e por lítica apontando em direção à unificação ou
pouco tempo. Os ingleses deram à sua impo- um domínio compartilhado no norte, Tha-
tência uma cara de bravura e justificaram sua tcher as descartou com muita aspereza. Não
presença, com alguma plausibilidade super- obstante, um ano mais tarde, ela e Fitzgerald
ficial, prevendo o banho de sangue que acon- concordaram, no acordo de Hillsborough,
teceria se eles fossem embora. Que isso acon- em estabelecer um órgão conjunto ou “confe-
teceria em algum momento parecia óbvio a rência ministerial” de caráter permanente. O
todos, menos a eles mesmos, uma repetição propósito prático imediato desse acordo era
da cegueira dos franceses em relação à rea- melhorar a cooperação policial e o controle
lidade do seu controle sobre a Argélia. Que de fronteiras, seu propósito mais amplo era
eles deveriam sair mais cedo ou mais tarde marginalizar o IRA. Sua implicação inevitá-
era um argumento que a maioria deles não vel era um papel cada vez maior da Repú-
estava preparada para aceitar. Em 1980, dois blica da Irlanda nas questões da Irlanda do
novos primeiros-ministros, Margaret Tha- Norte. O governo britânico, buscando ajuda
tcher e Charles Haughey, estavam tentando em Dublin para a primeira questão, estava
conceber uma maneira de furar o bloqueio disposto a permitir que a República se tor-
criado pela reivindicação dos protestantes – nasse parceira em algumas das questões da
aceita por todos os governos britânicos – de província. Os governos irlandeses se senti-
que, sendo maioria dentro da província, ti- ram pressionados a cooperar com os britâni-
nham direito democrático de vetar mudan- cos, já que o status quo era, do ponto de vis-
ças na Constituição. As discussões continua- ta da República, menos arriscado do que as
ram depois de uma mudança em Dublin, de alternativas, por um lado, a guerra no norte
Haughey a Garret Fitzgerald, mas os dois go- levando à vitória dos protestantes ou da ex-
vernos estavam muito distanciados, não em trema direita ou, por outro, uma união que
função de atitudes divergentes com relação à daria à República um milhão de dissidentes
violência, mas em função de suas pressupo- protestantes e a arruinaria.
294 | PETER CALVOCORESSI

Revelações de graves erros judiciais nos Irlanda nem na Inglaterra, e congelou – pelo
tribunais ingleses, que nem Fitzgerald nem menos por alguns anos – as tentativas de
Haughey (que voltou ao cargo em 1987) po- dar fim ao governo direto. A campanha do
deriam deixar passar com facilidade, torna- IRA – que incluiu uma tentativa de matar
ram o acordo inesperadamente impraticável Thatcher e outros ministros em Brighton
para o governo irlandês, mas seu principal em 1984, intensificou a violência com armas
impacto se deu sobre os Unionistas, que o importadas e explosivos a partir de 1988, e
consideraram uma depreciação da sobe- foi respondida com tentativas dos britânicos
rania britânica na Irlanda do Norte e um de prender e matar seletivamente ativistas
abandono do apoio britânico ao protestan- importantes do IRA – mantinham o con-
tismo arraigado. Os Unionistas lançaram- flito vivo, mas com poucas perspectivas do
-se a destruir o acordo, condicionando a sucesso que buscava o IRA. Apesar de seu
continuidade das discussões à sua anulação. nome, o IRA não era um exército e não po-
Profundamente hostis ao envolvimento de deria desalojar o exército britânico, que pre-
Dublin nas questões da província em qual- cisou mandar à Irlanda não mais do que 15
quer nível, os líderes unionistas esperavam a 20 mil soldados (aumentados um pouco a
anular o acordo ao não cooperar com o se- cerca de 30 mil para uma operação especial
cretário de Estado britânico. O governo bri- em 1972).
tânico nunca afirmou de forma convincente A partir do final dos anos de 1980, um
que estava decidido a manter a província no setor dos nacionalistas que incluía Gerry
reino Unido, e, embora o acordo dispusesse Adams, presidente do Sinn Fein – o braço
que o “status da Irlanda do Norte” não se- político do nacionalismo irlandês – con-
ria alterado sem o consentimento de uma venceu-se de que seus objetivos políticos
maioria dentro dela, os Unionistas respon- não estavam sendo conquistados com a
diam apontando o artigo na Constituição ação militar. Eles também se convenceram
irlandesa que descrevia a Ilha como um de que o governo britânico não tinha mais
todo como território de uma única nação razões estratégicas nem militares para pre-
– uma disposição que, segundo o Supremo servar o poder na Irlanda do Norte, embora
Tribunal em Dublin, dava ao governo irlan- a Grã-Bretanha, contra os desejos de uma
dês o dever de reintegrar a Irlanda. Para os maioria de pessoas da província, não fosse
Unionistas, o governo britânico foi hipócri- entregar o poder. Os britânicos, contudo,
ta quando assinou o acordo anglo-irlandês estavam profundamente desconfiados dos
sem garantir, ou mesmo pedir, a anulação nacionalistas e, por coincidência, o gover-
desse artigo. Portanto, um efeito do acordo no de John Major passou a depender dos
era marginalizar não o IRA, mas os Partidos votos dos Unionistas irlandeses na Câmara
Unionistas. Esses, contudo, equivocavam-se dos Comuns depois que as eleições de 1992
em sua crença de que poderiam destruir o o deixaram com uma maioria precária em
acordo, já que os britânicos se recusavam a debates sobre o Tratado de Maastricht.
suspender, até mesmo temporariamente, as A representação norte-irlandesa em
conferências conjuntas que estavam mar- Westminster foi mais do que dobrada por
cadas com ministros e representantes. O Callaghan (em grande parte, a pedido do
acordo pouco logrou em termos de policia- ex-Conservador que passou a defender o
mento da fronteira de maneiras que só eram Unionismo do Ulster, Enoch Powell), e os
possíveis sem ele. Não conseguiu interrom- Unionistas usavam seu poder parlamentar
per nem reduzir os assassinatos do IRA na para bloquear propostas de administração
POLÍTICA MUNDIAL | 295

anglo-irlandesa conjunta na Irlanda do e John Hume, líder do (Católico) Partido


Norte. Eles desconfiavam das tentativas de Social-Democrata e Trabalhista (Social
Londres de dar um fim à luta por meio de Democratic and Labour Party, SDLP) na
concessões a Dublin, que tinham boa popu- Irlanda do Norte e membro do Parlamento
laridade na Grã-Bretanha, onde a simpatia Britânico, apresentaram um conjunto (não
pelos protestantes recuou quando eles, em publicado) de propostas de paz. Em res-
1992, pela primeira vez, mataram mais ca- posta indireta, os primeiros-ministros bri-
tólicos do que o contrário. A longo prazo, tânico e irlandês emitiram uma declaração
os Unionistas foram obrigados a cogitar que representava uma oferta de discussões,
uma mudança demográfica à medida que desde que o IRA renunciasse antes à vio-
os católicos se encaminhavam para superar lência de forma inequívoca e permanente.
a maioria protestante em não mais do que No que parecia tergiversação, o IRA pediu
uma geração. Por fim, o apoio que o conflito esclarecimentos, o que os dois governos se
armado tinha na província, que datava de recusaram a dar sem essa renúncia prévia e
muito tempo atrás, estava enfraquecendo, propuseram que mudanças constitucionais
a política se tornava secularizada, os líde- na Irlanda fossem submetidas ao povo ir-
res podiam contar menos com a demagogia landês como um todo, e não separadamente
sectária, e os medos e a desconfiança dos em um plebiscito no norte. Esse argumento
protestantes do norte em relação aos cató- era claramente inaceitável aos britânicos e
licos estavam começando a ser suavizados à não conseguiu dividir Londres e Dublin – se
medida que o poder político na República era esse seu propósito – ainda que a segunda
da Irlanda escapava de uma Igreja superpo- estivesse convencida, mas a primeira não,
derosa e supersecreta para uma classe polí- de que Adams falava honestamente e tinha
tica secular. condições de chegar a um acordo de paz. A
Em Dublin, uma revolta contra Hau- cautelosa protelação de Major tinha o apoio
ghey em 1991, embora fracassando inicial- geral do Partido Trabalhista Britânico, e ele
mente, garantiu sua saída e sua substituição conseguiu conquistar a confiança de James
por Albert Reynolds como líder do Fianna Molyneaux, líder do maior partido protes-
Fail (partido republicano) e Taoiseach (pri- tante da província, reduzindo a importân-
meiro-ministro). As eleições prejudicaram cia de Ian Paisley e sua facção, que eram de
a posição de Reynolds no Dail (a Câmara muito conflito e pouca colaboração. Quan-
Baixa) a ponto de ele ser obrigado a dar um do o IRA proclamou um cessar-fogo em
peso substancial em seu gabinete, e o mi- 1994, as táticas de Major pareceram, por um
nistério das relações exteriores, ao Partido tempo, serem justificadas.
Trabalhista, liderado por Dick Spring. Essa A transformação gradual da situação
coalizão se desagregou de forma amarga em residia em uma mudança de grande porte,
1994, e um novo governo foi formado por que enfrentava novos obstáculos. À medida
John Bruton, líder do partido Fine Gael, que a década de 1990 avançava, ficou claro
em coalizão com o Partido Trabalhista e o que a força motriz era o estabelecimento de
pequeno, novo e socialista Esquerda Demo- um acordo permanente e sintonizado entre
crática. Por trás dessas mudanças, os líderes os governos britânico e irlandês, conside-
irlandeses insistiam em aplicar o que consi- rado pelos protestantes no norte como me-
deravam uma oportunidade de trégua e paz canismo de concessões ao nacionalismo ir-
permanente. As esperanças cresceram quan- landês e o previsível abandono por parte da
do, em uma série de reuniões entre Adams Inglaterra da união com a Irlanda do Norte.
296 | PETER CALVOCORESSI

Durante dois anos, os governos trabalha- zação do problema da Irlanda do Norte, em


ram com afinco em um documento conjun- primeiro lugar, por sua afirmação da coope-
to a ser apresentado a todas as partes, como ração mais próxima possível com o governo
base para discussões sobre o futuro gover- irlandês e, segundo, por recrutar um comitê
no da província. Ele foi publicado em 1995 internacional presidido por um ex-senador
e chocou, não apenas o partido de Pais- norte-americano (George Mitchell) para
ley, mas também os Unionistas do Ulster ajudar a dar início e conduzir conversações
(UUP) de Molyneaux, em função de suas entre todos os partidos.
propostas de autoridades anglo-irlandesas O cessar-fogo do IRA durou 17 meses
conjuntas para coordenar problemas admi- (1994-1995) e testemunhou grandes atos
nistrativos como controles de fronteiras. O de violência na Irlanda e na Grã-Bretanha,
governo britânico apresentava esse “marco mas não as chamadas surras de punição a
geral” como não mais do que a base para indivíduos – inescrupulosas, cruéis e nume-
uma conferência em que todos os partidos rosas, realizadas por ambos os lados – nem
poderiam apresentar outras propostas. Ele foi reforçado por impulso político ou qual-
enfatizava as salvaguardas aos Unionistas quer desarmamento. Em 1995, Molyneaux
em sua insistência de que quaisquer pro- renunciou à liderança ao UUP, para ser su-
postas deveriam ser endossadas pelos par- cedido por David Trimble, um político com
tidos políticos do norte, por um referendo raízes na Ordem de Orange, a irmandade
no norte e pelo Parlamento Britânico. Mas simbólica dedicada à celebração de remotas
os Unionistas, cuja capacidade de barganha vitórias protestantes. Trimble era inteligente
se baseava em seu poder de veto em uma e relativamente jovem, mas seus seguidores
Câmara dos Comuns de equilíbrio delica- estavam divididos, nenhum de seus colegas
do, cujo mandato chegava ao fim, estavam de partido no Parlamento Britânico tinha
alarmados por elementos pan-irlandeses no votado nele, ele estava receoso de perder vo-
documento-marco e pela evidente queda na tos para Paisley e outros Partidos Unionistas
simpatia por eles no resto do reino Unido, e era mais inclinado, por temperamento e
onde eram retratados como militaristas de pelas circunstâncias, às manobras do que à
mentirinha, temperados por fundamen- ousadia. Como os protestantes tinham uma
talismo protestante. Entre os protagonis- profunda desconfiança em relação às pro-
tas – o governo britânico e o IRA – havia messas e às tréguas do IRA, e se recusavam
pouca confiança, de forma que o progresso a ver que qualquer entrega de armas dos na-
era lento e ficou ainda mais lento ao entrar cionalistas antes que houvesse negociações
na agenda uma questão central a ambos: a era uma ilusão, Trimble estava desprotegido
entrega prévia das armas. Nesse momento, e perdendo força.
Major assumiu uma postura que, por ser O principal objetivo de Blair ao assumir
mais compatível com a entrega do que com o cargo era dar início às conversações. Ele
a negociação, era completamente inaceitá- estabeleceu relações sólidas com um novo
vel ao IRA, de forma que o primeiro-mi- primeiro-ministro irlandês, Bertie Ahern;
nistro perdeu a oportunidade que ele tanto fixou uma data para o início das conversa-
contribuíra para criar: sua dependência dos ções; insistiu em que o Sinn Fein não fosse
votos dos Unionistas irlandeses na Câmara admitido se o IRA não declarasse e man-
dos Comuns era um elemento importante tivesse um cessar-fogo com credibilidade;
nesse dilema. O principal resultado positivo adotou, com Ahern, o novo princípio de
do mandato de Major foi a internacionali- que o desarmamento deveria avançar junto
POLÍTICA MUNDIAL | 297

com as negociações; e propôs uma comis- reino Unido, da República da Irlanda, da


são separada, presidida por um canadense, Irlanda do Norte, da Escócia e do País de
para assessorar a forma como isso deveria Gales. Em termos amplos, essa iniciativa re-
ser feito. No verão de 1997, a Ordem de novada reconhecia que a tentativa de resol-
Orange deu uma contribuição importante ver o problema através de uma abordagem
ao discurso de paz ao reduzir suas exigên- anglo-irlandesa tinha fracassado e buscava,
cias de realizar passeatas provocadoras (que em vez disso, diluí-la em um contexto am-
ela chamava de caminhadas) atravessando pliado. As propostas, na prática, descarta-
áreas católicas, e o IRA proclamou um novo vam uma Irlanda unida independente no
cessar-fogo que possibilitou que o gover- futuro próximo. A presidência de George
no britânico convidasse o Sinn Fein para Mitchell, a determinação ativa dos dois
as conversações que teriam início algumas primeiros-ministros agindo (na maior par-
semanas depois. Trimble não gostava das te do tempo) em sintonia e o cansaço das
propostas de desarmamento, já que elas não pessoas em relação à guerra produziram
garantiam a entrega de uma arma sequer, um acordo sobre o status constitucional da
mas (diferentemente de Paisley) relutava Irlanda do Norte e a distribuição de poder:
em excluir seu partido das negociações. o acordo da Sexta-Feira Santa, de 1998. A
Para os Unionistas, todo o foco do proble- província deveria permanecer como parte
ma estava no IRA, que eles consideravam do reino Unido até que uma maioria de seu
como uma força armada ilegal que visava a eleitorado tomasse uma decisão diferente.
acabar com a união entre a Irlanda do Nor- O poder seria compartilhado, o monopólio
te e a Grã-Bretanha, a uni-la à República da protestante acabou e teve início um novo
Irlanda e, assim, dar um fim à dominação regime, sob uma coalizão de Unionistas do
da comunidade protestante. Sua determi- Ulster e o Partido Social-Democrata e Tra-
nação fixa era derrotar o plano anglo-irlan- balhista (e, talvez, outros partidos menores,
dês, que poderia ter aberto caminho para incluindo o Sinn Fein), decisões importan-
uma Irlanda unida fora do reino Unido. tes demandariam o apoio de 60% de Nacio-
No inverno de 1997-1998, as conversações nalistas e Unionistas no Parlamento.
projetadas estiveram perto de ser abando- A República da Irlanda abandonaria a
nadas quando os partidos tergiversavam e reivindicação de unidade irlandesa que es-
as mortes recomeçaram; mas, graças, prin- tava escrita em sua Constituição e, em vez
cipalmente, à diplomacia determinada no disso, adquiria uma posição especial em re-
lado britânico e à relutância dos partidos lação à Irlanda do Norte, por meio de parti-
da Irlanda do Norte a parecer responsáveis cipação em um Conselho Ministerial Nor-
pelo retorno à guerra civil, todos eles foram te-Sul que, mesmo sendo uma espécie de
reunidos e os governos da Grã-Bretanha e anomalia na relação entre Estados sobera-
Irlanda apresentaram propostas constitu- nos, parecia mais um comitê de esforço ad-
cionais (razoavelmente) novas. Elas eram: ministrativo do que o terreno fértil da união
um novo parlamento ou assembleia na Ir- política. O Conselho das Ilhas Britânicas
landa do Norte, com poderes legislativos e permanecia nas brumas em que fora conce-
participação garantida para Nacionalistas, bido. Todos os prisioneiros políticos deve-
e Unionistas; um órgão interfronteiras per- riam ser libertados no prazo de dois anos,
manente em nível ministerial, com poderes desde que os órgãos a que pertenciam não
executivos em esferas limitadas; e um con- recorressem à violência. O desarmamento
selho geral composto de representantes do deveria começar dentro de um ou dois me-
298 | PETER CALVOCORESSI

ses, mas poucas pessoas achavam que iria tre os que insistiam literalmente na fórmula
longe. Esse era um plano para pôr fim ao “sem desmobilização não há autonomia” e
conflito armado e para terminar com a dis- outros, dispostos a chegar a um meio-termo
criminação anticatólica. Não resolveu nem para salvar o Acordo da Sexta-Feira Santa.
tratou da questão da unidade irlandesa. Os Trimble obteve uma pequena maioria no
Nacionalistas o consideravam mais aceitável conselho de seu partido em favor da criação
do que os Unionistas. A maiorias destes es- imediata de um governo autônomo, e o IRA
perava chegar a seus objetivos por meio de indicou um emissário à comissão de desmo-
mudanças democráticas em vez de violên- bilização presidida pelo general canadense
cia, a proporção de católicos na província já Jean de Chastelain. Essas ações foram sufi-
tinha chegado a 45%. Entre os Unionistas, cientes para produzir a autonomia, mas o
contudo, provavelmente mais da metade Conselho Unionista limitou seu endosso às
estava descontente com o acordo por uma políticas de Trimble ao insistir que, se após
razão ou outra, mas não o suficiente para três meses não fosse feito nenhum progresso
votar contra ele no referendo que se seguiu à importante na desmobilização, o executivo
sua conclusão. O acordo serviu para ganhar autônomo seria dissolvido. Um Conselho
tempo. Uma atrocidade especialmente apa- Norte-Sul de Ministros Irlandeses se reuniu
vorante por parte de um grupo nacionalista pela primeira vez e formou-se o Conselho
de menor importância em Omagh fez com das Ilhas, de sete partidos – acrescentando-
que a violência caísse ainda mais em descré- -se Escócia, Gales, Ilha de Man e Ilhas do
dito, mas também serviu como lembrete da Canal à nova estrutura constitucional, mas a
continuidade da disposição dos Nacionalis- paz ainda dependia de se garantir uma des-
tas de recorrer a ela ou, pelo menos, de pre- militarização adequada em curto prazo.
servar sua capacidade de fazê-lo. A maior O Acordo da Sexta-Feira Santa foi bem
ameaça ao acordo estava no fato de que a recebido por todas as pessoas cujo principal
facção mais bem armada – o IRA – tinha desejo era a paz, mas recebeu a aversão dos
menos razões para estar satisfeita, pois ele membros do IRA que o viam como afirma-
em quase nada avançava na unificação da ção da posição inglesa na Irlanda do Norte.
Irlanda. Como o IRA não fazia parte dele, o acordo
Foram necessários dois anos para se não era includente nem conclusivo, mas,
chegar ao Acordo da Sexta-Feira Santa e ou- ainda assim, representava um grande afas-
tros 18 meses para colocá-lo em operação tamento das mentalidades de beligerância,
com o estabelecimento de um governo au- em direção a hábitos de negociação e coo-
tônomo. O ponto central era a entrega das peração. Era o início do fim de uma crise
armas. O IRA, que não fazia parte dos pro- que durou mais de meio século. A Irlanda
cedimentos, recusava-se a entregar as suas e do Norte permaneceria, talvez por pelo
os Unionistas de David Trimble se recusa- menos outro meio século, como parte do
vam, como resultado, a formar um governo reino Unido. O IRA fracassou na expulsão
que incluísse o Sinn Fein, argumentando dos britânicos e na criação de uma Irlanda
que a desmobilização de armas por todos unida. O ponto de inflexão fundamental
os grupos paramilitares era uma precondi- foi a decisão dos dois primeiros-ministros
ção pactuada à criação de um executivo e britânicos – Major e Blair – de defender o
que o Sinn Fein era, como o IRA, uma par- princípio de que a Grã-Bretanha não dei-
te intrínseca do movimento nacionalista. O xaria a Irlanda do Norte contra o desejo de
Partido Unionista do Ulster se dividiu en- seu povo, e que essa determinação ficaria
POLÍTICA MUNDIAL | 299

clara ao IRA e ao governo irlandês de for- de 1960, 16 pessoas, a maioria de classe mé-
ma discreta e crível; deu-se um fim à sus- dia e alguns deles padres, foram levadas a
pensão do Estado de Direito, à tortura e a julgamento, em 1970, em um tribunal mi-
retórica política exagerada. O IRA perdeu, litar em Burgos, acusadas de assassinato,
em função de seu próprio gangsterismo, atentados com bomba, posse ilegal de ar-
parte da simpatia de que tinha desfruta- mas e propaganda ilícita. O julgamento du-
do na província como um todo, enquanto, rou vários anos e deu um impulso ao ETA,
dentro de suas fileiras, alguns líderes come- que, em 1973, levou a guerra à capital espa-
çaram a reconhecer que os britânicos não nhola e assassinou o primeiro-ministro de
poderiam ser expulsos à força. Também o Franco, o almirante Carrero Blanco. Depois
governo irlandês, principalmente o pró- da morte de Franco, o novo regime promul-
prio Ahern, convenceu-se da honestidade e gou outra Constituição (1978) que dividia a
da irremovibilidade do governo britânico. Espanha em regiões, duas delas com auto-
Provavelmente, os britânicos sempre tive- nomia especialmente ampla – a Catalunha
ram mais cartas para jogar do que o IRA; e o País Basco. A ala política do ETA, Herri
certamente, aprenderam a jogá-las com in- Batasuna, teve entre 12 e 14% dos votos em
teligência e paciência. (Com relação à tor- áreas bascas em sucessivas eleições nas dé-
tura, etc, ver mais no Capítulo 14 sobre a cadas de 1980 e de 1990, enquanto os ativis-
Guerra do Iraque.) tas continuavam em busca de independên-
cia por meio da violência, que, diante da
B. Bascos brutalidade policial, criou uma guerra civil
semissuprimida.
Os bascos são um povo de origem desco- Em 1998, o ETA, aparentemente in-
nhecida e uma aguçada consciência de fluenciado pelos desdobramentos pacíficos
si mesmos. Preservaram uma identidade dos eventos na Irlanda do Norte, declarou
cultural com base em uma língua sem as- um fim permanente da violência, mas, de-
sociações com outras e em reivindicações pois de 14 meses, reverteu esse gesto.
históricas românticas. Montados sobre os
Pirineus ocidentais, estão complacentes na C. Chipre
França, mas efervescentes na Espanha. Um
movimento nacionalista, no final do sécu- Em 1878, Disraeli, estimulado pela opinião
lo XIX, reivindicava independência para militar britânica, cogitava a tomada de Chi-
os bascos, na França e na Espanha, sob o pre, mas conseguiu garanti-la por meio da
nome de Euzkadi. A repressão do regime de diplomacia. Às vésperas do Congresso de
Franco levou à divisão entre os que estavam Berlim, ele chegou a um acordo com os tur-
dispostos a aceitar um Estado dentro do cos para defender o império deles contra a
Estado espanhol e os que queriam insistir Rússia, desde que tivesse permissão para
na independência, se necessário, por meio ocupar o Chipre, o que, para os britânicos
da violência. Os secessionistas criaram, em daqueles tempos, era a chave para a Ásia
1959, o “Terra Basca e Liberdade” ou ETA. Ocidental. A Grã-Bretanha, observando o
Essa divisão foi agravada pela prosperidade colapso do Império Otomano ou, como al-
que, na década de 1890, gerou um influxo ternativa, sua substituição pela influência
de trabalhadores não bascos para competir alemã ou britânica na Porta Sublime, estava
por trabalhos oferecidos em Burgos e arre- em busca de posições avançadas no Medi-
dores. Depois da violência no final dos anos terrâneo Oriental. A ocupação do Chipre
300 | PETER CALVOCORESSI

em 1878 foi seguida, alguns anos mais tar- gligenciada e pelo receio de que as conces-
de, pela ocupação do Egito, e os britânicos sões aos cipriotas tivessem consequências
permaneceram em ambos por quase três preocupantes em outros postos avançados
gerações. do império. Eles insistiam em preservar a
O Chipre foi anexado pela Grã-Bre- soberania integral de forma indefinida e
tanha em 1914, a partir da declaração de inquestionável, e acreditavam, equivocada-
guerra entre ela e a Turquia, que reconhe- mente, poder impedir a Grécia de levantar
ceu a soberania britânica pelo Tratado de a questão do Chipre na ONU apelando às
Lausanne em 1923. Entre as guerras, o boas relações anglo-gregas e a ameaças ve-
domínio britânico foi desafiado pelos par- ladas de incluir a Turquia na equação. A re-
tidários da enosis, ou união com a Grécia, sistência ativa à Grã-Bretanha era estimula-
mas nunca foi gravemente ameaçado. Para da pelos nacionalistas na Grécia (incluindo
os britânicos, o Chipre era uma colônia que a rádio ateniense), por religiosos ortodoxos
poderia receber gradualmente o direito de mais militantes e pela intransigência que
autogoverno compatível com sua utilidade alienava grande quantidade dos cipriotas
como lugar de escalas e uma base no sis- passivos, que detestavam a violência, mas
tema do Império Britânico. Para a parte estavam afinados com os ativistas na exi-
grega da população, contudo, os próprios gência de pelo menos um reconhecimento
britânicos e seu programa de desenvolvi- de seu direito de dar um fim ao domínio
mento limitado eram uma afronta aos seus britânico.
direitos. A minoria turca era espectadora Em 1946, o bispo exilado de Kyrenia
do conflito anglo-grego. No final da Segun- retornou à ilha e, em 1950, aos 37 anos,
da Guerra Mundial, a estimativa britânica foi eleito para o trono de arcebispo que es-
sobre o valor do Chipre aumentou, como teve vago entre 1937 e 1947, assumindo o
resultado de sua retirada da Palestina e da nome real de Makarios III e se tornando,
fragilização de sua posição no Egito. Por- ao mesmo tempo, etnarca, ou líder nacio-
tanto, os britânicos pressupunham que nal. Como todos ao greco-cipriotas, ele es-
deveriam manter sua soberania sobre o perava apoio da Grécia para as discussões
Chipre. Os greco-cipriotas, entretanto, es- com a Grã-Bretanha ou, se isso não tivesse
peravam uma recompensa por sua lealdade resultado satisfatório, para internacionali-
à Grã-Bretanha durante a guerra e conside- zar a questão levando-a à ONU. Nenhum
ravam a retirada britânica do Egito como governo grego poderia se negar a esse dever
um prelúdio a uma revisão negociada da patriótico, por mais que relutasse em preju-
posição britânica no Chipre. dicar as boas relações com a Inglaterra. Em
Os cipriotas, de modo geral, não eram 1950, um plebiscito organizado pela Igreja
hostis à Grã-Bretanha nem muito atraídos teve a resposta inevitável (mas não falsa, se-
à alternativa de governo de Atenas, mas in- gundo imaginavam os iludidos ingleses) em
sistiam em seu direito de votar sobre sua favor da enosis, e o primeiro-ministro gre-
situação em alguma data estabelecida, mas go, general Nicholas Plastiras, respondeu a
não necessariamente imediata. Eles esta- ela de forma igualmente inevitável, em um
vam dispostos a permitir bases militares tom de incentivo e moderação misturados.
britânicas em sua ilha. Os britânicos eram Sobre o caráter grego do Chipre, nenhum
prejudicados por ignorarem grande parte grego pensaria duas vezes. Quatro em cada
dos sentimentos de seus súditos, pela ina- cinco cipriotas eram gregos em termos de
dequação de uma força policial muito ne- roça, língua e religião. Fossem eles apoia-
POLÍTICA MUNDIAL | 301

dores do partido esquerdista AKEL (Par- discussão e o secretário colonial afrontou o


tido Progressista do Povo Trabalhador) ou governo grego afirmando que a Grécia era
do direitista KEK (Partido Nacionalista do instável demais para que fosse permitido
Chipre), eles tinham um nacionalismo co- ampliar sua influência no Chipre. A seguir,
mum, pelo qual em pouco tempo lutariam o governo grego levantou a questão da auto-
juntos no movimento insurrecional EOKA, determinação do Chipre na ONU, mas sem
a Organização Nacional dos Combatentes muita convicção e sem insistir no caso, que
pela Liberdade. foi arquivado.
A parte turca da população (18%) tam- Enostistas decepcionados organizaram
bém estava ciente do caráter grego da ilha, manifestações que evocaram uma reação
mas tirava conclusões opostas dos mesmos exagerada por parte dos britânicos (incluin-
fatos. Eles temiam o domínio grego. Es- do medidas tomadas contra crianças em
ses temores não eram grandes nos primei- idade escolar). Os britânicos em Nicosia e
ros anos pós-guerra, mas estavam latentes em Londres acreditavam que o movimento
e eram facilmente inflamáveis. O Estado da enosis era uma bolha que estourava na
turco, ao contrário dos turcos de Chipre, cara deles em função de um grupo peque-
também temia a enosis porque o Chipre es- no e não representativo de agitadores irres-
tava a apenas 60 km da costa turca, porque ponsáveis que tinham conseguido assustar
a Grécia pós-guerra parecia, por um curto grande parte de uma população majorita-
período, que estava exposta ao comunismo riamente favorável aos britânicos. Isso era,
e porque os gregos ainda poderiam alimen- no mínimo, uma interpretação gravemente
tar a ambição de conquistar Constantinopla equivocada, assim como a avaliação que os
e a costa da Ásia Menor (o que tentava fa- britânicos faziam do valor do Chipre como
zer imediatamente após a Primeira Guerra base, a ilha, embora útil como quartel-gene-
Mundial). Mas os governos turcos demons- ral de comando (o quartel-general das for-
travam pouca inclinação para intervir nas ças terrestres e aéreas do Oriente Médio foi
questões cipriotas até serem incentivados a transferido para lá em 1954) e como ponto
fazê-lo pela Grã-Bretanha. de escala aérea, era um país pobre com par-
Em 1951, o governo grego buscou uma cos recursos, uma base naval inadequada
forma de satisfazer os cipriotas e seus alia- (a Baía de Famagusta era muito rasa) e vi-
dos britânicos oferecendo à Grã-Bretanha sivelmente vulnerável a um ataque russo. A
bases no Chipre – e também na própria Gré- Guerra de Suez, de 1956, mostrou que tinha
cia – em troca da enosis, mas Eden não se algum valor para a Royal Air Force (RAF),
interessou por essa solução, que poderia ter mas nenhum outro.
poupado muito derramamento de sangue. Em 1955, Eden e seu ministro do exte-
Em 1953, ele exacerbou a situação decla- rior, Harold Macmillan, envolveram oficial-
rando que não havia possibilidade de uma mente o governo turco na questão. Os gover-
retirada britânica, e essa declaração forçou nos grego e turco foram convidados a uma
os gregos a decidir entre uma aceitação in- conferência em Londres, onde esse se opôs a
definida da posição existente e um recurso qualquer solução aceitável àquele. Os resul-
à violência para mudá-la. Makarios tentou tados foram o colapso nas relações greco-
um caminho intermediário. Em 1954, foi a -turcas, atrocidades contra os gregos residen-
Atenas para fazer com que o governo gre- tes na Turquia, boicote grego às reuniões do
go levantasse a questão cipriota na ONU. Pacto dos Bálcãs e a exercícios da OTAN, o
Eden repetiu que não era possível nenhuma envio de unidades do exército britânico para
302 | PETER CALVOCORESSI

o Chipre, uma escalada da violência antibri- os cipriotas escolhessem como e por quem
tânica na ilha. No Chipre, o governador e deveriam ser governados.
o arcebispo se reuniram pela primeira vez, Como Cavour depois da Guerra da Cri-
um secretário colonial britânico foi à ilha meia, Grivas assumiu a visão de que seus
pela primeira vez e foi indicado um novo compatriotas tinham pago pela autodeter-
governador – sir John Harding, marechal de minação com sangue, e, quando viu que a
campo e ex-chefe do Estado-Maior imperial. visão dos britânicos era diferente, saiu a
A política que ele deveria implementar era derramar mais sangue. Ele decidiu recor-
separar o etnarca-arcebispo do movimento rer à violência em 1951, segundo sua pró-
insurrecional que tinha surgido em 1954, pria descrição, mas planejou com cuidado
negociando com um e acabando com o ou- profissional, realizou um amplo e aberto
tro. Essa política, aplicada até o final de 1957, reconhecimento do terreno e esperou até
baseava-se em falsas premissas e má infor- 1954 antes de fazer sua primeira compra
mação, e foi abandonada em determinado de armas e estabelecer um quartel-general
momento pelos britânicos. As negociações em um subúrbio de Nicosia onde residiam
Harding-Makarios estavam avançando no principalmente famílias britânicas. Ele lan-
início de 1956, rumo a uma conclusão, quan- çou sua revolta em 1955, sobreviveu a uma
do o governo britânico interveio e decre- onda contra ele na época da deportação de
tou a deportação do arcebispo para as Ilhas Makarios, em 1956, e imediatamente reagiu.
Seychelles. Eden parecia ter sido influencia- Suas principais armas eram a sobrevivência
do nessa conjuntura por pressões da ala di- em condições adversas, disciplina e terroris-
reita do Partido Conservador, pela demissão mo, suas vítimas eram frequentemente civis
do General Glubb pelo rei da Jordânia (que gregos, seu arsenal e seu pessoal de linha de
Eden interpretou como um sinal deliberado frente, sempre pequenos. Ele provocava os
a seu governo) e por não conseguir trazer a britânicos para que tomassem medidas de
Jordânia à sua preciosa criação: o Pacto de retaliação que fracassaram – multas coleti-
Bagdá. Ele decidiu dar uma lição a seus ini- vas a aldeias, subornos altos, mas ineficazes,
migos, principalmente Makarios e Nasser, enforcamentos e torturas. Derrotou a políti-
mas o primeiro foi libertado no ano seguinte, ca que Harding deveria implementar.
para desgosto dos turcos e sem qualquer van- No decorrer do ano em que Makarios
tagem que compensasse, já que o arcebispo estava nas Seychelles e o duelo Harding-
se recusava a voltar ao Chipre e passou a re- -Grivas estava acontecendo, ocorreram os
sidir em Atenas. primeiros levantes greco-turcos e o governo
As tentativas dos britânicos de subjugar britânico começou, embora involuntaria-
a insurreição foram igualmente inócuas. mente, a transferir a iniciativa de Londres
Essa revolta era liderada pelo coronel Gri- para Ancara e Atenas. Durante o ano de
vas, um oficial do exército grego, cipriota de 1956, Eden apresentou um plano segundo
nascimento, que estava disposto a expulsar o qual Chipre teria direito à autodetermina-
os britânicos com uma combinação de ha- ção depois de 10 anos de autogoverno, mas,
bilidade militar, fé e crueldade. Grivas tinha em vez de aplicar seu esquema, ele o subme-
lutado do mesmo lado dos britânicos em teu à aprovação dos governos turco e grego.
duas guerras, e ficou indignado ao descobrir O primeiro o rejeitou, anulando-o. Poste-
que, apesar da Carta da ONU e de frequen- riormente, no mesmo ano, novas propostas,
tes promessas no passado, a Grã-Bretanha elaboradas pelo eminente juiz britânico Lor-
não tinha qualquer intenção de permitir que de Radcliffe, foram igualmente submetidas
POLÍTICA MUNDIAL | 303

aos dois governos. O Plano Radcliffe rejeita- presentantes dos governos grego e turco
va a autodeterminação e mencionava a divi- junto com o governador britânico e criar
são, e também foi rejeitado pelos gregos, en- um gabinete misto, bem como administra-
quanto a Turquia foi fortalecida para sugerir ções cipriotas locais: gregas e turcas. Essa
que metade do Chipre, ou toda a ilha, de- última disposição era inaceitável a Makarios
veria ser anexada ao país. Os gregos, muito e ao primeiro-ministro grego Constantine
alarmados, ameaçaram abandonar o campo Karamanlis. Os turcos responderam insti-
ocidental. Em 1957, o general Sir Hastings gando rebeliões para pressionar os britâni-
Ismay, secretário-geral da OTAN, ofereceu- cos a aplicar seu plano de qualquer maneira.
-se para mediar, mas, embora os turcos es- A revolução em Bagdá, em julho de 1958,
tivessem dispostos, os gregos não estavam. pode ter feito o governo britânico inclinar-
Os primeiros acreditavam que a maioria dos -se mais ao lado turco, sob ameaça de per-
membros da OTAN era simpática à Tur- der seu aliado iraquiano e de colapso do
quia; os gregos, que sua causa prevaleceria Pacto de Bagdá, e Macmillan saiu em uma
na ONU, mas não na OTAN. Houve impas- viagem durante a qual pouco modificou seu
se e mais desordens e assassinatos. O gover- plano e não conseguiu fazer com que Maka-
no de Harold Macmillan revisou a política rios ou Karamanlis concordassem com ele,
de Eden para o Chipre e, diante da ameaça mas decidiu aplicá-lo. A violência aumentou
ao flanco oriental da OTAN, decidiu que a de forma terrível.
Grã-Bretanha não mais precisaria ser sobe- O ódio local que se espalhava chocou e
rana em toda a ilha. As bases soberanas já alarmou os governos da Grécia e da Turquia
seriam suficientes e os governos grego e tur- forçando-os a um acordo. Eles acertaram
co deveriam aceitar a independência para que o Chipre seria independente. A Grã-
o restante da ilha – o que era admissível à -Bretanha teria direitos de soberania em de-
Turquia, já que excluía automaticamente a terminadas bases. O novo Estado teria um
enosis. À Grécia, a independência teria que presidente grego, um vice-presidente turco
ser forçada, pois o país abominava a divisão com poder de veto em certas questões e um
e tinha receio de que, na ausência de um gabinete de sete gregos e três turcos. Essa
acordo, os gregos em Istambul e em outras proporção de 7:3 se repetiria em todos os
partes da Turquia perdessem suas proprie- níveis da administração. Grécia e Turquia
dades e fossem mortos ou expulsos. teriam estacionados pequenos exércitos de
Em dezembro de 1957, Harding foi 950 e 600 homens, respectivamente, no Chi-
substituído por Sir Hugh Foot, que apresen- pre. Esse esquema foi aceito com muita relu-
tou um novo plano: autogoverno como co- tância por parte de Makarios, que declarou
lônia por um período, seguido de autodeter- que não funcionaria, mas o governo grego
minação, com a ressalva de que a enosis teria ameaçava abandoná-lo e, em 1º de março
de ter a aprovação turca. A simples menção de 1959, ele acabou voltando para o Chipre.
da enosis já era demais para os turcos, e fo- Grivas, enfurecido com a traição de sua cau-
ram organizadas manifestações em Ancara sa da enosis por parte dos políticos, foi ho-
quando Selwyn Lloyd (ministro das relações menageado, promovido e mandado de volta
exteriores) e Foot visitaram a capital. a Atenas. Em vez de expulsar os britânicos
O Plano Foot desapareceu, sendo su- e tornar o Chipre parte da Grécia, sua cam-
cedido pelo Plano Macmillan, que era mais panha terminara com a Grã-Bretanha ainda
um passo para longe do indevido domínio de posse de bases soberanas e o Chipre não
britânico. Macmillan propôs introduzir re- pertencendo ao reino grego. O Chipre se
304 | PETER CALVOCORESSI

tornou independente e membro da ONU e -ministro e ser convencido a mantê-lo, em-


da Commonwealth (1960-1961). bora com maioria parlamentar de apenas
O Acordo de Zurique foi uma tentati- quatro cadeiras.
va de homens assustados de impedir que a Cerca de 200 turcos foram mortos nesse
situação saísse completamente do controle. novo surto, aviões a jato da Turquia voavam
Era seu único mérito. Mas Makarios tinha de forma ameaçadora sobre Nicosia, uma
razão em que era impossível fazer a Consti- invasão naval turca foi contida pela Sexta
tuição funcionar. Cada uma das cinco cida- Frota norte-americana que rondava os ar-
des principais tinha de ter dois órgãos mu- redores, as forças gregas e turcas no Chipre
nicipais separados, embora essa concessão assumiram posições de batalha hostis, e o
à desconfiança comunal gerasse absurdos secretário colonial britânico Duncan Sandys
na prática, e eles nunca foram implemen- abandonou suas festas de natal para voar
tados. As discussões para produzir um sis- durante a noite para o Chipre. Após quatro
tema melhor foram rompidas e a maioria anos de independência, o Chipre levou a
grega no parlamento rejeitou uma proposta Grécia e a Turquia à beira da guerra.
turca para ampliar o sistema existente por A Grã-Bretanha tentou transferir o
mais um ano. O tribunal constitucional problema do Chipre à OTAN. Os governos
declarou que os argumentos grego e turco da Grécia e da Turquia estavam dispos-
estavam errados, e, em 1963, Makarios fez tos a aceitar a intervenção da organização,
propostas que visavam a forçar os turcos mas Makarios não estava, assim como não
a mais discussões, mas foram recebidas estavam outros membros da OTAN ansio-
como o descumprimento da Constituição sos para se envolver. Em fevereiro de 1964,
e um ataque a suas salvaguardas. Houve uma segunda ameaça de invasão turca foi
graves enfrentamentos e líderes de ambos discretamente frustrada pela frota norte-
os lados fizeram tentativas de organizar e -americana, e a Grã-Bretanha aceitou a ne-
aplicar tréguas. Mais além, os progenito- cessidade de invocar a ONU. A formação
res do Acordo de Zurique tinham saído de de uma força da ONU coincidiu com uma
cena. Os governos Karamanlis, em Atenas, terceira ameaça de invasão, mas, em meados
e Menderes, em Ancara, tinham caído. O de março, o grupo avançado canadense de
primeiro fora substituído por um governo uma força da ONU chegou ao Chipre, sen-
liderado por George Papandreou, que co- do seguido por unidade formada por Eire
meçou sem maioria parlamentar, ao passo (República da Irlanda), Suécia, Dinamarca e
que, na Turquia, um golpe militar derru- Finlândia, que, junto com as unidades bri-
bou o sistema parlamentarista em 1960. tânicas transferidas do comando da ONU,
O general Gürsel, que foi, sucessiva- constituíram uma força de 7 mil soldados
mente, chefe de Estado e, em outubro de que aos poucos garantiu controle, embora
1961, presidente, instalou um governo de continuassem a ocorrer surtos ocasionais
coalizão, mas o novo regime militar foi e tenha havido represálias contra os gregos
atacado por um golpe abortado, de dentro em Istambul.
de suas próprias fileiras em 1963, e pelo Além da força de paz, o secretário-
ressurgimento do Partido Democrata de -geral da ONU apontou um mediador para
Menderes com o novo nome de Partido da buscar uma solução política, mas nenhum
Justiça. Quando começaram os enfrenta- ocupante desse cargo foi capaz de encontrar
mentos no Chipre, o veterano Ismet Inönu uma solução aceitável a ambos os lados. Os
acabava de renunciar ao cargo de primeiro- Estados Unidos, alarmados com as conse-
POLÍTICA MUNDIAL | 305

quências do conflito greco-turco, agiram circunstâncias, à independência temperada


por meio do ex-secretário de Estado Dean pela ingovernabilidade. A ONU interrom-
Acheson, que apresentou um esquema para peu as matanças, mas não conseguiu resol-
a enosis, excluindo uma área no nordeste ver a disputa por trás delas. O melhor que
do Chipre, que iria para a Turquia. Sendo conseguiu fazer foi localizá-la.
assim, os turcos pediram uma área maior Ano após ano, o mandato da força de paz
e converteram o plano em divisão de outra era renovado pela ONU, que retrocedeu para
forma. Acheson revisou seu plano e propôs economizar dinheiro, retirando a força. As
que a região nordeste fosse simplesmen- conversações entre as duas comunidades co-
te arrendada à Turquia por 20 a 25 anos. meçaram e foram interrompidas mais de uma
Nesse momento, o plano passou a ser ina- vez. Qualquer menção à enosis por parte dos
ceitável a todos, e os turcos, já frustrados gregos era recebida com um discurso sobre
em suas esperanças na OTAN e frustrados dupla enosis por parte dos turcos – um nome
com a frota norte-americana, recorreram para a divisão e anexação do norte da ilha ao
experimentalmente aos russos (que podem, Estado turco. Em 1971, Grivas estava de volta
nesse momento, ter sentido uma possibili- a Nicosia. O único elemento novo na situação
dade de acabar com todo o Pacto de Bagdá, era a piora das relações entre Makarios e a di-
já que o Paquistão também estava decepcio- tadura militar que tinha tomado o controle da
nado com os Estados Unidos e o Irã estava Grécia em 1967 e que apoiava os herdeiros de
internamente instável e internacionalmente Grivas, agora chamados de EOKA B, contra
maleável). No início de 1965, o mediador Makarios, a quem consideravam um proble-
da ONU propôs um Chipre independente mático “padre vermelho”. Eles tentaram forçá-
desmilitarizado, proibido de realizar a eno- -lo a mudar seu governo (e conseguiram fazer
sis, no qual a minoria turca seria protegida com que ele demitisse o primeiro-ministro)
pela própria ONU e por um comissário re- e incitaram seus colegas bispos a acusá-lo
sidente do órgão. O novo governo de Anca- de simonia por combinar os cargos de arce-
ra rejeitou a ideia. bispo e presidente. Estavam ansiosos por ter
Com a força da ONU impedindo a re- uma vitória popular forçando a paz no Chipre
tomada da guerra civil, reafirmava-se o fato para poder posar de patriotas gregos que ti-
político básico: a Turquia, o vizinho mais nham unificado a Ilha com o área principal da
próximo do Chipre e um país com três vezes Grécia. Mas Makarios foi reeleito presidente,
a população da Grécia, era capaz de impedir em 1973, sem oposição; expulsou os bispos
a enosis, mas não de conquistar a ilha – daí e ainda fez com que eles fossem desprovidos
o status de independência do Chipre, uma de suas prerrogativas religiosas; depois reagiu
independência resultante de um equilíbrio a Atenas em 1974, pedindo que os oficiais da
de forças externas contraposto por um equi- Guarda Nacional Cipriota fossem chamados
líbrio de forças internas. Externamente, o de volta da ilha, já que eles estavam fazen-
poder estava com o Estado turco e não com do o jogo da junta e subvertendo em vez de
o grego; internamente, com a comunidade proteger o Estado cipriota. Nesse momento,
grega, e não com a turca. O poder da co- a ditadura agiu. Makarios foi atacado em seu
munidade grega estava limitado pelo Esta- palácio pela Guarda Nacional, mas escapou
do turco, e o poder dele, por forças que não em um helicóptero com ajuda britânica e foi
eram nativas da área. Diante disso, o Chipre levado à Inglaterra. Os insurgentes proclama-
era uma criança-problema internacional, ram Nikos Samson presidente em seu lugar,
destinada, enquanto predominassem essas uma escolha tão insensata quanto inadequa-
306 | PETER CALVOCORESSI

da, já que Samson tinha sido um conhecido ansiosos para preservar suas instalações de
pistoleiro da EOKA, e ele teve de renunciar no inteligência no norte da ilha. Makarios vol-
final da semana. tou no fim do ano. O Chipre foi, na prática,
A independência e a integridade do dividido, mas ninguém estava disposto a di-
Chipre foram garantidas por Grécia, Tur- zê-lo; e suas questões voltaram a estar den-
quia e Grã-Bretanha, e a primeira estava tro de cada comunidade, a ser prejudicadas
em processo de destruir as duas coisas. A por emoções da guerra, acusações e contra-
Turquia viu na ação imprudente da Grécia -acusações de atrocidades, saga dos refugia-
uma oportunidade de ocupar pelo menos dos, desorganização econômica e qualquer
parte da ilha. A Grã-Bretanha não estava tentativa de restaurar a integridade e a inde-
disposta a fazer coisa alguma, em parte pela pendência do Chipre com um exército turco
dificuldade de encontrar reforços para suas no controle de grande parte da ilha. Maka-
unidades nas bases britânicas, mas, mais rios, que morreu em 1977, foi sucedido na
enfaticamente, porque a intervenção sig- presidência por Spyros Kiprianou.
nificava intervir contra a Turquia e, assim, Tanto a ONU, que tentou mediar a par-
do lado da ditadura de Atenas e do também tir de 1977, quanto os gregos aceitaram taci-
nada atraente Samson. tamente o federalismo como base para qual-
Consequentemente, a Turquia invadiu quer acordo possível. Em discussões entre as
o Chipre cinco dias depois do golpe contra duas comunidades dentro do Chipre, e entre
Makarios. Foi imposto um cessar-fogo dois os governos grego e turco, os gregos tenta-
dias depois, e, no dia seguinte, a ditadura de vam garantir um centro federal forte, jun-
Atenas desabou. Os turcos permaneceram. to com uma retirada turca substancial dos
Os três fiadores se reuniram em Gene- territórios que eles haviam conquistado. No
bra. A atitude da Turquia era ameaçadora, final de 1983, contudo, os turcos forçaram o
mas realista, deveria haver uma Constitui- ritmo ao declarar a independência da parte
ção aceitável a eles ou o Chipre permane- norte da ilha. O secretário-geral da ONU,
ceria dividido de fato. A Constituição pro- Javier Perez de Cuellar, que tinha um conhe-
posta era uma confederação com contornos cimento considerável das questões cipriotas,
pouco definidos, não muito distante de uma conseguiu convencer os líderes de ambos
independência dos componentes, e a pro- os lados a discutir uma federação em bases
posta vinha acompanhada de um ultimato. pouco definidas. Os turcos, de posse de 37%
As conversações foram interrompidas. Os do território, pareciam dispostos a reduzir
turcos atacaram de novo, ocupando 40% da sua parte a 29% e aceitar uma presidência
ilha em dois dias e transformando 200 mil grega, não rotativa; os gregos pareciam dis-
gregos em refugiados. O embaixador dos postos a dar aos turcos 30% das cadeiras em
Estados Unidos em Nicosia foi assassinado uma primeira câmara e 50% em uma segun-
pelos gregos, que consideraram a inação da. Mas os avanços não eram perceptíveis.
norte-americana como uma cumplicidade Em 1986, o regime turco aceitou um plano
com a Turquia. Os britânicos foram criti- da ONU para reunificação, mas os gregos,
cados violentamente no Chipre e na Gré- na esperança de melhores termos, apresen-
cia, por não fazerem mais, como fiadores, taram outro plano. As negociações conti-
para ajudar o Chipre a escapar da situação nuaram, marcadas, em 1987, pela eleição
causada por um governo grego, mas foram de um novo presidente do Chipre, George
contidos pelos Estados Unidos, que estavam Vassiliou, que prometia progredir rumo ao
POLÍTICA MUNDIAL | 307

acordo, mas não foi capaz de fazer nenhum Leituras relacionadas: Parte III
avanço. Bush tentou mediar em 1991, mas
o momento foi mal escolhido. As eleições Gerais
no Chipre turco fortaleceram os separa- Gillingham, John: European Integration 1950–2003
tistas e, na própria Turquia, deram origem – Superstate or the New Model Economy (2003)
a um parlamento equilibrado; e os gregos, Jenkins, Philip: God’s Continent – Christianity, Is-
em Atenas e no Chipre, se opuseram firme- lam and Europe’s Religious Crisis (2007)
mente a uma demanda dos turco-cipriotas Judt, Tony: Postwar – A History of Europe since 1945
por um direito consolidado de se separar (2005)
de qualquer federação que viesse a ser for- Mazower, Mark: Dark Continent (1998)
mada. Outras conversações, em 1997, só
serviram para afirmar a intratabilidade da Específicas
situação ao comprar o governo (grego) do Barnett, Corelli: The Audit of War – The Illusions
Chipre um sistema de mísseis de defesa da and Reality of Britain as a Great Power (1986)
Rússia e a Turquia ameaçar usar a força para Bloomfield, Kenneth: A Tragedy of Errors – Gover-
impedir sua entrega. nment and Misgovernment in Northern Ireland
As considerações econômicas aponta- (2007)
vam para um acordo, os medos e precon- Glenny, Misha: The Balkans – Nationalism, War
ceitos políticos o negavam. O Chipre era a and the Great Powers 1804-1999 (2001)
Sampson, Anthony: The Essential Anatomy of Brit-
Caxemira da Europa, um conflito aparente-
ain (1992)
mente insolúvel, congelado, porque a ONU
Stern, Fritz Richard: Dreams and Delusions – The
impedia a guerra – em paz, mas não mui- Drama of German History (1999)
to incomodada com a divisão, à espera que Weber, Eugen: Peasants into Frenchmen – The Mod-
uma nova geração fizesse um trabalho me- ernization of Rural France (1976)
lhor de coabitação. Wilson, Duncan: Tito’s Yugoslavia (1979)
PARTE
IV
ORIENTE MÉDIO
Islã
8
A independência do mundo árabe rein- das Duas Espadas, uma parceria que pro-
troduziu a religião como força política no duziu mais conflito do que concordância,
Oriente Médio. O Islã, a terceira das gran- em função de sua irrealidade. A ideia de
des religiões derivadas do zoroastrismo, uma única comunidade política secular-
espalhou-se com rapidez impressionante a -religiosa evaporou para ser sucedida por
partir da península árabe e alcançou triun- uma colcha de retalhos de Estados secu-
fos na Ásia Ocidental e no norte da África lares territoriais (equivocadamente cha-
um século após a morte de seu profeta fun- mados Estados-Nação). Dentro do Islã, a
dador, em 632 d.C. primeira grande divisão, mais pessoal do
Contido em cada extremo da Europa que doutrinária, ocorreu quando o genro
pelo imperador bizantino Leão, o Isauro, do profeta e seus seguidores se separaram
e pelo rei franco Carlos Martel, continuou do corpo principal, tornando-se o xiismo,
a se expandir, para se tornar, nos tempos a variante preferida de grupos menores,
modernos, a fé professada por cerca de 1,2 mais inclinado à rigidez doutrinária e até
bilhão de pessoas e talvez a religião mais à violência, mas limitado a cerca de 10%
dinâmica do mundo. A Dar ul-Islam, ou da Dar ul-Islam, exceto no Irã, onde aca-
Casa dos Fiéis – o nome significa submis- bou por conquistar uma grande maioria.
são – em pouco tempo perdeu seu caráter A medida que a primazia passava dos rela-
árabe, dividiu-se em vários ramos e, como tivamente esparsos árabes para iranianos,
a cristandade antes dela, deparou-se com mongóis e turcos, os impérios muçulma-
os problemas de como a autoridade deve nos resultantes entraram em contato com
ser compartilhada entre seus membros impérios e ideias estrangeiros. O último
eclesiásticos e seculares. A cristandade, grande império muçulmano, o dos turcos
cujo primeiro grande cisma se tornou per- otomanos, chegou ao fim com a Primeira
manente no século XI d.C., depois de uma Guerra Mundial, tendo perdido, aos pou-
longa série de rompimentos temporários, cos, o controle de sua extensão europeia.
experimentou duas soluções para esse A dissolução de seu império na Ásia foi
problema, nenhuma funcionou bem. Bi- mais abrupta, deixando grande parte do
zâncio transformou seu imperador secular mundo árabe sob controle britânico ou
em uma pessoa sagrada, com autoridade francês. A Segunda Guerra Mundial des-
ambígua e contestada sobre o patriarca e truiu essa forma ambígua de império (o
os conselhos da Igreja, ao passo que a cris- sistema de mandatos), mas o substituiu,
tandade ocidental desenvolveu a doutrina em um pequeno canto, pelo Estado de Is-
312 | PETER CALVOCORESSI

rael, considerado por muitos árabes como tróleo estavam no Oriente Médio, expunha
uma afronta e como um posto avançado a região a ataques por parte de qualquer país
de outro regime imperial pelo qual os Es- que precisasse dele e se considerasse pode-
tados Unidos herdaram o poder no Orien- roso o suficiente para impor uma nova or-
te Médio. dem à região – especificamente, os Estados
O Oriente Médio, nesse meio-tempo, Unidos. O fato de os Estados Unidos possu-
mudou em dois aspectos. Novas ideias po- írem tal poder, mas nenhuma ideia de como
líticas, em parte derivadas da Revolução exercê-lo, tornava a situação extremamente
Francesa e, em parte, dos modelos e ambi- ameaçadora. Nesse contexto, o Islã – ou,
ções ocidentais de desenvolvimento eco- mais precisamente, o Islã do Oriente Médio
nômico, vinham se infiltrando no mundo – produziu movimentos assustadoramen-
árabe ou em partes dele. Elas eram, muitas te violentos. Eles não foram os únicos: os
vezes, política, social e religiosamente in- primos judaicos e cristãos do Islã fizeram
quietantes e coincidiam com uma coisa ain- a mesma coisa no decorrer de suas longas
da mais inquietante – a chegada da afluência existências, mas o século XX deu à violência
através da descoberta de petróleo. Esse fe- islâmica e à retórica anti-islâmica uma viru-
nômeno, começando no início do século XX lência assustadora.
e acelerando de forma espetacular depois de Durante a segunda metade do século,
sua primeira metade, gerou divisões deses- o Oriente Médio manteve sua preponde-
tabilizadoras entre ricos e pobres, introdu- rância na posse e exportação de petróleo, e,
ziu estilos de vida profundamente ofensivos em torno do ano 2000, as fontes alternativas
a muitos muçulmanos (principalmente clé- acabaram e o apetite do mundo por petróleo
rigos) e, acima de tudo, gerou a convicção se aguçou. O peso político dos fornecedores
de que os Estados Unidos pretendiam não do Oriente Médio, até então muitas vezes
apenas substituir a Grã-Bretanha e a França, exagerado, começou a ser subestimado à
mas também impor o domínio norte-ameri- medida que China, Índia, Austrália e outros
cano, implantando governos obedientes mas aspirantes ao desenvolvimento industrial
impalatáveis aos Estados árabes ou usando ameaçavam o equilíbrio entre oferta e de-
a força das armas se necessário. O petróleo manda. Também dentro do Oriente Médio,
gerou hostilidade de dois tipos: inveja por a instabilidade no Irã, precipitada pela revo-
parte de proprietários locais de petróleo, lução de Khomeini e pela devastação do Ira-
que rapidamente criticaram a ganância dos que pelos Estados Unidos e seus aliados, al-
invasores, e o receio de que o petróleo, ten- terou o equilíbrio do poder do petróleo para
do se tornado não apenas uma valiosa mer- a Arábia Saudita, uma autocracia autoritária
cadoria mas também uma necessidade vital cuja estabilidade residia principalmente nas
desses invasores indesejáveis, resultasse em dificuldades de perceber qualquer regime
guerras. Esse receio estava longe de ser iló- alternativo. Uma oferta deficiente ou incerta
gico. O fato cada vez mais evidente de que de energia gerou um temor verdadeiramen-
a demanda mundial por petróleo e a falta, te grave, como não era sentido desde que o
ao menos no curto prazo, de uma alterna- carvão deixou de reinar e, mesmo que à dis-
tiva, combinadas com o fato conhecido de tância, desde que a madeira deixou de ser o
que dois terços do estoque mundial de pe- combustível da vida.
Turquia
9
O Império Otomano na Europa chegou ao dente através da importância estratégica do
limite com o fracasso da conquista de Vie- país para os Estados Unidos. Ela era o objeto
na em 1683 e o Tratado de Carlowitz (1699) específico da Doutrina Truman, foi incluída
que se seguiu a esse evento, marcando o no Plano Marshall, tornou-se membro da
começo de um longo e convulsivo recuo, OTAN, enviou tropas à Guerra da Coreia
deixando-o na Europa com pouco mais do de 1950 e permitiu que os Estados Unidos
que tinha na cidade de Istambul. Estrategi- usassem seu território na crise libanesa de
camente, a Turquia cumpriu, no século XX, 1958 e na Guerra do Golfo de 1991. Os euro-
um papel de ligação entre a Europa e mun- peus, todavia, estavam menos confortáveis
do árabe que renascia. do que os norte-americanos com as relações
A Turquia moderna, estendendo-se íntimas com a Turquia e indecisos sobre sua
1.600 quilômetros de leste a oeste, cercada admissão na UE. O país entrou para a OPEP,
por mares, árabes e pelo Irã, foi criada de- mas as relações com os Estados árabes não
pois da Primeira Guerra Mundial, por Mus- eram fáceis. Era um país solitário.
tafá Kemal – Ataturk – como Estado secular Quando morreu, em 1939, Ataturk foi
habitado por muçulmanos: os turcos sunitas sucedido como presidente e como líder de
e uma minoria curda, também sunita, antes seu Partido Popular Revolucionário (PPR)
perseguida, mas que no final do século XX por seu amigo e camarada de armas Ismet
se transferiu em números relativamente Inonu (presidente de 1939 a 1950, além de
pequenos de sua pátria no sudeste para Is- primeiro-ministro entre 1961 e 1965). Mas
tambul e começou a prosperar. Ataturk deu seu programa ficou incompleto. Cerca de
à Turquia uma nova capital, Ancara, no cen- metade do país não aceitara as tendências
tro do país, mas seu Estado manteve Istam- modernizadoras, ocidentalizantes e demo-
bul em sua margem europeia, que já havia cratizantes que ele tinha desencadeado,
sido a maior cidade da Europa. A Turquia nem sua crença de que o lugar dos reli-
era um país entre três mundos: o mundo giosos era na mesquita e não no governo.
árabe, que ela governou por séculos; as re- Um segundo partido político separou-se
públicas da Ásia Central habitadas também do PPR em 1950, com o nome de Partido
por povos de origem turca, que tinham sido Democrata (PD), mas ainda que os dois se
conquistadas pela Rússia imperial, mas ob- tratassem como adversários, muitos turcos
tiveram a independência depois do colapso consideravam sua política como uma ence-
do Império Soviético; e a Europa. A Guerra nação e continuavam ligados à velha tradi-
Fria fortaleceu esses vínculos com o Oci- ção islâmica.
314 | PETER CALVOCORESSI

A Turquia estava tão profundamente – cipriota e uma espécie de fanático cul-


dividida quanto a Rússia no século pos- tural, religioso e nacionalista – exercendo
terior a Pedro, o Grande, o czar moder- (temporariamente) o poder por trás do tro-
nizador. Os políticos e o sistema político no. Esse regime foi fragilizado por tramas
foram enfraquecidos ainda mais quando dentro dos setores militares e produziu uma
as ambições modernizadoras não foram nova Constituição que foi recebida em um
capazes de oferecer recompensas econô- plebiscito por uma minoria contrária sur-
micas a mais do que uma pequena minoria preendentemente grande. O dissolvido PD
do povo. Uma consequência foi a afluência foi revivido como Partido da Justiça – um
dominante do exército, que foi moderniza- entre uma dúzia de partidos – e chegou em
do duas vezes (por Ataturk e pelos norte- um apertado segundo lugar depois do PPR
-americanos depois da Segunda Guerra nas eleições de 1961. Reconquistou o poder
Mundial), muito ansioso por manter o em 1965, com seu líder, Suleiman Demi-
sistema parlamentar democrático e não rel, um engenheiro que venceu na vida por
disposto a assumir responsabilidades de seus próprios meios, conservador cauteloso
governo, exceto em momentos críticos. e orador poderoso, com uma capacidade
Com o final da Segunda Guerra, o PD, de sintonia com as aspirações das pessoas
uma divisão do PPR, quase extinguiu o últi- comuns. No cargo ou fora dele, Demirel se
mo. Seus líderes Celal Bayar e Adnan Men- tornou a figura política de destaque na Tur-
deres se tornaram presidente e primeiro- quia pelo restante do século.
-ministro, desfrutaram da primeira onda Aos problemas perenes de estabilidade
do Plano Marshall, incentivaram indústrias econômica e progresso, a década de 1970
privadas, subsidiaram a agricultura e bus- acrescentou a ordem interna, ameaçada por
caram conter o poder político do exército. dissidentes à direita e à esquerda e pelo se-
O entusiasmo modernizador melhorou a paratismo curdo. Diante desses problemas,
infraestrutura econômica e ampliou o setor Demirel e seu principal adversário, Bülent
industrial da Turquia, mas a um custo e um Ecevit, que obteve a liderança do PPR em
ritmo, e com uma hostilidade dogmática ao 1972, foram obstaculizados pela prolifera-
planejamento que levou o país à bancarro- ção de partidos em ambos os extremos do
ta, da qual ele foi resgatado pelo FMI e por espectro político, notadamente o islâmico
acertos com seus credores estrangeiros. A e nacionalista Lobos Cinzentos, formado
má gestão econômica era agravada pelo por Turkes. As maiorias parlamentares fi-
despotismo cada vez mais enlouquecido caram mais difíceis de serem garantidas e
de Menderes, e a segunda metade da dé- a interferência militar, mais imprevisível. A
cada foi pontuada por manifestações e le- Constituição de 1961 deu aos militares um
vantes, incluindo ataques indiscriminados status especial dentro do Estado, mas as in-
aos gregos e seus negócios. Depois de um tervenções militares assumiram uma varie-
golpe cuidadosamente preparado em 1960, dade impressionante de formas, desde a de-
o exército prendeu membros do PD no par- claração de emergência e a imposição da lei
lamento, dissolveu o Partido, levou quase marcial à criação de autoridades militares
600 pessoas a julgamento e executou três temporárias junto com órgãos civis com os
delas, incluindo Menderes. O general Ce- quais suas relações eram mal definidas. De-
mal Gürsel se tornou chefe de um Comitê mirel e Ecevit entraram e saíram do cargo
de Unidade Nacional, que governou com 38 enquanto a economia desabava e a ordem
membros, com o coronel Alparslan Turkes pública evaporava.
POLÍTICA MUNDIAL | 315

Depois de 1977, nenhum dos dois prin- e subsídios reduzidos. O resultado foi con-
cipais partidos tinha maioria parlamentar. traditório, mas, no balanço, favorável: por
Demirel formou uma coalizão com turkes, um lado, um crescimento substancial do
mas defecções em seu próprio partido o PIB e em exportações, obras públicas úteis
forçaram a renunciar. Ecevit foi obrigado a em estradas, irrigação e telecomunicações e
introduzir a lei marcial em 1978, e, em 1979, um incremento ao turismo; por outro lado,
foi sua vez de renunciar. Entre as medidas uma explosão da especulação e da corrup-
anticomunistas – o termo comunista sen- ção e uma queda calamitosa nas condições
do interpretado de maneira muito ampla de vida, com exceção de uma pequena
– estavam a supressão de liberdades de im- quantidade de empresários. O Partido da
prensa e acadêmica, prisões de milhares de Pátria era um amálgama incômodo de oci-
pessoas e o recurso rotineiro ao terror e à dentalizadores modernizantes com nacio-
tortura. A desordem foi agravada pelo ab- nalistas e puristas islâmicos, e Ozal não teve
surdo quando mais de 100 votações foram mais sucesso do que seus predecessores na
incapazes de eleger um presidente em 1980. redução da burocracia nem na aplicação e
A desordem também destruiu as esperanças na cobrança eficaz de impostos. As remessas
de recuperação econômica (que foi retarda- caíram de forma preocupante à medida que
da ainda mais pelo aumento dos preços do os trabalhadores que estavam na Alemanha,
petróleo nos anos de 1970), estimulou as desconfiados, preferiam manter seu dinhei-
tendências mais combativas entre os curdos, ro onde estavam. Os escândalos financeiros
incorporou assassinatos políticos e levou o e alegações de nepotismo desgastaram a
exército a assumir, mais uma vez, o gover- imagem de Ozal e a confiança do povo em
no direto para conter a anarquia. Todos os seu capitalismo de mercado doutrinário. Em
partidos foram dissolvidos, políticos locais 1987, depois de difíceis negociações, ele ga-
e nacionais e outras milhares de pessoas fo- rantiu um novo acordo econômico e de de-
ram presas e a discussão política foi banida. fesa com os Estados Unidos e a readmissão
O general Kenen Evren foi proclamado che- no Conselho da Europa, do qual o país tinha
fe de Estado e foi restaurada a ordem com sido expulso quando sua Constituição foi
uma crueldade transformada em aceitável a anulada em 1980. Ozal foi sendo substituído
muitos em função do medo que tinha pre- gradualmente pelo eterno Demirel e passou,
cedido o golpe. Em 1983, o exército instalou em 1989, do cargo de primeiro-ministro à
um novo regime civil. presidência – o primeiro presidente civil em
O novo homem era Turgut Ozal, outro 28 anos. Ele foi seguido em cada cargo por
engenheiro e economista que trabalhou nos Demirel e morreu subitamente em 1993.
Estados Unidos e para o Banco Mundial e Demirel enfrentou uma piora na situa-
como assessor de Demirel, que o havia pro- ção dos curdos e a Guerra do Golfo contra
movido ao gabinete em 1979, com poderes o Iraque. Essa agravava aquela, que já estava
especiais sobre a economia. Ozal formou o particularmente intratável porque os curdos
Partido da Pátria e, em 1983, teve uma vi- na Turquia se recusavam a se tornar turcos,
tória clara sobre todos os outros, incluindo enquanto estes se recusavam a considerar
o preferido do exército que era liderado por um Estado curdo-turco.
um general. Ele conteve a inflação e retifi- Nos tempos do Império Otomano, tur-
cou o balanço comercial e de pagamentos cos e curdos eram muçulmanos (portanto,
através de controles monetários rigorosos, aliados contra os perseguidos armênios),
deflação, altas taxas de juros, baixos salários mas, na Turquia kemalista e pós-kemalista,
316 | PETER CALVOCORESSI

o vínculo religioso não fazia tanto contra- nômica com o Irã e o Paquistão. A Turquia
peso a suas diferenças étnicas, e, depois da estava particularmente ansiosa para garan-
Guerra do Golfo de 1991, o problema curdo tir que as futuras exportações de petróleo
da Turquia entrou em conflito com os pro- da Ásia Central passassem por oleodutos
blemas internacionais mais amplos do na- turcos, em vez de pelo Cáucaso, até portos
cionalismo curdo. A Turquia cooperou com russos no Mar Negro.
a política norte-americana de ajudar os cur- Na década de 1990, uma sensação ge-
dos do Iraque a combater Saddam Hussein ral de fracasso afligia o situacionista Par-
ao mesmo tempo em que temia que eles tido da Via Justa, liderado pela primeira
quisessem criar um Estado curdo, anátema mulher a ocupar o cargo de primeiro-mi-
para a Turquia. Os refugiados curdos foram nistro da Turquia, Tansu Ciller, de modo
repelidos à força, o exército turco violou a que o Rafeh ou Partido do Bem-Estar, lide-
fronteira com o Iraque em perseguição pu- rado por Necmettin Erbakan – outro en-
nitiva aos curdos turcos e manteve 35 mil genheiro, mas também um populista que
soldados em solo iraquiano, e as mortes de não confiava nem tinha a confiança dos
curdos ultrapassaram 25 mil, sem conter a chefes do exército – contrários aos mag-
militância curda. natas e anti-Israel – teve ganhos enormes
Ozal e Demirel estavam intrigados conclamando a um retorno às tradições e
(como esteve Enver Pasha nos primeiros padrões de comportamento muçulmanos.
anos do século) com as oportunidades ofe- Fundado por Erbakan em 1983, o Rafeh
recidas pelo surgimento de novos Estados não era o primeiro partido explicitamen-
de natureza turca na Ásia Central, em fun- te islâmico. O próprio Erbakan tinha for-
ção da dissolução da URSS (ver p. 499). Ozal mado dois partidos semelhantes, ambos
os visitou e convidou seus líderes para que dissolvidos pelo Tribunal Constitucional
visitassem Ancara. Para Demirel, essas eram por transgredir o compromisso da Cons-
possibilidades alternativas: uma associação tituição com o governo secular. Erbakan
com eles e com o Irã em um bloco islâmico, foi banido da atividade política de 1980 a
ou uma associação turca sem o Irã e, em cer- 1987, mas o Rafeh cresceu, ajudado pela
ta medida, contra este, que era xiita, teocrá- revolta contra a corrupção em altas esfe-
tico e não turco. Estranhamente, a Turquia, ras e uma visão de um novo governo islâ-
mesmo tendo afinidades com todos esses mico na Turquia em vez da aparentemen-
novos países (com exceção do Tadjiquistão), te inútil candidatura a membro da UE.
não tinha fronteiras com nenhum deles. De Depois das eleições de 1995, era o maior
longa tradição, ela era desconfiada de Rús- partido no parlamento e, no ano seguinte,
sia e Irã, mas essa desconfiança era balan- formou um governo com Erbakan como
ceada pela importância desses países como primeiro-ministro em coalizão com Ciller.
mercados para exportação e fontes de im- Preocupados com o sucesso de Erbakan e
portações necessárias: a Rússia era a maior incomodados pela aliança oportunista de
parceira comercial da Turquia, e o Irã, uma Ciller com ele, os chefes militares reitera-
fonte crucial para mitigar a grave escassez ram publicamente seu apoio a um regime
de energia do país. A Turquia promoveu o secular, e o Tribunal Constitucional dissol-
Tratado de Cooperação Econômica do Mar veu o Rafeh e baniu mais uma vez Erbakan
Negro, que foi assinado por 11 países em e seus principais colegas de partido.
1992, uma semelhante Organização do Mar Ciller foi preterida para a sucessão, que
Cáspio e um Tratado de Cooperação Eco- recaiu sobre um antigo chefe do Partido da
POLÍTICA MUNDIAL | 317

Pátria, Mesut Yilmaz, o qual permaneceu tar a ser o que fora em livros de história e
até 1998. no Atlas: uma situação ambígua entre dois
As relações com a UE eram um fa- mundos. Essa dicotomia foi aguçada nos
tor constante de problemas. A Turquia se anos de 1990. Embora a Turquia tenha sido
tornou, em 1964, o primeiro membro as- finalmente reconhecida em 1999 como can-
sociado da CEE, mas não foi além disso didata a membro da UE e Ecevit compare-
até a conclusão, em 1995, de um acordo ceu a uma conferência de chefes de Estado
alfandegário. Os empréstimos da CEE/ e de governo em Helsinque, os Estados Uni-
UE foram reduzidos gradualmente pelas dos estavam construindo um papel amplia-
reivindicações competitivas da Grécia, Es- do para o país no Oriente Médio, onde as
panha e Portugal à medida que todos es- políticas norte-americanas não eram vistas
ses países se tornavam membros plenos, e com bons olhos pela maioria dos membros
foram interrompidos depois do golpe de da UE. Nos anos de 1990, os Estados Uni-
1980. Havia pouca demanda por produtos dos garantiram (junto com os britânicos)
turcos na Europa Ocidental. Essa região, o uso de bases aéreas turcas para seus ata-
desconfortável em relação aos efeitos da ques a Saddam Hussein e intermediaram
livre movimentação de mão de obra em uma aliança entre a Turquia e Israel. Os is-
uma UE que incluísse a Turquia, despertou raelenses eram favoráveis a essa orientação,
para o fato de que o país seria o segundo que lhes dava direitos de uso de aeroportos
membro mais populoso da União, com turcos e representava uma ameaça à Síria as-
um peso equivalente em seus conselhos. sim como ao Iraque, mas, na Turquia, ela foi
O desencantamento turco foi cristalizado bem e mal recebida – bem recebida porque
pela abertura, em 1997, de negociações sancionava as incursões turcas no Iraque na
para a entrada de Chipre na UE, por com- perseguição aos curdos, e mal recebida por-
pras muito maiores de armas estrangeiras que os turcos suspeitavam que os Estados
por parte da Grécia no mesmo ano e por Unidos apoiavam a criação de um Estado
críticas mais clamorosas da Europa sobre curdo e estavam levando a Turquia a uma
a desconsideração turca pelos direitos hu- posição pró-israelense inaceitável.
manos. A Turquia retaliou com ameaça de Na virada do século, o padrão políti-
vetar novas admissões à OTAN se lhe fosse co estabelecido da Turquia parecia perder
negada participação na UE. Os europeus consistência. A concorrência entre o lega-
continuavam a considerar a Turquia como do secular de Ataturk e a cultura clerical
uma anomalia na Europa, não levando em de grande parte do país fora de suas princi-
conta o fato de que, no Sudeste Europeu, pais cidades tinha pouco significado para a
ela era, embora exígua em termos territo- nova classe de empresários e técnicos bem-
riais, o país regional mais poderoso. -sucedidos, que, em sua maioria, eram mu-
A Turquia havia se tornado parte da Eu- çulmanos devotos, mas moderados e consi-
ropa em função de políticas da Guerra Fria. deravam os partidos existentes como elites
Em uma Europa dominada pelo conflito en- marginais.
tre Estados Unidos e URSS, a Turquia era, A partir dos anos de 1990, a economia,
sem dúvida, um membro estrategicamente primeiro lentamente, mas ganhando ritmo
valioso da OTAN, mas, na Europa do pós- em torno de 2000, emergiu da depressão e
-guerra, o país – geograficamente periféri- cresceu vigorosamente, ainda que de forma
co, um provável problema econômico e um desigual. A taxa de crescimento chegou a
constrangimento político – tendia a vol- 10%, a inflação foi rebaixada de 70 para 10%
318 | PETER CALVOCORESSI

e o investimento estrangeiro cresceu (mas o rkozy. Em 2007, o Congresso dos Estados


desemprego continuou alto). Em 2001, Re- Unidos acrescentou aspereza ao que já era
cep Erdogan, formalmente do Partido do uma dúvida honesta descrevendo formal-
Bem-Estar, formou o Partido da Justiça e do mente a perseguição dos armênios pelos tur-
Desenvolvimento (AKP), venceu eleições em cos, em 1915, como genocídio.
2002, introduziu reformas sociais (incluindo Erdogan foi dissuadido de concorrer na
direitos das mulheres) e começou a mudar eleição presidencial no mesmo ano e indi-
a política turca em direção a um consenso cou Gul, mas a candidatura deste teve recep-
central em lugar de disputa bipartidária. ção contraditória, porque no passado ele ti-
Com Abdullah Gul, que se tornou ministro nha demonstrado simpatia pela ideia de um
do exterior em 2003, Erdogan percebeu que Estado muçulmano. Os chefes do exército,
havia uma oportunidade de fazer com que a autodenominados guardiões do legado de
Turquia fosse forte o suficiente para prescin- Ataturk, expressaram alarme. Gul foi eleito
dir da aceitação do mundo árabe ou da UE: por estreita minoria em uma terceira vota-
a ascensão dos partidos islâmicos no mundo ção. O exército reafirmou sua posição, mas
árabe e no Irã era desagradável e representa- nada fez de mais drástico. Erdogan e seu
va uma ameaça potencial à estabilidade na partido tiveram uma vitória empática – um
Turquia, e a oposição europeia à participa- voto pela acomodação com os curdos, con-
ção turca na UE estava endurecendo. Con- tra a preferência do exército de invadir as
flitos históricos (por exemplo, com a Grécia) províncias curdas do Iraque, e uma vitória
foram reforçados por violações aos direitos da democracia secular kemalista. Mas esses
humanos, pela escala da migração turca para sucessos foram eclipsados pela contínua in-
a Europa e, mais grave, pela oposição mani- capacidade de fazer avanços rumo à partici-
festa dos novos governos alemão e francês pação na UE e a incerteza em relação a se o
liderados por Angela Merkel e Nicolas Sa- clima econômico continuaria bom.
Os árabes e Israel até
o Canal de Suez 10
No século VII d.C., os árabes lançaram-se que sem eles. Os novos governantes do Oci-
para fora da península arábica e criaram dente, atraídos de volta à cena de suas aven-
um império que se estendia, em seu apogeu, turas na condição de cruzados, pela política
dos Pirineus, pelo norte da África, até o que internacional e pelo petróleo, passaram a ser
mais tarde foi chamado de Oriente Médio, obstáculos à unidade e à independência ára-
penetrando profundamente na Ásia Cen- bes, principalmente em função dos efeitos
tral. Os sucessores de Maomé, ou califas, fragilizadores de seu poder arrasador sobre
não foram capazes de sustentar a unidade a disposição árabe de lutar por essas aspira-
desse domínio vasto e cada vez mais poli- ções. Foi necessária uma Segunda Guerra
glota, e os conquistadores árabes, por sua Mundial para que os ocidentais saíssem. O
vez, foram submetidos, durante mil anos, a domínio francês foi eliminado pelos britâni-
curdos, turcos, britânicos e franceses. Mas cos quando as autoridades francesas na Sí-
nunca perderam os poderosos vínculos com ria e no Líbano se declararam favoráveis ao
um idioma e uma fé comuns, e, quando co- governo de Vichy; o domínio britânico, por
meçaram a recuperar sua independência, sua vez, foi mantido e até fortalecido tempo-
esses vínculos serviram para reavivar visões rariamente, apesar das poderosas correntes
de uma unidade renovada. O colapso do Im- antibritânicas no Egito e uma tentativa de
pério Otomano na Ásia, em 1918, ofereceu golpe pró-Alemanha no Iraque em 1941. A
a seus súditos árabes uma perspectiva com- ocupação velada estabelecida no vizinho Irã
pletamente diferente da que era oferecida, pela Grã-Bretanha e pela URSS não afron-
por uma retirada mais gradual do mesmo tou imediatamente os árabes, e, quando a
império na Europa, aos cristãos dos Bálcãs, guerra terminou, os britânicos eram o único
racial e linguisticamente divididos. alvo sobrevivente do nacionalismo árabe,
Porém, em 1919, os árabes estavam de- cuja disposição foi acirrada pela adminis-
cepcionados. O Império Otomano estava tração britânica do mandato na Palestina,
praticamente dividido entre britânicos (que onde, em consequência do apoio britânico
já tinham o Egito e Chipre) e franceses, e um ao objetivo sionista de ter um lar nacional
efeito dessa balcanização do Oriente Médio judaico (a Declaração de Balfour) em 1917,
foi estimular particularismos árabes separa- uma nova comunidade não árabe e não mu-
dos (sírio, iraquiano, jordaniano) e disputas çulmana aos poucos estava se instalando e
dinásticas à custa da unidade árabe: o mun- demandava o direito de ser, não um lar, mas
do árabe era mais unido com os turcos do um Estado.
320

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PETER CALVOCORESSI

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OCEANO ÍNDICO
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SUDÃO
0 200 400 km

0 150 300 milhas


Aden

Figura 10.1 O Oriente Médio.


POLÍTICA MUNDIAL | 321

Diante desse resquício poderoso e re- lugares sagrados de Jerusalém, com acesso
nitente dos séculos imperialistas, e com a ao Mediterrâneo. Mas, depois de um exame
vigorosa nova ameaça do sionismo, os ára- mais minucioso, esse sistema parecia inviá-
bes estavam excepcionalmente divididos vel, e a Grã-Bretanha, forçada pela aproxi-
entre si. Em nível de monarcas poderosos, mação da guerra na Europa a optar entre os
sauditas e hashemitas, estavam divididos dois lados, escolheu os árabes e aceitou, no
por rivalidades herdadas; mais importante, White Paper de 1939, limitar o elemento ju-
havia um conflito entre uma antiga ordem, deu na população da Palestina a um terço
majoritariamente monárquica e tradicio- do total (ele tinha aumentado desde 1919 de
nalista em sua visão de sociedade e religião, 10 para quase 30%) e, assim, interromper a
e uma nova ordem que, com seus primór- imigração judaica depois que 75 mil judeus
dios em movimentos intelectuais árabes do tivessem sido admitidos. Portanto, Hitler
século XIX, aspirava a modernizar o pensa- jogou sobre os britânicos o ódio de recusar
mento religioso e político e a formas de re- asilo aos judeus perseguidos na Alemanha,
duzir as enormes diferenças entre os estilos pois a iminência de uma guerra contra os
de vida dos muito ricos e dos muito pobres. alemães tornou a Grã-Bretanha ainda mais
Dentro do mundo árabe, essa reavaliação sensível à necessidade de amizades árabes,
inevitavelmente produziu conflitos e pres- a estratégia geral, bem como a estratégia do
sões internas que reduziram a capacidade petróleo, ditou os termos do White Paper. O
árabe de remover os britânicos e derrotar holocausto nazista transformou os destinos
os judeus. Os britânicos conseguiram sair do sionismo. A miséria e o otimismo dos
quando queriam e os judeus estabeleceram sobreviventes conseguiram o que Theodor
o Estado de Israel. Herzl e seus sucessores nunca chegaram
perto de conseguir.
Depois do White Paper de 1939, os sio-
Criação de Israel nistas mudaram seu principal esforço, da
Grã-Bretanha aos Estados Unidos, aban-
A Grã-Bretanha lutou durante uma geração
para conciliar as promessas feitas a judeus e donando as esperanças de atingir seus ob-
árabes (reforçadas pelo desejo dos britâni- jetivos através de persuasão em Londres em
cos de ficar bem com os países árabes pro- favor de uma política ativamente antibritâ-
dutores de petróleo e manter suas bases no nica a ser financiada (depois da guerra) com
mundo árabe), mas elas eram irreconciliá- dinheiro norte-americano. Durante a guer-
veis, e a tentativa de encontrar uma acomo- ra, a eficácia política do sionismo aumentou
dação passou à de evadir, segundo a deman- muito nos Estados Unidos, e sua causa foi
da, as complicações mais urgentes até que a assumida pelos dois norte-americanos mais
responsabilidade completa do mandato foi poderosos dos anos de 1940, os presiden-
abandonada em 1948. Em determinado mo- tes Roosevelt e Truman. Esse envolvimento
mento, a Grã-Bretanha tentou a divisão. A dos Estados Unidos pôs o país em oposição
Comissão Peel propôs (1937) uma divisão à Grã-Bretanha. A preocupação básica dos
tripartite entre um Estado árabe e um judeu, norte-americanos era convencer os britâ-
deixando os britânicos com um mandato nicos a admitir os judeus na Palestina na
sobre uma área reduzida que incluiria os maior quantidade e o mais rápido possível.
322 | PETER CALVOCORESSI

LÍBANO LÍBANO Colinas


Colinas de Golan
de Golan
Haifa
SÍRIA
SÍRIA
Haifa
Mar
Mediterrâneo
MAR Tel Aviv
MEDITERRÂNEO Faixa de Jerusalém
Cisjordânia Gaza
Tel Aviv

Jerusalém
Faixa de Canal
Gaza do Suez JORDÂNIA

JORDÂNIA
Suez

ISRAEL Sinai
Golfo Eilat
de Golfo
Suez de
EGITO ARÁBIA SAUDITA
Eilat
Território israelense
Sob controle antes da Guerra dos
jordaniano Seis Dias
Sob controle israelense
Sob militares depois da Guerra dos
egípcios EGITO Seis Dias
Eilat
0 40 km 0 40 km

0 40 milhas 0 40 milhas
Mar Vermelho

Figura 10.2 Israel – linhas do armistício, Figura 10.3 Israel – 1967, depois da Guerra
1949-67. dos Seis Dias, mostrando ganhos territoriais.

LÍBANO
LÍBANO Damasco
Colinas
SÍRIA de Golan

Haifa Colinas
de Haifa
Golan SÍRIA
Mar Mediterrâneo
Cisjordânia MAR
Tel Aviv MEDITERRÂNEO
Faixa de Amã Cisjordânia
Porto Gaza Jerusalém
Said Gaza Tel Aviv
Jerusalém
Ashdod
Canal do Suez Faixa de Ashkelon
Gaza
Cairo JORDÂNIA
Suez

Eilat ISRAEL
Aqaba

Sinai
EGITO Península JORDÂNIA
do Sinai
ARÁBIA SAUDITA

Ilhas
Sob controle israelense Sharm Tiran
depois da Guerra dos El Sheikh
Seis Dias Eilat
0 50 km 0 40 km
0 40 milhas Mar Vermelho 0 40 milhas

Figura 10.4 Israel – 1975, depois do acordo Figura 10.5 Israel hoje.
interino sobre o Sinai com o Egito.
POLÍTICA MUNDIAL | 323

Partindo do pressuposto de que uns 100 tânico, e, além de demandar uma imigração
mil judeus sobreviveram à abominação na- judia em massa, propôs a abolição das limi-
zista, os Estados Unidos adotaram a solici- tações à compra de terra por judeus.
tação de David Ben-Gurion, feita em agosto O comitê esperava produzir um pacote
de 1945, da emissão de permissões de en- aceitável, mas Truman só apoiou a solicita-
trada para esse número. Churchill e Attlee, ção das 100 mil permissões de entrada, e os
homens de generosa disposição e simpatia governos árabes e o britânico rejeitaram a
pela causa sionista, desejavam fazer alguma proposta como um todo. A divulgação do
coisa pelos infelizes sobreviventes e espe- relatório do comitê coincidiu com um ata-
ravam garantir, ao mesmo tempo, o apoio que territorial judeu em Tel Aviv que pro-
dos Estados Unidos às políticas britânicas vocou contraterrorismo do lado britânico,
no Oriente Médio como um todo. Mas essa o que indicava que a paciência britânica
cooperação não aconteceria. Os norte-ame- na Palestina, não menos do que seu equi-
ricanos queriam ajudar os judeus sem se en- líbrio em Whitehall, estava começando a se
redarem nas posições britânicas de atitude abalar. Enquanto ainda se supunha que as
supostamente imperialista (os britânicos só atrocidades judaicas eram o trabalho inde-
se tornaram aliados respeitáveis nessa re- pendente de unidades especiais (a Gangue
gião, aos olhos dos Estados Unidos, nos ter- Stern e Irgun Zvai Leumi), realizadas sem
mos da ameaça da Guerra Fria por parte da a aprovação da principal força de defesa ju-
URSS); eles não conseguiam ver a extensão daica (Haganah) nem dos órgãos políticos
das dificuldades da Grã-Bretanha na Pales- estabelecidos (a Agência Judaica e as Or-
tina, coincidentes com a entrega do poder ganizações Sionistas), já havia evidências
na Índia, em 1947, e o desafio à posição oci- de que não era assim, e que as autoridades
dental em Berlim, em 1948. britânicas estavam diante de uma tentativa
A campanha para fazer com que a Grã- nacionalista concertada de os expulsar. Em
-Bretanha emitisse as 100 mil permissões de junho de 1946, uma parte do hotel King Da-
entrada foi considerada, em Londres, uma vid em Jerusalém foi explodida e 91 pessoas
extravagância baseada na irresponsabilida- foram mortas. Após a rejeição do relatório
de e inspirada em motivos ulteriores. Ela do comitê anglo-americano pela Grã-Breta-
causou especial ressentimento quando os nha, a ideia da divisão foi reavivada. O em-
judeus passaram a praticar terrorismo na baixador Henry Grady dos Estados Unidos,
Palestina imediatamente após o fim da guer- e o secretário britânico do interior Herbert
ra. Mesmo assim, o governo britânico optou Morrison produziram, em julho, um plano
por uma abordagem anglo-americana con- para duas províncias autônomas, mas não
junta ao problema, e, em outubro de 1945, soberanas, e para a questão das 100 mil per-
um comitê com seis membros de cada parte missões um ano depois do estabelecimento
se dirigiu para fazer sondagens na Palesti- desse Estado híbrido.
na, em cinco Estados árabes e nos campos Truman rejeitou o plano, e os britânicos
europeus onde os sobreviventes do nazismo tentaram o expediente de uma mesa redon-
estavam esperando. Seu relatório, divulgado da, mas os judeus se recusaram a qualquer
em abril de 1946, confirmou a estimativa de coisa que não fossem discussões bilaterais
que havia 100 mil judeus sem lar na Europa com os britânicos. A repetição, por Truman,
e a solicitação de sua imediata admissão na de seu apoio às 100 mil permissões durante
Palestina. Também rejeitou a divisão, reco- sua campanha para a presidência não aju-
mendando a continuação do mandato bri- dou. Mas as discussões continuaram espora-
324 | PETER CALVOCORESSI

dicamente entre setembro de 1946 e feverei- importando suas reservas em relação a seu
ro de 1947, e foram abortadas. A realidade tamanho e forma, mas não aceitavam um
da situação se refletia no aumento do terro- Estado árabe-palestino, e aceitaram ou fe-
rismo e na execução por enforcamento do charam os olhos à anexação das seções de-
jovem judeu Dov Grüner, a primeira vítima signadas como árabes pelo emir Abdullah
da exasperação britânica. Em fevereiro de da Transjordânia. Impedir um Estado pales-
1947, a Grã-Bretanha anunciou que o pro- tino foi um ponto fundamental da política
blema e, possivelmente, o território seriam israelense durante uma geração ou mais. O
transferidos para a ONU. Uma sessão es- plano da ONU, fosse qual fosse sua valida-
pecial da Assembleia Geral criou o Comitê de (a ONU não tinha autoridade para criar
Especial da ONU para a Palestina (Unscop), Estados), em pouco tempo se tornou irrele-
e seus 11 membros se dirigiram a Jerusalém. vante, e os judeus conquistaram seu Estado.
No mesmo mês, 4.544 refugiados a bordo A luta começou antes do final de 1947, com
do Exodus 1947 chegaram em Haifa de- tentativas dos judeus de assumir o contro-
pois de terem embarcado em Sète, no sul da le dos segmentos que foram designados a
França, e recebido documentos de viagem eles. Também havia desordens em cidades
da Colômbia. As autoridade britânicas lhes árabes. Os britânicos eram impotentes e
negaram permissão para desembarcar, e eles perderam até a reputação de justos, que eles
foram mandados de volta a Sète, onde, mais consideravam uma de suas contribuições es-
uma vez, não puderam desembarcar, tendo peciais à moralidade pública. Em dezembro,
sido direcionados, com uma insensibilidade eles declararam que abririam mão do man-
horrível, a um porto alemão. O Exodus 1947 dato em 15 de maio de 1948.
foi um de mais de 60 navios com imigran- Os enfrentamentos aumentaram. Os ju-
tes ilegais organizados pela Agência Judaica. deus conseguiram armas em grande quanti-
Poucos chegaram à Terra Prometida, mas dade para atender à esperada invasão pelos
seu fracasso ajudou a garantir a criação de exércitos regulares dos países árabes vizi-
um Estado judeu. Em julho, a quantidade de nhos. O último oficial britânico deixou a
sofrimento inocente foi aumentada em mui- Palestina em 14 de maio. O Estado de Israel
to quando dois sargentos britânicos foram foi proclamado por Ben-Gurion, cujos mui-
enforcados por um bando Irgun. Incapazes tos anos de dedicação a um povo persegui-
de resolver os problemas, ou de manter a do lhe renderam os aplausos de judeus em
ordem, ou mesmo de se defender, os britâ- todas as parte e de muitas pessoas. Ele foi o
nicos estavam mais do que prontos para ir primeiro a ocupar o cargo de primeiro-mi-
embora. nistro, com Chaim Weizmann, o líder ve-
O Unscop produziu, por maioria, um terano do sionismo, na presidência, apesar
novo plano de divisão, de ridícula comple- de, no mês de dezembro, o 22o Congresso
xidade (três segmentos árabes e três judeus Sionista ter marcado o fim de sua influência
ligados por uma espécie de união econô- e até lhe exposto a algumas indelicadezas.
mica com Jerusalém, sob administração Truman reconheceu o novo Estado imedia-
internacional), que foi adotado pela ONU tamente – mas contra a forte oposição de
em novembro, com modificações. Foi acei- seu secretário de Estado George Marshall –
to com receio pelos judeus e rejeitado pelos e Stalin não demorou muito mais.
árabes. A aceitação judaica era enganosa, os Cinco países árabes marcharam contra
judeus estavam dispostos a aceitar publica- Israel, mas essa ação não dava indicações de
mente a promessa de um Estado judeu, não entusiasmo deles pela luta nem de que ela
POLÍTICA MUNDIAL | 325

seria eficaz. Os sírios pouco fizeram, e os li- ses árabes, diferentemente dos palestinos,
baneses muito menos. Os iraquianos se reti- nunca tiveram muito apetite por uma guerra
raram cedo e os egípcios chegaram tarde; os com Israel, mas Ben-Gurion e outros líderes
jordanianos foram parados pelas defesas ju- israelenses acreditavam na dominação mi-
daicas em Jerusalém. A ONU interveio indi- litar. Durante a guerra, Ben-Gurion repre-
cando o conde sueco Folke Bernadotte para endeu seus comandantes por não expulsar
mediar. Ele conseguiu uma trégua que du- mais palestinos da Palestina nos dois anos
rou um mês, e foi assassinado pela Gangue entre 1948 e 1950. A propriedade dos pales-
Stern. Os israelenses usaram a trégua para tinos foi sistematicamente destruída. Quan-
levantar enormes somas em dinheiro nos do o rei Farouk do Egito tentou, durante a
Estados Unidos e comprar armas para suas guerra, abrir negociações, sua iniciativa foi
forças regulares e irregulares, que eram nu- rejeitada, e, quando, depois de tomar o po-
mericamente superiores a seus adversários der na Síria em 1949, Husni Zaim propôs a
heterogêneos, mal organizados e desmoti- paz e um lar na Síria para 300 mil refugiados
vados, e tiveram uma vitória decisiva nos palestinos, Ben-Gurion (que, com razão,
novos combates. O Estado de Israel foi es- considerava Zaim instável) não respondeu
tabelecido com firmeza e transformado de- nem implementou essa propostas com su-
mograficamente. Às vésperas da declaração cessores de Zaim. Ben-Gurion renunciou
de independência, em maio, forças israelen- a seu cargo em 1953 e se retirou para um
ses realizaram um massacre em Deir Yasin, kibutz. Ele foi sucedido pelo ministro do
na periferia de Jerusalém, desencadeando exterior, seu antigo parceiro no movimento
um êxodo de refugiados que viriam a cons- sionista, Moshe Sharett, que iniciou conver-
tituir, com seus descendentes ainda por nas- sações secretas de paz com o novo regime
cer, um dos mais amargos temas de debate de Nasser no Egito. Essas negociações foram
entre árabes e judeus e um dos espetáculos sabotadas por vários colegas de gabinete de
mais lamentáveis da época. O massacre de Sharett e por um supostamente aposentado
Deir Yasin (mais tarde, o nome foi trocado Ben-Gurion, que mantivera aberto, além de
para Givat Shaul) foi usado para levantar seu excepcional prestígio, um caminho de
uma onda de terror. volta através do ministério da defesa, ocupa-
Em seus primeiros anos, as armas e a do, nesse meio-tempo, por Pinchas Lavon.
ajuda norte-americanas foram cruciais para Ben-Gurion acreditava que mais uma
a sobrevivência de Israel, que formou uma guerra era necessária. Sharett se recusava
aliança secundária mas igualmente dura- a acreditar que a agressão pudesse garantir
doura com o Irã, que deu asilo aos judeus a continuidade da existência de Israel. Ele
fugidos do Iraque no final dos anos de 1940 tinha, talvez, metade dos líderes do parti-
e reconheceu Israel em 1950. Essa aliança do situacionista Mapai por trás dele, mas
foi fortalecida nas décadas seguintes por carecia da inescrupulosa determinação de
vínculos comerciais e intercâmbios de inte- Ben-Gurion e permitiu ao combativo ge-
ligência militar e, sobrevivendo à queda do neral Ariel Sharon usar suas unidades es-
xá, contribuiu para a resistência do aiatolá peciais contra incidentes de fronteiras com
Khomeini ao ataque iraquiano em 1980. Seu provocativa indiscriminação. No final de
cimento era a hostilidade dos árabes, que ti- 1955, Ben-Gurion retomou o cargo de pri-
nham sido um tema persistente na história meiro-ministro, demitiu Sharett e adotou
do Irã e se tornaram um fator determinante uma política de confrontação e provoca-
na luta de Israel pela sobrevivência. Os paí- ção. Um ano mais tarde, começou a Guerra
326 | PETER CALVOCORESSI

de Suez, que estabeleceu um padrão para o -se uma mistura de línguas, culturas e habi-
restante do século. lidades desiguais, mantidas juntas pelo po-
Uma das fragilidades de Israel não foi der unificador de um ressurgimento judeu
exorcizada. O país continha poucos judeus, e por uma comunidade de raça e de espe-
principalmente se quisesse se expandir para rança (ainda que não pela religião, já que a
mais terras árabes. A solução, óbvia para religião judaica pouco significa para muitos
seus primeiros líderes, era dupla: imigra- cidadãos israelenses). A Lei de Retorno de
ção judaica e emigração árabe. Israel era um 1950 deu a todos os judeus o direito de ir
porto seguro para os perseguidos e para os para Israel, mas a Lei de Cidadania de 1952
visionários, mas não conseguia atrair mais deu-lhes cidadania judaica, não israelense, e
do que um pequeno fluxo da Europa Oci- os árabes no país são considerados pessoas
dental ou da América do Norte (onde a de nacionalidade árabe e não cidadãos de
principal atração de Israel era a visão dos Israel. Esses árabes padeceram com certas
kibutzim, cujo papel no novo Estado foi desvantagens – por exemplo, na aquisição
desaparecendo aos poucos). Com relação e na propriedade da terra. Israel era depen-
ao tratamento dado aos árabes palestinos, dente de ajuda externa, que recebeu com
persistia uma polêmica, que foi acentuada liberalidade de judeus dos Estados Unidos
em uma geração posterior por acusações de, e de outros países e, como indenização, da
entre outros, historiadores israelenses, de Alemanha Ocidental. Sua vida foi condi-
assédio inescrupuloso e uma espoliação in- cionada pela hostilidade externa, já que os
justificada. A questão de o que fazer com os árabes se recusaram a aceitar sua existência
árabes da Palestina não era enfrentada em e insistiam em que, sendo um subterfúgio
Israel mais do que havia sido no movimen- imperialista para a manutenção do poder
to sionista antes da criação do Estado. Aos anglo-americano no Oriente Médio, devia
pouco, a situação dos palestinos adquiriu ser destruído. Apesar de suas dificuldades
repercussão internacional de maior conse- militares e econômicas, adotou uma forma
quência para Israel do que as atitudes dos democrática de governo em termos gerais.
países árabes. Externamente desenvolveu políticas, mol-
A criação do Estado de Israel foi um fe- dadas por suas vitórias, por um lado, e por
nômeno extraordinário. O país surgiu como sua contínua precariedade, por outro, que
resultado das memórias obstinadas de um não garantiam nada mais do que a perspec-
povo perseguido, cujos infortúnios em vá- tiva de mais vitórias.
rias partes do mundo deram uma paixão Para defender suas fronteiras, retalia-
intensa às palavras de seus livros sagrados; va com prontidão e vigor, e muitas vezes
como resultado de crimes atrozes cometidos de forma indiscriminada, contra qualquer
contra os judeus da Europa, na visão da pró- ataque, grande ou pequeno, às unidades
pria Europa e do mundo; e como resultado especiais comandadas (inicialmente) por
da dedicação de judeus importantes, que Sharon. Esse crescimento da violência foi
capturaram uma parte de territórios que não eficaz no curto prazo, mas à custa de agu-
era sua, fortalecidos por uma convicção de çar a psicologia agressiva do novo país,
que o fim era desse tipo que justifica todos causando a ação contrária por parte dos
os meios. O Estado que eles fundaram foi árabes e prolongando uma cadeia de opera-
excepcional desde suas origens. Ao adotar o ções defensivas e ofensivas contra inimigos
princípio de que a porta deveria estar aberta empedernidos. O fato de essas operações
a todos os judeus de todas as partes, tornou- serem realizadas contra países árabes aju-
POLÍTICA MUNDIAL | 327

dou a obscurecer a importância dos pales- te sustentava o antissionismo e era criada


tinos, que não tinham um país. uma nova geração nos campos de refugia-
dos com o objetivo de um retorno à Pales-
tina depois de uma guerra gloriosamente
Revoluções árabes bem-sucedida que apagaria Israel do mapa.
O nacionalismo e o extremismo sionistas
Os países árabes, humilhados por sua inefi- estavam à altura do nacionalismo e do ex-
cácia e divisão, recusaram-se a reconhecer tremismo árabes. Embora a situação conti-
o Estado de Israel e continuaram as hosti- nuasse congelada por fatores externos – em
lidades fechando o Canal de Suez aos na- particular, a Declaração Tripartite de 1950
vios israelenses e às mercadorias que che- por parte de Estados Unidos, Grã-Bretanha
gassem ou saíssem do país. Essa ação foi e França prometia manter um equilíbrio de
condenada inutilmente pelo Conselho de armamentos entre árabes e judeus e debater
Segurança, que, de forma igualmente inú- coletivamente qualquer violação de frontei-
til, afirmou que Israel deveria readmitir os ras –, as atitudes básicas na região mudaram
refugiados árabes ou os indenizar. Como pouco. O que mudou foi o poder nos países
esses refugiados eram mais numerosos do árabes. Na Síria, Husni Zaim tomou o poder
que os judeus na Palestina, Israel afirmava, em 1949 e o manteve por alguns meses an-
com muita plausibilidade, que não se pode- tes de ser derrubado por Sami al-Hinnawi,
ria esperar que os readmitissem enquanto que governou até 1954. Em 1963, o Partido
os países árabes proclamassem sua inten- Ba’ath, fundado em 1940 por Michel Aflaq
ção de extinguir o Estado de Israel. Os pró- (um cristão), chegou ao poder com visões
prios árabes pouco fizeram para integrar pan-árabes, socialistas e inter-religiosas,
os refugiados em seus lugares de refúgio, mas sua liderança estava muito dividida, e,
já que, politicamente, o aspecto mais im- no decorrer das disputas, vários setores cor-
portante de um refugiado era seu status de tejavam diferentes grupos étnicos e religio-
refugiado e sua situação problemática. De sos na Síria.
700 mil, em 1949, seu número dobrou nas Um desses setores formou uma aliança
décadas seguintes e eles se tornaram um com os alauitas, uma minoria xiita (11% da
perigo tão grande para os países que os re- população), forte no oeste da Síria e favo-
ceberam quanto eram para Israel. recida pelos franceses durante seu manda-
Para os árabes, o fato de os judeus terem to. Essa aliança levou à dominação alauita
sofrido nas mãos dos cristãos europeus atra- que durou até o final do século – em prin-
vés dos tempos parecia não ser suficiente cípio, precariamente, mas consolidada em
para permitir que eles expropriassem parte 1982, quando Hafez al-Assad derrotou a
do mundo árabe e expulsassem 750 mil mu- reação dos sunitas e matou cerca de 50 mil
çulmanos. O fracasso de cinco exércitos em deles em Hama e nos arredores. Na Jordâ-
impedir essa injustiça fez com que os árabes nia, o emir Abdullah, tendo transformado a
se voltassem contra os líderes que tinham Transjordânia no reino da Jordânia, foi as-
fracassado de forma tão visível. Observa- sassinado em 1951 ao entrar na mesquita de
dores que achavam que o tempo curaria Al-Aqsa em Jerusalém. Seu neto, Hussein,
as amarguras desse conflito, ou esperavam governou em seu lugar até 1999. A mais
que isso acontecesse, tiveram que recuar profunda mudança desses anos ocorreu no
para uma visão mais pessimista, já que a Egito em 1954, quando a monarquia foi der-
propaganda árabe patrocinada oficialmen- rubada por oficiais muito ressentidos diante
328 | PETER CALVOCORESSI

da incompetência das operações de seu país mil homens no Canal de Suez por 20 anos,
em 1948, e agora despachavam o último re- o que era aceitável ao Egito porque poderia
presentante da linhagem de Muhamad Ali servir para proteger o país contra as ambi-
para o exílio. ções de Mussolini, engajado na conquista da
O líder titular da revolução egípcia de Etiópia. Durante a Segunda Guerra Mun-
1952 era o general Muhammad Neguib, dial, Churchill resolveu manter e fortalecer
mas o líder real era o coronel Gamal Abdel a posição da Grã-Bretanha no Oriente Mé-
Nasser, que se tornou primeiro-ministro em dio. Os árabes tinham demonstrado certas
1954 e suplantou Neguib como presiden- inclinações pró-germânicas, que ameaça-
te da nova república alguns meses depois. vam dar à Alemanha o domínio no Oriente
Nasser era um jovem de 36 anos que tinha Médio depois da conquista dos Bálcãs e de
feito carreira no exército a partir de origens Creta em 1941. Sendo assim, os britânicos
do que se poderia chamar de classe média ocuparam a Síria, o Líbano e o Irã e tinham
baixa. Ele tinha o necessário ímpeto e in- em vista a Turquia (sem sucesso até 1944,
dignação típicos de um revolucionário na- quando o país cortou relações com o Eixo
cionalista, mas também tinha as qualidades – ele entrou na guerra no fevereiro seguin-
de tranquilidade, perspicácia e humor que te); eles também impuseram o pró-britânico
mantêm o revolucionário sensato depois Nahas Pasha ao rei Farouk como primeiro-
do sucesso. Ele era suficientemente esperto -ministro. Nahas esperava que, em troca, os
para dar conta mais ou menos dos proble- britânicos dessem ao Egito, depois da guer-
mas com que se deparou quando teve que ra, a independência que tinham prometido
elaborar políticas sobre questões mundiais. 60 vezes desde 1881, mas o rei, preferindo
O primeiro desses problemas era o negócio um jogo mais duro do que uma espera, de-
inacabado de se livrar dos britânicos. Além mitiu Nahas em 1944.
disso, tinha de encontrar seu lugar no mun- Nesse momento, Eden estava preparan-
do árabe, no africano e no asiático, e assu- do uma posição britânica no Oriente Médio,
mir uma postura na Guerra Fria a favor ou com base em uma associação de países pró-
contra os russos, ou nenhuma nem outra. -britânicos, principalmente as monarquias
A ocupação britânica do Egito começou hashemitas do Iraque e da Transjordânia. Ele
em 1881, com uma expedição de cobrança incentivou Nuri es-Said, no Iraque, a reavivar
de dívidas, mas seu motivo real era estraté- o conceito do Crescente Fértil como entida-
gico: garantir o controle do Mediterrâneo de política, com capital em Bagdá e incluindo
Oriental, a rota para a Índia e para o Orien- comunidades sionistas e maronitas (cristãs),
te, e o vale do Nilo. O Egito permaneceu e promoveu uma Liga Pró-Britânica. Mas
formalmente uma província do Império o mundo árabe não estava mais unido pelo
Otomano sob o domínio hereditário dos arabismo do que a Europa pelo europeísmo.
herdeiros de Muhamad Ali, mas, na prática, O Egito, o membro mais populoso, sofistica-
tornou-se semi-independente sob o domi- do e influente da Liga e, em função de sua
mio dos britânicos, em lugar de semi-inde- imprensa escrita e seu rádio, o mais ubíquo,
pendente sob os turcos. Quando a Grã-Bre- era hostil a qualquer sugestão de um bloco
tanha e o Império Otomano foram à guerra, hashemita e particularmente hostil aos bri-
em 1914, a primeira proclamou um proteto- tânicos enquanto esses continuassem a ocu-
rado no Egito, que foi convertido, em 1922, par a região do Canal e outros pontos onde
em uma relação de tratado. A Grã-Bretanha a bandeira do reino Unido fosse hasteada
garantiu, em 1936, o direito de estacionar 10 durante a guerra. Para o Egito, o principal
POLÍTICA MUNDIAL | 329

adversário era a Grã-Bretanha, e não Isra- o Egito e a base do Canal. Os britânicos eva-
el. Depois da guerra e da saída da Índia, os cuariam a base, mas os aliados, adaptando
britânicos – mais precisamente, os chefes do uma ideia que Bevin já havia cogitado, te-
Estado-Maior e do ministério do exterior riam direito de retornar em determinadas
sob direção de Bevin – se concentraram no eventualidades. Esse esquema, enraizado
Oriente Médio como centro de uma versão em questões mundiais, ia de encontro à
revisada da potência mundial britânica a ser concepção do Egito que considerava uma
exercida a partir de uma vasta praça de ar- guarnição estrangeira no Canal como sím-
mas na Zona do Canal. Essa perspectiva não bolo de indignidade. O Egito, não se como-
levava em consideração os custos (a Grã- vendo com o temor à URSS que mobilizava
-Bretanha estava por abrir mão de suas posi- o Ocidente, rejeitou a Medo e criticou o tra-
ções porque elas custavam muito), calculava tado anglo-egípcio de 1936, que ainda tinha
mal a disposição norte-americana de apoiar cinco anos de vigência. Em janeiro de 1952,
um esquema do tipo imperial e confirmava protestos antibritânicos no Cairo causaram
a Grã-Bretanha (e não Israel) como princi- muitos prejuízos e aceleraram a evacuação
pal adversário do Egito. A Grã-Bretanha de- da Zona do Canal.
via ao Egito 400 milhões de libras (e outros Ao subir ao poder alguns meses depois,
70 milhões ao Iraque) e essas dívidas eram Neguib e Nasser se depararam não apenas
apenas uma parte das pressões intensificadas com o problema dos britânicos, cuja ocupa-
pelo final abrupto do lend-lease, pelo arren- ção do solo egípcio era uma afronta nacio-
damento de armas norte-americano, pelos nal permanente, mas também com o novo
transtornos na Palestina, pela retirada britâ- problema criado pelo desejo do Ocidente
nica e pelo bloqueio aéreo de Berlim. Mes- de engajar o Egito na Guerra Fria e fazer da
mo assim, Bevin lançou-se a negociar novos Zona do Canal um arsenal antirrusso.
tratados com Egito, Iraque e Transjordânia, Nos dois anos após a revolução, Egito e
com sucesso rápido no terceiro caso (1946), Grã-Bretanha resolveram diferenças muito
embora o emir Abdullah tenha sido muito relevantes. Começaram com o Sudão, que
criticado por permitir às tropas britânicas era um condomínio anglo-egípcio desde
mais 25 anos de arrendamento em solo jor- sua reconquista aos mahdistas em 1899. O
daniano. Com os governos de Iraque e Egito, Egito gostaria de restaurar sua união com
Bevin conseguiu acordos aceitos por Sidky o Sudão por causa da importância vital do
Pasha para o segundo e Salih Jabr para o pri- Nilo e das perspectivas faraônicas ancestrais
meiro, mas rejeitados por seus parlamentos de unidade do Vale do Nilo. Os britânicos,
e seus povos porque não estabeleciam a eva- governantes de fato do Sudão por meio sé-
cuação total dos britânicos. culo, insistiram em que os sudaneses de-
No início dos anos de 1950, a cena po- veriam decidir seu futuro por sua própria
lítica no Oriente Médio foi transformada conta, e os egípcios, acreditando equivoca-
pela guerra na Coreia e pela Guerra Fria. damente que o Sudão optaria pela unidade
Os Estados Unidos e seus aliados estavam com eles, concordaram. Mas o Sudão esco-
ansiosos para criar ali um bastião militar lheu a independência, apesar (ou por cau-
antirrusso ou auxiliar da Otan. Os governos sa) da propaganda egípcia e se tornou um
norte-americano, britânico, francês e turco Estado soberano em 1956. Nasser aceitou
apresentaram planos para uma Organização esse revés com uma aquiescência pragmá-
de Defesa do Oriente Médio (Middle East tica. Chegou a um acordo sobre a Zona do
Defence Organization, Medo) que incluiria Canal em 1954, baseado na ideia de que os
330 | PETER CALVOCORESSI

britânicos sairiam em 20 meses, mas teriam e uma demanda curda por independência
direito de retornar se qualquer membro da foram derrotadas pela astúcia do primeiro-
Liga Árabe ou a Turquia fossem atacados -ministro iraniano Qavam es-Sultaneh e
por qualquer inimigo externo que não Isra- pelas reações firmes de Estados Unidos e
el. O Irã não estava incluído na cláusula de Grã-Bretanha. O pronto reconhecimento
reversão, apesar das tentativas britânicas de russo de Israel não teve seguimento, e pa-
incluí-lo. Esse tratado representava conces- rece ter sido considerado em Moscou como
sões consideráveis, ainda que sensatas, por uma rua sem saída. A Guerra da Coreia não
parte da Grã-Bretanha, não aceitáveis ao era vista pelos árabes como algo que lhes
setor governante do Partido Conservador, interessasse: na Assembleia Geral da ONU,
mas foram aceitas pelo governo, em parte todos os membros árabes deixaram de vo-
porque a existência de bombas nucleares tar. A rota de Nasser para o neutralismo e o
tinham transformado a base em uma arma- espírito de Bandung foram orientados pela
dilha mortífera e, em parte, como respos- influência de Nehru sobre ele – principal-
ta às pressões dos Estados Unidos, onde a mente durante a missão diplomática de K.
continuidade das más relações entre Grã- M. Panikkar em 1953-1954 – e pelas pró-
-Bretanha e Egito era considerada um grave prias potências ocidentais.
impedimento para se aplicar a política de O Egito e o Iraque representavam ramos
contenção dos Estados Unidos ao Oriente diferentes da unidade árabe muito antes de
Médio. No entanto, para o Egito, o acordo a revolução no primeiro, em 1952, tornar o
de 1954 com a Grã-Bretanha não era uma país uma república socialista em contraste
preliminar ao alinhamento com o Ocidente, com a tradicional monarquia que durou no
que, por outro lado, acreditava que relações Iraque até 1958. Tanto antes quanto depois
melhores com o Egito implicavam esse ali- de 1952, os líderes do Egito aspiravam à li-
nhamento. Consequentemente, as melhores derança em partes da África, bem como na
relações em pouco tempo ficaram piores. Ásia Ocidental, ao passo que os iraquianos,
Em 1955, o ano da conferência dos antes e depois de 1958, concentravam-se no
neutralistas em Bandung, o Egito se vin- sonho de um grande domínio árabe a leste
culou ao não alinhamento. A questão não de Suez. Esse sonho se tornava particular-
surgiu nos primeiros anos do pós-guerra mente irrealista com as ancestrais rivalida-
porque o alinhamento significava alinha- des entre Damasco e Bagdá, a imposição do
mento contra os russos, e ainda não havia regime dos mandatos nas regiões norte do
presença russa no mundo árabe contra a Oriente Médio depois da Primeira Guerra
qual se alinhar. As esferas de atividade rus- Mundial e a destruição, no sul, do poder e
sas tradicionais no Oriente Médio eram os das pretensões da dinastia hashemita por
Estados não árabes da Turquia e do Irã, e Ibn Saud. Mesmo assim, a visão persistia. Os
em ambos a URSS tinha vivenciado e, apa- hashemitas chegaram a reinar em Damasco
rentemente, aceito reveses no final da guer- (por pouco tempo), Bagdá e Amã; e o regen-
ra. As reivindicações pelo retorno de Kars e te hashemita do Iraque, Abd ul-Ilah, espera-
Ardahan (perdidas para a Turquia em 1921) va se tornar rei em Damasco depois de dei-
e pela revisão da convenção de Montreux, xar de ser regente em Bagdá. Se sua parte do
que regulava a passagem pelo Estreito de sonho tivesse se concretizado, a consequên-
Constantinopla, não tiveram resultado, en- cia poderia ter sido um grande reino hashe-
quanto a tentativa de subverter o regime no mita, ou uma grande liga de reis hashemitas,
Irã apoiando uma República do Azerbaijão mas isso nunca foi bem recebido na Síria.
POLÍTICA MUNDIAL | 331

Depois da primeira revolução síria no pós- perpotências. A entrada do Iraque no Bloco


-guerra, Husni Zaim se inclinou para o lado do Norte fez com que a Grã-Bretanha se
do Iraque, mas, em um momento posterior voltasse a uma aliança mais sincera com os
de seu curto período de poder, deu uma gui- Estados Unidos na região porque, entre ou-
nada em direção ao Egito e à Arábia Saudi- tras coisas, poderia ter uma nova chance de
ta; seu sucessor Sami al-Hinnawi favorecia refazer suas relações com o Iraque por meio
uma união entre Iraque e Síria, mas assim de um novo tratado para substituir o que ex-
precipitou sua própria queda, e seu substitu- piraria em 1957, que Bevin não conseguiu
to, Adib Shishakli (1949-1954) – o homem prolongar. Mas, em outro plano, a inclusão
forte no Oriente Médio antes do advento do Iraque foi um erro crucial.
de Nasser –, rejeitava qualquer associação O Iraque não era um membro natural
mais próxima com o Iraque porque este era do Bloco do Norte. Apesar de ser árabe,
monárquico e pró-britânico. A derrubada não tinha fronteira com a URSS, e sua in-
de Shishakli pelo exército sírio, ajudado por clusão era considerada, no Cairo, uma ma-
ouro iraquiano e apoio moral, no mínimo, nobra para romper a solidariedade árabe e
britânico, reavivou a perspectiva de uma fortalecer o Iraque contra o Egito (como a
aliança entre Iraque e Síria, mas a oposição Índia, que considerava armar o Paquistão
entre os sírios à família real iraquiana e às uma ameaça contra si própria na Caxemira,
suas conexões britânicas acabou com ela. e não contra a URSS).
Os Estados Unidos estavam menos O primeiro passo formal do Pacto de Bag-
preocupados com essas questões do que dá foi o tratado de abril de 1954 entre Turquia
com o Oriente Médio como teatro de con- e Paquistão, seguido, em poucas semanas, por
flito entre superpotências. Sua maior preo- acordos de ajuda militar dos Estados Unidos
cupação era vislumbrar uma política para a com Paquistão e Iraque e, em 1955, por um
região como parte da contenção da URSS, e tratado de assistência mútua turco-iraquiano
essa política assumiu a forma de um novo (o próprio Pacto de Bagdá) que foi declarado
baluarte antirrusso que ia desde o Bósforo aberto a todos os membros da Liga Árabe e
até o Indo, o chamado Bloco Norte, e im- a outros países interessados na paz e na se-
plicou armar a Turquia e o Paquistão. Ini- gurança do Oriente Médio. O Paquistão e o
cialmente, não incluía qualquer país árabe, Irã aderiram naquele ano, mas nenhum outro
já que o colapso do projeto da MEDO tinha país árabe seguiu o Iraque à parte do campo
convencido John Foster Dulles, o secretário ocidental relacionada ao Oriente Médio. A
de Estado de Eisenhower, de que os árabes Síria fez o centro do mundo árabe oscilar de
não valiam como aliados contra a URSS, Bagdá para o Cairo e se formou uma contra-
além de serem inimigos do protégé dos Es- -aliança entre Egito, Síria e Arábia Saudita. As
tados Unidos, Israel. Mas à medida que os tentativas de melhorar as relações entre o Egi-
planos para um Bloco do Norte avançavam, to e o Ocidente foram interrompidas. Dentro
o Iraque foi incluído, com duas consequên- do mundo árabe, a polêmica se tornou estri-
cias importantes. O envolvimento britânico dente. Nasser foi para Bandung, onde, seguin-
era totalmente indispensável, mas a Grã- do os ventos anticolonialistas e neutralistas
-Bretanha estava dividida entre o ressenti- predominantes, o Iraque foi censurado por
mento com relação ao que considerava uma participar do Pacto de Bagdá e o Paquistão,
tomada de seus interesses políticos e econô- por entrar para seu equivalente, a Organiza-
micos no Oriente Médio por parte dos Esta- ção do Tratado do Sudeste Asiático (South-
dos Unidos e as realidades da luta entre su- -East Asian Treaty Organization, SEATO).
332 | PETER CALVOCORESSI

A Guerra de Suez dos russos. Depois de tentar Beijing (onde


recebeu uma dica de que tentasse Moscou)
Além da divisão dentro do mundo árabe, e depois Washington e Londres mais uma
Nasser estava preocupado com o fato de que vez, ele finalmente se lançou em direção aos
a retaliação israelense contra a propaganda russos e anunciou, em setembro de 1955,
e os ataques árabes estivesse sendo dirigida que estava comprando armas tchecas sem
ao Egito. No início de 1955, o país vivenciou precondições.
um ataque excepcionalmente agudo na área Agora era a vez de Israel ficar com
de Gaza, ordenado por Ben-Gurion, que medo. Segundo o negócio com os tchecos, o
tinha voltado ao poder pouco tempo de- Egito receberia uma grande diversidade de
pois de ter se afastado e estava, segundo as armas, incluindo 80 MiG 15 (os caça-bom-
informações de Nasser, tentando obter ar- bardeiros usados na Coreia), 45 Ilyushin, 28
mas com a França. Essa associação franco- bombardeiros e 115 tanques pesados, iguais
-israelense, embora nunca tenha sido uma aos melhores do exército russo e melhores
aliança formal, tornou-se um dos principais do que qualquer coisa que Israel tivesse.
ingredientes da Guerra de Suez de 1956. A Israel pressionou a França para revisar o
Declaração Tripartite de 1950, voltada a im- acordo de 1954 e fornecer jatos Mystère, 4
pedir uma corrida armamentista no Oriente em vez de 2. A França aceitou e Israel re-
Médio, foi evitada por Israel, que encontrou cebeu, em abril de 1956, um contingente
simpatizantes na França dispostos a ajudar dos melhores bombardeiros da Europa. Sua
o país secretamente. As motivações fran- chegada pouco depois de o ministro do ex-
cesas eram várias: havia um sentimento de terior da França visitar o Cairo evocou um
obrigação para com o povo judeu que havia surto antifrancês indignado por parte de
sofrido muito; um sentimento de admiração Nasser e destruiu qualquer chance dos ven-
pelo que havia sido conseguido em Israel; tos árabes prevalecerem sobre os israelenses
um sentimento de solidariedade socialista no gabinete francês.
entre Guy Mollet e Ben-Gurion; e, acima de Como a maioria dos países, o Egito que-
tudo, a convicção de que a ajuda de Nasser ria armamentos e alimentos. Nasser se de-
à Argélia era um fator básico da revolta no parava com o dilema de poder receber ajuda
país. Alguns franceses compartilhavam a vi- econômica do Ocidente depois de aceitar
são de Eden de que Nasser era uma ameaça ajuda militar do bloco comunista. A respos-
semelhante a Hitler e deveria ser derrubado ta foi negativa. O teste foi a Represa de As-
antes que fosse tarde demais. A política fran- suã, e ela mostrou que não apenas a França,
cesa, tradicionalmente pró-árabe, foi levada mas também a Grã-Bretanha e os Estados
a uma outra decisão, e a França aceitou, em Unidos estavam se voltando contra Nasser.
1954, fornecer bombardeiros a Israel. A represa foi projetada para transformar
Quando voltou de Bandung, Nasser a economia e a sociedade do Egito ao acres-
também saiu em busca de armas. Os sig- centar 860 mil hectares à área de terra culti-
natários da Declaração Tripartite se recu- vável, tornar o Nilo navegável até a fronteira
saram a fornecer ao Egito ou à Síria tudo sudanesa e gerar energia elétrica para aten-
o que solicitavam. A Síria recorreu aos rus- der a fábricas que poderiam dar sustento
sos, que se interessavam em ter um papel à população crescente. Deveria custar 1,4
mais ativo no Oriente Médio desde que o bilhão de dólares, incluindo 400 milhões
ataque a Gaza expôs a fragilidade do Egi- em dinheiro, dos quais o Banco Mundial
to. Mas Nasser relutava em receber ajuda adiantaria 200 milhões, e os Estados Unidos
POLÍTICA MUNDIAL | 333

e a Grã-Bretanha, 56 milhões e 14 milhões, Londres não gostavam de Nasser e achavam


respectivamente, de uma vez, e os restantes (como os franceses, por uma razão diferen-
130 milhões entre os dois, mais tarde. Em te) que seria saudável tratá-lo com frieza e
1955, as negociações pareciam estar se de- colocá-lo em seu devido lugar.
senvolvendo sem maiores obstáculos do Essa atitude era mais forte na Grã-Bre-
que os normais, mas, na segunda metade de tanha, onde ganhava forças nas interpreta-
1956, elas perderam força. A Grã-Bretanha ções obsessivas de Eden, que considerava
e os Estados Unidos decidiram não ajudar. equivocadamente Nasser um ditador fas-
O crédito de Nasser, em ambos os sentidos cista e achava que ele poderia ser facilmente
da palavra, estava acabando, principalmente substituído. (A animosidade de Eden au-
como resultado de suas compras de armas mentou em março com a demissão do ge-
comunistas. neral Sir John Glubb e outros oficiais britâ-
Em 1956, ele reconheceu o regime co- nicos da Legião Árabe da Jordânia, da qual
munista em Pequim – um passo que causou Glubb era o oficial comandante. Por acaso,
irritação principalmente em Washington, essa ação por parte do rei Hussein coinci-
mesmo que sua verdadeira razão possa ter diu com uma visita ao Cairo do secretário
sido seu medo de que os novos líderes rus- do exterior Selwyn Lloyd. Eden considerou
sos se sentissem persuadidos a se aliar às isso uma afronta deliberada, tramada por
potências ocidentais em um novo embargo Nasser.)
de armas ao Oriente Médio. A compra de Em 19 de julho de 1956, Dulles infor-
armas dos tchecos rompeu o embargo de mou ao embaixador egípcio em Washington
1950, para deleite geral do mundo árabe, que a oferta anglo-americana para financiar
que o considerava como uma obstrução à a represa estava revogada. O embaixador
sua soberania, mas ele poderia voltar a ser francês em Washington, Maurice Couve de
imposto se os russos estivessem buscando a Murville, previu que Nasser retaliaria con-
boa vontade do Ocidente, e, nesse caso, Pe- fiscando as receitas do Canal de Suez, o que
quim seria a única fonte alternativa. Além fez em 26 de julho.
disso, o lobby do algodão no Congresso O Canal de Suez, sem sombra de dú-
dos Estados Unidos não gostava de que o vida, fazia parte do Egito, mas também de
dinheiro do país fosse emprestado ao Egito dois instrumentos muito diferentes – um
para plantar mais algodão e competir com o acordo de concessão e um tratado inter-
produto norte-americano. O Egito era acu- nacional. O primeiro, concedido a Ferdi-
sado de não se acertar com os outros países nand de Lesseps pelo quediva ou vice-rei
ao longo do Nilo (Sudão, Etiópia e Uganda) do Egito, Said Pasha, e confirmado pelo
e de comprometer, para a compra de armas, sultão otomano, dava direitos de operar o
dinheiro que seria necessário para pagar os Canal por 99 anos a partir de sua abertura,
juros de seus empréstimos estrangeiros. Os o que aconteceu em 1869. A concessão ti-
norte-americanos afirmavam que era im- nha passado de de Lesseps à Universal Ma-
prudente alocar tanto dinheiro a um úni- ritime Suez Canal Company, uma empresa
co projeto, já que os Estados Unidos, nesse egípcia com sede no Cairo e em Paris e com
caso, teriam que recusar outras solicitações diversos acionistas, incluindo o governo
de ajuda ao Egito por muitos anos, deixando britânico e uma série de rentistas franceses
que os russos entrassem em cena e dissessem comuns. A concessão tinha 12 anos de du-
sim. Mas, por trás de todos esses raciocínios, ração a partir de 1956, quando os direitos
estava o simples fato de que Washington e de operação seriam revertidos para o Egito.
334 | PETER CALVOCORESSI

A ação de Nasser equivalia a uma naciona- Eisenhower, que deixou sua posição
lização dos direitos da empresa, mas, como clara em cartas a Eden e em declarações
prometera indenização, ele nada tinha feito públicas, era de temperamento adverso ao
de ilegal nem, no século XX, de incomum, uso da força e também estava convencido
embora a empresa pudesse muito bem per- de que ela era inconveniente porque leva-
guntar de onde viria o dinheiro para a in- ria à sabotagem dos oleodutos, incentivaria
denização. No entanto, Nasser estaria do outros líderes (por exemplo, Jiang Kaishek
lado errado da lei se rompesse os termos e Syngman Rhee) a demandar apoio dos Es-
do segundo instrumento – a convenção es- tados Unidos para também usar a força em
tabelecida em 1888 entre nove potências, suas disputas e fazer com que o mundo não
incluindo o Império Otomano, que era, na comprometido se voltasse contra o Ociden-
época, suserano do Egito. As partes entra- te. Eisenhower enviou um emissário espe-
ram em acordo para abrir o Canal a todos cial a Londres, que relatou, em julho, que os
os navios de guerra ou mercantes, em tem- britânicos tinham intenção de usar a força.
pos de paz e de guerra, e nunca bloqueá-lo. A partir daí se desenvolveu um duelo en-
Se não deixasse o Canal aberto, Nasser es- tre Eden e Dulles, inimigos desde a crise de
taria rompendo as convenções e os signatá- 1954 na Indochina, com o primeiro mano-
rios poderiam tomar medidas para reabri- brando para obter o apoio para uma política
-lo. Havia expectativas equivocadas de que extrema e o segundo evadindo o problema e
se os operadores do Canal fossem retirados, tentando ganhar tempo.
ele deixaria de funcionar e o direito de in- Inicialmente, os britânicos e os fran-
tervir poderia ser invocado, mas o Canal ceses, com apoio dos Estados Unidos, con-
continuou funcionando bem até ser bom- vocaram uma conferência dos principais
bardeado pelos britânicos e franceses, mes- usuários do Canal e apresentaram um plano
mo que os operadores da empresa tivessem para uma nova direção de operações, para
sido quase todos retirados sob pressão de garantir seu controle internacional. A con-
potências estrangeiras. ferência não aprovou esse plano por unani-
A nacionalização da companhia do midade – ele foi criticado como uma quebra
canal deu à Grã-Bretanha e à França uma injustificável da soberania egípcia. Mesmo
desculpa para a ação de força que ambas assim, o primeiro-ministro australiano Ro-
queriam tomar contra o Egito. O gabinete bert Menzies e quatro outros membros, re-
britânico alocou 5 milhões de libras (impe- presentando a visão da maioria, foram ao
rialismo de esmolas) e decidiu usar a força Cairo para apresentar o plano a Nasser, que
em uma semana, e tudo para acabar desco- o rejeitou e disse que o Canal estava fun-
brindo que a preparação militar britânica cionando normalmente. A seguir, Dulles,
era tal que não poderia ser mobilizada antes talvez apenas para continuar conversando
do meio de setembro ou sem chamar reser- e evitar o tiroteio, propôs uma Associação
vistas. Esse atraso impossibilitou os Estados de Usuários do Canal de Suez, com o direito
Unidos de intervirem. Eisenhower e Dulles de organizar comboios e cobrar pedágio dos
chegaram a um acordo com os governos navios que participassem deles. Esse plano
francês e britânico para pôr o Canal sob era interessante aos britânicos, que viram
controle internacional, mas, embora não uma chance de passar um comboio pelo
gostassem de Nasser, eles se opunham ao Canal contra a oposição dos egípicios, e, as-
uso da força até que todos os métodos tives- sim, fazer com que o Egito ficasse mal aos
sem sido usados e isso ficasse claro. olhos dos Estados Unidos. Dulles acabou
POLÍTICA MUNDIAL | 335

com o esquema por desconfiar que a Grã- Só um gesto espetacular poderia pôr fim
-Bretanha e a França poderiam usá-lo para a essa confusão mortífera. Além disso, Israel
começar a atirar; disse que o governo dos queria romper o bloqueio árabe do Golfo de
Estados Unidos não tinha poderes para for- Aqaba e, assim, conquistar uma saída garan-
çar os capitães dos navios norte-americanos tida aos países da Ásia e da África a partir
a pagar pedágio à associação em vez de ao do porto de Eilat, que estava definhando no
governo egípcio. A Grã-Bretanha e a Fran- extremo do golfo; até mesmo as ligações aé-
ça encaminharam a disputa ao Conselho de reas de Israel com a África eram inseguras.
Segurança, enquanto diziam explicitamente A abertura do Estreito de Tiro, na entrada
que se reservavam o direito de usar a força. do Golfo, compensaria Israel pela recusa do
Quando o Conselho se reuniu em 5 de outu- Egito em permitir que navios indo ou vindo
bro, o Egito propôs negociações, enquanto a de Israel usassem o Canal. Mas a capacidade
Grã-Bretanha e a França apresentavam um de Israel não era igual a suas intenções. Os
plano para controle internacional do Canal. novos bombardeiros russos do Egito estavam
Negociações extraoficiais, fora do Conselho, em posição de atacar as cidades de Israel e
avançaram bastante, mas o Egito persistia causar pânico entre os imigrantes mais novos
em sua recusa a aceitar o controle interna- que ainda não tinham se acostumado à vida
cional e o plano anglo-francês foi derrotado em um país sob cerco. A força aérea de Israel
pelo veto russo. mal tinha condições de defender essas cida-
Os franceses foram ficando cada vez des, mesmo com seus novos bombardeiros
mais irritados com os britânicos. Foram franceses, nem de proteger as forças terres-
estabelecidos comandos conjuntos entre os tres do país que operavam no deserto aberto,
dois países no início de agosto, mas a pers- e não tinha condições de bombardear os ae-
pectiva de ação por parte dos anfitriões, que roportos egípcios e impedir que a força aérea
se moviam lentamente, diminuiu à medida decolasse. Em junho de 1956, Israel concluiu
que os britânicos oscilavam entre o desejo com a França um acordo para o fornecimen-
de manter o passo com os franceses e sua to de armas e inteligência que definiram a
ansiedade de não ficar mal com os norte- determinação israelense de ir à guerra, mas
-americanos. No final de setembro ou início ainda ficava muito aquém de uma garantia
de outubro, os franceses estavam voltando à de vitória. Israel precisava de bombardeiros
sua linha de cooperação com Israel, da qual franceses operando a partir dos aeropor-
tinham sido desviados pelo atrativo de uma tos para defender suas cidades, e também
operação anglo-francesa em resposta à na- de bombardeiros para atacar os aeroportos
cionalização da companhia do Canal. egípcios. Para o segundo propósito, as únicas
Israel tinha fortes razões para entrar em aeronaves disponíveis eram os bombardeiros
guerra com o Egito. As incursões em Israel britânicos no Chipre.
por parte dos fedayeen* a partir da península Os franceses saíram em busca de montar
do Sinai tinham se tornado mais ousadas e essa operação tripartite, e conseguiram. Em
mais frequentes. As terras próximas à fron- outubro, ministros franceses transmitiram
os planos israelenses aos ministros britâni-
teira estavam ficando perigosas demais para
cos; em 16 de outubro, os primeiros-minis-
a agricultura, e o governo israelense temia
tros e ministros do exterior britânico e fran-
ataques até mesmo no centro de suas cidades.
cês se reuniram em Paris sem mais ninguém
presente. Os britânicos estavam relutantes
* N. de R.T.: Guerrilheiros. em embarcar em qualquer cooperação com
336 | PETER CALVOCORESSI

Israel que não fosse a mais furtiva, em fun- tados Unidos que exigia que os israelenses se
ção das repercussões no mundo árabe, mas retirassem para suas fronteiras. A Grã-Breta-
Ben-Gurion insistia em um compromisso nha e a França a vetaram, mas a Assembleia
formal por parte dos britânicos, em quem Geral, convocada a partir da resolução Uni-
ele não confiava, e o garantiu em uma reu- dos pela Paz (um procedimento adotado em
nião secreta em Sèvres, na qual o secretário 1950, a partir de uma iniciativa ocidental para
britânico de relações exteriores se encontrou permitir que a Assembleia fizesse recomen-
com o ministros de França e Israel, poste- dações sobre questões em que o Conselho
riormente autorizando a assinatura de um de Segurança fosse obstruído por um veto),
tratado secreto tripartite. Nesse momento, o adotou, nas primeiras horas de 2 de novem-
comandante em chefe israelense alterou suas bro, um apelo ao cessar-fogo. Na ONU, um
ordens de batalha, que eram de um ataque pequeno grupo que incluía o secretário-geral,
de força semelhante aos anteriores mas de Dag Hammarskjöld, e o ministro canadense
maior porte, e propôs, em lugar disso, enviar de relações exteriores, Lester Pearson, traba-
suas forças ao deserto aberto, pressupondo lhava para interromper o ataque anglo-fran-
que os ataques britânicos às bases aéreas cês que se aproximava por mar e por terra
egípcias dariam às tropas israelenses imuni- contra o Egito (o qual, ao contrário do israe-
dade em relação aos ataques aéreos. lense, ainda não tinha sido lançado) e para re-
Israel atacou em 29 de outubro e re- cuperar o controle de uma situação alarmante
cebeu o devido apoio antecipado da Grã- impondo um cessar-fogo e despachando uma
-Bretanha e da França (os franceses também força internacional à região. O ataque anglo-
impediram a frota egípcia de atacar a costa -francês começou com paraquedistas em 5 de
israelense), mas a força aérea egípcia estava, novembro. No dia seguinte, uma armada que
de qualquer forma, incapacitada, já que os partiu de Malta desembarcava tropas, mas,
russos, que ainda estavam no controle ope- no mesmo dia, a Grã-Bretanha deu ordem de
racional dos Ilyushin 28, ordenaram que parar, e a França, depois de alguma hesitação,
seus pilotos saíssem das áreas de batalha. A também desistiu.
Grã-Bretanha e a França divulgaram um ul- A decisão da Grã-Bretanha foi resulta-
timato a Israel e Egito, exigindo que ambos do da acumulação de pressões, pois, mais do
se retirassem até 16 km do Canal – um ar- que a França, o país estava dividido. A oposi-
tifício para preservar a ficção de que a Grã- ção parlamentar, grande parte da imprensa e
-Bretanha não tinha conspirado com Israel. uma parte substancial do povo se opunham
Nenhum dos lados atendeu ao ultimato: o à política do governo. O próprio partido
Egito porque o Canal estava 160 km dentro de Eden e uma maioria do país lhe davam
de suas fronteiras, e Israel porque suas for- apoio permanente, com exceção no uso da
ças estavam a alguma distância do Canal e força, para o qual nunca houve uma maio-
não pretendiam chegar perto. A campanha ria popular. A existência de dúvidas dentro
israelense estava praticamente terminada do governo era conhecida. Os membros in-
em 2 de novembro, quando seus principais dependentes da Commonwealth também
objetivos – eliminar as bases dos fedayeen, estavam divididos. A Austrália e, com me-
abrir o Estreito de Tiro e obter uma vitória nos entusiasmo, a Nova Zelândia, apoiavam
sólida contra o Egito – estavam garantidos. Eden, mas o Canadá e os domínios mais no-
Algumas horas depois do primeiro ata- vos, não (ainda não havia membros africa-
que israelense, o Conselho de Segurança se nos independentes). Contudo, essa oposição
reuniu para examinar uma resolução dos Es- tinha sido prevista e desconsiderada, e, por
POLÍTICA MUNDIAL | 337

essa razão, os processo de consulta na Com- da rebelião na Hungria para se meterem em


monwealth foram omitidos, e os governos- questões do Oriente Médio, mas, nesse dia,
-membros, como os assessores de alto nível propuseram a Washington uma ação con-
em Whitehall e os embaixadores britânicos junta para forçar a Grã-Bretanha e a França
pertinentes no exterior, foram mantidos na a desistirem e ameaçaram, vagamente, usar
obscuridade. Mas a razão decisiva para sus- foguetes contra esses dois países. Também
pender a operação foi não ter obtido o apoio deram indicações de que poderiam permi-
dos Estados Unidos e não ter previsto o que tir a ida de voluntários ao Oriente Médio,
implicava sua oposição. mas essas declarações só foram feitas depois
O ataque ao Egito causou a maior crise que a luta terminou, exceto em um caso em
financeira na Grã-Bretanha desde 1945. O que Khruschev fez, em uma festa em Mos-
país perdeu, no saldo, 400 milhões de dóla- cou, declarações sobre voluntários que não
res no ultimo trimestre de 1956, as retiradas foram informadas na imprensa russa. A
significaram provavelmente metade disso, ameaça russa de usar foguetes – que foi le-
mas foram parcialmente compensadas por vada a sério pela inteligência britânica por
um ou dois influxos excepcionais que fo- algumas semanas – foi contraposta por uma
ram creditados no período. A libra esterlina ameaça norte-americana de retaliar, depois
estava saudável, e as reservas, mais do que da qual nada mais se ouviu sobre esse as-
adequadas para propósitos normais; mas sunto. Com sua intervenção, os russos tive-
perdas dessa ordem só poderiam ser su- ram uma razoável vitória de propaganda no
portadas por algumas semanas sem ajuda mundo árabe, é improvável que eles jamais
externa para preservar o valor de troca da tenham tido qualquer outra intenção.
moeda. Ficou claro que o país teria de fazer Os ganhos de Israel incluíam a extirpa-
empréstimos para salvar a libra (que, fora a ção dos fedayeen de suas fronteiras com o
guerra, não estava sob ameaça) e que nem Egito e a desobstrução do porto de Eilat, que,
os Estados Unidos nem o FMI empresta- de uma aldeia de pouco mais de mil habitan-
riam as quantias necessárias até que a luta tes passou a ser um porto florescente de mais
acabasse. A profetizada corrida à libra, que de 15 mil, realizando comércio com todo o
aterrorizava Eden e muitos de seus colegas mundo e tornando o bloqueio do Canal de
de gabinete, não ocorreu, mas a situação foi Suez inofensivo. Na década seguinte, Isra-
exagerada pelo chanceler do Tesouro, Ha- el se tornou uma potência nuclear, manteve
rold Macmillan (que sairia do desastre como seu aliado francês e conquistou novos com-
o próximo primeiro-ministro), e, sem aviso promissos por parte dos Estados Unidos e
a seus aliados, a Grã-Bretanha abandonou o da Grã-Bretanha. Esses países declararam,
empreendimento. (Uma consequência des- em 1957, que consideravam o Estreito de
se desastre foi fazer com que os sucessores Tiro como um curso d’água internacional
de Eden insistissem mais no direito da Grã- e agiriam para garantir passagem livre para
-Bretanha de ter um lugar na mesa de deci- o Golfo de Aqaba. (Os estreitos certamente
sões das questões mundiais, em detrimento eram águas internacionais, mas o direito in-
de sua atenção a questões europeias.) ternacional demandava que os países ripá-
Nesses cálculos, havia um elemento rios dessem o direito de passagem a todos os
subsidiário que pode ter tido algum efeito navios se eles rumassem a águas internacio-
sobre algumas pessoas: a entrada em cena nais ou ao território de outro país.) Os árabes
dos russos. Até 5 de novembro, eles esta- continuavam a falar na eliminação de Israel,
vam preocupados demais com a supressão mas a retórica começava a soar como uma
338 | PETER CALVOCORESSI

máscara, escondendo a convicção de que o cluíam o fim do império na Ásia e a reversão


país tinha chegado para ficar. Mesmo assim, dos papéis da Grã-Bretanha e dos Estados
não houve paz, apenas uma suspensão da Unidos no mundo do petróleo. O recuo bri-
guerra com um debate crescente de ambos tânico começou, ainda que de forma imper-
os lados sobre a necessidade de outra rodada. ceptível, na década de 1940, com a renún-
O fiasco de Suez tornou mais dramática cia ao mandato palestino e a transferência
a evaporação do poder britânico no Oriente aos Estados Unidos da posição britânica na
Médio. Os planos de construir uma nova re- Turquia pela Doutrina Truman. Em 1956, o
lação com o Egito e com a região depois da Oriente Médio estava dominado, não pelos
guerra geralmente iam contra a capacidade britânicos nem por qualquer outro império,
britânica e o clima no país. As causas eram mas pelas estratégias dos Estados Unidos na
principalmente financeiras, mas também in- Guerra Fria e seu compromisso com Israel.
De Suez a morte
de Nasser 11
Reavaliações Enquanto os destroços ainda caíam,
os Estados Unidos tentaram recomeçar
A Guerra de Suez elevou em muito o pres- de zero com a Doutrina Eisenhower. Essa
tígio de Nasser, que só havia garantido a iniciativa partia dos pressupostos de que,
liderança do Egito em 1954. Suez o confir- com a derrota dos britânicos, passara a ser
mou nela e o tornou popular, além de um necessário aos Estados Unidos assumir a
líder militar. Ele tinha preservado a cabeça iniciativa e preencher um vácuo que, caso
e a dignidade, tinha saído intacto de um contrário, poderia ser ocupado pela URSS.
violento ataque imperialista e de uma in- Entre 400 e 500 milhões de dólares seriam
vasão israelense, e tinha demonstrado seu desembolsados em dois anos como ajuda
poder no mundo árabe, quando até mesmo econômica e militar a quem estivesse dis-
Nuri es-Said, o amigo mais firme da Grã- posto a estabelecer acordos com os Estados
-Bretanha, sentiu-se obrigado a condenar a Unidos autorizando e convidando ao uso
ação britânica e propor a expulsão do país de armas norte-americanas para proteger
do Pacto de Bagdá. A Jordânia também re- a integridade e a independência dos signa-
jeitou seus tradicionais vínculos britânicos tários, caso estes fossem ameaçados com
e os subsídios que vinham com eles, de- agressão aberta por parte de qualquer nação
nunciou seu tratado com a Grã-Bretanha e controlada pelo comunismo internacional.
colocou, em seu lugar, a aliança egito-síria Não se esperava que Egito ou Síria estabe-
de 1955 (à qual também pertenciam a Ará- lecessem acordos, mas Eisenhower enviou
bia e o Iêmen). Nasser ficou com o Canal um emissário especial para Oriente Médio
e mostrou que poderia operá-lo, além de para fazer com que o maior número possível
também obter a represa. Os norte-ameri- aceitasse. Seu único sucesso foi no Líbano,
canos, que podem ser considerados como onde, mais por cortesia do que por entu-
os desencadeadores de tudo ao abandonar siasmo, um líder cristão entrou no acordo
o projeto da represa, tinham apoiado um obrigatório – e sofreria mais tarde por sua
regime que deixaram visivelmente de ad- decisão. O rei Saud, da Arábia Saudita, foi
mirar e ficaram, depois disso, sem uma po- gentil e fez uma visita a Washington, mas
lítica. Em júbilo, os russos reivindicavam não assinou nenhum acordo. Na Jordânia
todo o crédito e o receberam em grande houve rebeliões antiamericanas. A Doutrina
parte. Aceitaram financiar a Represa de Eisenhower era uma nova versão do velho
Assuã no lugar dos Estados Unidos e da plano de construir uma frente antirrussa no
Grã-Bretanha. Oriente Médio, e seu fracasso se devia ao
340 | PETER CALVOCORESSI

crescimento do neutralismo entre os ára- militar liderado pelos generais Abdul Karim
bes que, principalmente depois da Guerra Kassem e Abdul Salem Aref. Entre os revo-
de Suez, não se consideravam mais indefe- lucionários havia comunistas, cuja presença
sos contra grandes potências estrangeiras e no centro do poder alarmava o Ocidente e
entendiam que o declínio da Grã-Bretanha seduzia os russos. Norte-americanos e bri-
poderia ser seguido, não por uma outra tânicos, desanimados por essa revolução
dominação estrangeira, mas por nenhuma no centro do Pacto de Bagdá, movimenta-
dominação. ram forças simultaneamente para o Líbano
Os russos reagiram com esperanças e a Jordânia, quando o presidente libanês
aos espaços criados na Síria e no Iraque, Camille Chamoun invocou a Doutrina Ei-
mas com resultados decepcionantes. Com a senhower e o rei Hussein, da Jordânia, o
primeira, de onde vinham relatos exagera- tratado anglo-jordaniano. (A solicitação da
dos do comunismo se espalhando, a URSS Jordânia para que a Grã-Bretanha intervies-
concluiu acordos econômicos e militares, se foi realizada em Londres.) Na Jordânia, a
enquanto a Síria expulsou três diplomatas força da Grã-Bretanha salvou a monarquia
norte-americanos e realizou um expurgo do em um momento em que sua queda teria
exército. A Turquia, perturbada por esses gerado distúrbios, deixando o país aberto a
elementos, concentrou forças em sua fron- um ataque por parte de Israel. No Líbano,
teira sul. O Egito enviou tropas, que foram havia uma guerra civil em andamento, que
recebidas em Damasco com aclamação. A ameaçava o equilíbrio religioso sobre o qual
tensão foi relaxada temporariamente, mas, se baseara a prosperidade do país por déca-
em janeiro de 1958, alguns oficiais sírios fo- das. O governo libanês invocou a ONU em
ram ao Egito e pediram a Nasser que decla- maio, mas, na época da revolução no Iraque,
rasse uma união dos dois países para evitar em julho, os riscos de aumentar o conflito
que os comunistas tomassem o poder em civil e religioso tinham se tornado tão gran-
Damasco. Os nacionalistas pan-árabes do des que os fuzileiros navais enviados pelo
Partido Ba’ath sírio ficaram alarmados com presidente Eisenhower foram saudados por
a crescente influência dos russos e do prin- uma grande maioria. Em ambos os países,
cipal, às vezes único, comunista sírio Khaled contudo, a intervenção estrangeira era um
Bakdash. Preferindo os egípcios aos comu- fator de estabilização e não pesou contra os
nistas, eles instigaram uma ação política que interventores, principalmente porque eles
Nasser, embora hesitante, não se sentiu em conseguiram sair rapidamente com a aju-
condições de rejeitar diante do argumento da de Hammarskjöld (secretário-geral da
de que a recusa egípcia não deixaria alter- ONU). No Líbano, um novo presidente, o
nativa ao comunismo. Em 1o de fevereiro de general Fuad Shehab, membro de uma anti-
1958, foi proclamada uma República Árabe ga família maronita, conseguiu restabelecer
Unida, consistindo em Egito e Síria. O Iê- o equilíbrio tradicional do país.
men estabeleceu vínculos pouco rígidos A revolução em Bagdá parecia, à primei-
com ela em março. ra vista, outra ligação na cadeia das oportuni-
No Iraque, o rei hashemita Faiçal II e dades russas que incluíam a hostilidade árabe
seu primo jordaniano retaliaram com uma ao Pacto de Bagdá, a compra de armas dos
Federação Árabe, mas essa união teve vida tchecos, a Guerra de Suez, o financiamento
curta, já que, em 14 de julho de 1958, Fai- da Represa de Assuã, a participação russa na
çal, outros membros de sua família e Nuri conferência afro-asiática no Cairo em 1957
es-Said foram assassinados em um levante e uma visita de Nasser à URSS em 1958. O
POLÍTICA MUNDIAL | 341

Iraque se retirou do Pacto de Bagdá (que foi riam ser os mesmos. Esse acordo não era do
rebatizado de Organização do Tratado Cen- gosto dos chineses, e, quando se cogitou a
tral –Central Treaty Organization, Cento – e realização de uma conferência internacional
mudou sua sede para Ancara). Mas o próprio sobre questões do Oriente Médio, Pequim
Kassem não era comunista. Os comunistas se opôs à sua realização sem a participação
iraquianos não conseguiram consolidar suas chinesa, e a conferência nunca aconteceu.
vantagens, e o país se tornou mais ou me- Embora a eficácia chinesa no Oriente Médio
nos neutro, onde os russos eram tão pouco fosse mínima, a China começou a penetrar
bem-vindos quanto qualquer outra grande na região em 1958, dando apoio unicamente
potência. Os russos, que tinham tomado aos comunistas iraquianos quando os rus-
cuidado para não ofender os nacionalistas sos estavam defendendo políticas mais am-
ao se comprometer com os comunistas, en- bíguas, ajudando os republicanos iemenitas
goliram sua decepção e se redirecionaram a e, mais anti-Israel do que os russos, recebe-
terreno mais conhecido. Eles tentaram (sem ram o líder palestino Ahmed Shuqueiri em
conseguir), em 1959, seduzir o xá do Irã e Pequim quase como chefe de Estado e lhe
afastá-lo do campo ocidental, e começaram prometeram ajuda militar. Zhou visitou o
a demonstrar interesse em melhores relações Cairo em 1963 e em 1965, mas os chineses
com a Turquia depois da queda de Mende- estavam distantes e não eram mais admira-
res em 1960 – no que foram posteriormen- dos do que outros forasteiros.
te ajudados pela decepção dos turcos com a Dentro do mundo árabe, a Revolução
proibição da invasão do Chipre pelos Estados Iraquiana, que se esperava equivocadamen-
Unidos. A URSS reconheceu o Kuwait em te que causasse o desaparecimento precoce
1963 e a Jordânia em 1964, e a presença de da monarquia na Jordânia, deu origem a um
Khruschev e a abertura da Represa de Assuã, novo padrão ao redirecionar o Iraque, da ca-
em 1964, reafirmaram a utilidade da presen- tegoria tradicional de monarquia para a de
ça russa no mundo árabe. república. Os anos de 1958 a 1963 foram um
A revolução iraquiana também gerou período de governo fraco. O Iraque não ge-
intervenção chinesa nas questões do Oriente rou coisa alguma que equivalesse a Nasser.
Médio ou, na terminologia dos chineses, na O poder militar predominante e o mundo
Ásia Ocidental. Até esse momento, os inte- político civil estavam divididos internamen-
resses norte-americanos e russos no Oriente te e entre si. Os primeiros líderes militares,
Médio tinham sido abertamente antagôni- Abdul Karim Kassem e Abdul Salem Aref,
cos. As políticas russas no Irã em 1945 por eram hostis um ao outro e divididos em
um lado, e por outro a Doutrina Truman, o muitas questões, notadamente as relações
Pacto de Bagdá, as bases norte-americanas com o Egito de Nasser e a florescente Repú-
de Dhahran, na Arábia Saudita, e de Whelus blica Árabe Unida.
Field, na Líbia, e a Sexta Frota dos Estados Dos principais partidos civis, o Ba’ath
Unidos no Mediterrâneo: transformaram era hostil a Kassem, que tentava usar os co-
o Oriente Médio em um anexo da Guerra munistas para manter o que se tornou um
Fria. Em 1956, contudo, norte-americanos e ato malsucedido de equilíbrio. O Ba’ath ten-
russos estavam de acordo sobre a necessida- tou assassinar Kassem em 1959, garantiu sua
de de frustrar os britânicos e os franceses em queda e sua morte em 1963, em um golpe
Suez, e a Revolução Iraquiana de 1958 for- orquestrado pela CIA, e elevou Aref a uma
taleceu a visão de que alguns dos interesses presidência projetada para ser mais decora-
das superpotências no Oriente Médio pode- tiva do que executiva. Um ano depois, Aref
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tomou o poder total com um regime expli- além de um socialismo superficial, e o flu-
citamente militar, mas, em 1966, morreu em xo de egípcios à Síria, junto com as políticas
um acidente e foi sucedido por seu irmão de Nasser – para a reforma agrária e para
mais frágil, Abdul Rahman Aref. Os Aref forçar todos os partidos políticos a partici-
representaram um interlúdio entre Kassem parem de um movimento ou frente comum
e Saddam Hussein, dado que, depois de dois –, desgastou uma união que tinha sido um
anos, o Ba’ath voltou ao poder, mas tendo casamento forçado desde o princípio. Os sí-
como presidente o general ba’athista Has- rios retomaram a ideia de que uma união
san al-Bakr e, assim, com os militares no com o Iraque deveria ser mais adequada a
controle em lugar de políticos civis. Com a eles (principalmente depois de que o Ba’ath
cobertura do novo presidente, Hussein pas- iraquiano ajudou a derrubar Kassem). Em
sou a trabalhar para criar um exército pro- 1961, uma revolução na Síria causou a dis-
fissional poderoso e transformar o Iraque solução da união.
em uma autocracia totalitária sob controle No Iêmen, vinculado de forma flexível
dele e de sua família ampliada. A visão de à República Árabe Unida, uma tentativa
Hussein sobre o Iraque não era, todavia, de derrubar o imamato e instalar uma re-
simplesmente a de um clã, pois ele aspirava pública levou à guerra civil, na qual Nasser
a usar sua base de poder pessoal como mo- apoiou o líder republicano, o brigadeiro Ab-
tor para um Estado-Nação que se tornaria dullah Sallal, sem se dar conta de que esta-
um importante ator no Oriente Médio por va se enredando no Iêmen por vários anos
meio do poder militar, riqueza econômica e e com uma quantidade final de soldados de
emoções nacionalistas: por alguns anos, ele 50 a 60 mil. O imã foi apoiado pela Arábia
cortejou muçulmanos xiitas e sunitas. Saudita, de forma que a guerra civil iemeni-
ta evoluiu para uma competição indireta en-
tre dois dos principais países árabes. Depois
O declínio de Nasser e a de dois anos, ambos consideraram que o es-
Guerra dos Seis Dias forço não compensava; e, em 1965, Nasser
viajou à capital saudita para se reunir com
No início dos anos de 1960, o prestígio de o rei Faiçal (um membro relativamente pro-
Nasser decaiu em relação ao seu pico pós- gressista de sua casa, que tinha deposto seu
-Suez. A revolução de 1952 teve uma forte irmão Saud no ano anterior), deu um fim à
corrente socialista entre oficiais que eram, guerra civil e inclusive implementou uma
em sua maioria, de origem camponesa e ti- aproximação entre o Egito e a Arábia Saudi-
nham muitas esperanças, ainda que vagas, ta – os protagonistas de tendências opostas,
sobre os benefícios que adviriam da distri- socialista e tradicionalista, no mundo árabe.
buição da terra e das cooperativas agrícolas, Antes, no mesmo ano, ele iniciou uma
mas os resultados decepcionantes levaram aproximação com a Jordânia.
a uma reorientação em direção a desen- Esse ressurgimento do tema da unidade
volvimento industrial, nacionalização e árabe se devia tanto à apreensão em relação
controles estatais. Nas questões externas, a aos planos de Israel para desviar as águas do
queda do ramo sênior (Iraquiano) da linha rio Jordão quanto a uma fadiga da guerra
hashemita não trouxera ganhos ao Egito. no Iêmen. Em 1955, um plano norte-ame-
A união com a Síria não foi um sucesso: os ricano para a distribuição igualitária dessas
dois países não tinham fronteira, Nasser e o valiosas águas foi rejeitado pelos árabes em
Ba’ath tinham pouca coisa em comum para bases políticas, quando, então, Israel iniciou
POLÍTICA MUNDIAL | 343

as obras que levariam água da região da unidade árabe e o papel de Nasser como seu
Galileia, ao norte, ao deserto de Negev, ao líder iam na direção contrária. O lugar pro-
sul. Israel sustentava que a quantidade a ser blemático mostrou-se ser a Síria.
bombeada do curso principal do Jordão não A postura da Síria no Oriente Médio
excederia a cota israelense do plano de 1955, era inibida por suas políticas domésticas.
nem deixaria os níveis inferiores do rio in- A aliança do Partido Ba’ath com um grupo
devidamente salgados. Os árabes negavam alauita de oficiais do exército liderado pelo
essas afirmações. Prevendo que as obras general Salah Jadid (ver p. 324) era um ca-
israelenses estariam completadas em 1964, samento de conveniência que passava por
eles convocaram uma conferência no Cairo, cima de algumas diferenças desconfortáveis.
com a participação de monarquias tradicio- O exército não gostava dos elementos mar-
nais e repúblicas progressistas, para chegar a xistas e ateus do Ba’ath, mas aprovava suas
um acordo sobre como reagir. Essas reações inclinações antiparlamentaristas e valori-
incluíam o desvio de dois dos afluentes do zava sua organização provincial. Em 1966,
Jordão, o Hasbani, no Líbano, e o Banias, Jadid liderou um golpe com êxito, mas, aos
na Síria – este a uma distância que poderia poucos, perdeu terreno para seu colega mais
ser vista e alcançada a partir da fronteira is- sutil e ministro da defesa, o general Hafez
raelense; em segundo, a criação de um Alto as-Assad. Jadid dava um ombro amigo aos
Comando Árabe unificado que, com uma palestinos na Jordânia, que estavam com
ambivalência útil, poderia ser interpretado medo de serem atacados pelo rei Hussein e
como um modo de impedir ataques israe- seu exército, os quais, por sua vez, temiam
lenses contra as obras no Banias ou como que os palestinos visassem tomar o poder
uma forma implícita de impedir os sírios, em seu país, com ajuda da Síria.
os mais imprevisíveis dos aliados árabes, de Jadid estava disposto a ajudar os pa-
começar qualquer coisa por conta própria; lestinos; Assad, mais circunspecto, enviou
e terceiro, a promoção dos árabes palesti- tanques, mas não aeronaves, fazendo com
nos a algo próximo da soberania com uma que os jordanianos conseguissem incapaci-
Organização para a Libertação (a OLP), um tar os desprotegidos sírios e os forçar a um
exército e uma sede provisória em Gaza. (A recuo humilhante. Quando Jadid tentou co-
Al Fatah, criada por Yasser Arafat depois da locar a responsabilidade por esse revés em
Guerra de Suez, tornou-se o principal ele- Assad, este o prendeu e o deixou na prisão
mento da OLP, formada em 1964 e da qual até morrer, mais de 20 anos depois. Hussein
Arafat se tornou presidente em 1969. Sua subjugou os palestinos que, tanto militantes
sede ficou na Jordânia em 1970, no Líbano quanto civis desarmados, fugiram para o Lí-
até 1982 e na Tunísia até 1994.) bano um ano depois.
A unidade árabe era superficial como Incertezas e enfrentamentos nas fron-
sempre havia sido. Os palestinos na Jordâ- teiras de Israel com a Jordânia e a Síria
nia eram uma ameaça a esse Estado e sua contribuíram para os rumores de que esta
monarquia. Faiçal acabou sendo um aliado estaria movimentando tropas para um ata-
duvidoso, o acordo de 1965 sobre o Iêmen que a Israel. Esses relatos não eram verda-
deu em nada e ele começou a criar um bloco deiros. Sua proveniência e seu propósito –
tradicionalista ou islâmico dentro do mun- provavelmente russos – eram incertos, mas
do muçulmano. Fez visitas ao xá do Irã e em maio de 1967, causaram uma guerra.
ao rei da Jordânia e encomendou armas do Nasser não queria a guerra e não gostava
Ocidente em quantidades preocupantes. A muito do governo sírio, mas estava (como
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em 1958) mal informado sobre as questões losos. Quando a situação evoluiu para uma
dentro da Síria e incomodamente ciente do crise, a principal preocupação de Israel era
declínio de seu próprio prestígio; ele achava garantir que os Estados Unidos não inter-
que tinha de fazer algo, e então agiu. Exigiu viessem contra o país, como tinham feito
a retirada da Força de Emergência da ONU em 1957. Os norte-americanos não estavam
(UN Emergency Force, Unef) que estava dispostos a ajudar Israel militarmente, nem
no Sinai desde 1957 e despachou forças foi pedido que o fizessem, mas não se opu-
egípcias para atacar posições da Organiza- nham à ação israelense, e essa aquiescência
ção. Dois dias mais tarde, após ter sua de- era o suficiente para Israel.
manda rejeitada pelo comandante da ONU, As principais ações de Nasser, resulta-
que disse não ter autoridade para atendê-la, do de um sentido de obrigação, tinham en-
Nasser a repetiu a U Thant. Depois de con- gendrado no Egito e em outros lugares uma
sultar seu comitê assessor, U Thant aceitou inundação de entusiasmo que fez com que
e as forças da ONU se retiraram de Sharm ele fosse ainda mais longe, trouxesse o rei
el-Sheikh, deixando o Egito no controle Hussein ao Cairo para assinar um tratado,
do Estreito de Tiro. No dia anterior, Nas- estabelecesse um comando conjunto (ao
ser tinha declarado que o Estreito seria fe- qual o Iraque aderiu alguns dias mais tar-
chado a navios com bandeira israelense e a de) e desconsiderasse os alertas russos para
contrabando de guerra em qualquer navio ir com calma. O resultado foi um desastre.
(mas não ao comércio israelense em navios Israel atacou primeiramente, destruindo a
não israelenses). força aérea egípcia em solo e, assim, deixan-
Israel se retirou de Sharm el-Sheikh, do as forças egípcias no Sinai indefesas; 15
em 1957, confiando em promessas ociden- mil soldados foram mortos.
tais de garantir livre passagem pelo Estreito, Toda a península do Sinai foi ocupada
cuja abertura havia sido um dos principais por Israel. A entrada quixotesca da Jordânia
objetivos do país ao travar a guerra contra o na guerra custou todo o território a oeste do
Egito em 1956. Israel declarou que o fecha- rio Jordão e sua metade da cidade de Jerusa-
mento do Estreito constituiria casus belli e, lém. A Síria recebeu o mesmo tratamento su-
no dia em que a UNEF se retirou, o primei- mário alguns dias depois, perdendo as Coli-
ro-ministro israelense Levi Eshkol concla- nas de Golan, e as forças de Israel avançaram
mou publicamente as potências ocidentais quase até Damasco. Nasser, que havia entra-
a implementar sua garantia. Washington do em cena de novo, apenas para desabar de
e Londres divulgaram declarações sobre forma tão humilhante quanto Faruk, 20 anos
águas internacionais, e o secretário britâni- antes, renunciou, mas outros bodes expiató-
co do exterior George Brown propôs uma rios foram encontrados (e executados), e ele
declaração marítima cuja relação com a cri- sobreviveu para cair um ano depois.
se parecia remota. De Gaulle propôs conver- Houve muito debate sobre a legalidade
sações entre quatro potências, mas os russos e as consequências políticas da decisão de
não aceitaram. Embora Israel não estivesse U Thant de retirar a UNEF e de fazê-lo tão
provocando a guerra, havia israelenses que rapidamente. A força tinha sido mobiliza-
viam vantagens para seu país em um novo da com a concordância do Egito, que fora
enfrentamento. As vantagens e as desvanta- necessária por a operação ter sido lançada
gens foram avaliadas abertamente de uma segundo o Capítulo VI e não o VII da Car-
maneira que, em termos gerais, dividiam ta da ONU. Mas Hammarskjöld tinha feito
falcões militares e políticos civis mais caute- um acordo com Nasser, e surgiu a questão
POLÍTICA MUNDIAL | 345

de se, segundo esse acordo, Nasser cance- cidade de Jerusalém, carregada de emoções.
lou, em qualquer grau, o direito soberano As Colinas de Golan e o Sinai poderiam ser
egípicio de exigir a retirada da força. Por negociados por paz formal e reconhecimen-
um lado, afirmava-se que, segundo cor- to. Nasser estava aberto a essa negociação,
respondência Nasser-Hammarskjöld, a mas não disposto a agir unilateralmente, e,
Unef só poderia ser retirada de solo egíp- na ausência de ações eficazes de ambos os
cio com consentimento mútuo, e que essa lados, deixou-se a oportunidade escapar.
limitação só se aplicaria enquanto a Unef Em agosto, quando os líderes árabes se reu-
estivesse cumprindo seu papel original de niram em Cartum, sua postura foi intran-
dar fim às hostilidades de 1956-1957 – um sigente. A Arábia Saudita e o Kuwait con-
papel que tinha sido completado muito cordaram em compensar o Egito por suas
antes de 1967. (Nunca foi parte do papel perdas com o Canal, e a Jordânia por suas
da Unef manter aberto o Estreito de Tiro. perdas com a captura de todas as suas terras
Essa obrigação, se alguém a tinha, era das a oeste do rio Jordão, o que incluía a receita
potências ocidentais.) Mas fosse qual fos- resultante de todos os turistas e peregrinos
se a verdadeira interpretação dos docu- que visitassem Jerusalém. Em troca, o Egi-
mentos em questão, U Thant teve de levar to concordou em sair do Iêmen e não fazer
em conta questões práticas. Seu Conselho alarde sobre o fim do ineficaz e oneroso boi-
Consultivo estava dividido, as forças da cote que os países produtores de petróleo ti-
ONU em campo estavam sendo expulsas nham aplicado contra os clientes ocidentais.
de suas posições, e dois dos governos que Foi dada uma sanção extraoficial para
forneciam forças haviam indicado que se discussões separadas e secretas por parte
retirariam independentemente da deci- da Jordânia com Israel. Vários termos de
são de U Thant. Nessas circunstâncias, ele paz foram debatidos, incluindo a passagem
não teve escolha. Se tivesse tergiversado e livre para a bandeira israelense no Estreito
atrasado, como alguns de seus críticos sus- de Tiro e no Canal de Suez e um reconhe-
tentam, não teria conseguido mais do que cimento final de Israel pelo Egito. Mas essa
fazer com que alguns de seus próprios sol- abordagem em partes não satisfez Israel,
dados fossem mortos. cuja intenção continuava sendo uma con-
As novas conquistas de Israel tornavam ferência de paz e negociações diretas entre
o país mais seguro e fortificavam sua cora- árabes e israelenses, sem intermediários
josa disposição e, em alguns setores, o ele- (em oposição à chamada fórmula Rhodes,
mento do nacionalismo israelense baseado segundo a qual cada lado se comunicaria
na divina providência. Embora esse territó- com o outro por meio da ONU ou de outro
rio fosse maior, suas fronteiras eram mais mediador). A luta recomeçou. A URSS, que
curtas. Suas tropas ficaram ao lado do Canal tinha perdido prestígio e, indiretamente,
de Suez e do Estreito de Tiro e sobre as Co- material bélico, decidiu rearmar o Egito. Em
linas de Golan, de onde se podia observar a outubro, um destróier israelense foi afunda-
região. Muitos israelenses esperavam agora do por egípcios usando armas russas. Com
ter o poder e o cacife para forçar seus vizi- o aumento da troca de fogo pelo Canal, Is-
nhos a estabelecerem a paz e reconhecerem rael decidiu forçar o Egito a um cessar-fogo
o Estado de Israel, com fronteiras não muito com retaliação massiva e profunda, mas
diferentes daquelas existentes antes da guer- o Egito, em lugar de ceder, fortaleceu-se;
ra. O ganho ao qual eles pretendiam se ape- os norte-americanos estavam igualmente
gar com tenacidade inegociável era a antiga preocupados.
346 | PETER CALVOCORESSI

Na frente jordaniana, as principais mu- ção 242/67, que condenava a aquisição de


danças resultantes da guerra de 1967 foram, território pela força, demandava a retira-
além das alterações de fronteira, o influxo da de Israel de suas recentes conquistas e
de 250 mil refugiados palestinos no país, defendia uma solução que incluísse seu re-
uma organização mais eficaz das forças de conhecimento, junto com um acordo justo
guerrilha palestinas e a conversão da Jordâ- para os refugiados palestinos. A resolução
nia em um alvo fundamental para ataques foi apoiada pelos árabes (não pela Síria)
israelenses. O colapso humilhante dos exér- depois de alguma hesitação, mas rejeitada
citos regulares dos países árabes intensificou por Israel. Essa pouco comum solidarie-
a crença dos palestinos de que era inútil de- dade entre grandes potências foi facilitada
pender desses países para recuperar as terras pelo receio de Washington e Moscou de
que haviam perdido na Palestina. Entretan- verem-se em lados opostos em uma guer-
to, eles exerciam um apelo fortemente emo- ra aberta que, felizmente para eles, durou
cional sobre grande parte do mundo árabe e apenas seis dias.
acreditavam serem capazes de bloquear ne- Os Estados Unidos queriam estabilida-
gociações árabe-israelenses que não levas- de no Oriente Médio, mas isso foi prejudica-
sem em conta suas reivindicações irreden- do pelo que parecia, aos árabes, um compro-
tistas. Sua principal arma era a ameaça de misso cada vez mais servil com Israel. O fim
desagregar o reino da Jordânia, onde, além da ajuda norte-americana ao Egito, em 1966
de constituirem metade da população e se (incluindo alimentos gratuitos pela Public
espalharem do campo para a capital e outras Law 480), jogou o Egito nos braços da URSS
cidades, agora tinham forças armadas. mesmo antes dos desastres da campanha de
Militarmente, eles não representavam 1967, mas a Rússia também queria estabi-
ameaça a Israel – mais uma razão para te- lidade na região, especificamente, para que
rem optado por ameaçar a Jordânia –, mas fosse reaberto o Canal à passagem de supri-
suas táticas de guerrilha provocaram Israel mentos ao Vietnã do Norte e para a flotilha
a implementar retaliações que caíram sobre estabelecida como símbolo permanente de
os países que os abrigavam. Em 1968, um seu alcance crescente no Oceano Índico. A
setor dos palestinos começou a sequestrar França, não mais dependente do petróleo do
aviões para divulgar a sua causa e dar vazão Oriente Médio depois da abertura dos cam-
à sua ira. Um avião da companhia israelense pos de petróleo da Argélia e da Líbia, se re-
El Al foi forçado a aterrissar em Argel, onde tirou do alinhamento israelense a que o go-
seus passageiros israelenses foram mantidos verno Mollet a tinha levado e, alarmada pelo
até serem libertados com mediação italiana, crescimento do poder naval russo no Medi-
e a aviação israelense destruiu 13 aviões em terrâneo Oriental e (potencial) Ocidental,
solo, em Beirute, em resposta a um ataque tentou romper o monopólio dos russos no
palestino a outro avião da El Al em Atenas. mundo árabe e dar aos árabes alguma mar-
Em Israel, o choque e a recuperação gem de manobra diplomática e comercial
de 1967 produziram uma rigidez que ca- oferecendo-se para vender armas ao Iraque
racterizou o restante do século e também e à Líbia. Assim como em 1956, em 1967 a
uma confiança na capacidade do país de principal preocupação da França no Orien-
derrotar a ameaça árabe e no apoio dos te Médio eram as implicações dos eventos
Estados Unidos para quase qualquer coisa ali ocorridos para o equilíbrio de poder no
que decidisse fazer. Em novembro de 1967, Mediterrâneo Ocidental. A Grã-Bretanha,
o Conselho de Segurança adotou a Resolu- ainda dependente do petróleo do Oriente
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Médio e ainda enredada no Golfo Pérsico, veu mísseis para a zona de trégua. Israel se
queria a paz em termos gerais e, particular- retirou das conversações de Jarring e pediu
mente, para a conveniência comercial de re- uma ajuda massiva dos Estados Unidos; re-
abrir o Canal. Mas a Resolução 242/67 não cebeu apenas parte de suas demandas, ficou
trouxe paz nem estabilidade. indignado com Washington e foi forçado
Em 1970, Israel resolveu dar fim a uma a retornar às negociações antes do final do
guerra de desgaste de dois anos na frente ano. As conversações foram uma tentativa
de Suez fazendo ataques aéreos ao Egito a de chegar a um acordo com base na Resolu-
poucos quilômetros do Cairo. Em resposta, ção 242, e não tiveram resultado, porque os
a URSS fortaleceu as defesas do Egito com árabes acreditaram que Israel tinha aceitado
mísseis, pilotos e operadores de foguetes; essa resolução ao pé da letra (os negociado-
no final daquele ano, a URSS estacionou res norte-americanos lhes deram essa im-
200 pilotos e 15 mil homens como parte de pressão), ao passo que Israel a considerava,
equipes de operação de mísseis no Egito e na melhor das hipóteses, como um ponto de
estava operando 80 estações de lançamen- partida para discussões gerais sobre todas as
to de mísseis, além de estações anteriores, questões em debate.
operadas por egípcios, mas equipadas com Os palestinos ficaram alarmados. Eles
mísseis russos. Israel foi forçado a desistir. previam uma negociação de Israel com o
A luta foi confinada mais uma vez ao Ca- Egito, seguida de outra com a Jordânia, que
nal e a seus arredores. Os Estados Unidos e os deixaria sem apoio. A Frente Popular
a URSS pressionaram seus clientes para que para a Libertação da Palestina, de George
começassem a conversar em lugar de lutar. Habash, um grupo pequeno, mas particu-
Israel concordou em conversar com base em larmente ativo, impaciente com a liderança
uma retirada para as fronteiras anteriores a de Arafat, recorreu a táticas violentas que
1967, e Nasser disse que o Egito reconhe- incluíram tramas contra a vida de Hussein
ceria Israel, que concordou que as negocia- e o sequestro de aviões norte-americanos
ções fossem indiretas (por meio de um ne- e britânicos. Hussein decidiu-se por um
gociador da ONU, o embaixador sueco na jogo de força com os palestinos, que esta-
Organização, Gunnar Jarring) ou diretas. vam transformando seu país e sua capital
Os Estados Unidos apresentaram um plano em um campo armado e o expondo a ata-
para um cessar-fogo como elemento preli- ques inimigos. Seu exército infligiu pesadas
minar para negociações sobre uma retirada perdas aos palestinos, mas o mundo árabe,
israelense e o reconhecimento pelo Egito do chocado pelo espetáculo da guerra fratrici-
Estado de Israel, que não gostou do plano, da, interveio e o forçou a assinar o que era,
assim como não gostaram os palestinos. na prática, um acordo de paz com Arafat,
Nasser o rejeitou e foi para Moscou, onde que assim recebeu status de chefe de Estado
ficou por duas semanas. Mas concluíram sem a inconveniência de ter um território
um acordo de cessar-fogo e uma trégua de para defender ou controlar. O rei se com-
90 dias: dentro de uma área de 50 quilôme- prometeu a apoiar os objetivos palestinos,
tros em cada lado do Canal, a luta pararia embora pouco tempo depois tenha entrado
e não seriam introduzidas novas unidades, em discussões com Israel, os quais tinham
dando-se início a conversações, sob os aus- poucas probabilidades de gerar termos de
pícios de Jarring. Esse acordo foi renovado paz aceitáveis a Israel e aos palestinos. Uma
em novembro de 1970 e em fevereiro de consequência da guerra interna da Jordânia
1971; mas foi rompido pelo Egito, que mo- foi a morte súbita de Nasser por um ataque
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cardíaco causado por seus esforços para res- converteriam o golpe de 1952 em uma revo-
taurar a paz na Jordânia. Ele foi sucedido lução social e econômica.
com tranquilidade constitucional pelo vice- A economia do Egito era frágil, interna
-presidente Anwar el-Sadat. e externamente. O país tinha muito pouca
A morte de Nasser retirou de cena o terra cultivável, uma economia de mono-
primeiro egípcio a governar seu país desde cultura (algodão), agricultura estagnada,
antes dos tempos de Alexandre, o Grande. quase nenhuma riqueza mineral, uma par-
O movimento que o trouxera ao poder tinha ticipação muito pequena no comércio in-
origens complexas. Buscava emancipação ternacional, pouca indústria, pouco capital
nacional, ressurgimento espiritual, refor- para desenvolver indústrias e uma popula-
mas sociais e modernização econômica e ção que crescia 3% ao ano. O setor relativa-
militar. Nasser queria livrar o Egito de uma mente pequeno da indústria modernizada
monarquia e uma classe alta parasíticas, ex- era de propriedade estrangeira, mas havia
tinguir a dominação britânica sobre o Egito uma burguesia nativa com alguns bens de
e o Sudão, e elevar o nível de vida miserá- capital, e Nasser tentou, inicialmente, obter
vel do povo através de uma distribuição de sua colaboração com o desenvolvimento e
renda mais igualitária, da extensão da terra a diversificação da econômica egípcia, mas
cultivável e da promoção de indústrias. Ele essa classe não tinha fé no novo regime e
adquiriu, além disso, os objetivos de liderar preferia colocar seu dinheiro em aplicações
todos os árabes contra Israel e contra os re- improdutivas no próprio país ou no exte-
gimes árabes considerados reacionários. rior, em vez de arriscá-lo na indústria. No
O movimento revolucionário no qual final dos anos de 1950, o desemprego mas-
ele foi inicialmente apenas um entre vários sivo e a pobreza esmagadora foram pouco
líderes era predominantemente, mas não afetados e Nasser recorreu a outras formas.
exclusivamente, uma coletividade militar A negativa do Ocidente de financiar a Re-
na qual ele logo se tornou a figura princi- presa de Assuã e o ataque anglo-francês ao
pal por força de sua personalidade e pela Egito, em 1956, tinham lhe dado razões para
eliminação de possíveis rivais. Os inimigos confiscar os bens de empresas estrangeiras,
do velho regime incluíram elementos – a e, no início da década de 1960, ele foi além
Irmandade Muçulmana à direita e os comu- e estabeleceu controle por parte do Estado
nistas à esquerda – que constituíam diferen- sobre uma parte maior da economia (além
tes centros de poder. Eles foram suprimidos do comércio varejista). Ele também foi am-
quase tão rapidamente quanto os paxás da pliando a reforma agrária, a partir de passos
velha ordem. Os partidos políticos foram modestos e ineficazes em 1952 (quando foi
banidos. Nasser driblou o líder nominal do estabelecido um limite de 200 feddan a cada
golpe, Neguib, que era suspeito de não ser propriedade, uma reforma que foi burlada
suficientemente implacável contra algumas de várias maneiras, como a transferência de
elites pré-revolucionárias. A monarquia foi partes das propriedades para parentes, e não
abolida, os latifundiários foram destituídos se aplicava a terras do Estado ou religiosas).
de parte de suas terras, ricos empresários Um plano quinquenal para os anos de 1960
foram dominados pelo nacionalismo. Em a 1965 visou a fazer com que o PIB crescesse
1954, Nasser negociou a retirada das forças em 7% ao ano, e conseguiu aumentá-lo em
britânicas da Zona do Canal e do domínio 5,5%, mas essa melhoria foi pouco sentida
britânico sobre o Sudão. O palco parecia pela população trabalhadora, cuja quantida-
pronto para as reformas econômicas que de aumentou nos mesmos anos em 4%.
POLÍTICA MUNDIAL | 349

O problema econômico de Nasser nun- busca consequente de Nasser por armas –


ca foi fácil, e ficou impossível em função de e os meios de pagar por elas – inicialmen-
sua política externa. Ele pode ter pretendido, te elevaram as despesas de defesa do Egito
em 1954, dedicar mais atenção e recursos às para além de todas as porcentagens normais
questões domésticas, mas a solução, naquele da renda nacional e depois forçaram Nasser
ano, de suas diferenças com a Inglaterra foi a tomar emprestadas quantias que o Egito
seguida quase que imediatamente por uma tinha poucas probabilidades de pagar. O di-
política israelense mais agressiva e pela ade- nheiro e outros recursos que poderiam ter
são da Grã-Bretanha ao Pacto de Bagdá, o ido para o desenvolvimento foram usados
que Nasser interpretava como intervenção para financiar um déficit em contas externas
britânica e norte-americana na política ára- que aumentou de forma alarmante a partir
be, ao lado de adversários que pretendiam de 1961. A guerra no Iêmen piorou as coi-
acabar com a revolução no Egito. Dessa for- sas. A guerra continuada com Israel privou o
ma, Nasser se viu cada vez mais envolvido Egito da ajuda e dos alimentos gratuitos dos
com questões externas. Os autores da revo- Estados Unidos. Quando Nasser morreu, os
lução sempre pretenderam criar um exér- egípcios estavam em situação material pa-
cito mais forte, mais eficiente e mais bem recida com a que estiveram 18 anos antes
equipado do que o de Faruk, e essa meta foi (embora tenha havido alguma melhora nas
intensificada pela necessidade de defender condições de vida nas cidades), e o próprio
o país contra Israel e a revolução contra o Egito estava na lista negra do Ocidente e em
Iraque de Nuri e seus amigos britânicos. A dívida para com a URSS.
12 A destruição do Líbano

Quando Nasser morreu, em 1970, a políti- e jordaniana, além de reconciliar Síria e Jor-
ca do Oriente Médio (com exceção do Irã) dânia, que quase haviam se enfrentado pela
estava dominada por um padrão bipolar: questão dos palestinos. Sadat estava bem
Israel-Estados Unidos versus Egito-URSS, preparado para esse tipo de exercício, já que
mas, em poucos anos, a situação parecia assustava os chefes de outros Estados mais
diferente. A aliança russa com o Egito se do que Nasser, e, embora tenha cometido o
rompeu; os Estados Unidos, embora não erro de supor que decidiria a questão árabe-
abandonando Israel, estavam cada vez mais -israelense em um ano, conseguiu, não ape-
constrangidos em sua função de proteto- nas se estabelecer em seu país, mas também
res, que não era muito compatível com o avançar para um acordo bilateral com Israel.
papel de pacificador que o país também Ele ofereceu, em fevereiro de 1971, abrir o
cultivava; os palestinos adquiriram nova Canal a navios de carga israelenses em troca
força, que depois seria posta em risco; os de uma retirada parcial ou a convocação de
exportadores de petróleo deram uma de- uma conferência com as quatro principais
monstração impressionante da eficiência potências externas, mas não houve avanços
das sanções econômicas; o Estado libanês nessas sensatas conversações, nem nas ne-
foi praticamente destruído. gociações de Jarring durante um ano. No
Sadat, como Nasser, encontrava-se sob ano seguinte, Sadat foi a Moscou duas vezes,
pressão de Moscou para chegar a um acor- deu-se conta de que não obteria a ajuda que
do com Israel, sob o pressuposto de que queria, concluiu que Brejnev tinha traído
este também estava sendo pressionado por o Egito ao prometer a Nixon manter o país
Washington. Os Estados Unidos e a URSS sem muito dinheiro e, com ousadia inespe-
oscilavam entre pressionar seus clientes e rada, disse aos especialistas e assessores rus-
ceder, pelo menos em parte, a suas deman- sos no Egito que fossem embora, o que eles
das por ajuda e armas. No final de 1971, a fizeram em questão de semanas.
ajuda norte-americana a Israel, depois de
ser contida, voltou a ser substancial. Depois
da luta na Jordânia, em 1970, e a morte de
A Guerra do Yom Kippur
Nasser, Egito, Síria, Líbia e Sudão concorda- Em 1973, Sadat foi ficando ainda mais ou-
ram em formar uma nova Federação de Re- sado. Completado seu acerto com os ára-
públicas Árabes, mas a diplomacia de Sadat bes, mas dificultadas as esperanças de um
era multifacetada. Ele queria melhorar as re- acordo bilateral com Israel pela obstinação
lações do Egito com as monarquias saudita deste, pela persistência dos assentamentos
POLÍTICA MUNDIAL | 351

(ilegais) nas áreas ocupadas e cada vez mais vocaria uma resposta russa mais poderosa.
ajuda por parte dos Estados Unidos, ele as- Os Estados Unidos e a URSS apresentaram
sumiu uma política de diplomacia por ges- conjuntamente uma resolução ao Conselho
tos. Decidiu adotar, com a Síria, ações de- de Segurança que exigia um cessar-fogo, a
cisivas voltadas especificamente a recuperar implementação da Resolução 242/67 e nego-
a Península do Sinai e, em geral, a provocar ciações de paz sob auspícios “apropriados”.
intervenção ativa dos Estados Unidos nas Egito e Israel aceitaram essa resolução e ela
questões do Oriente Médio. Em 6 de ou- foi adotada pelo Conselho. Os russos propu-
tubro, Israel e o restante do mundo foram seram privadamente aos norte-americanos
pegos de surpresa por um ataque árabe em que suas tropas fossem enviadas ao Oriente
duas frentes. O exército egípcio atacou pelo Médio, mas Washington rejeitou enfatica-
Canal de Suez e penetrou em posições de mente essa ideia. Entretanto, ela foi reintro-
Israel, enquanto os sírios avançavam contra duzida pelo Egito, espontaneamente ou por
as Colinas de Golan. Cada combatente tinha instigação russa, e a URSS a apoiou publica-
metas separadas e limitadas, que eram mal mente. A reação dos Estados Unidos foi ex-
coordenadas. O ataque egípcio no sul, que trema. Todas as suas forças no mundo foram
parou alguns quilômetros depois do Canal, postas em estado de alerta máximo, e a URSS
também se limitou a inibir a reação de Is- se retraiu. Washington demonstrou oposi-
rael contra os sírios. Em resposta a deman- ção implacável à chegada de tropas russas ao
das sírias, Sadat arriscadamente ordenou Oriente Médio, mas alguns aliados europeus
mais avanços, o que levou seu exército para estavam incomodados com o que conside-
além da cobertura aérea e possibilitou que ravam uma reação exagerada por parte dos
os israelenses (que não tinham acreditado Estados Unidos, provocando comentários
em alertas sobre a ofensiva conjunta) to- ácidos por parte dos norte-americanos sobre
massem a iniciativa, dividissem os egípcios sua coragem e sua confiabilidade.
e cercassem uma de suas guarnições. Os Uma conferência para encerrar a guerra
norte-americanos correram para ajudar os foi chamada em Genebra no final de 1973,
israelenses, e os russos, para não ficar para mas o ano seguinte foi dedicado principal-
trás, fizeram o mesmo com a Síria, o Egi- mente à diplomacia pessoal pelo secretário
to e o Iraque, mas a principal preocupação de Estado Henry Kissinger, enquanto a con-
das superpotências era parar os combates ferência era mantida suspensa, como uma
que estavam indo longe demais. O ataque rede debaixo de um acrobata.
de Sadat foi bloqueado e a Síria foi repelida Um primeiro acordo de desengajamen-
depois de dois dias, apesar de ajudas margi- to entre Israel e Egito foi atingido em janei-
nais por parte do Iraque, da Arábia Saudita e ro de 1974, ambos os lados se retiraram e
do Marrocos. Israel, tendo sobrevivido a um uma força da ONU instalou-se entre eles.
forte golpe, contentava-se em parar por ali, Na frente norte, as negociações eram mais
embora suas forças estivessem avançadas a lentas, porque Israel insistia na notificação
caminho do Cairo. adequada de quantidades, nomes e destinos
O impasse era do agrado dos Estados dos israelenses capturados pelos sírios, o
Unidos e da URSS – da segunda, assim que que estes não queriam ou não podiam dar,
ficou claro que os árabes não venceriam, e e porque era impossível para Israel recuar
do primeiro porque, Israel a salvo, a prin- mais do que uns dois quilômetros sem por
cipal preocupação norte-americana era im- em risco toda a sua posição estratégica e
pedir um contra-ataque israelense que pro- seus assentamentos ao alcance das Colinas
352 | PETER CALVOCORESSI

de Golan. Todavia, Kissinger, deslocando-se sanções durante a guerra. O ponto fraco da


persistentemente entre capitais, conseguiu tática de Kissinger era sua ênfase e sua de-
obter um primeiro acordo também nesse pendência do Egito, o qual ele estava pres-
caso. (Ambos os acordos foram ampliados, sionando para que fizesse uma ofensiva
em novembro, por seis meses e, depois, por de bilateralismo com os vizinhos árabes e
mais seis meses.) Na etapa seguinte, o prin- desconsiderasse os palestinos, cujas reivin-
cipal problema era o status da OLP e suas dicações, mesmo assim, continuavam mais
demandas. Israel se recusava a reconhecê-la centrais ao conflito árabe-israelense do que
como mais do que uma organização terro- às questões puramente egípcio-israelenses.
rista, e os palestinos como qualquer coisa Para conseguir o que queria, Kissinger tinha
além de refugiados, ou a cogitar recuo ter- de fazer com que Sadat separasse as ques-
ritorial exceto no contexto de um acordo tões egípcio-israelenses das questões árabe-
de paz geral. A posição declarada da OLP -israelenses mais amplas e, acima de tudo,
era de que não aceitava o Estado de Israel, da causa Palestina. Portanto, ele arriscava
mas estaria disposta a negociar com base prejudicar seu novo amigo egípcio em todo
nas fronteiras anteriores a 1967. Ela insistia o mundo árabe.
em ser uma parte principal nas negociações, Os árabes não estavam com disposição
em vez de os palestinos serem representa- para abandonar os palestinos, por mais que
dos por algum governo árabe. Israel queria desejassem que nunca se tivesse ouvido fa-
fazer uma série de acordos bilaterais, co- lar neles. Os palestinos traziam problemas e
meçando pelo Egito (e deixando de lado os perigos, mas, em uma conferência árabe em
palestinos). Sadat estava disposto a buscar outubro de 1974, até mesmo o Rei Hussein,
esse acordo desde que fosse rapidamente que tinha se colocado contra eles quatro
seguido de acordos semelhantes entre Is- anos antes e tinha forçado 15 mil a fugir da
rael e seus outros vizinhos, de forma que o Jordânia para a Síria, juntou-se a todos os
Egito não pudesse ser acusado de romper as demais para reconhecer que a OLP repre-
fileiras árabes nem de deixar os palestinos sentava a Palestina árabe. E de Rabat, Yasser
ao abandono. Kissinger queria um acordo Arafat foi à Assembleia Geral da ONU, que
israelo-egípcio o mais rapidamente possível, o recebeu como se fosse um chefe de Estado
além de que os Estados Unidos, e não uma e adotou uma resolução fortemente pró-pa-
conferência internacional, fossem os pacifi- lestinos, afirmando seus direitos à soberania
cadores, que se fortalecesse o vínculo norte- dentro da Palestina e a serem membros cen-
-americano-egípicio sem ofender demais trais em uma conferência de paz.
Israel ou a comunidade judaica dos Estados No inverno de 1974-1975, parecia pro-
Unidos. Todo o restante poderia esperar. vável que a OLP se declarasse um governo
Kissinger considerava uma paz entre esses no exílio e fosse reconhecida por maioria
dois países como uma etapa em direção à na ONU, apesar das divisões que fragiliza-
paz no Oriente Médio e não acreditava que vam sua reivindicação de representar todos
isso poderia ser atingido sem etapas. Além os palestinos e apesar dos extremismos de
disso, a paz era cada vez mais importante grupos dissidentes, cujos sequestros e assas-
para os Estados Unidos, cujas tentativas de sinatos chocavam a maioria das pessoas.
se afastar de uma política voltada ao apoio Se a guerra de 1973 deu aos palestinos
a Israel foram estimuladas pelo rompimen- um impulso e uma chance de se recuperarem
to de Sadat com a URSS e tornaram-se ur- da surra que levaram na Jordânia em 1970,
gente com o uso que os árabes fizeram das também estimulou o moral árabe e suas es-
POLÍTICA MUNDIAL | 353

peranças em outros aspectos. Além de mos- dedores – para compensar por um volume
trar que o exército egípcio tinha se tornado mais baixo de vendas. Os países importadores
páreo para os israelenses (pelo menos por estavam vulneráveis em qualquer dos casos.
uma semana), ela demonstrou o poder ára- As restrições, e ainda mais uma interrupção,
be contra países maiores. Os produtores de poriam em risco sua indústria e sua vida co-
petróleo árabes, reunidos na Organização tidiana, os aumentos de preços deformariam
dos Países Árabes Exportadores de Petróleo seus balanços de pagamentos. As empresas,
(a OPAEP, uma divisão da OPEP), chocaram contudo, não estavam na mesma posição dos
todo o mundo desenvolvido cortando o for- países importadores. Elas só sofriam em um
necimento e quadruplicando o preço. Para os dos casos. As restrições e as paradas prejudi-
países produtores, o petróleo era uma arma, cavam seus lucros, os preços altos, não.
bem como uma fonte de receita – para alguns, Quando a guerra começou no Golfo, os
a única responsável pela grande maioria de produtores elevaram seus preços em 70%. A
suas receitas. Todos estavam preocupados em OPAEP ameaçou cortar as entregas em 5%
salvaguardar e aumentar suas receitas de pe- ao mês até que Israel aceitasse evacuar o ter-
tróleo e, em 1971, tinham feito, em Teerã e em ritório árabe e cedesse aos direitos legítimos
Trípoli, acordos para garantir essas metas pe- dos palestinos. A Arábia Saudita cortou o
los cinco anos seguintes. Eles insistiam, atra- fornecimento em 10%; aos Estados Unidos
vés da OPEP, em 1972, em que os países com- e à Holanda, os principais defensores de Is-
pradores que desvalorizassem suas moedas rael, totalmente.
deveriam revisar os termos desses acordos, O Iraque nacionalizou parte de determi-
de forma que os produtores não perdessem nadas empresas estrangeiras, e a Líbia falava
com a desvalorização. Eles também mudaram em expropriação total. Como resultado des-
suas atitudes em relação à forma como lucra- sa ação árabe variada, ainda que mal coorde-
riam. Enquanto, até aquele momento, tinham nada, os preços do petróleo dispararam no
feito isso principalmente através de medidas Irã, na Nigéria e em outros lugares. A CEE
fiscais, com impostos retidos na fonte, agora expressou simpatia pelos palestinos, a Grã-
avançavam rumo à participação ou proprie- -Bretanha interrompeu o fornecimento de
dade parcial de empresas operadoras e deci- armas a Israel, e o Japão reverteu suas incli-
diam expropriar 25% do capital de participa- nações pró-israelenses. As ameaças árabes
ção das grandes empresas, subindo a 51% em não se materializaram completamente – por
1982. Achavam que conseguiriam o que esta- exemplo, não foi possível boicotar a Holanda
vam dispostos a conseguir porque – mesmo quando o petróleo despachado a outros paí-
antes da guerra de 1973 – o mundo desenvol- ses poderia ser transferido para Roterdã –, e,
vido estava preocupado com uma escassez de dentro do mundo árabe, havia quem temes-
energia que chegasse ao ponto de uma crise. se os efeitos sobre si mesmos ao prejudica-
Essa crise começou a causar aumento de pre- rem as economias ocidentais, que eram seus
ços em 1970-1971 e fez com que os produto- principais clientes. Mas a posição havia fica-
res ganhassem mais consciência das vanta- do clara: os produtores principais não eram
gens de restringir a produção: as restrições mais os explorados, e poderiam dar as cartas
prolongariam a vida das reservas de um bem e usar sua influência para fins políticos. A
insubstituível, pressionariam os clientes e ain- mudança era tão impressionante diante das
da manteriam as receitas dos produtores se os opiniões no mundo industrial que foi rece-
preços fossem aumentados – o que poderia bida com protestos de “chantagem!”. Para o
acontecer facilmente em um mercado de ven- Oriente Médio, significava que, enquanto
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houvesse uma crise de energia, não se deve- e seu compromisso com os palestinos. Talvez
ria brincar com os árabes. O petróleo era o Israel nunca tenha estado tão agitado – uma
item mais importante na economia mundial, situação em que um secretário de Estado nor-
a fonte de crescimento e otimismo. O uso do te-americano não poderia fazer muito uso de
fluxo de petróleo e de seu preço para reta- seu poder, pelo menos não em público.
liar contra a proteção de Israel pelos Estados Kissinger renovou sua diplomacia de
Unidos gerou depressão e medo. ponte aérea no início de 1975, com vistas
Sendo assim, o eixo Kissinger-Sadat era a obter outro acordo de desengajamento
frágil. Os argumentos que o primeiro pode- entre Israel e Egito. Inicialmente, não teve
ria usar com o segundo sem desaprovação sucesso, principalmente devido à obstina-
em seu próprio país eram limitados por uma ção israelense. Sadat, depois de uma reu-
nova arma muito eficaz e pelo destaque que nião em maio com o presidente Ford em
os palestinos ganharam. Por sua vez, os is- Salzburgo, anunciou a reabertura do Canal
raelenses tampouco se deixariam pressionar de Suez, e, em setembro, chegou-se a um
com tanta facilidade. Eles não tinham sido novo acordo. Foram aceitas novas linhas de
derrotados, pelo contrário, estavam satisfei- frente e outros níveis de forças; o cumpri-
tos de que, apesar dos reveses iniciais, estive- mento do acordo deveria ser monitorado
ram a caminho de outra vitória, mas haviam por uma sequência de estações de alerta
sido muito abalados pela falha dos serviços antecipado (algumas delas operadas por ci-
de inteligência que, em um país tão pequeno, vis norte-americanos); Israel abandonou as
eram vitais para impedir a destruição instan- passagens de Mitla e Giddi e os campos de
tânea. Nas eleições do final de 1973, os par- petróleo do Egito no Sinai, em troca da pro-
tidos do governo perderam seis cadeiras, os messa de muita ajuda dos Estados Unidos
ganhos foram da direita, mas também houve e da passagem de cargas (mas não navios)
aumento crescente para os moderados que israelenses pelo Canal.
eram críticos das políticas em relação aos Esse era o principal esforço de Kissin-
árabes. O chefe do Estado-Maior e outros ger, e, por comparação, parecia importar
ocupantes de cargos importantes renuncia- pouco que, na frente norte, a maior aspe-
ram. Moshe Dayan, responsável maior pela reza dos adversários e a persistência de
segurança nacional como ministro da defesa, Israel em implantar novos assentamentos
perdeu um pouco de sua imagem de herói e em território ocupado impedissem qual-
ficou de fora de um novo governo, formado quer relaxamento equivalente. Mesmo
em abril de 1974, quando o general Yitzhak assim, era nessa área que a próxima crise
Rabin sucedeu Golda Meir como primeira- estava por ocorrer.
-ministra. O espetáculo de um presidente
dos Estados Unidos em viagem por capitais
árabes em junho era incômodo, ainda que Ni- Guerra Civil
xon tenha ido a Jerusalém. A velocidade com
que a URSS mais do que cobriu as perdas em Uma das características da política no Orien-
armas da Síria e do Iraque era perturbadora, te Médio, a partir de 1919, foi a tentativa de
mesmo que os Estados Unidos tivessem feito se esquecer dos palestinos. Desde a época em
o mesmo por Israel. No final de 1974, a Síria, que o emir Faiçal e Chaim Weizmann con-
ao propor um novo comando militar con- versaram na conferência de Paris sem se ocu-
junto com Egito, Jordânia e OLP, enfatizava a par deles, os palestinos foram negligenciados
unidade subjacente entre os vizinhos de Israel ou coisa pior, mas se recusavam a desapare-
POLÍTICA MUNDIAL | 355

cer ou perder sua identidade. Em 1975, eles nidade mercantil próspera na forma de um
eram mais de 3 milhões, dos quais cerca de Estado, era mais cristão do que muçulmano.
metade morava em Israel ou sob sua ocupa- A maior das comunidades muçulmanas
ção. Do restante, 750 mil estavam na Jordâ- era a dos xiitas, mas os sunitas, que mono-
nia, 400 mil no Líbano, 200 mil na Síria. Por polizavam o posto de primeiro-ministro por
meio século, eles sempre representaram pro- direito constitucional, eram mais influentes
blemas políticos, pressionaram consciências, politicamente.
(árabes e não árabes) e recorreram à violên- Os xiitas, muitos dos quais tinham pas-
cia para chamar a atenção para suas reclama- sado de pobres rurais a pobres urbanos, sen-
ções. Depois de encurralados na Jordânia em tiam-se igualmente negligenciados por cris-
1970, o centro dessas atividades foi o Líbano. tãos maronitas e por muçulmanos sunitas, e
O Líbano tinha sido chamado de Suíça eram os mais expostos às incursões israelen-
do Oriente Médio, o que significava duas ses. Os drusos, por outro lado, que ainda pre-
coisas: primeiro, que os libaneses eram bons servavam muito da feroz exclusividade que
em ganhar dinheiro, mais ricos do que seus marcara sua origem no século XI, eram con-
vizinhos em função dos serviços que presta- fiantes e afirmativos porque, embora em sua
vam, mais do que por seus recursos naturais; maioria pobres e muitas vezes indignados,
segundo, que o país era uma colcha de re- formavam uma sociedade compacta e bem
talhos de comunidades mantidas juntas por costurada, em uma terra montanhosa heredi-
habilidade política e tolerância a serviço do tária e sob o comando de um líder hereditá-
interesse material próprio. A colcha de reta- rio, Kamal Jumblatt, que fazia jus a suas leal-
lhos fora imposta tanto pela geografia quan- dades e expressava uma filosofia apropriada,
to pela história, e sua coesão era condição de esquerda, ao lado dos menos favorecidos.
de sobrevivência do Estado. Duas cadeias Nesse delicado padrão de tensões con-
de montanhas paralelas, uma delas próxima fessionais e econômicas intercaladas, em
ao mar, e por um vale estreito, cortavam o 1948 chegaram refugiados da Palestina, que
país em faixas verticais que eram divididas eram cerca de 400 mil em 1975, a maioria
de novo por barreiras transversais. Dentro com suas casas (uma palavra irônica) em
dessa grade, comunidades separadas pre- campos horríveis. Eles incluíam 5 a 6 mil
servaram suas individualidades e hostilida- pistoleiros ativos, cujo objetivo era a recu-
des mútuas, que tinham sido aguçadas pelas peração de terras perdidas na Palestina por
religiões – muçulmana e cristã – e por mais quaisquer meios eficazes e a extinção – se
divisões dentro dessas religiões: sunitas, xii- isso fosse necessário, como se pressupunha
tas e drusos; maronitas, ortodoxos gregos e – do Estado de Israel. Como esse objetivo
gregos católicos (uniatas). Essas hostilidades nunca poderia ser atingido por alguns ho-
também foram aguçadas por variedades de mens armados, ele teria que ser buscado por
experiência econômica, já que nem todos meio dos Estados árabes, que tinham de ser
os libaneses eram ricos. O grupo mais rico induzidos a entrar em guerra contra Israel.
era o dos cristãos maronitas, que também Já que esses países não estavam totalmente
tinham a presidência, dada a eles pela Cons- dispostos a fazer isso e, quando tentaram,
tituição em uma época em que os cristãos foram derrotados, os palestinos tinham um
como um todo superavam em número os problema de sobrevivência que os levou a ir
muçulmanos. As outras comunidades cristãs mais além em busca de ajuda e solidarieda-
não eram tão ricas nem tão poderosas, mas de, notadamente a importantes potências de
como o país tinha a aparência de uma comu- esquerda, a China e a URSS (embora esta
356 | PETER CALVOCORESSI

preferisse dar seu dinheiro a governos do sempre fraco diante de crises, em função de
que a movimentos que estivessem atacando lealdades conflitantes implantadas nele pela
governos), e à opinião universal de esquer- Constituição, caiu; o exército, pequeno e di-
da, que ficaria do lado dos despossuídos e vidido, não foi capaz de manter a ordem.
destituídos e não se ofenderia muito com A desordem, que havia começado como
o uso do terrorismo como arma justificada luta de facções, transformou-se em uma
pelo desespero. Dentro do Líbano, os pales- batalha por território. Os palestinos, que
tinos podiam contar com o apoio, não de tinham muitas armas, foram se envolven-
políticos nem da elite mercantil, que os via do cada vez mais (contra o desejo de alguns
como um incômodo, mas de outros setores de seus líderes) e seus adversários foram fi-
da população, que os tinham que reconhe- cando cada vez mais provocadores. Houve
cer como árabes iguais a eles e mais fracos. inúmeras tréguas de duração insignificante.
Nos anos de 1970, os palestinos eram mais Depois de entrar na batalha, apresentava-
do que um incômodo. Suas organizações -se uma oportunidade para ambos os lados.
militantes, instaladas em solo libanês, con- Uma aliança de esquerda entre drusos e pa-
sideravam-se em guerra com Israel, que era lestinos parecia assumir o país – os primei-
vizinho do Líbano e não hesitava em reagir ros, para suplantar os atuais grupos domi-
quando era atacado a partir desse país. Os nantes; e os palestinos, para tornar o Líbano
maronitas, em particular, como cristãos seguro para si e transformá-lo em uma base
conservadores, não gostavam das organi- contra Israel. Por outro lado, os maronitas e
zações palestinas e as temiam, porque elas seus aliados sentiram a chance de fazer aos
eram de esquerda, combativas, muçulmanas palestinos no Líbano o que o rei Hussein ti-
e uma ameaça à estabilidade do Estado que nha feito na Jordânia: expulsar o maior nú-
dava aos maronitas sua riqueza e sua in- mero possível, matar alguns líderes e, talvez,
fluência. Era uma importante coincidência exterminá-los com a ajuda de Israel.
que a posição maronita no Líbano já estives- Quando a guerra civil ameaçava causar
se um pouco ameaçada por uma queda na a destruição do Estado, a Síria teve de pensar
porcentagem de cristãos na população e o no que fazer. O Líbano foi parte dela (como
castigo que assombra uma grande prosperi- a Jordânia e a Palestina) sob domínio otoma-
dade concentrada. no e antes, mas a Síria hesitava em intervir,
Em 1975, um grupo de pescadores mu- por uma série de razões. Se o exército sírio
çulmanos, descontente com uma concessão entrasse no Líbano, o exército israelense pro-
feita a um grupo de pescadores cristãos, vavelmente faria o mesmo e haveria um novo
fez uma manifestação que se transformou conflito, que não era bom para a Síria nem
em rebelião. Alguns palestinos tomaram o para seus protetores russos. Tampouco a Jor-
partido dos muçulmanos. Os cristãos con- dânia, com quem o presidente Assad vinha
sideraram o episódio como uma má indi- melhorando as relações, aceitaria de bom
cação do rumo que os eventos tomariam. grado qualquer ação que parecesse apontar
Os palestinos, que já representavam uma para a recriação da Grande Síria. O mesmo
permanente incitação à agressão israelense argumento se aplicava ao Iraque. Portanto,
ao Líbano, estavam agora interferindo no a Síria, embora inclinada em favor do lado
equilíbrio geral da política interna libane- druso-palestino, estava mais preocupada em
sa. Seguiram-se incidentes antipalestinos, dar um fim aos enfrentamentos e fazer com
causados pela falange, uma facção cristã que o Estado libanês voltasse a funcionar, e
de direita. A violência cresceu; o governo, Assad se concentrou em encontrar uma ma-
POLÍTICA MUNDIAL | 357

neira de restaurar as propriedades constitu- sar desse flerte os dividir de forma mortal.
cionais sob um presidente maronita (mesmo Os palestinos, tendo sido atacados pela Jor-
que fosse outro), ainda que isso implicasse dânia e pela Síria, tendo perdido seu baluar-
atacar os palestinos. A intervenção Síria, por- te no Líbano e conscientes de que a simpatia
tanto, assumiu uma aparência antipalestina e de Sadat por eles era compensada pelo inte-
pró-maronita, indignando outros Estados resse do Egito na paz com Israel, mais uma
árabes que, desconfiados dos desígnios sírios, vez não tinham em quem confiar se não ne-
tentaram substituir a gestão Síria da crise les mesmos. Arafat procurou apoio no lugar
por uma pan-árabe, ao introduzir uma força errado. Decepcionado com os governos ára-
mista árabe e um mediador da Liga Árabe. bes e nervoso com dissidências esquerdistas
Mas essas ações tiveram pouca substância. em seu próprio movimento, ele estabeleceu
Assad escolheu esse momento para entrar uma aliança com a esquerda árabe e, assim,
com suas próprias tropas e impôs um acordo passou a ser alvo de governos árabes dispos-
provisório no qual os maronitas manteriam tos a aniquilá-la.
a presidência de direito, mas o presidente A guerra civil no Líbano, que durou de
não mais escolheria o primeiro-ministro e abril de 1975 a novembro de 1976, custou
os muçulmanos teriam representação igual à 400 mil vidas e imensos danos materiais e
dos cristãos no parlamento. Isso era uma res- comerciais. O novo presidente, Elias Hrawi,
tauração que representava uma derrota para menos comprometido com a ascendência
xiitas e drusos, de esquerda (Kamal Jumblatt maronita em sua forma antiga do que seu
morreu, provavelmente assassinado), que ti- predecessor Suleiman Franjieh, carecia da
nham sentido o cheiro do poder para depois autoridade e do poder armado para fazer
perdê-lo por meio de uma intervenção es- valer a autoridade de seu governo. A luta foi
trangeira. E era uma derrota dos palestinos, interrompida pelos sírios, mas a posição de
que se uniram aos drusos e outros elementos Assad no Líbano era desgastante e constran-
antimaronitas e, ao fazê-lo, apoiram o lado gedora. A Síria foi criticada pelo restante
perdedor e foram derrotados, primeiro pelos do mundo árabe, o Iraque cortou o petró-
maronitas e depois pelos sírios. Também era leo (mas a Arábia Saudita forneceu créditos
uma derrota dos russos, que, tendo que redi- para preencher a lacuna). Assad não tinha os
recionar seu eixo no Oriente Médio, do Cairo meios nem provavelmente o desejo de assu-
para Damasco, viam a Síria agindo com um mir toda a responsabilidade pelas questões
grau de independência e em uma direção que do Líbano e passou à negociação. Em Shtou-
não era palatável a Moscou. Mesmo assim, ra, em julho de 1977, Síria, Líbano e a OLP
não deram qualquer ajuda a Jumblatt nem reafirmaram um acordo entre os dois últi-
a Arafat, sua influência na crise foi mínima. mos, feito no Cairo em 1969, no qual a OLP
Assad, e não Arafat, se tornou a força domi- retiraria suas unidades armadas de Beirute e
nante no Estado. O próprio Líbano estava em da zona de fronteira no sul. O desarmamen-
ruínas e sob tutela, e só conseguiria ejetar a to dos palestinos foi posto em andamento
Síria de seu corpo ao preço de desencadear em Beirute, mas não no sul, onde a luta co-
novos conflitos entre os exércitos privados meçou de novo entre palestinos e cristãos
de maronitas, drusos e outros, que nenhum libaneses. Os israelenses invadiram, e, com
exército libanês puro poderia controlar. sua ajuda, o major Saad Haddad estabeleceu
Os maronitas, embora resgatados pela (em uma área majoritariamente muçulma-
Síria, não eram menos hostis a ela e conti- na) um Estado cristão semi-independente, o
nuavam inclinados a flertar com Israel, ape- Líbano Livre. Nem o exército libanês, sem-
358 | PETER CALVOCORESSI

pre impotente diante dos conflitos locais, lestinos não eram mais do que um instru-
nem a Força Provisória da ONU no Líbano mento menor dos Estados árabes, útil prin-
(UN Interim Force in Lebanon, UNIFIL) cipalmente para propósitos de propaganda.
poderia enfrentar essa criação israelense de Mas eles se tornaram uma questão central,
um Estado marionete, enquanto, no restan- desenvolvendo uma força própria de luta,
te do país, os exércitos privados retomavam atraindo a simpatia internacional e receben-
suas batalhas e seus assassinatos. Havia cer- do o apoio (limitado) dos países árabes –
ca de 40 exércitos e bandos armados nesse uma inversão de papéis que os transformou
pequeno país. Em 1980, as batalhas entre as em um perigo mais persistente para Israel
duas principais forças maronitas resultaram do que qualquer governo árabe.
em uma vitória para a Falange e para a famí- A resposta cada vez mais agressiva de
lia Gemayel sobre o Partido de Libertação Israel era um reconhecimento dessa mudan-
Nacional do clã Chamoun e outros clãs de ça. Embora os países árabes não pudessem
maronitas importantes. Os vitoriosos esta- ser destruídos, o poder político dos palesti-
vam mais determinados a remover todos os nos poderia, se um número suficiente deles
palestinos do Líbano – refugiados civis bem fosse morto ou dispersado. Uma mudança
como unidades armadas – e tinham o arse- de governo em Israel ajudou a colocar em
nal de Israel para ajudá-los. Em Beirute e ar- prática esse raciocínio. Em 1976, a coalizão
redores, criou-se uma nova área de entrada predominantemente trabalhista lutava em
proibida, como a do major Haddad, e fora vão com problemas econômicos e com a
do alcance do governo – um cantão autôno- desordem na Cisjordânia. Desenvolveram-
mo falangista. -se divisões na coalizão e dentro do próprio
Partido Trabalhista. Na ONU, os Estados
Unidos estavam ficando cada vez mais so-
Camp David litários no veto às resoluções anti-Israel no
Conselho de Segurança e acabaram por se
Essa desintegração do Líbano foi promo- juntar à maioria na condenação do compor-
vida por Israel. O sul do Líbano fazia parte tamento inescrupuloso e ilegal dos israelen-
das terras reivindicadas para Israel pelo ses na Cisjordânia. Rabin renunciou quando
irredentismo sionista, mas essa demanda sua mulher foi acusada de um delito mone-
poderia ter permanecido sem se manifes- tário por seu sucessor, Shimon Peres, e não
tar se a região não tivesse se tornado, nos sobreviveu a uma eleição geral. Em 1977,
anos de 1970, um refúgio para o revan- Menachem Begin, veterano da luta contra os
chismo palestino. britânicos e fundamentalista bíblico, formou
Israel estava determinado a erradicar o primeiro governo israelense sem o Partido
pela força o braço militante dos palestinos, Trabalhista. Ele declarou que Israel deveria
e a maioria dos israelenses considerava uma manter a Cisjordânia e acelerar a criação de
ação agressiva com esse propósito um exer- novos assentamentos ali. O presidente Car-
cício legítimo do direito de autodefesa. Em ter, entre outros, chamava esses assentamen-
seus primórdios, a ameaça à existência de tos de ilegais e propôs que a Conferência de
Israel vinha dos países árabes. Israel acredi- Genebra fosse convocada (com participação
tava que, com sua eficácia superior e a ajuda russa) e a OLP fosse convidada a participar
norte-americana, sempre poderia derrotar dela desde que reconhecesse o direito de Is-
inimigos que estariam permanentemente rael de existir. Begin estava disposto a ver
em conflito entre si. Nessa época, os pa- os palestinos em uma conferência, mas ir-
POLÍTICA MUNDIAL | 359

redutível em relação a jamais negociar com mentos independentemente de sua justifi-


a OLP, permitindo, assim, que Arafat desse cativa estritamente militar. A população de
uma resposta direta à pergunta de Carter. judeus na Cisjordânia quadruplicou nos três
Em novembro, para surpresa de todos, Be- anos de seu governo. O Egito precisava da
gin aceitou uma oferta de Sadat para ir a Je- paz e da devolução do território e dos cam-
rusalém. Sadat precisava muito da paz. Ele pos de petróleo do Sinai, perdidos em 1973.
lutou uma guerra de quatro dias com a Líbia Sadat, pessimista em relação a qualquer ne-
em seu outro flanco: a economia egípcia es- gociação com Begin, invocou mais uma vez
tava em frangalhos e as desavenças domésti- a intervenção dos Estados Unidos e recebeu
cas se transformaram em revoltas. uma resposta imediata de Carter, que, não
Falando ao Knesset, com uma fran- tendo conseguido reativar a conferência de
queza que atraiu elogios internacionais, Sa- Genebra, tornou-se um ávido defensor do
dat criticou os atrasos na reconvocação da acordo israelo-egípcio como uma primeira
Conferência de Genebra e apelou pela paz peça de uma série de acordos entre Israel e
entre Egito e Israel, pelo recuo de Israel a seus vizinhos inimigos.
suas fronteiras de 1967 e pelo direito dos Os Estados Unidos assumiram o papel
palestinos à autodeterminação e a um Esta- de principal negociador nessa causa, e, em
do. Ele não mencionou a OLP pelo nome. uma conferência tripartite em Camp Da-
Antes que o ano terminasse, tiveram início vid em setembro de 1978, Carter fez com
conversações entre Egito e Israel no Cairo, que Begin e Sadat assinassem a “base” para
e Begin visitou Ismailia, onde falou de uma uma paz geral no Oriente Médio: Israel sai-
entidade palestina autônoma com presença ria gradualmente da Cisjordânia e da faixa
militar israelense por 20 anos. Suas propos- de Gaza, criando uma entidade palestina
tas formais para a Cisjordânia, publicadas autônoma com presença israelense tempo-
no final do ano, incluíam a continuação do rária, e todos os outros problemas seriam
controle israelense sobre a segurança e a or- postergados por cinco anos. Junto a essas
dem públicas, uma escolha para os habitan- aspirações, havia duas conclusões precisas,
tes entre cidadania israelense e jordaniana uma positiva e outra negativa. O Egito re-
(mas não palestina), imigração árabe em cuperava a península do Sinai (sujeita à des-
“números razoáveis” a ser acordada entre Is- militarização), mas os palestinos não rece-
rael, Jordânia e a nova autoridade do territó- beriam nem reconhecimento nem terras em
rio autônomo e liberdade para os israelenses um futuro visível. Sadat tinha proclamado
comprarem terras. sua determinação de respeitar e aplicar os
Carter aprovou essa resposta, opondo- direitos dos palestinos, mas não estava pro-
-se à criação de um Estado palestino. fundamente comprometido com eles, não
Esse foi o começo do processo que deu gostava dos seus líderes e, em Camp David,
fim à guerra entre Egito e Israel, mas nada encolheu-se sob o fundamentalismo pegajo-
fez pelos palestinos. Begin, embora pudesse so de Begin e a avidez de Carter de não dei-
ser induzido a abrir mão de valiosas posi- xar que nenhum dos dois saísse da reunião
ções avançadas e defesas no Sinai (mesmo sem assinar um acordo formal. Sadat foi fe-
que, para ele, o território fosse terra judaica rozmente atacado em todo o mundo árabe
por vontade divina), não tinha intenção de por não condicionar seu acordo com Israel a
abandonar o controle da Cisjordânia. Pelo um acordo justo para os palestinos. Ele per-
contrário, propôs acelerar sua transforma- deu seus subsídios sauditas, tornou-se de-
ção demográfica incentivando os assenta- pendente da caridade dos Estados Unidos e
360 | PETER CALVOCORESSI

foi assassinado em 1981. Contudo, recebeu, garantiu seu flanco sul como parte de uma
junto com Begin, o Prêmio Nobel da Paz, política expansionista em outras direções.
que, como no caso de Kissinger e Le Duc Israel manteve seu domínio na Cisjordânia
Tho alguns anos antes, foi dado a guerreiros ocupada com poucas dificuldades. Embora
que faziam a paz, mais do que a homens de fosse obrigado a usar duras medidas que
paz exemplares. não o beneficiavam no mundo, internamen-
A euforia gerada pela aparição de Sa- te havia pouca crítica israelense à ocupação
dat em Jerusalém, em 1977, durou cerca de ou a seu lado mais desagradável, e Begin
um ano. A pressão dos Estados Unidos so- usou sua liberdade de manobra no sul e no
bre a Jordânia e a Arábia Saudita para que leste para lançar uma guerra ao norte, no
apoiassem o que tinha sido feito falhou. Líbano. Uma vitória eleitoral apertada, em
Os árabes estavam divididos entre os hos- 1981, deixou-o dependente, no Knesset, de
tis e os muito hostis. Israel continuava seu partidos religiosos pequenos e míopes. A
declínio econômico (sua taxa de inflação colonização israelense que se arrastava na
se tornou uma das mais altas do mundo) e Cisjordânia se tornou mais brutal e precipi-
aplicava políticas duras em suas fronteiras tada – a população judaica seria aumentada
no norte e na Cisjordânia. O gabinete de de 20 mil para 120 mil até 1985 –, e a força
Begin perdeu seus membros mais eminen- aérea israelense mostrou sua força destruin-
tes e o apoio popular. O general Dayan, que do uma instalação nuclear perto de Bagdá
o tinha apoiado contra seu próprio partido em junho e atacando Beirute: em julho, um
quando Begin venceu a eleição de 1977, o golpe contra o Iraque, por um lado, e con-
abandonou em função da insistência de seu tra a Síria, por outro. O primeiro, voltado a
governo em promover assentamentos que impedir ou retardar o surgimento do Iraque
tinham propósito político, mas não estra- como potência nuclear ofensiva, foi conde-
tégico, e o general Ezer Weizmann seguiu nado na ONU até mesmo pelos Estados Uni-
o mesmo caminho. Mas, embora a atitude dos, que postergaram, por algumas semanas
inflexível de Begin tenha feito com que per- simbólicas, a entrega de novos aviões mili-
desse amigos, não havia muitos sinais de tares a Israel. O ataque a Beirute foi gerado
que seus objetivos básicos tivessem se tor- por desacordos com o Líbano em relação às
nado impopulares. forças sírias e à Falange Cristã. Quando, no
A eleição do explicitamente pró-Israel final de 1980, os sírios evacuaram Zahle, a
Ronald Reagan para presidente dos Estados leste de Beirute, a Falange se antecipou ao
Unidos foi um alívio para os israelenses, que exército libanês regular e ocupou a zona. Os
tinham começado a ponderar as futuras po- sírios apoiavam as tentativas do exército de
líticas de um governo norte-americano for- expulsá-la. Os combates se espalharam e Is-
çado a escolher entre sua devoção a Israel e rael enxergou sua oportunidade. Apesar de
seus interesses materiais e estratégicos na ataques aéreos ao sul do Líbano, fazia voos
Arábia Saudita e no Golfo. E a guerra lan- demonstrativos sobre Beirute e, quando a
çada pelo Iraque contra o Irã em 1980 rea- Síria introduziu mísseis terra-ar, atacou-os.
nimou as divisões entre os inimigos de Is- Israel esperava fazer com que o presidente
rael, na medida que alguns governos árabes Bashir Gemayel, cristão maronita e filho do
apoiaram o Iraque e outros não. fundador da Falange, optasse por esse gru-
Em Camp David, Begin comprou o po combativo, e, assim, instalar um peque-
Egito, um feito diplomático raro na histó- no Estado cristão e antissírio em partes de
ria dos triunfos militares de Israel. Mas ele Beirute e seus arredores. Mas o presidente
POLÍTICA MUNDIAL | 361

Gemayel foi convencido, pela Síria e por ou- te islâmico, relaxou a repressão aos adver-
tros árabes, a criticar a aliança entre Israel sários políticos implementada por Sadat (e
e a Falange. Espremidos entre Síria e Israel, por Nasser), conquistou ajuda estrangeira
os maronitas estavam à beira de perder seu para os serviços públicos do Egito, limitou
papel dominante no Líbano. discretamente as despesas militares. (Em
No final de 1981, o primeiro-ministro 1984, ele se sentia forte o suficiente para le-
saudita, o príncipe Fahd, apresentou um galizar um Partido Wafd renascido, ainda
plano de paz que demandava a retirada de que bastante moderado, e permitir que to-
Israel a suas fronteiras de 1967 e implicava masse parte em uma eleição geral.) Reagan,
seu reconhecimento dentro daqueles limites. em segundo lugar, foi obrigado a reconhe-
Esse plano era maldito para Israel, mas foi cer alguma ligação entre diferentes partes
suspenso pelos próprios árabes quando As- do Oriente Médio e, assim, modificar im-
sad se recusou a participar de uma conferên- plicitamente sua crença de que a questão
cia em Fez para discuti-lo. O rei Hussein deu palestina poderia ser mantida em uma ga-
um forte apoio à iniciativa saudita, acalmou veta isolada. Preocupado com a extensão da
seu conflito com o Marrocos fazendo a pri- guerra Irã-Iraque no Golfo, ele concordou
meira visita àquele país em cinco anos, mas e por pouco convenceu o senado a concor-
desagradou Reagan com sua insistência em dar, com a venda de aviões de inteligência
incluir a OLP em qualquer processo de paz, AWACS à Arábia Saudita (ver o Capítulo
não obstante a recusa do Conselho Nacional 14), mas à custa de dar mais ajuda militar
Palestino de suavizar formalmente sua de- a Israel, assim como um acordo para “co-
manda pela eliminação do Estado de Israel. operação estratégica” e uma capacidade
Reagan se apegava à visão de que a maior de realizar aventuras independentes.
paz poderia ser obtida sem a OLP, mas seu Na mesma linha, o espaço de manobra dos
compromisso com Israel e com o progra- Estados Unidos no Oriente Médio estava se
ma de Camp David, de seu predecessor, tornando mais limitado, mesmo antes de
recebeu dois golpes no final de 1981. Em Israel ter marginalizado todos os planos de
outubro, Sadat foi assassinado. Mais herói paz ao lançar, em 6 de junho de 1982, uma
fora do que dentro do seu país, Sadat ofen- invasão total do Líbano.
deu muitos egípcios com seu estilo e com
suas políticas. A transferência pacífica de
poder para Hosni Mubarak demonstrou a A invasão israelense do Líbano
estabilidade relativa do sistema político no
Egito. O novo presidente, embora muito O objetivo aparente dessa operação era ex-
cauteloso para fazer mudanças abruptas pulsar do sul do Líbano os palestinos que
de política, estava preocupado em colher estavam atacando Israel, mas havia causas
todos os frutos do acordo de Camp David mais profundas e ambições mais amplas.
no que dizia respeito à retirada de Israel de Muito antes que houvesse qualquer pales-
solo egípcio (que foi completada em abril tino no Líbano, Ben-Gurion tinha planeja-
de 1982), mas também em melhorar as re- do sua desagregação ao seduzir os cristão
lações do país com o restante do mundo maronitas e anexar sua parte sul ou criar ali
árabe, que tinham sido destruídas pela eva- um Estado-satélite. Para Menachem Begin
são das reivindicações palestinas em Camp e os sionistas do seu tipo, partes do Líbano
David. Onde Sadat tinha maneiras ociden- pertenciam a Israel por direito divino ou
tais afetadas, Mubarak era apropriadamen- bíblico. A fagulha para a invasão foi dada
362 | PETER CALVOCORESSI

pela tentativa de assassinato do embaixa- visão norte-americana de Israel que, desde a


dor israelense em Londres. Begin disse ao fundação do Estado na onda do holocausto
Knesset e ao mundo que as forças israelen- nazista, permitia que se aplicassem dois pe-
ses não avançariam mais de 45 km além de sos e duas medidas a suas ações mais dúbias.
suas fronteiras, mas Sharon, com ou sem o Em Israel, o choque foi agudo, mas, talvez,
conhecimento de seus colegas, tinha reali- curto. Mais significativo, as mortes de is-
zado, seis meses antes, planos para coopera- raelenses na ocupação do sul do Líbano nos
ção com os cristãos libaneses, e as forças is- anos seguintes criaram pelo menos o iní-
raelenses avançaram rapidamente do sul aos cio de uma repulsa contra as características
arredores de Beirute, a qual bombardearam mais inaceitáveis da agressividade israelense,
por dois meses. O objetivo dessa operação uma suspeita de que suas políticas eram in-
era a expulsão dos palestinos de Beirute. viáveis no longo prazo, e alguma resistência
O governo israelense recuou de um ata- a aceitar a visão majoritária de que só os pa-
que direto a Beirute e à sua captura porque lestinos deveriam ser responsabilizados. O
isso causaria perdas israelenses pesadas e bombardeio de Beirute e os massacres nos
desagradaria aos Estados Unidos, mas, em campos acrescentaram à determinação de
julho, Beirute foi tomada com ajuda dos Israel na busca de autopreservação um tom
cristãos, e os homens palestinos em idade de atrocidade lunática que nem o uso de na-
de lutar concordaram em ir embora, sendo palm em enfrentamentos anteriores deu.
evacuados por mar. Em setembro, o presi- Uma força de paz multinacional, for-
dente Gemayel foi assassinado, talvez com mada por unidades norte-americanas,
conivência ou instigação da Síria, e foi suce- francesas e italianas, mais tarde somadas
dido por seu irmão Amin. Israel atacou Bei- a um contingente britânico mínimo, tinha
rute Ocidental. Como vingança pela morte chegado ao Líbano antes dos massacres
de Bashir Gemayel e depois da saída dos para supervisionar a evacuação da OLP e
lutadores palestinos, a Falange Cristã, com dos sírios de Beirute Ocidental. A essas al-
apoio israelense, massacrou 1 mil, talvez 2 turas, as mortes giravam em torno de 15
mil indefesos palestinos em dois campos em mil (na maioria civis libaneses). Ao mes-
Sabra e Chatila. Os autores eram falangistas, mo tempo, Reagan apresentou mais um
mas os israelenses estiveram presentes no plano de paz que, por incluir uma proi-
quartel-general falangista durante os três bição às anexações israelenses, o fim dos
dias e noites de atrocidades que continua- assentamentos israelenses na Cisjordânia
ram sem cessar, com ajuda israelense. Pos- e um Estado autônomo associado à Jordâ-
teriormente, uma investigação oficial em nia, foi rejeitado imediatamente por Begin.
Israel, forçada sobre um governo israelense Ao mesmo tempo, a exigência de Reagan
relutante pelos protestos internacionais e a de retirada mútua de forças israelenses e
inquietação interna, censurou vários israe- sírias foi ignorada por ambos e foi letra
lenses de altos cargos por sua responsabili- morta desde o princípio. Os árabes apre-
dade nesses fatos. sentaram seu próprio plano que, mais uma
Ao invadir o Líbano, Israel pôs em jogo vez, reconhecia implicitamente um Estado
o apoio praticamente incondicional que su- israelense (com as fronteiras de 1967), mas
cessivos governos dos Estados Unidos lhe também demandava um Estado palestino
deram. É questionável se a invasão, por si só, tendo Jerusalém como capital: era uma
já teria desgastado permanentemente esse reforma do plano Fahd do ano anterior
apoio, mas o massacre deixou uma marca na (Fahd tinha se tornado rei em junho com
POLÍTICA MUNDIAL | 363

a morte de seu irmão Khaled). A luta de consigo mil cativos libaneses, reféns para
facções no Líbano continuava, e sírios e garantir o bom comportamento libanês,
israelenses permaneciam no país. Os com- e mantiveram por mais 13 anos o controle
batentes palestinos (cerca de 7 mil) foram do sul do Líbano por meio do dependente
dispersados em 10 direções diferentes, Exército do Sul do Líbano, uma força cris-
metade deles na Síria, mas essa não gerou tã em uma região predominantemente mu-
uma alternativa eficaz a Arafat como líder çulmana. O Líbano se tornou um país sem
destacado dos palestinos. governo efetivo; seus partidos políticos di-
A posição da Síria era inicialmente pre- vididos entre si e internamente; suas forças
cária, mas aos poucos foi se consolidando, armadas regulares, em conflito; e sua capital
principalmente porque nem a frente Israel- fraturada entre forças rivais irregulares cuja
-Estados Unidos nem os inimigos árabes principal arma eram os reféns. Em primei-
da Síria tinham qualquer coisa viável para ro lugar entre estas vinha a Al-Jihad, cujos
oferecer. Os israelenses estavam desgastados principais propósitos eram o retorno dos mil
e infelizes; o exército libanês, impotente; a libaneses presos em Israel e a libertação de
força multinacional levantou acampamento 17 libaneses presos no Kuwait. A Al-Jihad
quando foi pega no fogo cruzado da política era, em alguma medida, controlada pelo
libanesa. Foram mortos 239 fuzileiros na- Hezbollah, que era associado ao movimento
vais norte-americanos em um único ataque do mesmo nome no Irã (ver a Nota C no fi-
suicida em 1983, depois que a marinha dos nal desta Parte), e cujo objetivo era criar um
Estados Unidos bombardeou posições xii- Estado islâmico no Líbano como trampolim
tas e drusas em terra, a partir do mar. Begin para a guerra contra Israel e a recaptura de
renunciou em 1983, a partir de uma com- Jerusalém. O grupo sequestrou um B-747
binação de luto pessoal pela morte de sua norte-americano que ia de Atenas a Roma,
mulher e frustração política, deixando Israel trouxe-o a Beirute e, com a ajuda do líder
fragilizado em termos militares, políticos e xiita Nabih Berri, trocou seus passageiros
morais. O presidente Assad, por outro lado, pelos mil presos em Israel. Para recuperar os
tendo sobrevivido a duas rodadas de levan- 17 libaneses no Kuwait, capturou cidadãos
tes contra si nos primeiros meses de 1982 norte-americanos, britânicos e franceses em
(embora ao preço de massacrar seus inimi- Beirute. Seus governos declararam sua recu-
gos domésticos em quantidade de, talvez, 10 sa conjunta a comprar reféns de terroristas,
mil a 20 mil), permaneceu no controle lo- mas os Estados Unidos, e mais tarde os fran-
cal. No Líbano, Amin Gemayel não tinha a ceses, romperam a união, e o fizeram por ra-
quem recorrer que não a Assad, e, quando, zões eleitorais nacionais – e, no caso dos Es-
em 1983, tentou garantir uma retirada israe- tados Unidos, em função da venda de armas
lense através de uma negociação direta, seus ao Irã para levantar dinheiro para a guerra
parceiros no governo libanês foram contrá- na Nicarágua, que o Congresso dos Estados
rios a seus esforços e Assad o forçou a cance- Unidos estava se recusando a financiar (ver
lar o acordo que tinha feito. A tarefa de Ge- o Capítulo 28). O governo britânico, que não
mayel, de montar uma coalizão a partir das tinha eleições próximas, manteve seus com-
forças em guerra em seu país, foi frustrada promissos. Acordos internacionais sobre os
repetidas vezes por uma ou outra delas e o reféns não se mantiveram porque as percep-
próprio Gemayel, reduzido à insignificância. ções e as circunstâncias nacionais diferiam e
A retirada israelense foi completada não existia qualquer mecanismo adequado
durante 1985, mas os israelenses levaram para garantir uma política externa comum.
364 | PETER CALVOCORESSI

A tomada de reféns proliferou, e o custo foi consultado, repudiou o acordo com Ber-
de resgatá-los aumentou muito. (Os presos ri e Jumblatt, e os maronitas desautorizaram
libaneses no Kuwait foram libertados pela Hobeika em favor de Geagea. Em 1987, os
invasão de Saddam Hussein em 1990. A se- maronitas assassinaram o primeiro-minis-
guir, a ONU negociou com o Irã a libertação tro sunita Rashid Karami e desenvolveram
dos reféns restantes em Beirute e, posterior- em Beirute Oriental uma hostilidade firme
mente, uma troca de presos libaneses em Is- e combativa em relação aos sírios, que retor-
rael por presos israelenses no Líbano.) naram com toda a força.
A Síria não conseguiu pacificar nem O Líbano foi dividido em três, depois
unir o Líbano. A OLP, golpeada, mas não em quatro. No sul, Israel apoiava seu regi-
erradicada, reconstruiu suas posições nos me-marionete sob controle militar cristão.
campos em torno de Beirute, aos quais seus O restante do país tinha governos rivais
combatentes voltaram, depois de 1982, para liderados pelo sucessor de Karami, Selim
proteger suas famílias. A Síria abandonan- al-Hoss (um sunita) e Michel Aoun (co-
do sua política de restaurar a ascendência mandante cristão do exército libanês). O
maronita-sunita, promoveu uma aliança en- principal objetivo de Aoun era a expulsão
tre o Partido Xiita Amal, de Nabih Berri, e dos 30 mil soldados sírios, para o qual ele ti-
os drusos, liderados pelo filho de Jumblatt, nha ajuda do eterno inimigo da Síria, o Ira-
Walid, que, embora não tenha conseguido que. Em 1989, o que restava do Parlamento
expulsar os palestinos de seus campos, ex- Libanês eleito em 1972 foi reunido em Taif,
pulsou os maronitas de Beirute Ocidental. na Arábia Saudita, com o objetivo de dar
Entre os maronitas, Gemayel era o proble- ao Líbano um novo começo depois de 15
ma do ponto de vista da Síria, já que, ao se anos de luta civil, invasão estrangeira e de-
ligar a ela, entrou em conflito com metade sintegração progressiva. Reconheceram-se
de sua própria comunidade, metade da fa- as principais mudanças na política libanesa
lange e metade do exército libanês (cristão) ao deixar a presidência para os maronitas
– todos grupos para os quais a Síria era tão mas dar mais poderes ao primeiro-minis-
detestada quanto Israel. O falangista Samir tro sunita e mais cadeiras no parlamento
Geagea, comandante das forças libanesas, aos xiitas, a maior comunidade isolada. O
desafiou a autoridade de Gemayel, mas os presidente Elias Hrawi demitiu Aoun, mas
maronitas, com receio dessas divisões en- seu exército permaneceu leal a ele. Aoun e
tre eles próprios, criaram um Conselho de Geagea lutaram entre si até que o primeiro
Salvação como forma de se livrar de Geagea foi forçado a se render por bombardeios de
e manter seu controle de Beirute Oriental. mísseis sírios em 1990. As batalhas entre
Outro líder maronita, Elie Hobeika – ex- essas duas forças cristãs marcaram a desin-
-comandante das forças libanesas que tinha tegração cismática do poder maronita. Gea-
sido deposto por Geagea em 1986 – decidiu gea retirou suas forças de Beirute, deixando
se aliar à Síria, aceitou uma trégua com xii- o governo de Hrawi aparentemente – e a Sí-
tas e drusos e concordou com o programa ria efetivamente – no controle da capital e
político da Síria: paridade entre cristãos e da maior parte do país.
muçulmanos, redução dos poderes do presi- Israel manteve seu controle indireto no
dente maronita e uma relação especial entre sul, por meio do fantoche Exército do Sul
Líbano e Síria. Mas essas ações não foram do Líbano e com sua clara disposição de
capazes de restaurar a unidade no Líbano, usar a força – como, por exemplo, em 1993,
nem interromper a luta. Gemayel, que não quando bombardeios pesados levaram meio
POLÍTICA MUNDIAL | 365

milhão de refugiados a fugir de Beirute, em que deixava de lado os xiitas majoritaria-


uma tentativa de fazer com que o Líbano mente rurais que constituíam um terço da
expulsasse as unidades do Hezbollah de seu população. A desintegração e o empobreci-
território. A tentativa foi malsucedida e as mento progressivos do país tinham raízes na
ações de Israel tornaram o Hezbollah mais exclusão, que oferecia oportunidades para
popular do que antes. A tentativa de Israel, forasteiros desagregadores (sírios, iranianos
em 1982, de desmembrar e anexar parte do e outros); com a presença aparentemente
Líbano, fizeram dele um satélite da Síria. permanente dos refugiados palestinos das
As eleições de 1992 demonstraram a guerras civis de 1975 a 1990 com seus cerca
força dos xiitas, mas também sua divisão de 150 mil mortos; com descontentamento e
entre o grupo principal do Amal, de Nabih medo acumulados, que eram concentrados
Berri, e o Hezbollah, cada um com seu pró- e nutridos no Hezbollah; e, a partir de 2001,
prio exército privado. Al-Hoss foi sucedido políticas do governo Bush, que jogou água
como primeiro-ministro por Rafiq al-Hari- fria em tentativas de encontrar um caminho
ri, um rico e bem-sucedido empresário que para a paz na zona sírio-libanês-palestino-
dominou a inflação, manteve os impostos -israelense do Oriente Médio. Hariri foi as-
e o desemprego razoavelmente baixos, le- sassinado no final de 2005, e o líder maro-
vou o balanço de pagamentos ao superávit nita Pierre Gemayel, uns meses depois. As
e garantiu alguma ajuda e investimentos eleições de 2007 marcaram o redireciona-
estrangeiros. Ele devolveu um certo vigor mento progressivo da política do Líbano, de
à economia urbana, mas não conseguiu in- um padrão historicamente multifacetado a
terromper o declínio rural nem diminuir o um conflito bilateral entre os que aceitavam
peso dos 400 a 500 mil palestinos, a maioria as ligações próximas com a Síria (de prefe-
sem ter onde morar, em uma população li- rência sem tropas sírias) e, do outro lado,
banesa de 3,5 milhões. No sul, o Hezbollah cristãos e xiitas liderados por Aoun e com
evoluiu de um movimento sectário para um intenção de manter a interferência Síria ao
movimento nacional anti-israelense apoia- mínimo. Sendo assim, a Síria, apoiada pelo
do por drusos e cristãos. Intensificou suas Irã, estava dominando a política libanesa e
operações e causou divisões em governos esperando, assim, dar um fim ao desconfor-
e na opinião israelense sobre manter a ocu- tável isolamento dos anos seguintes à irreal
pação ou se retirar. Esse dilema aumentou união com o Egito.
quando o general Emile Lahoud, eleito pre- Mas a Síria, mesmo com apoio irania-
sidente do Líbano em 1998, declarou que no, não foi capaz de subjugar o Líbano, e
não poderia haver retirada negociada de só conseguiu paralisá-lo. A influência do
Israel do Líbano sem saída simultânea das Hezbollah cresceu quando os libaneses o
Colinas de Golan. viram como a verdadeira oposição a Isra-
Os eventos dos anos de 1980 e 1990 des- el (como o Hamas em Gaza) e quando os
truíram a estrutura política do Líbano cria- Estados Unidos foram fragilizados pelo
da depois da Segunda Guerra Mundial por fiasco no Iraque, mas o governo sunita
nacionalistas árabes sunitas e cristãos maro- de Fuad Sinior, apoiado pelo druso Walid
nitas, com base em uma divisão de cargos e Jumblatt, manteve seu status formal. Em
poder entre esses dois grupos (com uma leve 2008, o balanço de poder mudou quando
vantagem para o segundo), mas não coloca- o Hezbollah deu um golpe, tomou o con-
va nada no lugar do antigo. Por 20 a 30 anos, trole de Beirute Ocidental e praticamente
o Líbano floresceu a partir de um acordo aprisionou os líderes do governo.
13 Rumo a um Estado
palestino

A diplomacia do rei Hussein ocidentais, enquanto os Estados Unidos,


obedecendo à insistência israelense, inter-
Na onda da invasão israelense do Líbano,
pretavam conversações diretas como sendo
o rei Hussein retomou seus esforços para
somente conversações entre Israel e Jordâ-
chegar a um acordo entre Israel e seus vi-
nia, sem uma conferência internacional
zinhos palestinos. O revés sofrido por
mais ampla. Como um elemento central de
Israel no Líbano e a derrota da OLP pela
qualquer negociação de paz deveria ser a
Síria reavivaram as esperanças do rei de
cessão (ou outra disposição) de território
um acordo em que Israel cedesse territó-
ocupado por Israel, o padrão era desigual,
rio em troca de paz. Essas esperanças eram
a menos que a Jordânia abandonasse sua
compartilhadas por Shimon Peres, líder do
reivindicação de incluir a OLP e esta desse
Partido Trabalhista de Israel e um dos che-
a Hussein liberdade para negociar o desti-
fes de uma coalizão com o Likud, formada
no dos palestinos independentemente de-
em 1984, liderada, depois da renúncia de
les próprios. A tarefa que ele tinha nessas
Begin, por Yitzhak Shamir. Segundo um
circunstâncias era chegar à sala de confe-
acordo de poder compartilhado, Peres foi
rências através de alguma manobra esper-
primeiro-ministro de 1984 a 1986, quando
ta, mas, previsivelmente, ele fracassou.
trocou de cargo com Shamir e se tornou
Hussein começou fazendo um acordo
ministro do exterior. Mas essas esperan-
com a OLP sobre o princípio da troca de
ças eram irreais, cada lado tinha um item
território por paz e convocando uma con-
inegociável, inaceitável ao outro. O Likud,
embora estivesse disposto a discutir algu- ferência internacional que incluiria todos
ma forma de autonomia para os palestinos, os cinco membros permanentes do Con-
insistia em manter o controle de todo o ter- selho de Segurança da ONU, Israel e uma
ritório conquistado em 1967 e em só ne- delegação conjunta Jordânia-OLP. Essa
gociar com a Jordânia. Desde seus primór- fórmula enterrava a OLP em uma grande
dios, Israel tinha se recusado a aprovar um assembleia, mas rejeitava implicitamente a
Estado palestino distinto e a negociar com forma de negociação direta de Israel e, ao
a OLP ou com uma equipe mista Jordânia- não fazer referência à Resolução 242 do
-OLP. Hussein, por outro lado, acreditava Conselho de Segurança, ia contra a deman-
que não havia paz possível sem a partici- da israelense de reconhecimento prévio de
pação direta dos palestinos e que a OLP seu direito de existir como Estado. Hussein
era seu representante adequado. Nessa vi- não recebeu apoio de outros países árabes,
são, tinha o apoio dos governos europeus com exceção do Egito.
POLÍTICA MUNDIAL | 367

Em 1985, ele fez uma de suas repeti- sequestradores desembarcassem do Achille


das visitas a Washington, para garantir aos Lauro e saíssem do Egito. Mas os Estados
Estados Unidos que a OLP apoiaria a Re- Unidos, inflamados pelo assassinato de um
solução 242, e também pediu armas norte- desafortunado passageiro, interceptaram o
-americanas. Reagan se recusou a modificar avião egípcio que levava os sequestradores
a fórmula norte-americana-israelense de e Abu Abbas para a Tunísia e, ameaçando
negociações diretas, mas assustou Israel ao derrubá-lo, forçaram-no a aterrissar na Sicí-
concordar em fornecer mísseis e aviões à lia, onde norte-americanos armados de uma
Jordânia. Sua rejeição aos planos de Hussein unidade da OTAN tentaram prender seus
para uma conferência de paz foi o penúlti- passageiros. Esta última parte da façanha
mo prego no caixão, e, mais tarde naquele foi frustrada pelos italianos, que prenderam
mesmo ano, eles afundaram quando até e acusaram os sequestradores, mas permi-
árabes moderados, como o rei Fahd, recu- tiram que Abu Abbas escapasse para a Iu-
saram-se a participar de uma reunião árabe goslávia. As consequências dessas aventuras
para discuti-los. incluíram: a queda do governo italiano (de-
Hussein responsabilizou a OLP por esse pois restabelecido); o enfraquecimento de
revés. Estimulados por sua recuperação Mubarak, cuja mediação lhe trouxe a humi-
parcial no Líbano, os palestinos mais com- lhação de ter um de seus aviões interceptado
bativos estavam ávidos por chamar aten- pelos Estados Unidos; a elevação do nível de
ção à sua causa com atos impressionantes violência ilegal, não apenas pela OLP, mas
e violentos. Em um incidente no Chipre, também por Israel, que bombardeou a sede
mataram três israelenses. Posteriormen- da organização em solo tunisiano; e o cance-
te, em 1985, quatro palestinos abordaram, lamento final dos planos de Hussein.
em Gênova, o navio italiano Achille Lauro, No ano seguinte (1986), os Estados
que saía para um cruzeiro no Mediterrâ- Unidos tentaram reviver o processo de paz
neo oriental. Pretendiam (pelo menos foi oferecendo-se para aceitar a OLP em uma
o que disseram depois) deixar o navio em ampla conferência internacional se ela acei-
Ashdod, em Israel, e ali realizar a destrui- tasse a Resolução 242 e renunciasse à vio-
ção impressionante de propriedade e vidas lência – uma conversão atrasada ao defunto
israelenses, mas foram descobertos a bordo plano de Hussein. Mas este, cada vez mais
antes de chegar a Ashdod e, assim – aparen- ocupado com a guerra no Golfo entre Ira-
temente no calor do momento –, tomaram que e Irã, lavou as mãos em relação à OLP.
o navio e exigiram a libertação de uma sé- Peres chegou ao final de seu mandato como
rie de palestinos mantidos presos em Isra- primeiro-ministro e foi sucedido por seu
el. Um dos sequestradores assassinou um parceiro Shamir, que não gostava das nego-
passageiro norte-americano. Preocupados ciações com Hussein, e a OLP respondeu à
com esse rumo dos eventos, os líderes pa- iniciativa dos Estados Unidos exigindo que
lestinos – notadamente Abu Abbas, parceiro estes apoiassem publicamente o direito pa-
de Arafat, se não em total acordo com este lestino à autodeterminação – ou seja, a um
– ordenou que os sequestradores devolves- Estado próprio.
sem o navio a seu capitão e desembarcassem Em 1987, O Conselho Nacional Palesti-
no Egito, depois de ser garantido que seriam no cancelou o acordo de 1985 entre Arafat e
transferidos a um lugar seguro. Essa solução Hussein e afirmou sua demanda por um Esta-
do incidente foi possibilitada por Mubarak, do palestino independente e uma representa-
que ofereceu os meios de fazer com que os ção separada em qualquer negociação de paz.
368 | PETER CALVOCORESSI

No final de 1987, os palestinos sob ocu- ca de paz e permitiu que Shamir bloqueasse
pação dos israelenses surpreenderam todos, com impunidade qualquer ação rumo a um
realizando um levante (intifada) por conta acordo que não cumprisse todas as condi-
própria. Ele começou com um incidente de ções israelenses e excluísse os palestinos de
trânsito em Gaza, onde as condições de vida negociações e reconhecimento. Shamir re-
dos palestinos eram particularmente vergo- afirmou a posição que Begin assumira em
nhosas e a violência policial israelense, es- Camp David. O Likud declarou que não
pecialmente bárbara. Eram jogadas pedras, negociaria terra por paz, que continuaria a
a maioria por crianças, e os israelenses re- acelerar o assentamento de judeus na Cisjor-
taliavam abrindo fogo e matando pessoas. dânia, que nunca daria votos aos árabes em
O levante se espalhou para Cisjordânia e Jerusalém Oriental e não participaria de
Jerusalém, e evocou dos surpresos israe- qualquer conferência enquanto durasse a
lenses uma reação tão dura que a reputação intifada. No ano seguinte, Sharon aumentou
já manchada de Israel foi gravemente pre- a pressão por políticas sionistas duras ao re-
judicada em todo o mundo, e até mesmo nunciar ao gabinete. A coalizão Likud-Tra-
governos protestaram publicamente. Israel balhismo se rompeu, e, depois de longas ne-
não foi capaz de suprimir a intifada, que não gociações dos dois partidos principais com
conseguiu coisa alguma mais concreta do partidos religiosos menores, Shamir conse-
que a divulgação violenta das reivindicações guiu formar um novo governo, mas que era
palestinas. A chegada, no final dos anos de dependente da minoria de fanáticos. O Par-
1980, de milhares de judeus da URSS, en- tido Trabalhista se dividiu entre adeptos de
dureceu as atitudes em ambos os lados: 200 Peres e de Rabin. Arafat, sofrendo pressões
mil imigrantes em 1990 e a maré ainda cres- semelhantes de colegas, também se refugiou
cente davam a Israel demandas por mora- em uma regressão a posições extremas. Os
dia e trabalho que o país não tinha como Estados Unidos tentaram usar Mubarak
atender. Os israelenses estavam perdendo como mediador, sem sucesso.
seu controle do sul do Líbano e a crise do A invasão do Kuwait pelo Iraque des-
Kuwait viria a aumentar suas preocupações viou a atenção para conflitos mais urgentes.
ao permitir que a Síria saísse do ostracismo Também representou mais um revés para a
e conquistasse alguma (relutante) boa von- sempre tênue unidade árabe. Os árabes não
tade em Washington ao contribuir para a estavam mais unidos, nem tinham perspec-
montagem que os Estados Unidos faziam de tiva de estar, do que outros semelhantes.
forças armadas na Arábia Saudita contra o Mas desde o desaparecimento do poder
Iraque (ver Capítulo 14). otomano e, mais especificamente, desde a
Os Estados Unidos, que a essas alturas criação da Liga Árabe na década de 1940,
estavam dando a Israel ajuda financeira e eles afirmavam a busca da unidade e tinham
militar de até 2 bilhões de dólares ou mais sido igualmente infelizes entre si e vencidos
por ano (apesar de leis que proibiam ajudar por outros quando ela escapava deles.
governos que desprezassem os direitos hu- O final dos anos de 1970 foi uma época
manos), foi constrangido pelo comporta- ruim para esses modelos. O Egito, o mais
mento de Israel e o fim do processo de paz. prestigioso país árabe, tornou-se um mar-
Eles decidiram, em 1989, falar pela primeira ginal em função das políticas de Sadat em
vez de forma oficial e direta com a OLP, mas Camp David e nem foi convidado a par-
sua determinação de proteger e garantir Is- ticipar da Conferência da Liga Árabe no
rael em seus próprios termos frustrou a bus- final de 1980. A Síria era outro desviante
POLÍTICA MUNDIAL | 369

em função de sua intervenção no Líbano, fornecimento de alimentos e medicamen-


apoiada somente pela Líbia e pela Argélia tos necessários ao país. Também continuou
no Ocidente e pelo Iêmen do Sul no remoto defendendo uma solução exclusivamente
sul. Na primeira Guerra do Golfo, a Arábia pan-árabe da crise. Suas atitudes eram bem
Saudita, levando consigo os países do Golfo, vistas na Jordânia, mas em nenhum outro
apoiou o Iraque contra o Irã, enquanto a Sí- lugar, e, em mais uma tentativa de cumprir
ria apoiava o Irã. A Jordânia tomou partido um papel de intermediário honesto, ele se
do Iraque de forma inesperadamente direta. viu desprezado por Bush e foi recebido por
Quando a guerra terminou, o rei Hussein Thatcher com a mínima cortesia. A crise do
embarcou em outra tentativa de reformular Kuwait demonstrou que ele era o mais bem
a política no mundo árabe. Seus objetivos, intencionado, mas menos eficaz estadista
inter-relacionados, eram a pacificação no no Oriente Médio.
Oriente Médio e a preservação de seu pró-
prio reino. A norte e a oeste, o rei enfrentava
inimigos na Síria e em Israel; ao sul, estava a O dilema de Israel
monarquia saudita, inimiga hereditária dos
hashemitas; a leste, o Iraque, fortalecendo- A segunda Guerra do Golfo, juntamen-
-se sob um líder tão ambicioso quanto im- te com a extinção da influência russa no
previsível, mas um homem por quem o rei Oriente Médio, incentivou os Estados Uni-
tinha sentimentos de amizade e confiança dos a buscar um acordo de paz abrangente.
indevidos, e mais além estava o Egito, que Os norte-americanos buscaram pacificar
foi readmitido na Liga Árabe em 1989. Du- os árabes ao se opor ao desenvolvimento
rante seus árduos, mas inúteis, esforços para dos assentamentos israelenses nos terri-
abrir negociações de paz entre palestinos e tórios ocupados, sustentar o princípio da
israelenses, o rei se decepcionou com os “terra por paz” e garantir a participação
Estados Unidos e, em menor grau, com a de Israel em uma conferência de paz atra-
Grã-Bretanha, e se convencera ainda mais vés de uma mescla de concessões (nenhum
de que os próprios árabes deveriam tomar Estado palestino independente) e coerção
uma iniciativa concertada e puramente ára- (postergação de uma garantia de 10 bilhões
be. Convidados por eles, os presidentes do de dólares para financiar o assentamento
Iraque e do Egito – e o Iêmen recém-reuni- de judeus soviéticos).
ficado, na porta dos fundos da Arábia Sau- O governo do Likud estava dividido so-
dita – reuniram-se em Amã, em 1990, mas, bre a questão da troca de terra por paz, mas
alguns meses mais tarde, seus dois convida- unido na recusa em admitir uma delegação
dos torpedearam seus planos e puseram em palestina separada nas conversações de paz
risco seu trono, Saddam Hussein ao invadir e em não passar de propostas vagas para a
o Kuwait e Mubarak ao se juntar precipita- autonomia palestina. Depois de muitas ar-
damente às forças que estavam sendo reu- timanhas, teve início uma conferência em
nidas pelos Estados Unidos na Arábia Sau- 1991, em Madri, depois transferida para
dita. O rei denunciou a invasão iraquiana e Washington, onde as disputas com relação a
a tomada de reféns, insistiu na retirada e na quem teria assento reduziram as conversas a
restauração da independência do Kuwait e encontros em corredor. Essas conversações
apoiou as sanções impostas pela ONU, mas foram pouco mais do que um simulacro, e a
continuou a importar petróleo do Iraque morte do líder do Hezbollah (o xeque Abbas
por necessidade e defendia o permanente Musavi) pelos israelenses no Líbano, no iní-
370 | PETER CALVOCORESSI

cio de 1992, criou obstáculos novos, ainda apoio à Resolução 242 do Conselho de Se-
que temporários, mas as esperanças norte- gurança, mas seu espaço de ação ficava cada
-americanas ressurgiram quando, naquele vez mais restrito, não apenas em função dos
mesmo ano, o Partido Trabalhista israelense grupos mais combativos, mas também pela
venceu as eleições gerais (conquistando 44 intifada, cujos líderes dentro de Israel pare-
cadeiras no Knesset, e o Likud, 32) e Rabin ciam – principalmente para os israelenses
sucedeu Shamir como primeiro-ministro. – constituir uma liderança palestina alterna-
Os principais objetivos de Israel conti- tiva. Arafat, no início dos anos de 1990, era
nuavam os mesmos – chegar a acordos com um líder que não tinha certeza de sua pró-
a Jordânia e a Síria e dividir e isolar os pa- xima ação, mas ainda era o líder palestino
lestinos –, mas as táticas mudaram, já que reconhecido internacionalmente, e os pales-
Rabin se disse disposto a discutir com a tinos ainda eram mais numerosos do que os
Síria a ocupação israelense das Colinas de israelenses no Oriente Médio e representa-
Golan. Mas essa abertura, que parecia volta- vam um quinto dos habitantes de Israel.
da a chegar a um rápido acordo com a Síria, A vitória eleitoral de Rabin (à qual os
fracassou quando revelou ser uma redução imigrantes russos deram uma contribuição
das forças israelenses, mas não sua retirada decisiva, mas não necessariamente dura-
nem qualquer concessão sobre o território doura) não lhe deu maioria no Knesset e ele
ocupado. Sobre a Palestina, Rabin propôs provavelmente seria derrotado se fizesse a
um experimento de cinco anos, durante o menor concessão à OLP. Considerando-se
qual uma autoridade local palestina teria que, além disso, não confiava e não gosta-
poderes limitados sobre a maioria dos ser- va da OLP nem de seus líderes, ele esperava
viços sociais, mas pouca autoridade política encontrar interlocutores alternativos a Ara-
ou poder de polícia. As discussões sobre Je- fat: externamente, a Jordânia e até a Síria,
rusalém foram descartadas e não resolvida a e, dentro de Israel, outros palestinos com
posição da OLP diante de Israel. quem pudesse negociar um tipo de autono-
Nem Rabin nem Arafat estavam em mia estritamente limitada dentro de uma
posição de força. Nenhum tinha poder su- área estritamente limitada.
ficiente para implementar um acordo sólido Mas não foi possível convencer os lí-
e tampouco era claro o que cada um deles deres palestinos em Israel a agir de forma
estava disposto a fazer. Arafat e a OLP foram independente em relação ao movimento pa-
muito desvalorizados por sua postura na lestino mais amplo, e a verdadeira oposição
Guerra do Golfo, além de seu fracasso per- à OLP não eram os líderes da intifada, mas
sistente, com o passar dos anos, em garantir o incansavelmente combativo Hamas. Esse
um Estado palestino. O prestígio de Arafat grupo extremista de muçulmanos sunitas
foi mais alto nos anos de 1970, quando ele que admitiam francamente a violência e se
conseguiu obter um status que se aproxima- dedicavam à extinção de Israel ganhou des-
va ao de um chefe de Estado e estabelecer taque em torno de 1990, e sua força crescia
vínculos formais com a Comunidade Eu- a cada atitude ilegal ou brutal de Israel (por
ropeia (1974). Mas ele foi fragilizado cinco exemplo, a expulsão, em 1992, de mais de
anos depois, quando os acordos de Camp 40 palestinos presos indiscriminadamente,
David, aplaudidos pela CEE, não deram aos de Gaza para as terras infrutíferas e conge-
palestinos mais do que frases vagas. Ele re- lantes do sul do Líbano, violando o direito
cuperou parte de sua estatura política quan- internacional). Rabin foi sendo forçado a
do a CEE reafirmou em Veneza, em 1980, o concluir que teria de escolher entre negociar
POLÍTICA MUNDIAL | 371

com a OLP e um status quo cada vez mais lado, a cessão de Jericó e de outras cidades
inseguro. Ele também estava sob pressão na Cisjordânia não era bem vista, pois ofen-
dos Estados Unidos para retomar as nego- dia muitos israelenses e, como sugeria mais
ciações que fracassaram em Washington. cessão territorial, levantava questões de se-
Essa retomada tomou um rumo curioso. gurança do Estado bem como do futuro dos
Novas negociações começaram em Oslo, que ali estavam assentados. A Cisjordânia
organizadas por um órgão norueguês ex- seria dividida em áreas sob controle pales-
traoficial com base na iniciativa da OLP e tino, áreas onde a ocupação continuaria e
foram bem-recebidas por vários israelenses, áreas de autoridade em disputa.
mas sem o conhecimento dos Estados Uni- Concluiu-se uma segunda etapa, embo-
dos nem, inicialmente, de Rabin. O resulta- ra parcialmente e com mais de um ano de
do foi um acordo formal escrito aceito por atraso, quando seis cidades de maior porte
Rabin com alguma relutância e abençoado e várias cidades pequenas e aldeias foram
em uma cerimônia no jardim da Casa Bran- transferidas à administração palestina (limi-
ca em Washington (1993). Israel reconhecia tada) – excluindo Hebron, a principal cida-
a OLP como representante dos palestinos e de do sul, de imensa maioria palestina, mas
essa reconhecia o direito de Israel à existên- com uma minoria de judeus barulhentos e
cia e aceitava condenar a violência. armados, vínculos especiais com os patriar-
Com base nisso, o plano de Oslo se es- cas bíblicos, e cenário da matança de 29 mu-
tendia por seis anos (1993-1999), em três çulmanos em uma mesquita, em 1994, sob
etapas: primeira, uma retirada israelense da os olhos da polícia israelense.
Faixa de Gaza e de sete cidades da Cisjor- Um acordo posterior, Oslo II, dispunha
dânia, e a transferência de poderes à OLP; sobre a transferência de Hebron e outros lu-
segunda, transferência de aldeias interme- gares em um período de 18 meses a partir do
diárias na Cisjordânia, eleições dentro de início de 1997. O âmbito da autoridade pa-
três meses, livre movimentação entre os ter- lestina que resultava daí era uma colcha de
ritórios transferidos e, finalmente, discus- retalhos, não conformando uma entidade
sões sobre o futuro dos 140 assentamentos econômica e mal formando uma entidade
judeus nos territórios e em Jerusalém. Ape- política, na qual as cidades estavam separa-
sar de muita imprecisão, a implementação das, seus suprimentos de água e outras ne-
da primeira etapa aconteceu, mas as seguin- cessidades eram controlados por Israel, a
tes foram prejudicadas por disputas devido polícia e o exército israelense mantinham o
à falta de confiança entre os dois lados, pela direito de operar nos espaços intermediários,
hostilidade do Hamas tentando desacreditar que perfaziam dois terços da Cisjordânia. A
Arafat e destruir a OLP, pela falta de dispo- polícia palestina (com 30 mil membros) não
sição de Rabin para avançar mais rápido do tinha direito de prender israelenses, e 100
que se sentia forçado e pelo acelerado con- mil colonos israelenses estavam ameaçadora-
fisco de terras por parte de Israel nos terri- mente isolados dentro de um complexo que
tórios ocupados para mais assentamentos. lembrava os bantustões* da África do Sul.
Para Israel, a cessão de Gaza significava Rabin aplicou esse processo sem o oti-
livrar uma área destituída e violenta, da qual mismo expresso com frequência por seu
o país não tirava lucro, e sim algum descré-
dito, além de ser uma área cuja transferên-
* N. de R.Os bantustões eram territórios autogovernados por
cia à OLP exporia as dificuldades de Arafat grupos étnicos negros dentro da África do Sul, de acordo com
como suposto chefe de Estado. Por outro a política do Apartheid.
372 | PETER CALVOCORESSI

ministro do exterior, Peres. Com mais con- lho inimigo Iraque, para criar uma segunda
vicção, Rabin buscava a paz com a Jordânia. potência nuclear no Oriente Médio, que eli-
Israel e Jordânia não tinham se hostilizado minaria o monopólio de Israel e furaria sua
por quase um século, mas os estrategistas estratégia de defesa. A sobrevivência de Is-
israelenses estavam sempre nervosos com a rael dependia, como foi por meio século, de
possibilidade de ataques por parte de jorda- armas e dinheiro dos Estados Unidos. Suas
nianos ou de outros árabes usando seu terri- despesas militares passavam de 7 bilhões de
tório. Rabin e Hussein tinham uma aversão dólares por ano e o país tinha se fortificado
comum a Arafat e, como Ben-Gurion tinha com um arsenal nuclear. Mas não se pode-
negociado com o avô de Hussein para que a riam esperar garantias de que as subvenções
Jordânia se apropriasse de terras destinadas norte-americanas continuassem nos níveis
a um Estado palestino, Rabin buscou a coo- de então, e os armamentos nucleares de Is-
peração de Hussein contra as reivindicações rael estavam fazendo com que os países ára-
palestinas sobre Jerusalém ao dar a um ór- bes e outros muçulmanos o seguissem em
gão religioso na Jordânia direitos de guarda uma corrida armamentista regional e uma
sobre lugares sagrados aos muçulmanos em bancarrota mútua.
Jerusalém. Nessa base, os dois líderes divul- Mesmo assim, a política de Rabin pa-
garam (1994) uma declaração que punha fim recia não se diferenciar da de seu prede-
ao estado de guerra entre seus países, que cessor Shamir, que declarava seu objetivo
não foi muito bem vista na Jordânia, e sua de espichar as conversações de paz com os
importância foi um tanto diminuída pela in- palestinos por 10 anos, e Rabin tratava mui-
sistência de Clinton em torná-la pública em to lentamente de defender a paz com a Síria
Washington, não no Oriente Médio. entregando as Colinas de Golan. Sua bus-
Porém, a solução proposta por Israel ca atormentada e hesitante de uma forma
pela paz não estava na Jordânia, e sim na de combinar segurança e paz terminou em
Síria. A Jordânia não tinha demanda plau- 1995, quando ele foi morto por um jovem is-
sível ou válida por qualquer parte do antigo raelense (um judeu de origem iemenita) que
território do mandato palestino, ao passo não tinha dúvidas de que os esforços de sua
que a Síria tinha. Os tratados feitos durante vítima eram equivocados e pecaminosos.
e depois da Primeira Guerra Mundial divi- Peres, mais uma vez primeiro-ministro,
diram, não apenas o Império Otomano, mas decidiu fortalecer sua posição precária com
também a Síria, que, sob domínio otomano, uma eleição antecipada. Sua aposta falhou.
embora dominada, ficou intacta e incluía Ele chegou à conclusão de que Israel não
todo Israel e o Líbano, além de partes da poderia suprimir para sempre as aspirações
Jordânia. Embora o primeiro objetivo de ou as hostilidades palestinas só pela força,
Assad fosse recuperar as Colinas de Golan, mas não conseguiu convencer o eleitorado
a ambição mais antiga de seu país, embora de que tinha uma alternativa eficaz. O Ha-
mais vaga, era a reconstrução da Grande Sí- mas, tão determinado quanto os extremistas
ria. Assad, um político tão cauteloso quan- israelenses a destruir os acordos de Oslo, fez
to inescrupuloso, habilidoso praticante das uma série de atentados homicidas que ma-
artes da inatividade tão raras no Oriente taram centenas de civis em Jerusalém e Tel
Médio, sabia – como também o sabia Rabin Aviv. Peres, ansioso por afirmar sua força,
– que a Síria tinha alternativas à paz com ordenou retaliação com ataques por ter-
Israel. Poderia cooperar com o Irã ou, tal- ra e ar contra os árabes no sul do Líbano,
vez, com o Paquistão, ou mesmo com o ve- nos quais foram mortos 200 civis, incluindo
POLÍTICA MUNDIAL | 373

mulheres e crianças em uma ambulância, Netanyahu foi eleito primeiro-ministro


desafiando protestos de unidades da ONU pelo voto popular direito, a primeira pes-
que ali estavam e garantiam que os alvos soa em Israel a desfrutar dessa autoridade
não eram o que os israelenses diziam. Esse mais forte em função de uma emenda cons-
incidente teve repercussões desconfortáveis titucional de 1992. Entretanto, estava em
para os Estados Unidos quando esses, não choque com importantes membros de seu
conseguindo ocultar o relato da ONU sobre partido, o Likud, tendo adotado uma pos-
os eventos, bloquearam a condenação de tura de conflito ao afirmar a determinação
Israel no Conselho de Segurança e conso- de Israel de manter e multiplicar as colônias
lidaram sua determinação de impedir a re- nos territórios ocupados, ao provocar o Ha-
eleição do secretário-geral da Organização mas e outros grupos combativos à violência
Boutros-Ghali (que estava revelando um para culpá-los pelo cancelamento de Oslo, e
pensamento muito independente). Peres, ao fazer ofertas desdenhosas à OLP e a Ara-
mesmo assim, perdeu a eleição, embora por fat que, sem armas nem aliados efetivos e
uma margem mínima. sem a confiança de muitos de seus próprios
O novo primeiro-ministro, Binyamin colegas, tinham uma posição fraca para
Netanyahu, tinha como primeiro objetivo negociar. O principal efeito dessas ofertas
desfazer os acordos de Oslo que haviam sido foi a transferência de 7% da Cisjordânia ao
concluídos formalmente antes da eleição. controle da OLP e 2% do território sob con-
Os Estados Unidos apoiaram esses acordos, trole israelense a controle conjunto, dando
mas não em função do que continham, e à OLP mais de 10% da área total, na espe-
sim porque ofereciam, ainda que de forma rança de postergar indefinidamente qual-
tênue, uma perspectiva de estabilidade na quer redução do controle israelense sobre
região. Quando sua rejeição por parte de os outros 90%.
Netanyahu extinguiu essa perspectiva, os Ele também estava particularmente de-
Estados Unidos se viram obrigados a buscar dicado a anular as disposições de Oslo sobre
uma forma alternativa de estabilidade que, Jerusalém Oriental, que, desde sua captura
na prática, significava descobrir e aceitar os em 1967, tinha sido incorporada ao Esta-
termos irredutíveis do primeiro-ministro do de Israel como território conquistado, e
para um novo acordo israelo-palestino. Os não ocupado. Seus 160 mil habitantes foram
Estados Unidos deixaram de fazer referên- tragados pela construção de novas casas só
cia aos acordos de Oslo, preferindo falar para judeus; terras públicas e privadas den-
em um “processo de paz”. As concessões de tro da cidade e em seus arredores foram
Netanyahu eram mínimas, uma entidade confiscadas; os palestinos foram expulsos e
palestina autônoma muito menor do que a impedidos de voltar para rezar ou trabalhar
prevista em Oslo, impedida permanente- na cidade sem licenças especiais, que o novo
mente de aumentar, economicamente de- governo parou de emitir. Mais desafiador
pendente de Israel e formalmente privada ainda, Netanyahu ordenou a construção,
de atributos normais de soberania. Mais em Har Homa, entre Jerusalém e Belém, de
tarde se soube que ele estava disposto a se 6.500 casas para 32 mil colonos judeus – um
retirar do Líbano, ainda que seus chefes mi- ato político que também era uma manobra
litares superiores falassem em ocupar parte estratégica completando um cerco a Jeru-
do país por mil anos. (Israel começou a se salém por baluartes israelenses. Na disputa
retirar em 1998.) Sobre as Colinas de Golan, por Hebron, ele abortou Oslo II ao insistir
ele se mostrava intransigente. em que a proteção de seus 400 habitantes
374 | PETER CALVOCORESSI

judeus entre 20 mil palestinos exigia direito suas medidas para impedir os ataques pa-
de acesso para as forças armadas israelenses. lestinos contra Israel e os israelenses, e ela
O caráter conflituoso de Netanyahu também informaria as queixas dos israelen-
era uma aposta calculada na aquiescência ses sobre a lentidão palestina em prender os
norte-americana, que estava garantida na atacantes. Esse sistema colocou os Estados
prática no curto prazo, mas tinha risco no Unidos em uma posição mais central e ex-
longo. Ele rompeu uma linha fundamental posta do que nunca, e era profundamente
na política externa de Israel. Enquanto Ben- impalatável entre israelenses e palestinos.
-Gurion tinha se sentido obrigado, como úl- Todos os grupos palestinos, com exceção da
timo recurso, a ceder à pressão de Washing- Fatah de Arafat, denunciaram o acordo de
ton, e Rabin tinha feito o mesmo em Camp Wye. Outras tentativas de Clinton, que foi
David e com relação aos acordos de Oslo, ao Oriente Médio na semana em que seu
Netanyahu persistia em rumos indepen- impeachment se tornou inescapável, fracas-
dentes e agressivos diante da desaprovação saram em sua meta de resgatar o chamado
dos Estados Unidos. Ele calculava que essa processo de paz.
desaprovação não se traduziria em ações Como Clinton era o primeiro presiden-
significativas, mas também deixou claro te dos Estados Unidos a colocar os pés em
o dilema norte-americano entre o vínculo território palestino ou discursar para um
com Israel e a preocupação com a instabi- Conselho Nacional Palestino, Arafat estava
lidade no Oriente Médio. Esse dilema, com- prestativo, mas Netanyahu, cujo cargo não
binado com a necessidade de Clinton de ter estava mais garantido do que o de Clinton,
êxitos no exterior para desviar a atenção dos era de natureza beligerante. Eram três ho-
escândalos domésticos na Casa Branca, le- mens fracos temporariamente responsáveis
vou o presidente a tentar forçar o ritmo. Em por uma questão de enorme importância.
1998, ele convocou Netanyahu e Arafat aos O mais fraco de todos era Netanyahu.
Estados Unidos e, depois de enormes esfor- Ele criticou o acordo de Wye algumas sema-
ços pessoais, forçou-os a assinar um acordo nas após assiná-lo, mas foi censurado pelo
– o Memorando do Rio Wye – que nenhum Knesset, onde esquerda e direita se uniram
dos dois tinha vontade nem probabilidade para votar contra ele. Como todos os seus
de implementar. Israel aceitou se retirar de predecessores, estava preocupado princi-
uma pequena parte de território ocupado palmente com a sobrevivência do Estado de
em troca de promessas palestinas de mais Israel que, no momento em que celebrava
diligência na prevenção de ataques contra seu 50o aniversário, estava mais inseguro do
israelenses. As questões básicas relacionadas que nunca. A hostilidade de Netanyahu ao
a um Estado palestino, seu tamanho e suas acordo de Oslo e seus derivados superava a
fronteiras, e Jerusalém, foram deixadas de dependência israelense da boa vontade dos
lado. O resultado imediato foi enfraquecer Estados Unidos (para seus equipamentos
Netanyahu em Israel e Arafat entre os pales- militares, seu padrão de vida e sua supera-
tinos. O primeiro postergou repetidas vezes ção de um isolamento quase total em rela-
submeter o acordo a seu gabinete, que aca- ção ao mundo). Ela agradava aos naciona-
bou aprovando-o por uma maioria escassa listas de direita e aos extremistas religiosos,
e depois de alterar unilateralmente seus ter- mas somente à custa de tornar essas forças,
mos. Havia uma novidade, o novo acordo muçulmanas e judaicas, mais ferozes e mais
introduzia a CIA na questão da segurança. influentes. Por suas políticas e sua perso-
Arafat aceitou que a agência monitorasse nalidade, Netanyahu fez muitos inimigos,
POLÍTICA MUNDIAL | 375

e nas eleições, ele e o Likud sofreram uma seu governo. Ele prometeu honrar e imple-
clara derrota. Um novo líder trabalhista, o mentar o acordo de Wye, mas queria nego-
ex-general Ehud Barak, venceu as eleições ciar modificações. Embora parecesse aceitar
para primeiro-ministro por uma margem a inevitabilidade de um Estado palestino,
surpreendentemente ampla. Os dois princi- sua determinação era de que este deveria
pais partidos, o Trabalhista e o Likud – per- ser desagregado, não soberano na prática e
deram cadeiras nas eleições para o Knesset, dominado por forças israelenses livres para
onde o número de partidos presentes au- operar em mais de metade de Cisjordânia.
mentou de 10 para 15. Sete deles foram aco- As negociações com Arafat em relação aos
modados no gabinete de Barak (mas não o detalhes de um acordo de Wye modificado
Likud). A terceira força no parlamento era deixaram os palestinos no controle da mes-
o partido religioso Shas, mais preocupado ma extensão – 40% – da Cisjordânia.
com a ortodoxia em Israel do que com o ati- Barak fez concessões de menor porte,
vismo expansionista ou pró-colonos, cujos relacionadas a um direito de passagem entre
defensores perderam votos. Barak prometia a Cisjordânia e Gaza, uma rua em Hebron e
uma retirada rápida do sul do Líbano, onde ajuda para a criação de um porto em Gaza,
a posição de Israel tinha se tornado insus- mas as questões principais foram adiadas: a
tentável com a desintegração do Exército do aceitação e a data de um Estado palestino,
Sul do Líbano e o crescimento do poder do o direito dos palestinos de retornar a ele, os
Hezbollah. Mas a retirada era arriscada e ti- assentamentos israelenses e Jerusalém. No
nha amplas implicações. Ela permitiria que final do ano, Barak corria o risco de perder
os Hezbollah avançasse em direção às fron- seu aliado central na coalizão – o Shas – e
teiras de Israel e bombardeasse as cidades e sua maioria no Knesset, principalmente em
os assentamentos israelenses dentro do país, função de seus esforços para manter a paz
a menos que se pudesse convencer a Síria a com a Síria. Os anos de 1990 foram uma dé-
barrar suas operações. Barak concordou em cada de fracasso e morte. O desejo de obter
retomar as conversações com a Síria que ha- êxito através de acordos estava mais fraco
viam sido interrompidas por Netanyahu. A que o medo de ambos os lados de que ne-
Síria, exigia a restituição imediata e integral nhum acordo em vista pudesse ser realizado
das Colinas de Golan, onde moravam 17 sem concessões perigosas. A violência per-
mil israelenses (alguns dos quais estavam ali sistia, palestinos e israelenses estavam mor-
há mais de 30 anos) e eram uma fonte sig- rendo aos milhares e na proporção de 3:1.
nificativa de receitas para Israel. Em troca, Israel permanecia ocupando 60% da Cisjor-
Barak esperava garantir a paz nas fronteiras dânia e 30% de Gaza.
de Israel com o Líbano, bem como com a Em 2001, o veterano linha-dura Ariel
própria Síria. Assim como muitos em Israel, Sharon se tornou primeiro-ministro. Im-
Barak acreditava que a paz nessas áreas era placavelmente contrário a negociações com
um interesse vital de seu país e que sua ca- os palestinos, mesmo assim ele adotou uma
pacidade de obtê-la estava em declínio. Aos política de concessão à autoridade pales-
palestinos, Barak tinha pouco a oferecer. Ele tina de uma área de território ocupado na
poderia querer congelar os assentamentos Cisjordânia – um território a ser delineado
israelenses na Cisjordânia, mas não estava por ele e definido com base em um imenso
disposto a retirar os 400 mil colonos, e o muro de 650 quilômetros de comprimen-
ritmo de construção de novas casas para ju- to. Nenhum assentamento israelense seria
deus nos territórios ocupados aumentou em retirado, alguns seriam aumentados e pro-
376 | PETER CALVOCORESSI

tegidos por destacamentos do exército is- (2007), na qual declarou sua convicção de
raelense, os próprios colonos estavam sendo que Olmert e Abbas chegariam a uma solu-
armados de forma ilícita, e o novo territó- ção até o final de 2008, e foi embora deixan-
rio palestino seria não apenas cercado, mas do os dois lados para que emitissem uma
penetrado por novas rodovias reservadas declaração igualmente vaga. Ataques com
ao exército israelense. Quatro anos depois, foguetes contra Israel a partir de Gaza dei-
Sharon sofreu um derrame que o deixou xaram claro o vazio das conversações que
sem esperanças de recuperação. Seu suces- excluíram o Hamas, enquanto a situação
sor, Ehud Olmert, era um ex-linha-dura cada vez mais desesperada dos habitantes de
que, assim como Sharon e muitos outros, ti- Gaza aumentava o impacto da propaganda
nha aceitado, em princípio, a necessidade de anti-israelense em todo o mundo e forçava o
um Estado palestino, mas, diferentemente Egito a permitir que refugiados da área en-
daquele, estava disposto a discutir com pa- trassem em massa no país.
lestinos (adequados) como se poderia che- Em 1999, o rei Hussein morreu depois
gar a isso. Ele foi incentivado pela mudança de um reinado de 47 anos, durante o qual o
na liderança palestina, do odiado Arafat ao Estado jordaniano e sua dinastia hashemita
mais complacente Mahmoud Abbas, mas se tornaram partes aceitas do mapa político
também foi enfraquecido quando o proces- do Oriente Médio. Sem Hussein, nenhum
so democrático, ao qual Bush fazia apelos dos dois estava seguro. Nas últimas semanas
constantes, desvinculou Gaza da Cisjordâ- de vida, o rei transferiu a sucessão, de seu
nia e instalou na primeira – que continha irmão Hassan, príncipe da Coroa durante a
40% dos palestinos desalojados – um gover- maior parte de seu reinado, a seu filho Ab-
no do Hamas que não acreditava em coisa dullah, em parte como resultado de intrigas
alguma que não fosse a derrota e destruição palacianas. O novo rei podia contar com a
de Israel. Olmert também perdeu força em lealdade de suas forças armadas, mas carecia
função de uma série de acusações de mal- do prestígio e da experiência que permiti-
versação financeira e de uma invasão mal ram ao pai enfrentar e, em alguma medida,
planejada e fracassada do Líbano, que ele controlar uma imprensa impaciente e a ativi-
tinha promovido e que lhe privou da capaci- dade da oposição democrática à sua autocra-
dade do carismático Sharon de manipular o cia. Seus vizinhos árabes, a Síria e o Iraque,
Knesset, ainda um oponente marcadamente tinham apenas uma coexistência pacífica,
cínico, mas um cossignatário necessário de suas relações com os Estados Unidos eram
qualquer acordo com os palestinos. governadas por suas atitudes em relação a
Ignorando esses obstáculos, Bush, que Israel, e sua economia, na melhor das hi-
esperava encontrar nesse canto do Oriente póteses, estava estagnada, com desemprego
Médio algum antídoto para o desastre no acima dos 20% da força de trabalho e déficits
Iraque, visitou Israel pela primeira vez du- orçamentários inadministráveis sem ajuda
rante seu mandato e convocou uma confe- do FMI e do Banco Mundial, cujas condi-
rência em Annapolis, nos Estados Unidos ções eram impopulares e desagregadoras.
O Irã e as Guerras
do Golfo 14
Na linguagem tradicional, o Irã faz parte tornar o principal espinho na carne dos Im-
do Oriente Médio, mas com certeza não faz périos Romano e Bizantino. No século VI,
parte do mundo árabe. A lembrança que o foi convertido ao Islã quando as conquistas
país tem das conquistas árabes do século árabes se espalharam da península árabe à
VII carrega mais ressentimento do que a da África, Ásia e Europa, mas adotou o ramo
Mongol, 600 anos mais antiga. É o bastião xiita da nova fé – uma variante pessoal em
do Islã xiita, o desviante tenso e estridente vez de doutrinária – e, com isso, uma des-
da ortodoxia sunita: singular, porque os xii- confiança obsessiva em relação a seus vizi-
tas, embora maioria em Bahrein, no Iraque nhos. (Os xiitas compreendem apenas 10%
e talvez em Omã, estão, em toda a parte, do Dar ul-Islã, mas, no Irã, são 90% da po-
com exceção do Irã, sujeitos a uma dinas- pulação). Sucessivas dinastias têm estimado
tia ou a uma classe dominante sunita. O Irã memórias e, às vezes, saudades imperiais, e,
é rico em petróleo, mas, diferentemente do no século XX, o Irã era um país em luta para
mundo árabe, não apenas nesse produto. Os se modernizar na busca do poder, principal-
iranianos dominantes governam uma varie- mente depois da descoberta de petróleo no
dade heterogênea de raças e religiões. início do século XX, mas psicologicamente
Desde Alexandre, o Grande, o país nun- sufocado por seu poderoso passado militar.
ca esteve sujeito ao imperialismo ocidental, A geografia e a raça o tornavam um so-
embora em determinadas ocasiões tenha litário entre Estados, e a religião reforçava
sido obrigado a se curvar diante dele, princi- sua separação. A consciência de seu passado
palmente dos britânicos e dos russos. A sede (glória) e seu presente (petróleo) o incenti-
de petróleo do mundo lhe deu os meios para vavam a considerar o poder nuclear como
se transformar em uma potência industrial possibilidade de melhorar seu destino e a
e militar sem igual na região ao seu redor. crer que poderia seguir em frente sozinho,
O Irã se vangloria de descender de um se não no mundo, pelo menos no Orien-
dos mais antigos impérios no mundo. Fun- te Médio. A essas atitudes, acrescentava-se
dado pelo rei persa Ciro no século VI a.C., uma hostilidade inflexível para com a exis-
a partir de um conglomerado de povos asiá- tência de Israel.
ticos, incluiu por pouco tempo o Egito e só Durante a Segunda Guerra Mundial, a
foi impedido de se expandir da Ásia Menor Grã-Bretanha e a URSS ocuparam o Irã ale-
à Europa pela extraordinária coalizão de Es- gando necessidade estratégica (com os ira-
tados gregos em Salamina, em 480 a.C. Re- nianos resistindo por três dias) e forçaram
cuperou-se do ataque de Alexandre para se a abdicação do fundador da nova dinastia
378 | PETER CALVOCORESSI

do país, Reza Shah Pahlevi, que foi exilado a decisão final era do parlamento que estava
às Ilhas Maurício e morreu na África do Sul por ser eleito, e também adiou as eleições,
em 1944. ao mesmo tempo em que fazia um jogo
Seu filho e sucessor Muhammad Reza duplo com o Partido Tudeh. Tendo levado
Pahlevi não teve tempo nem oportuni- alguns de seus membros para seu gabinete
dade de deixar uma marca entre seu povo com vistas a acalmar os russos, ele acolheu
quando a ocupação terminou. O tratado (para dizer de forma suave) uma revolta por
de 1942, que sancionou a ocupação estran- parte de tribos poderosas no sul que exi-
geira, estabeleceu a retirada dos britânicos giam a demissão dos ministros do Partido
e dos russos seis meses depois do final das Tudeh e outros de seus membros, que ocu-
hostilidades. Os russos fizeram uma tenta- pavam cargos importantes. O novo Majlis
tiva de manter influência na província do (a câmara baixa do Parlamento Iraniano)
Azerbaijão, relativamente rica, tradicional- censurou devidamente Qavam por discutir
mente hostil ao governo central e localizada com os russos um acordo sobre o petróleo
na fronteira com a URSS. Também deram e o cancelou. Apesar dessas conquistas oblí-
apoio ao separatismo curdo e podem ter quas, Qavam foi derrotado e renunciou no
alimentado esperanças de estabelecer uma final do ano. Tendo levado a melhor com os
esfera da influência russa que se estendesse russos e assistido à retirada dos britânicos,
no sentido sul, da república curda de Maha- ele estava embarcando em uma política de
bad até o Golfo Pérsico, passando por outros cooperação com os Estados Unidos, com
territórios curdos. Eles recebiam ajuda do a qual esperava receber apoio financeiro e
Partido Tudeh, um amálgama de comunis- diplomático na tradicional busca do Irã por
tas marxistas com uma tradição liberal mais meios para manter russos e britânicos a uma
antiga, que introduziu o Movimento Consti- distância segura.
tucional no início do século. As tropas britâ-
nicas saíram do Irã pontualmente em 1946,
mas as russas tiveram de ser forçadas a sair Petróleo e nacionalismo
pelo governo iraniano. O astuto e experiente
estadista Qavam es-Sultaneh, que se tornou Os sucessores de Qavam, contudo, viriam
primeiro-ministro em janeiro de 1946, vi- a ter uma intensa disputa com os britâni-
sitou Moscou em fevereiro, depois de uma cos, na qual os Estados Unidos, depois de
reclamação iraniana ao recém-estabelecido alguma hesitação, deram firme apoio à
Conselho de Segurança e conseguiu persu- Grã-Bretanha. As relações anglo-iranianas
adir Stalin de que os objetivos russos pode- pioraram em função da existência da An-
riam ser obtidos mais facilmente por meio glo-Iranian Oil Company, que tinha o mo-
de boas relações com o governo iraniano do nopólio dos campos de petróleo compro-
que através de uma presença contínua de vados do Irã, e da qual o próprio governo
tropas russas no noroeste do Irã. Os russos, britânico possuía uma quantidade conside-
que estavam tão ávidos por um acordo so- rável de ações.
bre o petróleo com o governo central quan- Essa conexão incomum deu à empresa
to por estimular o separatismo contra ele, um matiz político e envolveu o governo bri-
retiraram suas tropas apenas umas semanas tânico em questões comerciais – dois des-
mais tarde. Qavam iniciou discussões sobre dobramentos que, aos olhos dos iranianos,
um acordo de petróleo, mas evitou qualquer não eram consequências naturais nem bem-
passo conclusivo com a justificativa de que -vindas de uma concessão a um indivíduo
POLÍTICA MUNDIAL | 379

no início do século. O descontentamento Guerra Mundial, o país entrou em uma fase


iraniano foi aumentado pela suspeita de que de expansão econômica, e um plano adota-
a companhia vendia petróleo à marinha bri- do pelo Majlis, em 1947, previa gastar 651
tânica em termos indevidamente favoráveis, milhões de dólares, dos quais 242 milhões
por seu sigilo sobre o volume dessas vendas viriam do petróleo. Mas as receitas resul-
e suas contas em geral, por não divulgar no tantes de petróleo em 1947 e 1948 foram
restante do Irã os bons salários e condições decepcionantes, apesar de aumentos mui-
de trabalho e outros benefícios que dava a to grandes nos lucros da empresa, e essa,
seus funcionários. Por outro lado, os pro- prevendo problemas, concluiu um acordo
blemas da empresa não eram apenas de sua suplementar pelo qual a taxa de royalties
responsabilidade, ela não divulgava suas foi aumentada em 50% e ela concordou em
próprias virtudes porque, já que era prati- pagar 5,1 milhões de libras de suas reservas
camente a única a cumprir leis trabalhistas, e fazer mais pagamentos a partir de reservas
não poderia reivindicar um crédito devido em lugar de esperar até 1993, como dispu-
sem gerar críticas a outros empregadores. nha o acordo de 1933. Esse acordo era fa-
As concessões estrangeiras nos setores vorável ao Irã, mas também complicado a
de mineração, bancos, ferrovias, telégra- ponto de ser ininteligível, e não era aceitá-
fo, tabaco, etc. geraram hostilidade a par- vel a um grupo de nacionalistas que queria
tir de metade do século XIX. A concessão terminar completamente com a concessão
herdada pela Anglo-Iranian Oil Company e levar a administração e os lucros da in-
foi dada em 1901 a W. K. D’Arcy e adqui- dústria de petróleo para mãos puramente
rida pela empresa antes da Primeira Guer- iranianas. O general Ali Razmara, que se
ra Mundial. O governo iraniano negociara tornou primeiro-ministro em 1950, por um
para receber uma porcentagem dos lucros tempo não pressionou o Majlis pelo acordo
líquidos da empresa, mas essa negociação suplementar. Quando recomendou sua ado-
acabou mal para o Irã, já que sua parcela foi ção – especialmente porque o Irã carecia de
vinculada ao nível de taxação na Grã-Bre- técnicos qualificados – o comitê especial do
tanha, e foi ainda mais afetada pela queda Majlis sobre o petróleo exigiu a nacionaliza-
brusca no entreguerras, e, em 1932, o Irã ção dos campos de petróleo e da refinaria, e
quis cancelar a concessão. Como resultado o primeiro-ministro retirou o acordo.
de negociações entre Reza Shah e a empre- A empresa, tomando ciência inespera-
sa, outro acordo, ratificado devidamente damente dos termos que estavam sendo ofe-
pelo Parlamento Iraniano, deu à empresa recidos pela Arab American Oil Company
uma nova concessão por 60 anos, a par- (ARAMCO) ao governo da Arábia Saudita –
tir de 1933 (em vez de 60 anos a partir de mais favoráveis (em anos bons) e, acima de
1901), sobre uma área bastante reduzida, e tudo, mais fáceis de entender – preparou-se
dava ao Irã royalties a serem calculados so- para reabrir discussões e simplificar o acor-
bre a quantidade de petróleo extraído. Em do suplementar. Razmara apresentou vários
1950, essa quantidade era de 32,5 toneladas relatórios de especialistas que se opunham à
métricas, três vezes a quantidade produzida nacionalização, mas foi assassinado em 1951
em 1938, e o Irã era o maior produtor do por um nacionalista fanático que pertencia
Oriente Médio e tinha a maior refinaria do ao grupo semirreligioso Fidayani-Islã. No
mundo em Abadan. dia seguinte, o Majlis aprovou as propostas
As receitas oriundas do petróleo eram do comitê do petróleo e, algumas semanas
muito necessárias. Depois da Segunda mais tarde, nacionalizou a indústria.
380 | PETER CALVOCORESSI

O general Razmara foi sucedido por Nas polêmicas que se seguiram, o Dr. Mos-
Husain Ala, amigo do xá e por ele indicado, sadegh insistiu em que a Grã-Bretanha re-
que queria evitar nomear o presidente do conhecesse o decreto de nacionalização
comitê do petróleo Dr. Muhammad Mossa- como pré-requisito para qualquer negocia-
degh: tentativa na qual o xá não teve êxito. ção sobre indenizações à empresa britânica.
No final de 1951, o Dr. Mossadegh deu iní- Os britânicos, por outro lado, sustentavam
cio a um período no poder que durou, de que o decreto era ilegal e sem valor, que os
forma tumultuada, até agosto de 1953. Ele direitos da empresa permaneciam intactos
era um hipocondríaco rico e aristocrata que e que o acordo de concessão de 1933 não
apelava aos chauvinistas xenófobos, aos fa- poderia ser revogado devidamente por um
náticos religiosos, aos radicais comunistas ato unilateral de uma das partes, mesmo que
e não comunistas, à velha aristocracia pro- essa parte fosse um Estado soberano. Con-
prietária de terras à qual pertencia e a todos sequentemente, a Grã-Bretanha reivindica-
os que não confiavam na tentativa do xá de va não apenas compensação pela perda de
fazer ressurgir a autoridade da dinastia que benefícios garantidos à empresa pelo acordo
tinha perdido poder com a abdicação de de concessão, mas também uma soma extra
seu pai e a ocupação estrangeira durante a relacionada a danos causados pela quebra
guerra. Seu cacife político era um naciona- indevida de contrato.
lismo que, embora possa ter tido a intenção A polêmica envolveu não apenas a
de ser aparente, tornou-se a substância de empresa britânica, mas também o gover-
suas ações políticas. no da Grã-Bretanha, que era responsável
Se Mossadegh pretendia combinar a pela segurança dos cidadãos britânicos (os
nacionalização da indústria do petróleo quais poderiam correr riscos em função do
com a continuação do emprego de técnicos frenesi nacionalista) e queria salvaguardar
estrangeiros e do financiamento externo, seu próprio interesse financeiro na empresa
ele foi derrotado em pouco tempo por seus britânica, também estava preocupado com
próprios apoiadores e opiniões extremas. a firme defesa dos direitos dos britânicos
Mossadegh se tornou quase motivo de riso por receio de que uma demonstração de
no mundo como um todo, com certeza para fraqueza em uma parte do Oriente Médio
o mundo ocidental; mas, em seu próprio pudesse provocar ataques a interesses britâ-
país, gerou popularidade (bem diferente do nicos em outras.
apoio comprado das gangues da capital), e Durante o ano de 1951, foram feitas vá-
até mesmo seus adversários políticos tive- rias tentativas de negociar com o Dr. Mos-
ram de reconhecer seu sucesso na redução sadegh – pela empresa britânica, por um
da corrupção em questões públicas. Mas ele emissário especial do presidente Truman e
não conseguiu manter o controle sobre a por uma delegação britânica liderada por
disputa pelo petróleo nem a confiança em um ministro. O governo dos Estados Uni-
si mesmo, tornando-se prisioneiro de suas dos escolheu o lado britânico depois de
próprias atitudes precipitadas e subestimou alguma hesitação. Sua simpatia pela causa
a eficácia das sanções econômicas que o britânica era temperada por seu desejo de
governo britânico era capaz de mobilizar atrair o Irã para o campo ocidental, mas a
contra ele. postura histriônica de Mossadegh afastou os
A lei de nacionalização do petróleo ex- norte-americanos.
propriou a empresa britânica e criou uma A disputa não era marcada, em última
nova companhia iraniana para seu lugar. análise, pelas questões jurídicas, e sim pela
POLÍTICA MUNDIAL | 381

falta de disposição do governo britânico de sobre o xá. Em agosto, o xá demitiu Mossa-


usar a força (exceto com vistas a proteger degh e indicou o general Fazullah Zahedi
cidadãos britânicos), pela incapacidade para seu lugar. Três dias depois, o xá e o
da empresa iraniana de vender o petróleo general estavam em fuga, mas, enquanto
iraniano diante dos obstáculos interpostos o primeiro fugiu para Roma, o segundo
pela empresa britânica e da falta de soli- só recuou uma pequena distância e, uma
dariedade entre produtores e pelo colapso semana depois de sua indicação original,
econômico do regime de Mossadegh que, retornou para dar um fim ao regime de
privado da receita que recebia da empresa Mossadegh com uma ajuda não desprezí-
britânica, não conseguiu encontrar fontes vel da CIA e do serviço secreto britânico.
alternativas de dinheiro. Não tendo obti- O xá também retornou. A mão amiga dos
do empréstimos dos Estados Unidos nem Estados Unidos pouco foi ocultada e não
do Banco Mundial, Mossadegh chamou o foi esquecida quando o xá, mais uma vez,
renomado Dr. Hjalmar Schacht, que o ava- foi forçado a fugir, um quarto de século
liou, depois de alguns dias de convivência, mais tarde.
como um dos mais sábios homens de sua Em pouco tempo se estabeleceu a paz
idade, mas não conseguiu ajudá-lo. Nesse na disputa pelo petróleo. Foram elaborados
meio-tempo, alguns dos aliados de Mos- novos acordos baseados, ironicamente, no
sadegh estavam vacilando. Ele voltou a ser reconhecimento da validade do decreto ira-
nomeado primeiro-ministro em julho de niano de nacionalização. A companhia pe-
1952, depois de uma renúncia de rotina troleira iraniana permaneceu existindo e em
pela convocação de um novo Majlis, mas os posse do petróleo. Foi criado um consórcio
membros demonstraram alguma relutân- de oito empresas estrangeiras – britânicas,
cia em conceder os poderes integrais que norte-americanas e francesas. A companhia
ele pediu. Quando o xá se recusou a lhe dar britânica aceitou, não sem vacilação, uma
o ministério da guerra, ele renunciou, mas participação de 40% nesse consórcio e rece-
Qavam, que o sucedeu, só conseguiu ficar beu de suas sete associadas 214 milhões de
no cargo por quatro dias e teve de sair. A libras pelos restantes 60%, que elas compra-
multidão se manifestou em favor de Mos- ram entre si.
sadegh, o Majlis aprovou poderes integrais A empresa britânica também receberia
para ele, e o próprio trono parecia em risco. 25 milhões de libras do governo iraniano,
Só o exército tinha condições de depô-lo e divididos ao longo dos anos de 1957 a 1966,
o fez, um ano depois. como compensação por suas perdas desde
O triunfo de Mossadegh expôs sua de- a nacionalização. O consórcio recebeu con-
pendência política da turma sem diminuir trole efetivo sobre a refinaria de Abadan e
sua dependência financeira em relação aos os principais campos de petróleo por 25
britânicos, que, por sua vez, estava condi- anos, com uma série de opções de renova-
cionada por sua dependência do naciona- ção, e aceitou pagar 50% de seus lucros ao
lista extremista mulá Kashani, que se tor- governo iraniano. Sendo assim, a doutrina
nara presidente do Majlis e não aceitava nacionalista estava satisfeita, os consumido-
qualquer aproximação com os britânicos. res se sentiam seguros em suas demandas, e
No final de 1952, Mossadegh e Kashani en- os produtores, em suas receitas. As relações
traram em conflito. No ano seguinte, Mos- diplomáticas entre o Irã e a Grã-Bretanha
sadegh triunfou sobre Kashani e dissolveu foram retomadas em 1954. Mossadegh pas-
o Majlis, mas não conseguiu prevalecer sou os dois anos na cadeia.
382 | PETER CALVOCORESSI

O xá e o aiatolá cialmente na capital iraniana, um lembrete


de que a suspeição tradicional entre os dois
A queda de Mossadegh foi uma vitória do países teria de levar em conta que o Irã ti-
xá. Os apoiadores esquerdistas do primeiro nha uma longa fronteira não defendida com
foram perseguidos com total ferocidade, e a URSS e queria usar as rotas comerciais do
o segundo reafirmou a supremacia do tro- norte para exportar a produção de suas pro-
no, inicialmente por meio de um domínio víncias naquela região.
militar que durou até 1957 e, depois, atra- O xá aceitou não permitir a instalação
vés de uma série de primeiros-ministros que de mísseis nucleares no Irã e, sem abando-
foram submissos ou demitidos. A morte do nar o CENTO nem entrar para o grupo dos
único irmão do xá, em 1954, pôs em risco a não alinhados, avançou para uma posição
dinastia e obrigou o xá sem herdeiros a se mais independente na política mundial.
divorciar de sua segunda mulher e se casar Em 1969-1970, ele estava em condições de
com uma terceira, que lhe deu um filho um cumprir um papel decisivo na definição do
ano mais tarde. Fortalecido, o xá começou a futuro político do Golfo Pérsico depois da
implementar uma política de reforma agrá- saída dos britânicos e, desfrutando da posi-
ria que se mostrou tão impopular com as ção de empreendedor membro da realeza,
classes dos proprietários de terras e o Ma- usar a riqueza mineral e uma economia em
jlis (onde eles estavam bem representados) crescimento para transformar o Irã em uma
que o xá prescindiu do parlamento pelos 2 considerável potência econômica e militar.
anos de 1961 a 1963. Em 1963, ele se sentiu O xá se inclinava para o crescimento a
forte o suficiente para promover um plebis- qualquer custo, e a chave disso era o petró-
cito, que confirmou sua ascendência pessoal leo, embora esse não fosse o único recurso
e o declínio do poder das personalidades do país, que também era rico em gás natu-
das províncias. O mundo dos políticos ur- ral, outros minerais e agricultura, e estava
banos, dos chefes tribais e dos jovens edu- estabelecendo a indústria o mais rápido pos-
cados permanecia descontente por diversas sível, com um analfabetismo de 50% e um
razões, as receitas do petróleo cresciam e o sistema educacional muito pobre. Quando,
produto interno bruto do Irã começou a re- em 1973, a guerra no Oriente Médio deu aos
gistrar aumentos anuais da ordem de 7%. produtores de petróleo a desculpa para au-
Em 1952, o país se tornou o primeiro a mentar os preços, o xá insistiu em aumentos
receber o dinheiro do programa norte-ame- máximos, contra os desejos de árabes mais
ricano Ponto Quatro (a contribuição de cautelosos que hesitavam em causar pre-
Truman à cooperação internacional anun- juízos aos países ocidentais que eram seus
ciada em seu discurso de posse, em 1949, e melhores clientes. Em dois anos, a receita
baseada em sua visão sobre o papel do capi- iraniana por barril foi multiplicada por 10 e
tal e da tecnologia europeus no desenvolvi- suas receitas anuais provenientes de petróleo
mento dos Estados Unidos). Em 1955, o xá aumentaram de 2,3 bilhões de dólares para
decidiu entrar para o CENTO (como ficara 18,2 bilhões. No ano posterior ao aumento
conhecido o Pacto de Bagdá) e, em 1959, fez de 1973, o PIB cresceu 42,5%. As despesas
uma visita de Estado a Londres e recebeu também aumentaram, particularmente as
o presidente Eisenhower em Teerã. Depois militares, que também se multiplicaram por
de um curto período de frieza, as relações 10 em meia década e passaram da marca dos
russo-iranianas melhoraram, e, em 1963 o 10 milhões de dólares. Em 1975, o Irã estava
presidente Brejnev também foi recebido ofi- gastando em defesa uma proporção do PIB
POLÍTICA MUNDIAL | 383

maior do que qualquer país do mundo, com usando a riqueza do país para criar prospe-
exceção de Israel. Os resultados dessa explo- ridade e força, mas o ritmo lento e a horren-
são não eram todos positivos, pois o ano de da desumanidade de sua revolução uniram
1975 assistiu a um déficit de quase um bi- conservadores, radicais e liberais contra ela,
lhão de dólares no balanço de pagamentos. gerando uma contrarrevolução. Quando, em
Desperdício e corrupção cresceram na mes- janeiro de 1979, o xá pediu ao Dr. Shahpur
ma medida e a inflação se instalou. Os que Bakhtiar para assumir o cargo de primeiro-
foram prejudicados por ela e tinham menos -ministro, este aceitou, sob a condição de
capacidade de lucrar com a corrupção tive- que o xá deixasse o país.
ram de ser compensados, e os salários foram O beneficiário desses eventos foi o aia-
quase que dobrados em 1974-1975, com o tolá Ruhollah Khomeini, uma figura extra-
pesadelo cíclico de costume, demanda por ordinária: estudioso, personalidade e políti-
mercadorias, oferta inadequada, preços co formidável, que gerava inimizade e uma
crescentes e mais reivindicações salariais. O quase idolatria.
xá, que tinha lidado de forma áspera com a Embora fosse um religioso xiita de des-
aristocracia de terras no início dos anos de taque, ele não hesitava em desdenhar seus
1960, dava sinais de desprazer imperial com colegas teólogos e era profundamente hostil
os novos, ostentatórios e corruptos ricos, e à dinastia governante e a dos seus valores
cogitava esquemas de repasse de mais da materiais. Tornou-se líder daqueles – espe-
metade da propriedade e dos lucros da in- cialmente numerosos entre a geração mais
dústria aos trabalhadores. Mesmo assim, os jovem – que se opunham ao governo se-
salários continuavam irrisórios e Teerã se cular e à modernização do Irã nos moldes
tornou uma favela de 5 milhões de pessoas, norte-americanos, e, depois de protestos
para as quais a moradia era vergonhosamen- duramente reprimidos no início dos anos
te inadequada. As fragilidades de seu regime de 1960, fugiu em 1960 para a Turquia, dali
eram a incerteza em torno de uma autocra- para o Iraque e, finalmente, para a França,
cia com um herdeiro criança, a oposição dos onde continuou a estimular a oposição ao
mulás conservadores, a oposição dos estu- xá – com uma mágoa pessoal, depois de o xá
dantes radicais e outros manifestantes, que se recusar a permitir seu retorno ao Irã para
nem mesmo um dos aparatos mais ferozes o funeral de um de seus filhos. Quando, um
de polícia secreta do mundo era capaz de ca- mês depois de forçar a fuga do xá, Bakhtiar
lar, e sua própria recusa a escutar outras pes- também fugiu, Khomeini, agora um obsti-
soas. Ele estava obsessivamente preocupado nado moralista nacionalista em idade avan-
com conspirações de esquerda, mas cego à çada, iniciou um governo autocrático que
ameaça do radicalismo clerical, e passou a durou, sem ser desafiado, até sua morte: 10
ignorar perigosamente o estado de seu pró- anos depois.
prio país, onde a selvageria de sua polícia, Khomeini proclamou uma república
a SAVAK (treinada por norte-americanos e islâmica e instituiu um regime ainda mais
israelenses), e uma desigualdade visível jun- intolerante do que o do xá, embora prova-
tamente com riqueza ilícita garantiam que, velmente menos assassino. Indicou como
quando soasse o alarme, milhares de civis primeiro-ministro Mehdi Bazargan, um
saíssem desarmados às ruas, preparados intelectual muçulmano liberal com educa-
para enfrentar sua temível máquina militar. ção científica, que tinha sido preso pelo xá;
Entre seu retorno, em 1953, e sua segunda mas na verdade não havia governo. Bazar-
fuga em 1979, o xá fez uma revolução no Irã, gan era assediado pela esquerda e pela di-
384 | PETER CALVOCORESSI

reita, pelas minorias curdas e árabes e por nos bancos norte-americanos e conseguir
declarações conflitantes do próprio aiato- peças de reposição para armas. Bani-Sadr
lá, que se retirou para a cidade sagrada de foi forçado a fugir por uma nova onda de
Qom; dominava a cena com manifestações terror em 1981, da qual seu sucessor foi uma
esporádicas; e permitia que prevalecesse das primeiras vítimas, entre muitas.
uma espécie de vandalismo religioso. Os As potências imperiais estavam acos-
comitês islâmicos locais passavam o tempo tumadas de forma mais ou menos igual aos
prendendo e executando aqueles que a ca- desastres que recaíam sobre seus servidores
sualidade das denúncias expunha à sua ira em terras estrangeiras, mas não o sensível
indiscriminada. A autoridade e os partidá- povo norte-americano.
rios do xá evaporaram com sua fuga, o que o Não havia evidências de que os reféns
transformou em figura suspeita. Restaurado tivessem sido maltratados, mas sua mera
no trono, em 1953, pelos norte-americanos detenção era considerada uma mácula e
e depois coberto de sua ajuda financeira, ele uma desgraça que não poderiam ser tolera-
era considerado cria dos Estados Unidos, e, das. Seu destino se tornou uma obsessão, e a
quando, através do Egito e do México, che- situação foi inflamada ainda mais pela inva-
gou aos Estados Unidos em busca do me- são russa do Afeganistão, algumas semanas
lhor tratamento médico para o câncer que mais tarde. Por um lado, os Estados Unidos
o mataria em pouco tempo, muitas pessoas tinham interesse em preservar o governo de
no Irã temiam que sua chegada a Nova York Khomeini, porque ele parecia ser o homem
fosse um indicativo de mais uma tentativa com condições de impedir a desagregação
de reconduzi-lo ao trono. do Irã, a guerra civil nessa região era algo
Em novembro de 1979, radicais inva- a ser temido, não apenas por razões gerais,
diram a embaixada dos Estados Unidos em mas porque poderia dar à URSS uma ra-
Teerã e fizeram 53 reféns. Esse golpe era zão para intervir com base em seu tratado
parcialmente dirigido contra Bazargan, que com o Irã de 1921. Por outro lado, os Esta-
finalmente sucumbiu, mas, mais aberta- dos Unidos consideravam políticos como
mente, contra os Estados Unidos. Paralela- Bani-Sadr aliados naturais e queriam for-
mente, assustou os russos, que temiam uma talecê-los contra a coalizão de extremistas
ação retaliatória norte-americana no Irã em representada pelo aiatolá e pelos radicais.
um momento em que seu próprio controle Washington calculava que reforçaria os mo-
sobre seus fantoches no vizinho Afeganistão derados impondo sanções severas, para as
estava ficando inseguro (ver o Capítulo 19), quais precisava da colaboração da Europa e
e era útil a Khomeini para fazer com que os do Japão. Mas essa estratégia era prejudica-
fragmentos desgarrados da sociedade ira- da por uma contradição latente: Bani-Sadr
niana se juntassem sob sua liderança. Em estava tentando negociar acordos de troca
todos os momentos nos 12 meses seguintes, de mercadorias por petróleo com europeus
o aiatolá apoiou os sequestradores, cujo de- e japoneses, de forma que as tentativas dos
sejo de colocar as mãos no xá e dobrar os Estados Unidos de fazer com que esses paí-
Estados Unidos superava os conselhos mais ses impusessem sanções ao Irã prejudica-
moderados – Bazargan e, depois dele, Abo- vam Bani-Sadr, o qual os norte-americanos
lhassan Bani-Sadr, nomeado presidente em estavam tentando fortalecer.
janeiro de 1980 – que queriam restaurar re- Por sua vez, os aliados de Washington
lações com Washington, ainda que somente tinham pouca fé nas sanções, mas estavam
para descongelar o dinheiro de iranianos dispostos a entrar na linha, em parte para
POLÍTICA MUNDIAL | 385

demonstrar solidariedade com Washing- em queda livre, investimento negativo no


ton contra uma quebra explícita da práti- país e no exterior, perda de receitas crucias
ca diplomática, e em parte para impedir provenientes do petróleo. Como os primei-
Washington de recorrer à força para libertar ros xás safávidas 500 anos antes, os xás Pah-
os reféns, força que eles achavam que não levi tentaram recriar um império iraniano
teria sucesso e poderia levar ao fechamen- com base no xiismo e na modernização,
to do Golfo e à perda de envios de petróleo mas foram destronados por Khomeini, que
mais importantes do que os iranianos. O Irã declarou os dois incompatíveis.
respondeu a essa ameaça de sanções esta- Mesmo assim, o Irã, com ou sem Kho-
belecendo acordos econômicos com URSS, meini – e possivelmente mais forte sem ele –
Alemanha Oriental, Tchecoslováquia e Bul- continuaria sendo a ponta de lança de uma
gária. Esses acordos eram economicamente revolução cultural que, com ecos em terras
marginais, mas, para o Ocidente, politica- árabes, desafiou a cultura ocidental cuja li-
mente perturbadores. derança tinha passado aos Estados Unidos,
No início de janeiro de 1980, o presi- mas que atacava o Oriente Médio islâmico
dente Carter disse ao Congresso dos Esta- desde que os europeus contiveram os turcos
dos Unidos que o uso da força para resgatar otomanos no século VII, em Viena.
os reféns provavelmente fracassaria e leva- A morte de Khomeini aconteceu entre
ria à sua morte. Mas, em abril, ele tentou o fim da guerra do Irã contra o Iraque e o
exatamente isso, em uma aposta que fracas- ataque internacional a este em 1991. Desse
sou. Foram mortos oito norte-americanos, ataque, o Irã saiu como o grande vencedor,
e seis helicópteros e um avião de transporte já que a guerra eliminou o Iraque da política
de soldados foram perdidos. Os reféns não do Golfo por um bom tempo, forçou a Ará-
foram mortos, mas foram dispersados. O bia Saudita a cumprir um papel polêmico e
prestígio dos Estados Unidos ficou desgas- lhe impôs despesas enormes; e, assim, aju-
tado. Os aliados, que preparavam sanções dou os sucessores de Khomeini a reparar os
como alternativa, ficaram irritados por não danos sofridos pelo Irã na guerra anterior.
terem sido avisados de que a força seria O novo presidente Ali Akbar Rafsanjani
usada de qualquer forma. Moscou estava consolidou suas relações com os militares e
satisfeita com que o mundo tivesse outra obteve uma maioria confortável nas eleições
incursão militar da qual falar além da sua para o Majlis em 1992. Naquele ano, ele se
no Afeganistão. Os países muçulmanos se sentiu forte o suficiente para retomar o con-
sentiram obrigados a cerrar fileiras em tor- flito sobre a ilha de Abu Musa no Estreito
no de Khomeini, cujo prestígio pessoal foi de Hormuz, exigindo que os Emirados Ára-
fortalecido com esse episódio, e, mais uma bes, com exceção de Sharjah, apresentas-
vez, no final do ano, quando o Irã foi ataca- sem uma permissão especial antes de entrar
do pelo Iraque. na ilha. (O Irã e Sharjah tinham soberania
Khomeini morreu em 1989. Ele esta- conjunta, segundo um acordo estabelecido
beleceu um Estado teocrático e se tornou o antes da criação dos Emirados Árabes Uni-
símbolo da oposição ativa ao lado mais ne- dos em 1971.) Ele contentou os governos
gativo da civilização ocidental, mas também ocidentais ao ajudar na libertação dos reféns
impôs a seu país uma tirania tão repulsiva no Líbano e manobrou para atrair banquei-
quanto a do xá e uma guerra que implicava ros e industriais ocidentais que lutavam por
matanças e catástrofe econômica de grandes uma participação em novos empreendimen-
proporções: inflação de 30-40%, produção tos e contratos. Mesmo assim, o Irã conti-
386 | PETER CALVOCORESSI

nuou sendo uma potência regional incapaz lidade – e a alfabetização foram ampliadas
de exercer seu poder integralmente. Depois em muito, assim como os serviços públicos,
da morte de Khomeini, o país passou a ser a expectativa de vida e a renda básica.
uma diarquia intranquila. Khomeini não Mas a liberdade de expressão e de im-
foi substituído nem formalmente nem no prensa era restringida por uma prudente
jargão popular. Seu sucessor como líder, o autocensura, as sanções penais eram bru-
aiatolá Ali Khamenei, carecia de magia pes- tais e indiscriminadas, os mais jovens eram
soal, de credenciais religiosas e de sua repu- mantidos nos limites que os mais velhos
tação de erudição. Ele não era chamado de consideravam pertinentes, as mulheres so-
imã nem recebeu o grau supremo de marja friam discriminação como se fosse natural,
até depois de sua promoção a aiatolá. Era e a maioria dos chamados iranianos comuns
o guardião da verdadeira chama islâmica tinha dificuldades de subsistência. O Majlis
depois de Khomeini, a figura superior em continuou existindo e vários partidos eram
uma terra cuja coroa espiritual pelo menos tolerados, mas a legislação estava sujeita ao
competia com a constitucional, e, diferen- exame minucioso e ao veto do Conselho
temente do presidente, ocupava um cargo dos Guardiões, formado por 12 homens,
sem mandato fixo. Mas devia seu cargo à que também vetava candidatos de todos os
preferência do moribundo Khomeini sobre partidos para eleição ao Majlis. Nas ques-
seu rival, o aiatolá Hossein Ali Montazeri, tões externas, o Irã agredia verbalmente os
e mantinha sua influência com o apoio dis- Estados Unidos e vice-versa. Não fazia se-
creto de Rafsanjani. O mundo exterior in- gredo de seu apoio ao Hezbollah no Líbano,
terpretava sua diarquia como uma antítese mas negava acusações mais amplas de sub-
ideológica aguda entre extremistas e mode- versão e terrorismo, para os quais os norte-
rados, dogmáticos e pragmáticos, mas a rea- -americanos buscavam evidências, sem su-
lidade era menos clara e menos conflituosa. cesso. Clinton chamou o Irã de ameaça ao
O poder no Irã, como acontece na maioria Oriente Médio e ao mundo, e impôs sanções
dos Estados, era compartilhado. Khamenei a empresas (de qualquer nacionalidade)
e Rafsanjani tinham a mesma base social que fizessem negócios no país ou com ele.
ampla, mas enquanto o líder era o cabeça do O Irã pretendia afirmar seu poder regional
establishment religioso, o presidente exercia reconstruindo seus armamentos depois da
seu cargo com as tarefas de reparar a eco- guerra com o Iraque e impondo seus inte-
nomia e a capacidade do Irã de cumprir o resses na Ásia Central, bem como em áreas
papel de importante potência regional. tradicionalmente polêmicas na península
Inicialmente, a economia continuou a arábica e no Golfo. Mal escondia sua in-
encolher, a dívida externa acumulava e era tenção de desenvolver um arsenal nuclear,
impagável, a moeda perdia valor mais rapi- desafiando assim o monopólio de Israel no
damente do que qualquer outra no mundo, Oriente Médio e o desejo dos Estados Uni-
mais de metade da indústria fechou, o in- dos de sustentá-lo.
vestimento estrangeiro era desprezível, e a Quando seu mandato terminou, em
inflação causava desespero geral, ao qual o 1997, Rafsanjani foi sucedido por Muham-
governo contrapunha uma estridente pro- mad Khatami, que surpreendeu ao derrotar
paganda antiocidental e apoio aberto a re- o candidato favorito de Khamenei por ampla
gimes extremistas (Sudão) ou grupos sub- margem e estava claramente disposto a re-
versivos (Egito). Nos aspectos positivos, a laxar as tensões internas em vez de impor o
educação – independentemente de sua qua- conservadorismo rigoroso de uma minoria
POLÍTICA MUNDIAL | 387

dogmática e intolerante. Ele tinha forte apoio causando, independentemente de Ahmadi-


das novas gerações e dos desempregados, que nejad permanecer presidente.
representavam um quarto ou mais da força
de trabalho, mas seus oponentes religiosos
estavam enraizados no Majlis e no judiciá- Saddam Hussein
rio, no Conselho de Segurança Nacional e no
Conselho dos Guardiões. Khatami melhorou No Iraque, o regime de Aref foi derrubado
as relações com o mundo árabe e com os eu- em 1968 por um golpe que colocou o gene-
ropeus, e até fez observações de aprovação ral Ahmad Hassan al-Bakr na presidência –
sobre alguns aspectos da cultura norte-ame- uma vitória do ramo iraquiano do Partido
ricana, mas continuava restrito pela direita Ba’ath e, mais especificamente, de Saddam
religiosa e pela queda no preço do petróleo, Hussein Takriti, o homem brutalmente for-
que proporcionava 90% das receitas de ex- te do novo regime. Saddam Hussein perma-
portação do Irã. neceu mais ou menos em segundo plano até
Khatami foi substituído pelo raivoso 1979, quando assumiu o controle explícito
nacionalista Ahmadinejad, cuja popula- depois de um golpe de origens obscuras
ridade como prefeito de Teerã o levou à (provavelmente dado por um clã rival des-
presidência em 2005. O país retomou o contente dentro do establishment sunita).
programa de conversão nuclear, afirmando Seus olhos se voltaram ao sul em vez de ao
seu direito de desenvolver essa energia para Ocidente. Sua primeira ambição era reafir-
propósitos civis, aceitando supervisão in- mar a posição do Iraque no Golfo, de modo
ternacional limitada e convencendo poucos que seus principais adversários não eram a
de que não pretendia avançar à fabricação Síria, o Egito nem Israel, e sim o Irã e a Ará-
de armamentos desse tipo. A desconfiança bia Saudita, e como ambos eram apoiados
entre o Irã e os Estados Unidos era total. pelos Estados Unidos, ele se voltou à URSS
Ahmadinejad participou da Assembleia e concluiu, em 1972, um tratado para, entre
Geral da ONU e visitou os presidentes Chá- outras coisas, fornecimento de armas. Mas
vez e Morales na América do Sul, talvez em Saddam Hussein não pretendia se amarrar
uma tentativa de romper com o isolamen- ao vagão russo, e três anos depois fez um
to; mas, em 2007, Khamenei reafirmou seu tratado com a França para o fornecimento
status superior e limitou o espaço de Ahma- de um reator nuclear e instalou um esta-
dinejad ao demitir dois membros de seu go- belecimento de pesquisa nuclear com uma
verno. Essas manobras foram seguidas por grande equipe de engenheiros. O Iraque,
uma visita de Putin a Teerã – a primeira de que tinha assinado o Tratado de Não Proli-
um chefe de Estado russo desde que Stalin feração de Armas Nucleares, sustentava que
participou da conferência de três potências todas as salvaguardas prescritas pela Agên-
contra a Alemanha nazista em 1943. Em cia Internacional de Energia Atômica esta-
Washington, a contrarretórica de Bush foi vam sendo observadas, mas os adversários
frustrada quando a inteligência dos Estados do Iraque – principalmente Israel – temiam
Unidos informou que o Irã provavelmen- que o país estivesse se preparando para pro-
te tinha abandonado seu programa de ar- duzir armas nucleares. A planta na qual o
mas nucleares alguns anos antes e quando reator estava sendo construído na França
ela parecia estar jogando o Irã nos braços foi sabotada, material destinado ao Iraque
da Rússia. O que Qavam es-Sultaneh tinha foi sabotado em Toulon, e um físico nuclear
impedido em 1946, o governo Bush estava egípcio a serviço do Iraque foi assassinado
388 | PETER CALVOCORESSI

em Paris. O Iraque também recorreu à Itália Saddam Hussein esperava ter resolvido
para que ajudasse na formação de oficiais a questão curda em 1975 (sobre seus ante-
da marinha e aeronáutica e para a entrega cedentes, ver a Nota A no final desta Parte).
de 10 navios de guerra, que, em função da Depois de admitir curdos no gabinete ira-
geografia iraquiana, só poderiam ser usa- quiano em 1973 e dar autonomia à região de
dos no Golfo. Os contatos fora da URSS e Kirkuk em 1974, o Iraque obteve do xá, em
da Europa Oriental, principalmente com a 1975, uma promessa de interromper a ajuda
Alemanha Ocidental e o Japão, foram inten- iraniana aos dissidentes curdos, mas Hus-
sificados depois de demonstrações de for- sein não tinha certeza de que a promessa do
ça russa em Aden e na Etiópia no final dos xá seria cumprida por Khomeini e, de qual-
anos de 1970. Em 1980, Israel bombardeou quer forma, não aceitava o preço que tive-
as instalações nucleares iraquianas, onde o ra que pagar por ela e queria recuar em sua
desenvolvimento que o país realizava não própria promessa. Essa foi a causa imediata
era puramente militar. O governo realizava da guerra: os direitos respectivos de Irã e
também alfabetização e outros programas Iraque no Shatt al-Arab.
educacionais, formação técnica, expansão O Shatt al-Arab leva água do Eufrates e
industrial e um plano agrícola voltado a do Tigre ao Golfo Pérsico. Esses rios, cujas
possibilitar a produção de todos os seus ali- nascentes estão na Turquia, fluem pelo Ira-
mentos em vez de simplesmente um quarto. que até o Shatt, que marca a fronteira entre
Todas essas medidas estavam baseadas em Irã e Iraque. A meio caminho ao longo de
petróleo, que proporcionava 98% das re- seu curso de 200 km, ele recebe o rio ira-
ceitas de exportação do Iraque e financiava niano Karun. O Shatt é a única saída do
90% dos investimentos do governo. A pro- Iraque para o mar e também leva o tráfego
dução chegou a 2 milhões de barris por dia dos portos iranianos de Khorramshahr e
em 1973 e a 2,5 milhões em 1977, e atingiu Abadan, na província do Cuzistão, cuja po-
um breve pico de 3,7 milhões antes do final pulação consiste em cidadãos de raça árabe.
da década, quando o país se tornou o se- O golfo no qual o Shatt desemboca não leva
gundo maior exportador do mundo. diretamente ao mar aberto, e sim ao Estrei-
Em 1980, o Iraque atacou o Irã, entre ou- to de Hormuz, que está a 800 km do Iraque
tras razões, por sua tentação de atingir o rival e é facilmente controlado pelo Irã. Quando,
em seu momento de fraqueza depois da que- em 1971, o Irã tomou o controle das peque-
da do xá; pela profunda ojeriza de Hussein nas ilhas no Estreito (Tunbs e Abu Musa),
pelo Aiatolá Khomeini, a quem considerava que a Grã-Bretanha desejou transferir a
um lunático religioso; pelo descontentamen- dois dos emirados árabes, o Iraque não con-
to pelas intrigas xiitas de Khomeini entre os seguiu fazer mais do que romper relações
xiitas iraquianos, que realizaram fortes pro- diplomáticas com o Irã e expulsar iranianos
testos no final de 1979; por uma suspeita de do país.
que Khomeini estivesse envolvido em um O primeiro tratado relacionado à fron-
fracassado golpe naquele verão contra seu teira entre os Impérios Iraniano e Otomano
regime; e, por fim, pela eterna questão dos ao longo do Shatt al-Arab foi assinado em
curdos, uma minoria importante no Iraque 1555 e teve muitos sucessores. Nenhum de-
(18%), com reivindicações complicadas na les jamais satisfez qualquer das partes envol-
região petrolífera de Kirkuk e uma propensão vidas, e as complexidades foram aumentadas
ainda mais complicada a se deixar usar pelo por mudanças no terreno, nos cursos d’água
Irã contra o Iraque. e nas ilhas e (com o tempo) pela descoberta
POLÍTICA MUNDIAL | 389

do petróleo. No início do século XX, o Im- do árabe fracassou. Khomeini conseguiu


pério Otomano tinha garantido o controle jogar na batalha milhares de iranianos con-
da quase totalidade do Shatt e sua posição vocados, com crueldade religiosa, insistindo
foi herdada, entre as duas guerras mundiais, em que não aceitaria termos de paz que não
pelo Iraque. Mas ela foi questionada pelo incluíssem a derrubada de Saddam Hussein.
poder renascente do Irã na dinastia Pahlevi, O Iraque quase venceu a guerra nas pri-
que afirmava que a fronteira estava situada meiras semanas, mas fez uma pausa fatídica,
na metade do canal. Em 1937, um novo tra- acreditando que havia vencido. O Irã conte-
tado melhorou consideravelmente a posição ve a principal ofensiva iraquiana e uma ex-
iraniana, notadamente ao tornar o Shatt de tensão da frente norte, em direção a Desful;
uso livre por navios militares e mercantes de retaliou atacando Basra a partir do mar e,
ambos os países. Depois da Segunda Guerra por via aérea, alvos ao norte que chegavam a
Mundial e principalmente depois da revo- Mosul; teve vitórias limitadas nos dois anos
lução de 1958 no Iraque, o Irã começou a seguintes; incentivou a Síria a bloquear o flu-
pressioná-lo. Em 1969, o Irã cancelou o tra- xo de petróleo do Iraque por seu território
tado de 1937, e o Iraque reagiu declarando até o Mediterrâneo; e proclamou, em 1982,
todo o Shatt como águas territoriais iraquia- objetivos de guerra que exigiam a rendição
nas, mas o apoio iraniano às revoltas curdas do Iraque, a substituição do regime e inde-
contra Bagdá forçou o Iraque, em 1975, a nizações substanciais pela agressão. Mas os
aceitar um acordo no qual o xá abandonaria êxitos militares do Irã eram muito modestos
os curdos em troca de um reconhecimento para esses objetivos. Ano após ano, houve
da fronteira na metade do canal. Em 1978, pequenos ganhos a um custo enorme em
a queda do xá transformou mais uma vez a mortes, mutilações e destruição, mas sem
situação. O Irã entrou em uma espécie de diminuir a determinação do Iraque. Este,
caos e perdeu o apoio dos Estados Unidos, frustrado em terra, desenvolveu uma nova
que tinha sido um elemento tão presente na estratégia em dois níveis: atacou as instala-
expansão do poder do país. O Iraque, por ções petrolíferas iranianas (as exportações
outro lado, tinha acumulado forças desde de petróleo eram cruciais para financiar o
o golpe de 1968. Em 1980, Saddam Hussein esforço de guerra do Irã) e internacionalizou
cancelou o acordo de 1975 e invadiu o Irã. a guerra aumentando a escassez de petróleo
Ele errou no cálculo e a guerra não foi como consequência de prejuízos ao trans-
o passeio que ele imaginava. O Irã de Kho- porte no Golfo e ao fechamento, por parte
meini não se desfez em pedaços, e o Iraque do Irã, do Estreito de Hormuz. As receitas de
acabou comprometido com operações des- exportação do Irã foram reduzidas signifi-
gastantes, que expuseram suas fragilidades, cativamente, mas o país reagiu com cautela
bem como suas ambições. Os iranianos a esse aumento da guerra e não interferiu,
repeliram o ataque iraquiano, apesar da inicialmente, com o transporte estrangei-
desorganização de seu país e da relutância ro. Em 1985, o Iraque lançou uma segunda
dos religiosos em dar liberdade ao exército, grande ofensiva terrestre – a primeira desde
que era um possível rival. Saddam Hussein, o início da guerra –, mas esse ataque e uma
como Ayub Khan na Caxemira em 1965, contraofensiva iraniana tiveram um impacto
não foi capaz de obter a vitória rápida, que pequeno e confirmaram o impasse em terra.
era o único tipo que valeria a pena. A guerra Mesmo quando forças iranianas cruzaram o
entrou em anos de matança acirrada, e a vi- Shatt no ano seguinte e submeteram Bagdá a
são iraquiana de dominar o Golfo e o mun- bombardeios regulares, não havia nenhuma
390 | PETER CALVOCORESSI

decisão militar à vista. E outra ofensiva ira- existiam, sua influência foi reduzida quando
niana contra Basra, em 1987, foi igualmente foram reveladas as propostas dos Estados
inconclusiva. Unidos e suas visitas furtivas a Teerã.
No Golfo, contudo, o Iraque teve alguns Ao abrir uma segunda frente no mar, o
êxitos com a guerra econômica e a política Iraque pretendia fazer com que os Estados
de provocar o Irã para que entrasse em ativi- Unidos bloqueassem o Irã e talvez até o ata-
dades que atrairiam intervenção internacio- casse. A iniciativa foi tomada pelo Kuwait
nal. A economia do Irã era mais suscetível que, economicamente dependente do livre
do que a do Iraque à perda das receitas do fluxo de petróleo através do Golfo, pediu
petróleo, haja vista que o primeiro estava fi- que os Estados Unidos protegessem os na-
nanciando a guerra, em grande parte, com a vios petroleiros kuwaitianos permitindo que
exportação de excedentes das cotas prescri- navegassem com bandeira norte-americana
tas pela OPEP, enquanto o Iraque – embora (o que é contrário à Convenção de Genebra
tivesse perdido uma de suas principais saí- de 1959) e enviassem uma força naval con-
das no início do conflito – estava sustentan- siderável ao Golfo, onde ela, provavelmente,
do seu esforço de guerra com subsídios do se envolveria em hostilidades contra o Irã.
Kuwait e de outros países árabes. O Kuwait, Essa solicitação seguiu-se a um ataque à fra-
embora fosse tradicionalmente hostil ao Ira- gata norte-americana Stark, que foi atingida
que, estava nervoso com uma possível sub- por um míssil Exocet (embora lançado pelo
versão iraniana entre seus xiitas, que chega- Iraque, e não pelo Irã), e foi reforçada por
vam a quase um terço da população. A nova relatos sobre a instalação de mísseis chine-
estratégia do Iraque colocava ao Irã o pro- ses terra-ar em Hormuz e por um apelo do
blema de assustar o Kuwait para que desis- Kuwait à URSS para usar a bandeira soviéti-
tisse de ajudar o Iraque sem, ao mesmo tem- ca, o que aumentou os temores dos Estados
po, assustar os países ocidentais e os forçar Unidos em relação a uma maior presença
a uma participação ativa no Golfo contra o naval russa no Golfo.
Irã. A operação era particularmente delica- O envolvimento dos Estados Unidos no
da já que a guerra dava ao presidente Reagan Golfo tornou impossível a vitória do Irã em
uma oportunidade de acertar antigas contas uma guerra que o Iraque já não conseguia
com o Irã, em relação à tomada de reféns em vencer apesar da considerável ajuda estran-
Teerã, e contas novas, sobre a exposição hu- geira em armas, inteligência e dinheiro. O
milhante do tráfico de armas por reféns no fim da guerra passou a ser uma questão de
qual os Estados Unidos tinham se envolvido. tempo e diplomacia. O Conselho de Segu-
Reagan, com esperanças de ter suces- rança aprovou por unanimidade uma exi-
so onde Carter fracassara, tentou fazer com gência de cessar-fogo em termos que não
que o Irã garantisse a libertação dos cativos cobriam a demanda do Irã de que o Iraque
norte-americanos no Líbano em troca de for- fosse rotulado como o agressor. Portanto,
necimento de armas dos Estados Unidos e de o Irã tergiversava enquanto o Iraque per-
Israel. Essa manobra secreta era contrária ao manecia paralisado na esperança de obter
princípio sustentado pelos Estados Unidos maior apoio norte-americano em armas,
de nunca negociar com quem tomasse reféns treinamento, inteligência e sanções militares
nem com terroristas. Posteriormente, justi- contra o Irã. Mas os Estados Unidos não se
ficou-se com base em que seu objetivo era animaram a desenvolver uma guerra aberta
incentivar os chamados moderados no Irã, em apoio ao agressor iraquiano, e a guerra
mas esses eram, em sua maioria, um mito; se continuou até 1988. Nenhum lado venceu.
POLÍTICA MUNDIAL | 391

A questão principal, dos direitos sobre o parcialmente submersas durante parte do


Shatt, só foi resolvida quando Hussein, ten- ano e não ajudariam nem prejudicariam o
do precipitado uma crise diferente, conce- comércio do Iraque com o Golfo. A extra-
deu abruptamente a Rafsanjani tudo aquilo ção de petróleo pelo Kuwait do campo de
que tinha combatido em Khomeini. A inva- Rumeila significava 1% de seu rendimento,
são do Kuwait por Saddam foi um erro de mas as reivindicações poderiam ser usadas
cálculo ainda maior do que a guerra contra para obter preços mais altos no norte.
o Irã. Em 1961, a Grã-Bretanha saiu do Kuwait,
que se tornou independente e membro da
ONU. Kassem repetiu as reivindicações tradi-
O Kuwait e a Guerra do Golfo cionais do Iraque, e o governante do Kuwait,
com medo de um ataque, apelou à ajuda
No dia 2 de agosto de 1990, o Iraque invadiu britânica. Uma pequena força britânica de-
o Kuwait. O governo do xeque do Kuwait sembarcou prontamente, os iraquianos (que
era uma espécie de anomalia no Golfo. Mui- permaneceram muito distantes da fronteira)
to menor do que o Irã, o Iraque ou a Arábia cederam, as tropas britânicas foram rapida-
Saudita, tinha uma população maior e mais mente retiradas e substituídas, durante um
riqueza do que os outros Estados menores tempo curto, por contingentes de outros Es-
do Golfo e estava muito distante deles, era tados árabes. Dois anos depois, o Iraque re-
um país pequeno e solitário, rodeado de conheceu a independência e a soberania do
grandes. Tinha sido parte do Império Oto- Kuwait, que passou a ser membro da Liga
mano, sob governo autônomo de uma famí- Árabe.
lia que se estabeleceu no século XVIII. Com a invasão iraquiana de 1990,
Foi tema de tratados especiais entre os o emir do Kuwait e sua família fugiram,
Impérios Otomano e Britânico. Diferente- instalou-se uma administração fantoche,
mente do resto do Golfo, o Kuwait estava e o Kuwait foi declarado província do Ira-
relacionado à Grã-Bretanha não em função que, além de ser saqueado. As motivações
da pirataria que impedia o comércio britâ- de Saddam eram a cobiça e a necessidade.
nico, e sim por temores de expansão alemã Ele vinha se rearmando a crédito depois
ou russa no Golfo por meio de concessões da guerra com o Irã, e seus fornecedores
de ferrovias e favores otomanos. Para acal- cortaram esse crédito. Ele gastou ou com-
mar esses temores, foram feitos tratados em prometeu, talvez, 100 bilhões de dólares na
1899 e 1913, e, depois da Primeira Guerra guerra em uma década, a maior parte em
Mundial, o Kuwait se tornou um proteto- compras de países que estavam proibidos
rado britânico. Nos anos de 1930, o novo por resoluções da ONU de negociar com
Estado do Iraque afirmava que o Kuwait, ele. Às vésperas da invasão ao Kuwait, sua
como parte do paxalato otomano de Basra, dívida para com credores não árabes era de
lhe pertencia por direito de sucessão. Mais cerca de 35 bilhões de dólares, grande par-
especificamente, reivindicava as ilhas de te da qual com empresas comerciais, mas
Bubijan e Warbah, na entrada do Golfo, e garantida por governos e assim, em última
a ponta do campo de petróleo de Rumeila análise, uma dívida com o povo. A rique-
que, principalmente no Iraque, estendia-se za kuwaitiana era fabulosa, as necessidades
por debaixo da fronteira até o Kuwait. Essas do Iraque no pós-guerra eram urgentes e
reivindicações não eram importantes em si. Saddam pode ter acreditado que o Kuwait
As ilhas eram improdutivas, sem petróleo, estava maduro para ser tomado. Em 1986,
392 | PETER CALVOCORESSI

o emir dissolveu o Parlamento Kuwaitiano a Grã-Bretanha e outros países tinham fei-


e, em 1989, rejeitou apelos para reinstalá- to vista grossa à agressão do Iraque ao Irã,
-lo. Metade da população do emirado era alguns tinham dado bastante ajuda direta
de imigrantes sem cidadania nem direitos ou indireta ao esforço de guerra iraquiano,
civis integrais, e aos beduínos nômades assim como uma série de países árabes. Os
eram negados direitos porque não podiam líderes da maioria desses países desconside-
provar sua residência fixa, como acontecia raram a matança, por Saddam, de milhares
com palestinos e outros, mesmo se nasci- de curdos com armas químicas; nos Estados
dos no Kuwait. Mas se Saddam estava con- Unidos, as tentativas de punir o Iraque por
tando com algum tipo de boas-vindas, es- meio de sanções econômicas foram frustra-
tava muito enganado, e não estava menos das no Congresso e na Casa Branca. Por-
enganado em relação às reações árabes e tanto, os outros países contribuíram com os
internacionais. A invasão era um ato in- delírios de Saddam em relação aos efeitos
contestável de agressão por um membro da internacionais de sua agressão, e uma das
ONU contra outro e de um Estado árabe principais preocupações de Washington nos
contra outro, e, ao contrário da agressão meses posteriores à invasão do Kuwait era
igualmente aberta do Iraque contra o Irã transmitir nos Estados Unidos a mensagem
uma década antes, o ataque ao Kuwait tam- de que esse ato não seria tolerado como ha-
bém ameaçava os interesses dos Estados viam sido os primeiros delitos do Iraque.
Unidos e de outros países. A apropriação Além disso, o contexto dos anos de 1990 era
dos campos de petróleo do Kuwait aumen- diferente, bem como o que estava em jogo.
taria consideravelmente o peso do Iraque Desde a queda do xá no Irã, os Estados Uni-
na OPEP e sua influência nos preços do dos estavam determinados a impedir que
produto em todo o mundo. se abatesse um destino semelhante sobre
Também poderia ser um prelúdio a um a monarquia saudita. A Guerra Fria tinha
ataque à Arábia Saudita, o que poderia co- terminado. Os governos árabes que tinham
locar praticamente todo o petróleo sob con- apoiado o Iraque contra o Irã estavam irri-
trole iraquiano, disseminar o caos político tados com o ataque de Saddam a um deles
ao derrubar a monarquia saudita e fragilizar e temiam suas pretensões de liderança no
outros regimes árabes, além de precipitar a mundo árabe – que eram alimentadas por
instabilidade econômica e a recessão mun- uma visão de si próprio como sucessor de
diais se, com ou sem um ataque à Arábia Michel Aflaq*, que morreu em 1989 em Pa-
Saudita, os preços do petróleo dobrassem ris, depois de muitos anos no exílio.
ou triplicassem. A resposta dos Estados Unidos foi du-
Sendo assim, a ação de Saddam Hus- pla: invocar o Capítulo VII da Carta da
sein foi um enorme erro de cálculo que deu ONU e uma expedição militar específica e
origem a uma colisão impressionantemen- massiva para o Oriente Médio, mas, embora
te ampla contra ele e, dada a gravidade de a resposta norte-americana tenha sido rápi-
suas possíveis consequências por um lado e da e vigorosa, seus motivos eram confusos.
sua própria teimosia por outro, a um con- A ocupação do Kuwait oferecia justificativa,
fronto que não seria facilmente dissipado
até mesmo uma obrigação, para a ação in-
sem guerra. Em décadas anteriores, o Ira-
ternacional com vistas a reverter a invasão
que recebeu ajuda ocidental e soviética para
criar forças armadas poderosas, parcial-
mente modernizadas. Os Estados Unidos, * N de R. T.: Fundador do Partido Ba’ath.
POLÍTICA MUNDIAL | 393

por meio de embargo, estendendo-se, se ambas as coalizões quando seus propósitos


necessário, ao bloqueio e à implementação pareciam diferentes dos delas. As forças reu-
dessas medidas pela força, segundo os Arti- nidas na Arábia Saudita incluíam, além da
gos 41 e 42 da Carta da ONU. Mas a ocupa- contribuição saudita essencial, unidades de
ção do Kuwait não era a principal causa da Egito, Síria, Marrocos, Grã-Bretanha, França,
ação específica dos Estados Unidos, e a re- Paquistão, Bangladesh e mais. Mas essa mul-
versão da ocupação não era seu único obje- tiplicidade animadora criava seus próprios
tivo. Como violações semelhantes do direito problemas. A agressão do Iraque tinha dife-
internacional por parte do Iraque (e de ou- rentes significados em diferentes lugares. A
tros) não tinham evocado uma resposta des- meta comum da aliança era a restauração da
se tipo, o envio ao Oriente Médio de 250 mil independência do Kuwait, mas os norte-ame-
soldados não poderia ser atribuído de forma ricanos – e o governo Thatcher na Grã-Bre-
plausível somente aos destinos do Kuwait. A tanha – queriam uma derrota total do Ira-
causa desse vasto esforço era simplesmente que a ser seguida pela derrubada de Saddam
algo mais do que preocupação com o direi- Hussein e pela destruição dos armamentos
to internacional ou o emir do Kuwait: era o do país, incluídos os que, ainda que fossem
medo de mais agressões por parte do Iraque horríveis, não estavam prescritos pelas leis
contra a Arábia Saudita, somada à oportu- internacionais e que vários países fabrica-
nidade de derrubar o regime iraquiano sob vam, possuíam e forneciam. Por outro lado,
a cobertura da libertação do Kuwait. Essa aos árabes – do rei Fahd da Arábia Saudita ao
proliferação de objetivos, além de deman- presidente egípcio Hosni Mubarak – a ofensa
dar duplicação das forças norte-americanas de Saddam era o rompimento dos princípios,
na Arábia Saudita, postergou a prontidão proclamados por ele mesmo em 1980, de que
dos Estados Unidos para atacar, já que as nenhum país árabe deveria atacar outro país
forças consideradas adequadas para libertar árabe e que as questões árabes deveriam ser
o Kuwait e defender a Arábia Saudita con- resolvidas por árabes. Ao descumprir esses
tinuaram durante meses inadequadas para princípios, Saddam deixava os outros líde-
conquistar o Iraque. res árabes na situação incômoda de ter de
Bush – aparentemente pego de surpresa, escolher entre aceitar o abuso de poder sem
apesar de alguns avisos oportunos – dedicou- princípios do Iraque e se aliar aos Estados
-se a uma demonstração de força que lançava Unidos, cujo princípio e a simples presença
dúvidas sobre a sinceridade da ONU em sua na força do Oriente Médio eram ofensivos a
estratégia dupla (que era o centro de seu apelo muitos árabes e muçulmanos. Mesmo os ára-
por apoio internacional), semeou a inquieta- bes que escolheram a segunda alternativa já
ção sobre seus objetivos e criou dúvidas para tinham dúvidas alguns meses mais tarde. Em
si próprio na frente doméstica ao declarar novembro, a Arábia Saudita estava discutin-
que sua capacidade obviamente ofensiva era do secretamente, por meio de intermediários
estritamente defensiva e ao comprometer os árabes, uma revisão das fronteiras entre Ira-
Estados Unidos com imensas despesas e uma que e Kuwait. Os kuwaitianos no exílio reavi-
necessidade humilhante de angariar contri- varam uma antiga proposta de um longo ar-
buições estrangeiras. Ele conseguiu reunir rendamento de Bubijan e Warbah ao Iraque;
apoio internacional na ONU e para suas for- em janeiro, Mubarak seria visto na imprová-
ças de combate em solo saudita: uma alian- vel companhia de Kadafi, a quem visitou em
ça saudita ativa era uma condição sine qua Trípoli com Assad; e nenhum árabe ficava
non. Seu problema residia em manter unidas indiferente diante da perspectiva, levantada
394 | PETER CALVOCORESSI

por Saddam e cautelosamente aprovada por ma habilidade mas pouco sucesso. Prendeu
europeus variados e por URSS e China, de estrangeiros no Kuwait (que chegavam a
uma conferência internacional sobre o Orien- vários milhares, de duas dúzias de países)
te Médio, que tratasse da ocupação israelense e transportou alguns ao Iraque, onde cerca
da Cisjordânia, da Faixa de Gaza e de Jerusa- de 340 foram dispersados para alvos prová-
lém, a ser realizada em conjunto com a crise veis em Bagdá e nos arredores, como escu-
kuwaitiana ou pouco depois. dos contra ataques armados; impediu que
O surto inicial de atividade diplomáti- estrangeiros saíssem do Iraque e do Kuwait;
ca e militar foi seguido de uma pausa que ameaçou atear fogo em campos de petró-
durou vários meses, necessária, em parte, leo e instalações sauditas e atacar Israel se
pela própria natureza da ação sob o Capí- fosse atacado pelos Estados Unidos; tentou,
tulo VII da Carta da ONU, em parte, pela com mínimo êxito, semear a discórdia en-
determinação de lançar nada menos do que tre os aliados dos Estados Unidos e infla-
um golpe fatal imediato, e, ainda, por espe- mar emoções árabes e muçulmanas; resol-
ranças genuínas, ainda que tênues, de assus- veu seus problemas com o Irã na esperança
tar Saddam para que saísse do Kuwait com de garantir uma lacuna razoável no campo
demonstrações de força militar, mas sem econômico da ONU. Sua recusa a deixar
derramamento de sangue em escala impre- que os estrangeiros saíssem do Iraque ou
visível. do Kuwait e sua atitude ao colocá-los den-
Entre a invasão iraquiana de 2 de tro e em torno de instalações (violando a
agosto e o recurso, em 29 de novembro, Convenção de Genebra sobre o tratamento
ao Artigo 42 da Carta, os Estados Unidos de civis) dava munição para maiores críti-
mantiveram unida sua coalizão, enquanto cas a seu comportamento fora da lei, mas
acumulavam mais e mais forças no Orien- a presença dessas possíveis vítimas era um
te Médio, na esperança de garantir que, em constrangimento para seus governos, que
caso de guerra, um primeiro golpe contra tinham de se apresentar como destemidos
o Iraque (deixou-se incerto se no Kuwait assim como ultrajados, e criticaram ten-
ou no próprio Iraque) atingisse seu pro- tativas de resgate extraoficiais por vários
pósito sem operações insuportavelmente emissários – Kurt Waldheim, Jesse Jack-
longas e onerosas. Em público, os Estados son, Edward Heath, Yasuhiro Nakasone,
Unidos se esquivavam da pergunta sobre se o ex-senador norte-americano John Con-
esses propósitos justificavam uma guerra nally, o deputado britânico Tony Benn –,
cujos custos em vidas, dinheiro, confusão cujas motivações os governos tentavam
econômica geral e influência de longo pra- impugnar indiretamente. As mulheres e as
zo no Oriente Médio poderiam se revelar crianças tiveram permissão para ir embora
desastrosos. Também menosprezavam, ao a partir de setembro, e, em dezembro, Sa-
ponto de tentar anular, a parte da primeira ddam declarou que todos os que quisessem
resolução do Conselho de Segurança que poderiam estar em casa para o Natal.
exigia – além de evacuação completa do Em 29 de novembro, o Conselho de Se-
Kuwait pelo Iraque – um acordo negociado gurança aprovou uma resolução – a culmi-
sobre a crise. Negociação, para os Estados nação de 12 – autorizando o uso, depois de
Unidos (e a Grã-Bretanha) significava ne- 15 de janeiro de 1991, de quaisquer medidas
gociação depois do final da crise e não para necessárias para remover o Iraque do Kuwait
finalizá-la. Por sua vez, Saddam Hussein e restaurar seus antigos governantes. Essa
fazia jogadas militares tímidas, com algu- legitimação do recurso à guerra foi aprova-
POLÍTICA MUNDIAL | 395

da por 12 votos a 2 (Iêmen, Cuba) com uma ciaram ataques durante a noite de 15 para
abstenção (China). A firmeza dos membros 16: isso foi feito sem aviso ao secretário-ge-
árabes com os não árabes da aliança anti- ral da ONU, em cujo nome os ataques fo-
-Iraque foi reforçada por malabarismos dos ram lançados, mas, por outras seis semanas,
Estados Unidos e da Grã-Bretanha em suas esses ataques foram abrandados enquanto
relações com a Síria, cujas credenciais anti- os Estados Unidos e seus aliados reuniam
-iraquianas cancelavam seu ostracismo ante- forças ainda maiores e tentavam vencer a
rior como financiadora do terrorismo inter- guerra bombardeando de longe e sem re-
nacional, e pelas subvenções ao Egito, que, correr aos riscos da guerra terrestre. A força
embora muito prejudicado pelo corte no aérea iraquiana foi reduzida à impotência e
turismo e pela perda de remessas de egípcios obrigada a se refugiar no Irã; a marinha não
forçados a sair de seus empregos no Kuwait e teve melhor resultado; as forças em terra,
no Iraque, foi compensado com substanciais arsenais e comunicações foram gravemen-
remissões de dívidas externas e fornecimen- te atingidas; e Bagdá foi submetida a uma
to de novos créditos (principalmente dos Es- destruição maior do que qualquer coisa
tados Unidos e da Arábia Saudita). que tivesse sofrido em 700 anos. O Iraque
Saddam Hussein continuava a insistir em contra-atacou com mísseis de muito pouca
que sua ocupação do Kuwait era irreversível. eficácia que visavam a cidades sauditas e
Bush adotava táticas diretas cada vez mais ex- israelenses, e devastou a Cidade do Kuwait,
cludentes, reclamando repetidamente que o maltratando barbaramente seus habitantes.
obstáculo para uma implementação pacífica Na desigualdade extrema dessa competi-
das resoluções da ONU era a incapacidade ção, ficava óbvio que Saddam Hussein es-
de Saddam de entender a posição dos Esta- tava fadado a tentar negociações, mas ele
dos Unidos. No que descreveu como um úl- o fez de forma equivocada e indireta. Bush
timo esforço para salvar a paz, Bush propôs respondeu insistindo em cumprimento in-
conversações em Washington e em Bagdá, condicional de todas as resoluções da ONU
desde que fossem apenas exploratórias e não pertinentes, chamando os iraquianos a se
implicassem negociações. Saddam tergiver- revoltarem contra seu governo e acrescen-
sava. Os ministros do exterior dos dois países tando condições voltadas a manter a pressão
se reuniram em Genebra, mas nenhum ce- pela rendição incondicional. As tentativas,
deu. O secretário-geral da ONU, Javier Perez notadamente da URSS, de intermediar uma
de Cuellar, fez uma tentativa desesperada de retirada iraquiana do Kuwait em condições
impedir a guerra, reunindo-se com Saddam aceitáveis foram rejeitadas pelos Estados
em Bagdá dois dias antes da data estabeleci- Unidos, que se esquivaram de discuti-las no
da pelo Conselho de Segurança para o uso da Conselho de Segurança em 23 de fevereiro
força. No dia anterior, o Congresso dos Es- (uma data escolhida 10 dias antes), conver-
tados Unidos autorizou Bush, ainda que por teram a guerra em uma matança generaliza-
maioria estreita, a ir à guerra. Os objetivos da no Iraque, a qual pretendia derrubar ou
mais amplos dos Estados Unidos, indepen- matar Saddam Hussein sem a destruição do
dentemente de suas virtudes ou legitimidade, país – que Bush negava em público, mas que
eram incompatíveis com uma solução pacífi- era uma consequência provável.
ca da crise provocada pela agressão iraquiana, A etapa final, que durou menos de uma
dentro dos termos das resoluções da ONU. semana, foi pouco mais do que um desfile
Quando chegou o dia 15 de janeiro, os militar e um massacre de fugitivos por ata-
Estados Unidos não perderam tempo e ini- ques aéreos sem oposição. O Kuwait foi li-
396 | PETER CALVOCORESSI

bertado e sua dinastia governante retomou Ao norte, o uso de bases aéreas na Turquia
o controle. O desagradável regime de Bagdá lembrava reivindicações turcas no norte do
foi humilhado. Cerca de 500 mil iraquianos Iraque. Apesar de ataques com mísseis a
foram mortos, talvez o dobro disso. A im- suas cidades, Israel, pressionado e genero-
posição de uma derrota inegável sobre um samente recompensado pelos Estados Uni-
ditador cruel foi amplamente bem recebida, dos, manteve-se fora da guerra e usou essa
mas como o propósito dos Estados Unidos abstenção para extrair grandes subvenções:
não era negado pelo país nem autorizado o fato de que esse dinheiro seria reposto
pela ONU, o Iraque foi acusado de ter duas por Arábia Saudita e Kuwait não passou
caras, e a Organização, tendo sido usada em despercebido no mundo árabe. Israel viu
vez de envolvida, saiu fragilizada. seu principal inimigo vencido e humilhado
Os custos financeiros e políticos da e a OLP, que tinha denunciado a agressão
guerra foram pesados. O secretário de Es- do Iraque mas, em outros aspectos, apoia-
tado norte-americano e o secretário de re- do o país, desacreditada e fragilizada.
lações exteriores britânico percorreram o O Egito foi um grande beneficiário e
Oriente Médio e outras capitais solicitando um convertido cada vez mais explícito ao
contribuições e conseguiram coletar somas lado ocidental. Mubarak foi recompensado
equivalentes a cerca de cinco quintos de em dinheiro por acrescentar o peso do país
seu custo. Entretanto, demonstraram que mais populoso e prestigiado do mundo ára-
tinham embarcado em uma guerra sem be à aliança anti-iraquiana. Vinte bilhões
muitas condições de bancá-la e, ao deixar de dólares de sua dívida externa foram can-
de lado a ONU, tinham se obrigado a acei- celados e outros 20 bilhões, renegociados,
tar a tarefa de levantar contribuições, que, e o país recebeu ajuda econômica e militar
em outra situação, teria sido desempenha- dos Estados Unidos, começando com 2,1
da pelo secretário-geral. Os custos políticos bilhões de dólares por ano e, mais tarde, re-
incluíram pressões evidentes, mas menos duzindo-se aos poucos. Mubarak foi reelei-
fatais, sobre a détente soviético-americana e to presidente para um terceiro mandato em
um antiamericanismo que ia do Marrocos 1993. Apesar de um histórico de antiameri-
ao Irã, pronunciado, mas mais clamoroso canismo, ele não teve dificuldade em con-
do que duradouro. A guerra não tornou o quistar os dois terços de votos em um par-
Oriente Médio mais estável. A intervenção lamento quase monopolizado pelo Partido
norte-americana para proteger a Arábia Nacional Democrata, que dois anos mais
Saudita expôs sua incapacidade de se de- tarde obteve 95% dos votos em uma elei-
fender, e a presença dos Estados Unidos in- ção geral. Alguns partidos menores exis-
troduziu práticas e ideias – da democracia tiam resignados, mas as solicitações para a
à liberdade sexual – profundamente repug- criação de outros tinham de ser examina-
nantes a governantes e governados árabes. das por um comitê seleto que, desde a sua
O apoio da Jordânia ao Iraque unificou o criação por Sadat, não aprovou nenhum
país, mas causou sua bancarrota. A hosti- deles. A Irmandade Muçulmana e outros
lidade entre sauditas e iemenitas foi acen- grupos islâmicos, que nunca haviam tido
tuada. O próprio Kuwait foi levado a um muito apoio (e menos ainda no Egito ru-
experimento não convincente de temperar ral), estavam perdendo terreno permanen-
o absolutismo com um grau de democra- temente. A opressão policial e as violações
cia. No Golfo, o Irã se aproximou ainda dos direitos humanos eram disseminadas,
mais de recuperar sua posição dominante. mas não muito abertas; manifestações vio-
POLÍTICA MUNDIAL | 397

lentas, como a morte de vários turistas em limites territoriais de consumidores pode-


Luxor em 1997, eram esporádicas e mal ar- rosos e ávidos. Os Estados Unidos e outros
ticuladas. A economia estava diversificada países poderosos eram dependentes do pe-
– exportações de petróleo, tarifas do Canal, tróleo do Oriente Médio, mas incapazes de
turismo – e registrou nos anos de 1990 um garanti-lo ocupando ou dominando as áreas
crescimento anual de 5%, déficits orçamen- relevantes como fazia o Império Otomano
tários muito pequenos e reservas de moeda ou o sistema de mandatos anglo-francês. (A
estrangeira que davam segurança. Guerra do Kuwait foi travada para garantir
A privatização de empresas estatais e o Estado de Direito que proibia um país de
a redução de controles burocráticos foram se apropriar do território ou dos recursos de
aceleradas e completaram um quadro muito outro.) A alternativa a esse imperialismo an-
atrativo ao FMI. Nos aspectos positivos, o tiquado era garantir os interesses nacionais
investimento estrangeiro e a poupança do- por meio da paz e estabilidade internacio-
méstica eram exíguos e a lacuna entre ricos nais e do funcionamento das forças de mer-
e pobres se ampliava, os preços dos alimen- cado. Quando essa ordem se rompeu, como
tos dispararam com o corte dos subsídios; aconteceu com a anexação do Kuwait pelo
os serviços públicos – incluindo educação e Iraque, foi necessário usar a força, o que es-
saúde – deixaram de ser gratuitos e se torna- tava disposto na Carta da ONU. Mas o casus
ram inacessíveis para muitas pessoas. Mas, belli foi a violação da soberania nacional, e
à distância, o Egito parecia estável para pa- não a interrupção do comércio ou ameaças
drões do Oriente Médio. a ele. Consequentemente, a ação legítima em
A mais importante consequência do defesa dos suprimentos nacionais dependia
ataque ao Iraque, em 1991, foi que ele não de uma quebra da lei simultânea relaciona-
terminou ali. Bush incentivou publica- da à soberania nacional. Os Estados Unidos
mente os curdos e xiitas do país a fazer o demonstraram que poderiam lutar por seus
que ele não tinha conseguido e se rebelar interesses e assim o fariam. A mostra de
contra Saddam Hussein, mas o poder mi- disposição norte-americana, que não ficou
litar deste não tinha sido demolido e foi abaixo da demonstração de imensa compe-
usado contra eles sem qualquer escrúpu- tência técnica, tanto logística quanto opera-
lo. Os curdos, em particular, sofreram, na cional, foi um grande evento nas questões
batalha e na fuga, sofrimento e morte em internacionais, mas havia uma condição: era
uma escala e em um nível de devastação necessário um furo na lei, que nesse caso era
fora do comum até mesmo para eles. (Para fornecido pela violação da independência so-
mais sobre os curdos, ver a Nota A no final berana do Kuwait. Como os Estados Unidos
desta Parte.) agiriam diante de uma ameaça a seus interes-
O Iraque foi atacado e derrotado porque ses que surgisse de revoltas domésticas e não
invadiu o Kuwait e supostamente pretendia de agressão internacional era não apenas dú-
invadir a Arábia Saudita, mas essa ameaça bio, mas também peculiarmente relacionado
não seria eliminada substituindo o regime ao Oriente Médio, onde o conflito (Israel à
iraquiano por outro. A agressividade do parte) vinha de ameaças internas a gover-
país, independentemente de sua escala, le- nos em lugar de hostilidades entre eles. Até
vantava uma das questões centrais em po- o Iraque atacar o Kuwait, em 1990, nenhum
lítica internacional na segunda metade do país árabe tinha atacado outro em 70 anos,
século XX: como garantir o fornecimento e se a Guerra do Kuwait fosse restaurar esse
de recursos essenciais que estavam fora dos padrão, a ocasião para a intervenção dos Es-
398 | PETER CALVOCORESSI

tados Unidos, e de outros, estaria limitada As sanções infligiram um sofrimento


à agressão por parte de Israel ou contra ele. considerável sem depor Saddam. A mortali-
Além do mais, a disposição norte-americana dade infantil triplicou, e a expectativa de vida
de agir em uma crise foi posta em dúvida no geral caiu em 15 a 20 anos. O Conselho de
mesmo ano, quando os Estados Unidos hesi- Segurança isentou alimentos e medicamen-
taram por muito tempo antes de agir de for- tos, mas, como também bloqueava as expor-
ma eficaz na Bósnia. tações de petróleo iraquiano com exceção
O Conselho de Segurança permanecia de quantidades limitadas através da ONU,
comprometido com duas questões no Iraque: privava o país de dinheiro para comprá-los:
a proteção das minorias e a destruição de somente metade das receitas das exporta-
armas de destruição em massa. O Conselho ções permitidas era disponibilizada para
estabeleceu portos seguros e zonas de proibi- importações e nenhuma para a manuten-
ção de voo no norte e no sul do Iraque, criou ção das instalações da indústria petroleira.
uma organização, a Comissão Especial da Em 1998, o Conselho mais do que dobrou
ONU (United Nation Special Commission, a quota, elevando-a a dois terços dos níveis
Unscom), para descobrir e destruir as armas anteriores à guerra, mas essa concessão era
de destruição em massa, e impôs sanções ilusória, já que o Iraque era incapaz de en-
econômicas para garantir o seu cumprimen- tregar as quantidades adicionais em função
to junto com outros termos para o fim das de sua indústria dilapidada. Depois de alguns
hostilidades. Os curdos ao norte e os xiitas anos, a Rússia denunciou abertamente a con-
ao sul eram considerados vítimas que preci- tinuidade das sanções, a França e a China co-
savam de proteção contra Saddam Hussein, meçaram a vacilar, e outros ficaram descon-
que ignorava os direitos humanos, mas os fortáveis com medidas que tinham impacto
inimigos do Iraque hesitavam em derrubá- pesado sobre pessoas inocentes sem ter efeito
-lo sem qualquer alternativa em vista. Os político equivalente: a ineficácia e a cruelda-
curdos estavam desunidos, com suas áreas de das sanções contra o Iraque desacredita-
expostas à invasão pela Turquia na persegui- ram a visão de que essas armas poderiam ser
ção aos curdos turcos, e os xiitas poderiam uma forma comparativamente civilizada de
buscar proteção no Irã ou obtê-la sem serem travar a guerra. Igualmente ineficazes foram
convidados. A política dos Estados Unidos várias medidas dirigidas especificamente
equivalia a uma espécie de semianarquia, e, contra o próprio Saddam Hussein: incita-
em poucos meses, Saddam reafirmou gran- mento à insurreição por parte de minorias,
de parte de sua autoridade. Os curdos, tendo a motins no exército, a intrigas entre seus
descoberto os limites do apoio que os Esta- parentes e a tramas de assassinato. Em 1995,
dos Unidos lhes dariam, resolveram as dife- dois de seus genros fugiram do país, critican-
renças entre si para obter um acordo melhor do o ditador, mas foram convencidos a voltar
com Saddam. Na década de 1990, os Estados e executados. Tentativas clandestinas de ma-
Unidos estavam redirecionando suas mano- tar Saddam, instigadas pela CIA, não tiveram
bras anti-Saddam Hussein, de curdos e xii- efeito. Em 1994, ele foi incentivado a fazer
tas para descontentes sunitas, e, com a Lei de uma incursão armada em direção ao Kuwait.
Libertação do Iraque (Iraq Liberation Act) Interpretada pelos Estados Unidos como
de 1998, o Congresso disponibilizava 97 mi- uma nova ameaça contra o Kuwait, era mais
lhões de dólares para atrair grupos (majori- provavelmente uma provocação e foi reverti-
tariamente discordantes) a alguma forma de da rapidamente em função da determinação
unidade e financiar uma guerra civil. norte-americana.
POLÍTICA MUNDIAL | 399

Mais perturbador era o problema da norte-americanos, entre outros, de passar


posse e fabricação, pelo Iraque, de armas de informações a Israel e a norte-americanos
destruição em massa – nucleares, químicas, que mais tarde as usavam para bombardear
biológicas. Essas armas existiam no Oriente alvos no país. Por quatro anos, os dois lados
Médio, mas as do Iraque eram especiais em brincaram de esconde-esconde. O Iraque
função dos termos nos quais a guerra contra aceitava o direito à informação da ONU
o país tinha sido suspensa. Segundo a Reso- em relação a atividades duplas (ou seja, ci-
lução 687 de 1991, o Conselho de Segurança vis/militares) e aos poucos ia entregando
dava ao Iraque um cessar-fogo em condi- documentos aos milhares – mas somente
ções que incluíam renúncia, divulgação e sob pressão, até que, em 1995, a postura de
destruição dessas armas e a inspeção inter- obstrução e fraude de Saddam Hussein le-
nacional dos processos necessários – todos vou os Estados Unidos a renovar a guerra,
a serem realizados em 40 dias. Essa Resolu- para a qual foram reunidas forças maiores
ção foi suplementada pela Resolução 707, no Golfo. Para essa ação, é claro, os Estados
autorizando o reconhecimento aéreo para Unidos não conseguiram encontrar apoio
identificar locais escondidos e movimentos no Oriente Médio nem entre seus aliados
suspeitos, e pela Resolução 751, que deman- europeus, com exceção da Grã-Bretanha.
dava o monitoramento independente da O Kuwait era uma exceção parcial, tendo
capacidade de fabricação do país. O Iraque revertido uma recusa a permitir que seu
nunca cumpriria esses compromissos en- território fosse usado pelas tropas dos Es-
quanto seus principais inimigos na região, tados Unidos para despachar forças terres-
Irã e Israel, possuíssem armas de destrui- tres substanciais com vistas a defendê-lo do
ção em massa ou parecessem adquiri-las. contra-ataque iraquiano. Nem mesmo Israel
Em associação com a Agência Internacional estava entusiasmado com uma nova guerra
de Energia Atômica (AIEA), a Unscom lo- na qual civis poderiam ser alvo das terrí-
calizou e eliminou grande parte dos arma- veis armas do Iraque. O principal propósi-
mentos e lançadores de armas nucleares do to norte-americano – livrar-se de Saddam
Iraque, mas o país se recusou a entregar os Hussein – era aprovado de forma ampla
inventários exigidos pela Resolução 687 e mas discreta, mas os métodos usados não
obstruía, com cinismo, ações clandestinas e o eram. As afirmações sobre a precisão das
confrontos físicos, as tentativas da Unscom mais recentes armas eram recebidas com ci-
de encontrar estoques químicos e biológicos nismo; a matança inevitável de milhares de
e informações sobre sua capacidade e seus iraquianos era repugnante; o uso de força
programas de fabricação. Essa busca de in- avassaladora para fazer com que os inspeto-
formações, diferentemente da procura por res tivessem acesso a um punhado de locais
estoques, exigia boa inteligência, da qual a parecia duvidoso, além de ser uma quebra
Unscom não dispunha. Sendo assim, a co- do direito internacional há muito estabele-
missão recorria a fontes prováveis, princi- cido de que qualquer uso de força deve ser
palmente aos serviços secretos iraniano e proporcional à infração a ser punida. Como
israelense, o que tinha sentido em termos em 1991, os norte-americanos hesitavam,
operacionais, mas representava dinamite e a desintegração de sua grande aliança de
política. O Iraque argumentava que a Uns- 1991-1992 abalou sua determinação. Quan-
com estava tentando encontrar documentos do se propôs que o secretário-geral da ONU,
de Estado iraquianos que ela não tinha qual- Kofi Annan, fosse a Bagdá, eles aceitaram
quer direito de ver, e acusava os inspetores com relutância, com a ressalva honrosa de
400 | PETER CALVOCORESSI

que a missão dele não era negociar, mas ga- Depois do encontro Annan-Hussein, a
rantir um cumprimento inequívoco das re- expectativa geral era de que se permitiria que
soluções da ONU. a Unscom cumprisse sua missão (ou grande
A visita de Annan se dava no quadro da parte dela) e que as sanções fossem suspensas
presença de uma grande quantidade de for- no final do ano, mas essas expectativas deixa-
ças norte-americanas no Golfo, mas a expec- ram de fora a questão de se os Estados Unidos
tativa de que fossem usadas estava em que- estariam satisfeitos com qualquer conclusão
da. Ele evitou uma crise sem mudar o que a que não incluísse a queda de Saddam Hus-
havia gerado. O acordo formal assinado por sein. A perspectiva da suspensão das sanções
ele e por Saddam (sujeito à aprovação pelo foi reduzida pelos Estados Unidos e Saddam
Conselho de Segurança e, portanto, de seus retomou a tática de obstrução. Os Estados
membros permanentes) afirmava o direito Unidos voltaram a reunir suas forças mili-
da Unscom a acesso ilimitado a todos os lo- tares. Os vizinhos árabes do Iraque declara-
cais que ela quisesse inspecionar, incluindo ram que o país deveria retomar a cooperação
aqueles onde havia sido barrada por serem com a Unscom, mas se recusaram a apoiar a
escritórios do governo iraquiano ou palácios ação militar ou receber forças militares em
presidenciais. Além de frases vagas sobre a seu solo. Saddam tinha conseguido colocar
dignidade e a soberania do Iraque, Saddam um calço entre os Estados Unidos e a maio-
garantiu uma disposição nova. Annan con- ria de seus aliados de ocasião, mas, com sua
cordou em indicar outras pessoas de sua abrasividade, permitiu que os Estados Unidos
própria escolha para acompanhar as equi- desconsiderassem o acordo Annan-Hussein e
pes da Unscom nas visitas aos prédios sob retomassem seus ataques (quase) individuais
disputa. Fora desse acordo, Saddam ganha- ao Iraque. Os Estados Unidos estavam em
va por seu desafio aos Estados Unidos, que, uma situação de tudo ou nada. Demoraram
tendo personalizado o conflito, não foram a perceber que suas políticas, depois de 1991,
capazes de vencer o duelo. Ele tinha feito não estavam funcionando. As sanções se tor-
com que o secretário-geral da ONU fosse naram um bumerangue, e a tentativa de neu-
à capital e ganhou mais publicidade para o tralizar um ditador inescrupuloso havia feito
caráter maligno das sanções. O trabalho da mais para reduzir a influência norte-america-
Unscom foi validado, mas o Oriente Mé- na no Oriente Médio do que para prejudicá-
dio não estava mais estável do que antes, a -lo. Nas atitudes temerárias que se seguiram,
aliança norte-americana estava visivelmente ambos os protagonistas passaram da conta.
insegura, o uso da força perdeu credibili- Saddam atraiu um ataque que esperava evi-
dade e a afirmação dos Estados Unidos de tar, e os Estados Unidos retaliaram com qua-
que estava agindo em nome da “comunidade tro noites de bombardeio a alvos em Bagdá
mundial” se esvaziou quando o país deixou e em outros lugares. Executada sem oposição
de buscar o apoio do Conselho de Segurança eficaz, essa operação causou danos conside-
ao ser improvável que este o desse. O acordo ráveis, principalmente a prédios públicos e
Annan-Hussein foi confirmado pelo Conse- quartéis do exército (que tinham sido evacua-
lho, com alertas firmes mas imprecisos, ao dos), mas não derrubou Saddam Hussein.
segundo para que não o rompesse, mas sem Legalmente, os ataques aéreos eram um
o mandato expresso buscado pelos Estados descumprimento da Carta da ONU e, me-
Unidos e pela Grã-Bretanha para ir à guerra nos obvio, mas provavelmente, do direito
sem recorrer de novo ao Conselho se ele des- consuetudinário internacional, dado que o
cumprisse. Em 1998, ele descumpriu. uso da força era desproporcional aos objeti-
POLÍTICA MUNDIAL | 401

vos. Politicamente, seus objetivos não foram a primazia do Oriente Médio e assim, um
atingidos, a operação recebeu críticas aber- benefício aos Estados Unidos que só perdia
tas ou mais discretas em todo o mundo, e para a desintegração da URSS. As primeiras
os governos do Oriente Médio que tinham estimativas norte-americanas de reservas
boa disposição com os norte-americanos fi- em torno de 200 bilhões de barris foram
caram constrangidos e saíram fragilizados. reavaliadas a mais prosaicos 30 milhões,
Para os Estados Unidos, a ditadura de mas se mantinha o desafio ao Oriente Mé-
Saddam Hussein não era apenas repugnan- dio. Entretanto, dependia de financiamen-
te – havia outras na mesma categoria – mas tos complexos de construção e transportes.
também era preocupante porque ameaçava Os campos do Cáspio estavam localizados,
a estabilidade do Oriente Médio em duas e cercados, por vários países politicamen-
questões especiais de máxima importância te instáveis e em conflito entre si, e poucas
para o país: a sobrevivência de Israel e a po- corporações, se é que havia, estavam pre-
lítica do petróleo. O apoio a Israel ainda era paradas para investir as imensas somas ne-
axiomático em Washington e tinha chegado cessárias sem a perspectiva razoável de um
ao ponto de tolerar as políticas do país que preço mundial do petróleo com poucas pro-
iam contra as políticas norte-americanas babilidades de se manter, a menos que todos
(repúdio aos acordos de Oslo, expansão das os principais produtores do Oriente Médio
colônias nos territórios ocupados, recusa a estabelecessem e mantivessem quotas de
adotar convenções internacionais sobre a produção anual rígidas.
fabricação e uso de armas de destruição em
massa). Por outro lado, os Estados Unidos
não poderiam jogar duro com Israel até te- A destruição do Iraque
rem acabado com Saddam. Em 1998, Clin-
ton avançou surpreendentemente no reco- No final do século, as operações de inspeção
nhecimento de um Estado palestino, mas e monitoramento da ONU no Iraque foram
precisava equilibrar esse passo derrubando frustradas por Saddam Hussein, e os iraquia-
o regime de Saddam Hussein. Em segundo nos estavam sendo mortos de fome e bom-
lugar, como em 1990-1991, o petróleo ira- bardeados rotineiramente pelos Estados Uni-
quiano era um elemento significativo na dos e pela Grã-Bretanha em nome da ONU,
produção do Oriente Médio. A suspensão sem qualquer propósito e com a atenção do
das sanções da ONU, a restauração da in- restante do mundo diminuindo. Então, em
dústria e das exportações de petróleo do Ira- 11 de setembro de 2001, um pequeno grupo
que – e, como pano de fundo, uma possível de muçulmanos (na maioria, sauditas) cau-
renovação da tentativa do Iraque de obter sou um enorme choque nos Estados Unidos.
controle dos campos de petróleo do Kuwait Com dois aviões sequestrados, as torres gê-
– possibilitaria ao Iraque manipular o pre- meas do World Trade Center, no centro de
ço mundial do petróleo, até mesmo reduzi- Nova York, foram atacadas e demolidas, ma-
-lo em muito ao romper as quotas da OPEP. tando cerca de 3 mil pessoas.
Ele se tornaria mais do que presidente do Um terceiro avião atingiu o Pentágono,
Iraque, e sim um rei do petróleo capaz de em Washington. O golpe foi planejado pela
afetar a economia de novos campos em de- organização Al-Qaeda, de Osama bin Laden.
senvolvimento na região do Cáspio. Por um O horror e a indignação foram ampliados pela
tempo, acreditou-se que esses campos fos- perplexidade diante de um evento com o im-
sem abundantes o suficiente para desafiar pacto psicológico de Pearl Harbor, em 1941,
402 | PETER CALVOCORESSI

mas muito mais perto de casa. A explicação das queriam); no sul, a influência iraniana
tinha de ser proporcionalmente cataclísmica: foi fortalecida, mas os xiitas iraquianos es-
o Islã tinha declarado guerra aos Estados Uni- tavam divididos entre os mais ou menos fa-
dos, era um choque de civilizações. voráveis a essa influência; no centro, os suni-
Havia poucos aliados mais improváveis tas, que eram estigmatizados de forma única
no Oriente Médio do que Osama bin Laden, como sendo compreensivelmente parte do
um fundamentalista religioso e puritano, e regime derrotado, recuperaram relisiência
Saddam Hussein, um fanático pelo poder suficiente para ironizar a ocupação norte-
secular. Mas a iniciativa enlouquecidamen- -americana, mas não uma unidade suficiente
te exitosa de bin Laden, dirigida a partir das para formar um governo eficiente no centro,
remotas vastidões do Vaziristão, era um ele- muito menos no país como um todo.
mento de peso na determinação norte-ame- Para além do Iraque, a guerra e o caos
ricana de ir à guerra contra o Iraque, contra que a seguiu influenciaram dois campos de
o direito internacional e a Carta da ONU, batalha relativamente adormecidos. Nas
e com muito pouca consideração sobre as fronteiras entre o norte do Iraque e a Tur-
consequências. O pretexto para a guerra foi quia, os curdos turcos do PKK (Partido aos
a suposta posse e fabricação de armas de Trabalhadores do Curdistão), agora dividi-
destruição em massa pelo Iraque, que não dos entre militantes, que buscavam acelerar
existiam. O propósito da guerra, contudo, a independência curda, e gradualistas, que
era a destruição do regime de Saddam, pelo preferiam uma política de “esperar para
qual havia alguma simpatia até mesmo no ver”, saíram em busca de provocar uma
Oriente Médio. O governo Bush estava an- invasão total do Iraque pelo exército turco
sioso por ter apoio internacional para a ação (a força aérea já estava bombardeando), e
e obteve da Grã-Bretanha e, ainda que mo- o parlamento deu ao governo aprovação
destamente, de outros países. Todos esses quase unânime para a ação militar, apesar
aliados potenciais queriam garantir apoio dos pedidos de Bush para que não o fizesse.
da ONU. Os Estados Unidos argumentavam, Mais longe ainda, o Paquistão – uma po-
em uma postura discutível, que resoluções tência nuclear em conflito com a maioria
do Conselho de Segurança já existentes da- de seus vizinhos – deixou, na prática, de ser
vam essa autorização, mas o país estava dis- aliado dos Estados Unidos, Musharraf foi
posto a prescindir delas. Tony Blair, ansioso pressionado e forçado a instalar um regime
por legitimar o uso da força e preservar as civil de estabilidade duvidosa e democracia
relações anglo-americanas em questões mais abstrata.
amplas, e por se afastar do antiamericanis- Milhares de mortes, pilhagem e tor-
mo endêmico de muitos membros da UE, turas afetaram gravemente o prestígio e o
superestimou sua influência com Bush e se crédito dos Estados Unidos (e da Grã-Bre-
viu vinculado a uma política e a uma ação tanha) em todo o mundo e deram à Rússia
que se tornavam cada vez mais impopulares uma rara oportunidade diplomática. Putin
na Grã-Bretanha. Em 2007, até mesmo os visitou Teerã, sendo o primeiro líder russo
Estados Unidos estavam buscando formas a aparecer em um papel benigno na região
de recuar sem tornar a situação mais grave. desde que Kosygin atuou como mediador
No norte, a destruição total do regime de entre o Paquistão e a Índia em 1966.
Saddam deu às regiões preponderantemente O lugar dos Estados Unidos nos assun-
curdas um grau considerável de autonomia, tos mundiais também foi enfraquecido pelo
mas não de independência (o qual nem to- fracasso e por uma acentuação da “guerra ao
POLÍTICA MUNDIAL | 403

terror”, que levou o governo Bush a abando- situação, o início e a condução da guerra do
nar os limites do Estado de Direito (nacional Iraque foram um grave golpe às esperanças
e internacional) alegando que o risco excep- de que os seres humanos estavam ficando
cional justificaria a concessão de poderes su- melhores na compreensão e controle dos
periores ao presidente: exemplos de recursos eventos. Ela ilustrava não apenas os perigos
a argumentos tão desesperados vão de Q. da vilania, mas também as armadilhas da
Fábio Máximo a Robespierre, com a emo- insuficiência intelectual, e, na comparação,
tiva “guerra ao terror” de Bush fazendo eco talvez sem sentido, de uma com a outra, dei-
a Aníbal ad portas e la patrie en danger. As xou a questão sem resposta.
esperanças – ou, em qualquer caso, os planos A invasão aliada, o tratamento subse-
– para novas conversações entre israelenses quente do Iraque e as ações norte-america-
e palestinos ficaram comprometidas quando nas em Guantánamo, e em outros lugares,
Israel endureceu sua postura anti-Hamas em rompiam o direito internacional de forma
Gaza e deu passos para reduzir a extensão mais flagrante no recurso à tortura como
de um possível Estado palestino para defen- definida e proibida em diversos instrumen-
der suas colônias na Cisjordânia, enquanto, tos do direito internacional.
por sua vez, o Hamas não via vantagem em Eles argumentaram necessidade com
abandonar sua agressividade anti-Israel. base na segurança, um imperativo políti-
Por fim, um objetivo das políticas nor- co. Com essa conduta, fizeram uma esco-
te-americanas no Oriente Médio e na Ásia lha inflexível, mas que tinha um preço: ao
– conter a proliferação de armas nucleares descumprir a lei, renunciaram ao direito à
– foi considerada mais remota. A Índia e sua proteção e a afirmar, sem hipocrisia,
o Paquistão já tinham rompido a barreira, que estavam agindo para fortalecer o Es-
assim como Israel. Concluiu-se que o Ira- tado de Direito. Negavam a universalida-
que não as tinha, mas o Irã, fossem quais de da lei e da moralidade, em vez de sua
fossem suas intenções definidas, se é que relatividade. Em suma, os Estados Uni-
as tinha, era considerado pelo menos capaz dos avançaram com toda a brutalidade
de fabricar bombas nucleares e as usar em no Oriente Médio, com força formidável
um futuro próximo. A recusa de Washing- para obter uma vitória rápida e fácil sem
ton em discutir os armamentos nucleares considerar, ou aparentemente sem julgar
de Israel continuava firme, mas estava se necessário considerar, o que fazer depois.
tornando cada vez mais difícil justificar um Substituíram o pensar pelo lutar.
monopólio Estados Unidos-Israel ou evi- Mas seu problema, que era real, não era
tar admitir que o regime estabelecido pelo apenas a derrubada de um único regime, e
Tratado de Não Proliferação de 1968 tinha sim a reorganização do Oriente Médio para
deixado de existir. garantir qualquer petróleo que pudesse ser
A Guerra do Iraque foi, pode-se dizer, necessário para a economia e as políticas
a mais ousada agitação nas questões mun- externas norte-americanas, pelo menos
diais desde a Segunda Guerra Mundial e o para a geração seguinte. Essa era a questão
período seguinte representou uma provação principal, e as ações norte-americanas, em
não menos desafiadora do que os problemas 2003 e depois, tornaram esses objetivos ain-
enfrentados pelas conferências pós-Pri- da mais difíceis de atingir do que já eram.
meira Guerra Mundial (Versalhes, Lausan- A morte incidental de 100 mil civis iraquia-
ne) nessa parte do mundo em 1919-1923. nos, entre outros atos de destruição, é digna
Como não interessava a ninguém criar essa de processo penal.
15 Península Arábica

O reino Saudita cas prejudicavam o padrão mais organizado


que parecia ter sido projetado pela natureza
O reino Saudita é uma aliança histórica que mas ainda não tinha sido realizado pelos
surgiu sobre um pote de ouro. No sécu- homens sauditas. A partida dos britânicos,
lo VIII, o clã saudita e a seita puritana dos em 1971, do Golfo e de Aden retirou uma
wahabitas formaram uma aliança tão bem- grande potência da área sem colocar outra
-sucedida que tomou posse, no início do em seu lugar.
século XIX, dos lugares sagrados de Meca A Arábia Saudita era um país de tama-
e Medina e levou seus tentáculos até áreas nho grande e, depois da Segunda Guerra
como as que hoje são chamadas de Síria e Mundial, de muita riqueza; mas, em ter-
Iraque. O sucesso foi temporário, pois, com mos humanos, era um país pequeno. Perto
ajuda de armas egípcias, o sultão otomano do final do século, sua população era de
jogou os sauditas de volta para o deserto, não mais de 6 a 7 milhões, mas algumas
onde eles tinham surgido, e, pelo restan- estimativas ficavam muito abaixo disso, e
te do século, eles tiveram de lutar com clãs cerca de um terço dos habitantes não era
vizinhos para sobreviver. Eles sobrevive- de sauditas. Quanto mais rico ficava o país,
ram por pouco, mas a sorte voltou com o mais suas riquezas (que estavam no norte)
jovem Abdul Aziz ibn Saud (1880-1953), atraíam predadores, de modo que ele foi
cuja espada criou um novo reino, chamado, levado pela prudência a buscar um aliado
a partir de 1932, de reino da Arábia Saudi- forte e a construir forças armadas podero-
ta. A Coroa desse reino pertence à família sas. O aliado – e principal fornecedor dos
Saud, em que todos os filhos de um monar- equipamentos dessas forças armadas – fo-
ca morto têm direitos em relação aos netos. ram os Estados Unidos.
Abdul Aziz foi sucedido por quatro filhos: A penetração norte-americana no
Saud (1953-1964), Faiçol (1964-1975), Kha- Oriente Médio começou na Arábia Saudita,
led (1975-1982) e Fahd; em 1995, havia 30 onde a companhia petrolífera ARAMCO
ou mais príncipes dessa geração e, talvez, 6 concluiu, em 1950, com o governo saudita,
mil príncipes adultos com parentesco mais um negócio meio a meio, considerado mais
distante com Abdul Aziz. Territorialmente, generoso do que os termos geralmente con-
o reino tinha quase a mesma extensão da cedidos por empresas britânicas e francesas,
Península Arábica, limitada pelos estratégi- e era voltado a possibilitar às empresas dos
cos Golfo Pérsico e Mar Vermelho, mas, ao Estados Unidos competir e acabar tomando
leste e ao sul, vários principados e repúbli- o lugar das britânicas.
ALBÂNIA FEDERAÇÃO CAZAQUISTÃO UZBEQUISTÃO
CHIPRE RUSSA
BÓSNIA- NORTE
OC EA NO AT LÂ N TIC O
HERZEGOVINA QUIRGUISTÃO
N ORTE

AZERBAIJÃO
TURQUIA
SÍRIA TADJIQUISTÃO
TURCOMENISTÃO

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TUNÍSIA IRÃ
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LÍBANO IRAQUE KUWAIT

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CATAR PAQUISTÃO

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GUINÉ-BISSAU NIGÉRIA ÁRABES
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0 2000 4000 km

0 1500 3000 milhas


POLÍTICA MUNDIAL

População Muçulmana Xiita


|

Figura 15.1 O mundo islâmico, membros da Organização da Conferência Islâmica.


405
406 | PETER CALVOCORESSI

A partir dessa vantagem comercial, os concluído em 1957, titubeou desde o princí-


Estados Unidos desenvolveram uma re- pio e rapidamente tomou o caminho de di-
lação política com a casa real saudita, em versos pactos interárabes desses anos, quan-
cujo anticomunismo podiam confiar. Essa do os árabes tinham dificuldades de decidir
aliança padecia do fervor do compromis- quais de seus semelhantes eram amigos e
so de Washington com Israel ou do ímpeto quais não eram.
de sua aliança com o xá do Irã, mas era o Depois da morte de Nasser, em 1970, o
único aspecto duradouro de suas relações rei Faiçal, que tinha sido o poder por trás do
com o mundo árabe e tinha conotações es- trono mesmo antes de ocupá-lo, em 1964,
tratégicas especiais que aumentaram com o avançou para a liderança, que vinha esca-
crescimento do poder naval russo. Durante pando do mais exuberante Nasser – prin-
grande parte do período pós-guerra, os nor- cipalmente depois da guerra de 1967 com
te-americanos conseguiram fechar os olhos Israel e dos fracassos da força expedicio-
ao fato de que os sauditas eram profunda- nária egípcia no Iêmen. Faiçal fortaleceu as
mente opostos a Israel e ao Irã, os dois prin- ligações sauditas com os Estados Unidos e
cipais pilares de suas políticas no Oriente melhorou relações com o xá; ele visitou o
Médio. Eles se opunham com a mesma fir- Irã em 1965 e concluiu um acordo de pro-
meza aos princípios democráticos e outros priedade da possível riqueza submarina do
que os Estados Unidos queriam inserir em Golfo e, em 1968, o xá foi a Meca. A lideran-
suas políticas externas. ça de Faiçal no mundo árabe ficou clara na
Um legado da criação do reino Saudita conferência dos países árabes em Rabat, em
era sua oposição aos hashemitas descenden- 1969, quando ele conseguiu institucionali-
tes do xerife de Meca, a quem Abdul Aziz zar, com a criação de uma Conferência Islâ-
expulsou de suas possessões temporais as- mica permanente, uma ideia que vinha aca-
sim como das espirituais. Esses descenden- lentando por anos. O Egito se tornou parte
tes governaram a Jordânia e o Iraque (até desse esquema quando Sadat expulsou os
1958). Eles também representavam o alvo russos em 1972 e, mais conservador do que
do impulso reformista de Nasser e assim Nasser, conteve no centro do mundo árabe
proporcionavam um vínculo entre a monar- a corrente revolucionária que o caracteri-
quia conservadora saudita e o Egito revolu- zava desde o início da década de 1950. Mas
cionário. Os sucessores de Abdul Aziz esta- o Egito abriu mão de seu lugar na família
vam ansiosos por escapar de um isolamento muçulmana ao estabelecer sua paz separada
que não era mais seguro para um país tão com Israel em Camp David, e não foi con-
rico, mas tão carente em termos humanos vidado à assembleia islâmica que, em Taif
e materiais, e começaram pelo Cairo. Mas e na própria Meca, no início de 1981, reu-
essa associação era hesitante. Nasser era an- niu 42 monarcas e outros chefes de Estado,
tiamericano, mas o rei Saud, não, e Egito e incluindo o norte da África e o sul da Ásia,
Arábia Saudita assumiram lados separados do Marrocos à Indonésia – uma imponente
na guerra civil no Iêmen. Os instintos de mostra de táticas sauditas que amadureciam
preservação do rei Saud se revelaram mais lentamente.
fortes do que sua herança anti-hashemita, A guerra de 1973 aumentou ainda mais
de forma que, na Jordânia em 1957, ele a importância da Arábia Saudita. Pela pri-
apoiou o rei Hussein contra uma oposição meira vez, uma arma econômica – o petró-
nasserista. Um ambicioso pacto de 10 anos leo – era brandida de forma quase tão assus-
entre Arábia Saudita, Egito, Jordânia e Síria, tadora quando tanques ou aviões. A Arábia
POLÍTICA MUNDIAL | 407

Saudita cortou sua produção em 30%, mais uma hierarquia rígida. Sabia-se bem qual
do que qualquer outro exportador. Com príncipe seria o próximo rei e qual viria de-
essa ação, colocou sua política anti-israelen- pois deste. Os milhares de príncipes inferio-
se antes da pró-americana. O preço do pe- res tinham lugares atribuídos no que era, na
tróleo disparou, de 3 dólares por barril para prática, uma nomenclatura real. Raramente
quase 12, em alguns meses. O PIB do país algum deles saía de linha, mas estava claro
subiu 250% em um ano (e continuou subin- que o sistema seria mais difícil de operar e
do: as receitas decorrentes do petróleo, de a hierarquia, mais difícil de definir, quando
4 bilhões de dólares naquele ano passaram a primeira geração dos filhos de Abdul Aziz
a 40 bilhões quatro anos depois). A ação fosse seguida pela geração seguinte, com
saudita fez com que o restante do mundo uma quantidade muito maior de primos.
digerisse as implicações de um corte nas ex- Mesmo assim, a monarquia sofreu um cho-
portações de petróleo, ao mesmo tempo em que quando, em 1979, 250 beduínos oteibas
que sua grande riqueza aumentou em pro- tomaram a Grande Mesquita em Meca e a
porções lendárias. Em 1980, um terço das mantiveram por duas semanas em protesto
reservas financeiras do mundo todo, fora contra a mundanidade e a corrupção que
da URSS e de seus satélites, pertencia à Ará- estavam ganhando espaço na sociedade
bia Saudita. E isso não era um crescimento saudita, apesar da aplicação draconiana de
fugaz, já que o país possuía um quarto das leis rigorosas. Esse incidente coincidiu com
reservas conhecidas de petróleo do mundo, tumultos, estimulados pelos êxitos e pre-
estava produzindo 9,5 milhões de barris por ceitos de Khomeini no Irã, entre a minoria
dia a um custo relativamente baixo e pode- xiita – uma pequena minoria de 120 mil,
ria aumentar a produção em 70% com pou- mas um importante componente da força
co esforço. de trabalho nos campos de petróleo. A so-
A Arábia Saudita, portanto, estava mais ciedade saudita era vulnerável em função
em alta do que nunca. Mas o mundo em que de sua carência de habilidades profissionais
se encontrava se tornava cada vez menos e técnicas, que a obrigava a empregar gran-
tranquilo e havia dúvidas sobre sua estabi- des quantidades de trabalhadores de outros
lidade interna, que era ameaçada, em sua países árabes e do leste da Ásia (Coreia, Tai-
maior parte, por uma classe cada vez mais lândia, Filipinas) a dedicar à educação uma
numerosa, com horizontes mais amplos do parcela tão grande da despesa de governo
que a monarquia, mas não necessariamente (15%) quanto dedicara à defesa no plano
menos conservadores. quinquenal de 1975-1980 e depois.
O domínio da família real, ainda que A Arábia Saudita estava constrangida
bizarro e anacrônico aos olhos ocidentais, por não ter resolvido a disputa árabe-is-
estava garantido desde que os príncipes raelense e a consequente divergência com
mantivessem a aliança histórica com o Islã os Estados Unidos. O país se manteve fora
wahabita e estabelecessem um novo enten- dos aspectos mais militantes dessa disputa,
dimento com as classes, civis e militares, que mas estava mais comprometido, de certa
operavam as novas instituições engendradas forma, do que qualquer Estado. Na políti-
pela riqueza e pelo poder. Como um todo, a ca, a maior parte das coisas pode ser com-
casa dos príncipes era bem sucedida nessas prometida, até mesmo as fronteiras, mas a
tarefas e na preservação de sua própria dis- reivindicação saudita contra Israel era reli-
ciplina. A família real era ampla, poderosa e giosa: a exigência, por parte da guardiã dos
muito rica. Sua estabilidade era mantida por lugares sagrados, do retorno de Jerusalém,
408 | PETER CALVOCORESSI

outro lugar sagrado, a mãos muçulmanas regime do qual os dois principais suportes
(mas não à Arábia Saudita em si). Nenhum – a própria dinastia e uma classe média
príncipe saudita estava disposto a abando- próspera – estavam ficando maiores, mas
nar essa reivindicação, que o Ocidente con- não mais coerentes: a primeira tinha deze-
tinuava sem levar a sério e unia os sauditas nas de príncipes em um escalão superior
ao rei Hussein da Jordânia, cujo avô tinha cuja quantidade gerava oportunidade para
sido assassinado na mesquita de Al Aqsa, discórdia, enquanto a segunda não estava
em Jerusalém. Na conferência em Bagdá, imune a dúvidas sobre o regime. Havia pres-
convocada para protestar contra Camp sões por algum grau de reformas sociais e
David, a Arábia Saudita tentou moderar as modernização financeira, principalmente
reações árabes extremas à paz separada de de parte do crescente número de sauditas
Sadat com Israel e, ao mesmo tempo, man- com formação no exterior. A classe traba-
ter o papel de liderança que o Iraque pode- lhadora, também crescente, era cada vez
ria roubar, no calor da indignação árabe. mais formada por estrangeiros, e a relação
No conflito mais amplo entre as super- íntima do reino com os Estados Unidos era
potências, o advento da presença russa em potencialmente impopular, principalmente
Aden e no Chifre da África criou uma zona com segmentos do establishment muçulma-
de guerra no Oceano Índico com todos os no. O rei Fahd fez gestos conciliadores para
olhos voltados ao Estreito de Hormuz, atra- a minoria xiita, proclamou uma anistia para
vessado por 140 navios por dia, dos quais crimes políticos, convocou uma novo Majlis
três quartos eram petroleiros. As tradicio- (consultivo) e instituiu conselhos regionais
nais questões de fronteira da Arábia Saudita sob a autoridade dos príncipes da casa real.
adquiriram dimensão internacional extra, Mas se recusou a tolerar um Comitê em De-
uma antecipação dos desafios das Guerras fesa de Direitos Legítimos, estabelecido em
do Golfo nas décadas de 1980 e 1990. Na 1993, e seu presidente, Muhammad Masari,
guerra de 1991 contra o Iraque, a dinastia fugiu para Londres no ano seguinte. Gastos
saudita cumpriu um papel específico na imensamente exagerados, incluindo duas
arena internacional, apresentou em público guerras do Golfo, representaram ao governo
uma frente unida e demonstrou sua imensa problemas econômicos até então desconhe-
riqueza aceitando pagar a maior parte dos cidos. Depois de um ataque cardíaco, o rei
custos dos aliados anti-Iraque, incluindo transferiu por algum tempo o poder a seu
os Estados Unidos. Por outro lado, duas meio-irmão, Abdullah, no final de 1995,
guerras do Golfo prejudicaram gravemente uma mudança de poder em vez de mudan-
as reservas do país e, junto com preços do ça de política, e um adiamento de qualquer
petróleo em queda, cortaram pela metade crise que pudesse estar latente dentro da or-
suas receitas e forçaram o regime a redu- dem existente.
zir suas despesas em 20%. A Arábia Saudi-
ta ainda era o maior produtor de petróleo
cru, dona de um quarto das reservas com- A franja sul
provadas do mundo e, embora não fosse
uma potência industrial moderna, era uma O Iêmen, parte do Império Otomano de
potência financeira sustentada por grande 1872 a 1919, foi governado até 1962 por
parte da mercadoria industrial mais essen- imãs hereditários cujo regime era um dos
cial do mundo. Mas o petróleo não era su- menos cordiais no mundo. A população
ficiente para garantir a estabilidade de um estava dividida entre muçulmanos sunitas
POLÍTICA MUNDIAL | 409

e xiitas (estes, de fé zaidita). O Iêmen tinha em 1967, ele teve que mudar de ideia mais
um litoral que avançava de Bab el-Mandeb, uma vez e retirá-las. A guerra terminou em
junto ao Mar Vermelho, em direção norte, 1970, com um acordo. A república preva-
mas nenhum acesso a águas ao sul. Segundo leceu, mas os adeptos da realeza entraram
o Tratado de Sanaa, em 1934, a Grã-Breta- para o governo.
nha reconhecia o imã Yahya como soberano Precisamente nessa época, os protetora-
e aceitava um adiamento, até 1974, de dis- dos e a colônia de Aden adjacentes estavam
putas territoriais que surgiam de reivindica- sendo evacuados pela Grã-Bretanha em sua
ções iemenitas contra xeques protegidos pe- renúncia à condição de potência global, que
los britânicos e a colônia de Aden. A política afetou o Golfo Pérsico bem como Aden e o
de Yahya era contemporizar, mas seu filho, comando da entrada sul do Mar Vermelho.
Ahmad (que se tornou imã pouco depois do A East India Company tinha posse do
assassinato de seu pai, em 1948), reavivou as porto de Aden, que passou ao governo da
afirmações iemenitas de que as mudanças Índia de 1839 a 1938, quando ela se tornou
constitucionais na colônia britânica rom- uma colônia britânica. Recebeu um conse-
piam o Tratado de Sanaa por prejulgarem lho legislativo, em 1947, e foram introdu-
questões que seriam resolvidas em 1974 e zidos membros eleitos em 1955; sob uma
criavam um grupo anti-iemenita destinado nova Constituição, em 1958, os membros
a desagregar o Iêmen, que a Grã-Bretanha eleitos passaram a ser maioria no conselho.
tinha reconhecido. O resultado foi confli- Durante o período do governo indiano (pri-
tos de fronteira e o imã concluiu, em 1956, meiro como parte da presidência de Bom-
o Tratado de Jidda com o Egito e a Arábia baim e, por fim, alguns anos como provín-
Saudita, e, em 1958, uma associação federal cia separada sob controle direto de Delhi),
com a República Árabe Unida. O regime ab- os habitantes da região de Aden reclamavam
soluto dos imãs foi encerrado por uma re- que eram um posto avançado negligenciado
volta militar em 1962, e Ahmad morreu no do Império Indiano. Após a transferência de
ano seguinte. Seu filho Muhammad al-Bakr seus assuntos ao escritório colonial britâni-
foi deposto e o Iêmen se tornou uma repú- co, as demandas nacionalistas por indepen-
blica, com o brigadeiro Sallal como seu pri- dência cresceram. Tendo sido importante
meiro presidente. Ele invocou ajuda do Egi- como porto por 2 mil anos, Aden se tornou,
to sob o Tratado de Jidda, enquanto o imã em meados do século XX, o lugar para uma
invocava ajuda saudita segundo o mesmo nova refinaria de petróleo de grandes pro-
tratado. Veio uma guerra mista, civil e inter- porções e para o quartel general do Coman-
nacional, na qual cada lado era apoiado por do Britânico para o Oriente Médio.
um país estrangeiro (como na Guerra Civil Sendo assim, os ministros conservado-
Espanhola da década de 1930). Em Riad, em res decidiram, e declararam com impruden-
1965, Nasser e Faiçal concordaram em in- te ousadia, que não se poderia deixar que as
terromper sua ajuda e retirar suas tropas. Os aspirações nacionalistas chegassem à inde-
iemenitas deveriam instalar uma coalizão e pendência. Os nacionalistas, liderados pelo
realizar um plebiscito para decidir a forma secretário-geral dos sindicatos de Aden, Ab-
de governo de seu país, mas esse acordo não dullah al Asnag, passaram a pressionar por
foi posto em prática, as tropas não foram re- suas visões com greves que ameaçavam gra-
tiradas e Nasser disse posteriormente que os vemente uma base dependente de nativos
soldados do Egito poderiam permanecer in- de Aden e mão de obra imigrante iemenita,
definidamente. Depois da guerra com Israel e boicotando os processos eleitorais com os
410 | PETER CALVOCORESSI

quais a Grã-Bretanha esperava satisfazer as- caminho do Cairo, enquanto, em 1959, seis
pirações políticas locais. dos xeques ocidentais, pegos entre o demô-
O protetorado de Aden adjacente con- nio do nacionalismo de Aden e os mares
sistia em 23 governos de xeques divididos, profundos da subversão iemenita, forma-
para conveniência administrativa, em um ram a Federação dos Emirados Árabes pela
protetorado ocidental que cobria 18 deles qual a Grã-Bretanha vinha trabalhando em
e um oriental, que continha outros cinco. vão desde 1954. Esse grupo, rebatizado de
Todos entraram em acordos de proteção de Federação da Arábia do Sul em 1962, foi
algum tipo com a Grã-Bretanha entre 1839 aumentado aos poucos, mas nunca incluiu
e 1914, que tinha cumprido um bem-suce- todos os xeques, apesar de subvenções bri-
dido papel pacificador nessa parte do mun- tânicas 50 vezes maiores do que as ofereci-
do. Depois da Segunda Guerra Mundial, a das anteriormente.
Grã-Bretanha negociou outros tratados sob A Grã-Bretanha, com intenção de man-
os quais novos representantes políticos bri- ter Aden quando as bases no Quênia, Egito
tânicos foram indicados para assessorar os e Chipre desaparecessem ou deixassem de
xeques, que concordaram em aceitar a as- ser confiáveis, decidiu, em 1963, anexar a
sessoria, exceto em relação a direito e cos- colônia a essa nova federação, unindo os xe-
tumes islâmicos. Nos principados ociden- ques e a classe comerciante e evitando os na-
tais, a indicação de um novo xeque tinha de cionalistas. Nesse sistema, a Grã-Bretanha
ser confirmada pelo governador britânico manteve sua soberania sobre a colônia: acei-
da colônia. Os reinos dos xeques e a colô- tou não retirá-la toda da federação, embora
nia constituíam uma área geograficamen- pudesse retirar partes; no sétimo ano dessa
te compacta e religiosamente homogênea, simbiose, mas não antes nem depois, a colô-
mas a colônia diferia de seus arredores por nia poderia, por conta própria, separar-se,
ser populosa, relativamente rica e hostil ao mas se o fizesse, teria de reverter sua condi-
princípio monárquico. Os nacionalistas na ção de colônia e não poderia se tornar um
colônia desejavam uma união com os terri- Estado independente; enquanto cada mem-
tórios dos protetorados, e, por fim, também bro normal da federação tinha seis cadeiras
com o Iêmen, mas não sob seus governantes no Conselho Federal, Aden teria 24.
de então. Essa estranha organização intensificou
Aden era um mundo pequeno e negli- a agitação nacionalista. Os nacionalistas de
genciado que funcionou por conta própria Aden se recusaram a cooperar com a Grã-
até a saída da Grã-Bretanha da base de Suez -Bretanha ou reconhecer a federação, pedi-
em 1956. Naquele ano, um ministro britâ- ram ajuda ao Egito e passaram à violência
nico disse ao conselho legislativo da colô- para acelerar a saída dos britânicos e garan-
nia que seu governo não via possibilidade tir o colapso do restante de seus planos. Os
de mudanças nos assuntos de Aden e estava xeques federados tentavam obter promes-
confiante de que esse imobilismo seria bem sas de continuação do apoio militar, o que
recebido por uma ampla maioria de seus o governo trabalhista britânico não estava
habitantes. Posteriormente, naquele mesmo disposto a dar, já que elas praticamente ne-
ano, o bloqueio do Canal de Suez por Nas- gariam a política de retirada e retração e
ser causou desemprego e greves em Aden. envolveriam a Grã-Bretanha nas disputas
Ao mesmo tempo, os xeques tomaram árabes, ou seja, ao aceitar um compromisso
consciência da ameaça a seu estilo de vida. militar ao mesmo tempo em que abandona-
Em 1958, o sultão de Lahej decidiu tomar o va o poder político, a Grã-Bretanha teria o
POLÍTICA MUNDIAL | 411

pior dos dois mundos. O governo britânico cedido, em 1980, por seu primeiro-ministro
preferiu acelerar a retirada. Aden e seu in- Ali Nasser Muhammad, que queria encon-
terior se tornaram, em 1967, a República trar uma forma de reconciliar a conexão
Democrática e Popular do Iêmen (RDPI). A russa com melhores relações com a RAI e
saída dos britânicos, que haviam oferecido a Omã. Os dois Estados iemenitas foram uni-
maior parte dos empregos, e o fechamento ficados, em 1990, sob a presidência de Ali
do Canal de Suez, no mesmo ano, jogaram Abdullah Saleh, da RAI. Líderes de ambos
o novo país em problemas econômicos que os lados viam vantagens na unificação, mas
acentuaram sua instabilidade inerente. Ele nenhum queria que o outro desfrutasse ou
estava em conflito com seu vizinho do nor- compartilhasse delas. O novo Estado, cuja
te, a Republica Árabe Iemenita (RAI), e por capital estava em Sanaa, tinha receitas de
isso foi invadido com ajuda saudita em 1972. petróleo crescentes, a maioria no norte, mas
Uma guerra curta terminou com discursos os dois exércitos não foram unificados, e,
– mas não mais do que isso – sobre a unifi- em 1994, uma tentativa instigada e apoiada
cação dos dois Estados iemenitas. A ilha de pela Arábia Saudita de restabelecer um Esta-
Socotra, ao sul de Aden, colônia britânica de do separado ao sul levou à conquista do sul
1880 a 1967, tornou-se parte da RDPI. pelo norte. O presidente Saleh resolveu seus
Do ponto de vista saudita, uma união, problemas de fronteira com Omã e manteve
ou federação, entre RDPI e RAI só seria relações pacíficas com os sauditas.
vantajosa se a entidade resultante fosse de O sultanato de Muscat e Omã foi gover-
direita. A Arábia Saudita queria exercer nado, de 1932 a 1970, pelo sultão Said bin
controle sobre a RAI e seduzir a RDPI para Timur, cujos principais objetivos eram man-
afastá-la da influência russa. Em 1976, de- ter os estrangeiros fora e o dinheiro público
pois de reuniões secretas no Cairo, a Arábia para ele próprio. Um golpe, em 1970, levou
Saudita estabeleceu relações com a RDPI. ao poder seu filho Qabus depois de uma
Essa ação foi possibilitada pelo encerramen- guerra civil na qual a Grã-Bretanha e o Irã
to, no ano anterior, da rebelião contra o sul- o ajudaram contra a Frente Popular de Li-
tão de Omã, em sua província de Dhofar, na bertação de Omã e do Golfo Árabe, que teve
qual os sauditas e a RDPI tinham estado em algum apoio russo e chinês, ainda que ina-
lados opostos. Depois disso, a Arábia Saudi- dequado. O novo sultão era tão mão aberta
ta e a URSS competiam em ofertas de ajuda quanto seu pai havia sido parcimonioso.
à RDPI.
Na RAI, o presidente, o coronel Ibrahim
al-Hamdi, foi assassinado em 1977, depois A Grã-Bretanha e o
de três anos no poder, e foi sucedido pelo Golfo Pérsico
coronel Ahmad al-Ghashni, que foi assas-
sinado um ano mais tarde. Embora essas Entre as poderosas frotas norte-americana,
mortes parecessem ser motivadas princi- no Mediterrâneo e no Pacífico Sul havia
palmente por rixas tribais, havia razões para uma lacuna. Por 25 anos depois da Segunda
suspeitar que al-Hamdi tentara jogar um Guerra Mundial, essa lacuna foi preenchida
jogo separado com a RDPI, e, em 1979, ela pelos britânicos, que, até meados dos anos
invadiu a RAI na companhia de refugiados de 1960, insistiam em continuar a preenchê-
descontentes. No mesmo ano, o presidente -la. O Defence White Paper de 1957, o pri-
Abdel Fattah Ismail, da RDPI, concluiu um meiro a surgir depois do fiasco da Guerra
tratado de 20 anos com a URSS. Ele foi su- de Suez, continha uma mistura de ideias
412 | PETER CALVOCORESSI

antigas e novas. Ele ainda concebia forças tório do Catar, os Estados da Trégua* e, por
locais, não apenas em Aden e no Chipre, fim, o Estado de Muscat e Omã, no extre-
mas também no Quênia (o qual, contudo, mo. As afinidades políticas e empresariais
ao se tornar independente em 1963, dava do Kuwait têm sido com os vizinhos árabes
à Grã-Bretanha instalações apenas limita- ao norte, e seus filhos têm ido ao Cairo ou a
das segundo um acordo de março de 1964); Beirute para sua formação, enquanto as re-
concebia também um grupo de porta-aviões lações dos outros Estados do Golfo se dão
de apoio no Oceano Índico. A operação no mais com o Paquistão e a Índia, e seus filhos
Kuwait, em julho de 1961, reforçou os argu- frequentam a escola em Karachi.
mentos em favor de guarnições locais para A preocupação inicial da Grã-Bretanha
aclimatar as tropas, já que entre um quarto nessas águas era garantir monopólio ou do-
e metade dos homens que foram levados ao minação sobre as rotas para a Índia e pro-
local da ação, vindos de climas temperados, teger o comércio britânico das depredações
foram imediatamente prostrados pelo calor. de xeques que, no extremo sul do Golfo
Partindo do pressuposto de que esse tipo Pérsico, viviam da pirataria e fizeram com
de operação continuaria sendo uma parte que essa faixa de terra ganhasse o nome de
inescapável da atividade da Grã-Bretanha Costa dos Piratas. A partir de 1820, os britâ-
no mundo, as bases tropicais pareciam es- nicos impuseram uma paz marítima através
senciais. O White Paper de 1962 reiterava de uma série de tratados ou tréguas com es-
a necessidade da presença britânica para ses xeques “em Trégua” e, em 1861, esten-
garantir a estabilidade e, com ela, a neces- deram o sistema ao norte, até Bahrein, com
sidade de manter forças em Aden e Cinga- um acordo segundo o qual a Grã-Bretanha
pura. Mas os argumentos e pressupostos dos protegeria Bahrein eternamente. Em um
formuladores dos Defence White Papers momento posterior do século, os britâni-
foram questionados por quem calculava o cos negociaram o controle sobre as políticas
custo desses estabelecimentos (principal- externas dos Estados dos xeques e também
mente depois da vitória trabalhista de 1964 do Kuwait e do Catar. Por fim, à medida que
em meio a uma crise financeira) e pelos que as pérolas e o petróleo tornavam esses paí-
acreditavam que bases em território árabe ses importantes e não apenas por estarem
criavam má vontade política desproporcio- próximos a águas comerciais importantes,
nal à sua utilidade. vários acordos no século XX davam à Grã-
Se Aden era o sinal externo e visível da -Bretanha direitos exclusivos na exploração
presença britânica nessas águas, seu foco era comercial de riquezas locais, mas sem con-
o Golfo Pérsico, um braço do Oceano Índi- trole de questões internas.
co que faz uma longa e estreita penetração Durante a maior parte desse período, as
no Oriente Médio, dividindo a Arábia, de fronteiras desses países em terra, vagamente
um lado, e o Irã, de outro. Esse braço é mais definidas em zonas rurais desabitadas e su-
restrito no Estreito de Hormuz, que divide postamente sem valor, não foram motivo de
o Golfo Pérsico do Golfo de Omã e do oce-
preocupação, e as obrigações contratadas pela
ano. Toda margem leste de ambos os golfos
Grã-Bretanha como consequência da trégua
é território iraniano, mas a margem opos-
marítima permaneceram por muito tempo
ta cobre 14 soberanos. Na cabeça do Golfo
sem serem questionadas, já que o país tinha
Pérsico está o Iraque e, perto dele, o Kuwait,
separado por 560 km de litoral de outros
principados – a ilha de Bahrein, o promon- * N. de R.T.: Atualmente Emirados Árabes Unidos.
POLÍTICA MUNDIAL | 413

razões adicionais para permanecer no Golfo não conclusivo, para permanecer no Golfo
Pérsico e não era incomodado por compro- Pérsico um pouco mais, desde que se en-
missos com governantes locais em uma área tendesse que os dias da presença britânica
que pretendia continuar policiando com for- estavam contados. O petróleo representava
ças navais e aéreas pelos motivos complemen- um argumento frágil. A importância do pe-
tares do novo comércio de petróleo. tróleo do Oriente Médio para a Europa era
No tráfico interminável entre a Europa inegável, mas a política de garantir supri-
e a Ásia, era necessário atravessar ou des- mentos através de uma presença física pare-
viar do Oriente Médio e, nesse contexto, o cia cada vez mais anacrônica.
nacionalismo árabe do século XX afetava A Europa, ao contrário dos Estados
os europeus da mesma forma com que as Unidos, tinha se tornado dependente do
conquistas muçulmanas que motivaram as petróleo do Oriente Médio. A Grã-Breta-
cruzadas e as viagens em torno da África. nha, por exemplo, que antes da Segunda
Na época de apogeu do poder britânico Guerra Mundial importava mais da me-
no Oriente Médio, os britânicos viajavam tade de seu petróleo do continente ameri-
livremente através da região, mas, depois cano, em 1950, estava importando metade
da Segunda Guerra Mundial, a rota cen- de suas necessidades só do Kuwait, e se
tral direta foi perdida na medida em que estimava, em 1965, que o consumo anual
um governo árabe atrás do outro negava europeu de 300 milhões de toneladas au-
à Grã-Bretanha os direitos especiais e as mentaria em 15 anos para 750 milhões,
instalações de que ela tinha usufruído an- apesar do elevado uso de gás natural e
tes por tratado ou ocupação. A retirada da energia nuclear. Descobertas importantes
Palestina e da Zona do Canal, a revolução de petróleo no Saara, em 1956, e na Líbia,
no Iraque, em 1958, e o cancelamento do em 1959, poderiam reduzir a proporção do
tratado anglo-jordaniano na época de Suez, consumo de petróleo do Oriente Médio na
em 1956, eliminaram essa rota e tornaram Europa, mas não a quantidade total daque-
necessário encontrar um desvio pelo sul ou la região que era necessária. Estimava-se
pelo norte. A rota sul passava pela Líbia e que o produto continuaria mais barato do
pelo Sudão até Aden, mas, em 1964, o go- que gás ou energia nuclear ou hidrocarbo-
verno líbio buscou uma revisão do tratado netos submarinos, e o do Oriente Médio
de 1952 com a Grã-Bretanha, e, no mesmo era mais barato do que outros, mas essa
ano, o Sudão acrescentou condições prati- dependência europeia não era tão assus-
camente proibitivas a direitos de sobrevoo. tadora quanto parecia a uma série de es-
Ir para o sul significava voar pela África tadistas do continente, já que os produto-
central ou mesmo pelo sul do continente res do Oriente Médio eram, por sua vez,
– duas rotas politicamente desconfortáveis muito dependentes dos clientes europeus.
e caras, em função de sua extensão. A al- Em meados da década de 1960, quando
ternativa do norte, por Turquia, Irã e Golfo a retirada britânica se tornou realidade,
Pérsico, permanecia valiosa, mas não mais as receitas petrolíferas dos Estados em
essencial, já que as evoluções técnicas es- questão passavam de 2 milhões de libras e
tavam abrindo uma nova rota, ainda que proporcionavam 70 a 95% das receitas or-
difícil e onerosa, entre a Grã-Bretanha e çamentárias dos vários produtores. Nem a
Cingapura, pelo norte. demanda crescente de parte do Japão, nem
Sendo assim, as comunicações propor- a perspectiva da entrada da China no mer-
cionaram um argumento, eficaz ainda que cado pareciam ter probabilidades de con-
414 | PETER CALVOCORESSI

trabalançar a necessidade que os produ- vernante do Catar (que tinha formado parte
tores do Oriente Médio tinham de vender de forma indefinida do sistema da trégua no
seu petróleo à Europa, e, mesmo assim, as início do século XIX, mas tinha se retirado
bases militares eram tão irrelevantes para dele na década de 1860) pediu ajuda aos bri-
o fluxo do petróleo quanto para o forneci- tânicos contra problemas internos em 1963,
mento de qualquer outra mercadoria. mas não a recebeu. O problema principal era
Havia, contudo, outro argumento, a relação entre os xeques e a Arábia Saudita.
mais político do que econômico. Os bri- Os britânicos não queriam desapontar os xe-
tânicos, dizia-se, tinham ido ao Golfo Pér- ques nem os sustentar indefinidamente.
sico para manter a paz e proporcionar a As relações da Grã-Bretanha com a
estabilidade sem a qual o comércio fica em casa real saudita eram amigáveis e fortes,
perigo, e assim tinham feito. Uma retirada principalmente na época do rei Abdul
britânica poderia ser seguida de desordens Aziz, embora nem tanto após a ascensão
que interrompessem o fluxo de petróleo. de seu filho Saud, em 1953, e muito me-
Essas desordens poderiam ser resultado de nos depois da substituição da influência
sabotagem ou de disputas de fronteira en- britânica pela norte-americana na Arábia
tre Estados da região. Unidades militares Saudita. A Grã-Bretanha ficou constran-
regulares não são adequadas para impedir gida pela impermeabilidade aparentemen-
sabotagem, enquanto uma das causas mais te completa do regime saudita ao menor
comuns de sabotagem é o ressentimento toque de modernidade que não fosse a
nacionalista contra a presença de guarni- acumulação de royalties decorrentes do
ções estrangeiras. As disputas de fronteira petróleo, gastos pela família real em em-
eram várias: o Irã reivindicava o Bahrein, preendimentos muitas vezes mais pródigos
o Iraque, a província iraniana de Cuzis- do que úteis. Não parecia correto abando-
tão e o Kuwait; e a Arábia Saudita tinha nar Estados que haviam sido redimidos da
disputas de fronteira com alguns de seus pirataria à mercê de um grande vizinho
vizinhos menores, muitos dos quais esta- ainda conhecido pela escravidão. Mais
vam em conflito. Enquanto essas disputas além, em 1955, uma disputa continuada
persistissem, a Grã-Bretanha poderia ale- pelo oásis de Buraimi levou a um confron-
gar que estava prestando um serviço ao to militar. Esse oásis, um grupo de 10 al-
permanecer na região e cumprir o papel deias, em parte de posse do xeque de Abu
de polícia. Dhabi e, em parte, do sultão de Muscat, era
Nos Estados da Trégua, a Grã-Bretanha cobiçado pela Arábia Saudita, cujas reivin-
tentou, sem sucesso, promover uma federa- dicações foram rejeitadas pela Grã-Breta-
ção como primeiro passo para se libertar de nha durante uma geração. A disputa, que
suas obrigações perpétuas. Ela não deveria envolvia as duas forças poderosas da honra
interferir nas questões internas desses países, e do petróleo, foi encaminhada a um tribu-
mas se sentia obrigada a fazê-lo em função de nal arbitral em Genebra, mas os sauditas,
suas disputas mútuas, dos problemas de al- tendo muito pouca fé em sua causa ou no
guns de seus governantes e da ajuda de que os tribunal, subornaram testemunhas em um
mais pobres necessitavam. Os governantes, nível tão elevado que a Grã-Bretanha foi
embora não precisassem mais de proteção levada a protestar publicamente. Os sau-
vinda do mar, sentiam necessidade de serem ditas também enviaram tropas para as al-
protegidos da Arábia Saudita ou de seus pró- deias, de onde foram expulsas à força pelos
prios súditos, não muito numerosos. O go- britânicos. Mesmo assim, a Grã-Bretanha
POLÍTICA MUNDIAL | 415

não estava disposta a assumir a disputa, própria, Kuwait, Bahrein, Catar, Emirados
que esmaeceu mais uma vez. Árabes Unidos e Omã.
Assim como na Índia, tampouco no
Oriente Médio as posições de poder deixadas
vazias pelos britânicos foram transmitidas a Notas
um único sucessor. O regime pós-britânico
no golfo foi resultado de negociações entre a A. Curdos
própria Grã-Bretanha, o Irã e a Arábia Saudi-
ta. O xá renunciou à reivindicação iraniana As raízes dos nomes tribais dos povos cur-
sobre o Bahrein, que se tornou membro ple- dos são mais antigas do que qualquer ou-
no da ONU em 1970. Populoso e rico o sufi- tro povo no mundo, e sua presença na Ásia
ciente para se manter por conta própria, es- Ocidental tem 4 mil anos. Sua prosperida-
tava disposto a participar da recém-proposta de atingiu um pico, durante o século XII,
Federação de Estados do Golfo, a não ser na época de um sultão conhecido pelos
que recebesse uma representação igualmen- europeus como Saladino. Em séculos mais
te poderosa na projetada União dos Emira- recentes, eles estiveram divididos entre o
dos Árabes. Essa federação surgiu no início Império Otomano e os Impérios Safávida
de 1972, mas sem o Catar e Ras al-Khaimar e Qaja no Irã, e mais divididos desde a Pri-
(um dos sete Estados da Trégua), que esco- meira Guerra Mundial entre turcos e outros
lheram a independência. Todos os tratados sucessores do primeiro. A condição de Esta-
existentes com a Grã-Bretanha foram cance- do foi prometida pelo Tratado de Sèvres, em
lados. O Irã, alegando necessidade estratégi- 1920, mas o Tratado substituto de Lausan-
ca, tomou as ilhotas de Abu Musa e Tunbs, ne, em 1923, a negou. Na religião, a maioria
nos braços de mar entre o Golfo Pérsico e dos curdos é de muçulmanos sunitas, mas,
o Golfo de Omã, fazendo com que o Iraque no Irã, muitos deles são xiitas e, na Turquia,
rompesse relações diplomáticas e expulsasse cerca de um terço são alauitas. Em meados
os iranianos de seu território. A nova ordem do século XX, eles eram cerca de 25 milhões
se baseava essencialmente no acordo entre o – metade na Turquia, 7 milhões no Irã, 4
Irã e a Arábia Saudita; na incapacidade des- milhões no Iraque e quantidades menores
ta de garantir, naquele momento, controle na Síria, na República Socialista Soviética
total sobre o litoral ocidental do Golfo para da Armênia e na Ásia Central soviética. Esta
fazer frente ao controle do Irã sobre o outro tentou, sem sucesso, obter reconhecimen-
lado; e na ausência casual das vozes do Egito to como república autônoma na Rússia de
e do Iraque devido à derrota do primeiro, em Gorbachev.
1967, e à contínua guerra do segundo com os Na Turquia moderna, os curdos repre-
curdos e a outras fragilidades internas. Mas sentam cerca de um quinto da população.
nenhum desses fatores era necessariamen- Estavam concentrados no sudeste, uma
te permanente. O assassinato de Faiçal, em região de decrepitude agrícola com capital
1975, e a sucessão pacífica de seu irmão Kha- em Diyarbakir, e, como os turcos, dividi-
led não alteraram o padrão, mas, no mesmo dos entre uma visão secularista de Estado
ano, o Iraque começou a recuperar sua liber- e um clericalismo sunita. Um número cada
dade de ação. O Conselho do Golfo, criado vez maior deles se espalhou para Istambul e
em 1981 por iniciativa da Arábia Saudita, outras cidades essencialmente turcas, onde
era parte do esforço dela para se contrapor à alguns prosperaram, casaram-se com turcos
influência iraquiana e iraniana, e incluía ela e se tornaram mais assimilacionistas do que
416 | PETER CALVOCORESSI

nacionalistas. No entreguerras, houve gra- bora os curdos, dependentes de apoio russo,


ves rebeliões em 1925, 1930 e 1937 na me- estivessem indiretamente ligados aos azer-
dida em que o regime centralizado e secu- baijanos. Depois da retirada russa do Irã,
larista de Ataturk reduzia a identidade dos em 1946, os azerbaijanos negociaram, sem
curdos, discriminando-os e os maltratando. incluir os curdos, um acordo de autonomia
Depois da Segunda Guerra Mundial – e com o governo iraniano, mas, alguns meses
particularmente entre 1950 e 1960, quando depois, o primeiro ministro Qavam es-Sulta-
o Partido Democrata estava no poder – as neh, tendo expulsado os comunistas de seu
relações melhoraram, mas o descontenta- governo em Teerã, mandou o exército ira-
mento e a repressão continuaram latentes, niano para destruir o governo comunista lo-
e, em 1984, o Partido dos Trabalhadores do cal em Tabriz e a República Mahabad ficou à
Curdistão (PKK), parcialmente nacionalista mercê de armas iranianas. Ela foi aniquilada
e parcialmente comunista, fundado alguns e seus líderes fugiram ou foram enforcados.
anos antes por Abdullah Oçalan, deu início O destino dos curdos no Iraque estava,
a uma guerrilha que atiçou o ódio e a bruta- em grande parte, nas mãos da Grã-Bretanha
lidade em ambos os lados, destruiu milhares quando, depois de tomar Bagdá na Primeira
de aldeias e expulsou refugiados de suas ter- Guerra Mundial, as forças britânicas avan-
ras para Diyarbakir (cuja população tripli- çaram a Mosul e instalaram o líder curdo
cou) e outras cidades mais ao oeste. Cerca Mahmud Barsandji como governador. Os
de 750 mil pessoas migraram para a Europa curdos tinham esperanças de um Curdistão
Ocidental, onde juntaram suas vozes contra independente como recompensa por seus
a admissão da Turquia na União Europeia. serviços antiturcos durante a guerra, e, nos
Oçalan, que dirigiu as operações a partir da anos posteriores, os britânicos estavam mais
Síria durante muitos anos, fugiu em 1999 preocupados em impedir o retorno de Mo-
para a Europa e depois para a África, onde sul ao novo Estado turco. O abortado Trata-
foi preso no Quênia, extraditado para a Tur- do de Sèvres de 1920 (que previa a indepen-
quia, julgado e condenado à morte. dência da Armênia) dava aos curdos nada
No Irã, os curdos foram atacados por mais do que a promessa de uma autonomia
Reza Shah entre as duas guerras e depois que os iraquianos, um Estado sob protetora-
enganados pelos russos, que deram mui- do ou mandato que se encaminhava à inde-
ta atenção aos notáveis curdos durante a pendência, estavam determinados a limitar
guerra, estimularam o nacionalismo cur- ou anular. Com suas esperanças frustradas,
do e forneceram armas a um movimento Barsandji declarou um Curdistão indepen-
separatista. Em janeiro de 1946, os curdos dente. Os britânicos o deportaram para a
proclamaram a República Independente de Índia, mas depois (1922) o recolocaram
Mahabad, mas, para os russos, o movimen- como governador em Mosul. Um ano mais
to não era mais do que um patrimônio útil tarde, ele fugiu para o Irã. O Tratado de Lau-
da separatista República do Azerbaijão, que sanne (1923) anulou o de Sèvres e, com isso,
eles tinham em Tabriz no final de 1945. A suas disposições sobre curdos e armênios.
República Mahabad era uma expressão de O novo Estado turco reivindicava Mosul,
verdadeiros sentimentos não comunistas lo- mas, em 1925, a Liga das Nações apoiou a
cais, ao passo que a República do Azerbaijão afirmação britânica de que ele fazia parte do
era um artifício comunista. Iraque. Cinco anos depois, Barsandji voltou
As tentativas de aliar as duas nunca tive- ao Iraque na tentativa de conquistar alguma
ram mais do que um êxito superficial, em- vantagem para os curdos a partir dos con-
POLÍTICA MUNDIAL | 417

flitos esporádicos entre eles e os iraquianos, foram interrompidas no mesmo ano pela
mas foi frustrado por ataques aéreos britâni- prisão dos negociadores curdos, e o exér-
cos, e, com o fim do mandato britânico so- cito iraquiano, apoiado pela Síria, onde o
bre o Iraque, a região curda se tornou parte Ba’ath também tinha subido ao poder, co-
do Estado iraquiano soberano. meçou uma campanha ainda mais feroz
Próximo ao final da Segunda Guer- contra os curdos do que as operações de
ra Mundial, um novo líder curdo, Mustafá 61-62. Mas o nacionalismo anticomunista
Barzani, liderou uma revolta que foi esma- do Ba’ath afastou o mundo comunista, que
gada: cerca de 10 mil curdos fugiram para denunciou genocídio. No início de 1964, foi
o Irã, e Barzani, para Moscou. A revolução negociada uma trégua, que se revelou frágil,
de 1958 em Bagdá destruiu a aliança entre mas, em 1970, o presidente al-Bakr e seu
os três Estados anticurdos: Iraque, Turquia vice-presidente, Saddam Hussein, a renova-
e Irã, e substituiu a monarquia iraquiana ram, e Barzani conquistou um novo acordo
por uma república de “árabes e curdos”. Bar- de autonomia que desabou mais uma vez,
zani voltou de Moscou e foi recebido com por uma série de razões, incluindo o status
honras e até generosamente pelo presidente de Kirkuk. Quando o Iraque e o Irã uniram
Kassem, que via os curdos com simpatia em forças contra os curdos, Barzani fugiu para
função das tendências de esquerda que ha- os Estados Unidos.
via entre eles. Em 1960, um Partido Demo- As revoltas iraquianas de 1958 e 1963
crata Curdo foi permitido, mas os curdos não foram bem recebidas pelo xá, que que-
estavam divididos em suas visões sobre Kas- ria que os muçulmanos xiitas tivessem uma
sem e nem a esquerda gostava das ideias co- participação no governo do Iraque; se os
munistas que ganharam terreno no Iraque xiitas fossem tratados assim, os curdos tam-
depois da revolução. Depois de alguma dis- bém teriam de ser. Ele se recusou a ajudar
sensão interna, o Partido Democrata Curdo operações anticurdas de Aref, mesmo quan-
se tornou definitivamente anticomunista e, do os curdos se refugiaram e ele deu uma
perdendo rapidamente os favores de Kas- ajuda secreta – e nem tanto – aos do Iraque.
sem, foi perseguido e extinto oficialmente. Sua aproximação com rei Faiçal da Arábia
Em 1961, os curdos se rebelaram. Kas- Saudita, em 1965, o incentivou a pensar
sem afirmava que eles estavam recebendo em um Golfo Pérsico regulado em termos
material militar da Grã-Bretanha e dos Es- de um compacto Arábia Saudita-Irã, sem a
tados Unidos. Ele pediu armas à URSS, a necessidade de um lugar para o Iraque. Em
qual achou oportuno esquecer do seu apoio 1980, o Iraque virou a mesa com o Irã em
anterior aos curdos na esperança de encon- função do apoio deste aos separatistas cur-
trar um aliado útil em Kassem. O exército dos iranianos, e, quando o curdos pediram
iraquiano deu início a uma campanha total apoio ao exilado Khomeini, Saddam Hus-
contra os curdos, com bombas de napalm e sein os massacrou com armas químicas. Du-
aviões transportadores de foguetes. rante e depois da Guerra do Golfo de 1991,
Em fevereiro de 1963, Kassem foi der- os norte-americanos tinham esperanças
rubado e morto, e os pan-árabes do Parti- de que os curdos a os xiitas se revoltassem
do Ba’ath assumiram o controle do gover- contra Saddam, e a linguagem pouco cui-
no sob a presidência do general Aref, que dadosa do presidente Bush foi interpretada
iniciou discussões com os curdos e deu a por eles como uma incitação a isso. Não era
entender que eles teriam alguma coisa pró- a primeira vez que esses curdos interpreta-
xima da autonomia. Contudo, as discussões vam equivocadamente sinais ambíguos vin-
418 | PETER CALVOCORESSI

dos de grandes potências. Os aliados turcos 1996, Barzani cercou Talabani com ajuda do
de Bush se opunham à independência ou à Iraque. Talabani respondeu buscando ajuda
autonomia curdas em qualquer lugar, e seus no Irã, e a visão dos norte-americanos sobre
aliados sauditas eram igualmente contrários um Curdistão autônomo e independente foi
a tal reconhecimento em relação aos xiitas. varrida, pelo menos temporariamente.
A arrasadora derrota de Saddam pelos Esta-
dos Unidos e seus aliados não o impediu de B. Xiitas
massacrar curdos e xiitas. A pátria destes no
sul do Iraque foi drenada para torná-los pre- Os xiitas, que se separaram da principal ver-
sas mais fáceis, e muitos foram mortos por tente muçulmana há mais de mil anos, re-
forças iraquianas ou forçados a fugir para o presentam cerca de um décimo do Islã. Eles
Irã. Os curdos iraquianos tinham uma uni- veneram o genro do Profeta, Ali, e seus dois
dade tênue. A União Patriótica do Curdis- filhos, Hassan e Hussein, como geradores
tão (UPC) era uma facção que havia saído da verdadeira linhagem dos imãs (líderes)
do Movimento Democrático Curdo (MDC) de inspiração divina. A maioria espera a re-
em 1975, defendia uma oposição mais ativa aparição do décimo-segundo imã, desapare-
em relação ao governo central e se recusa- cido em 880, mas outros esperam por ou-
va a apoiar o Iraque em sua guerra contra tras reaparições. Dispersos no Irã, mas mais
o Irã, ao passo que o MDC – assim como concentrados a leste do Eufrates, dominam
os curdos no Irã – tomou o lado do Iraque. o país, onde controlaram o poder por 500
Depois da Guerra do Golfo, o líder da UPC, anos, superam em quantidade outros gru-
Jalal Talabani, respondeu positiva e desas- pos no Iraque e no Líbano, e constituem mi-
trosamente à chamada de Bush para que se norias importantes na Síria, no Paquistão e
revoltassem, enquanto o MDC e Masud Bar- em outros lugares. Os sucessos de Khomeini
zani (filho de Mustafá) foram mais cautelo- deram força à sua posição onde quer que
sos. Os dois líderes tinham mais ou menos fossem encontrados, mas também assusta-
os mesmos seguidores entre os curdos ira- ram os não xiitas, principalmente os árabes,
quianos. Saddam Hussein, lidando com cada que não confiavam nos iranianos, e os su-
um separadamente, produziu uma proposta nitas, os quais não gostavam de intervenção
de lei sobre autonomia que não satisfazia a religiosa no governo. Sua fé está imbuída de
qualquer um deles, e, depois de sua rebelião sofrimento e perseguição, uma mágoa per-
abortada, 1,5 milhão de curdos fugiram para manente dirigida principalmente contra os
o Irã, e meio milhão, para a Turquia. sunitas, cuja falta de fé na verdadeira linha-
Em 1992, novas propostas que incluíam gem foi mais maculada pelos modernismos
uma assembleia curda eleita, um executivo e e imoralidades ocidentais – notadamente
uma zona (de definição pouco precisa) autô- norte-americanas –, e também contra os ju-
nomos foram aceitos pelo MDC e pela UPC, deus e bahaítas. A legitimidade da violência
mas sua cooperação não durou mais de dois é mais evidente nos xiitas do que nos sunitas
anos. A atenção e o compromisso interna- ou na maioria dos europeus.
cionais foram sendo reduzidos. Os mem-
bros da ONU não mantiveram suas con- C. Violência sectária
tribuições à ajuda e à supervisão a ser dada
pela Organização, espalharam-se doenças, A Irmandade Muçulmana, fundada no Egi-
e o assédio iraquiano aumentou juntamen- to em 1928 por Hassan al-Banna, que mor-
te com a luta entre os partidos curdos. Em reu em 1949, afirmava o que considerava
POLÍTICA MUNDIAL | 419

valores muçulmanos básicos e se opunha Egito, onde, descartados e desempregados,


particularmente à separação entre Igreja e entraram para grupos – Hamas el-Islamiya,
Estado (como esses termos eram entendidos Jihad al-Islã – violentamente hostis ao apoio
no Ocidente) e às influências estrangeiras dos Estados Unidos a Israel e ao de Mubarak
sobre o Islã. Sua principal meta era a reafir- aos Estados Unidos. Incapaz de eliminá-los,
mação do direito islâmico (a xariá) e da au- o governo egípcio prendeu, torturou ou as-
toridade máxima de seus tribunais. Hassan sassinou muitos deles e incitou o restante.
al-Banna pregava paciência, mas nem todos Os conflitos dentro do Islã se mescla-
os seus seguidores a tinham. A Irmanda- ram com a disputa árabe-israelense e as
de assassinou o primeiro-ministro egípcio respostas árabes à existência de Israel e sua
Nokrashi Pasha em 1948, foi desarticulada opressão aos palestinos: várias organizações
e dissolvida, ressurgiu no clima antibritâni- anti-israelenses recorreram à violência. Nos
co dos anos de 1950, apoiou o movimento anos de 1970, a Frente Popular para a Liber-
que levou Naguib e Nasser ao poder, mas tação da Palestina (FPLP) e seu líder, George
foi descartada por eles, tentou matar Nasser, Habash, passaram a sequestrar para chamar
sofreu milhares de mortes nas prisões, mas a atenção do mundo ao sofrimento dos pa-
se recuperou após a morte de Nasser. Sadat, lestinos. Em 1970, a FPLP sequestrou qua-
que era mais parcial em relação aos grupos tro aviões, libertou todos os passageiros e
religiosos, tentou dividi-la em alas violen- garantiu, em troca, a libertação de prisionei-
tas e não violentas, mas suas políticas pró- ros do grupo de prisões britânicas, alemãs e
-Ocidente afastaram ambas e diminuíram a suecas; destruiu um dos aviões em solo, no
lacuna entre elas. A Irmandade foi respon- Cairo, e três na Jordânia. Em 1972, simpati-
sabilizada por seu assassinato e, mais uma zantes japoneses abriram fogo no aeroporto
vez, sofreu prisões em grande escala. de Lod, em Israel, matando 25 pessoas, in-
O assassinato, em 1990, de Rifaat al- cluindo três dos seus. Em 1973, a força aérea
-Mahgoub, presidente do Parlamento Egíp- israelense forçou um avião de passageiros a
cio, provocou uma operação semelhante aterrissar em Israel acreditando equivocada-
contra os revolucionários religiosos. Movi- mente que Habash estava a bordo. Em 1976,
mentos da mesma natureza, por exemplo, a FPLP sequestrou um avião de passagei-
na Síria, no Sudão, na Argélia e no Paquis- ros francês com muitos judeus a bordo e o
tão, construíram partidos dentro do Estado forçou a aterrissar em Entebe, Uganda, em
com o objetivo de subordinar a Constituição uma tentativa de garantir a libertação de pa-
a práticas, preceitos e códigos muçulmanos lestinos em prisões israelenses; depois dos
fundamentais. Embora banida da política passageiros não israelenses serem libertados
partidária no Egito, a Irmandade estava ati- pelos sequestradores, os 100 restantes foram
va em órgãos profissionais de classe média resgatados por um ataque israelense ousado
e atraía um novo tipo de seguidor entre as e eficiente ao aeroporto. Na década de 1980,
vítimas sociais e econômicas da urbanização os protestos violentos não diminuíram, mas
acelerada. Durante a Guerra do Golfo, os assumiram uma variedade de formas, acres-
movimentos islâmicos passaram a constituir centando-se à tomada de reféns o assassina-
um campo de recrutamento para os norte- to ou o suicídio. Em 1983, xiitas pró-irania-
-americanos, ansiosos por encontrar e finan- nos atacaram prédios públicos e embaixadas
ciar guerrilhas antirrussas (por exemplo) no dos Estados Unidos e da França em Beirute;
Afeganistão, mas, quando os russos se re- entre as 21 pessoas presas pelos atentados
tiraram desse país, os recrutas voltaram ao estavam três libaneses. Em resposta, foram
420 | PETER CALVOCORESSI

tomados reféns – a maioria norte-ameri- um avião de passageiros dos Estados Uni-


canos ou franceses – em Beirute, um avião dos foi destruído sobre a cidade escocesa de
kuwaitiano foi sequestrado em Teerã, e dois Lockerbie, e todos os seus passageiros e tri-
passageiros foram assassinados. Em 1985, pulantes morreram. Em 1989, Israel seques-
alguns palestinos sequestaram o navio de trou no Líbano o xeque Abdul Karim Obeid
cruzeiro Achille Lauro para tirar 50 pales- em outra operação de retaliação. Nos anos
tinos de prisões israelenses, um passageiro, de 1990, quem esteve mais em evidência foi
norte-americano, foi morto. Os sequestra- o Hamas, um pequeno grupo de palestinos
dores se entregaram em Porto Said, onde que, como o ainda menor Jihad Islâmica,
foram colocados em um avião egípcio rumo recorreu à violência para expressar sua ira
à Tunísia, que foi forçado pela Força Aérea contra o Estado de Israel. Suas origens da-
dos Estados Unidos a aterrissar na Sicília. O tam dos anos anteriores à guerra. Depois da
governo italiano se recusou a entregá-los e Segunda Guerra Mundial, e principalmente
eles escaparam para a Iugoslávia. Um grupo depois da guerra de 1967, desenvolveu es-
liderado por Sabri el-Banna (Abu Nidal) pa- colas, mesquitas e hospitais, bem como uma
recia combinar indignação inflamada com ala militar dedicada à destruição de Israel.
uma tentativa de aproveitar a oportunidade. O grupo foi revigorado por volta de 1978
Além da tentativa de assassinato, em 1982, pelo xeque Ahmed Yassim, que mais tarde
do embaixador israelense em Londres (pela foi sequestrado e preso em Israel. Atraiu
qual Israel tentou responsabilizar a OLP e apoio amplo, mas em geral passivo, entre os
Arafat), dos ataques a passageiros que iam palestinos em Gaza e na Cisjordânia, que es-
a Israel nos aeroportos de Roma e Viena, e tavam perdendo a confiança na OLP e não
do sequestro de um avião egípcio, que foi acreditavam nas negociações de Arafat com
forçado a pousar em Malta, onde uma tenta- Israel. A mão dura dos governos de Rabin
tiva egípcia de recuperá-lo causou 57 mor- e Netanyahu fortaleceu o Hamas e permitiu
tes, Abu Nidal parecia disposto a trabalhar que o grupo posasse como uma alternativa
para governos variados do Oriente Médio importante à OLP na luta por um Estado
(incluindo, talvez, o de Israel). palestino independente. Depois do massa-
Os israelenses, por sua vez, intercepta- cre de 29 muçulmanos que prestavam culto
ram um avião e o forçaram a descer, na ex- em uma mesquita em Hebron em 1994, sob
pectativa equivocada de encontrar líderes os olhares da política israelense, o Hamas
palestinos e fazê-los reféns. abandonou sua política declarada de matar
Em 1986, os Estados Unidos, com ajuda soldados, mas poupar civis. Diferentemente
britânica, bombardearam a Líbia sob a alega- do Hezbollah no Líbano, o Hamas não era
ção de que o assassino de um soldado norte- xiita nem, aparentemente, financiado pelo
-americano em um clube noturno de Berlim Irã. A militância muçulmana se tornou cada
tinha sido um líbio, tentando justificar esse vez mais antiamericana, bem como anti-
bombardeio como um ato de legítima defe- -israelense nas últimas décadas do século,
sa. Em 1988, o Hezbollah, no Líbano, captu- notadamente depois da Guerra do Golfo de
rou e enforcou um coronel norte-americano 1991, quando os Estados Unidos negocia-
que servia à ONU; um avião kuwaitiano foi ram o direito de estacionar tropas na Arábia
desviado por sequestradores para Mashad, Saudita durante a guerra, mas não as reti-
no Irã, e dali para Beirute, onde não recebeu raram depois. Os sauditas, principalmente
permissão para pousar e foi para o Chipre, os adversários do regime, alegavam que essa
onde seus passageiros foram libertados; e presença permanente dos Estados Unidos
POLÍTICA MUNDIAL | 421

era uma quebra da independência de seu pectos mais problemáticos de uma revolu-
país e, para os muçulmanos mais puritanos, ção cultural de longa duração. De um ponto
uma afronta à decência. A base norte-ame- de vista, indicava uma reação conservado-
ricana em Dhahran foi atacada em 1996; e, ra contra ideias políticas e sociais variadas
dois anos depois, as embaixadas dos Estados que chegavam há séculos do Ocidente ao
Unidos em Nairobi e Dar-es-Salaam, assim Islã, e criava movimentos opostos, por parte
como prédios próximos, foram atacadas, e dos establishments tradicionais. Para quem
pessoas foram mortas em atentados aparen- olha de fora, esses movimentos, ativos não
temente financiados pelos sauditas. apenas no Oriente Médio mas também des-
Nesses anos, o termo fundamentalis- de a África Ocidental até o Sudeste Asiáti-
mo – tomado emprestado da cristandade co, eram inimigos vingativos do Ocidente
– passou a ser usado como uma das mais e eram condenados tanto por serem mu-
nocivas simplificações atuais. Um funda- çulmanos quanto por serem violentos. A
mentalista é alguém que acredita na totali- maioria dos fundamentalistas muçulmanos,
dade daquilo que lhe dizem para acreditar. como os fundamentalistas cristãos ou ju-
O Islã, mais profundamente do que qual- daicos, evitava a violência física. O espec-
quer outra religião, tinha influência sobre tro de uma conspiração islâmica geral para
os corações e mentes dos que a ele aderiam, subverter e aterrorizar as forças da lei e da
e estes eram atraídos a partidos dispostos a virtude era tão malicioso e ridículo quanto
usar violência e justificá-la, não importan- a invenção de uma conspiração sionista de
do se a causa fosse religiosa, social ou um igual malevolência. Porém, a supressão, por
composto das duas. parte de déspotas, de oposições mais cons-
O fundamentalismo muçulmano foi titucionais permitiu que grupos religiosos
usado não apenas para descrever esses violentos monopolizassem o papel da opo-
vários grupos, às vezes, perigosos, mas sição. Com destaque entre estes estava a Al-
também para sugerir que o Islã era essen- -Qaeda, a criação de Osama bin Laden, que
cialmente violento e que os partidos que estabeleceu campos de treinamento no Afe-
reivindicavam uma especial lealdade a ele ganistão, movido por fervor religioso e ódio
eram parte de uma força única, unificada intenso aos Estados Unidos e seus parceiros,
e ameaçadora; uma expressão abrangente, retratados como humilhadores de muçul-
cunhada no Ocidente, que enfatizava os as- manos e uma espécie de mal.
422 | PETER CALVOCORESSI

Leituras relacionadas: Mahfouz, Naguib: Palace Walk (1990)


Ruthven, Malise: Islam in the World (1984)
Parte IV Vital, David: The Future of the Jews (1990)
Hourani, Albert: Arabic Thought in the Liberal Age Wasserstein, Bernard: Divided Jerusalem
1798-1939 (1962) (2001)
Kinzer, Stephen: All the Shah’s Men – An American Yergin, Daniel: The Prize – The Epic Quest for Oil,
Coup and the Roots of Middle East Terror (2003) Money and Power (1991)
PARTE
V
SUL DA ÁSIA
O subcontinente
indiano 16
O meio século que antecedeu a saída dos cial da Índia era a derrota do Raj Britânico,
britânicos da Índia testemunhou uma série também havia outros problemas e outras
de reformas desenvolvidas pelos britâni- potências a enfrentar. Ainda que muitos
cos e que levaram lógica e explicitamente indianos avaliassem mal a natureza desses
à independência indiana; ao crescimento problemas, enganando-se com a crença de
das divisões dentro do país, resultando na que sua causa era a presença dos britânicos
divisão de 1947; e a uma consciência cada e sua cura seria a saída deles, esse equívoco
vez maior da política mundial, com a qual era uma questão de má interpretação e não
os novos governantes tinham muito pouca de crença cega. Dentro da Índia, o naciona-
habilidade. No século XIX, a Índia, embora lismo, que era um dos subprodutos do res-
menos fechada ao mundo exterior do que a surgimento intelectual hindu e muçulmano
China ou o Japão, tinha uma visão de mun- do século XIX e assumiu forma visível na
do que era obscurecida pela presença britâ- fundação do Congresso Nacional Indiano
nica, e o principal episódio do século foi a em 1885, era inevitavelmente antibritânico.
Revolta ou Motim dos Sipaios de uma par- Assim como a maioria dos movimentos na-
te dos súditos britânicos contra o governo cionalistas, dividiu-se em facções mais ou
da Grã-Bretanha. Essa visão estava mudan- menos militantes (lideradas por B. G. Ti-
do no final do século. O avanço russo em lak, por um lado, e G. K. Gokhale e depois
direção ao Afeganistão, a preocupação de M. K. Gandhi, por outro), mas, diferente-
Curzon com a fronteira noroeste e o Tibete, mente de outros, também se dividiu de for-
a extensão do poder indiano-britânico ao ma mais duradoura antes do dia da vitória.
Oriente Médio, a aliança da Grã-Bretanha Com a aproximação da independência, a
com o Japão em 1902, seguida pela vitória capacidade de hindus e muçulmanos vi-
deste sobre a Rússia em 1905, revoluções verem lado a lado diminuiu até se revelar
na Turquia, no Irã e na China – todos es- impossível manter um único Estado suces-
ses eventos fizeram com que os olhares sor do raj britânico, e, na independência,
da Índia, ou parte deles, se voltassem para as duas grandes comunidades religiosas te-
fora. Embora, em 1947, Jawaharlal Nehru miam e odiavam uma à outra tanto quanto
fosse o único membro de seu gabinete que aos britânicos.
poderia afirmar ter conhecimento de polí- A Grã-Bretanha há muito vislumbrara
tica externa, seus colegas e muitos outros a entrega do império na Índia, mas sem for-
entre seus compatriotas cresceram com mular um calendário, e a Segunda Guerra
o sentimento de que, se o problema espe- Mundial o impôs. No início do conflito, o
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vice-rei cometeu o erro inepto de declarar A primeira divisão


guerra em nome da Índia, como tinha di-
reito de fazer, sem consultar um único in- O governo britânico rejeitou a recomen-
diano sequer. Os ministros do Congresso, dação, substituiu Wavell por lorde Mount-
no cargo desde a Constituição de 1935, re- batten e anunciou que a Grã-Bretanha iria
nunciaram. Em 1942, sir Stafford Cripps foi embora em junho de 1948, propondo não
enviado pelo gabinete britânico à Índia para resolver o dilema por nenhum dos métodos
oferecer status de domínio com direito de recomendados por Wavell, e sim dividir a
secessão do império, mas o exercício des- Índia e dar o poder a dois governos separa-
sa opção e todos os outros avanços inter- dos. Os 562 Estados governados por prínci-
nos deveriam ser postergados até o final da pes, que não formavam parte da Índia bri-
guerra. O Congresso, que pode ter avaliado tânica, seriam persuadidos a formar parte
mal as intenções da Grã-Bretanha e, cer- dos dois novos Estados. Sua relação com a
tamente – se os números do recrutamento Coroa Britânica era regulada pela doutrina
significam alguma coisa –, julgou mal o da supremacia. A Grã-Bretanha não pro-
sentimento indiano, decidiu não participar pôs transferir seus direitos de soberania à
da guerra e usá-la para realizar uma cam- nova Índia ou ao Paquistão, mas declarou
panha “Quit India” (Saiam da Índia!) con- que essa soberania perderia a validade, com
tra os britânicos. Em 1944, a Grã-Bretanha, o resultado de que cada governante estaria
agora com certeza de vitória em todos os livre, segundo a lei, para integrar-se à Índia
teatros de guerra, indicou um novo vice-rei, ou ao Paquistão ou a nenhum deles. Juna-
lorde Wavell, e libertou os líderes indianos gadh fez a escolha impraticável de juntar-se
presos. Depois da eleição geral de 1945, o ao Paquistão, com o qual não tinha frontei-
governo trabalhista enviou três ministros à ras, teve de reconhecer seu erro, foi embora
Índia para tentar encontrar um acordo en- para o Paquistão e deixou seu Estado para
tre o Congresso e a Liga Muçulmana como que se tornasse parte da Índia. Três Estados
um elemento preliminar à independência, cogitavam a independência: Travancore,
mas as relações entre essas organizações Hyderabad e Caxemira. Em pouco tempo,
tinham se deteriorado durante a guerra (o ficou claro que as ambições de Travancore
inverso da experiência da Primeira Guerra eram ilusórias: Hyderabad teve de ser blo-
Mundial), e a tentativa britânica fracassou. queado inicialmente, e depois (em 1949)
A Liga e seu líder, Muhammad Ali Jinnah, invadido, e ambos se tornaram parte da Ín-
estavam convencidos de que a Grã-Breta- dia. Da Caxemira trataremos mais tarde. As
nha era parcial e favorecia o Congresso. Em táticas de choque da Grã-Bretanha foram
agosto de 1946, Jinnah fundou a Direct Ac- intensificadas quando Mountbatten relatou
tion by the League para garantir um Estado que, até mesmo junho de 1948, era tarde
soberano para os muçulmanos, e o inverno demais para a transferência de poder, con-
de 1946-1947 foi marcado por violentas cluindo que a violência se tornaria incon-
rebeliões nas aldeias. No início de 1947, o trolável antes disso, e o gabinete britânico
vice-rei chegou à conclusão de que não se aceitou sua opinião.
poderia constituir qualquer autoridade Ao antecipar a data para agosto de 1947,
indiana central e, assim, aconselhou o go- deixou-se pouco tempo para acertar a gran-
verno britânico a manter o poder por pelo de questão: as linhas de divisão entre a Ín-
menos uma década ou transferi-lo, frag- dia e os dois segmentos amplamente sepa-
mentado, às diversas províncias. rados do Paquistão. Criou-se uma comissão
POLÍTICA MUNDIAL | 427

de fronteiras que consistia em dois juízes maioria igualmente grande no parlamento


hindus e dois muçulmanos, com sir Cyril federal, apesar de divisões internas e críticas
Radcliffe como presidente. Em pontos mais cada vez maiores da esquerda e da direita.
controversos, as duas vozes hindus e as duas Seu principal adversário, o Partido Comu-
muçulmanas se anulavam, e Radcliffe teve nista, obteve 3,3% dos votos em 1952 e cerca
de tomar, em dois meses, uma série de deci- de 10% na eleição seguinte, mas era um voto
sões detalhadas sobre localidades que ele concentrado em algumas áreas. Em Kerala,
não conhecia e não tinha tempo para visitar. os comunistas conquistaram o poder com o
As novas fronteiras não serviam para con- voto da minoria e formaram um governo,
ter as pessoas que estavam dentro delas. O mas ele foi demitido pelo governo central
medo levou milhões de pessoas a cruzá-las, em 1959, e uma aliança anticomunista ven-
e, durante esse êxodo de massas, milhões fo- ceu as eleições em 1960, apesar do aumento
ram massacrados. Os siques, saindo de suas no voto comunista local para 42,5%. O con-
casas no Punjab, onde não se sentiam mais flito sino-soviético gerou uma divisão no
seguros, atacavam muçulmanos que se des- Partido, com seu secretário A. K. Ghosh ata-
locavam para o oeste pela mesma razão; os cando a China em 1961, e a invasão da Índia
muçulmanos retaliavam; as atrocidades se pela China, em 1962, desagregou mais ainda
multiplicaram em uma vasta área que chega- o Partido como um todo e sua ala chinesa
va à própria Delhi. Dois milhões de homens, em particular.
mulheres e crianças podem ter morrido, 10 Porém, a vida política indiana foi me-
a 15 milhões sobreviveram apenas como re- nos prejudicada por conflitos partidários
fugiados, e esse terrível festival de violência do que por outras forças desagregadoras,
foi coroado, em janeiro de 1948, pelo assas- linguísticas e religiosas. As cerca de 60 lín-
sinato do próprio Gandhi, apóstolo hindu da guas da Índia incluíam muitos derivados do
não violência, morto por um fanático hindu. sânscrito, predominante no norte; um gru-
No novo Estado da Índia, dois homens po de línguas não sânscritas, incluindo qua-
assumiram o controle – em primeiro lugar, tro principais, no sul; e um tipo de língua
Jawaharlal Nehru, e, com ele, Vallabhai Pa- franca, o urdu/hindustâni. Algumas dessas
tel. Nehru se tornou primeiro-ministro e línguas geraram uma devoção tão fervorosa
ficou no cargo até morrer, em 1964. Patel, que provocaram derramamento de sangue.
sobre quem recaiu a tarefa de consolidar a O hindi, um dos derivados do sânscrito
Federação Indiana das ex-províncias bri- ao norte, tinha entusiastas que queriam fa-
tânicas e os principados, morreu prematu- zer dele a única língua oficial do país, uma
ramente em 1950. O Partido do Congresso ambição que sofria a oposição, não apenas
Nacional Indiano escolheu Purshottandas daqueles que reconheciam o valor do in-
Tandom para ser seu presidente, mas, em glês, mas também dos bengalis orgulhosos
1951, Nehru fez com que Tandom renun- de seu próprio idioma e de sulistas que se
ciasse ao se demitir do Comitê de Traba- sentiam ofendidos por qualquer sugestão
lho, que era a base de forças do Partido do de denegrir o tâmil, o malayalam, o kanada
Congresso. Nehru continuou como presi- ou o telugu. Ao sul, a questão linguística se
dente do Partido até 1955, quando entregou tornou um ingrediente para um movimento
o poder a um subordinado de confiança. separatista tâmil, e, em toda a Índia, cresceu
Nas eleições gerais de 1952, 1957 e 1962, o a pressão para redesenhar o mapa com base
Partido do Congresso recebeu uma parcela nas questões linguísticas. Uma nova pro-
um pouco maior de votos (45-48%) e uma víncia, Andhra, foi criada a partir disso em
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1953, e, em Bombaim, uma grave crise entre que monarquias na Commonwealth. A in-
falantes de marathi (que eram maioria na ci- dependência de cada membro da família
dade) e de gujarati forçou o governo central britânica de nações tinha sido aceita du-
a optar entre um Estado declaradamente rante uma geração, mas nenhum deles, até
bilíngue ou a promoção da cidade de Bom- então, aplicara uma política externa sólida
baim à condição de Estado. O governo es- que se chocasse com a da Grã-Bretanha.
colheu a primeira alternativa e desagradou Isso foi o que Nehru se propôs a fazer sem
a todos, até que, em 1960, os falantes de ma- prejudicar suas relações com Londres, e
rathi conseguiram insistir em uma divisão teve bastante êxito. Embora a Grã-Bretanha
e na transferência da cidade de Bombaim fosse um protagonista dedicado da Guerra
para o Estado de Maharashtra. Fria, Nehru sustentava que o conflito não
No Punjab, onde a religião era uma era problema da Índia e que os dois campos
ameaça maior à unidade do que o idioma, os estavam se comportando com insensatez
siques faziam campanha por um Estado si- igualmente deplorável. Tendo participado
que de fala punjabi, que teria implicado uma do fim da Guerra da Coreia, ele formulou
divisão do Punjab. Apesar de jejuns por par- uma postura de neutralismo na esperança
te de seu líder, o mestre Tara Singh, eles não de manter potências de considerável im-
tiveram êxito. Tampouco foram pacificados. portância fora da Guerra Fria, de limitar
Os nagas e os mizos representavam dilemas seus efeitos maléficos e de abrir caminho
semelhantes. para seu encerramento mais cedo ou mais
Nas questões externas, Nehru estava tarde. Em 1995, ele visitou Moscou, e a Ín-
determinado a permanecer na Comunida- dia recebeu a retribuição de uma visita de
de Britânica (principalmente se o Paquistão Bulganin e Khruschev (que cometeu o erro
permanecesse) ao mesmo tempo em que de fazer os discursos antibritânicos que os
adotava uma Constituição republicana e próprios indianos eram capazes de fazer,
conduzia uma política externa que poderia mas que não aceitavam em outros). No ano
ser, não apenas independente da Grã-Bre- seguinte, o ataque anglo-francês ao Egito e a
tanha, mas contrária à ela. Ele conseguiu intervenção russa na Hungria confirmaram
convencer os demais primeiros-ministros as crenças indianas na perversidade de to-
da Comunidade (a British Commonwealth das as grandes potências, embora o próprio
passou significativamente a se chamar ape- Nehru fosse menos crítico em relação a esse
nas Commonwealth nesse período) de que episódio húngaro do que ao de Suez (talvez
a Índia poderia continuar como membro, em função da implicação do segundo para a
mesmo tendo se tornado uma república. solidariedade na Commonwealth).
Sem esse passo revolucionário, a crescente A determinação de Nehru de que a Ásia
Commonwealth pós-guerra, com suas for- deveria dar um exemplo de sanidade ao res-
tes tendências republicanas, dificilmente tante do mundo fez com que ele promovesse
poderia ter se constituído. Em 1949, uma o mito da amizade sino-indiana com uma
conferência aceitou um plano indiano de tenacidade irreal que, quando a China ata-
declarar a soberana britânica como chefe cou a Índia em 1962, fragilizou em muito o
da Commonwealth e deixar que cada mem- seu prestígio.
bro adotasse uma Constituição monárqui- Uma fonte de recusa para que muitos
ca ou republicana livre. A própria Índia se indianos prestassem atenção suficiente à
tornou uma república no início de 1950, e, ameaça chinesa era o conflito com o Paquis-
em poucos anos, havia mais repúblicas do tão, que consumia todos os recursos. Mesmo
POLÍTICA MUNDIAL | 429

as afirmações da Índia contrárias às potên- dicação era o começo do movimento em di-


cias coloniais ocidentais, como França e Por- reção ao governo militar. No ano seguinte,
tugal, eram emocionalmente triviais compa- o general Mirza se tornou governador-geral
radas com a animosidade com o Paquistão. depois da morte de Ghulam Muhammad e
(Essas afirmações eram assumidamente pe- indicou Chaudri Muhammad Ali, um há-
quenas em termos de extensão territorial. A bil e honrado funcionário público, para ser
França cedeu Chandernagore – que, na prá- primeiro-ministro, mas ele renunciou em
tica, era parte de Calcutá – em 1951, e suas 1956 e foi sucedido por Firoz Khan Noon,
possessões restantes – Pondicherry, Karikal, um distinto veterano. Em 1956, finalmen-
Mahé e Yanan – em 1954. Portugal adotou te se adotava uma Constituição, mas, em
na Índia, como na África, o mecanismo de 1958, a democracia parlamentar chegou ao
conversão de suas colônias em províncias do fim depois que o vice-presidente do Parla-
Portugal metropolitano, mas essa metamor- mento do Paquistão Oriental foi atingido na
fose nominal rendeu pouco e, em 1961, a Ín- cabeça por uma tábua durante um debate, e
dia tomou os territórios portugueses – Goa, morreu. A lei marcial foi proclamada com o
Damão e Diu – com uma demonstração general Ayub Khan como administrador e,
de força.) Ao contrário da Índia, o Paquis- depois, como sucessor de Mirza na chefia de
tão perdeu sua figura paterna cedo. Jinnah, Estado. Aboliram-se os partidos políticos e
que havia se tornado governador-geral na uma nova Constituição foi introduzida em
independência, morreu em 1948. Liaqat 1962, com base no sistema presidencial dos
Ali Khan, o primeiro ocupante do cargo de Estados Unidos, em vez do parlamentarista
primeiro-ministro do Paquistão, foi assassi- da Grã-Bretanha.
nado três anos mais tarde. Por vários anos, o A instabilidade do Paquistão deu à Índia
país desperdiçou grande parte de sua tênue a desculpa para justificar os medos de seus
substância em disputas constitucionais inú- vizinhos com base na afirmação de que não
teis, enquanto figuras públicas se sucediam se poderia prever o que um governo sob tal
em cargos elevados, a corrupção se tornou pressão faria a seguir. Quando o governo
escandalosa e o exército refletia sobre até instável foi sucedido por um governo mili-
onde deixaria que continuasse. Khwaja Na- tar, os temores da Índia foram simplesmen-
zimuddin sucedeu a Jinnah como governa- te transpostos para um nível diferente, e se
dor-geral e depois sucedeu a Liaqat Ali Khan alegava que uma ditadura eficiente era ainda
como primeiro-ministro em 1951; em 1953, mais perigosa do que um regime civil inefi-
seu sucessor no cargo de governador-geral, ciente. A má vontade entre os dois países es-
Ghulam Muhammad, o demitiu e instalou tava concentrada na Caxemira, mas essa não
em seu lugar Muhammad Ali Bogra. era a única causa. Os massacres de 1947 re-
Essas mudanças, que envolveram ten- presentaram um péssimo começo para uma
tativas de preservar um equilíbrio entre o relação que estava quase fadada ao fracasso,
Paquistão Oriental e o Ocidental, foram já que surgiu da incapacidade ou recusa das
acompanhadas por um colapso gradual da duas comunidades da Índia de conviverem
autoridade e por revoltas. Em 1954, a Liga bem. A tendência, na Índia, a tratar a divi-
Muçulmana foi gravemente derrotada nas são como uma aberração efêmera era uma
eleições provinciais do Paquistão Oriental, fonte adicional de irritação para o Paquistão.
e o governo central, humilhado e ameaçado Também houve disputas pela distribuição de
por esse revés, enviou o general Iskander águas do Indo e seus afluentes e pelas pro-
Mirza – como governador militar. Essa in- priedades dos que fugiram de um país para
430 | PETER CALVOCORESSI

o outro sem conseguir vender as terras que Com a aproximação da independência,


deixaram para trás (cerca de 17 milhões de em 1947, o marajá tergiversava, em par-
pessoas). Além disso, a divisão em duas par- te porque estava cogitando a ideia de uma
tes daquilo que havia sido uma única eco- Caxemira independente e, em parte, porque
nomia produziu tensões econômicas que seus interesses iam em outra direção que
evoluíram para uma guerra comercial e che- não a de um Estado. O pequeno território
garam a um pico de animosidade quando a de Poonch pretendia separar-se e foi ime-
Índia desvalorizou sua moeda, em 1949, jun- diatamente invadido pelo Paquistão. O ma-
to com a Grã-Bretanha, mas o Paquistão se rajá apelou à Índia, que se recusava a ajudá-
recusou a fazer a mesma coisa até 1955. O -lo, a menos que ele se juntasse formalmente
pior de tudo, todavia, era a Caxemira. ao país, o que ele fez a tempo de possibilitar
O Estado da Caxemira consistia na que tropas indianas entrassem na Caxemira
própria mais Jammu, uma camada supe- para impedir a captura de sua capital pelos
rior que ia do noroeste ao sudeste e incluía invasores. A Índia remeteu a situação ao
Gilgit, Baltistão e Ladakh, e uma faixa oeste Conselho de Segurança da ONU e o Paquis-
que incluía o pequeno território de Poon- tão enviou unidades regulares do exército à
ch. A Caxemira sofreu séculos de opressão Caxemira, que recuperaram parte do terri-
por parte de vários senhores de terras tirâ- tório ocupado pelo exército indiano.
nicos. Esteve sob domínio afegão quando Os indianos afastaram e, em 1949, de-
foi conquistada pelo príncipe sique Ranjit puseram o marajá, e Nehru fez a primeira
Singh em 1819. O mesmo príncipe, pouco de uma série de promessas de realizar um
tempo depois, instalou Gulab Singh como referendo. Uma missão da ONU propôs
governante de Jammu, e Singh anexou La- um cessar-fogo, que foi implementado no
dakh e Baltistão a seu domínio. Na década primeiro dia de 1949, e um plebiscito, que
de 1840, todos esse territórios, com exce- nunca aconteceu. O cessar-fogo foi se con-
ção de Gilgit no extremo noroeste, torna- solidando em uma divisão baseada em uma
ram-se parte da Índia como resultado de linha casual. Partes da Caxemira foram in-
duas guerras entre os britânicos e os siques tegradas ao Paquistão no oeste, incluindo
pelo controle do Punjab. Os príncipes si- Poonch, Baltistão e Gilgit. O restante do
ques permaneceram no poder como mara- país, incluindo Ladakh, era governado pelo
jás da Caxemira e de Jammu, e, em 1947, os xeque Abdullah como primeiro-ministro,
britânicos estavam fazendo vista grossa ao sob autoridade nominal de um membro da
claramente insatisfatório governo do rico e casa dos príncipes como chefe de Estado, até
incompetente Hari Singh. Os súditos mu- que, em 1953, os indianos, desconfiados de
çulmanos desse marajá, quatro quintos do que o xeque Abdullah também queria uma
total, opunham-se fortemente a seu gover- Caxemira independente, colocaram-no na
no, assim como muitos na minoria hindu. prisão e o substituíram por Bakshi Ghulam
A oposição muçulmana estava dividida en- Muhammad, com o qual passaram a formu-
tre a Conferência Muçulmana da Caxemi- lar uma nova Constituição para a Caxemira
ra, à qual nenhum hindu poderia perten- como parte totalmente integrada da Federa-
cer, e uma organização maior, liderada pelo ção Indiana.
inteligente e aberto xeque muçulmano Ab- Na década de 1950, foi feita uma série
dullah, que, seguindo o exemplo do Con- de tentativas abortadas de complementar
gresso Nacional Indiano, incluía membros o cessar-fogo com um acordo político. O
de ambos os credos. almirante norte-americano Chester Ni-
POLÍTICA MUNDIAL | 431

mitz, que foi indicado para supervisionar houve incidentes em Ladakh, uma polari-
o plebiscito, nem chegou a ir à Caxemira. zação da política entre partidos pró-Índia e
Uma comissão de reconciliação da ONU pró-Paquistão, e conflitos no canto nordes-
(UNCIP) abandonou a tarefa no final de te da primeira. As fronteiras sino-indianas
1949. Um juiz australiano, sir Owen Dixon, percorrem 1.600 km, através de alguns dos
foi nomeado mediador da ONU, mas teve de territórios mais desafiadores do mundo,
anunciar o fracasso. Negociações, em 1951, desde Ladakh (onde a Caxemira passa en-
entre Nehru e Liaqat Ali Khan também fra- tre a Índia e o Tibete), passando por Nepal,
cassaram. O Dr. Frank P. Graham assumiu Sikkim e Butão, e chegando à Agência da
a tarefa de sir Owen Dixon com o mesmo Fronteira Nordeste (North-East Frontier
resultado. Depois da demissão do xeque Ab- Agency, NEFA) da Índia e Birmânia. Em
dullah em 1953, houve novas conversações 1954, no contexto de um tratado comercial
entre Nehru e Muhammad Ali, mas, mais sobre o Tibete, Índia e China proclamaram
uma vez, sem resultados. A seguir, em 1954, cinco princípios para conduzir suas ques-
quando a Constituição e o status da Caxe- tões mútuas. Esses princípios, os Panch
mira estavam sendo alterados, os Estados Shila, eram: respeito pela soberania um do
Unidos e o Paquistão entraram em um acor- outro, não agressão, não interferência nas
do que previa ajuda do primeiro ao segun- questões internas um do outro, igualdade
do. Do ponto de vista dos Estados Unidos, e benefício mútuo e coexistência pacífica.
essa era uma ação antirrussa, parte da políti- No lado de Nehru, os Panch Shila refletiam
ca norte-americana de contenção ou envol- determinados objetivos básicos de sua polí-
vimento; mas, para a Índia, era um podero- tica externa: evitar a guerra, dar ao restante
so reforço de seu principal inimigo. Nehru do mundo um exemplo de comportamento
aproveitou a ocasião para voltar atrás expli- internacional e ter um bom relacionamento
citamente em sua promessa de realizar um com a China, apesar das diferenças ideoló-
plebiscito na Caxemira. No início de 1957, gicas. A Índia protestou à China pelo uso
o Paquistão pediu ao Conselho de Seguran- da força no Tibete, mas o governo indiano
ça para que ordenasse a retirada de todas as não tinha resposta ao argumento chinês de
tropas da Caxemira, enviasse uma força da que o Tibete era parte da China, e Nehru
ONU, organizasse um plebiscito e exigis- promoveu seus objetivos de chegar a solu-
se que a Índia abandonasse a nova Consti- ções amigáveis e racionais para problemas
tuição que estava por integrar o território. correntes. O tratado comercial sino-india-
A Índia se opôs à intervenção da ONU e a no sobre o Tibete lidava com os direitos
URSS vetou a resolução. Um ano mais tarde, dos comerciantes e peregrinos, transferia
o Dr. Graham fez propostas semelhantes à à China os direitos postais e outros servi-
Índia, que as rejeitou. ços operados pela Índia, previa a retirada
de unidades militares indianas de Yatung e
Gyantse, e reconhecia a soberania chinesa
As fronteiras norte: Tibete, sobre o Tibete. Nehru e Zhou se reuniram
Caxemira e os Estados do pela primeira vez quando este voltava para
Himalaia Pequim da conferência de Genebra sobre a
Indochina e a Coreia, e Nehru foi até a ca-
Nos anos de 1950, os indianos souberam pital chinesa. Como os britânicos antes e
das atividades chinesas na fronteira norte os norte-americanos depois desse período,
da Índia. Além da subjugação do Tibete, Nehru estava interessado principalmente
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em suas relações com a China. O status do os cegava para a amplitude das atividades
Tibete e o destino dos tibetanos eram itens chinesas que implicavam uma reivindicação
em um quadro mais amplo. Os governos de 30.000 km2 de território da Índia. Mas a
de Estados Unidos e Grã-Bretanha expres- captura de uma patrulha indiana pelos chi-
savam periodicamente sua simpatia pelos neses em Ladakh trouxe à tona a questão,
tibetanos, mas ambos deram as costas ao e, em 1958, o governo indiano finalmente
Dalai Lama quando passaram a querer me- expressou surpresa e lamentou que Pequim
lhorar as relações com a China – no caso não tenha considerado necessário consultar
norte-americano, depois da visita de Nixon Delhi sobre a rodovia.
ao país, no britânico, quando Thatcher es- Em 1959, quando o descontentamento
tava tentando obter termos aceitáveis para a tibetano cresceu até se tornar uma grave re-
transferência de Hong Kong. volta antichinesa, o Dalai Lama fugiu para
No final dos anos de 1950, houve vários a Índia e Nehru escreveu confidencialmen-
incidentes que levaram a reclamações chi- te a Zhou para expressar sua preocupação.
nesas de que tropas indianas atravessavam Não recebeu resposta até seis meses depois,
para o Tibete, e indianos, de que encontrava quando os chineses responderam publi-
soldados chineses ao sul da fronteira. Essas camente reivindicando, pela primeira vez,
aberrações poderiam ser explicadas pela di- grandes áreas do território indiano. No in-
ficuldade de saber exatamente onde se está tervalo, Moscou concordou em dar ajuda
naquele país, e os indianos, em particular, financeira à Índia, e Khruschev, antes de
ansiosos por provar que a Índia e a China se dirigir aos Estados Unidos, adotou uma
poderiam coexistir pacificamente na Ásia, postura neutra em vez de pró-chinesa. A Ín-
não estavam buscando explicações mais si- dia também estava mantendo uma posição
nistras. A possibilidade de que os dois lados neutra entre a China e os Estados Unidos,
tivessem ideias radicalmente diferentes so- e se recusando a assumir a linha antiame-
bre onde estava situada a fronteira no mapa ricana. Os chineses acusavam a Índia de
era evitada nas discussões. Ainda assim, em incentivar a confusão no Tibete, e inciden-
meados dos anos de 1950, os chineses en- tes de fronteira que vinham acontecendo
traram na Aksai Chin ou Soda Plains, em por vários anos sem chamar muita atenção
Ladakh. Essa região, entre as duas cadeias causaram mortes, ganharam divulgação e
de montanhas de Kuen Lun e Karakoram, geraram animosidade. Um policial indiano
há muito era território em disputa porque foi morto em Longju, no extremo leste da
nunca se tinha chegado a um acordo sobre fronteira sino-indiana e vários indianos fo-
qual cadeia marcava a fronteira sino-india- ram mortos em um enfrentamento no Vale
na. Para os chineses, o Aksai Chin era im- de Changchenmo, cerca de metade do ca-
portante porque estava no caminho de uma minho ao longo da fronteira norte-sul entre
estrada que eles queriam construir para li- o Tibete e a Caxemira, no lado desta. Não
gar a capital tibetana à sua província de Xin- era mais possível esconder o fato de que a
jiang. Eles agora avançariam para construí- disputa não era sobre quem estava onde em
-la. Suas operações não poderiam ser muito um determinado confronto, mas sim onde
ocultadas dos indianos. É possível que a in- deveria estar a fronteira. Até 1960, Nehru se
formação sobre o que estava acontecendo recusava a discutir problemas de fronteira
não tivesse chegado ao próprio Nehru, em com a China. Em 1960-1961, representan-
função da miopia entre os indianos, cuja tes se reuniram em Pequim, mas não che-
animosidade obsessiva contra o Paquistão garam a um acordo. Nehru não pressionava
POLÍTICA MUNDIAL | 433

para que as coisas avançassem, nem pre- a Índia – Birmânia, Sri Lanka, Indonésia,
parava suas forças armadas para enfrentar Camboja, a República Árabe Unida e Gana
qualquer ataque no que estava se tornando – ofereceu-se para mediar, mas o fez em um
uma área perigosamente disputada, mas, em espírito tão neutro que muitos indianos fi-
1962, a China colocou tropas ao longo da li- caram indignados, esperando mais simpatia
nha McMahon (que a separava da Índia) e e apoio.
contornava o Butão a oeste, entrou em uma Essa tentativa de mediação não produ-
parte da Índia que era especialmente difí- ziu soluções e a crise foi se extinguindo.
cil de alcançar a partir do restante do país. A coincidência dessa guerra breve com
Nehru, que tinha admitido repetidas vezes a crise dos mísseis de Cuba incentivou espe-
que as fronteiras estavam mal definidas e culações sobre cálculos por parte dos chine-
precisavam ser discutidas, recusou-se a ini- ses e pressões internacionais mais profundas
ciar negociações enquanto os chineses não nos bastidores. Embora seja improvável que
recuassem para trás da linha. O exército in- Moscou tenha trocado Cuba por Pequim
diano no nordeste tinha sido reforçado du- como confidente, não é improvável que os
rante 1962, mas sua inteligência e serviços chineses tenham sido mantidos informados
logísticos eram ruins, e, quando os chineses pelos cubanos. Nesse caso, os chineses pode-
atacaram para valer, a Índia foi derrotada de riam ter visto, na possibilidade de guerra en-
forma humilhante. tre a URSS e os Estados Unidos, uma opor-
A ação vigorosa da China estava em de- tunidade de extrair de Delhi uma cessão de
sacordo com sua abordagem de disputas de território em Ladakh, que eles tinham ocu-
fronteira com o Paquistão e o Nepal: o país pado. Até mesmo motivos de mais peso po-
tinha proposto discussões com o primeiro deriam lhes ser imputados: infligir derrotas
e concluiu um acordo com o segundo em e perdas de grande porte à Índia, para der-
1961. Na Índia, todavia, as opiniões estavam rubar o governo de Nehru; ajudar os comu-
divididas. O próprio Nehru e seus chefes nistas indianos; atacar o planejamento eco-
militares tinham se oposto a uma política nômico da Índia. Mas, para esses desígnios
agressiva que poderia precipitar a questão grandiosos, não há evidências concretas.
da fronteira, mas havia uma visão oposta A posição de Nehru em seu próprio
que considerava o uso da força oportuno e país foi fragilizada e fortalecida ao mes-
a retaliação chinesa improvável. Se, como se mo tempo. Ele foi forçado a buscar ajuda
poderia supor, Nehru se converteu a essa vi- militar com os Estados Unidos e a Grã-
são, ele se decepcionou muito, e o enigma da -Bretanha, e seu neutralismo levou a Índia
moderação chinesa na vitória seria explica- a um grave risco – porque um neutralista,
do pela hipótese de que a China não queria talvez mais do que qualquer outro, tem de
mais do que interromper a infiltração india- estar preparado e forte –, mas ele próprio
na nas áreas em disputa (ao avançar postos parecia mais insubstituível do que nun-
policiais) e colocar o problema de fronteira ca e não corria risco de perder o cargo. O
no gelo até que a Índia estivesse preparada governo britânico esperava usar esse cho-
para negociá-lo. A China se ofereceu para que com a Índia para provocar um acordo
negociar, mas a humilhação da derrota im- com o Paquistão sobre a Caxemira, mas,
pediu Nehru de aceitar: o exército indiano uma vez que o ataque chinês foi suspenso,
perdeu 3 mil homens mortos e 4 mil captu- o choque à segurança da Índia se tornou
rados. Depois de um cessar-fogo no final do menor do que o choque a seu orgulho, de
ano, um grupo de países neutralistas como modo que o país não estava em clima para
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resolver suas diferenças com o Paquistão, as fronteiras em cursos d’água estavam situa-
cuja atitude em relação a ele durante as das no centro deles.
semanas críticas representava o contrário A disputa, um pouco ridícula, fez com
de alívio. A Índia, além do mais, acredita- que os dois países chegassem à beira do con-
va que a Grã-Bretanha estava do lado do flito, mas arrefeceu depois de uma oferta de
Paquistão. Houve conversações, mas elas mediação britânica. Em 1968, o Paquistão
não chegaram a coisa alguma, e, no final recebeu, por meio de arbitragem, um dé-
do ano, as relações entre os dois países cimo de sua reivindicação. Mais grave foi
foram inflamadas pelo roubo de um fio a prisão do xeque Abdullah. Desde sua li-
de cabelo do profeta de seu santuário em bertação, o líder da Caxemira visitou a Grã-
Hazratbal, na Caxemira. Esse incidente -Bretanha e vários países britânicos, e estava
provocou rebeliões em ambos os países e de viagem marcada para Pequim. O gover-
levou Nehru, ciente de que sua vida estava no indiano concluiu que ele estaria melhor
se aproximando do fim, a tentar resolver na prisão, e as tropas paquistanesas cruza-
o problema da Caxemira. Ele libertou o ram a linha do cessar-fogo que tinha sido
xeque Abdullah, que participou de con- estabelecida e mantida sob observação da
versações com Nehru e Ayub Khan, mas ONU desde janeiro de 1949. A força aérea
sem resultados. Em maio do 1964, Nehru do Paquistão realizou algumas operações
morreu. Ele possuía as duas qualidades bem-sucedidas, mas os ataques terrestres
inseparáveis de qualquer estadista: inte- cruciais foram realizados pelo exército in-
gridade pessoal e inteligência. Ele deu ao diano, e a Índia retaliou invadindo o pró-
novo Estado da Índia um sentido de iden- prio Paquistão. A partir dali, a luta chegou
tidade, um compromisso com a tolerância a um impasse. A China mandou um recado
religiosa e a democracia, e os alicerces de ameaçador à Índia, mas não tomou nenhu-
uma educação moderna de alta qualidade. ma atitude efetiva para apoiar o Paquistão.
Nehru foi sucedido por Lal Bahadur Shas- U Thant foi à Ásia pessoalmente e garantiu
tri. O Paquistão, convencido de que nada um cessar-fogo (não cumprido totalmente).
menos do que a força serviria, estava se A URSS se ofereceu para mediar se Shastri
preparando para a guerra, temendo que o e Ayub Khan se reunissem com Kosygin na
tempo para o êxito estivesse acabando. No capital uzbeque, Tashkent. A Grã-Bretanha
outro lado, a Índia estava preocupada com e os Estados Unidos exigiram que ambos os
as armas norte-americanas do Paquistão e lados parassem a luta, e houve pelo menos
sua abertura à China: Ayub Khan visitou sugestões de que a ajuda econômica e o for-
Pequim em 1965. Ambos os governos es- necimento de materiais militares seriam in-
tavam desconfiados e mais frágeis em seus terrompidos se isso não acontecesse.
próprios países do que antes. O Paquistão esperava obter uma vitó-
A atenção foi desviada temporariamen- ria rápida para poder negociar a partir de
te da Caxemira para um alagadiço desola- uma posição de força. Seus objetivos polí-
do e desabitado, chamado Rann de Kutch. ticos implicavam que fossem cedidas áreas
Essa área sem atrativos, coberta pela água consideráveis da Caxemira, incluindo o
durante parte do ano, era considerada pela Vale da Caxemira, de localização central,
Índia como parte do Estado de Kutch, que com ou sem plebiscito. Essas esperanças fo-
inegavelmente fazia parte do país, mas o Pa- ram frustradas pelo exército indiano, cujo
quistão afirmava que a fronteira passava no desempenho surpreendeu todos os que o
meio do Rann, segundo o princípio de que estavam julgando a partir de seus fracas-
POLÍTICA MUNDIAL | 435

sos contra os chineses, três anos antes. Os demonstrar a força de sua posição negativa
êxitos da Índia na luta eram equivalen- em relação à Caxemira.
tes à sua inflexibilidade na frente política. A China se sentia na obrigação de fa-
Tendo concordado com um cessar-fogo, o zer alguma coisa para apoiar o Paquistão
país, que permaneceu ocupando uma fatia e havia escolhido fazer o mínimo. A URSS
do território paquistanês, não demonstrou estava constrangida por um possível ressur-
mais inclinação a um acordo político do gimento do conflito sino-indiano e por ter
que tinha depois de 1949. À parte os sen- de tomar partido entre Paquistão e Índia.
timentos, a Índia tinha duas bases substan- Esta, intrinsecamente o mais importante
ciais para sua recusa contínua a estabelecer dos dois países, ainda que fosse pelo tama-
tratados com o Paquistão. A primeira era nho, foi considerada pela URSS como um
estratégica: a única estrada em condições auxiliar útil no conflito sino-russo, estava
de uso para que o exército indiano chegasse recebendo ajuda russa e vinha defendendo
a Ladakh passava pelo Vale, e abandoná-lo a reivindicação dos russos (rejeitada pela
limitaria a Índia em qualquer enfrentamen- China) de ser um país asiático e com direito
to com os chineses em Ladakh. Uma estra- a participar das conferências afro-asiáticas.
da alternativa circundando o Vale poderia Sendo assim, a URSS tinha razões fortes
ser construída, mas só com custos con- para não ofender a Índia, mas também
sideráveis e ao longo de alguns anos. Em queria ter boas relações com o Paquistão.
segundo lugar, os indianos tinham verda- Não lhe agradava a tendência recente deste
deira aversão a um acordo em bases religio- de buscar ajuda e conforto em Pequim, de
sas. Um plebiscito na Caxemira significava cujas bajulações pouco animadas o Paquis-
contar muçulmanos e hindus e determinar tão deveria ser libertado, na visão de Mos-
o futuro político de um território em fun- cou. Além disso, a Guerra da Caxemira fez
ção da religião da maioria de seus habitan- com que o Paquistão perdesse seu encanto
tes. A Índia (ao contrário do Paquistão) era pelos Estados Unidos, pois tinha aceitado
um Estado secular, com um compromisso a SEATO e o sistema geral de alianças de
firme com a política não confessional, e Washington, mas, quando veio o confronto
não poderia aceitar qualquer procedimen- na Caxemira, os norte-americanos não lhe
to na Caxemira que também fosse aceitá- deram o apoio que pensava ter comprado
vel ao Paquistão sem trair esse princípio e e pago. Consequentemente, havia pelo me-
também – uma questão de urgência prática nos uma possibilidade de separar o Paquis-
– colocar em risco os 100 milhões de mu- tão do sistema norte-americano, bem como
çulmanos na Índia, cujas propriedades e vi- de seu flerte com a China. Mais do que isso,
das poderiam muito bem ser ameaçadas se uma decepção semelhante a dos turcos, a
fossem considerados como adeptos do Islã quem os Estados Unidos haviam impedi-
em vez de cidadãos indianos. do de invadir o Chipre e a eterna fluidez da
A guerra breve na Caxemira possibili- política iraniana, onde também o xá estaria
tou que a Índia restabelecesse seu prestígio feliz com um amigo que não tivesse com-
militar e tivesse uma pequena vitória diplo- promisso com os árabes, dava a Moscou a
mática contra a frágil intervenção dos chi- perspectiva excitante de dissolver o Bloco
neses. A Índia não tinha obrigação de ceder Norte. Mas, como a diplomacia russa no
o que quer que fosse ao Paquistão, e esse Paquistão não poderia perder de vista os
não conseguiu garantir seus objetivos e deu interesses de seu país na Índia, era essen-
a seu vizinho maior uma oportunidade de cial para Moscou reduzir as animosidades
436 | PETER CALVOCORESSI

indo-paquistanesas ao mínimo. A reunião e assim conseguiu conquistar para si e para


de Tashkent, que aconteceu no início de seu país uma posição que, mesmo nem sem-
1966, pretendia apresentar a URSS no papel pre popular com grandes e nem tão gran-
de pacificadora e limpar os complexos ca- des, ainda assim era usada de bom grado
nais da diplomacia russa na Ásia. A reunião pelos primeiros em ocasiões como o fim da
conseguiu conter a guerra que se aproxima- Guerra da Coreia e o acordo da Indochina
va e deu um grande impulso à diplomacia de 1954, quando os indianos foram aceitos
russa, mas não gerou nenhuma resposta como presidentes ou mediadores impar-
para o problema da Caxemira. ciais. Mas o distanciamento de Nehru e sua
A posição britânica durante a Guerra recusa em deixar que sua política de não ali-
da Caxemira era a de um amigo que é tão nhamento fosse prejudicada por vendas de
imparcial que acaba sendo inútil a ambos armamentos e alianças só eram compatíveis
os lados e no qual nenhum confia. Índia e com as demandas principais da própria Ín-
Paquistão acreditavam que a Grã-Bretanha dia se as relações do país com seus vizinhos
estava comprometida com o outro lado, fossem boas – e não era esse o caso. Os dois
sob um manto de objetividade virtuosa. Na vizinhos mais poderosos da Índia eram hos-
Índia, essa posição foi piorada quando Ha- tis: a China e o Paquistão reivindicavam ter-
rold Wilson criticou a invasão do Paquistão ritório sob controle indiano, e os ataques de
sem ter anteriormente condenado o ato de um e, depois, de outro forçaram-na a pensar
agressão deste. (Embora o Paquistão tivesse se uma política de não alinhamento entre os
atacado na Caxemira e não em outras partes Estados Unidos e a URSS não era, no míni-
da Índia, veio à tona uma leve incursão em mo, irrelevante, e talvez um obstáculo à de-
outro território indiano por forças paquista- fesa de suas fronteiras no Himalaia e à ma-
nesas.) nutenção da Caxemira. A Índia conseguiria
Na própria Índia, a guerra na Caxemira, ser não alinhada com segurança? Seria pos-
tendo acontecido no ano seguinte à morte sível, como acreditava Nehru, estar mais
de Nehru, intensificou o debate sobre sua segura não alinhada do que dependente de
política externa. A questão central na polí- uma grande potência e forçada à hostilidade
tica externa de um país é sua própria segu- com outra? Talvez o não alinhamento conti-
rança, na forma de forças de defesa nacional nuasse sendo a atitude mais sábia, mas, nes-
e alianças estrangeiras. A fragilidade da po- se caso, a Índia não deveria se tornar uma
lítica exterior da Índia na época de Nehru potência nuclear, além de neutra?
residia no fato de não valorizar essas preo- A sucessora de Nehru – depois que
cupações tradicionais e dar mais atenção ao Shastri morreu subitamente no final da
exercício de influência sobre os conflitos en- Conferência de Tashkent – foi sua filha Indi-
tre grandes potências que afetavam a visão ra Gandhi, em cujo governo a Índia entrou
de Nehru, mas não afetavam diretamente a em uma fase em que os conflitos internos
independência nem a integridade do país. cada vez mais ofuscavam o papel mundial
Para cumprir esse papel nos assuntos que Nehru personalizou. As contradições
mundiais, a Índia precisava de prestígio ex- dentro do complexo Partido do Congres-
cepcional (para atrair a atenção dos grandes so levaram a divisões que impediram uma
e obter seguidores entre os nem tão grandes, reforma dos padrões políticos no país. De-
sem os quais ela seria de pouca importân- pois das eleições de 1967, várias províncias
cia) e de um distanciamento excepcional. foram governadas por coalizões instáveis
Nehru proporcionava ambos pessoalmente e, um ano depois, cinco delas tinham sido
POLÍTICA MUNDIAL | 437

colocadas sob controle da presidência. O lo, e o fato desconfortável de que Sikkim,


governo central enfrentava ameaças à lei e à governado por uma minoria de origem
ordem que vinham de greves, dos estudan- tibetana, tinha sido praticamente parte do
tes e da permanente incapacidade de chegar Tibete no século XVIII.
a um acordo com os insurgentes nagas e mi- Entre os países do Himalaia, o maior e
zos no nordeste ou de silenciá-los. o único completamente independente era o
Os setores orientais das fronteiras nor- Nepal, a pátria dos gurkhas que havia for-
te da Índia eram mais sensíveis do que os necido batalhões famosos aos exércitos da
ocidentais, já que davam acesso fácil ao Grã-Bretanha e da Índia. Tinha sido um
país. Eles incluíam a não ratificada linha refúgio para os hindus que fugiam da con-
McMahon; NEFA, onde nagas e mizos esta- quista mogul e se tornara um Estado sepa-
vam revoltados contra o domínio indiano, rado em meados do século XVIII. De me-
ocupando as forças indianas e prejudicando tade do século XIX à metade do XX, esteve
a moral e o prestígio do país com o vaza- sob controle duplo de uma família real sem
mento de suas táticas maldosas para o mun- poder, e da nem tão real mas mais podero-
do (Mizos acabou se tornando, em 1986, o sa família dos ranas, que governava como
23º estado indiano); e os frágeis Estados do os prefeitos do palácio tinham governado
Himalaia. Sikkim, o mais central e pequeno os fracos merovíngios ou como os sho-
deles, recebeu da Índia, em 1950, uma ga- guns governaram o Japão até a restauração
rantia de autonomia interna e um subsídio meiji de 1867. Em meados do século XX,
em troca de controle de sua defesa e suas a dominação dos Ranas foi ameaçada por
políticas externas pela Índia, a qual pode- um recrudescimento do poder real e pe-
ria estacionar tropas em seu território. Em los Congressos no modelo dos Congressos
1974, a Índia transformou o chogyal (gover- Nacionais Indianos, dos quais havia dois: o
nante) em uma figura sem poder real (em Congresso Nacional Nepalês, fundado em
nome da democracia) e Sikkim em um Es- 1947 em Calcutá e liderado por B. P. Koirala
tado associado da República Indiana, com e seus parentes, e o Congresso Democráti-
representantes em ambas as casas do Parla- co Nepalês, fundado em Calcutá, em 1949,
mento indiano. A China ficou descontente, por um membro da família real. Em 1950,
assim como o Nepal. o rei Tribhuvana provocou uma mudança
O chogyal cometeu suicídio dois anos constitucional ao fugir, inicialmente, para
depois. O Butão, o mais oriental desses a embaixada indiana em Katmandu e, de-
principados, aceitou, em 1949, a orien- pois, para a própria Índia. No ano seguinte,
tação da Índia em questões externas em ele voltou, fez um pacto extraoficial com os
troca de promessa de não interferência em ranas, introduziu um regime parlamentar
suas questões internas, mas a imigração e instalou um governo de coalizão que in-
gurkha a partir do Nepal ameaçava sub- cluía ranas e koiralas.
mergir os butaneses em seu próprio país Essas divergências eram constrangedo-
e levá-lo para a Índia ou para uma Gran- ras para o governo da Índia, cujo objetivo
de Gurkhalândia centrada no Nepal. Em era dominar o Nepal de forma refinada e
Sikkim e no Butão, a Índia estava dando mantê-lo fora dos noticiários. A Índia re-
continuidade às políticas dos britânicos, conheceu a soberania do Nepal em 1950.
enquanto, em segundo plano, havia uma Os ranas tendiam a ver a China como uma
reivindicação chinesa sobre o Butão, rejei- contraposição à Índia, de forma que Nehru
tada pela Grã-Bretanha no início do sécu- queria relações corretas e amigáveis com
438 | PETER CALVOCORESSI

o rei. Também era importante para Nehru restabeleceu o regime absoluto em 2005,
que o rei e os koiralas atuassem em sinto- mas, dois anos depois, uma associação va-
nia, já que, em qualquer conflito, as simpa- riada de republicanos* conquistou o poder
tias naturais da Índia estariam com o Con- e uma monarquia ancestral chegava ao fim.
gresso Nacional, em vez do monarca, o que
poderia fazer com que o país se aproximas-
se da China. A segunda divisão
O rei Tribhuvana foi sucedido, em
1955, pelo rei Mahendra, que foi visitar No final da década de 1960, o regime de
Moscou e Pequim e receber em sua pró- Ayub Khan no Paquistão tinha ido longe de-
pria capital não apenas o presidente e o mais, com muito poucos resultados. No Pa-
primeiro-ministro indianos, como tam- quistão Oriental, o sentimento secessionista
bém Zhou Enlai. Ciente das possibilida- crescia, e o líder da Liga Awami, o xeque Mu-
des de explorar sua posição estratégica, jibur Rahman, foi preso. No Paquistão Oci-
ele buscou ajuda econômica de todos os dental, havia ressentimento contra a domi-
lados e concluiu com a China, em 1961, nação por parte do Punjab. Surgiram líderes
um acordo de fronteiras que dava ao Nepal para representar os descontentes políticos e
todo o Monte Everest. Ele também concor- sociais, forçando Ayub Khan a renunciar em
dou com a construção de uma estrada pe- 1969. Sua marca mais duradoura foi o au-
los chineses, de Lhasa a Katmandu. O rei mento do exército e a modernização de seu
morreu em 1972. Nos 20 anos seguintes, a equipamento. Ele foi sucedido pelo general
Índia foi aos poucos controlando o Nepal. Yahya Khan, que propôs levar o país mais ou
O filho de Mahendra, o rei Birendra, era menos na mesma linha, mas talvez um pou-
considerado pouco inteligente pelos india- co mais rápido. Em 1970, foram realizadas
nos, e sua rainha e a família eram conside- eleições para uma Assembleia Constituinte
radas cobiçosas. que apresentaria uma Constituição em 120
Um negócio de armas do Nepal com a dias. A democracia seletiva de Ayub Khan –
China, em 1988, alarmou a Índia e, quan- uma forma de escolha indireta baseada em
do, no ano seguinte, um acordo comercial eleições locais e depois subindo em etapas,
indiano-nepalês expirou, a Índia fechou elegendo-se delegados em cada etapa à pró-
13 dos 15 postos de fronteira entre os dois xima – foi deixada de lado, e foi permitido
países, impondo um embargo que gerou um sufrágio universal. O resultado no Pa-
muitos problemas econômicos ao Nepal e quistão Oriental foi uma vitória arrasadora
incentivou o descontentamento com o go- do xeque Mujibur, e, no Paquistão Ocidental,
verno absoluto do rei. As rebeliões em Kat- uma vitória um pouco menos clara de Zul-
mandu, em 1990, lembraram ao rei que seu fikar Ali Bhutto, que fora o ministro do ex-
regime era dependente da Índia e também terior de Ayub Khan nos anos de 1963-1966
forçaram algum nível de mudanças consti- e formou o Partido Popular do Paquistão
tucionais que reduziam seus poderes e sua (PPP) em 1967. O triunfo do xeque Mujibur
divindade. As eleições de 1994 foram ven- era previsível, embora não naquelas propor-
cidas por um partido que professava lealda- ções, e provavelmente foi inflado por um ci-
de a ele e à economia de mercado. Em 2001, clone horrendo que, entre outras coisas, de-
o rei e outros membros da realeza foram
assassinados pelo príncipe da Coroa, que * N. de R.T.: O principal grupo era da guerrilha maoísta, que
também se matou. O novo rei, Gyanendra, se converteu em partido político.
POLÍTICA MUNDIAL | 439

monstrou a incapacidade do governo central parcela da Caxemira Azad (paquistanesa). O


de organizar a ajuda aos atingidos e acentuou Paquistão sofreu perdas elevadas em homens
a convicção do Paquistão Oriental de que o e em materiais em terra, mar e ar. Yahya re-
governo na parte ocidental não se interes- nunciou e Bhutto assumiu seu lugar. Mujibur
sava por seus problemas. O sucesso da Liga foi libertado para ser o primeiro ocupante
Awami era principalmente uma expressão do do cargo de primeiro-ministro do novo Es-
separatismo bengalês. O Paquistão Oriental, tado de Bangladesh (presidente em 1975).
a mais populosa das duas metades do país, Ao invadir o Paquistão Oriental, a Índia ex-
opunha-se a seu status (sob Ayub e Yahya) de pôs uma consciência cada vez maior de uma
uma das cinco províncias do país, sendo que grave contradição na Carta da ONU, entre
todas as outras estavam na parte ocidental, e a soberania dos Estados e, por outro lado,
queria uma medida generosa de autonomia o imperativo, em algumas circunstâncias,
em uma federação pouco rígida na qual a au- de proteger e garantir os direitos humanos,
toridade do governo central estaria limitada independentemente de fronteiras. A invio-
à defesa, assuntos externos e algumas ques- labilidade do Estado foi violada quando, por
tões monetárias. Yahya e Bhutto concebiam exemplo, a Tanzânia invadiu Uganda, em
um centro mais forte. Depois das eleições, 1979, para depor Idi Amin. Antes disso, na
tiveram início conversações entre Bhutto e mesma década, a intervenção armada da Ín-
Mujibur, que agora poderia dizer que era o dia possibilitou que milhares de bangladeshis
líder do maior partido no Parlamento Pa- voltassem a seu país.
quistanês. Como pano de fundo, o fato de A perspectiva para o novo país era ex-
o maior repositório de poder ser o exército, tremamente desanimadora. Mujibur tinha
majoritariamente ocidental. Mas o recurso a popularidade, mas estava fraco e, em 1972,
ele para coagir a parte oriental poderia signi- passou dois meses doente na Inglaterra. O
ficar a desagregação do Paquistão. caos pós-guerra foi agravado por uma onda
As conversações Bhutto-Mujibur não catastrófica de doença e morte, e depois,
chegaram a parte alguma, e, no lado orien- por desordem, criminalidade e corrupção
tal, Mujibur começou a agir como o chefe generalizadas, em tal nível que um governo
de uma administração independente, sendo confuso teve de proclamar estado de emer-
preso mais uma vez. O presidente apostava gência em 1974. Um ano mais tarde, Muji-
em interromper a secessão prendendo os bur foi assassinado em um golpe de Estado,
secessionistas, mas, em vez disso, provocou seguido de uma luta pelo poder entre seg-
combates totais, que duraram duas semanas. mentos do exército. A economia estava em
A Índia, movida, como pensavam alguns, por ruínas, apesar da ajuda externa de 1 bilhão
malevolência antipaquistanêsa, mas, mais de dólares. A China, apoiando o Paquistão,
certamente, por temores de uma esquerda vetou a admissão de Bangladesh na ONU
anti-indiana que chegasse ao poder em Ben- por três anos. As relações com o Paquistão,
gala Ocidental e de um dilúvio de fugitivos a separação da fracassada associação que
hindus estimado em 10 milhões, interveio havia sido o Paquistão Oriental e o Ociden-
com armas, e as forças paquistanesas no lado tal, a libertação de prisioneiros e o retorno
oriental foram forçadas a se render. Foram de fugitivos foram prejudicados já no início,
feitos prisioneiros 90 mil homens. Navios de porque Bangladesh falava em julgar crimes
guerra norte-americanos e russos aparece- de guerra (o que nunca aconteceu). Depois
ram por algum tempo na Baía de Bengala. A do assassinato de um segundo presidente, o
Índia também ocupou Rann de Kutch e uma general Hussein Muhammad Ershad assu-
440 | PETER CALVOCORESSI

miu a presidência, em 1983, com uma re- das das indústrias da Índia, sufocadas pelos
putação de não ser corrupto nem violenta- controles burocráticos. Os problemas ali-
mente islâmico, mas, em 1985, tornou o Islã mentares se tornaram agudos e alguns bens
a religião do Estado (85% da população era e mercadorias desapareceram totalmente.
muçulmana). Ele introduziu alguma estabi- Com excesso de confiança em si mesma e
lidade, mas pouca esperança de alívio para em seu politicamente incompetente e au-
um país arrasado pela guerra, pela pobreza toritário filho Sanjay, ela adotou medidas
e, com frequência, pela natureza: inunda- tão insensatas como a esterilização com-
ções arrasadoras, em 1988, deixaram três pulsória. Em 1975, o juiz de um Tribunal
quartos de seu território debaixo d’água. A Superior deu início a uma cadeia de even-
oposição, dividida em 20 grupos, dos quais tos inesperados ao decidir que ela tinha
os dois mais destacados eram liderados pela desobedecido a Lei de Práticas Corruptas
viúva e pela filha de ex-presidentes (cujas nas eleições de 1971 e lhe impôs a desqua-
animosidades mútuas não eram muito me- lificação legal para atividades políticas por
nos agudas do que seu ódio a Ershad), ficou cinco anos. O Tribunal Superior concedeu
ainda menos eficaz por seu hábito de boico- uma liminar e suspendeu a desqualificação
tar eleições realizadas pelo governo. Depois até o julgamento de um recurso, mas, dois
das eleições em 1986, Ershad suspendeu a dias depois, ela declarou estado de emer-
lei marcial, mas, um ano depois, voltou a gência, prendeu milhares de seus adversá-
impô-la e dissolveu o parlamento. rios políticos e introduziu censura rígida.
Ele venceu novas eleições em 1988, mas Ela explicou que tinha sido descoberta uma
uma crescente desordem popular e a dimi- conspiração contra o progresso e a demo-
nuição no apoio das forças armadas (que ele cracia, mas não apresentou evidências con-
não foi capaz de ver) fragilizavam sua posi- vincentes de uma ameaça tão grave e sua
ção e ele foi obrigado a renunciar em 1990, ação parecia mais como uma tentativa de
preso e acusado de práticas de corrupção. As impor um despotismo dinástico disfarçado
eleições, no ano seguinte, foram uma com- de autocracia benevolente, mais dinastia
petição entre a filha de Mujibur e a viúva do que democracia. Ela foi derrubada em
de seu sucessor. Esta, Begum Khaleda Zia, 1977 pelo Janata, uma coalizão formada
venceu e se tornou primeira-ministra de um pelo austero e ancião Morarji Desai, que
país de imensa pobreza e vulnerabilidade fora candidato malsucedido ao cargo de
aos desastres naturais. Um golpe militar, em primeiro-ministro em 1964 e 1966, tinha
2007, colocou as duas mulheres na prisão. sido desprezado por Indira Gandhi e for-
Para Indira Gandhi, a divisão do Pa- mara um novo partido de oposição a seu
quistão não foi ruim. A intervenção de- autoritarismo e à promoção que ela fazia
cisiva da Índia em Bangladesh ganhou de Sanjay. Mas o Janata passou aos confli-
popularidade dentro da própria Índia. tos internos e só sobreviveu por dois anos.
Indira esmagou a oposição no Partido do Em 1980, Indira teve vitórias arrasadoras
Congresso em eleições realizadas em 1971, e voltou ao governo. Poucos meses depois,
conquistando 40% dos votos e fazendo com Sanjay morreu em um acidente aéreo, e seu
que seus adversários parecessem incompe- irmão mais velho, Rajiv, foi adotado por
tentes ultrapassados, mas não apresentou sua mãe como legítimo herdeiro.
soluções para as necessidades básicas de Indira Gandhi foi assassinada, em 1984,
uma imensa população que crescia a um por siques, com os quais ela tinha desenvol-
ritmo de 2,5% por ano ou para as deman- vido uma espécie de contenda pessoal. Eles
POLÍTICA MUNDIAL | 441

pretendiam ser uma nação, dentro de um siques que eram guarda-costas de Indira
amplo conglomerado federado. Tinham Gandhi a mataram.
governado o Punjab entre a decadência A partir de um convite de líderes do
dos muçulmanos moguls, depois de 1700, Congresso, Rajiv Gandhi assumiu o cargo
e a chegada dos britânicos em meados do de primeiro-ministro em uma transição
século XIX. A divisão da Índia, em 1947, extraordinariamente tranquila. Conhecido
implicou a divisão do Punjab e a fuga dos como um homem discreto, sem ambição
siques do Punjab Ocidental (muçulmano) nem experiência políticas, ele era considera-
para o leste, onde os siques acalis, que eram do como uma marionete conveniente, mas
dominantes, esperavam criar um Estado si- temporária, cuja presença poderia impedir
que ou um quase-Estado. Eles lutavam por o caos. Dentro de um ano, ele se tornou um
mais autonomia no Punjab, pela incorpo- líder que impressionou os indianos e outros
ração a ele de Chandigarh (compartilhado por sua determinação discreta e sua eviden-
com o Estado vizinho de Haryana) e pela te integridade, mas esse começo inesperada-
uma realocação de águas fluviais. mente auspicioso não se manteve. Embora
Esses eram objetivos políticos que sur- tenha mantido sua base no centro, ele a per-
giam da identidade religiosa dos siques. A deu em várias províncias. Teve alguns êxitos
hostilidade de Indira Gandhi era dirigida em assuntos econômicos, o crescimento au-
aos primeiros, que cheiravam a separatis- mentou a 9% ao ano e os bens de consumo
mo, mas não aos segundos, que não repre- se tornaram mais abundantes. Opunha-se
sentavam qualquer violação em um Estado verdadeiramente ao sectarismo religioso,
secular e multirreligioso. Os siques piora- mas alienou muçulmanos e hindus. Dis-
ram sua violação aos olhos dela quando o tanciou-se dos ríspidos barões do Partido
Akali Dal se somou ao Janata em 1977, e, do Congresso, e os substituiu por parceiros
depois de seu retorno ao poder, ela buscou pessoais. Criticou a corrupção, mas não li-
desacreditá-lo permitindo que os extremis- dou de frente com os escândalos. Seu bom
tas entre os siques tivessem espaço para seus senso não era suficiente para resolver o pro-
objetivos mais amplos. Sob a liderança de blema sique nem para impedi-lo de menos-
um militante, Sant Bindranwale, eles ocupa- prezar publicamente o presidente sique da
ram e estocaram com armas cerca de 40 san- Índia, Zail Singh. Seus esforços para impe-
tuários siques, incluindo o Templo de Ouro dir o massacre e a guerra civil no Sri Lanka
em Amritsar. Diante dessa ameaça de insur- não mereceram a devida reflexão rigorosa.
reição, Indira ordenou que o exército eva- Seu problema mais urgente era o Pun-
cuasse os santuários, e, durante a principal jab. Ele buscou e obteve um acordo com o
operação, no Templo de Ouro, mil pessoas líder sique Sant Harchand Singh Longowal,
foram mortas, incluindo Bindranwale, que, que dava ao Punjab a cidade de Chandigarh
assim, foi elevado à condição de mártir. Um em troca da cessão de uma série de aldeias
grupo de 300 siques recuperou, mais tarde, a Haryana e uma alocação de águas fluviais
a posse de uma parte do Templo, desafian- vagamente favorável a este. Embora Sant
do seus próprios líderes, e o exército, mais Longowal tenha sido assassinado, depois
uma vez, recorreu à força para expulsá-los disso, por militantes siques, o acordo resistiu
e prendê-los. As operações do exército, que ao teste das eleições provinciais no Punjab,
incluíram o uso de tanques, pareceram ser vencidas pelo Akali Dal, que o defendia. Em
de uma incompetência grosseira e desneces- Haryana, por outro lado, a proposta de per-
sariamente destrutiva. Como vingança, dois da de Chandigarh ofendeu muito os hindus
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e levou a uma derrota arrasadora do Partido com os Estados Unidos, recebendo créditos
do Congresso em 1987. O acordo tampouco de uma e cooperação técnica dos outros. Foi
sobreviveu. As disputas acerca de sua apli- o principal autor da Associação Sul-Asiática
cação detalhada deram aos siques mais mi- de Cooperação Regional (South Asian Asso-
litantes a desculpa para não reconhecer seus ciation of Regional Co-operation, SAARC),
líderes, derrubar partes do Templo de Ouro, uma associação de sete Estados – Índia, Pa-
porque ele teria sido poluído por hindus, e quistão, Sri Lanka, Bangladesh, Nepal, Bu-
proclamar o Estado separado do Calistão tão e as Maldivas – que, evitando de forma
(1986). O Templo foi recuperado das mãos hábil todas as questões polêmicas, organizou
dos militantes, mas os conflitos subjacentes cooperação útil sobre questões comerciais e
persistiram, entre siques e destes com os técnicas, além de transporte, e estabeleceu
hindus. uma sede em Katmandu. Na direção extre-
De tempos em tempos, ocorriam trans- mamente importante do Paquistão, Gandhi
tornos violentos, mas o separatismo sofreu se reuniu com o presidente Zia ul-Haq e com
um golpe. a filha e herdeira política de Bhutto, Benazir,
O revés para o Partido do Congresso em para demonstrar boa vontade com um pre-
Haryana foi precedido, ainda que com menos lúdio cauteloso para a redução de temores e
intensidade, em outras províncias – Bengala suspeitas. Mas, em 1989, tendo suas virtudes
Ocidental, Kerala. A posição pessoal de Gan- superadas por suas falhas, ele perdeu uma
dhi foi maculada pela renúncia de seu minis- eleição geral para uma coalizão, liderada por
tro da defesa, V. P. Singh, em protesto contra V. P. Singh, que ia desde o Bharatiya Janata
a relutância do governo em investigar os es- (BJP) na direita hindu até os comunistas à
cândalos financeiros, principalmente os re- esquerda. O Partido do Congresso teve um
lacionados a contratos militares com Bofors, resultado particularmente ruim nos estados
na Suécia; e a continuidade das divergências do norte, mas permaneceu como o maior
dentro do partido governante causaram mais partido em Lok Sabha e Gandhi foi reeleito
perdas eleitorais nas eleições intermediá- para sua presidência. Singh comandou uma
rias de 1988. Déficits comerciais imensos, maioria somente pelo tempo em que os ex-
na medida em que as exportações caíam e tremistas de direita e de esquerda continua-
as importações cresciam, aumentaram os ram a apoiá-lo. Ele a colocou em risco com
sentimentos de que o governo tinha pouco propostas para discriminação positiva no
controle da economia do país, bem como mercado de trabalho para as castas inferiores
de sua coesão. No lado positivo, Gandhi pa- e perdeu a maioria, em 1990, quando orde-
cificou o incômodo de Assam em relação à nou a prisão de Lal Krishna Advani, líder do
entrada de refugiados muçulmanos de Ban- BJP, que estava realizando uma longa marcha
gladesh; foi construída uma cerca para con- pelo norte da Índia com o objetivo de cons-
ter o fluxo enquanto eram feitos planos para truir um templo hindu no lugar de uma mes-
enviar de volta os refugiados. No balanço, o quita muçulmana fora de uso em Ayodha,
desempenho de Gandhi nas questões inter- em Uttar Pradesh. Chandra Shekhar, que era
nas começou a parecer honradamente ina- colega e adversário de Singh no Janata Dal,
dequado. No exterior, ele melhorou relações aproveitou a oportunidade para dividir o
com a China, mas não chegou a um acordo partido e suceder a Singh ao conquistar uma
concreto sobre as fronteiras dos dois países. promessa de apoio parlamentar de Gandhi.
Ele reafirmou as boas relações da Índia com A ascensão do BJP foi um elemento a
a URSS e melhorou um pouco as relações mais na confusa cena política atingida pela
POLÍTICA MUNDIAL | 443

acumulação de reveses econômicos: taxas sob controle do governo central durante um


de juros em nível inédito, repetidas desva- ano, ao fim do qual o BJP foi derrotado nas
lorizações da rúpia, dívida externa de mais eleições. Entretanto, ele continuou a ser um
de 70 bilhões, uma população que crescia elemento importante na política caleidos-
tão rapidamente a ponto de parecer que al- cópica do centro. O Partido do Congresso
cançaria a da China em 100 anos. Em 1991, voltou ao governo com concessões à direita
Gandhi, o político mais consistente do país, ou à esquerda, e com Narasimha Rao como
foi assassinado por um tâmil durante uma um primeiro-ministro relativamente apa-
viagem eleitoral no sul da Índia. gado, mas surpreendentemente duradouro,
Embora o Partido do Congresso te- e, como ministro das finanças, Manmohan
nha conquistado, depois disso, 225 de 544 Singh, que resgatou as finanças da Índia. Ele
cadeiras no Lok Sabha, o BJP, que havia desvalorizou a moeda, reduziu a inflação,
conseguido apenas duas cadeiras em 1984, reduziu as tarifas, introduziu reformas fis-
obteve 119, com 20% dos votos. O BJP, cuja cais, adotou políticas de mercado modifica-
força estava localizada principalmente no das, reconstruiu as reservas, obteve acordos
norte e no oeste, era uma expressão do hin- favoráveis com o Banco Mundial e com o
duísmo militante organizado por fanáticos FMI e fez com que se falasse da Índia com
religiosos e, depois, por demagogos que mais atenção do que desespero. Nas eleições
utilizavam antecedentes respeitáveis como provinciais de 1993, o BJP sofreu graves
nacionalistas antibritânicos para transferir perdas e se dividiu, mantendo uma subs-
essa hostilidade aos muçulmanos, aos sin- tancial popularidade apenas entre a classe
dicatos e a muitos outros elementos. O BJP média de Delhi e outras cidades grandes.
aspirava a ser o que o Partido do Congresso Mas Rao não conseguiu fazer mais do que
tinha sido por muito tempo: partido do go- conter o declínio do Congresso. Ele fez vista
verno e alma da Índia. Esse papel pertenceu grossa à corrupção no governo e no Partido,
ao Partido do Congresso na época antibri- e a política passou a ser uma série de ma-
tânica do nacionalismo indiano, mas o pró- nobras para manter o BJP fora do poder. O
prio Partido e seus principais adversários, BJP se recuperou, e, depois das eleições de
os comunistas, estavam em decadência, e 1998, seu líder Atal Bihari Vajpayee formou
o BJP apelou a uma linha mais profunda e uma coalizão ao reunir 18 partidos me-
mais remota, situada não no raj britânico, nores (muitos dos quais eram pouco mais
e sim em mitos e sentimentos endêmicos. do que projeções de personalidades). Mas,
Como nenhum partido conseguia obter o um ano depois, Vajpayee foi derrotado por
controle do Lok Sabha, a Índia foi obrigada um voto no Lok Sabha depois da defecção
a fazer experimentos com um jogo incerto de um desses partidos por causa de uma
de governo de coalizão, com os elementos questão trivial. No interregno que se seguiu,
desagradáveis e as virtudes da democra- que durou seis meses, o BJP fez e perdeu
cia multipartidária. Em 1992, um grupo amigos, mas o próprio Vajpayee melhorou
de fanáticos do BJP conseguiu destruir a sua posição como homem de consequência
mesquita em Ayodha, ao que parece, com a e competência, ao passo que o Partido do
benção do governo provincial do BJP. Esse Congresso – tendo escolhido Sonia Gandhi,
caso foi, em parte, uma demonstração exa- a viúva de Rajiv nascida na Itália, como sua
gerada das correntes mais bárbaras do na- porta-estandarte – mal conseguiu manter
cionalismo hindu e, em parte, uma jogada seu voto popular e perdeu cadeiras de es-
do BJP. O Estado de Uttar Pradesh foi posto pecial importância. O BJP permaneceu no
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poder e também continuou dependente de punido pela ferocidade da política paquis-


aliados de lealdade imprevisível, para com tanesa e, em 1977, derrubado pelo exército
ele e entre si. e, depois, enforcado. Ele colocou o Paquis-
A ferida aberta no subcontinente era tão no caminho nuclear. Buscou ajuda da
a hostilidade entre os dois grandes países. França, que foi prometida, mas suspensa
Apesar de algumas ações conciliadoras, em função dos protestos dos Estados Uni-
essa hostilidade piorou, evidenciada pela dos, e conseguiu, inicialmente em sigilo,
Caxemira e tornada mais febril pelo desen- dar início a um programa sob comando de
volvimento de armas balísticas e nucleares um cientista paquistanês que tinha adqui-
por ambos os lados. rido o conhecimento necessário na Holan-
Em 1972, Indira Gandhi e Zulfikar Ali da. Sua atitude expressa era que, como os
Bhutto concluíram um acordo abrangen- hindus, judeus e cristãos tinham armas nu-
te em negociações diretas em Simla e, no cleares, deveria também haver uma bom-
final do ano, estabeleceram uma Linha de ba islâmica. Washington tentou barrar o
Controle provisória na Caxemira (com uma avanço paquistanês por meio de pressão e
leve supervisão da uma missão da ONU) e bajulação, cortou a ajuda econômica, como
deram início ao processo de repatriar pri- estava previsto na Lei de Ajuda ao Exterior
sioneiros de guerra em Bangladesh, o que de 1976, recusou-se a relaxar os termos
abalou gravemente as atitudes em ambos os para pagamento de dívidas e ofereceu ao
países. Isso fez com que Indira abandonas- Paquistão aviões bombardeiros modernos
se o tão apreciado não alinhamento de seu se o país aplicasse as salvaguardas inter-
pai e fizesse um tratado com a URSS para nacionais a suas atividades nucleares. O
compensar a parcialidade norte-americana dilema de Washington era como fazer do
em relação ao Paquistão, que tinha perdido Paquistão um aliado seguro sem ferir de
não apenas o respeito e metade de seu terri- morte as relações dos Estados Unidos com
tório mas também metade de seu mercado a Índia.
doméstico, grande parte de suas matérias- Em 1977, o exército paquistanês colo-
-primas e produtos manufaturados, seus cou o general Muhammad Zia ul-Haq na
mercados estrangeiros (que vinham sendo presidência, no lugar de Bhutto, e deu início
atendidos pelo Paquistão Oriental) e receitas a um regime repressivo e cruel. Nas ques-
estrangeiras. Os problemas constitucionais, tões externas, Zia dava continuidade à polí-
não resolvidos desde 1947, permaneciam, tica de Bhutto de dotar o país de uma opção
embora postos de lado temporariamente nuclear, retirou o país da moribunda aliança
pela adoção de um novo sistema presiden- Organização do Tratado Central (Central
cial. Em termos mais gerais, a perda de Ban- Treaty Organization, CTA) e o transformou
gladesh levou o Paquistão mais para o oeste, em membro de um grupo não alinhado, mas
para o centro do mundo islâmico. era, inicialmente, mais um elemento provi-
Bhutto era um político hábil, com pou- sório do que um autocrata. Ele não pertencia
cos escrúpulos, determinado a construir à aristocracia punjab nem à plutocracia sin-
um novo Paquistão com ele próprio no di, era favorável à relativamente intolerante
comando, uma combinação de superiori- faixa do fundamentalismo muçulmano, e o
dade nobre com demagogia e um pouco da exército, que o tornou presidente, não dava
bravata de um líder militar, mas sem apoio sinais de que o manteria no cargo por muito
militar nem a confiança da classe média. tempo. Mas a invasão do Afeganistão pelos
Aquém de sua autoimagem, foi fortemente soviéticos, em 1979, consolidou sua posição
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pessoal ao tornar temporariamente impru- baluchis, de outro, e o retorno da filha de


dente fazer mudanças e reverteu de forma Bhutto, Benazir, ao Paquistão, em 1988, au-
abrupta suas relações com os Estados Uni- mentou esse sentimento. A economia sofria
dos, onde foi subitamente saudado como com o desregramento de um regime militar
defensor dos valores democráticos. Zia pas- que alocava 40% das receitas às forças ar-
sou a usar com sucesso a invasão como uma madas, tinha enormes déficits no orçamen-
alavanca para recuperar a ajuda e os fundos to e nas contas externas, e permitia que a
militares norte-americanos. dívida externa aumentasse de forma nefas-
A ação soviética, embora tenha sido um ta: os gastos militares e o serviço da dívi-
oneroso equívoco, foi interpretada pelos Es- da externa, juntos, absorviam 85-90% do
tados Unidos como um perigoso aumento orçamento. Zia não teve alternativa a pedir
do poder soviético que – com o xá do Irã um grande empréstimo ao FMI, para o qual
deposto – só poderia ser contido armando teve de submeter seu país a muita severida-
o Paquistão e o usando como canal para de, preços altos, novos impostos, bem como
armar a oposição à URSS no Afeganistão. serviços sociais e estradas em colapso (o or-
Zia se prestou com entusiasmo a essa polí- çamento para a saúde foi cortado para me-
tica. Recebeu abundante ajuda dos Estados nos de um quinto do orçamento militar).
Unidos, independentemente de os norte- Os problemas de Zia foram multiplicados
-americanos não gostarem do programa nu- por quedas nas remessas de paquistaneses
clear do Paquistão e de seu papel no tráfico no Golfo e em outras partes do exterior
de drogas, e apesar da Emenda Symington, (que chegaram a 25 bilhões de dólares por
que proibia ajuda a países que fabricassem ano em seu ponto máximo e foram mui-
armas nucleares. to desperdiçados pelo regime de Zia), por
Em 1983, a volta dos temores em rela- uma sequência de colheitas fracassadas,
ção a agressões russas contra o Paquistão pelo fluxo de refugiados do Afeganistão e
reavivou pressões dentro do país pelo final pelos exércitos privados de cartéis de dro-
do governo militar. Em uma tentativa de gas que operavam até mesmo na capital,
preservar sua posição, Zia surpreendeu ao onde imigrantes patanes entraram em con-
anunciar, no final de 1984, que faria um re- flito com os habitantes não patanes. A opo-
ferendo para testar a aprovação de suas po- sição a Zia cresceu, mas não era articulada.
líticas e de si mesmo como chefe de Estado, Depois de seu retorno, Benazir Bhutto reu-
com a consequência de que, se aprovado, go- niu grupos que tinham divergências, mas
vernaria por mais cinco anos e intensificaria não acabou com elas. As primeiras eleições
a islamização da Constituição e a aplicação locais depois de sua volta decepcionaram
de severas punições corânicas pela quebra de seus seguidores. Havia os obstáculos de ser
regras religiosas. Quase todos os votos dados mulher e de ser sindi, principalmente na
foram favoráveis a ele. A lei marcial foi sus- província dominante do Punjab (que conti-
pensa no final de 1985 – uma demonstração nha mais de metade da população) e de ter
de moderação que, entretanto, foi precedida uma personalidade na qual a inteligência se
por um ato de compensação por ações pas- misturava com a arrogância e um mau casa-
sadas e um aumento substancial nos poderes mento, arranjado por sua mãe.
presidenciais, incluindo a extensão do man- O governo teve algum sucesso em de-
dato do próprio Zia até 1990. negrir e marginalizar seu PPP até que dois
Zia nada tinha feito para reduzir as ten- eventos, em 1998, transformaram sua posi-
sões entre punjabis, de um lado, e sindis e ção: Zia demitiu de repente seu primeiro-
446 | PETER CALVOCORESSI

-ministro civil Muhammad Khan Junejo, nas com os sindis, mas também com os
que discordou da posição do exército de punjabis e os patanes, e começaram a lutar
apoio total aos mujaheddins no Afeganis- entre si). Novas eleições, no mesmo ano,
tão, e o próprio Zia morreu em um aciden- foram vencidas pela Frente Islâmica, um
te aéreo, junto com dois outros generais e o amálgama de nove partidos com um forte
embaixador dos Estados Unidos. sabor de intolerância religiosa e com apoio
Esses eventos foram o prelúdio de uma do exército. A Frente e seus aliados contro-
fase dominada por hostilidades partidárias lavam dois terços do parlamento, mas o pre-
amargas e fúteis, pela intensificação do fun- sidente Ghulam Muhammad, um patane,
damentalismo islâmico do Paquistão e seu entrou em conflito com seu primeiro-minis-
programa nuclear, e pelo impacto de seu tro Nawaz Sharif e o demitiu em 1993, em
envolvimento no Afeganistão. As eleições função do direito de indicar o comandante
que se seguiram à morte de Zia foram dis- em chefe do exército. Sharif foi reinstalado
putadas entre dois grupos consolidados: a pelo Tribunal Superior, mas, nas eleições
Aliança Democrática Islâmica, que consis- seguintes, Bhutto obteve sua vingança e
tia na Liga Muçulmana e em parceiros me- voltou a ser primeira-ministra até que, em
nores, e o PPP e seus parceiros. Apesar de 1996, foi demitida pelo novo presidente Fa-
mal nas pesquisas, o PPP conquistou um rouk Leghari, em parte por sua incapacida-
número muito maior de cadeiras, mas não a de de lidar com as disputas entre províncias,
maioria, e não conseguiu vencer em nenhu- problemas econômicos, corrupção e outros
ma província com exceção de Sind e do No- crimes e, mais precisamente, porque o chefe
roeste. Benazir Bhutto tomou posse como do exército pediu ao presidente que a demi-
primeira-ministra e o exército fez uma de tisse. Um ano depois, as eleições deixaram
suas periódicas retiradas para o segundo o PPP praticamente sem representatividade.
plano, mas não por muito tempo, pois, em Os governadores efetivos do país eram um
vários níveis, o exército, o presidente e uma novo Conselho de Defesa Nacional domina-
maioria de governadores provinciais eram do por generais, que situava a estabilidade
hostis a Bhutto e estavam esperando uma muito acima da democracia, mas não garan-
oportunidade de se livrarem dela. O legado tia qualquer das duas. Sharif voltou e tentou
de corrupção, tráfico de drogas, o Afeganis- fortalecer sua posição passando de um isla-
tão, decadência econômica, disputas entre mismo moderado consagrado na Constitui-
províncias e crescente fundamentalismo is- ção a uma versão mais intolerante exigida
lâmico eram demais para um governo que pelos fanáticos.
controlava apenas duas províncias e, em úl- Em 1990, o presidente Bush se recusou
tima análise, era dependente de oficiais do a certificar que o Paquistão não tinha armas
exército os quais não conseguia conciliar nucleares – uma precondição para a ajuda
nem subordinar. Acusado, não sem razão, econômica e militar. Durante as décadas
de incompetência, corrupção e nepotismo, de 1970 e de 1980, os Estados Unidos des-
seu governo foi dissolvido pelo presidente, consideraram relatos de que a Índia estava
usando o pretexto de sua incapacidade de desenvolvendo pesquisa sobre plutônio ou
dominar a violência endêmica em Sind en- fabricando armas nucleares, em uma ten-
tre sindis e muhajires (estes eram imigran- tativa de conter as atividades paralelas do
tes que vieram da Índia depois de 1947 e se Paquistão, que era a base e conduto para
tornaram uma comunidade relativamente ajuda aos mujaheddins afegãos, incluindo
próspera em Karachi, em conflito não ape- os talibãs.
POLÍTICA MUNDIAL | 447

Mas, em 1990, acreditava-se que o reram. A Índia culpava o Paquistão pelos


Paquistão possuísse meia dúzia de ogivas transtornos, abandonou Faruq e recorreu à
de urânio 335, que estivesse construindo tutela direta de Delhi. Na Caxemira, a anti-
uma planta de reprocessamento de plutô- -indiana e cada vez mais violenta Frente de
nio e importando esse elemento. Em 1998, Libertação de Jammu e Caxemira ganhava
a Índia realizou cinco testes nucleares, e o apoio popular, enquanto, em resposta a isso,
Paquistão reagiu com seis e pelo menos foi as autoridades indianas recorriam a duras
conivente com uma invasão da Caxemira represálias, incluindo a tortura aleatória de
(ver a seguir), e os Estados Unidos, em se- vítimas inocentes. Em 1993, o templo de
guida, cortaram a ajuda, desencadeando Hazrat Bal, em Srinagar, que possuía um
uma crise econômica no país. O valor da fio de barba do profeta, foi cercado por tro-
moeda caiu pela metade em poucos me- pas indianas em função de rumores de um
ses, e a inflação e o déficit orçamentário plano dos muçulmanos de retirar o fio. Os
aumentaram muito. (As sanções não eram muçulmanos se sentiram ultrajados por essa
o único problema econômico, o Paquistão demonstração de força, que os não muçul-
tinha uma das populações que mais rapi- manos deploraram como uma provocação
damente crescia no mundo.) pouco inteligente. Os dissidentes da Caxe-
As preocupações de Sharif foram au- mira estavam divididos entre os que que-
mentadas pelos êxitos dos talibãs no Afe- riam a independência e os que preferiam
ganistão, cujos líderes mais fanáticos to- a incorporação ao Paquistão, uma divisão
leraram massacres de muçulmanos xiitas. que os indianos estavam felizes de observar
Os massacres constrangeram os Estados e, possivelmente, fomentar. Em 1994, Rao
Unidos e ultrajaram os xiitas do próprio Pa- retaliou contra a interferência paquistane-
quistão, que chegavam a um quinto da po- sa na Caxemira reivindicando o retorno à
pulação. Em 1998, os Estados Unidos dispa- Índia de território da província anexado ao
raram mísseis sobre o território paquistanês Paquistão.
sem avisar o governo, em um ataque ao dis- As tensões foram elevadas em 1998,
sidente saudita Osama bin Laden, que havia quando os dois países realizaram testes que
se refugiado no Afeganistão e era suspeito estabeleceram, para além de qualquer dú-
de cumplicidade nos atentados às embaixa- vida, que ambos tinham armas nucleares e
das norte-americanas na África Oriental. os meios para usá-las em longas distâncias
Por fim, a Caxemira: no final dos anos – no caso da Índia, sobre a China bem como
de 1980, houve combates intermitentes en- sobre o Paquistão. Em 1999, um corpo de
tre o Paquistão e a Índia pela posse de uma paquistaneses e afegãos em número de 6 mil
geleira ao norte da província, e, de 1989 em ou mais invadiu a Caxemira em uma frente
diante, a questão central da Caxemira foi de 90 km. Os indianos foram pegos de sur-
inflamada mais uma vez. Com a morte do presa e sofreram mais de mil baixas, mas
xeque Abdullah, seu manto recaíu sobre seu retaliaram com artilharia pesada e a deter-
filho Faruq Abdullah (um personagem me- minação de não conceder coisa alguma ao
nor, muito próximo de Nova Delhi para o Paquistão nem permitir que os combates na
gosto dos muçulmanos da Caxemira) e seu Caxemira colocassem em perigo a rota da
genro Ghulam Muhammad Shah, e as di- Índia a Srinagar e Ladakh, que seria crucial
vergências na família desses dois geraram em caso de novo conflito com a China em
disputas políticas e levaram a desordens em função da região de Aksai Chin – que esta
1989-1990, nas quais várias pessoas mor- ocupara em 1962.
448 | PETER CALVOCORESSI

No lado paquistanês, o empreendimen- embora, mesmo ali, Musharraf não pudesse


to foi um fracasso, interrompido, não ape- contar para sempre com a solidariedade da
nas pela reação da Índia, mas também pela classe de oficiais ou a confiança popular no
pressão dos Estados Unidos, que marcou quarto regime militar do país. Musharraf
sintomaticamente uma mudança de posi- não era um fanático, mas os líderes do exér-
ção, de próximo ao Paquistão a próximo à cito de sua geração estavam mais próximos
Índia. Sharif era um ditador em formação, do que seus predecessores dos partidos is-
que não conseguiu reconhecer que quem lâmicos no Paquistão e na Caxemira, e do
ditava eram os generais do Paquistão, e não Talibã no Afeganistão. A aliança de 50 anos
os civis. Em 1997, ele demitiu o presidente com os Estados Unidos foi praticamente
e reduziu a importância da presidência, e, cancelada por essas mudanças e pela hostili-
embora tivesse aliados no exército, o chefe dade dos norte-americanos para com o Islã
do Estado-Maior, o general Pervez Mushar- e seus adeptos no Oriente Médio, enquan-
raf não estava entre eles. Quando, na onda to o desenvolvimento de armas nucleares
da humilhação na Caxemira, Sharif tentou pelo Paquistão e pela Índia estava criando
responsabilizar e depor o general, ele pró- na Ásia uma segunda Guerra Fria. Partin-
prio foi deposto em um golpe que o mun- do do pressuposto de que elas eram o últi-
do condenou em nome da democracia, mas mo elemento de contenção, mas, em última
que os paquistaneses, responsabilizando o análise, seu uso era impossível, o Paquistão
primeiro-ministro por uma economia em poderia usar o conflito indo-paquistanês so-
colapso e uma corrupção elevadíssima, não bre a Caxemira para aumentar as pressões e
desaprovaram. O Paquistão foi suspenso da os blefes, mas, em segundo lugar, poderia,
Commonwealth (ao mesmo tempo em que a em relação à Índia, herdar o papel da URSS
Nigéria era readmitida depois de sua volta à para com os Estados Unidos, aproximando-
democracia), mas esse revés – que implicava -se da ruína total antes que os absurdos eco-
sua exclusão das reuniões, mas não a perda nômicos das guerras modernas pudessem
da condição de membro – era o menor dos também destruir seu inimigo.
problemas de Musharraf. Ele não impôs a Musharraf começou com fragilidades
lei marcial, completou o desengajamento que acabaram o alcançando. Ele não era
da Caxemira, distanciou-se dos extremistas paquistanês de nascimento, mas um mo-
muçulmanos no Paquistão e no Afeganistão jahir (nascido na Índia pós-divisão), mas,
e retomou o diálogo com o FMI, pois sem mesmo assim, ascendeu ao topo da escala
sua ajuda econômica não haveria possibi- militar. Foi o arquiteto de uma ofensiva na
lidade de escapar do colapso. O Paquistão Caxemira que fracassou, aliou o Paquistão
tinha sido levado à iminência de uma crise a políticos impopulares dos Estados Unidos
maior do que qualquer outra desde a seces- no Afeganistão, e lhes permitiu realizar ope-
são de Bangladesh. Seus sistemas político, rações mais ou menos abertas em seu país,
administrativo e judicial estavam apodreci- perdendo o controle da região fronteiriça do
dos e assim eram considerados; seu tecido Waziristão em operações fracassadas contra
religioso, consagrado na Constituição, bem bin Laden.
como no coração dos paquistaneses, estava Ele voltou a perder quando, em uma
marcado por tensões entre sunitas tradi- disputa com o presidente do Supremo Tri-
cionais, sunitas extremistas e uma minoria bunal Iftikar Chaudury, tentou proibir o re-
(20%) de xiitas. Somente o exército pode- torno de Nawaz Sharif ao Paquistão. Sharif
ria afirmar ser um corpo unido e nacional, retornou, mas foi imediatamente deporta-
POLÍTICA MUNDIAL | 449

do para a Arábia Saudita. A seguir, Bhutto rios, administrativos e técnicos, na maioria


voltou para ser recebida com muita acla- das vezes, dentro de um quadro democrá-
mação, desconfiança e um atentado contra tico e secular protegido pelo Estado de Di-
sua vida. Sharif voltou mais uma vez, sob reito. Na época da independência, a palavra
a égide da Arábia Saudita, que o preferia “Índia” denotava um segmento vasto e de-
em detrimento da menos radicalmente sarticulado do Império Britânico – étnica,
conservadora Bhutto e Musharraf, o qual religiosa e linguisticamente diversificado a
perdia força rapidamente. Este renunciou a ponto de incoerência. Quando o século ter-
seu cargo e sua farda e garantiu a reeleição minava, a Índia era um país menor do que
como presidente civil. Bhutto foi assassi- aquela esfera britânica, mas ainda uma das
nada. As eleições reduziram a quase nada maiores entidades políticas do mundo. re-
o apoio a Musharraf no parlamento e sua solveu a questão linguística, o separatismo
autoridade presidencial a uma sombra, dei- sique e a discriminação religiosa, com um
xando os dois principais partidos civis no presidente muçulmano e um sique. Tornou-
controle, desde que conseguissem mitigar e -se autossuficiente em alimentos, dobrou a
ocultar sua hostilidade mútua. taxa de alfabetização e criou escolas de alto
Encontrou-se uma pessoa adequada nível em gestão e tecnologia, e estava mais
para ocupar o posto de primeiro-ministro ou menos encantada com a modernização
em uma colisão. O presidente do Supremo e as instituições financeiras e empresariais
e outros juízes foram libertados, e Mushar- eficazes. No lado negativo, grande parte do
raf prometeu cooperar com o novo governo. país estava submetida a uma pobreza cho-
As instituições políticas do Paquistão nunca cante, 500 milhões de pessoas (até 50% da
tinham parecido mais artificiais, mas a cri- população em algumas áreas) eram anal-
se política tampouco tinha sido tão aguda e fabetos, os avanços na saúde pública e nas
havia elementos favoráveis. O país prospe- comunicações eram localizados, reinava
rava: nos primeiros anos do novo século, a corrupção profunda nas províncias e no
suas taxas percentuais de crescimento supe- centro, e – alvo de críticas internas e inter-
raram qualquer uma na Europa, e o padrão nacionais – a economia não tinha sido ca-
estabelecido de poder, monopolizado pelos paz de acompanhar as conquistas de seus
militares e latifundiários feudais, estava sen- concorrentes asiáticos. O crescimento em
do diluído por vozes liberais e democráticas, 30 anos de independência foi, em média,
principalmente nas grandes cidades e uni- de cerca de 3%. Na década seguinte, acele-
versidades. rou sem parar a um nível em torno dos 7%,
No final do século, a Índia se transfor- gerando consequências negativas para os
mara em muito mais de metade do que ha- balanços orçamentário e externo, e temores
via sido antes de 1947. Depois da Primeira inflacionários.
Guerra Mundial, o mundo se maravilhava Somente na década de 1990, o relaxa-
com os milagres econômicos na Alemanha mento dos controles do Estado, impostos
e no Japão, as economias do Sudeste Asiá- e tarifas mais baixos e políticas financeiras
tico tinham crescido de forma miraculosa, rigorosas começaram a prometer taxas de
ainda que, por vezes, com menos disciplina; crescimento animadoras e sustentáveis ao
mas o subcontinente indiano geralmente era mesmo tempo.
considerado como área de desastre. Ainda Ao contrário da China, a Índia nunca
assim, a Índia realizou seu próprio milagre constituiu uma unidade política. Apesar da
lidando com problemas econômicos, sectá- secessão do Paquistão em 1947, continuou
450 | PETER CALVOCORESSI

sendo um dos maiores Estados do mundo, munistas nas eleições de 2004 e o desgaste
étnica e linguisticamente tão diverso quan- da confiança que caracterizara as últimas
to qualquer outro. Gandhi e Nehru lhe de- décadas do século XX. Essa confiança era
ram as características de uma democracia alimentada por crescimento econômico im-
secular tolerante, mas Indira Gandhi con- pressionante, mas muito mal distribuído e
siderou difícil mover-se entre esses ideais dolorosamente ausente das amplas regiões
e, por um lado, a necessidade de um país rurais da Índia. Apesar de seus êxitos, con-
grande de governo com autoridade e, por tinuava sendo um país pobre e analfabeto,
outro, os conflitos entre culturas e religiões onde a prosperidade muitas vezes contri-
ancestrais. Os governos que vieram depois buía para as divisões sociais e econômicas
dela eram fracos e instáveis, levando a seis que não deixavam esquecer da contínua
anos com o nacionalista hindu BJP no po- ampliação da lacuna entre ricos e pobres
der, grave violência (principalmente em desencadeada na Europa Ocidental pela
Gujarat, em 2002), ressurgimento dos co- Revolução Industrial.
Península
Indochinesa 17
A Indochina foi a arena onde se deu a mais poderia prover um caminho ao sul da Chi-
turbulenta disputa no Sudeste Asiático no na e foi ampliado tomando-se o Camboja e
pós-guerra. Essa região, reunida pelos fran- Luang Prabang sob a tutela dos franceses. A
ceses, continha os protetorados de Anam e aquisição de Anam e Tonkin levou a uma
Tonkin, a colônia da Cochinchina (de raça impopular guerra com a China, enquanto as
anamita, cultura chinesa e chamada, em ações ocidentais e de orientação hindu puse-
seu conjunto, de as três Kys) e os reinos ram a França em conflito com os britânicos
protetorados de Luang Prabang, ou Laos, e na Birmânia, onde eles foram contidos pelo
Camboja (de raça tai e cultura hindu). Os vice-rei lorde Dufferin (que temia – ou, tal-
antepassados khmers dos modernos cam- vez tenha inventado – uma ameaça francesa
bojanos governaram um império que, em à Índia), e levou também a uma hostilidade
seu ápice, no século XII, chegava de um mais duradoura com o reino independente
oceano a outro e incluía as regiões, ao sul, da Tailândia. O poder francês permaneceu
de Birmânia, Sião, Laos e Anam. No Laos, substancialmente inabalado até 1940.
os invasores tais estabeleceram uma supre- Durante a ocupação japonesa na Segun-
macia no século XIII. No XIX, o Camboja e da Guerra Mundial, as três Kys se tornaram
o Laos estavam sob ameaça do Anam, mas o Estado autônomo do Vietnã; e, com a re-
foram salvos pela França. tirada dos japoneses, Ho Chi Minh, o líder
Os franceses se estabeleceram na Ásia da coalizão nacionalista dominada pelos
depois de outras potências europeias. Suas comunistas, proclamou a República Inde-
derrotas na Guerra Franco-Prussiana os pri- pendente do Vietminh. Como na Indonésia
varam de território, recursos valiosos, po- e na Coreia, considerações práticas deter-
pulação, prestígio e respeito por si próprios. minaram o rumo dos eventos com efeitos
E, embora a recuperação tenha sido rápida, mais abrangentes do que o cogitado naquele
a aquisição de um novo império colonial momento. Quando a guerra terminou, os
na década de 1880 foi, em um certo senti- britânicos assumiram o controle ao sul do
do, uma compensação que tomou a forma Paralelo 16, e os chineses, a região ao nor-
de uma competição por qualquer coisa que te dele. Ambos se retiraram em 1946, mas a
se pudesse ganhar a partir da desintegração China abriu caminho para a volta dos fran-
dos Impérios Chinês e Otomano. A Tunísia ceses, que chegaram para encontrar Ho Chi
foi praticamente anexada. Madagascar foi Minh no controle do norte, tendo o impe-
ocupada, e as três Kys foram transformadas rador anamita Bao Dai, que tinha abdicado
no núcleo de um domínio indochinês que em 1945, como seu principal conselheiro.
452 | PETER CALVOCORESSI

CHINA

Caobang
Laocai

Ri
o
Ve
Langsong

rm
el
ho
Den Bien Phu
Hanoi

Haifong

Luang GOLFO DE
Prabang TONKIN
V
IE Hainan
TN
Rio Mekong à Vinh
LA

Vientiane
O
S

Antiga linha divisória


Norte-Sul – Paralelo 17
Quang Tri
Hue
Danang

TAILÂNDIA

Cong Tium

Pleiku
Bangcok
Battambang CAMBOJA
Buon MeThuot
Nha Trang
Camranh
Dalat

Phom Pehn
(Saigon)
Cidade de Ho Chi Minh

Delta do
Rio Mekong

Trilha Ho Chi Minh

Fronteira nacional 0 75 150 km

Rio 0 50 100 milhas

Figura 17.1 Vietnã, Camboja e Laos.


POLÍTICA MUNDIAL | 453

A França não teve a coragem de dar o Em 1950, cinco meses de discussões em Pau
passo extremo, mas simples, dado na Índia sobre avanços constitucionais exacerbaram
pelo governo trabalhista britânico. Os fran- todas as partes, enquanto, na Indochina, o
ceses começaram reconhecendo o governo Vietminh foi à luta sob o comando do hábil
de Ho como autônomo dentro da União general Vo Nguyen Giap, em uma ofensiva
Francesa, mas se recusaram a aceitar sua espantosamente bem-sucedida. O marechal
demanda de união das três Kys. Próximo Alphonse Juin foi enviado ao local. Bao Dai
ao final de 1946, a política francesa endu- também retornou. Pierre Mendès-France
receu como resultado de pressões à direita. e outros começaram a dizer que era hora
Haiphong foi bombardeada e Hanói, ata- da França sair da Ásia. O governo francês,
cada pelo Vietminh, que estava convenci- que tinha se recusado firmemente a admitir
do de que a França pretendia derrubar Ho. que a situação fosse internacional em qual-
Cerca de 40 franceses foram mortos e 200, quer sentido, cedeu a ponto de aceitar ajuda
sequestrados. Era o começo de uma guerra econômica e militar dos Estados Unidos.
que durou sete anos e meio. Depois de algu- Lutar pela supremacia francesa não trouxe
ma hesitação, os franceses decidiram desis- simpatia nem sucesso, e a única maneira de
tir de mais negociações com Ho e passar a continuar a luta era chamá-la de combate
Bao Dai, a quem ofereceram a união das três ao comunismo e evocar a ajuda dos ami-
Kys que haviam recusado a Ho. O chamado gos anticomunistas da França. Nessas novas
experimento Bao Dai foi uma tentativa de bases, o general Jean de Lattre de Tassigny
separar comunistas de outros nacionalistas foi nomeado alto comissário e comandante
e preservar, com a complacência de Bao Dai, em chefe em dezembro de 1950. Com um
uma dominação francesa geral em toda a novo general para elevar o moral, com aju-
Indochina. Um acordo assinado na Baía de da norte-americana e com a negociação de
Along, em 1948, corporificava essa política um acordo político sobre o status dos países
(que seria refletida no sul na década seguin- da Indochina dentro da União Francesa, os
te pelos norte-americanos, com o presidente franceses fizeram seu último esforço, mas
Diem como nacionalista anticomunista), e o o Vietminh atacou primeiro e mostrou que
novo Estado do Vietnã foi constituído for- era capaz de travar tanto uma guerra aberta
malmente em junho de 1949. Bao Dai, que quanto operações de guerrilha.
havia estado na França durante as negocia- Dentro de um ano, os franceses perde-
ções, voltou a seu país como chefe de Estado. ram de Lattre, que foi enviado para casa, in-
O Vietnã foi proclamado Estado Associado válido e moribundo.
na União Francesa, e o Laos e o Camboja O exército vietnamita de Bao Dai estava
receberam o mesmo status. Entre os que se se organizando com lentidão extraordiná-
recusaram a cooperar com Bao Dai estava o ria, e os exércitos privados, que complica-
líder católico romano e futuro presidente do vam a situação, não estavam se submeten-
Vietnã do Sul, Ngo Dinh Diem. do a seu controle. A ajuda dos chineses ao
Mas o Vietminh não desistiu, e a vitó- Vietminh aumentava. Em 1952, as perdas
ria dos comunistas chineses do outro lado francesas em homens, material e moral
da fronteira norte transformou a situação. eram consideráveis, e, em 1953, o Vietminh
A tentativa dos franceses de manter o po- levou a guerra ao Laos, ameaçou a capital
der pelo sistema do Estado Associado semi- real de Luang Prabang e forçou os franceses
-independente levou a uma disputa prolon- a desviarem forças do Vietnã para a planície
gada entre eles e Bao Dai, e não teve êxito. de Jars, no Laos. No Camboja, o rei Noro-
454 | PETER CALVOCORESSI

dom Sihanouk elevou as apostas políticas ocorreu em Dien Bien Phu, uma pequena
ao exigir um status que não fosse inferior, guarnição ou acampamento localizado em
em nenhum aspecto, ao da Índia e do Pa- uma depressão no noroeste. Sua posse era
quistão em relação à Grã-Bretanha, e depois importante em relação às ameaças do Viet-
constrangeu os franceses ao se retirar tem- minh ao vizinho Laos, as quais eram impor-
porariamente à Tailândia. Em meio a esse tantes, pois demonstravam a incapacidade
cenário de desintegração, os franceses nada da França de proteger um protetorado e, ao
podiam fazer a não ser oferecer uma revi- mesmo tempo, desviavam suas forças da de-
são da Constituição da União Francesa e dar fesa do delta do Rio Vermelho, estratégica e
início a mais uma rodada de negociações politicamente central, e de Hanói. Dien Bien
com Bao Dai, bem como com os monarcas Phu mudou de mãos mais de uma vez du-
laosiano e cambojano. (Sihanouk subiu ao rante a guerra. Em novembro de 1953, foi
trono em 1940, aos 18 anos. Em 1955, re- tomada pelos franceses que, depois de he-
nunciou em nome de seu pai, que reinou até sitarem um pouco, decidiram permanecer.
1960, com Sihanouk de primeiro ministro. O general Navarre, agora no comando
Em 1956, Zhou Enlai e Sihanouk assinaram das forças francesas e vietnamitas que supe-
um acordo de não intervenção. Sihanouk ravam em muito a quantidade do Vietminh,
visitou Pequim, Moscou, Praga e Belgra- acreditava que, se conseguisse forçar o ini-
do, além de Madri e Lisboa, e adotou uma migo à batalha, poderia lhe impor uma gran-
política de fazer os mais amplos contatos de derrota e reduzir permanentemente suas
diplomáticos e receber ajuda do maior nú- operações a uma escala menor, de guerrilha.
mero de fontes possível. Entretanto, parecia Ele acreditava que o calcanhar de Aquiles
ter uma preferência pela China, que voltou do Vietminh estava nos números e que nem
a visitar em 1958 e 1960. Em 1960, retomou chineses nem russos, embora dispostos a
o posto mais alto no país, com o titulo de fornecer armas e equipamentos, enviariam
chefe de Estado.) soldados para o outro lado da fronteira por
A essas alturas, nada restara dos france- medo de retaliação norte-americana. Sendo
ses na Indochina, com exceção da necessi- assim, Dien Bien Phu deveria proporcionar
dade de preservar o orgulho. Eles estavam o cenário para uma batalha que mutilasse o
preocupados com o ressurgimento da força Vietminh.
alemã, diante da qual a do Vietminh pare- No início de 1954, as principais potên-
cia insignificante e irrelevante para a posi- cias envolvidas chegaram a um acordo para
ção francesa no mundo, e tinham confiado realizar uma conferência internacional so-
as questões na Indochina a generais que, bre a Indochina e a Coreia, e à medida que
muitas vezes estavam fora da realidade e as preparações avançavam, ficou cada vez
em conflito entre si e com seus colegas civis, mais claro que os eventos em Dien Bien
lutaram e perderam uma guerra colonial ao Phu teriam uma forte influência no rumo
velho estilo. Se o Vietminh era importante das negociações. Também ficou claro que
para alguém, era para os Estados Unidos, os franceses, longe de dar um golpe decisi-
que já estavam pagando indiretamente e vo, estavam sendo cercados e encurralados
consideravam como uma guerra anticomu- por uma força surpreendentemente grande
nista de estilo novo. Era necessário apenas e corriam o risco de ter de capitular. O que
um evento extremo para fazer com que a não estava tão claro nessas circunstâncias
França reconhecesse que o que realmente era se os aliados da França deveriam fazer
queria na Indochina era sair. Esse evento um esforço especial e intervir. Os norte-
POLÍTICA MUNDIAL | 455

-americanos, que tinham se oposto a qual- -americana unilateral, e Eden, que também
quer envolvimento desse tipo, começaram a estava em Paris a caminho de Genebra,
repensar e defender a visão de que a perda voltou a Londres, onde uma reunião de
da Indochina seria um golpe fatal no Su- gabinete recusou apoio. Eden comunicou
deste Asiático e até mesmo fora dali. Dul- essa decisão a Georges Bidault, ministro
les apelou à ação unida internacional para francês de relações exteriores, no aeropor-
impedir a imposição do comunismo no su- to de Orly, a caminho de Genebra, e assim
deste da Ásia. Líderes parlamentares e alia- ganhou a reputação de ser o homem que
dos foram sondados sobre uma intervenção salvou o mundo de ser jogado em uma
conjunta na Indochina e a retaliação contra nova guerra mundial pela temeridade dos
a própria China em caso de um contra-ata- Estados Unidos em Dien Bien Phu. Toda-
que chinês. A resposta foi desfavorável. via, parece mais verdadeiro julgar que a
A Guerra da Coreia deixou os Estados intervenção norte-americana já tinha sido
Unidos com pouco apetite para aventuras descartada em função da oposição dos
asiáticas, e seus aliados não tinham se re- membros de seu Estado-Maior (com a ex-
cuperado da desconfiança em relação ao ceção do almirante Radford), das opiniões
macarthurismo, que detectavam ressurgin- parlamentar e pública norte-americanas e
do na visão do almirante Arthur Radford, da falta de inclinação pessoal de Eisenho-
o chefe do Estado-Maior da marinha, que wer. Dentro de pouco tempo, a visão de
defendia os ataques aéreos norte-america- que a Indochina era essencial para o mun-
nos. Eisenhower estava disposto a dar seu do livre foi abandonada, e os destinos do
consentimento à política de Radford se o Vietnã foram tratados mais uma vez como
Congresso concordasse e os Estados Uni- uma questão local.
dos não fossem o único país a intervir, mas A Conferência de Genebra, convocada
o general Ridgway, presidente do Estado- para discutir a Coreia e, em segundo plano,
-Maior das forças armadas, foi contra a a Indochina, começou em 26 de abril. Dien
intervenção porque ela forçaria os chine- Bien Phu caiu em 7 de maio. O governo
ses a entrar na guerra, como tinham feito francês também caiu e Mendès-France se
na Coreia. Eisenhower, que tinha feito sua tornou primeiro-ministro com a promes-
campanha à presidência com uma pro- sa de chegar a um acordo na Indochina até
messa de interromper a guerra na Coreia, 20 de julho ou renunciar. Em 23 de junho,
talvez soubesse que suas condições para Mendès-France e Zhou Enlai mantiveram
intervir tinham poucas probabilidades de uma discussão privada em Berna antes de
se cumprir, mas permitiu que Dulles fosse o segundo viajar a Pequim durante um in-
em busca da cooperação aliada. Depois de tervalo na conferência. Ao mesmo tempo,
discutir a intervenção em Londres e Paris, Churchill e Eden visitaram Washington
Dulles voltou a Washington com a impres- para discutir uma série de tópicos e con-
são de que tinha garantido um acordo com sertar os danos causados às relações anglo-
vistas a uma conferência geral para elabo- -americanas pelos mal-entendidos entre
rar um plano, mas Eden, com quem suas Dulles e Eden. Pouco depois da retomada
relações pessoais eram ruins, negou essa da conferência, foram assinados três acor-
interpretação de suas conversas e se recu- dos de armistício. O Vietnã foi dividido
sou a enviar qualquer representante a uma com base no Paralelo 17 (uma opção in-
discussão preliminar. Dulles voltou a Paris termediária), o Vietminh concordou em se
com uma proposta de intervenção norte- retirar do Laos e do Camboja, e foram cons-
456 | PETER CALVOCORESSI

tituídas três comissões de armistício com ganhando tempo para que os ânimos esfrias-
membros indianos, poloneses e canadenses, sem, mas, em dezembro de 1959, o general
para supervisionar sua implementação. A Phoumi Nosavan deu um golpe bem-suce-
conferência marcou a derrota da França e dido, que teve o efeito oposto e também evo-
sua retirada de toda a Indochina. Ela pre- cou, alguns meses mais tarde, outro golpe
tendia proclamar a criação de três novos liderado pelo capitão Kong Le, um símbolo
países independentes: Laos e Camboja, que um tanto ingênuo dos homens comuns que
seriam protegidos contra seus inimigos estavam saturados de conflitos e corrupção.
hereditários no Vietnã e na Tailândia, por Souvanna Phouma declarou seu apoio a
garantias da China, França, Grã-Bretanha e Kong Le, tornou-se primeiro-ministro mais
URSS; e o Vietnã, que tinha conquistado a uma vez e conseguiu por pouco tempo con-
independência, mas não a integração. ciliar o general e o capitão, mais uma vez,
No Laos, embora o Acordo de Genebra com uma chapa neutralista. Mas essa solu-
estabelecesse a retirada das forças do Viet- ção não durou, em grande parte porque os
minh, havia outras para manter a revolta em Estados Unidos conseguiram reconstruir
andamento. O Pathet Lao (criado, em 1949, uma frente de direita sob a liderança do ge-
por Ho como uma força suplementar do neral Nosavan e do príncipe Boun Oum, um
Vietminh, com um membro da família real parente distante da família e governante su-
laosiana, o príncipe Souphanouvong, entre bordinado de Champassak (no sul).
seus principais líderes) tinha estabelecido Souvanna Phouma fugiu para o Cam-
controle sobre duas províncias do norte do boja, de onde foi transportado em um avião
país. Em 1956, o príncipe visitou Pequim e russo para se reunir com seu meio-irmão e
Hanói e, no ano seguinte, negociou uma co- Kong Le. Ele também foi cortejado por Boun
alizão com seu meio-irmão Souvanna Phou- Oum e Nosavan, mas preferiu fazer uma via-
ma (que era primeiro-ministro), segundo a gem pelo mundo. Nesse meio-tempo, Kong
qual o Laos seria tornado neutro. Mas essa Le impôs uma derrota a Boun Oum e Nosa-
coalizão só durou até 1959, quando Sou- van. Em 1961, os três príncipes se reuniram
phanouvong e outros líderes do Pathet Lao na Suíça e chegaram a um acordo segundo
foram presos. (Coalizões posteriores, em o qual o Laos se tornaria um Estado neutro,
1962 e em 1973, também duraram pouco.) sem alianças militares. Em Washington, um
Os Estados Unidos, tendo adotado a teoria novo presidente, J. F. Kennedy, estava mais
do dominó, de que o comunismo conquis- inclinado do que estivera Eisenhower a acei-
taria todo o Sudeste Asiático se obtivesse tar um Laos neutro, em parte por decepção
uma vitória em qualquer parte da região, com a direita laosiana e, em parte, pelo fra-
não estavam dispostos a tolerar o neutralis- casso da intervenção militar direta na Baía
mo e decidiram excluir, não apenas o prínci- dos Porcos, em Cuba. A guerra chegou ao
pe comunista, mas também os neutralistas. fim quando os Estados Unidos e a China
Começaram a derramar dinheiro no Laos e chegaram a um acordo de bastidores por
a dar outras ajudas, com um descuido que um Laos neutro e pela evacuação das tropas
gerou muita corrupção e dois anos de guerra estrangeiras, ou seja, das tropas norte-ame-
civil. Um novo governo no Laos, exageran- ricanas que a China temia e que os Estados
do as incursões norte-vietnamitas, solicitou Unidos consideravam engajadas em uma
uma missão e uma força da ONU. Hammar- causa inútil. Mas o Laos continuava a ser
skjöld visitou o Laos pessoalmente e enviou usado por Ho para enviar mantimentos ao
um representante para observar e relatar, Vietnã do Sul, a autoridade do Pathet Lao se
POLÍTICA MUNDIAL | 457

difundia, e as forças norte-americanas foram rência de Genebra, não se considerava obri-


substituídas por um exército comunista ati- gado a nada que tivesse sido decidido nela.
vo, em parte laosiano e em parte vietnami- Para os franceses, o armistício foi uma
ta – que chegou a 60 mil membros ou mais. porta de saída, pois conseguiram encerrar
Em 1963, a coalizão laosiana e o país ficaram uma guerra que estavam perdendo. Depois
praticamente divididos, com o Pathet Lao disso, assistiram com uma presunção com-
governando o nordeste, e Souvanna Phou- preensível, mas irritante, enquanto os nor-
ma, o restante. A partir de 1964, os Estados te-americanos repetiam, na fase seguinte,
Unidos inverteram a política de retirada, muitos dos erros que eles haviam cometido
acumularam grandes forças terrestres e usa- entre 1945 e 1954.
ram a força aérea em operações do gover- Para russos e chineses, o acordo era um
no laosiano contra o Pathet Lao. O Laos se arranjo político que eles impuseram a Ho:
tornou um importante teatro de guerra dos os primeiros, porque queriam que a França
Estados Unidos, como suporte para travar a abafasse a nascente Comunidade Europeia
guerra no Vietnã do Sul e proteger as forças de Defesa; e os segundos, porque queriam
norte-americanas de cerca de 50 mil solda- retirar as forças e as influências ocidentais
dos na Tailândia. Os Estados Unidos lan- de um país próximo de suas fronteiras.
çaram um peso maior em bombas no Laos Ambos podem ter suposto que Ho em pou-
do que tinha sido lançado na Alemanha do co tempo governaria tão efetivamente em
início ao fim da Segunda Guerra Mundial. Saigon quanto em Hanói, e se depararam
No Vietnã, o Acordo de Genebra, de com novos problemas quando isso não
1954, deu a Ho Chi Minh metade do país e aconteceu.
a expectativa do restante em menos de dois Para os norte-americanos, o Acordo de
anos, se os termos fossem integralmente Genebra marcou o fim da presença francesa
aceitos e implementados. O acordo era um na Ásia, que, por mais desagradável que fos-
armistício assinado por generais em nome se, segundo princípios gerais anticolonialis-
da França e do Vietminh, e traçava uma li- tas, pode ter sido considerado útil em termos
nha, impunha um cessar-fogo e organizava anticomunistas. Tendo decidido, em 1954,
o reagrupamento de forças militares e o re- não fortalecer o domínio francês por mais
assentamento de civis em cada lado da linha. tempo, os Estados Unidos buscavam uma
A conferência também produziu uma série força alternativa anticomunista e antichi-
de declarações, incluindo uma declaração nesa, e desaprovaram o Acordo de Genebra
final, as quais foram apresentadas, mas não porque ele não apenas deixava de constituir
assinadas. Os Estados Unidos e o Vietnã do essa força mas também ameaçava acelerar
Sul se dissociaram da cláusula dessa declara- a expansão comunista chinesa ao dar a Ho
ção que previa eleições em todo o Vietnã até todo o Vietnã em duas partes – o norte pelo
meados de 1956. Eles acreditavam que essas armistício e o sul por meio de eleições: eles
eleições tenderiam a transferir todo o país ao consideravam Ho um satélite e não levavam
governo comunista, já que a parte ao norte em conta suas chances de se tornar o Tito
da linha do armistício tinha a maioria da da Ásia. Portanto, decidiram manter a in-
população – que provavelmente votaria com dependência do regime anticomunista esta-
solidariedade de 90%, característica dos re- belecido por Bao Dai no sul e também criar
gimes autoritários. O governo do Vietnã do uma nova aliança anticomunista para conter
Sul, que tinha sido estabelecido em Saigon a China na Ásia como a OTAN tinha conti-
pela autoridade de Bao Dai antes da Confe- do a URSS na Europa. Assim, o Tratado de
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Defesa Coletiva do Sudeste Asiático (o Pac- nesa. Pode-se presumir que apenas a pers-
to de Manila, que estabelecia a Organização pectiva de eleições, em 1956, o convenceu a
do Tratado do Sudeste Asiático (South-East chegar a um acordo com a França quando
Asia Treaty Association, SEATO) foi assi- ele poderia esperar, não apenas a rendição
nado em setembro de 1954, por três países de Dien Bien Phu, mas todo o colapso da
asiáticos e cinco não asiáticos: Filipinas, Tai- posição francesa no mesmo ano. Em pouco
lândia, Paquistão, Estados Unidos, Austrá- tempo, ele viu que suas esperanças seriam
lia, Nova Zelândia e França. Os signatários frustradas e que o paralelo 17 era outra li-
se comprometiam a agir de forma conjunta nha de armistício destinada a se consolidar
em caso de agressão a qualquer um deles em como fronteira política. Mais além, era uma
uma área designada, e a discutir conjunta- linha de consequências mais graves do que
mente no caso de ameaças que não de ação a divisão entre as duas metades da Coreia,
armada (a saber, atividades subversivas). A pois, no Vietnã, o sul alimentava o norte e
área designada era a região geral do Sudeste a perpetuação da divisão implicava proble-
Asiático, incluindo o território dos signatá- mas econômicos, bem como decepção pela
rios e a área geral do Pacífico Sul, a 20 graus negativa da reunificação. No período de in-
e 30 minutos ao Norte. Portanto, incluía o certezas entre a assinatura do armistício e a
Vietnã, o Camboja e o Laos, mas não Taiwan data estabelecida para eleições que nunca
nem Hong Kong. foram realizadas, Ho deu início a um pro-
A SEATO nunca adquiriu muita impor- grama de reforma agrária, além de buscar
tância como organização. Nenhum país pu- expandir a indústria e explorar a riqueza
ramente asiático importante aderiu; com ex- mineral do Vietnã do Norte; mas a reforma
ceção do Paquistão, que, distante da China agrária, que tinha como modelo a coleti-
e sem se preocupar verdadeiramente com vização chinesa, provocou uma revolta de
a expansão chinesa no Sudeste Asiático ou camponeses, gerando um reino de terror
em qualquer outro lugar, aderiu por outras que saiu de controle e causou cerca de 50
razões – para agradar os Estados Unidos e mil mortes. A industrialização demandava a
receber seu apoio contra a Índia. A França ajuda de países avançados, como a URSS e a
foi se tornando um membro cada vez mais Tchecoslováquia, em vez da China; e, depois
cínico; a Grã-Bretanha, cada vez mais cons- da cisão sino-russa nos anos de 1950, Ho ti-
trangida, equilibrando as obrigações de alia- nha de se equilibrar entre Moscou e Pequim.
da leal (com interesses especiais na região Inicialmente, ele deixou que as relações com
enquanto mantivesse obrigações com a Ma- a segunda se deteriorassem e, em 1957, re-
lásia) em relação ao desejo de se manter fora cebeu Voroshilov em Hanói, mas isso desa-
do Vietnã e à tentação de criticar os erros gradou, em parte, alguns de seus colegas. O
dos Estados Unidos no país. A SEATO não próprio Ho tinha associações muito antigas
era mais do que os Estados Unidos, repre- com a URSS e o comunismo moscovita,
sentados de outra forma. Seu propósito era e o general Giap, apoiado pelo exército do
garantir a independência do Vietnã do Sul, Vietnã do Norte, expressou a tradicional
mas ela não poderia salvar o país mal gover- desconfiança vietnamita em relação à Chi-
nado do dilema de desabar ou sobreviver na, mas outros líderes eram pró-chineses,
como um protetorado norte-americano (ela incluindo Truong Chinh, cuja força estava
foi dissolvida em 1975). no Partido Lao Dong (fundado em 1951
Ho aceitou o armistício de Genebra e essencialmente um Partido Comunista,
com relutância e sob pressão russa e chi- embora acolhesse alguns notáveis não co-
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munistas). Ho passou dois meses em Mos- soldados franceses só tenham saído do país
cou em 1959, voltando a Hanói via Pequim. em 1956, a ajuda financeira dos Estados
Nessa época, os combates tinham reiniciado Unidos foi transferida dos franceses ao
no sul, e o problema de se livrar dos france- governo de Diem desde o primeiro dia de
ses havia sido superado em muito pelo pro- 1955. Diem era um intelectual antifrancês,
blema muito mais sangrento de se livrar dos não particularmente pró-americano e de
norte-americanos. Ele não viveu o suficiente forma nenhuma um democrata, que trata-
para ver isso acontecer, morrendo em 1969. va o Vietnã do Sul como um domínio fami-
A política dos Estados Unidos durante liar ou pessoal que administrava por meio
os governos de Eisenhower e Kennedy se de uma rede de sociedades secretas, de for-
baseava na ideia de que o Sudeste Asiático ma nepotista, intolerante e néscia. Ele en-
era importante para os norte-americanos trou em conflito com os budistas, o grupo
em função da teoria do dominó. Essa teo- religioso dominante, e com os povos das
ria, que não se mostrou verdadeira, pare- montanhas que, embora sendo apenas uma
cia muito plausível nas décadas de 1950 e pequena minoria da população, habitavam
de 1960, devido à força dos comunistas na mais de metade das zonas rurais nas quais
imensa Indonésia e a introdução da Demo- os movimentos subversivos podem ser
cracia Guiada de Sukarno (ver o Capítulo sustentados. Também nas cidades, Diem e
18). A determinação norte-americana de seus parentes, que incluíam cinco irmãos,
conter o previsto dilúvio comunista partia ficaram cada vez mais impopulares. As ci-
do pressuposto de que isso poderia ser feito dades se tornaram geradores de inflação e
sem comprometer forças dos Estados Uni- crime, enquanto as regiões rurais passaram
dos em batalhas no continente asiático. A a ser um campo aberto para resolver desa-
crise no Vietnã durante o governo Johnson venças privadas e para extorquir deman-
foi precipitada quando se viu que esse pres- das, jogando os camponeses nos braços da
suposto não era verdadeiro, porque o gover- oposição comunista.
no Diem no Vietnã não estava à altura da Um primeiro golpe contra o regime,
tarefa de derrotar o norte. A teoria do do- em novembro de 1960, fracassou; mas, três
minó investia o Vietnã com uma relevância meses depois, a oposição estava fortalecida
simbólica que estava além de sua importân- o suficiente para atacar o palácio de Diem
cia intrínseca. Os Estados Unidos, retratan- pelo ar. Mais ou menos ao mesmo tempo,
do o regime de Diem com uma maravilhosa Ho decidiu ajudar materialmente as forças
imprecisão como se fosse uma democracia, que estavam se unindo contra Diem na zona
avaliaram mal seu homem. rural. Apesar da pressão norte-americana,
O Vietnã do Sul deu início à sua carrei- Diem tinha se recusado a fornecer alimentos
ra solo de forma comparativamente pacífica ao Vietnã do Norte, acreditando equivoca-
e próspera, apesar da chegada, do norte, de damente que o regime estava por cair sob o
cerca de um milhão de refugiados (dois ter- peso das revoltas camponesas. Assim, Ho re-
ços deles eram católicos). cebeu um motivo econômico e político para
Seu primeiro-ministro, Ngo Dinh reiniciar a guerra. Na época do armistício de
Diem, católico do norte, eliminou Bao Dai, Genebra, os comunistas do sul, muitos dos
que foi deposto em 1955 (e foi embora para quais recuaram para o norte, tinham oculta-
a França, onde morreu em 1997), e, um ano do suas armas contra uma possível retoma-
mais tarde, fundou uma república com ele da da luta. Uma oposição comunista ativa a
próprio na presidência. Embora os últimos Diem tinha surgido sob o nome de Vietcong
460 | PETER CALVOCORESSI

– originalmente um termo pejorativo, como em detrimento da segunda, com resulta-


Whig ou Tory na Inglaterra. Em 1960, foi dos desastrosos. O país acreditava que suas
formada uma Frente de Libertação Nacional opções eram a não intervenção e a inter-
(FLN), e, em 1962, a Comissão de Controle venção militar modesta e, escolhendo a
Internacional, um grupo observador estabe- segunda, envolveram-se progressivamente
lecido em Genebra oito anos antes, relatou em um dos grandes conflitos da segunda
que o Vietnã do Norte estava intervindo na metade de século. No início da década de
guerra civil no norte, em apoio à FLN. 1960, os norte-americanos se deram con-
Em 1963, a hostilidade dos budistas ao ta da fragilidade de sua política de apoio a
regime Diem chegou ao clímax. Os monges regimes sul-vietnamitas fracos e também
budistas se suicidavam ateando-se fogo, em se comprometeram mais com ela. Uma das
protestos horríveis contra a perseguição. As primeiras decisões de Kennedy ao tomar
autoridades retaliaram destruindo pagodes e posse, em 1961, foi aumentar a ajuda em
torturando monges. Os Estados Unidos cor- termos de pessoal e de material, mas sem
taram a ajuda a Diem e instigaram um golpe comprometer tropas de combate. Ele acei-
contra ele, que, junto com seu irmão mais tou os conselhos do general Maxwell Taylor,
impopular, Ngo Dinh Nhu, foi morto, o re- um ex-chefe do Estado-Maior das forças ar-
gime desabou, e o general Duong Van Minh madas, para que aumentasse as forças nor-
(“O Grande Minh”) se tornou chefe de uma te-americanas, e, em 1962, seus aviões esta-
série de governos militares passageiros. Nos vam realizando missões de combate e a CIA
18 meses seguintes, aconteceram meia dú- desenvolvia operações mais ou menos clan-
zia de golpes. O general Minh foi forçado a destinas; mas, alguns meses antes de seu as-
se retirar para um segundo plano dois meses sassinato, em 1963, ele ordenara um recuo
depois da morte de Diem. O general Nguyen gradual, que culminaria em uma retirada
Khanh, mais combativo em relação ao Vietnã total até o final de 1965. Contudo, a inicia-
do Norte, mas não mais seguro em Saigon, tiva escapava das mãos dos Estados Unidos
sofria a oposição dos budistas e dos estudan- e caía nas do Vietcong, de forma que uma
tes que exigiam o fim do governo militar. Ele retirada norte-americana ficava mais pro-
foi deposto no início de 1965 pelo ainda mais blemática. O Vietcong, ajudado pelo mau
combativo general Tran Van Minh (“O Pe- governo de Diem, a confusão entre seus su-
queno Minh”). A partir da segunda parte de cessores, e pelo Vietnã do Norte e pela Chi-
1965, os homens em ascensão eram o general na, ampliou seu controle até o ponto em que
Nguyen Cao Ky, o mais combativo dos gene- as tropas sul-vietnamitas e norte-america-
rais a obter o poder e o mais determinado a nas corressem risco de ser encurraladas em
levar a guerra para além do Paralelo 17, e o bases fortificadas. A política de isolar os al-
general Nguyen Van Thieu. deães dos guerrilheiros, copiada da Malasia,
Os Estados Unidos tinham dois obje- não teve êxito porque as diferenças entre
tivos incompatíveis, pois estavam determi- esses dois grupos no Vietnã eram insigni-
nados a impedir que houvesse um governo ficantes diante das diferenças entre aldeães
comunista no Vietnã e a não se envolverem malaios e guerrilheiros chineses no país. Os
diretamente no continente asiático. O fra- norte-americanos, vendo que o Vietcong
casso do experimento francês de Bao Dai estava vencendo, decidiram aumentar seu
e de seus sucessores não comunistas criou esforço militar e seu controle sobre os ru-
um dilema, que os Estados Unidos resolve- mos da guerra, e, inicialmente, a posição do
ram situando-o como prioridade máxima Vietcong piorou rapidamente. Assim sendo,
POLÍTICA MUNDIAL | 461

o governo do Vietnã do Norte começou a napalm, gases venenosos e desfolhantes, a


enviar divisões regulares para socorrê-lo. oposição à guerra dentro dos Estados Uni-
A guerra passou a ser travada, sem muito dos se tornou clamorosa e violenta. A frente
disfarce, entre os Estados Unidos e o Vietnã doméstica, mobilizada pela televisão, tomou
do Norte. No sul, os norte-americanos vi- o lado, não somente de um inimigo massa-
savam subjugar, todo o país, mas acabaram crado de forma vil, mas também de seus en-
fracassando, e, olhando agora, pode-se di- tes queridos envolvidos nesses horrores.
zer que teria sido mais sábio adotar a estra- Johnson deu início ao esforço pela paz:
tégia do General Salan de manter os centros propôs pactuar incondicionalmente com
populacionais, de onde nenhum inimigo os o Vietnã do Norte desde que o Vietnã do
teria desalojado, e garantir e isolar a rica, Sul fosse um país independente e neutro,
facilmente defensável e etnicamente dis- e ofereceu 16 bilhões de ajuda ao Sudeste
tinta Cochinchina. Em vez disso, as forças Asiático, incluindo o Vietnã do Norte, mas
norte-americanas foram multiplicadas ano não estava disposto a aceitá-lo como parte
a ano: de 23 mil soldados no final de 1964 nas negociações. Como resposta, Ho listou
a 390 mil dois anos depois, e a 550 mil no um conjunto de condições que não eram
início de 1968. Quando a retirada começou, incompatíveis com as propostas dos Esta-
em julho de 1969, 36 mil desses soldados dos Unidos, e Johnson abriu implícita, mas
haviam morrido. No ponto alto, as forças não explicitamente, a porta da sala de nego-
combinadas de Estados Unidos, Vietnã do ciações também ao Vietcong. Todavia, ele
Sul e aliados chegaram a 1,25 milhão de sol- não estava disposto a interromper todos os
dados, apoiadas por uma poderosa força aé- bombardeios imediatamente (uma pausa em
rea. Contra eles, o general Giap revelou-se maio durou apenas alguns dias) nem aceitar
um brilhante comandante guerrilheiro que uma retirada das tropas norte-americanas
sabia até onde seguir e quando desviar dos antes de começar as negociações. No início
ensinamentos estratégicos de Mao Zedong. de 1966, Johnson se reuniu com Ky e Thieu
Em julho de 1964, o destróier norte- em Honolulu. Os bombardeios foram inter-
-americano Maddox, operando com forças rompidos por várias semanas e as negocia-
marítimas e terrestres sul-vietnamitas con- ções não pareciam improváveis, mas a guer-
tra o Vietnã do Norte, foi atacado duas vezes ra continuava, aumentando em intensidade
no Golfo de Tonkin. O presidente Johnson e horror. Os apoiadores do Vietcong e outros
usou esse episódio, explicado de manei- eram massacrados pelas armas mais moder-
ra tendenciosa, para obter autorização do nas. Eram caçados e jogados de helicópteros,
Congresso para usar forças norte-america- torturados, violentados e assassinados. Em
nas em combate naval aberto (ele vislum- um famoso caso em My Lai, em 1967, que
brava a possibilidade de uma vitória rápida mais tarde levou a um julgamento penal e a
por meio de bombardeio aéreo). Um ataque condenação nos Estados Unidos, 300 civis
bem-sucedido a uma guarnição norte-ame- foram mortos por uma unidade do exército.
ricana em Pleiku, próximo à linha do armis- No final de 1967, os Estados Unidos es-
tício, no início de 1965, recebeu represálias tavam bombardeando intensamente o norte
por meio de intensos bombardeios, mas a a partir do ar, mas as perdas eram graves;
rápida vitória foi impedida pela ajuda russa e, em uma reunião com Kosygin em Glas-
a Ho, principalmente para a defesa antiaérea boro, em Nova Jersey, Johnson tentou, sem
de Hanói; e, com o acirramento dos bom- sucesso, cooptar a ajuda russa para dar fim
bareios norte-americanos e a introdução de à guerra. No Vietnã do Sul, Ky entrou em
462 | PETER CALVOCORESSI

conflito com os budistas e o governo Ky- mens e recebeu os equipamentos mais mo-
-Thieu se dividiu e foi reformado, tornan- dernos) ou terminá-la. Johnson não tinha
do-se um governo Thieu-Ky (que durou até como vencer, já que não estava disposto a
1971, quando Thieu prevaleceu). Foi decla- usar armas nucleares, nem negociar a paz,
rada uma trégua para o festival do Tet em pois o Vietnã do Norte preferia esperar a
janeiro de 1968, e, em Hanói, o ministro das negociar. Ele estava em busca de objetivos
relações exteriores Nguyen Duy Trinh fez incompatíveis – retirar-se e garantir a exis-
declarações pacíficas; embora tenham sido tência de um Vietnã do Sul separado e não
bem recebidas em Washington, também comunista. O Vietnã do Norte não estava
foram consideradas como um estratagema convencido de que precisava conceder a se-
para encobrir uma ofensiva iminente. Am- gunda parte para obter a primeira, e, quan-
bas as interpretações eram válidas, já que do os Democratas perderam em novembro,
as visões em Hanói estavam divididas. Os o novo presidente, Richard Nixon, viu-se no
falcões otimistas acreditavam que poderiam mesmo dilema. Embora tivesse prometido
tomar Saigon e outras cidades do sul, com o acabar com a guerra, aprovou imediatamen-
apoio ativo da população urbana, causando te a ampliação dos bombardeios no Cambo-
colapso dos exércitos de Thieu. O ataque foi ja, em mais uma vã esperança de chegar a
lançado, pegou os norte-americanos despre- uma vitória rápida.
parados, mas não obteve qualquer de seus Dessa forma, o Camboja foi transfor-
principais objetivos, com exceção da cap- mado em parte do campo de batalha. Em
tura de Hue pela FNL, que a manteve por março de 1970, o príncipe Sihanouk foi de-
dois meses. Mas o ataque teve êxito em um posto por um golpe de seu próprio primei-
aspecto inesperado: embora não tenha des- ro-ministro, o general Lon Nol. Sihanouk
truído o regime de Thieu, gerou uma perda garantiu paz e tranquilidade relativa entre
de vigor em Washington. 1955 e 1965, mas perdeu a amizade dos
Dois meses mais tarde, Johnson anun- Estados Unidos com seu neutralismo e sua
ciou que os bombardeios norte-americanos amizade com Zhou Enlai. O Camboja, as-
seriam limitados substancialmente e que ele sim como o Laos, vinha sendo usado pelo
não concorreria à reeleição para presiden- Vietnã do Norte sem muita consideração
te. Começaram negociações de paz entre por sua neutralidade, e Sihanouk foi criti-
os Estados Unidos e o Vietnã do Norte, em cado por alguns de seus compatriotas por
Paris. O Vietnã do Sul e o Vietcong passa- aceitar desrespeito a direitos de seu país. O
ram a participar das discussões, mas elas novo governo cambojano pediu armas aos
não chegaram a parte alguma. O Vietnã Estados Unidos para se defender contra os
do Norte descobriu que poderia sobrevi- invasores. Em vez de armas, recebeu o exér-
ver ao massacre norte-americano e manter cito norte-americano, acompanhado de for-
o fornecimento de homens e materiais ao ças sul-vietnamitas (inimigos hereditários)
sul usando rotas e métodos que, por serem e por toda a devastação de que a máquina
relativamente primitivos, nunca chegaram militar norte-americana era capaz. O co-
a ser desarticulados totalmente pelos bom- mando norte-americano no Vietnã estava
bardeios aéreos. O Vietnã do Norte também justificadamente ansioso para combater
descobriu que os Estados Unidos realmente o uso do Camboja pelo Vietnã do Norte e
queriam se retirar e entregar a guerra mais injustificadamente convencido de que cap-
uma vez aos sul-vietnamitas (cujo exército turaria amplos estoques e grandes quartéis
foi aumentado a mais de um milhão de ho- comunistas. A operação foi um sucesso mi-
POLÍTICA MUNDIAL | 463

litar, embora de duvidosa necessidade. Poli- 1973, baseados na ideia de construção de


ticamente, foi, na melhor das hipóteses, ir- mais uma coalizão e da retirada das tropas
relevante, e foi interrompida pelo Congresso estrangeiras. O novo governo for formado
dos Estados Unidos, que se recusou a apro- com muito esforço em 1975, e acabou no
var fundos, tropas ou assessores no Cambo- mesmo ano. A monarquia também acabou.
ja, e, em 1973, com os mesmos meios, Nixon Souphanouvong, agora presidente, e o Pa-
parou a retomada dos bombardeios no país. thet Lao tinham vencido a batalha interna.
Lon Nol protestou, alegando que nunca ti- O Laos se tornou um território dependente
nham dito que as forças norte-americanas e do Vietnã sob o nome de República Popular
sul-vietnamitas entrariam no Camboja. do Laos. Apesar de seu nome, as primeiras
Embora o bombardeio do Vietnã do eleições só aconteceram 14 anos depois.
Norte tenha sido retomado em 1972, essas Para o Camboja, o fim de uma guerra
operações foram as últimas rabanadas do significou o início de outra. Sihanouk, de-
frustrado gigante norte-americano. A reti- pois de ser deposto pelos norte-americanos
rada continuou e apenas 25 mil norte-ame- e por Lon Nol, passou para a esquerda e se
ricanos permaneciam lá no final da guerra. aliou ao Khmer Vermelho, transformando
Desde 1970, os governos dos Estados Uni- uma facção relativamente insignificante de 3
dos e do Vietnã do Norte vinham realizando mil membros ativos em um grupo militan-
contatos sigilosos, por meio de Henry Kis- te 10 vezes maior. Seu líder Saloth Sar, mais
singer e Le Duc Tho, e, em janeiro de 1973, conhecido como Pol Pot, era um fanático de
representantes dos Estados Unidos, dos dois cerca de 50 anos, que tinha participado de
Vietnãs e do Vietcong se reuniram em Paris círculos esquerdistas em Paris e depois na
e chegaram a um cessar-fogo com supervi- China, durante a Revolução Cultural. Seu
são internacional e à criação de um Conse- programa revolucionário incluía a abolição
lho de Reconciliação Nacional no Vietnã, da religião e do dinheiro, a criação de um
para preparar eleições. comunismo populista rural e a extinção das
Esses acordos sustentavam a retirada cidades. Sua ação matou um milhão ou mais
dos Estados Unidos, mas não trouxeram a de pessoas em um reino de terror repugnan-
paz. Houve combates pesados na segunda te depois que os Estados Unidos abandona-
metade de 1973 e durante 1974, com Thieu ram Lon Nol e o Khmer Vermelho tomou
expressando sua confiança de que seu novo Phnom Penh uns dias antes que os norte-
exército de um milhão de homens poderia -vietnamitas entrassem em Saigon. Os nor-
ganhar a guerra. Ele esperava receber ajuda te-americanos bombardearam o Camboja
dos Estados Unidos, mas ela não veio, e seu (agora Kampuchea) mais uma vez em 1975,
exército se desintegrou diante de 200 mil quando o Khmer Vermelho capturou sua
norte-vietnamitas e 100 mil adversários vie- embarcação de inteligência, mas a guerra
tcongs. Em 1975, ele renunciou, e o Grande agora era entre Kampuchea e Vietnã, e fora
Minh voltou das sombras para realizar a ca- causada pelo Khmer Vermelho, que atacou o
pitulação de qualquer autoridade que tives- Vietnã em terras de fronteiras litigiosas, em
se sobrado em Saigon. A guerra terminou, território indiscutivelmente vietnamita. O
com cerca de 2 milhões de pessoas mortas. Vietnã retaliou com uma invasão bem-suce-
No Laos, que tinha sido invadido em 1971 dida do Kampuchea, no final de 1978, e ins-
pelos sul-vietnamitas com apoio dos Es- talou um governo subserviente com Heng
tados Unidos, o Vietnã do Norte teve vitó- Samrin na presidência e Hun Sen como mi-
rias decisivas, e os combates pararam em nistro do exterior, depois também primeiro-
464 | PETER CALVOCORESSI

-ministro, ambos renegados do Khmer Ver- russa na Indochina ainda mais desagradá-
melho com muitas responsabilidades por vel à China do que a vietnamita ou norte-
atrocidades no passado. Hun Sen, embora -americana. A influência russa no Vietnã
desequilibrado e corrupto, realizou algu- era parte de uma ameaça expressa também
mas reformas positivas, como distribuição no norte da Ásia e no Afeganistão.
de terras e incentivo a pequenas empresas, Havia dois outros problemas: o conflito
e permitiu mais liberdade de expressão e re- territorial no Mar do Sul da China e o tra-
ligião, mas seu governo era brutal. O Khmer tamento dos chineses no Vietnã. Cerca de
Vermelho ofereceu pouca resistência, recu- um milhão deles vivia no país, a maioria no
ando para o noroeste, onde foi perseguido sul. Esses hoa, como eram chamados, eram
pelos invasores norte-vietnamitas. Soldados muito bem-sucedidos economicamente e
e refugiados do Kampuchea escaparam para proporcionalmente impopulares. Sua na-
a Tailândia, onde os primeiros conseguiram cionalidade era discutível e suas lealdades,
penetrar de volta e lutar de novo. duvidosas. Em 1977, muitos deles, incluin-
A guerra entre o Vietnã e o Kampuchea do alguns do sul remoto, retiraram-se para
tinha importância para a China por razões a China, no que os vietnamitas chamaram
antigas e atuais. A aversão tradicional da de migração, e os chineses, de expulsão. In-
China com relação a um Vietnã indepen- dependentemente de ter sido incitada pela
dente tinha sido deixada de lado durante as China, essa retirada ganhou força própria e
décadas de 1960 e de 1970, quando a divi- continuou por dois ou três anos. Mais dura-
são sino-soviética gerou competição entre douro foi o conflito no Mar do Sul da Chi-
China e URSS. na. Velhas disputas foram renovadas pela
A China colaborou com o Vietcong crença de que poderia haver petróleo sob as
para impedir a ajuda e a influência russas, águas do Golfo de Tonkin, o que aumentava
mas essa harmonia não durou. A Revolu- o valor de grupos de ilhas que eram reivin-
ção Cultural, criticada pelo Vietcong, limi- dicados por China e Vietnã. Em 1974, chi-
tou em muito a atividade externa da China; neses expulsaram uma força vietnamita das
a visita de Nixon ao país e a subsequente ilhas Paracel, então, o Vietnã do Sul ocupou
aproximação sino-americana causaram um as ilhas Spratly – pequenas, numerosas e
amargo ressentimento no Vietnã. A vitória mais ao sul. Esses dois grupos, localizados a
do Vietnã do Norte sobre os Estados Uni- cerca de meio caminho entre Vietnã e Filipi-
dos, a unificação de norte e sul em 1975, o nas, estavam dentro do limite de 200 milhas
grande exército desse novo país, sua aliança reconhecido pela China e pelo Vietnã. Em
em 1978 com a URSS (quando também se 1988, a crescente marinha chinesa tomou
tornou membro pleno do Comecon) e sua posse de algumas das ilhas Spratly e, em
conquista do Kampuchea – todos esse fato- 1994, do Recife de Mischief no arquipélago,
res desencadearam a hostilidade da China. apesar de reivindicações Filipinas. Malásia e
A invasão do Kampuchea pelo Vietnã repre- Brunei também tinham suas reivindicações
sentava uma ameaça à hegemonia na Indo- na região. Em 1996, a China entrou para o
china, que a China buscou por mil anos, en- Fórum Regional Asiático e apoiou as Reu-
quanto os vínculos do Vietnã com a URSS niões Asiático-Europeias (Asian-European
indicavam uma dependência que, causada Meetings – ASEM) em uma disposição ex-
pelos esgotamentos da guerra, má gestão pansionista que gerou oposição à domina-
econômica e uma população em rápido ção regional por parte do Japão e dos Esta-
crescimento, anunciava uma dominação dos Unidos. A preocupação da China com o
POLÍTICA MUNDIAL | 465

Vietnã deu ao Kampuchea um amigo pode- desde o início dos anos de 1980, que Siha-
roso, pois ela condenou a agressão do Viet- nouk se unisse ao Khmer Vermelho e a Son
nã; e Deng Xiaoping, em uma visita aos Es- Sann, ex-primeiro-ministro no governo de
tados Unidos, ameaçou dar uma lição nele. Sihanouk e líder da terceira força antivietna-
A URSS saiu em socorro ao Vietnã ao vetar mita mais efetiva. (Sihanouk e Son Sann co-
sua condenação pelo Conselho de Seguran- mandavam, cada um, talvez 10 mil homens
ça e, quando tropas chinesas invadiram o armados; o Khmer Vermelho, 30 mil, no mí-
Vietnã do Norte, enviou uma flotilha, que nimo. O exército de Hun Sen chegava a cerca
incluía um porta-mísseis, a águas vietna- de 40 mil, incluindo vários vietnamitas que
mitas. Mas a reação demonstrativa da Chi- permaneceram ou voltaram ao Kampuchea
na além de suas fronteiras do Vietnã – que por ver poucas perspectivas de uma vida de-
causou muitos danos, mas também custou cente em seu país). Em parte por incentivo
perdas inesperadas aos invasores – não im- da Austrália, a ideia de derrubar Hun Sen
pediu que as forças vietnamitas varressem o foi substituída por tentativas de unir todas
Kampuchea chegando até a fronteira com a as principais facções em um Conselho Su-
Tailândia. premo Nacional no qual ele teria seis vagas,
Em Hanói, alguns elementos eram mais e os três grupos de oposição, dois cada. Em
persuasivos: o custo de manter 250 mil sol- uma etapa posterior, Sihanouk, o presiden-
dados no Kampuchea, a evaporação da aju- te eleito, insistiu em ser o décimo-terceiro
da soviética e a dificuldade de restaurar as membro desse conselho, aumentando seu
relações com os Estados Unidos enquanto contingente em três. Esse obstáculo foi su-
os 230 soldados desaparecidos durante a perado ao se propor que Hun Sen fosse o
guerra permanecessem sem explicação e o vice-presidente de Sihanouk, com uma ca-
Vietnã continuasse a ocupar o Kampuchea. deira própria, além de seus seis indicados.
Em 1987, o Vietnã resolveu sair de uma si- O plano concebia uma volta gradual à ati-
tuação complicada e onerosa, e anunciou vidade política normal depois de 18 meses
que suas forças começariam a se retirar ime- de supervisão e administração pela ONU,
diatamente e evacuariam completamente mas a desconfiança de Hun Sem em relação
até 1990, o que aconteceu em 1989. a Sihanouk e seus apoiadores chineses e o
Simultaneamente, iniciaram-se dis- medo da preponderância do Khmer Verme-
cussões para um novo governo. Sihanouk lho fizeram com que ele tergiversasse na es-
e Hun Sen realizaram algumas reuniões na perança de receber algum reconhecimento
França e na Indonésia, incentivados pela internacional para seu próprio regime sem
China (até certo ponto, já que a China não ser forçado a entrar em uma coalizão. Uma
tinha total aversão a uma guerra que drena- força da ONU foi despachada para estabele-
va os recursos do Vietnã e a popularidade cer as bases para eleições, preparando regis-
de seu governo dentro do país). Mas nem tros eleitorais, garantindo aos eleitores que
Sihanouk, nem Hun Sen, nem os dois juntos era seguro votar, organizando o retorno de
poderiam construir um regime eficaz sem o cerca de 250 mil refugiados da Tailândia e
Khmer Vermelho, que tinha forças armadas garantindo que todas as partes cumprissem
substanciais, bem como apoio chinês – e seus compromissos. A Autoridade Provisó-
algum apoio norte-americano: os Estados ria da ONU no Camboja (UN Transitional
Unidos, assim como a China, estavam dis- Authority in Cambodia, UNTAC) chegou
postos a dar pelo menos algum incentivo a perto de ser um governo provisório para a
um inimigo do Vietnã e vinham exigindo, maior parte do país e, assim, um novo tipo
466 | PETER CALVOCORESSI

de intervenção por parte da Organização. mar, muitos sendo atacados, despojados,


Embora pequena – cerca de 20 mil pes- violentados e mortos no caminho. A maioria
soas –, ela teve bastante sucesso em suas vinha do norte do país, mas os refugiados do
principais tarefas. Não conseguiu impedir sul aumentaram durante a década de 1980.
Sihanouk de, mais uma vez, retirar-se ta- Cerca de 57 mil deles chegaram a Hong
citurno para Pequim, ou o Khmer Verme- Kong, onde não foram bem recebidos, sendo
lho, que ocupava um décimo do país, onde detidos e confinados em currais sanitários.
se sustentava com a venda de madeira e de Somente um quinto foi legalizado pelo go-
pedras preciosas por meio de empresários verno colonial da já superpovoada ilha para
tailandeses corruptos e oficiais do exército, se tornar refugiados econômicos (um termo
de ameaçar prejudicar e depois de boicotar novo) e não refugiados políticos genuínos,
as eleições. cuja devolução ao Vietnã era impedida por
Mas as eleições foram realizadas de- convenções internacionais. Em 1989, o go-
vidamente, em 1993, de forma ordenada verno de Hong Kong anunciou um esquema
e com 90% dos eleitores participando. Ao para o retorno voluntário desses refugiados
contrário das expectativas, o Partido Popu- em um avião por mês, mas poucos estavam
lar do Camboja (PPC), de Hun Sem, com dispostos a isso. No final do ano, 51 homens,
38% dos votos, foi derrotado por seu rival mulheres e crianças foram enviados, contra a
Funcinpet, liderado pelo filho de Sihanouk, sua vontade, em uma operação noturna que
o príncipe Rannarith, que teve 45%. Siha- gerou tantos protestos internacionais que o
nouk, ciente da permanência da força do esquema teve de ser abandonado. No ano se-
Khmer Vermelho, esforçou-se para unir guinte, os governos britânico e vietnamita e
Funcinpet e PPC, ainda que tivesse de dar o Alto Comissariado da ONU para Refugia-
ao segundo uma participação igual no go- dos concluíram um acordo para a repatria-
verno e um poder de veto no parlamento – ção de refugiados que “não se opusessem”.
uma vitória do derrotado Hun Sen, que se A Grã-Bretanha, embora não renunciasse à
tornou primeiro-ministro em conjunto com sua afirmação de que tinha direito a repa-
Rannarith. Sihanouk reassumiu o estilo de triar refugiados econômicos à força, cooptou
realeza que tinha abandonado em 1955. Mas a ajuda do UNHCR para convencê-los a ir
o Khmer não pôde ser excluído do enredo e, e esperava que muitos o fizessem depois de
um ano depois, recriou caos suficiente para descobrir que o tratamento que receberiam
provocar a desintegração do novo governo e em Hong Kong era ruim, ou pior do que
a destruição de grande parte do trabalho da qualquer coisa que poderiam ter de sofrer no
UNTAC. Como em Angola, a ONU depen- Vietnã. O retorno desses balseiros ao Vietnã
dia necessariamente de um mínimo de boa foi acelerado pelos britânicos no prelúdio da
vontade e boa fé, e ficou impotente quando devolução da colônia à China.
elas faltaram. Em 1997, Hun Sen dominou Em 1993, a suspensão do embargo nor-
Rannarith, tomou sua fatia de poder e o ex- te-americano deu um estímulo à economia
pulsou do país. vietnamita, que, embora tarde e com um
Um aspecto persistente do Vietnã de- nível absurdamente baixo, saiu em busca de
pois de sua vitória sobre os Estados Unidos emular outros “tigres” econômicos do leste
foi um fluxo de refugiados tentando escapar da Ásia. As relações diplomáticas entre Es-
das dificuldades da vida no país sob o go- tados Unidos e Vietnã só foram restauradas
verno incompetente e bruto, pioradas pelo integralmente em 1997; as relações comer-
embargo norte-americano. Eles saíram pelo ciais foram declaradas normais em 2006.
O sudeste asiático
e a ASEAN 18
A expressão “Sudeste Asiático” é usada para ditavam verdadeiramente no esquema de
definir os países situados entre Índia, Chi- coprosperidade e desejavam ajudar os po-
na, Australásia e extensões abertas do Oce- vos do Sudeste Asiático, mas havia uma
ano Pacífico. Distintos em termos de raça, quantidade maior de novos imperialistas
religião e riqueza, eles tinham uma carac- que em pouco tempo alienaram os nacio-
terística quase comum antes da Segunda nalistas locais. Quando os rumos da guerra
Guerra Mundial: com a exceção solitária se voltaram contra o Japão, os nacionalistas
da Tailândia, todos eram governados por também o fizeram, preparando-se para atin-
estrangeiros. Britânicos, franceses, holande- gir seus objetivos, em parte, com serviços
ses, norte-americanos e portugueses tinham prestados às antigas potências coloniais e,
se espalhado pela região e se apropriado de em parte, por uma nova força que não se-
grandes partes dela. Esse estado de coisas ria destruída por europeus desgastados pela
era visto com insatisfação dentro da região e guerra. Na Birmânia e nas Filipinas, esse
também pelos japoneses, cuja Nova Ordem objetivo foi facilmente alcançado; na Indo-
tinha se expandido para a Esfera de Copros- nésia, nem tão facilmente assim. Na Malá-
peridade da Grande Ásia Oriental, sob di- sia, a independência foi postergada por uma
reção de um ministro especial em Tóquio. insurreição que era mais comunista do que
Quando a guerra trouxe os japoneses ao nacionalista. A Indochina (ver o capítulo
Sudeste Asiático, eles chegaram como liber- anterior) estava destinada a sofrer a longa
tadores anti-imperialistas, prometendo re- guerra que assumiu proporções internacio-
mover os dominadores europeus, uma ope- nais e cuja solução apresentou mais proble-
ração que se mostrou impressionantemente mas de nível internacional nos Estados su-
fácil. Três dias depois do ataque a Pearl Har- cessores do Vietnã, Laos e Camboja.
bor, os japoneses afundaram os navios de Em toda essa região, com exceção das
guerra britânicos Prince of Wales e Repulse Filipinas, a potência predominante quando
(10 de dezembro de 1941); Cingapura caiu a guerra acabou era a Grã-Bretanha, repre-
em fevereiro de 1942 e Corregidor, em maio, sentada até 1946 pelo comandante supremo
pondo fim à dominação ocidental. no Comando do Sudeste Asiático, lorde
Essa dominação foi sucedida por uma Mountbatten. Os britânicos esperavam re-
curta fase japonesa durante a qual os novos tomar seu status anterior na Malásia, Cin-
dominadores, como Napoleão na Alema- gapura e em territórios menores, e restau-
nha, concluíram que o nacionalismo não rar os franceses, holandeses e portugueses
é uma mercadoria da qual se pode dispor na Indochina, Indonésia e Timor, e no rajá
segundo a vontade. Alguns japoneses acre- branco de Sarawak.
BIRMÂNIA CHINA
Hanoi TAIWAN
468
HONG

LAO S
KONG
Malásia
|

TAILÂNDIA Sumatra Ilhas pertencentes à Indonésia


Bangkok MAR DO
SUL DA
CAMBOJA CHINA

VIETNÃ
Phnom Penh
FILIPINAS
PETER CALVOCORESSI

OCEANO
MALÁSIA PACÍFICO

BRUNEI SABAH
Kuala Lampur
MA R D E
Cingapura CELEBES

S
Bornéu

um
at
Celebes

ra
Irian PAPUA-
Jacarta NOVA
OCEANO GUINÉ
ÍNDICO I N D O N É S I A
Java

Timor
0 500 1000 km
AUSTRÁLIA
0 300 600 milhas

Figura 18.1 O Sudeste Asiático.


POLÍTICA MUNDIAL | 469

A Birmânia, rebatizada de Mianmar em cer. O novo governador britânico, que que-


1989, tornou-se independente em 1948, de- ria prender o líder nacionalista Aung San (e
pois de um breve adiamento por aconselha- quase o fez), foi substituído, a AFPFL foi tra-
mento astrológico, em um dos países etnica- tada como governo embrionário, e, embora
mente mais complexos do mundo. Também Aung San e outros líderes tenham sido assas-
se tornou um dos mais isolados, de forma sinados em julho, seus colegas sobreviventes
que seu povo era empobrecido e seus gover- atingiram o objetivo da independência em
nantes, ignorantes. Antes da Segunda Guer- relação à Grã-Bretanha em 4 de janeiro de
ra Mundial, a Birmânia estava fornecendo 1948. Não houve luta, pois os britânicos se
quase metade do arroz exportado do mun- retiraram, muito influenciados por sua pro-
do, vendendo valiosos minerais e madeira, messa de sair da Índia e pela impossibilidade
produzindo petróleo e adquirindo uma in- de usar tropas indianas do Comando do Su-
fraestrutura moderna. Também foi invadida deste Asiático contra os birmaneses, deixan-
por negociantes e especuladores estrangei- do a AFPFL diante de um enorme prejuízo
ros e vivenciou uma subversão de seus valo- de guerra, diante de suas próprias divisões
res e de suas instituições monárquicas e reli- internas e dos povos das montanhas em tor-
giosas – um levante comparável à revolução no da planície central birmanesa, cuja tradi-
de Ataturk na Turquia, com a infelicidade cional desconfiança em relação a Rangoon
extra de que a mudança foi concebida por (Yangon) criava uma sequência de problema
estrangeiros. Há muito governada pelo ab- separatistas. A AFPFL incluía os comunistas
solutismo temperado com anarquia, a Bir- que se separaram dela e entre si, e promove-
mânia recebeu um verniz de modernização ram diferentes campanhas contra o governo.
constitucional e econômica que incentivou, Os assassinatos privaram o país de vários
além de ressentimentos anticoloniais, um líderes potenciais em 1947 e 1948; a revolta
conflito entre mais modernização em um em Arakan, ao longo do litoral oeste, além
mundo aberto e um recuo ao tradicionalis- dos problemas no leste (com os karens espa-
mo conservador. lhados na Birmânia Central, os shans – um
Na Birmânia de tempos de guerra, um povo tailandês – espremidos entre a Tailân-
grupo de nacionalistas sem muito conheci- dia e a China, e os kachins no extremo nor-
mento do mundo exterior, pró-japoneses no te), ameaçava a Birmânia independente com
início da guerra, mas posteriormente opos- desagregação. Havia muçulmanos na maior
tos ao Japão e com armas fornecidas pelos parte do país, a maioria em Arakan, onde
britânicos, estava reunido na Liga Antifas- eram conhecidos como rahingyas, e estavam
cista pela Liberdade do Povo (Anti-Fascist desde o século VI d.C.
People’s Freedom League, AFPFL). Quando Em 1950, um novo perigo foi introdu-
a guerra chegou ao fim, os britânicos ti- zido quando 4 mil soldados do Kuomintang
nham dúvidas sobre reconhecer e lidar com atravessaram a fronteira e entraram na Bir-
a AFPFL ou não. O governo em Londres se mânia a partir da China, sob comando do
opunha ao reconhecimento, mas o coman- general Li Mi, e geraram receios de que o
dante supremo, diante dos problemas de novo regime chinês perseguiria seus inimi-
instalar uma nova administração sem recur- gos em retirada. Mas Pequim decidiu não
sos próprios adequados, era a favor. A vitó- responsabilizar Rangoon e, depois de um
ria dos Trabalhistas britânicos, em julho de tempo, o general Li Mi e seus seguidores
1945, e a rendição dos japoneses, em agosto, foram retirados por via aérea pelos norte-
fizeram com que a decisão fosse reconhe- -americanos.
470 | PETER CALVOCORESSI

Não obstante, Birmânia achou que era as várias rebeliões. Ele diluiu o socialismo
sensato afastar-se de forma educada e cir- de U Nu, mas também diluiu a democracia:
cunspeta dos britânicos e dos norte-ameri- os partidos políticos foram suprimidos e as
canos. Embora os chineses no país fossem universidades, fechadas em 1964. O tradi-
só cerca de 300 mil, a fronteira com a Chi- cional medo que a Birmânia tinha da China
na era transposta pelos kachins (300 mil na e dos chineses convenceu Ne Win a visitar
China, 200 mil na Birmânia, em um número os Estados Unidos, mas a guerra norte-ame-
menor na Índia). Em 1953, o governo anun- ricana no Vietnã era considerada totalmente
ciou que não queria renovar um tratado de injustificável pelos birmaneses e uma inter-
defesa anglo-birmanês, que estava expiran- ferência nefasta nos assuntos da Ásia.
do, nem manter a missão militar britânica Nos assuntos econômicos, Ne Win teve
que estava no país desde a independência. ainda menos sucesso do que seus antecesso-
Também informou a Washington que não res. Sob ocupação japonesa, a área plantada
queria mais ajuda dos Estados Unidos. Zhou com arroz foi reduzida à metade e, embora
Enlai visitou Rangoon quando voltava a Pe- essa área tenha sido aumentada depois da
quim de Genebra, em 1954, e o primeiro- guerra, a produção foi arruinada pela guerra
-ministro birmanês U Nu retribuiu a visita civil e pela anarquia. As exportações caíram
no mesmo ano. Outras reuniões levaram ao a um décimo de seu nível pré-guerra e, em
início de discussões sobre fronteira, que fo- 1966, o consumo doméstico foi racionado.
ram completadas quando o general Ne Win Medidas desesperadas, como a redução de
depôs U Nu (que voltou ao poder em 1960, todos arrendamentos de terras agrícolas, de
mas foi deposto novamente por Ne Win em pouco adiantaram. O declínio geral da eco-
1962, desta vez sendo preso por seis anos). nomia do país deixou os agricultores sem
Ne Win era um general inclinado a um ter o que comprar, mesmo que recebessem
discurso filosófico e socialista, que ele com- pagamentos por sua produção, de forma
binou com a supressão do parlamento e a que não tinham incentivo para produzir
prisão de seus adversários políticos. A toma- mais do que conseguiriam comer. O arroz,
da do poder foi, em primeiro lugar, uma res- uma das fontes da riqueza da Birmânia, não
posta à ameaça de desintegração representa- valia mais a pena plantar, muito menos ex-
da pelos movimentos dissidentes do país. As portar. A inflação, acompanhada por salá-
demandas dos shans, em particular (nos úl- rios estagnados, empobrecia grande parte
timos anos, os dissidentes mais persistentes da população. Empreendimentos grandio-
e os traficantes de drogas mais bem-suce- sos se transformaram em poeira, formas
didos), por uma nova Constituição Federal democráticas foram substituídas por intimi-
não tão rígida criaram um temor de que as dação, a pobreza e as doenças matavam as
forças do Kuomintang refugiadas no norte esperanças bem como as pessoas. Birmânia
pudessem, com ajuda dos Estados Unidos, se transformou em um domínio econômi-
lançar uma invasão da China que transfor- co da China, obrigada a importar petróleo e
maria a Birmânia em um campo de batalha gás em preços que aumentavam muito.
(como a Coreia), enquanto a existência de Em 1977, um atentado contra a vida de
pelo menos três movimentos rebeldes co- Ne Win gerou discriminação contra os mu-
munistas fazia com que uma invasão chi- çulmanos, tortura e mortes, e um massacre
nesa do país não fosse improvável. O novo em Arakan causou fugas para Bangladesh.
regime, abertamente militar, parecia menos Ne Win, que assumiu um novo mandato em
frágil, mas também foi incapaz de erradicar 1978, tornou-se autocrático, reservado e ina-
POLÍTICA MUNDIAL | 471

Í NDIA CHINA

VIETNÃ
Mytkyina

LAOS

Haka Sagaing

Mandalay Taunggyi

Loi-Kaw
Magway
Sittwe Naypyitaw
TA I L Â N D I A
ES (nova capital)
TA
DO
AR
AK Bago Hpa-an
BAÍA DE AN
BENGALA Mawlamyine
Yangon
(antiga capital)
G OLFO D A
Glossário Paithein MA R TA ILÂ N D IA
Nome atual Nome anterior
ANDAMANÊS Dawei
Mianmar Birmânia
Yangon Rangoon
Tanintharyi Tenasserim
Bago Pegu
Margay Magwe
Ayeyarwady Irrawaddy Mudança de nome: em 18 de junho de 1989,
Dawei Tavoy o nome do país foi mudado para
Pathein Passein União de Mianmar. A ortografia
Bamar Burman inglesa de muitas cidades, divisões,
Kayin Karen estados, rios e nacionalidades foi
Mawlamyine Moulmein alterada*.
Hpa-na Pa-na

0 250 500 km
Montanhas
0 150 300 milhas

Figura 18.2 Mianmar (Birmânia).


* N. de R.T.: Nova Capital: em 2005, a capital foi transferida para a cidade planejada de Naypyitaw, no centro do país.
472 | PETER CALVOCORESSI

cessível e, em 1981, abriu caminho para o ge- Conselho Estatal para a Paz e o Desenvolvi-
neral San Yu, que governou à sua sombra, em mento (State Peace and Development Coun-
vez de em seu lugar. As várias guerras perifé- cil, SPDC) com uma maioria de caras novas.
ricas continuavam no nordeste e no sudeste, Mas a casta governante estava dividida, com
com os comunistas birmaneses entrando em Ne Win ainda pairando com determinados
cena onde fossem bem-vindos. A economia objetivos; as tentativas do SPDC de atrair ne-
se deteriorou a tal ponto que Birmânia des- gócios estrangeiros e turismo fracassaram; e a
ceu ao grau de países menos desenvolvidos crise econômica na Tailândia, em 1997, ame-
(Least Developed Country, LDC, elegíveis açava Mianmar com o refluxo de milhares de
para empréstimos internacionais de pequeno refugiados desempregados. Os esforços dos
porte), e, em 1987, o Estado cancelou todas Estados Unidos de mediação entre o regime
as notas abaixo de um determinado valor de e Aung San Suu Kyi por meio de uma missão
face, extinguindo assim as poupanças de um germano-franco-finlandesa eram testemu-
número imenso de pessoas. O descontenta- nho da amplitude dos interesses do primei-
mento se espalhou dos pobres para a classe ro, mais do que de qualquer sensibilidade às
média e o exército. As manifestações eram questões internas de Mianmar.
reprimidas com brutalidade pela polícia, e o Uma nova rebelião, em 2007, mais uma
general Sein Lwin, conhecido por sua cruel- vez liderada por estudantes e monges budis-
dade, foi elevado à presidência que Ne Win tas, foi esmagada de forma rápida e inescru-
tinha retomado mas abandonado novamente. pulosa, com vários manifestantes mortos e
Rebeliões permanentes forçaram Sein Lwin a pelo menos cem presos. Em 1980, a tirania
renunciar depois de poucas semanas e não de Idi Amin em Uganda foi derrubada por
foram dominadas pela posse do civil Maung uma invasão armada a partir da Tanzânia
Maung no cargo, onde durou dois meses. O (p. 588), mas, em 2007, ninguém estava dis-
exército retomou o poder, dissolveu o parla- posto a tomar uma ação tão drástica para
mento e governou por meio de um Conselho resgatar o povo de Mianmar do esquisito e
robótico Than Shwe, o ditador de plantão
Estatal de Lei e Ordem (State Law and Order
desse país de tendência peculiar à desagre-
Council, SLORC). Quando foram prometidas
gação, embora um emissário do secretário-
novas eleições, cerca de 200 partidos apare-
-geral da ONU tenha obtido permissão para
ceram, mas apenas os aceitáveis ao gover-
visitar Aung San Suu Kyi duas vezes.
no foram autorizados. A filha de Aung San,
Mianmar tinha se tornado independen-
Aung San Suu Kyi, voltou do exílio na In-
te depois de 60 anos de domínio britânico,
glaterra para liderar uma Liga Nacional pela
com poucas características de Estado. Era
Democracia, mas foi presa. A Liga reivin-
um amálgama de grupos étnicos antagôni-
dicou uma vitória massiva em 1990, mas os
cos, dos quais os birmaneses constituíam o
resultados oficiais das eleições não refletiam mais central e o maior. Dentro desse seg-
as escolhas dos eleitores, e sim os desejos do mento, o fracasso do empreendimento de-
governo, que permaneceu impassível. Aung mocrático de Aung San deixou o poder nas
San Suu Kyi foi colocada em prisão domici- mãos dos militares.
liar até 1995*, quando foi libertada de forma Os oficiais do exército eram, na maioria
inesperada. O SLORC foi transformado no e cada vez mais, birmaneses, o general Ne
Win obtinha mais autoridade como chefe
* N. de R.T.: Novamente reclusa, ela só foi libertada, definiti- da nação e uma série quase que ininterrupta
vamente, após às eleições de 2010. de guerras civis em torno das fronteiras do
POLÍTICA MUNDIAL | 473

país selou a autoridade militar desse grupo. tores ativos dos japoneses, o maior grupo
Os sucessores de Ne Win destruíram seu foi o dos chineses, e a maioria deles era de
próprio domínio, entre birmaneses e não comunistas em vez de adeptos do Kuomin-
birmaneses, com políticas econômicas de tang, mas, por sua simples diferenciação
uma incompetência impressionante. Eles racial e doutrinária, eles não podiam afir-
próprios, cada vez mais reclusos, também mar ser um movimento nacionalista como
isolaram o país do comércio internacional a a AFPFL na Birmânia.
tal nível que todos os segmentos da popu- Uma tentativa inicial de subir ao poder
lação foram empobrecidos dolorosamente foi contida, após alguma hesitação, pelos bri-
e os protestos que se seguiram receberam tânicos, que depois enfrentaram o problema
o apoio de milhares de monges budistas. racial e propuseram uma União Malásia na
A resposta das autoridades foi brutal e, no qual a cidadania poderia ser obtida por qual-
curto prazo, funcionou. O mundo exterior, quer pessoa que tivesse morado por 10 anos
que prestava pouca atenção a esse conto de no país. Os malaios se opuseram a esse pla-
incompetência e mau governo, foi forçado no, que teria tornado a cidadania e, portan-
a protestar, e os países ocidentais, princi- to, o poder político, disponível a um grande
palmente os Estados Unidos, chegaram a segmento da população chinesa. Sendo as-
impor sanções econômicas, mas essas me- sim, os britânicos propuseram uma Federa-
didas fizeram pouco mais do que acentuar ção Malásia na qual os poderes dos sultões
a própria política de isolamento do governo malaios fossem maiores do que na proposta
e, mesmo assim, foram incompletas: a Índia, de União e as oportunidades para os chine-
a China e o Sudeste Asiático não deixaram ses se tornarem cidadãos fossem limitadas.
de importar as mercadorias que queriam de Em 1948, a insurreição comunista chi-
Mianmar*. nesa começou e se declarou uma emer-
Na Malásia (um conglomerado de gência que duraria por 12 anos, durante os
quais os insurgentes deixaram perplexos 50
principados, além de pequenos territó-
mil soldados, 60 mil policiais e uma guarda
rios coloniais britânicos) a Grã-Bretanha
nacional de 200 mil membros. Em 1950, o
não teve saída fácil. A base naval da ilha
general sir Harold Briggs, diretor de opera-
adjacente de Cingapura (ela própria uma
ções, entendeu que a chave para a situação
colônia britânica) criava argumentos para
residia no apoio silencioso dado aos insur-
a permanência, que não existiam na Bir-
gentes, muitas vezes por terror, pela grande
mânia, e a força dos chineses (na Malásia,
massa da população, e fez planos para reu-
uma minoria substancial, e em Cingapura,
nir e proteger as pessoas em áreas de reas-
maioria) fez com que muitos malaios se
sentamento onde elas estivessem imunes à
sentissem menos ressentidos em relação ao
chantagem e deixassem de dar alimentos
domínio britânico do que apreensivos com aos insurgentes.
os chineses locais, cujos líderes – substi- O general sir Gerald Templer, que che-
tuindo prósperos líderes de antes da guerra gou em 1952 para suceder o governador
comprometidos por sua colaboração com assassinado sir Henry Gurney, deu conti-
os invasores japoneses – foram para a selva nuidade a essa diretriz e desenvolveu, ao
e aderiram ao comunismo. Entre os oposi- mesmo tempo, medidas políticas voltadas
a unir as comunidades Malásia, chinesa e
* N. de R.T.: A China tem mantido forte cooperação política, indiana como prelúdio à independência. A
militar e econômica com Mianmar. Malásia se tornou independente em 31 de
474 | PETER CALVOCORESSI

agosto de 1957, com uma Constituição que Em 1963, Sarawak e Bornéu do Norte
estabelecia uma presidência rotativa a ser (agora Sabah) se uniram a Malásia e Cinga-
ocupada pelos sultões malaios. Foi estabe- pura para formar a Grande União Malásia,
lecido um acordo de defesa com a Grã-Bre- apesar de protestos por parte da República
tanha, mas o país não se tornou membro das Filipinas, que reivindicava Bornéu do
da SEATO e recusou, em 1962, que seu ter- Norte, e por parte da República Indonésia,
ritório fosse usado por unidades britânicas que considerava o plano um esquema para
que poderiam ser convocadas para ajudar a recriar um Estado de inclinações ocidentais,
Tailândia em caso de uma ameaça por par- capaz de conter as ambições indonésias.
te do Laos. Brunei se recusou a fazer parte, e uma revol-
Cingapura, com três quartos de sua ta contra o sultão, que era considerado favo-
população constituídos por chineses, foi rável à adesão, deu ao presidente indonésio
colocada no caminho da independência Sukarno a ideia de que uma federação era
pelo processo usual britânico. Foi instalado impopular e poderia ser destruída por one-
um novo Conselho Legislativo com uma rosas operações guerrilheiras, persistência
maioria extraoficial e eleita, junto com um e propaganda, e que ele poderia conseguir
Conselho Executivo nomeado. A seguir, anexar o restante de Bornéu à Indonésia.
essa máquina de governo evoluiu para uma O confronto indonésio que se seguiu for-
Assembleia Legislativa e um Conselho de çou a Malásia a apelar para a ajuda militar
Ministros sob a liderança de um ministro- da Grã-Bretanha e da Austrália, e frustrou
-chefe, do qual a maioria dos colegas era a intenção britânica de sair da região depois
escolhida pela Assembleia, com o governa- de criar a Malásia. O confronto diminuiu
dor mantendo certos poderes reservados. quando Sukarno foi deposto por seu exér-
A independência total veio em 1959, sujei- cito em 1965-1966, mas a Malásia era uma
ta à retenção de direitos britânicos na base constelação inventada, cujos componentes
naval. O primeiro-ministro Lee Kuan Yew tinham sido forçados a participar de uma
estava ansioso por ter vínculos mais próxi- federação por razões externas e acidentais,
mos com a Malásia, mas, como uma união e com base no pressuposto de que os terri-
colocaria os chineses em maioria, os malaios tórios acrescentados à Malásia não pode-
relutavam, a menos que ela fosse estendida riam existir por conta própria. Depois de
ao mesmo tempo a outros territórios menos sua criação, o maior grupo étnico da Malá-
chineses que existiam em Sarawak, Bornéu sia eram os chineses (43%), com os malaios
do Norte e Brunei. sendo o seguinte (40%).
Em 1946, o rajá de Sarawak, sir Char- Na Península Malaia, os malaios eram
les Brooke, cedeu o principado que era de 50%, e os chineses, 37% da população. Bru-
sua família desde 1841, à Grã-Bretanha, que nei rejeitou o pressuposto de que os territó-
assumiu, no mesmo ano, os direitos em Bor- rios menores na região não poderiam exis-
néu do Norte que haviam pertencido antes tir por conta própria, e Cingapura o refutou.
da guerra à British North Borneo Company. Brunei, resquício de um império que um
Sarawak e Bornéu do Norte se tornaram co- dia chegara às Filipinas, fabulosamente rico
lônias da Coroa. Brunei, um terceiro territó- em relação a seu tamanho e sua população,
rio ao longo do lado norte da Ilha de Bornéu e praticamente um país privado que perten-
(cuja maior parte formava parte da Indoné- cia a seu sultão, conquistou autogoverno
sia), retomou seu status anterior à guerra, de interno, em 1971, e independência com-
protetorado britânico. pleta da Grã-Bretanha em 1984, quando
POLÍTICA MUNDIAL | 475

entrou para a ONU, para a Commonwealth urbanos, economicamente predominantes.


e para a ASEAN (ver a seguir). Cingapura, As eleições de 1969 foram tumultuadas, e o
tendo se unido à Malásia desde seu início, exército teve de ser usado para restaurar a
separou-se. Seu Partido da Ação Popular ordem. Na esteira desse revés, Abdul Rah-
(PAP), socialista, sofreu a oposição da con- man renunciou às esperanças de convivên-
servadora Associação Chinesa Malásia na cia entre as comunidades e foi sucedido por
questão, entre outras, de se conduzir a po- Tun Abdul Razak, que colheu os frutos de
lítica da Malásia essencialmente em termos um ímpeto da economia que trouxe bene-
de classe ou raça. Ambos os partidos eram fícios aos malaios através de crescimento
majoritariamente chineses, mas o PAP que- econômico, mais do que redistribuição à
ria que a política em toda a federação fos- custa dos chineses. Embora o segundo Pla-
se organizada em torno das necessidades e no de Desenvolvimento (1971-1975) tivesse
interesses das classes econômicas. Na outra um começo vacilante e tenha sido tempo-
margem, na Malásia, Tunku Abdul Rah- rariamente frustrado pela crise mundial do
man, um nobre malaio conservador, bem petróleo de 1973-1974, a economia diversi-
como líder partidário e primeiro-ministro, ficada da Malásia suportou com sucesso os
estava alarmado pelas atitudes do PAP e de contratempos de meados dos anos de 1970.
seu líder, Lee Kuan Yew, e determinado a O risco de conflito racialmente polarizado
garantir que nenhum chinês de Cingapura foi evitado. Abdul Razak reativou a Orga-
se tornasse primeiro-ministro da federa- nização Nacional Malaia Unificada (United
ção, e decidiu expulsar Cingapura dela. Lee Malayan National Organization, UMNO),
Kuan Yew não tinha qualquer vontade de se que foi criada, em 1946, como foco para o
separar, mas as tensões entre os dois terri- nacionalismo malaio contra os britânicos e
tórios e os dois líderes o convenceram do em afirmação, contra os chineses, da natu-
imperativo de um divórcio no início, razoa- reza malaia da Malásia.
velmente amigável. Cingapura desenvolveu Ele conciliou facções dentro da UMNO
uma economia mista extremamente bem- e a persuadiu a estabelecer uma aliança com
-sucedida. O capital estrangeiro fluía para a Associação Malaia Chinesa (Malayan Chi-
dentro dela; a renda per capita triplicou na nese Association, MCA, fundada em 1949)
primeira década depois da divisão em 1965; e o Congresso Indiano Malaio (fundado em
e o PAP colheu os benefícios ao permane- 1954). No início dos anos de 1970, todos
cer no poder por uma geração. Por muitos os partidos com importância na Malásia se
anos, o país teve relações incômodas com a associaram em uma aliança de várias co-
Indonésia, inflamado por incidentes como munidades, da qual a UMNO era o maior
a execução de dois soldados indonésios e a componente.
recusa em reconhecer a conquista do Timor Tun Razak modificou a postura pró-oci-
pela Indonésia em 1975, mas as divergên- dental da Malásia em direção ao não alinha-
cias eram contidas e suavizadas no contexto mento. Ele visitou a URSS e a China, e, de-
da ASEAN. pois de 1975, apoiou a inclusão do Vietnã na
Na Malásia – assim constituída com ASEAN, mas morreu em 1976. Seu sucessor,
os Estados malaios, Sarawak e Sabah, mas Dato Hussein Onn, que foi primeiro-minis-
sem Brunei nem Cingapura – o principal tro até 1981, quando sua saúde não permitiu
problema político era o das relações, na mais, enfrentou a desaceleração econômica,
Península Malaia, entre os malaios rurais, novas ameaças ao comunalismo de parte
numericamente superiores, e os chineses do nacionalismo malaio (e de muçulmanos
476 | PETER CALVOCORESSI

agressivos), alegações de corrupção e temo- tra entre os parceiros da Malásia na ASEAN


res, não concretizados, de secessão por parte e ainda mais solidamente fundamentada
de Sabah; mas a recuperação econômica aju- em recursos naturais (petróleo e gás) e in-
dou a Frente Nacional de 10 partidos a ob- dústria. Entre 1970 e 1995, a contribuição
ter uma vitória convincente nas eleições de do setor agrícola foi reduzida de 30 a 14%, e
1978. Seu vice-primeiro-ministro e sucessor, 80% do crescimento em produção industrial
Muhammad Mahathir, era um político mais era exportado. Mesmo assim, o crescimen-
polêmico que tinha deixado sua marca ini- to ainda dependia tanto de empréstimos
cialmente com a crítica a Abdul Rahman e externos que a economia era vulnerável a
depois adotou uma postura firme contra a ataques especulativos à moeda como o que
indevida e desnecessária deferência aos inte- aconteceu com a região como um todo em
resses britânicos. Como primeiro-ministro, 1997 (ver a seguir). Mahathir negou furio-
os rumos políticos de Mahathir foram errá- samente que a crise que se seguiu era devida
ticos. Sua posição foi manchada por rumo- a problemas nas instituições ou na gestão
res de escândalos financeiros, apesar dos financeira da Malásia, e responsabilizou os
quais ele teve vitórias claras inesperadas nas princípios e práticas aplicados às questões
eleições estaduais de 1986. No ano seguinte, econômicas internacionais pelos principais
quase perdeu a presidência da UMNO e, em países do mundo em termos econômicos e
1988, o Supremo Tribunal a declarou uma aos órgãos que eles dominavam. Ele demi-
organização fora da lei com base em delitos tiu seu ministro das finanças e seu provável
procedimentais, mas Mahathir superou esse sucessor, Ibrahim Anwar – um possível ri-
julgamento prejudicial indo à guerra com o val em tempos de dificuldades, acusado de
judiciário. O presidente do Supremo Tribu- graves crimes sexuais e outros, e condenado
nal foi suspendido e depois demitido; cinco em meio a manifestações massivas a seu fa-
outros juízes de alto nível foram suspensos, vor, que não lhe ajudaram – e convocou uma
e dois deles, demitidos. Mesmo assim, o Tri- eleição antecipada, que venceu, embora não
bunal confirmou seu julgamento original. sem alguns sinais perturbadores.
No campo político, Mahathir tinha a opo- Sua coalizão de governo perdeu 20 ca-
sição de dois de seus mais eminentes ex- deiras, cinco delas de ministros do gabinete,
-colegas, Tunku Razaleigh Hamzah e Datuk e o Partido Islâmico Malaio, que já estava no
Musa Hitam, sendo que o segundo aceitou poder em Kelantan, conquistou o controle
o cargo de embaixador, e o primeiro foi der- do vizinho Trengganu. Em 2006, Mahathir
rotado de forma clara em uma eleição geral escolheu o afável Abdullah Badawi para
em 1990. Mahathir consolidou sua posição compartilhar o poder no recém-criado car-
como líder de uma coalizão de governo de go de primeiro-ministro. No 50o aniversário
14 partidos dominada pela UMNO. Em de sua criação, a Federação Malásia tinha
eleições realizadas em 1995, alguma opo- se recuperado dos reveses econômicos de
sição local persistia em Sabah e o partido 1997 (p. 490) e, mais coerente do que seus
muçulmano Parti Islam Se Malaysia (PAS) vizinhos no Sudeste Asiático e com uma po-
manteve um bastião em Kelantan, ao norte, pulação administrável de 30 milhões, con-
mas o principal partido de oposição, o Par- seguia projetar um crescimento econômico
tido da Ação Democrática, foi derrotado até estável para vários anos.
mesmo em sua base, Penang. A economia, Ao sul das possessões britânicas na
crescendo a uma taxa de 8% ao ano, estava Birmânia, Malásia e Cingapura, estava, em
tão cheia de esperanças quanto qualquer ou- 1945, o antigo Império Holandês na Indo-
POLÍTICA MUNDIAL | 477

nésia. Quando os britânicos voltaram ao recorreram à força, no que ficou conhecido


Sudeste Asiático depois da derrota dos ja- como Primeira Ação Policial. Foi garantida
poneses, suas ações eram dominadas pela uma trégua pelo Acordo de Renville, mas os
decisão de sair da Índia. O sudeste asiático combates recomeçaram; a situação foi leva-
(com exceção, talvez, de Cingapura) era, da ao Conselho de Segurança, e, depois de
para a Grã-Bretanha, um anexo da Índia e uma Segunda Ação Policial em dezembro
mal se poderia conceber que os britânicos de 1948, os holandeses, que foram contidos
pudessem aplicar por muito tempo nessa pelo anticolonialismo dos Estados Unidos e
região políticas em pleno desacordo com o seus representantes na Indonésia, viram-se
rumo que escolheram para aquele país. Esse obrigados a negociar. A independência foi
tipo de consideração não afetava os holan- concedida em 1949, mas sujeita à aceitação
deses, cuja posição na Indonésia não era re- pela nova República da Indonésia de uma
gulada por qualquer outra posição na Ásia. obscura união com a Holanda (cancelada
Para eles, a questão era a pergunta básica unilateralmente pela Indonésia em 1956);
que os britânicos se faziam na Índia – sair à exclusão de Irian Ocidental (Nova Guiné
ou permanecer – e não a secundária, que os Ocidental); e a uma Constituição Federal
britânicos enfrentaram na Birmânia – per- de sete Estados, convertidos em um Estado
manecer apesar de ter saído da Índia. Os unitário um ano depois, embora não sem
holandeses propuseram retornar mais ou lutas esporádicas e secessões frustradas em
menos a suas posições anteriores à guerra e relação ao controle javanês.
pediram ajuda a seus aliados britânicos. Sob a influência de Nehru, a Repúbli-
O retorno dos holandeses à Indonésia ca da Indonésia, da qual Sukarno se tornou
era algo que se pressupunha em 1945, mas, presidente, adotou uma postura de não ali-
por razões práticas, o comandante supremo nhamento nas questões internacionais e me-
britânico não conseguiu realizar operações lhorou seu status ao sediar, em 1955, a pri-
amplas e negociou com o líder nacionalis- meira conferência dos países não alinhados
ta Sukarno na fundamental ilha de Java. As em Bandung. No sul da Ásia, a Conferência
forças holandesas chegaram tarde ao lugar de Bandung foi considerada uma resposta
da ocupação britânica simbólica, mas en- ao Tratado de Manila, do ano anterior, no
contraram a oposição de um movimento qual os Estados Unidos pareciam estar pla-
relativamente bem organizado e bem equi- nejando a extensão da Guerra Fria para a
pado, com líderes hábeis e sofisticados cujos Ásia e para o Pacífico. O aparecimento de
contatos e viagens ao exterior tinham lhes Zhou Enlai em Bandung ajudou a Indoné-
dado uma visão das forças mais amplas que sia a estabelecer boas relações com a China
afetavam a continuação do domínio euro- e deu a seu não alinhamento uma inclinação
peu na Ásia. Os britânicos tentaram mediar, comunista, em vez de ocidental.
e, pelo Acordo de Linggadjati de 1946, os Em sua perspectiva visionária mais am-
holandeses reconheceram a autoridade de pla, a Indonésia independente incluía a Ma-
fato da autoproclamada República Indoné- lásia, Cingapura, Bornéu do Norte e Nova
sia em Java, Sumatra e Madura, e concor- Guiné. Em termos mais práticos, incluiu as
daram em retirar suas forças dessas áreas. Índias Orientais Holandesas. Irian Ocidental
Seria criada uma união entre a Indonésia e a estava nessa categoria, mas a outra metade
Holanda no início de 1949, mas esse esque- do território da Nova Guiné era australiana
ma desagradava a todos, e a situação dege- (seja como parte da Comunidade Australia-
nerou para o caos. Em 1947, os holandeses na ou como o território sob administração
478 | PETER CALVOCORESSI

da Austrália). Receios em relação à amplia- a Indonésia era, em função de seu tamanho


ção do poder da Indonésia em toda a Nova (mais de 13 mil ilhas e uma população de 200
Guiné fizeram com que o governo austra- milhões) e sua riqueza natural, uma potência
liano apoiasse a manutenção, pela Holanda, de outra ordem em relação a qualquer outro
desse canto de seu império, mas a lógica dos país do Sudeste Asiático: uma possível opo-
eventos – medida em milhas de distância sição à influência e à expansão da China ou
da Holanda – forçou os holandeses a aban- um apoio a elas. O PKI, liderado por A. K.
donarem, em 1962, o último posto avança- Aidit, era um dos partidos comunistas mais
do que tinham conseguido manter, sob o eficazes no mundo, e pró-chinês.
argumento de que os habitantes não eram Apesar de um número de membros esti-
indonésios e provavelmente não receberiam mado em mais de 10 milhões, ele não tinha
tratamento justo da Indonésia. O prolonga- sido capaz, em 1945, de obter o monopólio
nento dessa questão por 13 anos depois da de poder por meio de um golpe em Madiun,
independência manteve os espíritos nacio- em Java, mas tivera 18% dos votos nas elei-
nalistas em ebulição e fortaleceu a posição ções de 1955. Em 1965, uma falsa notícia da
de Sukarno, o nacionalista mais eloquente e morte de Sukarno se transformou no sinal
popular do país, apesar do colapso gradual para um golpe comunista. Seis generais fo-
da democracia parlamentar sob seu gover- ram cruelmente mutilados e assassinados,
no e da recessão econômica (agravada pela mas outros escaparam e o golpe fracassou.
expulsão dos holandeses e a nacionalização Em um contragolpe apoiado, se não plane-
de suas empresas). Em 1959, Ahmed Sukar- jado, pelos governos e pelos serviços secre-
no, apoiado pelo exército e pelo Partido Co- tos dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha,
munista (PKI), transformou o país em uma algo em torno de meio milhão de comunis-
Democracia Guiada, um eufemismo para a tas (incluindo Aidit) e suspeitos de serem
ditadura pessoal e um desempenho perfor- seus simpatizantes foram mortos, vários
mático, que deixou-o prensado entre o exér- milhões mais foram presos por décadas,
cito e o PKI. Sua determinação de garantir e o exército estabeleceu o controle sobre
Irian Ocidental o aproximou da China e da Sukarno e o país. Ele perdeu seus poderes,
URSS e lhe rendeu desconfiança por parte de renunciou em 1967, e morreu na prisão em
britânicos e norte-americanos como possível 1970. Seu sucessor, T. N. J. Suharto, um filho
conduto através do qual as potências comu- de camponeses em farda de general, era um
nistas poderiam obter controle do maior e astuto operador político que transformou a
mais rico país do Sudeste Asiático. O PKI es- Indonésia em uma economia centralizada
timulou Sukarno em sua oposição à criação comandada por ele e para ele, e para sua fa-
de uma Federação Malaia, que ele apresenta- mília muito ampliada e muito amplamente
va como um mecanismo para preservação da enriquecida. Suharto foi eleito presidente
influência britânica. Ele apoiou uma revolta por sete mandatos sucessivos que duraram
em Brunei, em 1962, contra sua fusão com até 1998. Ele manteve um número enorme
a Federação – ela foi reprimida pelos britâ- de opositores na cadeia (alguns foram trans-
nicos alguns dias depois – e manteve o con- portados a uma conveniente ilha longe da
fronto com a Malásia através de incursões costa), mas a economia nacional prosperou
de fronteira e protestos na ONU e em outras com ajuda dos Estados Unidos e do Japão.
reuniões internacionais enquanto governou. Embora as receitas das exportações de bor-
Embora muito fragilizada pela guerra, re- racha tenham caído, o petróleo da Indonésia
volução, guerra civil e analfabetismo (90%), e sua invejável variedade de outros minerais
POLÍTICA MUNDIAL | 479

mais do que equilibraram a balança. Nas dé- as perspectivas de Megawati e Habibie, e a


cadas de 1970 e de 1980, a economia estava atitude do exército em relação a cada um
crescendo no ritmo de 7 a 10% por ano – deles. A queda de Suharto tinha feito com
grande parte dela, contudo, desperdiçada que os leste-timorenses tivessem a expec-
em ostentação e produtos industriais sem tativa da independência pela qual vinham
sentido, tão invendáveis quanto qualquer lutando por um quarto de século, e Habi-
coisa produzida pelos satélites soviéticos na bie admitiu publicamente que deveria haver
Europa. Esse crescimento foi interrompido um referendo sobre o tema, aparentemente
no final dos anos de 1980 pela queda nas sem consultar os chefes militares, assusta-
receitas de petróleo e o aumento no custo dos com a perspectiva de uma votação que
de importações do Japão, e pelo serviço da provavelmente favoreceria a independên-
dívida com os japoneses; a moeda foi des- cia e estimularia outros secessionistas em
valorizada. Em 1989, a Indonésia retomou Sumatra e Irian Ocidental (Nova Guiné) e,
relações formais com a China depois de um talvez, em outros lugares.
intervalo de 24 anos, e Suharto visitou Mos- O Timor, a última grande ilha na cadeia
cou após um período igualmente longo de entre a Ásia Continental e a Austrália, tinha
contatos mornos. Ele foi reeleito sem opo- sido dividido entre os portugueses e os ho-
sição em 1989, mas a turbulência econô- landeses em partes quase iguais. A metade
mica que veio à tona no ano seguinte (ver leste, portuguesa, foi desligada de Macau, no
a seguir) o derrubou. Metade da população final do século XIX, para se tornar uma co-
passava necessidades, os chineses estavam lônia separada, e assim permaneceu depois
fugindo do país com seu dinheiro, e as ten- que a metade ocidental passou a fazer parte
tativas de Suharto de responsabilizar os es- da República da Indonésia. A derrubada do
trangeiros pela catástrofe econômica – e re- regime militar em Lisboa, em 1974, deixou
cusar sua ajuda – eram criticada por muitos o Timor Leste exposto à encampação pela
na Indonésia, bem como por seus vizinhos e Indonésia, que, contudo, sofria oposição
principais credores (Japão, Estados Unidos, de dois grupos, um pró-Portugal e o outro
Alemanha). Seu sucessor, B. J. Habibie, não que demandava a independência. A guerra
tinha a confiança do exército por ser civil, e civil estourou em 1975, os portugueses fo-
dos civis por ser um testa de ferro do exér- ram embora, e a Indonésia invadiu e anexou
cito. Nas eleições de 1999, o governante Par- o território, devastando-o com armas mo-
tido Golkar teve a experiência desconhecida dernas, matando metade de seus habitan-
de ficar em segundo. Os vencedores foram o tes e prendendo muitos dos sobreviventes
novo Partido Democrático e sua líder Mega- em campos. Portugal e Austrália toleraram
wati Sukarnoputri, a filha de Sukarno. Nesse implicitamente, e o restante do mundo mal
momento, a Constituição impôs um interlú- notou. O presidente e seu vice foram assas-
dio que os eventos no Timor Leste converte- sinados em 1979. A resistência contínua foi
ram em catástrofe. enfrentada com uma crueldade inescrupu-
A Constituição da Indonésia estabele- losa fortalecida por armas fornecidas por
cia que o presidente seria eleito pelo parla- fabricantes ocidentais, com permissão de
mento ampliado, com esse propósito, por governos ocidentais, principalmente Esta-
representantes de regiões e minorias. A dos Unidos e Grã-Bretanha. A resistência à
eleição presidencial só estava marcada para Indonésia esmoreceu nos anos de 1990, mas
três meses depois das eleições parlamenta- ressurgiu com a queda de Suharto. A deci-
res, fazendo com que a incerteza nublasse são de Habibie de permitir um referendo
480 | PETER CALVOCORESSI

sobre a independência ou a continuidade com má saúde, mas respeitado e habilidoso,


da integração com a Indonésia foi seguida que tinha visões moderadas. Essa escolha
do envio de uma Missão de Assistência da gerou violentas manifestações, e, no dia se-
ONU (UN Assistance Mission in East Ti- guinte, Megawati foi eleita vice-presidente.
mor, UNAMET) para organizar e supervi- Wahid montou um amplo governo de
sionar o referendo, que teve uma participa- coalizão cujas tarefas mais urgentes eram
ção muito alta e um resultado favorável à manter a Indonésia unida e impedir a im-
independência de quatro a um. Esses even- posição do despotismo militar. Os conflitos
tos precipitaram um massacre por parte de regionais eram inevitáveis em um país tão
milícias – unidades do exército disfarçadas grande, e particularmente agudos na pro-
– que mataram 30 mil timorenses, fizeram víncia de Aceh, em Sumatra. Em 2002, a
com que centenas de milhares fugissem e Indonésia elegeu um novo presidente, Susi-
levaram o Conselho de Segurança da ONU lo Bambang, seguido por uma experiência
a despachar uma força (principalmente aus- com violentos protestos islâmicos nos aten-
traliana) para o Timor Leste, com base no tados à bomba de Bali e Jacarta (2003) e sua
Capítulo VII da Carta da Organização. parcela da horripilante visita do tsunami
Essa intervenção afrontou profunda- que destruiu uma parte enorme do Sudeste
mente os líderes do exército, que, mesmo Asiático em 2004.
assim, permaneciam indecisos sobre como A Tailândia viveu a experiência singu-
responder e quem apoiar na eleição presi- lar de escapar da conquista europeia que
dencial que se aproximava. O outro centro tomou conta do restante do Sudeste Asiáti-
de autoridade na Indonésia – os notáveis co, sendo deixada como para-choque entre
islâmicos – estava dividido entre uma ten- os britânicos, que avançavam da Índia para
dência liberal e uma conservadora e também Birmânia, e os franceses, que avançavam de
se chocava a ponto de indecisão. As conse- Annam e Tonkin para o Laos e o Camboja.
quências econômicas foram mais pronuncia- Diferentemente de Birmânia, Laos e Vietnã,
das. O início da recuperação das reversões a Tailândia não tinha fronteiras com a Chi-
de 1997-1998 fora bloqueado na medida em na e conseguira assimilar uma boa parte de
que a crise no Timor destruiu o crédito da sua população chinesa de 4 milhões (12% do
Indonésia em todos os sentidos da palavra. total), mas compartilhava a apreensão geral
O parlamento aceitou formalmente a se- de todo o Sudeste Asiático em relação ao res-
cessão do Timor Leste e aprovou um voto surgimento do poder chinês e aceitou uma
de censura a Habibie, que assim se retirou aliança com os Estados Unidos como garan-
da disputa presidencial. Uma vez indepen- tia. Tornou-se o único membro verdadeiro
dente, o Timor foi deixado à própria sorte e da SEATO (as Filipinas e, ainda mais, o Pa-
caiu na pobreza, com desemprego de 80%. quistão, sendo membros periféricos de uma
A Fretilin, o antigo partido independentista, aliança chamada de Organização do Tratado
conquistou o maior número de cadeiras nas do Sudeste Asiático). O exército, que tinha
eleições de 2006, mas não a maioria. Adotou imposto limites ao absolutismo do rei em
táticas de bloqueio, seus líderes perderam o 1932, governou diretamente de 1938 a 1973
prestígio que tinham, e a nova geração não por meios de uma sucessão de homens for-
produziu personalidades de igual calibre. tes – os marechais Pibul Songgram, Thanarat
Na Indonésia, a Assembleia Nacio- Sarit e Thanom Kittikachron – com um in-
nal elegeu como presidente Abdurrahman terlúdio de governo civil (1944-1946) sob Nai
Wahid, um notável muçulmano javanês Pridi Panomiong, que, ao ser vencido por Pi-
POLÍTICA MUNDIAL | 481

bul, retirou-se para a China e ali retomou seu A conquista, pelo Vietnã, do Kampu-
movimento da época da guerra, o Free Thai, chea (Camboja), que por muito tempo tinha
que desta vez não ganhou muita importân- sido o país para-choque entre a Tailândia e o
cia. Rica em borracha, estanho, teca e arroz, a Vietnã, fez com que milhares de refugiados
Tailândia precisou menos da ajuda estrangei- fossem para o leste da primeira e a forçou a
ra do que a maior parte de seus vizinhos, mas buscar ajuda para combater a expansão viet-
se envolveu de forma onerosa nas guerras namita e restaurar a independência do país.
ao leste. Ameaçada, em 1962, por unidades Os amigos e aliados no Sudeste Asiático não
comunistas em suas fronteiras com o Laos, davam o tipo de apoio de que a Tailândia ne-
recebeu e aceitou a ajuda de tropas norte- cessitava, e ela recorreu à China e aos Estados
-americanas. Dois anos depois, permitiu o Unidos. Ambos forneceram armas, o segun-
estabelecimento de bases aéreas dos Estados do em grandes quantidades e sob a condição
Unidos para uso na Guerra do Vietnã, e essa de que elas ficassem disponíveis para seu
contraparte foi aos poucos sendo amplia- próprio uso, além do país beneficiado.
da para seis grandes bases com forças de 50 Com um crescimento econômico anual
mil soldados. Na década de 1970, o desgaste em torno dos 10 a 12%, o investimento e a
da guerra e a consciência de que ela estava produção industriais em ascensão, assim
sendo perdida pelos norte-americanos gera- como o turismo, e os pagamentos externos
ram insatisfação, acentuada pela corrupção em equilíbrio, a Tailândia prosperou. Dentro
generalizada, ineficiência e políticas incertas de sua estrutura monárquica, era governa-
dos governos militares. A aliança com os Es- da por associações interligadas e de benefí-
tados Unidos e o consequente envolvimen- cio mútuo entre o exército e a comunidade
to na Guerra do Vietnã eram cada vez mais empresarial, encabeçadas por generais, mas
criticados, e, depois de rebeliões em 1973, um pouco limitadas por uma Constituição
restaurou-se o governo civil. Essa mudança parlamentar, pelos poderes residuais e pelo
marcou uma reversão parcial de políticas ex- prestígio considerável da monarquia. Em
ternas, bem como um desejo de limpar a vida 1988, o general Prem Tinsulanonda cedeu o
pública, que havia sido corrompida por go- poder aos 82 anos ao general Chatichai Cho-
vernos oligárquicos e pela inflação e os maus onhaven, mas, quatro anos depois, a escolha
hábitos que vêm com uma presença militar do general Suchinda Kraprayoon como pró-
estrangeira. As forças norte-americanas co- ximo primeiro-ministro sem aprovação par-
meçaram a ir embora no mesmo ano, mas lamentar causou rebeliões, lideradas pelo ex-
outro produto da guerra permaneceu, na -general Chamlon Srimuang, em uma escala
forma da Frente Patriótica, que, com algum que levou o rei Bhumipol a intervir, tratar
apoio da China, manteve por 10 anos grupos friamente os militares e instalar um primei-
guerrilheiros de alguns milhares de membros ro-ministro civil. Apesar de disputas entre
entre os povos meo que (totalizando 300 mil generais, o regime era marcado por enormes
pessoas) viviam entre um lado e outro na apropriações indevidas e, principalmente no
fronteira entre Tailândia e Laos. Em 1976, oeste e no sul, por distúrbios causados por
um regime civil cada vez mais desnorteado insurgentes comunistas ou muçulmanos,
foi substituído novamente pelos militares ou por traficantes de ópio organizados. O
atrás de uma fachada civil-militar, cuja prin- tumulto financeiro na região (ver a seguir)
cipal preocupação era o advento do poder em 1997-1998, não causou revoltas políti-
vietnamita nas fronteiras da Tailândia, mas a cas para além de emendas constitucionais e
direita mais moderada recuperou o controle. de tentativas de limitar a quantidade de di-
482 | PETER CALVOCORESSI

nheiro gasto nas eleições. Mas, em 2006, um Malásia e se recusou a reconhecer o novo Es-
golpe militar, destinado a barrar o avanço tado da Malásia, do qual Sabah concordou em
gradual da democracia, depôs o primeiro- se tornar parte. Mas essa questão foi deixada
-ministro, que fugiu para Londres. O rei no- de lado por seu sucessor, Ferdinand Marcos
meou outro primeiro-ministro civil. (presidente de 1966 a 1986), que, embora
As Filipinas (cerca de 7 mil ilhas), do- eleito como reformista, passou a se ocupar
minadas pelos japoneses durante a guerra, de tentativas de manter a presidência além do
foram recuperadas pelos Estados Unidos, em mandato presidencial e de um fabuloso enri-
1945, e lhes foi dada a independência no ano quecimento próprio e de sua família. Um re-
seguinte. Os termos da transferência de so- ferendo, em 1973, seguido da imposição da lei
berania incluíam um arrendamento de bases marcial, em 1972, permitiu que ele prolongas-
aos Estados Unidos por 99 anos, reduzido, se seu mandato. A lei marcial foi anulada, em
em 1966, a 25 anos a partir daquela data. O 1981, e Marcos previsivelmente venceu uma
problema central do novo governo era au- eleição presidencial realizada no mesmo ano.
toridade. O país havia se tornado um sub- Seu governo era tirânico, e sua mulher, que se
mundo no qual diferentes grupos, incluindo tornou um personagem político, não era me-
a polícia, tinham se tornado a lei. A violên- lhor. Eles saquearam seu próprio país, calcu-
cia era endêmica e atingia picos em épocas lando que sua importância estratégica para os
de eleição. Destacavam-se entre as forças no Estados Unidos faria com que Washington fi-
país os hukbalahaps, cuja origem era uma zesse vista grossa. Em 1983, Benigno Aquino,
guerrilha antijaponesa apoiada pelos Estados o mais destacado opositor do regime (que ti-
Unidos durante a guerra, mas que, com o seu nha sido preso, em 1973, para que não vences-
fim, agora eram dispensáveis, ou pior: seu se a eleição, e libertado, em 1979, para fazer
líder Luis Taruc, declarou-se comunista. Ele tratamento médico nos Estados Unidos), foi
se rendeu em 1974, mas seu movimento per- imediatamente morto a tiros por um pistolei-
sistiu no norte, onde o Novo Exército Popu- ro contratado, assim que colocou o pé em seu
lar (NEP) governava áreas importantes com país descendo de um avião. Um inquérito pos-
algum apoio da população local. A esfera de terior apontou um grupo entre o qual estava
ação do NEP estava próxima o suficiente de o chefe do Estado-Maior do exército, general
duas bases norte-americanas, da base aérea Fabian Ver, e dois outros generais, mas eles fo-
de Clark e da base naval na Baía de Subic ram isentados oficialmente. Com novas elei-
para lhes causar inquietação e garantir apoio ções marcadas para 1986 e protestos cada vez
a uma série de presidentes que se julgavam maiores que se aproximavam de uma guerra
capazes de conter os insurgentes. civil, os norte-americanos foram obrigados a
Também havia dissidência no sul, onde se questionar se Marcos não era um recurso
uma maioria muçulmana estabelecida esta- que se esvaía rapidamente, mas, quanto mais
va se tornando minoria e formou a Frente vulnerável ele ficava, mais os Estados Unidos
Nacional de Libertação Moro. Na capital se viam presos entre ele e o que consideravam
Manila, a ostentação crescia junto com os uma alternativa ainda menos palatável, cada
escombros da guerra. vez mais à esquerda. Tendo perdido o Vietnã
Em 1962, o presidente Diosdado Maca- e sua base na Baía de Camranh a aliados de
pagal desenterrou a reivindicação das Filipi- Moscou, eles estavam receosos de ver as Fili-
nas sobre Sabah (Bornéu do Norte), que for- pinas, com suas bases ainda mais importantes,
ma um lado do Mar de Sulu, de resto cercado no mesmo caminho, e sustentaram Marcos
por Ilhas Filipinas. Ele rompeu relações com a até não ser mais possível, e então transferiram
POLÍTICA MUNDIAL | 483

seu apoio à viúva de Aquino, Corazón, que fez dos Unidos só aprovou 365 milhões por um
campanha contra Marcos pela presidência e ano. Qualquer extensão das bases para além
o forçou a fugir duas semanas depois da ree- de 1991 demandaria endosso por dois terços
leição – e de os Estados Unidos mudarem de do Senado das Filipinas e, possivelmente, um
lado – sob pressão de imensas manifestações referendo. O poder de barganha do país es-
pacíficas e algumas deserções de pessoas em tava longe de ser desprezível, já que as bases
postos importantes, que passaram para o lado não eram totalmente substituíveis a não ser
dela. Marcos morreu nos Estados Unidos em a um custo imenso, e sua evacuação imporia
1989. Aquino, embora fosse presidente por aos Estados Unidos uma revisão estratégica
aclamação popular, era dependente do exérci- minuciosa e difícil. Uma nova proposta de
to, personificado em Juan Ponce Enrile e Fidel tratado foi rejeitada pelo Senado filipino em
Ramos. Seu vice-presidente, Salvador Laurel, 1991, apesar de considerável sacrifício em
foi seu rival na disputa pela presidência. Ela empregos e receitas, em uma época de pobre-
herdou uma insurreição de 20 anos no sul, za grave e crescente. A presidente Aquino, de-
uma dívida externa de 25 bilhões de dólares, pois de contestar inicialmente a resolução do
um serviço da dívida que absorvia um terço Senado, solicitou a retirada dos norte-ame-
das receitas estrangeiras, uma produção in- ricanos em um prazo de três anos. Em 1992,
terna em queda e um acordo com o FMI que Aquino foi sucedida por Ramos, que realizou
estava quase sendo cancelado por descumpri- um governo mais coerente, estabeleceu a paz
mento de seus termos. com os principais insurgentes, comandou
A presidente negociou um novo acordo, uma economia mais próspera, mas não fez
mas a recuperação era lenta. As divergências grande coisa pela maioria dos filipinos. Em
nas províncias insurgentes persistiam, e a di- 1998, ele foi sucedido por Joseph Estrada,
vergência dentro do governo não demorou a um popular profissional do entretenimento
aparecer, principalmente por parte de oficiais transformado em político populista, que fez
do exército que criticavam a incapacidade campanha sobre o tema de que mais ninguém
dela para reprimir o NEP e a Frente Moro. se preocupava com os pobres. Ele foi depos-
Forçada a demitir Enrile, ela se viu muito de- to pelo exército em 2001 e mandado à prisão
pendente de Ramos, e o vice-presidente Lau- perpétua sob acusações de corrupção: grande
rel a abandonou por Enrile nas eleições locais parte de sua instabilidade vinha de conflitos
de 1987. Uma série de revoltas dava testemu- criminosos com relação aos minérios ricos
nho de seu controle incerto, impediam-na de e diversos do país. A sucessora de Estrada,
realizar a tão necessária reforma agrária, e a Gloria Macapagal Arroyo, atacada por forças
tornavam mais dependente da boa vontade guerrilheiras separatistas, islamitas e comu-
dos Estados Unidos. Apesar de um apoio ini- nistas, mostrou-se incapaz de sustentar a au-
cial aos que exigiam o fechamento das bases toridade de seu governo nesse país disperso.
norte-americanas, ela manteve o acordo que Os países do Sudeste Asiático que não
permitia sua presença até 1991, obtendo uma os da Indochina formaram, em 1967, a As-
aceitação de Washington para revisões quin- sociação das Nações do Sudeste Asiático
quenais, que eram uma forma de aumentar (Association of South East Asian Nations,
o aluguel. Aquino concluiu com Reagan um ASEAN), cujos primeiros membros foram a
acordo em que os dois aceitaram usar seus Indonésia, Cingapura, Tailândia e Filipinas.
melhores esforços para garantir pagamen- Suas metas eram atacar a pobreza, as doen-
tos às Filipinas de 962 milhões de dólares ças e outros males sociais, aumentar seu
por dois anos, mas o Congresso dos Esta- peso comercial e econômico no mundo, ga-
484 | PETER CALVOCORESSI

rantir sua independência ao reduzir as fon- estabilidade regional na escala de impor-


tes de revolta interna e as tentações externas tância. A presidente Aquino, mais tarde, fez
de se imiscuir em suas questões e manter os uma renúncia formal.
estrangeiros afastados. Não haveria planeja- A partida dos britânicos do Sudeste
mento nem exercícios militares conjuntos, Asiático e a guerra dos norte-americanos no
nem qualquer outro tipo de colaboração Vietnã foram testes a essa solidariedade. O
militar. Era uma associação de ajuda mútua, anúncio, em 1968, de uma retirada iminen-
econômica e social, mas não sem algumas te dos britânicos da Malásia e de Cingapu-
esperanças silenciosas de que ela pudesse ra fez com que esses dois países assinassem
conter a capacidade potencial da Indonésia com a Austrália, a Nova Zelândia e a Grã-
de apavorar a região, já que esse país conti- -Bretanha um novo acordo (ao qual Brunei
nha quase metade da população da ASEAN. aderiu posteriormente) substituindo o acor-
A ASEAN não foi o primeiro ensaio de do de defesa anglo-malaio e se unissem, no
cooperação na região durante o pós-guerra. mesmo ano, a seus parceiros na ASean para
Em 1961, Tailândia, Malásia e Filipinas for- propor que o Sudeste Asiático fosse decla-
maram a Associação do Sudeste Asiático, a rado zona de paz, liberdade e neutralidade.
qual desintegrou-se como resultado de rei- Ainda que esses dois passos fossem pouco
vindicações das duas últimas sobre Sabah. coerentes, essa incoerência era o preço a ser
Em 1963, esses dois países e a Indonésia pago pela transição de um mundo colonial
projetaram uma associação tripartite dife- a uma cooperação regional para uma me-
rente, que nunca aconteceu. Nessa época, lhor garantia da independência nacional.
havia dois grandes obstáculos: as tensões A guerra dos Estados Unidos no Vietnã foi
surgidas da criação da Malásia e as atitudes uma afronta a essa independência até sua
pró-comunistas de Sukarno na Indonésia. conclusão em 1973. Para os países da ASE-
A deposição de Sukarno pelo exército in- AN, a sequela mais perturbadora do fracas-
donésio era uma precondição à criação de so dos Estados Unidos foi a aproximação
uma ampla associação do Sudeste Asiático, de Nixon com a China e a abertura que foi
assim como a disposição do país de cola- dada ao país para exercer o papel de potên-
borar. Os sucessores de Sukarno estavam cia no Sudeste Asiático, abandonado pelos
dispostos. O confronto entre a Indonésia e Estados Unidos, com o problema adicional
a Malásia desvaneceu e a disputa entre esta de decidir se o principal inimigo na região
e as Filipinas, embora tenha gerado uma era a China comunista ou o Vietnã comu-
ruptura diplomática, também sumiu de- nista. A ameaça do Vietnã ficou mais aguda
pois que Sabah votou, em 1967, por unir- quando ele invadiu o Kampuchea.
-se à Malásia; o presidente Marcos visitou Os membros da ASEAN estavam dividi-
Kuala Lampur um ano depois de sua posse. dos. Na ONU, em 1970, Malásia e Cingapu-
As relações foram prejudicadas mais uma ra votaram a favor de dar a vaga da China no
vez no mesmo ano, depois de um misterio- Conselho de Segurança ao governo comu-
so massacre de soldados muçulmanos em nista de Pequim, as Filipinas tinham votado
Corregidor (possivelmente por seus pró- contra e a Indonésia e a Tailândia se absti-
prios oficiais) e por um breve ressurgimen- veram. A maioria dos membros da ASEAN
to da reivindicação filipina por Sabah, mas esperava acrescentar o Vietnã à sua Associa-
ela foi congelada por Marcos, que, embora ção apesar de seu regime comunista, mas,
disposto a dar o passo impopular de final- ao invadir o Kampuchea, o país rompeu um
mente renunciar a ela, colocou-a abaixo da dos preceitos básicos da ASEAN – respeito
POLÍTICA MUNDIAL | 485

pela soberania e independência nacionais. foram perturbados pela concessão por Cin-
O tratado do Vietnã com a URSS foi outro gapura de instalações militares aos Estados
elemento contrário ao primeiro, já que ou- Unidos em 1989, rompendo o compromisso
tro preceito da ASEAN era sua decisão de da ASEAN de manter a região uma zona de
manter as grandes potências afastadas. O paz; foi garantido a eles que isso não envol-
dilema era mais agudo para a Tailândia. via mais do que consertos e manutenção. Em
A Tailândia queria agir em conjun- 1993, conversações regulares sobre seguran-
to com seus parceiros da ASEAN, mas era ça foram ampliadas para um Fórum Regio-
ameaçada de forma mais direta do que eles nal Asiático que incluía 15 países e a União
pela expansão vietnamita dentro do Kam- Europeia. A Índia entrou em 1996. Tanto ela
puchea e sabia que a Organização não tinha quanto a China desconfiavam de que uma
poder militar para se opor à agressão viet- organização tão ampla caísse sob domínio
namita, ao passo que a China tinha. Em ter- dos Estados Unidos ou do Japão, ou se tor-
mos de combate, os efetivos antivietnamitas nasse foco de luta pelo poder entre eles.
eram o Khmer Vermelho e a China. Para os Nas questões econômicas, visualizava-
outros membros da ASEAN, por outro lado, -se o comércio completamente livre para
particularmente a Indonésia, a China era a 2003, e uma união econômica mais ampla
principal ameaça à região no longo prazo e com movimento de capital irrestrito para
sua incursão no norte do Vietnã, em 1979, 2020. O surgimento, em 1989, por iniciativa
era um mau sinal. Nessas circunstâncias, a da Austrália, da Cooperação Econômica da
sobrevivência da ASEAN era um tributo a Ásia-Pacífico (Asian Pacific Economic Co-
seus líderes, mas essas pressões não foram operation – APEC) prenunciava um grupo
aliviadas até a retirada vietnamita do Cam- zonal maior que poderia absorver a ASEAN.
boja e a russa do Vietnã. A APEC incluía a China, o Japão, os Estados
A ampliação estava implícita no nome Unidos e a Austrália, e, em 1996, esse grupo
da ASEAN, alimentada por um desejo de de 12 membros recebeu a adesão conjunta
organização geográfica, de atingir seus limi- dos 25 membros da Reunião Ásia-Europa
tes naturais epônimos até o ano 2000, e por (Asia-Europe Meeting – ASEM), que era
um desejo igual de manter a China e o Ja- mais uma conferência que se repetia, do
pão a uma distância saudável. Os membros que uma organização. A própria ASEAN
originais receberam a adesão de Brunei em foi abalada e abalou o mundo com fracas-
1984, do Vietnã em 1995, e de Camboja, sos econômicos graves que começaram em
Laos e Mianmar em 1997, embora o golpe 1997, na Tailândia. O que fez da ASEAN um
de Hun Sen naquele ano tenha feito com que centro da atenção mundial foi seu sucesso
a admissão do Camboja fosse protelada. A medido em termos de crescimento: e o que
admissão de Mianmar, e não do Camboja, cresceu de forma espetacular foi a educação
ilustrava a falta de lógica da escolha política, básica na força de trabalho em lugar de um
já que a primeira não era simplesmente uma campesinato analfabeto e as sweatshops ur-
autocracia abertamente desdenhosa da de- banas; um elevado nível de poupança; pró-
mocracia (a junta que a governava realizou digos empréstimos externos (de até 50% do
eleições e depois as ignorou), mas também PIB); e crédito – com sua dívida correspon-
um dos maiores transgressores dos direitos dente e sua corrupção concomitante. No
humanos no mundo; por outro lado, era es- início dos anos de 1990, embora as expor-
pecialmente vulnerável às pressões chinesas. tações ainda estivessem crescendo em 20%
Nas questões relativas à defesa, os membros em alguns lugares, os riscos estavam come-
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çando a cobrar seu preço: principalmente rosa por especuladores espertos e inocentes
a concorrência da China, que desvalorizou em pânico. A possibilidade de insurreição
sua moeda em 1994 e estava sob pressão espreitava com milhões de desempregados
para desvalorizar ainda mais na medida em vagando pela região. O FMI orquestrou,
que o iene japonês caía, e uma obstinada com outros países, créditos de emergência
persistência em manter as moedas vincu- em um total de 17 bilhões para conter o co-
ladas ao dólar norte-americano, apesar do lapso do baht e proteger os financiadores
declínio do iene em relação a esse. ocidentais de consequências catastróficas.
Grandes excedentes em exportações As condições incluíam limitar o crescimento
estavam sendo transformados em déficits da Tailândia a 4% ao ano. Seguiu-se um pro-
por financiamento negligente. Em 1997, a grama ainda maior de apoio à Indonésia (43
paridade entre o baht tailandês e o dólar foi bilhões de dólares) na medida em que a rú-
abandonada, e o primeiro flutuou, perden- pia perdeu dois terços de seu valor em dois
do um quarto de seu valor anterior em duas meses. Mesmo assim, essas não eram econo-
semanas. As empresas que tinham feito em- mias frágeis. Seu crescimento criou expecta-
préstimos em dólar para investir em opera- tivas que, quando deflacionadas, causaram
ções (muitas vezes altamente especulativas) alarme e pânico, mas as pessoas como um
faziam a reconversão ao dólar com perdas todo continuavam em melhor situação do
altíssimas e as próprias empresas perderam que uma geração antes, e o impacto desses
metade de seu valor nas bolsas e demitiram incidentes no mundo foi de menos de 10%.
metade de seus funcionários. Seguiram-se as A região assumiu economias consideráveis,
falências de bancos. A Tailândia usou suas que foram mal administradas. A interven-
reservas para defender sua moeda e, não ten- ção por parte do FMI, e de outros países
do sucesso, ficou sem reservas. Outras moe- poderia estancar a queda das moedas, mas
das foram afetadas rapidamente por temores não conseguiria, por conta própria, reabili-
de consequências do mesmo tipo, embora tar sistemas exauridos. Como o Japão, o Su-
as circunstâncias nos vários países da região deste Asiático tratou o sucesso como se ele
não fossem totalmente semelhantes. Na Ma- não precisasse de nenhum ajuste, e, quando
lásia, foram feitos empréstimos imprudentes esse ajuste se fez necessário, descobriu-se
em grande parte em bancos nacionais, en- que o sucesso tinha um enorme elemento
quanto a excessiva instabilidade e corrup- de exagero, que foi pago em moedas, preços
ção da Indonésia faziam com que o pânico de ações e instituições financeiras deflacio-
econômico se transformasse em revolução. nados. Em vários casos, o colapso foi acen-
Houve choques e quedas semelhantes nas Fi- tuado pela falsidade e pela corrupção. Os
lipinas, na Coreia do Sul e em Hong Kong, e regimes foram abalados, mas, com exceção
alarmes secundários em todo o mundo. da Indonésia, sobreviveram.
A maior dívida externa da região era a A recuperação econômica exigia duas
da Tailândia, de 10 bilhões de dólares. As coisas: a criação de economias nacionais
empresas, já insolventes, revelaram-se, de mais fortes em lugar de crescimento espe-
súbito, irremediavelmente fadadas à extin- tacular mas sem consistência, e governos
ção ou a serem compradas a preços baixos suficientemente inteligentes e honestos para
por predadores estrangeiros ou mafiosos dirigir essa transformação. Os governos se
locais. Os valores de propriedades e ações, mostraram incompetentes para controlar
tendo subido de modo absurdo, foram der- os mercados, conter o crescimento impru-
rubados à realidade de forma crua e dolo- dente e preservar a especulação irrespon-
POLÍTICA MUNDIAL | 487

sável – uma fraqueza que não estava limi- o suficiente para prosperar a partir de seus
tada aos governos asiáticos, mas se refletia, próprios esforços (unidos) e garantir sua au-
por exemplo, em partes da América Latina, tonomia, na prática, em uma economia glo-
onde os governos estavam falhando no de- bal. Os membros do grupo ficaram mais di-
ver de proteger seus povos. vididos do que unidos por seus infortúnios
A crise colocou um grande ponto de em comum, cujas causas eram motivo de
interrogação sobre a proposta fundado- divergência, e pela turbulência extrema na
ra da ASEAN, de que a região estava forte Indonésia, o membro mais rico da ASEAN.
19 Afeganistão

A identidade do moderno Estado do Afega- quais, supostamente, não queriam mudan-


nistão começou a ser formada por Ahmed ças), mas iria desde Chitral na Caxemira
Shah, no século VIII, depois do assassinato noroeste até o Sind, podendo incluir partes
de Nadir Shah, do Irã, cujo império se es- do Baluchistão e Sind, e até mesmo Karachi.
tendia aos patanes (ou pushtus), turcome- O Paquistão rejeitou a ideia, por alguns anos
nos, uzbeques e hazares (descendentes dos houve lutas na fronteira – associadas, par-
mongóis) que viviam entre os desertos do ticularmente, ao faquir de Ipi, uma pedra
leste do Irã e o que viria a se tornar a frontei- persistente no sapato do Paquistão – e uma
ra noroeste dos britânicos na Índia. No sé- série de protestos e agitações domésticas.
culo XIX, os britânicos, depois de derrotar Em 1950, foi aceita, mas nunca implemen-
os siques, estenderam seu domínio a oeste tada, uma oferta de mediação por parte do
e entraram em conflito com o emir Abdur xá do Irã. Pouco tempo depois, a disputa foi
Rahman do Afeganistão, que, tendo conso- arrefecendo, mas continuou afetando as re-
lidado sua posição depois de um período de lações entre o Afeganistão e o Paquistão, e,
conflitos, deslocava-se na direção oposta. junto com a tradição que o primeiro tinha
Em 1893, foi definida a Linha Durand, que de relações amigáveis com a URSS, foi um
recebeu esse nome em função do ministro elemento que contribuiu para manter o Afe-
do exterior da Índia e que passava pela terra ganistão fora das negociações do Pacto de
patane, mas a natureza da Linha não era de- Bagdá, patrocinadas pelo Ocidente. A partir
finida com precisão, e sucessivos governos de 1953, quando se tornou o primeiro país
afegãos negaram que ela alguma vez tenha não comunista a receber ajuda da Rússia, o
sido destinada a representar uma fronteira Afeganistão entrou na esfera russa, mas sua
internacional. dependência da URSS permaneceu discre-
Entre 8 e 9 milhões de patanes de fala ta por 25 anos, e o país se manteve fora do
pushtu viviam em ambos os lados da fron- mapa internacional.
teira entre Afeganistão e Paquistão. Às vés- O Afeganistão moderno foi governado
peras da independência do Paquistão, em pelos patanes do sudeste com a relutan-
1947, e depois dela, o Afeganistão tentou te aquiescência de outras raças, entre as
persuadir, inicialmente a Grã-Bretanha e quais as mais importantes eram as do nor-
depois o Paquistão, a que concordassem te, que embora estigmatizassem rapida-
com a criação de um Estado patane ou mente os patanes como ociosos, conside-
pushtu independente, que não incluiria ravam a relativa riqueza de suas próprias
os patanes que viviam no Afeganistão (os terras e rebanhos como compensação por
POLÍTICA MUNDIAL | 489

sua influência política desproporcional- 1977, colocou seus líderes na cadeia. Ambas
mente baixa. as facções, contudo, avançavam no exército,
O Afeganistão era um país com poucos e, em 1978, houve uma virada e Daud foi de-
recursos naturais e um sistema fiscal medie- posto. Essa foi uma vitória principalmente
val. Como o parlamento se recusava a impor do Khalq que, depois de um breve período
mais do que impostos leves sobre a terra, a de cooperação com o Parcham, despachou
receita pública era derivada de impostos de Karmal e outros líderes parcham para o exí-
aduana, necessariamente baixos. O contra- lio honroso como embaixadores. Quando
bando era uma atividade econômica muito convocados para voltar para casa mais tarde,
importante. Muhammad Zahir Shah, que preferiram não fazê-lo.
assumiu o trono em 1935, tinha bastante Taraki e Amin entraram em conflito e
disposição para um progresso modesto, mas em pouco tempo caíram em desgraça. Suas
era obstruído por um parlamento que ele reformas impulsivas enfureceram os pro-
não tinha força suficiente para demitir nem prietários de terras e o clero, e precipitaram
manipular, ao contrário de seu vizinho, o xá revoltas nas quais muitas pessoas foram
do Irã. Foi deposto, em 1973, enquanto fazia mortas (incluindo um embaixador dos Es-
uma visita à Europa, a monarquia foi abo- tados Unidos, cujo papel nos bastidores, se
lida e foi proclamada uma república sob a existiu, permaneceu um mistério). No que
presidência de um parente seu, Muhammad pode ter sido um golpe abortado contra o
Daud Khan. Na década de 1960, a ajuda es- governo, cerca de 50 assessores russos em
trangeira (russa, além de chinesa) foi usada Herat, próximo à fronteira com o Irã, foram
principalmente para a construção de estra- mortos de forma repulsiva. A estrela de Ta-
das. Parte dessa atividade, principalmente as raki perdia e brilho, e Amin tentou recupe-
estradas e túneis construídos por engenhei- rar o controle ordenando incursões cruéis
ros russos a partir de Mazar-i-Sharif, pró- na zona rural e matando seus inimigos aos
ximo à fronteira com a URSS e pelo Hindu milhares. Alarmados por essas desordens,
Kush até Cabul, tinha importância estraté- por uma oposição islâmica em ebulição,
gica óbvia, e era especialmente preocupante provocada pela perseguição de Amin e o
ao Paquistão. exemplo do vizinho Irã e também por even-
Muhammad Daud tinha recebido ajuda tos nesse país vizinho, que representavam
para subir ao poder, em 1973, de um setor do tanto uma tentação quanto uma desculpa
Partido Democrático Popular (PDP), (mais para um golpe armado norte-americano, os
ou menos) comunista, que surgiu em 1965 russos resolveram se livrar de Amin e aper-
e depois se dividiu entre o Khalq, liderado tar seu controle no Afeganistão. Mas quan-
por Nur Muhammad Taraki e Hafizullah do Taraki, com incentivo russo, estava por
Amin (amplamente rural e patane), e o Par- depor e matar Amin, este o depôs e o matou.
cham, cujo líder era Babrak Karmal (predo- Amin, que estava se revelando menos sub-
minantemente urbano e mais forte entre os serviente do que Moscou exigia, durou ape-
tadjiques e outros povos de fala não pushtu). nas três meses, no final dos quais os russos,
O Parcham apoiou Muhammad Daud e foi tendo-o induzido a pedir a ajuda deles con-
recompensado com cargos em seu gabinete. tra a rebelião que ele não conseguia conter,
Daud estava tentando fazer o jogo Oriente invadiram o país nos últimos dias de 1979.
versus Ocidente, buscou ajuda com o xá do Amin foi executado; Karmal reapareceu e
Irã, perseguiu o Parcham e o Khalq e, em foi instalado na presidência.
U Z B E Q U I S TÃO TA D J I Q U I S TÃO
490

C HINA
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T U R C O M E N I S TÃ O
BADAKHSTAN
JAN BALAKH
WZ KONDOZ
JO
Mazar-e- Kondoz
sharif TAKHAR

FARYAB SAMANGAN O
PARVAN TÃ
ES
PETER CALVOCORESSI

SAR-E-POL BAGHLAN R ÍND IA


BADGHIS NU KONAR
BAMIAN KAPISA
Herat KABOL LAGHMAN
VARDAK Cabul
GHOWR LOWGAR NANGARHAR
HERAT
ORUZGAN PAKTIA
GHAZNI KHOWST
Tarin
Kowt
FARAH
Farah ZABOL PAKTIKA

Lashkar
Qalat
Gah
Kandahar
IRÃ Zaranj
HELMAND 3.000-4.000 metros
NIMRUZ KANDAHAR PAQUISTÃO
mais de 4.000 metros

0 150 300 km

0 100 200 milhas

Figura 19.1 Afeganistão.


POLÍTICA MUNDIAL | 491

Esse ato de agressão foi interpretado uma fase inicial da invasão, dois terços dos
em Washington como uma ação calculada invasores russos estavam situados no su-
na estratégia global russa, e não uma res- doeste do Afeganistão, onde não poderiam
posta às perigosas trapalhadas de uma ma- deixar de ser vistos em Washington como
rionete incompetente. Do ponto de vista uma ameaça ao Irã e ao Golfo. Movimen-
de Moscou, Taraki e Amin criaram o caos tos de navios de guerra dos Estados Uni-
em uma zona de fronteira, e, a se acredi- dos em direção ao Golfo tinham o mesmo
tar na interpretação de Moscou sobre os efeito, só que invertido, em Moscou.
eventos, estavam jogando contra Moscou Os Estados Unidos enfatizavam as
inimigos no Irã, Paquistão e Estados Uni- implicações assustadoras de uma invasão
dos. Além disso, essa região problemática que era um ato flagrante de agressão e um
tinha uma característica especial: era um golpe ao prestígio norte-americano, gra-
país muçulmano, em grande parte turco, vemente desgastado pela continuidade do
que fazia fronteira com repúblicas de mes- cativeiro dos reféns em Teerã e pela que-
ma textura dentro da Ásia Central soviéti- da do xá. Este tinha sido apresentado pes-
ca onde, como qualquer membro do polit- soalmente como um importante baluarte
buro se lembraria, a insurgência bashmak, da força norte-americana, e Washington
ou assaltante, tinha sido endêmica durante era acusada – inicialmente pelos próprios
metade de existência da URSS. Essa era norte-americanos desalentados – de não
uma base suficiente para a invasão, que ter defendido um amigo. A posição dos
a maioria do politburo apoiou com o in- Estados Unidos no Golfo e em torno dele
centivo, como pareceu de fora, de seus foi fragilizada por essa acusação, mesmo
membros militares, influenciados por im- que os árabes se regozijassem com a derro-
portantes personalidades das repúblicas da ta de um monarca não árabe que nenhum
Ásia Central. deles adorava. O presidente Carter tinha
Mas as consequências eram mais am- um interesse legítimo em deslocar as luzes
plas do que essas motivações. A invasão da ribalta internacional de seu próprio di-
russa coincidiu com a desorganização lema em relação aos reféns à enormidade
pós-revolucionária do Irã e com a conti- da ação russa no Afeganistão, e recebeu o
nuidade da incerteza no Paquistão, onde, apoio do mundo muçulmano. A Conferên-
pouco antes da invasão, o general Zia ul- cia Islâmica (instituição criada em 1969
-Haq tinha dado mostras de insegurança pela monarquia saudita) fez uma reunião
ao cancelar as eleições e todas as atividades de emergência inédita na qual Khomeini
políticas de qualquer orientação. Moscou atacou a URSS como sendo quase tão satâ-
vinha acusando o Irã e o Paquistão de in- nica quanto os Estados Unidos e todos os
terferirem nas questões do Afeganistão, e membros árabes se uniram na condenação
essas acusações, verdadeiras ou não, po- da invasão. Os países do Golfo foram mais
deriam anunciar outros atos de agressão. enfáticos do que a anti-israelense Frente de
A invasão trouxe forças armadas russas a Confronto (Síria, Argélia, Líbia, Iêmen do
uma distância de uma hora de voo do Gol- Sul e a OLP), mas mesmo esta não pode
fo Pérsico e do Oceano Índico e ao terri- deixar de atacar.
tório baluchi: os baluchis lutaram contra Em termos de ação, contudo, a gama
seus dominadores iranianos e paquistane- de possibilidades de Carter era limitada.
ses de, 1973 a 1976, e muitos fugiram para Naquele mesmo ano, ele tinha anunciado
o Afeganistão e para a URSS. Depois de a formação de uma Força de Ação Rápida
492 | PETER CALVOCORESSI

de 100 mil membros, mas ela ainda não que era mantida em andamento pelas su-
existia, nem estava claro o que faria caso perpotências.
existisse, e o presidente foi levado de volta a A partir de 1982, a ONU emitia pedi-
medidas como interromper as exportações dos anuais de cessar-fogo, de um calendário
de grãos à URSS (que não caíam no gosto para a rápida retirada das forças russas e
dos produtores rurais dos Estados Unidos, de acordos entre os governos do Paquistão
que vendiam seus grãos aos argentinos, e e do Afeganistão para interromper a ajuda
assim eles chegavam à URSS) e tentar ar- aos mujaheddins através do Paquistão. Pa-
ticular o descontentamento internacional quistaneses e norte-americanos não que-
com um boicote às olimpíadas de Moscou, riam colaborar enquanto os mujaheddins
o que incomodou os russos, mas causou parecessem ter uma boa chance de derrubar
pouco dano e evocou uma resposta dúbia o regime comunista em Cabul, e o gover-
do restante do mundo. As principais con- no Reagan também relutava em abrir mão
sequências imediatas da invasão foram que das vantagens de explorar os problemas que
a URSS comprometeu cerca de 90 mil sol- Moscou tinha trazido a si com a invasão.
dados para pacificar um país que já estava O advento da subida de Gorbachev ao
em sua esfera e assistiu ao fracasso dessa poder transformou a situação, ainda que
força tão grande. A substituição de Amin lentamente. Ele estava determinado a se re-
por Karmal melhorou a imagem interna do tirar de uma aventura cujo custo era desas-
regime, mas incentivou a oposição ao lhe troso em dinheiro e em vidas. Queria pre-
dar fundos norte-americanos e mísseis mo- servar o regime comunista em Cabul, mas
dernos. O governo de Karmal reintroduziu se tivesse de optar entre sua salvação e a eva-
a instrução religiosa nas escolas, permi- cuação, escolheria a segunda. Em 1986, ele
tiu programas religiosos na televisão e até ofereceu uma retirada simbólica imediata
construiu mesquitas, conquistando a leal- e uma retirada total assim que as hostilida-
dade dos mulás mais jovens. Ele também des em Cabul fossem abandonadas. Um ano
cortejou líderes tribais. Seus oponentes, mais tarde, abandonou a condição e anun-
conhecidos coletivamente como os mu- ciou uma retirada total dentro de 10 meses.
jaheddins, controlavam cerca de um terço Nesse intervalo, tentou fortalecer o governo
do país, mas estavam muito divididos entre afegão livrando-se de Karmal, que morreu
sete grupos sediados em Peshawar e oito em Moscou em 1996, em favor de Muham-
no Irã. A maior parte da ajuda norte-ame- mad Najibullah, um chefe de polícia pushtu
ricana, canalizada através do Paquistão e linha-dura que se tornou secretário-geral do
alocada a partir da assessoria paquistane- situacionista Partido Democrático Popular
sa, ia para os muçulmanos fundamentalis- e, depois, chefe de Estado. Najibullah tinha
tas sunitas que não tinham a confiança de a dupla tarefa de controlar as facções que
grupos xiitas operando nas regiões oeste formavam o PDP e de atrair a oposição (ou
do país com apoio iraniano, nem de líderes parte dela) a uma ampla coalizão com um
mais intelectuais ou seculares, ou de parti- parlamento recém-eleito e sob uma nova
dários do ex-rei (que morava em Roma e constituição.
não dava mostras de querer sair de lá). Um Mas suas condições, que incluíam a
pequeno grupo de indivíduos enriqueceu reserva de um papel de destaque ao PDP
traficando armas e drogas, enquanto quan- e uma relação especial com a URSS, eram
tidades muito maiores de homens bravos inaceitáveis aos mujaheddins que, a essas al-
lutavam e morriam em uma guerra terrível turas, estavam recebendo o dobro de ajuda
POLÍTICA MUNDIAL | 493

dos Estados Unidos e armas maiores e mais te e da faixa de Wakhan com seu acesso à
numerosas. O resultado líquido dessa fase China e à Caxemira, mas, desta vez, seu fa-
foi a exclusão dos russos, o ressurgimento natismo e sua crueldade os tinham tornado
dos líderes guerreiros locais em conflito e a muito impopulares, e a aliança anti-Talibã,
ascensão do Talibã. apoiada por Irã, Uzbequistão e Tadjiquis-
Os invasores russos partiram na data tão, foi retomada e os expulsou duas vezes,
marcada. Sua partida foi seguida de 12 anos de Mazar e, em 1999, também de Cabul. No
de guerra civil. O governo em Cabul não entanto, os talibãs consolidaram seu con-
caiu como era esperado, e os mujaheddins trole sobre mais de 90% do país.
não conseguiram tomar Jallalabad e outros Em 2001, os Estados Unidos invadiram
pontos fundamentais ao leste. Najibullah o Afeganistão sob a égide da OTAN e com
conseguiu permanecer no poder na capital apoio da Grã-Bretanha, de outros membros
e em grande parte do país, e aos poucos, da OTAN e da Austrália, e com o propósi-
entender-se com um número suficiente to de destruir a Organização Al-Qaeda, de
de grupos guerrilheiros a partir de uma Osama bin Laden, nos territórios de fron-
paz sob um governo de base ampla. Mas, teira entre o Paquistão e o Afeganistão.
em 1992, ele perdeu o ânimo e se refugiou Não tendo conseguido purificar a política e
em um acampamento da ONU. (Poste- a sociedade na Arábia Saudita e no Sudão,
riormente, foi horrivelmente torturado até bin Laden se estabeleceu junto com seu
a morte pelo Talibã.) O novo presidente, quartel-general nessa região inóspita. Seu
Burhanuddin Rabbani, que era tadjique, impulso, originalmente mais moralista do
cortejou seu companheiro e líder tadjique, que religioso, manifestava-se cada vez mais
Ahmed Shah Masud, e o uzbeque Abdul em termos religiosos (assim como a retóri-
Rashid Dostum, que exerciam firme con- ca antiocidental) e na ação política, como os
trole ao norte, em torno de Mazar-e-Sharif; ataques às embaixadas dos Estados Unidos
mas, no ano seguinte, Rabbani indicou seu no leste da África, que provavelmente fo-
principal adversário, o pushtu Gulbuddin ram obra sua. Mas as tentativas de matá-lo
Hekmatyar, como primeiro-ministro, e este e desarticular a Al-Qaeda foram frustradas
estabeleceu uma nova aliança com Masud pela natureza do campo de batalha que ele
e Dostum e bombardeou Cabul. A ONU escolheu e seu fracasso piorou as relações
persuadiu com esforço as principais fac- dos Estados Unidos com o Paquistão e com-
ções a fazerem uma aliança ampla, mas o plicou as atividades do presidente Karzai e
surgimento de uma nova força, o Talibã – seus protetores da OTAN.
fanáticos pushtu sunitas de um puritanis- A influência de Karzai não ia muito
mo virulento, unidos pela impaciência com além de sua capital. Em 2007, ele e os britâ-
os conflitos de todos os outros e apoiados nicos, que haviam recebido a tarefa de der-
pelos Estados Unidos e pelo Paquistão rotar o Talibã no sul do Afeganistão, foram
– tomaram Kandahar, depois Herat, de- forçados a cogitar tentativas diplomáticas
pois Cabul (em 1996) , e fizeram com que de semear a discórdia entre grupos em vez
Hekmatyar fugisse. Eles foram contidos ao de tratar o Talibã como uma força unifica-
norte por Dostum até 1997, quando ele se da que poderia ser derrotada militarmente.
desentendeu com Masud (que foi morto A unificação e a pacificação do Afeganistão
em 2001) e outros aliados tadjiques e fugiu. permaneciam distantes. A economia con-
Os talibãs entraram em Mazar triunfantes, tinuava dependente do ópio (mais de 80%
rumo a completar sua conquista do nordes- do PIB), abominado, mas insubstituível en-
494 | PETER CALVOCORESSI

quanto a guerra durasse e laboriosamente çulmana sunita com alguns xiitas na faixa
colhido pelos talibãs. sul. O Cazaquistão, o mais rico em recursos
minerais, principalmente petróleo, seguiu
no caminho da Rússia. Estimava-se que suas
Notas reservas de petróleo eram tão abundantes
que desafiavam a dominação do Oriente
A. Ásia Central Médio (sobre a política dos oleodutos, ver a
p. 72). O Turcomenistão, especialmente rico
A partir do colapso da URSS e do Império em gás, petróleo e outros minerais, vincu-
Russo na Ásia, surgiram cinco novos países lou-se ao Irã e ao Afeganistão; o Uzbequis-
soberanos, com uma população de 50 mi- tão, também dotado de petróleo e gás, o que
lhões, distribuída de forma desigual, cuja foi uma alternativa de sobrevivência depois
grande maioria era turca de raça e língua e do colapso dos preços mundiais para seu al-
muçulmana de religião. A maior das mino- godão e trigo, voltou-se para o Afeganistão;
rias era formada por cerca de 8 milhões de o Tadjiquistão, para o Afeganistão, o Paquis-
russos, principalmente na metade norte do tão e a China; o Quirguistão, para a China.
Cazaquistão. Chamado anteriormente, com Todos esses novos países tinham recursos
ambiguidade política, de Turquestão Russo, consideráveis, mas pouco desenvolvidos,
esse bloco de países, todos tendo declarado junto com infraestrutura econômica frágil,
independência em 1991, com as fronteiras sistema administrativo fraco, populações
que tinham enquanto foram repúblicas so- em rápido crescimento, disputas internas e
viéticas, tinham fronteiras com Rússia, Chi- externas e fronteiras artificiais estabelecidas
na, Paquistão, Afeganistão e Irã, mas não por Moscou nos anos de 1920 e de 1930,
com a Turquia. Nenhum deles tinha acesso quando se tornaram Repúblicas Soviéticas.
ao mar. Na parte norte da região, estava o Depois da independência, seus gover-
enorme Estado do Cazaquistão, do tama- nos deixaram de se dizer comunistas, mas
nho da Índia e duas vezes o tamanho das continuaram autocráticos: no Turcomenis-
outras quatro repúblicas combinadas, mas tão, por exemplo, as eleições de 1992 deram
com uma população de apenas 17 milhões, quase 100% dos votos ao ex-comunista Sa-
dos quais 40% eram cazaques, e 40%, russos parmurad Nigazov, que governou com uma
(mas houve um êxodo considerável destes excentricidade extravagante até sua morte
depois da independência). Ao sul, estavam em 2006. Seu colega uzbeque era igualmen-
os dois países de planície do Turcomenis- te ditatorial, ainda que menos excêntrico. O
tão e do Uzbequistão, e os muito menores Irã e a Turquia viam possibilidades de novas
Tadjiquistão e Quirguízia – rebatizado de áreas de influência. Foram feitas visitas mú-
Quirguistão – nas montanhas altas ao leste tuas entre os líderes dos quatro países tur-
do Uzbequistão, sendo que este era o mais cos e o presidente Özal, da Turquia. Houve
populoso entre os cinco e o mais homogê- cortesias igualmente calculadas entre eles e
neo etnicamente. Havia consideráveis mi- o Irã, que tomou a dianteira e estabeleceu
norias uzbeques nos países ao leste dele e na em Teerã um Conselho Cáspio (Irã, Rússia,
região como um todo, os uzbeques eram de Azerbaijão, Turcomenistão, Cazaquistão) e
longe os mais numerosos (os russos eram os uma Organização para a Cooperação Eco-
segundos). Toda a região era predominan- nômica (Irã, Turquia, Paquistão, Afeganistão
temente turca, com exceção do Tadjiquistão e os cinco novos países). Esses órgãos esta-
60% iraniano, e predominantemente mu- vam sob suspeita de ocultar ambições semi-
POLÍTICA MUNDIAL | 495

-imperiais iranianas. Em 1992, 11 países, na A campanha eleitoral mais importante foi a


maioria asiáticos, assinaram um Tratado de de 1956, na qual Bandaranaike derrotou o
Cooperação Econômica do Mar Negro, pro- UNP em uma plataforma que combinava
movido pela Turquia. Os não muçulmanos raça e religião, pró-cingalês e pró-budista.
China e Índia também demonstraram sua Seu sucesso foi seguido de perseguição à mi-
avidez por estabelecer vínculos comerciais e noria tâmil (um quarto da população) e um
comunicações regulares, de serviços telefô- aumento permanente da influência política
nicos a voos. Os russos e outros temiam a di- do establishment budista, que posteriormen-
fusão de partidos especificamente islâmicos. te teve de ser cortejado pelo UNP e também
No Tadjiquistão, onde 20% da população pelo SLFP. Junto com a competição pelo po-
eram uzbeques, os conflitos étnicos e religio- der entre esses dois partidos, a oposição era
sos chegaram, em 1992, ao nível de guerra composta de uma variedade de partidos de
civil. O presidente Rakhmon Nabijev foi for- esquerda, dos quais o mais destacado era o
çado a fugir, mas foi recolocado no cargo por Lanka Sama Samaj, fundado em 1935, como
intervenção russa e uzbeque depois de um expressão de anticolonialismo e membro da
breve intervalo no qual o Partido do Rena- Internacional Trotskista até 1963, quando
cimento Islâmico, que tinha apoio do regime entrou para o governo da viúva Bandaranai-
comunista Najibullah no Afeganistão, for- ke (essa aliança foi dissolvida em 1975).
mou um governo de coalizão comprometido Bandaranaike também trouxe para o
com mais religião em um Estado que conti- governo o Partido Comunista, pró-Rússia,
nuava sendo secular. No retorno de Nabijev, e, como outros grupos de esquerda tinham
100 mil refugiados ou mais fugiram para o perdido terreno, esperava-se que seu gover-
Afeganistão (que continha uma população no vencesse as eleições de 1965. Isso não
tadjique de 3 milhões). aconteceu, principalmente devido a uma
situação econômica que nenhum dos prin-
B. Sri Lanka cipais partidos tinha conseguido controlar,
mas que tinha se deteriorado de forma alar-
O Ceilão obteve sua independência da Grã- mante durante os anos do governo do SLFP
-Bretanha em 1948, como consequência da na década de 1960.
saída dos britânicos da Índia. Em 1972, Depois da independência, como antes, a
passou a se chamar Sri Lanka e se tornou economia do Sri Lanka era muito dependen-
uma república. te das receitas de exportações oriundas de
O país foi governado de forma alternada fazendas de chá, coco e borracha, de proprie-
por duas principais famílias e pelos partidos dade de empresas britânicas. A receita desses
que elas formaram: o Partido de Unidade produtos foi caindo de forma constante, ao
Nacional (United National Party, UNP), mesmo tempo em que a conta das importa-
liderado por D. S. Senanayake, seu filho ções aumentava, sendo que o maior item iso-
Dudley Senanayake e seu sobrinho sir John lado era o dos alimentos. Essa era uma típica
Kotelawala; e o Partido da Liberdade do Sri situação de Terceiro Mundo, com uma eco-
Lanka (Sri Lanka Freedom Party, SLFP) fun- nomia dominada por negócios com a antiga
dado por Solomon Bandaranaike, um dissi- metrópole cada vez menos rentáveis e uma
dente do UNP, e, depois de seu assassinato incapacidade cada vez maior de alimentar
em 1959, por sua viúva Sirimavo. O UNP a população sem despesas destrutivas em
governou de 1948 a 1956, de 1965 a 1970 e moeda estrangeira ou, quando esta falhasse,
de 1977 a 1989; o SLFP, o restante do tempo. empréstimos no exterior. A população au-
496 | PETER CALVOCORESSI

Bombai

GOA,
DAMÃO E
DIU GOLFO DE BENGALA

MAR DA ARÁBIA E PALK


TO D
REI
EST

0 250 500 km

0 150 300 milhas

Figura 19.2 O sul da Índia e o Sri Lanka.

mentava rapidamente, tendo praticamente eleitoral, Bandaranaike e seus colegas ven-


dobrado entre a independência e 1975. Só ceram amplamente, em 1970, e refizeram a
nos anos de 1960, a dívida externa quadru- coalizão que tinha sido derrotada cinco anos
plicou. O desemprego aumentou de cerca de antes. Em abril de 1971, ela foi gravemente
40 mil na independência a algo próximo de abalada por uma revolta de camponeses cui-
700 mil quando, na próxima volta da roda dadosamente preparada e bem armada.
POLÍTICA MUNDIAL | 497

Essa revolta, uma surpresa, foi orga- maioria budista cingalesa que tinha esta-
nizada e dirigida pela Janatha Vinukhti belecido um governo central poderoso,
Peramuna (JVP) ou Frente de Libertação mas não usara esse poder para moderar o
Popular, formada em 1965 como divisão do separatismo tâmil.
fragilizado Partido Comunista Maoísta, que Jayawardene subestimou o problema
considerava o SLFP e o UNP dois aspectos tâmil, forçou seus membros a sair do par-
praticamente indistinguíveis de uma bur- lamento em 1981 e recorreu à força, o que
guesia pós-imperialista e neocolonialista, levou à guerra civil e à intervenção indiana.
que era impedida, por seus interesses pró- Os tâmiles mais combativos formaram o
prios, de resolver os problemas econômicos Tigres de Libertação do Tâmil Eelam. Am-
e sociais básicos do país. A ênfase de sua bos os lados cometeram atrocidades. Rajiv
doutrina e de sua prática estava nos cam- Gandhi não poderia ignorar a indignação
poneses, e ela tentava usá-los para dar um dos tâmiles em Tamil Nadu, no sul da Ín-
golpe no governo e no sistema. Posterior- dia, e, em 1986, os governos de Índia e Sri
mente, houve o costumeiro conflito insolú- Lanka concordaram em que os tâmiles do
vel sobre quem deu o primeiro golpe, mas Sri Lanka deveriam receber autonomia, mas
não restavam dúvidas do resultado. Depois não conseguiram um consenso sobre a área
de sete semanas, o governo prevaleceu, mas da província autônoma.
fora desafiado de tal maneira que o número Jayawardene decidiu extirpar os Tigres,
de pessoas mortas no processo de afirmar mas não conseguiu, e Gandhi interveio para
sua autoridade chegava a dezenas de mi- parar os massacres de tâmiles pelo exército
lhares. Uma constelação muito incomum cingalês. Jayawardene foi obrigado a deixar
de países apoiou Bandaranaike material ou que o exército indiano entrasse no Sri Lanka
verbalmente, incluindo Estados Unidos, para proteger os tâmiles. Mas os Tigres, que
China, Índia, Paquistão, Grã-Bretanha, estavam dispostos a conquistar a indepen-
Austrália e Egito. Ela manteve, até 1977, o dência e, assim, opunham-se ou ignoravam
estado de emergência decretado em 1971, o acordo indo-cingalês, recusavam-se a en-
mas depois foi derrotada pelo UNP sob a tregar suas armas como previa o acordo, fa-
liderança de Junius R. Jayawardene, que zendo com que a força indiana, cujos 15 mil
se tornou primeiro-ministro naquele ano membros originais foram dobrados em pou-
e presidente no seguinte, sob uma nova cos meses, acabasse tentando garantir essa
Constituição presidencialista. Essa virada entrega de armas em vez de proteger os tâmi-
à direita foi marcada por um ímpeto de les. Para isso, tinha de abandonar seu papel de
crescimento voltado a emular os destinos pacificadora e usar a força, e a Índia foi acu-
de Cingapura, Hong Kong e Taiwan, mas sada de planejar separar o norte do Sri Lanka
as ambições econômicas foram destruídas e anexá-lo. Em 1988, Gandhi declarou que
por conflitos religiosos e raciais agudos nos retiraria sua força no ano seguinte. Por sua
quais o governo se envolveu com a mino- vez, Jayawardene foi acusado de abrir cami-
ria tâmil, que havia sido a rica classe domi- nho para o imperialismo indiano e também
nante do país, 18% de sua população e, na de ter feito concessões indevidas à autonomia
maioria, hindu. tâmil. Quando as forças indianas se prepa-
Os tâmiles constituíram uma maioria ravam para ir embora – os últimos soldados
no norte e em partes do leste. Distintos saíram no início de 1990 –, o governo deu
em termos de raça e religião, buscavam início a conversações com os Tigres do Tâmil,
autonomia e um Estado independente da mas elas não funcionaram e a luta recomeçou.
498 | PETER CALVOCORESSI

Os Tigres boicotaram as eleições de 1988, fa- do e matando camponeses indefesos e rea-


zendo com que as cadeiras das regiões tâmil lizar conversações com os tâmiles, a receita
fossem conquistadas pelo Partido Revolucio- padrão para dividir a oposição. Ela herdou
nário do Povo Eelam, apoiado pelo Exército um surto de crescimento econômico e bai-
Nacional Tâmil. A intervenção indiana for- xo crescimento demográfico (abaixo de
taleceu os tâmiles mais intransigentes e mais 1,5%) e também a melancólica realidade:
combativos. uma riqueza invejável atingida por um
Os problemas de Jayawardene foram abrupto deslocamento de uma tradicional
agravados por um ressurgimento do JVP, sociedade rural e pelos conflitos étnicos e
que tinha abandonado seu caráter comunal religiosos, tão cruéis quanto quaisquer ou-
e se transformou em um movimento nacio- tros no mundo. Em 1995-1996, o exército
nalista cingalês de direita. Os massacres e impôs graves derrotas aos militantes Tigres
os assassinatos políticos se multiplicavam, do Tâmil e capturou sua capital, Jaffna, fa-
no sul e no norte. Em 1989, Jayawardene zendo com que centenas de milhares de tâ-
renunciou e foi sucedido pelo primeiro-mi- miles não militantes se transformassem em
nistro Ramasinghe Premadasa, que venceu refugiados, mas não conseguiu trazer os lí-
uma disputa tripla na qual seu principal ri- deres dos militantes à mesa de negociações.
val foi, mais uma vez, Bandaranaike, cujos O aumento nos gastos militares destruiu as
direitos civis tinham sido restabelecidos em estimativas orçamentárias e absorveu os ga-
1986, depois de vários anos de suspensão. nhos econômicos dos anos anteriores, mas
Premadasa, um lutador político autocrático, o crescimento continuava. Kumaratunga foi
por pouco escapou de um processo de im- reeleita no final de 1999, mas os Tigres do
peachment, em 1991, e foi assassinado dois Tâmil continuaram lutando com firmeza, e
anos depois por um tâmil. Em 1994, o UNP o estado de ânimo do lado do governo ficou
foi derrotado por uma coalizão de esquerda mais duro. A eleição, em 2005, de Mahinda
liderada por Chandrika Kumaratunga, a vi- Rajapaksa para presidente foi um exemplo
gorosa e articulada filha de Solomon e Siri- dessa tendência sombria*.
mavo Bandaranaike, que prometia agir com
firmeza contra a corrupção, combater as * N. de R.T.: Em 2009, o exército reconquistou o último bal-
gangues de direita que estavam aterrorizan- varte dos Tigres.
POLÍTICA MUNDIAL | 499

Leituras relacionadas: Levy, Adrian and Catherine Scott-Clark: Deception


– Pakistan, the United States and the Secret Trade
Parte V in Nuclear Weapons (2008)
Chaudhuri, Nirad C.: The Autobiography of an Un- Mistry, Rohinton: A Fine Balance (1996)
known Indian (1987) Moon, Penderel: Divide and Quit (1997)
Chang, Jung: Wild Swans – Three Daughters of Chi- Peterson, A. D. C.: The Far East – A Social Geogra-
na (1991) phy (1949)
Iriye, Arike: The Cold War in Asia (1974) Sheehand, Neil: A Bright Shining Lie (1988) [Vietnam]
PARTE
VI
ÁFRICA
Geral
20
Nas décadas de 1950 e 1960, a África produ- te muito maior (um em quatro) do que em
ziu um fenômeno de incomparável amplitu- qualquer outro lugar e fortalecida por rique-
de: a emancipação de áreas imensas em rela- zas, por capacidades técnicas modernas, por
ção ao domínio estrangeiro. Como um todo, não ter aonde ir e por um racialismo doutri-
isso era inesperado. Quando a Segunda nário que permitia extremos de injustiça e
Guerra Mundial terminou, só havia três paí- crueldades repressivas.
ses completamente independentes na Áfri- A parte norte do continente africano
ca: Etiópia, Libéria e África do Sul. Os 10 foi transformada pela história em parte da
anos seguintes foram uma fase de prepara- civilização árabe-islâmica e se tornara mais
ção para a liquidação dos impérios francês, consciente das afinidades com o Oriente
britânico e belga, e depois de outros 10 anos, Médio do que de seus vínculos econômicos
a maior parte da África estava livre. Como ancestrais e políticos atuais com o restante
França, Grã-Bretanha e Bélgica aceitaram, da África. Mais além, a dominação europeia
com rapidez inteligente, a necessidade de exercida de Casablanca ao Suez por meio de
partir, essas décadas testemunharam lutas protetorados, tratados desiguais, acordos
em função de prazos, mais do que de princí- militares e anexação direta era de tipo di-
pios. Movidas pelo cálculo em vez da força, ferente dos impérios coloniais estabelecidos
as potências imperiais abandonaram, com pelos europeus ao sul do Saara. Mas o nor-
surpreendente facilidade, as vastas áreas te da África é, ao mesmo tempo, parte da
cujo domínio tinham adquirido no século África, a linha étnica entre as raças árabe-
anterior com igual facilidade. Não obstante, -berbere e banto passa pelo Sudão e ali cau-
o processo de descolonização foi interrom- sa problemas que outros países, em ambos
pido na extremidade sul do continente pela os lados da linha, não podem ignorar. Egito
obstinação dos portugueses em Angola e e Marrocos têm cumprido um papel de des-
Moçambique e pela determinação inescru- taque nas questões e nas associações africa-
pulosa de colonos brancos independentes nas. A Tunísia teve uma voz importante nos
da Rodésia do Sul. A resistência autopreser- problemas iniciais do Congo. As ambições e
vacionista destes e a recusa dos primeiros a as armas líbias têm complicado não apenas
fazer a mesma avaliação de franceses, britâ- a África Central, mas também a Ocidental.
nicos e belgas foram decisivamente influen- O deserto não é mais a barreira que foi, já
ciadas pela existência, ainda mais ao sul, do que o avião e o rádio possibilitaram que as
bastião sul-africano da supremacia branca, pessoas o transcendessem, a língua não é
onde a maioria branca era comparativamen- uma barreira maior entre a África árabe e
504 | PETER CALVOCORESSI

a África banto do que dentro de cada uma gumentos, além de serem suspeitos de dar
dessas regiões. E a religião proporciona continuidade à dominação por novos meios.
pontos de contato entre muçulmanos e cris- Nos primeiros anos do pós-guerra, a África
tãos em ambos os lados da divisória. atraiu a atenção externa como uma arena se-
O norte, portanto, embora ainda dis- cundária da Guerra Fria (Capítulo 26), mas
tinto do restante do continente em aspectos a atenção era esporádica e desconectada das
específicos e duradouros, será classificado necessidades africanas. Posteriormente, o
aqui como sendo mais africano do que asi- continente passou a ser estigmatizado como
ático, com a única exceção do Egito, cujo região de governos incompetentes e corrup-
papel na África do pós-guerra está conti- tos, um lugar onde a ajuda tinha mais pro-
nuamente subordinado a seu lugar na Ásia, babilidades de ser desperdiçada ou saque-
e não o contrário. ada do que bem utilizada – uma avaliação
Embora a maior parte da África tenha aguçada pelo catastrófico governo de Ro-
se tornado independente com rapidez ines- bert Mugabe no Zimbábue, (p. 611-12) que
perada, o ressentimento contra as potências se estendeu ao século XXI – e ele não era
imperiais persistiu muito além da geração o único saco de pancadas. Ainda em 2007,
que as conhecera e criou, fora do continen- uma conferência europeia-africana reunida
te, uma certa impaciência contraproducente em Lisboa para planejar um grande esque-
sobre o que parecia ser uma transformação ma de ajuda europeu à África gerou mais re-
excessiva do passado em cavalo de batalha. criminação do que cooperação. A última ge-
Todavia, para os africanos, o passado não ração de governantes britânicos e franceses
estava tão distante nem era meramente his- na África decidiu dar Constituições liberais,
tórico, particularmente quando ficou claro bom governo e Estado de Direito às colônias
que os poderes mais elevados da economia que estavam por abandonar, mas seu suces-
não tinham passado para mãos africanas, so foi apenas parcial. Meio século depois da
bancos e outras corporações estrangeiras descolonização, grande parte da África es-
e agências da ONU pareciam não olhar o tava infestada de governos fracos (ou dita-
suficiente para as necessidades africanas, duras), corrupção e atividades malévolas de
não prestar atenção suficiente aos seus ar- traficantes de drogas e armas.
Norte da África
21
Magreb Espanha 1.200 anos antes. O Tratado de Fez,
com o sultão, em 1912, coroou esses êxitos
O centro do Magreb e seus principais atores diplomáticos e estabeleceu um protetorado
são o Marrocos, a Argélia e a Tunísia. A re- do mesmo tipo que a França tinha sobre a
gião também contém duas áreas periféricas Tunísia, embora o país como um todo não
com seus próprios enredos secundários: a tenha passado ao controle efetivo francês
Líbia, a leste; a Mauritânia e Saara Ociden- até a década de 1930. Tanger se tornou uma
tal, a sudoeste. zona internacional e um paraíso dos vigaris-
Os franceses invadiram a Argélia, em tas. Os italianos colheram a recompensa de
1830, e a declararam parte da França me- sua complacência quando lhes foi permitido
tropolitana em 1848. Como consequência tomar Tripolitânia dos turcos às vésperas
dessa ocupação, envolveram-se com a mo- das guerras balcânicas.
narquia da Tunísia, a leste, e do Marrocos, Durante a Segunda Guerra Mundial,
a oeste, então sob suserania nominal do sul- todo o norte da África se tornou um cam-
tão otomano. Segundo o Tratado Bardo de po de batalha ou, no caso do Marrocos,
1881, eles estabeleceram um protetorado so- uma área de retaguarda militar. Igualmente
bre a Tunísia, um país pobre e relativamente importante foi a política da guerra, princi-
pequeno, com uma população, em 1945, de palmente a Carta Atlântica, a expulsão da
apenas 3 milhões de habitantes. No Marro- França dos países árabes, Síria e Líbano, e
cos, o fim do poder do sultão otomano coin- o ressurgimento em cena dos norte-ame-
cidiu com a decadência da própria autori- ricanos, incluindo o próprio Presidente
dade do sultão marroquino, criando assim Franklin D. Roosevelt, que teve um encon-
um convite à intervenção estrangeira, mas o tro muito divulgado com o sultão do Mar-
poder francês não era tão facilmente subs- rocos, Muhammad V ben Yusuf. O líder
tituível devido às ambições dos outros paí- nacionalista tunisiano Habib Bourguiba foi
ses europeus. Nos primeiros anos do século libertado de uma prisão francesa em 1943,
XX, a França obteve carta branca no Mar- foi para o Cairo, em 1945, e dali para os Es-
rocos ao conceder o mesmo à Itália e à Grã- tados Unidos, e se estabeleceu em seu país
-Bretanha na Líbia e no Egito, derrotando de origem mais uma vez em 1949. O líder
a reivindicação da Alemanha (que aceitou marroquino Allal al-Fasi, que estava na pri-
compensação na África Central) e permi- são entre 1937 a 1946, também foi ao Cairo
tindo que a Espanha se apropriasse da faixa e depois se estabeleceu temporariamente em
norte, por onde os árabes tinham invadido a Tânger.
506 | PETER CALVOCORESSI

Em 1947, a recém-criada Liga Árabe que não queriam tornar a vida desagradá-
estabeleceu o Bureau do Magreb (Magreb vel aos colonos, uma combinação impossí-
significa “Oeste” em árabe, e a região com- vel que tornou a França ineficaz, permitiu
preende, pelo menos, o Marrocos, a Argélia que Tunísia e Marrocos alcançassem seus
e a Tunísia; às vezes também Tripolitânia), objetivos e causou a revolta do maior grupo
institucionalizando, assim, os interesses ára- de colonos, os argelinos, contra o governo
bes nas questões do norte da África. da França. O primeiro plano da França, a
França e Itália foram derrotadas duran- União Francesa, concebido em 1946, criou
te a guerra, mas acabaram do lado vence- uma nova categoria de Estados Associados
dor. Em termos de África do Norte, a Itá- tendo em mente Marrocos e Tunísia, mas
lia pagou o preço da derrota, enquanto a também Vietnã, Laos e Camboja. Contudo,
França ganhou as recompensas da vitória. enquanto o trio asiático aceitava esse novo
A primeira perdeu suas colônias africanas, status, a dupla africana o recusou. Houve
ao passo que a segunda foi restabelecida no razoáveis esperanças de um acordo com
Magreb. Ciente da necessidade de mudan- a Tunísia depois do retorno de Bourguiba
ças, a França buscou modificações dentro em 1949, e até sua prisão em 1952. Robert
do quadro dos tratados de Bardo e Fez, mas Schuman, primeiro-ministro francês, falou,
os nacionalistas visavam o fim completo do em 1950, sobre as consequências finais dos
protetorado. Os franceses tinham incenti- Estados Protetorados. Foram discutidas re-
vado a imigração, de forma que havia uma formas internas de natureza democrática,
população francesa considerável estabele- mas muitos nacionalistas consideravam
cida naquelas terras ou em empresas, junto as reformas inadequadas, a não ser, talvez,
com os administradores franceses que go- como um primeiro passo, enquanto os fran-
vernavam a Argélia e passaram a fazer pra- ceses as viam como um longo passo sem que
ticamente a mesma coisa no Marrocos e na houvesse outro imediatamente em vista. No
Tunísia, apesar da soberania do sultão e do final de 1951, o diálogo se transformou em
bei. A educação francesa tinha alimentado rivalidade pelo apoio do bei, que estava tão
uma elite que apreciava a cultura da Fran- incerto sobre qual seria seu melhor curso de
ça, como era a intenção desta, mas também ação, que às vezes parecia ser nacionalista e,
era atraída pela ideia de independência. Es- outras, um títere dos franceses. No início de
ses nacionalistas modernizadores se viram 1952, uma linha mais dura ganhou terreno
aliados a tradicionalistas com a presença em Paris. Bourguiba foi preso e o primeiro-
francesa de um ponto de vista conservador -ministro Muhammad Chenik, demitido.
e muçulmano. Pegos entre essas correntes, O bei aceitou o programa francês e
o bei da Tunísia hesitou inutilmente até ser vários nacionalistas fugiram para o Cairo.
mais ou menos capturado pelos franceses, e As mudanças constitucionais, que tinham
derrotado posteriormente, enquanto o mui- como objetivo agradar aos nacionalistas,
to mais jovem sultão do Marrocos hesitou foram impostas pela autoridade, contra
de forma mais determinada, vinculou-se ao a vontade deles. As tentativas de chegar a
movimento nacionalista e foi exilado pelos um acordo bilateral fracassaram, já que a
franceses, o que acabaria por lhe beneficiar. aquiescência do bei não era importante,
Todos os governos da Quarta Repúbli- ao contrário da discordância dos nacio-
ca francesa foram coalizões que continham nalistas, que agora tinham levado o deba-
ministros que queriam chegar a um acordo te à esfera internacional. Em 1954, Pierre
com os movimentos nacionalistas e outros Mendès-France, depois de sua paz impos-
POLÍTICA MUNDIAL | 507

ta pela força na Indochina, insistia que o novas cidades francesas longe dos centros
problema da Tunísia deveria ser resolvido tradicionais da vida marroquina. De 1947 a
de forma igualmente radical, e foi à Tuní- 1951, o marechal Juin foi general-residente,
sia, acompanhado do marechal direitista mas, apesar de sua presença um tanto amea-
Juin, para propor autogoverno interno ple- çadora, iniciou-se um novo diálogo Paris-
no. Ele perdeu o poder em 1955, antes que -Fez e o sultão visitou a capital francesa em
sua iniciativa tivesse dado frutos, mas seu 1950. Os franceses, contudo, acreditavam
sucessor, Edgar Faure, deu continuidade às ter uma alternativa que não fosse lidar com
negociações. Bourguiba aceitou as propos- os nacionalistas, os quais eles e alguns mar-
tas francesas como um passo em direção roquinos eram tentados a desconsiderar por
à independência e voltou à Tunísia. Nove acreditarem tratar-se de urbanoides atípicos
meses depois, em 20 de março de 1956, a e irresponsáveis, de menos importância do
Tunísia se tornou totalmente independente que personagens tradicionais como o pró-
e assinou um tratado com a França que pre- -francês e antissultão paxá de Marrakesh, el
via a presença de tropas no país. Bourguiba Glaoui. O sultão foi convencido – posterior-
continuou como presidente até 1987, quan- mente, ele disse que foi coagido – a assinar
do, cada vez mais respeitado, e mas senil, um decreto, em 1951, iniciando as reformas
foi substituído por Zayn al-Abdin Ben Ali. que os franceses estavam dispostos a intro-
Foram permitidos partidos políticos distin- duzir, mas a agitação resultante no Marro-
tos, mas nenhum especificamente religioso. cos e em outros lugares do mundo árabe fez
O caso marroquino não foi muito dife- com que ele se afastasse dos franceses e, du-
rente. Um período de verdadeira negocia- rante um ano, houve incertezas e desordem
ção revelou a ambos a lacuna entre o pro- que culminaram, em dezembro de 1952, em
grama francês de gradualismo democrático explosões bárbaras contra os brancos em
e a determinação dos nacionalistas de obter Casablanca. No mês de fevereiro seguin-
a independência em muito pouco tempo. A te, o sultão foi mandado ao exílio, mas sua
principal diferença entre os casos do Mar- ausência não serviu para restaurar a ordem
rocos e da Tunísia residia no temperamento nem fortalecer a dominação francesa, en-
do governante. Muhammad V dera sinais quanto no Marrocos espanhol uma assem-
de aliar-se ao Partido Istiqlal (Independên- bleia de notáveis se recusava a reconhecer o
cia) no final da guerra, e assim, destruíra as tio do sultão exilado, Muhammad ben Arafa
bases do governo no país, o qual, durante (que os franceses tinham posto no trono).
o mandato de sete anos do general Noguès Em 1955, depois do acordo com a Tuní-
como general-residente, baseara-se nas boas sia, o sultão foi trazido de volta e, antes do
relações pessoais entre os dois homens; o final do ano, concordou em conceder inde-
diálogo entre sultão e residente. Um segun- pendência plena, que entrou em vigor em 2
do fator importante foi o isolamento dos de março de 1956. O Marrocos e a Tunísia
colonos franceses do mundo exterior du- se tornaram membros plenos da Liga Árabe
rante os anos de guerra de 1940-1942, um em 1958.
isolamento que teve consequências maiores Muhammad V foi sucedido, em 1961,
no Marrocos do que na Tunísia, porque a por seu filho Hassan II, que governou pelos
comunidade francesa no Marrocos também 38 anos seguintes, com uma mistura bem-su-
estava isolada dos muçulmanos ao seu redor cedida de virtudes e defeitos, combinando ri-
pela política, anterior à guerra, do marechal queza ostentatória e autocracia explícita com
Louis Lyautey, que consistia em estabelecer perspicácia política. Ele tinha a confiança do
508 | PETER CALVOCORESSI

exército e explorava o nacionalismo que ani- A revolta da Argélia contra a França


mava os marroquinos de todos os partidos e começou com hostilidade nas montanhas
classes. Toda a patronagem, política e religio- de Aurès em 1954, no que, inicialmente, foi
sa, estava em suas mãos. Os partidos políti- considerado mais um episódio dos proble-
cos, cuja participação nas eleições fora permi- mas coloniais, mas evoluiu para uma guerra
tida a partir de 1977, aceitavam a democracia que envolveu a fina flor do exército francês,
nominal ao preço de um bom comporta- o conjunto completo de domínio militar e
mento. O fundamentalismo muçulmano foi censura, além de terrorismo e tortura, três
restringido, apesar de um apoio popular não desafios separados dos brancos franceses à
desprezível. Os partidos de esquerda, quando autoridade de Paris, a queda da Quarta Re-
não destruídos, sofriam a infiltração da po- pública e a conquista pela Argélia – única na
lícia secreta. Suas política para o Saara (ver África até o Zimbábue – da independência
abaixo) não era questionada, mas seu sucesso pela força das armas. A situação não tinha
incentivava os adversários da autocracia real, paralelo no continente. A população euro-
cujas vozes tinham sido caladas em nome do peia tinha sido parte do país por mais tem-
patriotismo. Em 1993, ele demonstrou clara- po do que qualquer outra comunidade de
mente sua autoconfiança ao abrir uma nova colonos, estava próxima ao país de origem e
e imensa mesquita e permitir eleições pela nas principais cidades era quase tão nume-
primeira vez em nove anos (para dois terços rosa quanto os muçulmanos, seus serviços
do parlamento). Os partidos de oposição ti- à Argélia eram visíveis. Também em termos
veram alguns ganhos, mas não o suficiente jurídicos a situação era peculiar, já que a Ar-
para perturbar o rei nem arranhar sua cren- gélia era constitucionalmente parte da Fran-
ça em seu direito divino de governar como ça metropolitana, de forma que os franceses
bem quisesse. Embora não tivesse problemas que não conseguiam vislumbrar uma sepa-
para eliminar adversários ou meros suspeitos ração estavam mantendo uma irrealidade
com uma cruel desumanidade, ele combina- que tampouco era ficção.
va poder cru com habilidade política, o que A posição jurídica contribuía para uma
garantia a seu regime uma estabilidade inco- atitude psicológica teimosa que fazia quem
mum, e até mesmo popularidade, e levou o olhasse de fora se perguntar por que só os
Marrocos a uma aliança com os norte-ameri- franceses, no mundo todo, não conseguiam
canos que servia bem a ambos. Associado ao ver que seus dias como governantes da Ar-
FMI, ele introduziu, desde o início dos anos gélia estavam contados. Além disso, como
de 1980, reformas que, não obstante, tiveram os britânicos no Oriente Médio depois da
muito peso sobre uma população que crescia saída da Índia, eles detestavam a ideia de
rapidamente, e legou a seu filho Muhammad mais rendições depois do colapso de seu
VI (que o sucedeu em 1999) uma sociedade império na Indochina. Assim como os
autocraticamente controlada com analfa- africanos foram estimulados pelo final da
betismo e desemprego altos, cada vez mais dominação francesa e britânica na Ásia, os
amontoada em cidades agitadas, sem servi- franceses e os britânicos foram influencia-
ços básicos (água, eletricidade). O novo reino dos no sentido inverso em suas políticas
assistiu a uma transferência de poder entre a para a África por suas experiências pós-
monarquia e o Istiqlal e confirmou a insig- -guerra na Ásia, cometendo na Argélia e no
nificância relativa do fundamentalismo mu- Egito erros específicos de calendário e com-
çulmano. O bom crescimento econômico foi preensão, que poderiam ter evitado se não
anulado pela distribuição desproporcional. tivessem achado que sua descida da primei-
POLÍTICA MUNDIAL | 509

ra fila estava sendo muito rápida para sua montanhas de Aurès no final de 1954, que
dignidade ou segurança. forçou a França a mobilizar meio milhão de
Na Argélia, além disso, altos oficiais soldados. Durante esses anos, os ministros e
franceses desenvolveram, à sombra da der- os governadores-gerais franceses tentaram
rota na Indochina, um sentido de missão temperar a repressão ao nacionalismo com
tão forte que distorcia seu sentido de pro- avanços econômicos e reformas democráti-
porção e os levou, enfim, a abandonar seus cas, mas não foram capazes de suavizar os
juramentos de lealdade. Esses oficiais se nacionalistas, cujo objetivo não era a refor-
convenceram de que pertenciam à galante ma, mas a independência, e entraram em
e presciente categoria do salvador que leva conflito com a comunidade europeia, cuja
a espada, que só eles entendiam toda a re- preocupação com a repressão deixava pouco
levância da ameaça comunista à civilização, espaço para qualquer outra coisa.
e que seu destino era aquele honorável de Esse dilema foi ilustrado vívidamente
liderar a resistência aos bandos das trevas durante a primeira etapa da revolta. A der-
e abrir os olhos dos preguiçosos de mentes rota do governo Faure, em novembro de
confusas aos riscos e às responsabilidades 1955, foi seguida por uma eleição geral e da
do século XX. Esse determinismo apocalíp- instalação de um governo de minoria lide-
tico era seguido de uma emoção igualmente rado por Guy Mollet. O novo primeiro-mi-
apaixonada. As tarefas cotidianas da admi- nistro tentou encontrar uma forma de por
nistração de grandes áreas da Argélia pas- fim à luta, mas quando foi a Argel, foi ata-
saram a ser responsabilidade do exército, e cado pelos europeus, ao mesmo tempo em
ao administrar suas localidades, os oficiais que as tentativas de aproximação dos líderes
adquiriram uma proficiência, um conhe- da insurgente Frente de Libertação Nacional
cimento e uma simpatia pelo povo sob seu (FLN) foram totalmente improdutivas.
cuidado que, eles julgavam, não seria assu- Mollet nomeou para o cargo de gover-
mida facilmente por mais ninguém. nador-geral o General Georges Catroux,
Houve uma primeira prova de revol- um procônsul muito respeitado e de ideias
ta em Sétif, em 1945, que, como outra se- liberais, mas Catroux renunciou em pou-
melhante em Madagascar no mesmo ano, cas semanas e sem ter saído da França. Em
foi reprimida com brutalidade. Em 1945, a 1956, Mendès-France renunciou ao gover-
França não estava disposta a fazer as coisas no Mollet porque este não estaria fazendo
pela metade: cerca de 6 mil argelinos foram o suficiente, embora o primeiro-ministro
mortos como retaliação pela morte de cem provavelmente achasse que, caso se arris-
europeus. O líder nacionalista Ferhat Abbas casse mais, provocaria uma queda de braço
foi preso e a comunidade francesa recebeu o entre Paris e os europeus na Argélia, que o
incentivo e a desculpa de arrogar-se uma au- governo francês não venceria. A fraqueza de
toridade que, por direito, pertencia ao gover- Paris foi ilustrada de forma dramática, e sua
no de Paris. A fragilidade dos governos da posição em relação à FLN, gravemente pre-
Quarta República possibilitou que essa auto- judicada, quando cinco líderes da frente, in-
ridade fosse exercida e aumentada, até que cluindo Ahmed Ben Bella, foram sequestra-
o retorno de de Gaulle ao poder, em 1958, dos ao voltar de avião de um encontro com
representou um teste no qual ela não passou. o sultão do Marrocos. O avião em que viaja-
Porém, não houve uma ameaça nacionalista vam, registrado na França e pilotado por um
efetiva à dominação francesa durante a dé- francês, embora operado por uma empresa
cada entre o levante de Sétif e a revolta nas não francesa, foi desviado de seu destino
510 | PETER CALVOCORESSI

para Argel, sem conhecimento do governo pos potencialmente hostis agissem contra
em Paris. Nos 18 meses seguintes, as atitudes ele até que fosse tarde demais. Ele começou
políticas continuaram inconciliáveis, o exér- consertando as relações com a Tunísia e o
cito francês e a FLN garantiram posições em Marrocos, concordando em retirar as forças
que nenhum era capaz de derrotar o outro, francesas de ambos os países (com exceção
o terrorismo aumentou em ambos os lados da base naval de Bizerta). Retirou da Argélia
e se espalhou para Paris e outras cidades da altos oficiais que, mesmo quando pensavam
França, a tortura passou a ser um instru- em objetar suas transferências, não podiam
mento regular de governo e como tal era se opor a uma ordem do general. O General
considerada, e qualquer intenção que ainda Raoul Salan, líder da revolta em Argel, teve
existisse de se aplicar a nova Constituição de permissão para permanecer temporaria-
compromisso, chamada de Estatuto Argeli- mente em seu comando, mas foi substituído
no de 1947, foi abandonada de vez. em suas funções civis, que foram separadas
O Marrocos e a Tunísia foram levados mais uma vez do comando militar.
ao conflito. O sultão ficou profundamente Depois de essas ações preliminares, de
ofendido com o sequestro de Ben Bella, que Gaulle preparou sua primeira declaração im-
tinha sido seu hóspede uma ou duas horas portante sobre o futuro da Argélia e fez sua
antes, mas em 1957, ele e o bei se ofereceram primeira oferta de paz à FLN. Em setembro
como mediadores na Argélia. No ano se- de 1959, ele formulou alternativas de inde-
guinte, contudo, o bei ficou furioso quando pendência, integração e associação com a
os franceses, irritados pela liberdade da FLN França, com uma escolha a ser feita quatro
de usar solo tunisiano e marroquino como anos após o fim das hostilidades, definido
asilo, atacaram Sakiet, na Tunísia, pelo ar, como qualquer ano em que menos de 200
e mataram 75 pessoas. Em maio de 1958, pessoas fossem mortas em combates ou pelo
a Argélia se rebelou e duas semanas mais terrorismo. Esse pronunciamento precipi-
tarde, Pierre Pflimlin, o último primeiro- tou uma segunda revolta branca, que foi um
-ministro civil da Quarta República, renun- fracasso. A ação enérgica do governo francês
ciou. O governo rebelde em Argel planejava mostrou como a autoridade e o poder de Pa-
tomar o poder em Paris. Quase toda a Cór- ris tinham crescido nos oito meses anteriores.
sega, a parada intermediária, tinha aceitado O apoio a de Gaulle dentro da França,
o regime rebelde e metade dos comandantes mais amplo e positivo em 1960 do que em
das regiões militares da França eram consi- 1958, devia-se, em parte, a uma sensação de
derados desleais. Apenas um obstáculo ao que a guerra já estava longa demais e, em
sucesso permanecia na capital francesa – parte, à impaciência em relação aos métodos
um francês de enorme prestígio e habilida- que estavam sendo usados para travá-la. O
des políticas impressionantes. Em primeiro livro de Henri Alleg, La Question, tratava do
de junho, de Gaulle foi investido de plenos uso da tortura pelo exército francês. Even-
poderes. Em 4 de junho, voou para Argel. tos como o julgamento de Alleg em 1960,
Com uma mistura de autoridade e am- seguido pelo desaparecimento e o (como
biguidade, de Gaulle assumiu o controle da foi corretamente suposto) assassinato do
situação e aos poucos conquistou o poder professor universitário comunista francês
para impor uma solução. Isso lhe custou Maurice Audin; o julgamento, em 1961, da
quase quatro anos. Ao fazer o suficiente menina argelina Djamila Boupacha; os pro-
para manter a iniciativa, mas não demais testos de cardeais católicos que ocupavam
a ponto de se revelar, ele impediu que gru- dioceses francesas e um manifesto assinado
POLÍTICA MUNDIAL | 511

por 121 destacados intelectuais contribu- a FLN e marroquinos, tunisianos e egípcios,


íram, todos, para fazer com que a opinião foi aberta uma conferência em Evian, em
pública francesa se voltasse contra a comu- maio de 1961. Mas as desconfianças e as di-
nidade francesa e o exército da França na ficuldades se mostraram muito grandes nes-
Argélia. Próximo ao final de 1960, os líderes sa etapa; incluindo a reivindicação da FLN
da revolta foram levados a julgamento, mas de ser reconhecida como governo, o direi-
ainda havia uma rebelião branca pela frente, to do detido Ahmed Ben Bella de estar na
e ela chegou em abril de 1961, liderada por conferência, garantias para os franceses que
quatro generais, durando quatro dias. Dois quisessem continuar na Argélia, continui-
dos quatro foram posteriormente condena- dade de direitos franceses sobre a base naval
dos à morte à revelia e os outros dois, que se em Mers-el-Kebir, o petróleo saariano e as
renderam, a 15 anos de prisão – sendo que condições sob as quais seria realizado o re-
todas as sentenças acabaram por ser reduzi- ferendo proposto sobre o status da Argélia.
das. Com o fracasso dessa rebelião, surgiu a Quando a conferência fracassou, de
Organização do Exército Secreto (Organisa- Gaulle aceitou de forma pública e inequívo-
tion de l’Armée Secrète, OAS), que recorreu ca a independência argelina, mas no restante
ao terrorismo e, ao criar entre a população do mês, houve uma série de reveses. As rela-
europeia temores de uma represália pelo ções franco-tunisianas tiveram uma recaída
movimento argelino, provocou o êxodo que quando Bourguiba exigiu que os franceses
privou o país de habilidades tão necessárias evacuassem Bizerta completamente (o que
em administração, educação e outros servi- aconteceu em 1963, depois que a Tunísia fez
ços públicos. queixa à ONU); a FLN assumiu uma posi-
A vitória de de Gaulle na frente branca ção afirmativa quando Yusuf ben Khedda
não foi imediatamente acompanhada por sucedeu Ferhat Abbas como chefe do gover-
qualquer avanço no campo nacionalista. no provisório argelino e apoiou Bourguiba
Em setembro de 1959, a FLN proclamou contra Bizerta; a OAS cometeu um atenta-
um governo argelino provisório, com Ferhat do fracassado contra a vida de de Gaulle e
Abbas como primeiro-ministro e Ben Bella, suas atividades se intensificaram na França
que estava preso, como seu vice. Ferhat Ab- e na Argélia, além da existência de rumores
bas tinha saído da Tunísia para o Cairo, onde sobre a proclamação de uma república fran-
estaria sediado o governo pelos próximos cesa dissidente sob comando do general Sa-
tempos. De Gaulle contemporizou depois lan no norte da Argélia. Ben Khedda propôs
da derrota da revolta branca, a FLN pediu uma nova rodada de negociações.
ajuda a Moscou e Pequim, e a opinião entre Uma segunda conferência em Evian, em
os argelinos não combatentes se aproximou março de 1962, chegou a um acordo sobre
da FLN e de sua demanda inequívoca por termos para um referendo e, partindo do
independência e não de qualquer posição pressuposto de que o resultado seria favo-
intermediária entre a FLN e os europeus. rável à independência, definiu ainda (entre
Sendo assim, de Gaulle começou a avan- outras coisas) que as tropas francesas seriam
çar mais decididamente rumo à negociação retiradas gradualmente no decorrer de três
com a FLN. O primeiro encontro secreto em anos, com exceção de Mers-el-Kebir (que
Melun foi um fracasso, mas depois de dis- a França teria permissão para ocupar por
cussões entre de Gaulle e Bourguiba, entre pelo menos 15 anos), que a França poderia
líderes da FLN e Georges Pompidou (nesse continuar seus testes nucleares no Saara e
momento, ainda banqueiro privado) e entre manter suas pistas de decolagem naquela
512 | PETER CALVOCORESSI

região por mais cinco anos; que continua- de para com os comunistas fazia com que
ria suas atividades econômicas nos campos ele se inclinasse a tolerar os extremistas de
de petróleo saarianos e que a ajuda técnica direita. Ele realizou uma série de acordos
e financeira francesa à Argélia continuaria com a França para o desenvolvimento e a
sem redução por pelo menos três anos. No nacionalização da mineração e de outros
dia 3 de julho de 1962, a Argélia se tornou setores da economia, garantindo dinheiro
um Estado soberano independente pela pri- francês e controle argelino. Ele também ga-
meira vez na história. Mas seus líderes não rantiu o retorno à Argélia de 300 obras da
se mantiveram unidos. Ben Bella, voltando arte levadas pelos franceses.
à cena depois de seis anos de ausência na Em 1967, A França evacuou suas bases
prisão, conquistou poder, mas alienou cole- que ainda existiam na Argélia e, no ano se-
gas e seguidores ao avançar rápido demais, guinte, a base naval de Mers-el-Kebir. Bou-
e também por tentar reorganizar a FLN na médienne visitou Moscou pouco depois de
linha comunista e tentar cumprir um papel sua subida ao poder, rompeu relações diplo-
de liderança radical nas questões africanas e máticas com a Grã-Bretanha em função da
africano-asiáticas em detrimento de proble- Rodésia, declarou guerra a Israel e enviou
mas nacionais urgentes. Em junho de 1965, tropas para combate-la, além de romper re-
ele foi derrubado quando estava a ponto de lações com os Estados Unidos. Quando se
demitir seu ministro da defesa, o coronel realizou um primeiro festival cultural pan-
Houari Boumédienne, que o sucedeu. Ben -africano em Argel, em 1969, houve a par-
Bella ficou na prisão até 1978 e permaneceu ticipação do presidente da URSS e do mi-
fugitivo até 1990. nistro do exterior francês, bem como uma
As políticas de Boumédienne incluíram afluência de notáveis africanos e outros.
uma nova estrutura de governo, capitalis- Boumédienne governou um Estado de
mo de Estado, nacionalização dos recursos partido único por 13 anos, durante os quais
naturais, vigorosa exploração das jazidas a FLN se dissolveu em facções, tornou-se
de petróleo e gás, e industrialização; nas extremamente corrupta e perdeu sua au-
questões externas, adotaram relações cau- toridade no exército. Ele foi deposto, em
telosamente boas com a URSS, colabora- 1978, e substituído depois de um intervalo,
ção continuada com a França, uma entente pelo coronel Chadli Benjedid, que teve de
do Magreb e uma associação ativa com os encontrar uma alternativa à FLN. Benjedid
países árabes contra Israel. Boumédienne reafirmou o poder civil e introduziu refor-
governava por meio de um Conselho da mas políticas, mas não conseguiu combater
Revolução, com ele mesmo de presidente a corrupção, solucionar a pobreza nem evi-
e seus outros membros, todos desconheci- tar o cinismo crescente e o medo. A econo-
dos. Em 1968, ele criou autoridades regio- mia sofreu quando os aumentos dos preços
nais para questões econômicas e sociais, e do petróleo dos anos de 1970 foram reverti-
as tornou eletivas um ano depois. A insa- dos: 70% ou mais da força de trabalho estava
tisfação, evidenciada claramente por uma desempregada e, em 1988, as manifestações
revolta frustrada do exército, liderada pelo se transformaram em rebeliões que foram
coronel Tahar Zibri, era dirigida à falta de combatidas por intervenções abertas e bru-
divisão das grandes propriedades de uma tais do exército, na medida em que uma eli-
só vez, ou da concessão aos trabalhadores te em idade avançada lutava para se manter
industriais do controle da administração em um país onde três quartos da população
que muitos deles queriam. Sua hostilida- tinham menos de 25 anos e quase metade,
POLÍTICA MUNDIAL | 513

menos de 14, e onde a maioria berbere que um dilema entre tentar esmagar ou dividir
tanto tinha contribuído para a expulsão dos a FIS, na qual uma maioria buscasse regras
franceses sofria discriminação. (Os falantes islâmicas mais rigorosas, mas apenas um
de berbere eram apenas um quarto da popu- segmento queria um Estado teocrático nas
lação, mas grandes quantidades de falantes linhas sudanesa ou iraniana. Zeroual, que
de árabe eram ou se sentiam berberes.) Ele era um “conciliador” e não um “erradica-
vislumbrava um Grande Magreb federado e, dor”, realizou conversações, em 1994, com
como primeira etapa, concluiu, em 1983, um vários líderes partidários, excluindo a FIS.
tratado com a Tunísia ao qual a Mauritânia Mas esses partidos não estavam dispostos
aderiu posteriormente. Com o Marrocos, a concordar com medidas para o estabele-
contudo, as relações da Argélia continua- cimento de uma ordem democrática sem a
vam difíceis em função das diferenças dos cooperação da frente.
dois países no que dizia respeito ao Saara No mesmo ano, uma conferência reu-
Ocidental (ver abaixo). Em 1989, Benjedid nida em Roma teve a participação da FIS,
introduziu uma nova Constituição que tor- e, por isso, foi boicotada pelo governo. Ela
nou a Argélia um Estado multipartidário. produziu um Contrato Nacional que a FIS
Um dos muitos partidos novos era a Fren- aceitou, mas o governo rejeitou. No ano se-
te Islâmica de Salvação (Front Islamique du guinte, com a FIS ainda proibida, Zeroual foi
Salut, FIS), parte de um movimento grande, reeleito, agora como civil. Sua vitória residiu
mas difuso, que inicialmente fora um mo- menos em sua parcela dos votos do que no
vimento de protesto político, mas estava mero ato de realizar a eleição. O país se en-
destinado a evoluir para uma ala religiosa contrava em estado de anarquia, partes dele
fundamentalista de peculiar malignidade. estavam fora do controle do governo e em
A FIS, rápida no uso da nova Constituição, outras, esse controle era exercido somente
teve conquistas impressionantes em eleições através de assassinatos. Os chefes militares
locais dentro de dois anos de sua introdução estavam divididos a ponto de alguns serem
e continuou assim até ganhar uma eleição suspeitos de matar outros e centenas de pes-
geral no final de 1991: ela conquistou quase soas estavam sendo assassinadas todos os
metade dos votos e mais de 80% das cadei- dias devido a vinganças e outras disputas
ras que foram decididas no primeiro turno. que tinham tanta relação com dívidas pri-
O governo, que conquistou apenas 16 cadei- vadas quanto com política ou religião. A co-
ras no primeiro turno, cancelou o segundo. munidade empresarial, o FMI e os credores
Benjedid foi forçado a renunciar; a FIS foi estrangeiros da Argélia foram tomados pelo
ilegalizada, com milhares de seus adeptos desânimo. Zeroual repetiu sua vitória eleito-
presos, e um Conselho de Estado improvi- ral em 1997, com o endosso qualificado de
sado convenceu Muhammad Boudiaf, um observadores da ONU. Uma nova Constitui-
herói da guerra da independência, a voltar ção ampliou seus poderes presidenciais, mas
do Marrocos como presidente, onde havia se o poder final pertencia ao exército, onde os
refugiado após ser condenado à morte por falcões prevaleciam sobre os moderados. A
Ben Bella em 1964. Boudiaf era muçulma- conta do massacre aumentava à medida que
no devoto e defensor de um governo não os insurgentes assassinavam aldeias inteiras
religioso e não militar, mas foi assassinado e delegacias de polícia eram transformadas
depois de poucos meses e o exército insta- em cenários horríveis de tortura e centros
lou o General Lamine Zeroual em seu lugar. de extermínio. Em 1998, Zeroual, cujo apoio
Boudiaf, e Zeroual, depois dele, ficaram em entre os chefes militares estava se esvaindo,
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declarou que não concorreria à reeleição no Canárias, que continuaram sendo parte da
ano seguinte. Surgiram sete candidatos, seis Espanha, e Rio de Oro, reivindicado por
deles renunciaram na véspera da votação e Marrocos e Mauritânia. Esses pretendentes
Abdulaziz Bouteflika, ex-primeiro-ministro rivais estavam unidos em oposição à presen-
que esteve no exílio por 20 anos, conquistou ça espanhola em um território onde foram
a presidência com 74% do eleitorado que se encontrados, em 1945, os mais ricos depósi-
aventurou a votar. A participação foi divul- tos de fosfato do mundo.
gada oficialmente em 60% e provavelmente O Marrocos, muito dependente das ex-
foi de cerca de 24%. O número de mortes portações e, portanto, dos preços mundiais
violentas no período de 1992 a 1999 pode dos fosfatos, teria gostado de adquirir todo
ter chegado a 100 mil em sete temerosos e Rio de Oro, mas estava disposto a ceder par-
desperdiçados anos. te à Mauritânia em vez de assistir à criação
A tarefa de Bouteflika era estabelecer de um novo Estado, com um monarca his-
o Estado que a FLN não tinha conseguido panófilo e muita ajuda e tutela espanholas.
manter, conciliar ou derrotar os movimen- A Mauritânia desejava frustrar a criação de
tos islâmicos de várias tendências que ha- um Grande Marrocos. A Espanha, tendo
viam desagregado a Argélia em reação à anunciado sua saída em 1974, queria um re-
ineficiência e à corrupção da FLN e reavivar ferendo que gerasse uma maioria para um
uma economia potencialmente rica, estran- novo Estado independente. O Marrocos
gulada pela desordem e pela criminalidade, combateu essa perspectiva ao fazer com que
pela urbanização abrupta, pelas oscilações a ONU consultasse o Tribunal Internacional
dos preços do petróleo e pela indiferença es- de Justiça sobre a posse de Rio de Oro antes
trangeira. Chirac foi o primeiro presidente que os espanhóis chegassem ali. O tribunal
francês a visitar a Argélia desde sua inde- decidiu, em 1975, que o status de Rio de Oro
pendência. Bouteflika foi reeleito com uma deveria ser decidido com base em autode-
grande votação em 2006, mas a desordem terminação e não com referência a sua his-
permaneceu existindo em escala reduzida tória passada.
na capital e no sul. Enquanto o Tribunal ainda estava deli-
A colônia francesa da Mauritânia, po- berando, o Marrocos chegou a um acordo
voada por descendentes dos almorávidas preliminar com a Mauritânia sobre a explo-
que um dia governaram todo o Marrocos e ração dos fosfatos e, em 1975, o rei Hassan
metade da Espanha, começou sua existência liderou pessoalmente 350 mil marroquinos
independente com disputas com a segunda alguns quilômetros dentro de Rio de Oro,
e daí avançou para disputas com o primei- em uma demonstração com o objetivo de
ro. O objeto da primeira dessas disputas foi forçar a Espanha a negociar com o Marro-
Rio de Oro, uma das possessões espanholas cos e com a Mauritânia e não transferir a
no canto noroeste da África. Em 1956, a Es- uma terceira autoridade. A Espanha concor-
panha cedeu o Marrocos Espanhol ao Mar- dou, no final do ano, com a transferência de
rocos, mantendo, entretanto, as cidades de Rio de Oro aos dois pretendentes africanos
Melilla e Ceuta e três outros pequenos en- conjuntamente, e eles, cinco meses depois,
claves cuja população era majoritariamente dividiram o território: dois terços para o
espanhola. Em 1957, enviou tropas a Ifni, Marrocos e um terço para a Mauritânia.
no sudoeste do Marrocos, mas a cedeu a Essa disposição teve a oposição da Fren-
este país em 1958, até a latitude de 27 graus te Popular para a Libertação de Saguia el
e 40 minutos sul. Permaneceram as Ilhas Hamra e Rio de Oro (Polisario), que surgiu
POLÍTICA MUNDIAL | 515

em 1973 como movimento antiespanhol, rejeitou um pedido da OUA (Organização


e, no decorrer dos eventos, tornou-se an- da Unidade Africana) para conversar com
timarroquino. A Frente Polisario afirmava a Frente Polisario, mas parecia disposto a
que Rio de Oro não pertencia ao Marrocos apoiar um referendo que, supunha-se, daria
nem à Mauritânia. Em 1976, proclamou a a ele – ou se poderia fazer com que lhe des-
República Democrática Árabe Saarauí, o se – as áreas em disputa que lhe eram im-
que fez com que os mauritanos, cuja eco- portantes, ao custo de permitir que outras se
nomia não era capaz de sustentar a luta, tornassem uma república saarauí.
saíssem de cena. O exército da Mauritânia Ele investiu dinheiro nas áreas cobiça-
depôs o presidente Ould Daddah e desistiu das e transferiu esperançosos colonos pró-
da luta (1978), mas não foi tão fácil se livrar -marroquinos a elas, calculando que assim
do Marrocos. A Frente Polisario tinha apoio venceria qualquer referendo que pudesse
da Argélia e da Líbia – a primeira em fun- ser forçado a realizar. Em 1991, a ONU foi
ção de sua hostilidade geral ao Marrocos e intermediária de um cessar-fogo como pre-
a qualquer solução na região que pudesse liminar a um referendo sobre a indepen-
bloquear seu acesso ao Atlântico, e a segun- dência ou a integração ao Marrocos. Foi
da, por uma simpatia geral pelos mais fracos montada uma equipe de 2 mil observadores
em luta. O apoio líbio falhou quando Kada- e membros das forças de paz da Missão das
fi, em uma visita a Rabat, trocou sua postura Nações Unidas sobre o Referendo no Saara
pró-Polisario por uma promessa marroqui- Ocidental (Minurso), mas seu trabalho foi
na de se manter afastado de sua confusão no prejudicado por 10 anos de disputas sobre
Chade (ver a Seção seguinte – esse acordo quem estava habilitado a votar e como essas
foi criticado três anos depois pelo rei Has- pessoas poderiam ser identificadas. Muitos
san, porque desagradava aos Estados Uni- habitantes da área eram nômades sem resi-
dos). O apoio da Argélia à Frente Polisario dência fixa, outros eram apontados como
perdeu força por causa dos problemas in- imigrantes, sem qualquer conexão anterior
ternos da própria Argélia. Um ano depois com o lugar. Em 1996, uma Comissão de
de comprar o apoio de Kadafi, o rei Hassan Identificação passou a trabalhar em centros
e Chadli Benjedid chegaram a um acordo regionais, mas não conseguiu superar os
em que os saarauís, embora com permissão problemas. Em 1999, contudo, o secretário-
para manter seu “governo” em Argel, per- -geral da ONU, Kofi Annan, convenceu am-
deram as verbas argelinas. O conflito entre bos os lados a aceitar o ano de 2002 como
a Frente Polisario e o Marrocos se tornou data para o referendo, mas não conseguiu
um impasse a favor do segundo, já que, que eles aceitassem de antemão um veredic-
enquanto o primeiro não obtinha ganhos to do qual não gostassem. Em 1999, sinais
importantes, era empurrado para trás pela de aproximação entre os novos governantes
inglória mas eficaz estratégia marroquina do Marrocos e da Argélia – Muhammad VI
de construir muros de areia em 3.000 km de e Bouteflika – prenunciavam o isolamento
deserto. Essa linha móvel, pontuada por for- político da Frente Polisario, deixando-a com
tes com 5 km de distância e guarnecida por algum grau de autonomia sob soberania
100 mil soldados, criava enclaves que depois marroquina. A ONU indicou um enviado
eram povoados por colonos marroquinos. especial – o ex-secretário de Estado norte-
A principal preocupação do Marrocos -americano James Baker – para elaborar um
era asfixiar uma república saarauí e man- plano de paz. O Marrocos o rejeitou. A Mau-
ter a costa atlântica e seu interior. Hassan ritânia, tendo contido suas perdas ao norte,
516 | PETER CALVOCORESSI

enfrentava problemas domésticos ao sul. As uma adição à Tunísia) sob gestão italiana, a
dificuldades econômicas, incluindo um de- Tripolitânia, ao centro, sob administração
serto opressivo, exacerbavam as tensões de britânica por dois anos e a cargo da Itália por
classe e étnicas. A Mauritânia incluía mou- oito, e a Cirenaica, mais ao leste, sob admi-
ros mais pardos e mais escuros (beidanes e nistração britânica durante todos os 10 anos.
haratinos) e negros africanos. Os beidanes Esse plano não era aceitável aos árabes
constituíam uma casta governante, mas os nem aos russos, que propuseram uma admi-
haratinos, descendentes de escravos, eram nistração da ONU de cinco anos (eles tam-
duas vezes mais numerosos, ao passo que os bém propuseram administrações de cinco
negros africanos – cerca de um terço do total anos para a Eritreia e a Somalilândia italiana).
– eram parentes dos fulanis, wolofs e outros A Assembleia Geral rejeitou o plano Bevin-
povos do outro lado da fronteira senegalesa. -Sforza e houve um período de negociação
Sob o governo brutal do coronel Masouiya e investigação por parte de um comissário
Ould Taya, que tomou o poder em 1984, mi- da ONU (o Dr. Adrian Pelt), que resultou
lhares de mauritanos foram mortos em uma na conversão de todo o Império Italiano na
série de massacres em 1989-1992 e dezenas África do Norte em uma monarquia consti-
de milhares fugiram para o Senegal. A che- tucional governada pelo emir de Cirenaica,
gada desses refugiados (não muçulmanos) Muhammad Idris as-Sanusi, como o rei Idris
provocou uma contraexpulsão de cerca de da Líbia. O novo Estado foi fundado no pri-
70 mil e gerou, por um tempo, uma ameaça meiro dia de 1952, e pouco depois estabele-
de guerra. (Havia em torno de 10 maurita- ceu um acordo com a Grã-Bretanha que dava
nos no Senegal para cada senegalês na Mau- ajuda econômica e armas à Líbia, e direitos
ritânia.) Ould Taya adotou um sistema mul- militares no pequeno posto de El Adem aos
tipartidário e o usou em uma sequência de britânicos. Posteriormente, os norte-ameri-
eleições, em 1992, para reforçar seu governo canos estabeleceram a base maior de Whe-
autocrático enquanto os vários partidos bri- elus Field. Em 1969, o rei foi deposto por
gavam entre si. As eleições de 2003 demons- oficiais do exército descontentes com a cor-
traram que ele e sua facção na classe domi- rupção nas altas esferas. Seu líder, o coronel
nante eram os melhores táticos. Sua junta Muammar Kadafi, desdenhou as convenções
militar permaneceu no poder. diplomáticas ao interferir onde fosse possível
para ajudar (notadamente, os palestinos) ou
combater (companhias petrolíferas, comunis-
Líbia e Chade tas, Israel e governos estabelecidos, principal-
mente monarquias). Dentro do mundo árabe,
O destino das colônias italianas na África Kadafi projetou uma série de uniões que fo-
do norte do pós-guerra deveria ser resolvido ram pouco substanciais e cada vez mais ridi-
pelas quatro principais potências vitoriosas cularizadas: com o Egito e o Sudão em 1969,
até setembro de 1948, caso contrário, o pro- ampliada à Síria em 1970, mas nunca eficaz;
blema seria transferido à ONU. Os governos com o Egito e a Síria, mais uma vez em 1971,
britânico e italiano elaboraram um plano (o igualmente sem consequências; com o Egito
Plano Bevin-Sforza) segundo o qual surgiria em 1972, depois da expulsão dos russos desse
uma Líbia independente ao final de 10 anos país, mas seguida em 1973 por total rompi-
e, durante o intervalo, suas três partes esta- mento diplomático; com a Tunísia em 1974,
riam sob tutela britânica ou italiana: a Fe- sendo a mais breve dessas tentativas de fusão,
zzan (que era cobiçada pelos franceses como já que foi denunciada por Bourguiba dois dias
POLÍTICA MUNDIAL | 517

depois de sua proclamação; com a Síria em se desentenderam. Os franceses se retira-


1980 e com o Chade no início de 1981. ram, Kadafi apoiou Goukouni Oueddei,
Neste último caso, a união parecia ser que estava disposto a ceder – ou prometeu
um eufemismo para uma anexação pelo me- ceder – a faixa de Aozou, ao norte, e suas
nos parcial. O desprezo de Kadafi por con- supostas jazidas de urânio à Líbia. Seu rival,
venções o levou a organizar a morte de ad- Hissen Habre, formou uma breve aliança
versários políticos que tinham fugido para com Malloum antes de se voltar contra ele
outros países, inclusive usando suas missões e tomar o poder na capital Ndjamena, em
diplomáticas com essa finalidade. 1979. A Líbia, o Sudão e a Nigéria concebe-
Dentro da África, Kadafi não apenas ram um acordo superficial entre Goukouni
cumpriu um papel de destaque nas questões e Habre, mas, em 1981, os líbios, avançando
problemáticas do Chade, como era suspei- com seus tanques russos pelo deserto com
to de ambições muito mais amplas. Árido e uma eficiência surpreendente, possibilita-
pouco povoado (cerca de 4 milhões de ha- ram que Oueddei obrigasse Habre a fugir.
bitantes), atravessado pela linha divisória Em 1981, Kadafi e Goukouni anunciaram
entre falantes de árabe e banto, de um lado, uma união de seus dois países, e o primei-
e muçulmanos e cristãos, de outro, com seis ro concordou em retirar suas tropas se os
fronteiras internacionais e supostamente franceses concordassem em fazer o mesmo,
rico em urânio, ouro, petróleo e outros pro- mas quando isso aconteceu, os líbios con-
dutos preciosos, o Chade sofria de instabili- tinuaram ocupando a faixa de Aozou. Em
dade endêmica e representava uma tentação outros lugares, Habre recuperou e conso-
permanente. Seu primeiro presidente, Fran- lidou sua posição, mas seu governo empo-
çois Tombalbaye, um representante da elite brecido foi fragilizado por quedas no preço
educada do sul, não simpatizava com os mu- do algodão, que alimentaram o desconten-
çulmanos do norte, cuja oposição a seu go- tamento popular. Realizou-se uma confe-
verno ele insistia em considerar como ban- rência de paz em Brazzaville, em 1984, mas
ditismo. A posição também era uma ameaça sem sucesso. Contudo, depois disso, a sorte
à circulação de turistas que ele desejava de Habre voltou a aparecer, principalmen-
incentivar. Em 1966, ele foi desafiado pela te a partir de 1986, quando a Líbia, tendo
Frolinat, o movimento Frente de Libertação fracassado em mais uma ofensiva, abando-
Nacional do Chade, com sede na Líbia, e pe- nou Goukouni, que também entrou em de-
diu ajuda à França, que tinha um acordo de sacordo com um dos adversários de Habre,
defesa com o Chade, assim como com outras Acheikh Ibn Ommar. Em 1987, as forças de
ex-colônias. (A França tinha cerca de 6 mil Habre obtiveram uma vitória convincente
soldados na África central e ocidental nesses ao norte, embora sem recuperar a faixa de
anos, distribuídos em mais de 13 países). Aozou. Depois dessa vitória, muitos inimi-
Essa ajuda começou com o forneci- gos de Habre chegaram a um acordo com
mento de equipamentos, mas se ampliou ele ou fugiram para o Sudão, mas, em 1989,
em 1968-1970 para uma intervenção direta um golpe de Estado contra ele (fracassado)
com paraquedas e aviação, o que garantiu demonstrava a agitação por debaixo da su-
a Posição de Tombalbaye até 1975, quan- perfície. Os conspiradores, liderados por
do ele foi assassinado. Seu sucessor, Felix um velho parceiro, Idriss Deby, ressentiam-
Malloum, foi aos poucos perdendo a guerra -se de favores feitos a inimigos anteriores,
contra a Frolinat. Nesse meio-tempo, os lí- pessoais ou tribais, para selar essa reconci-
deres dos vários exércitos desse movimento liação. Eles foram ajudados pela Líbia e, em
518 | PETER CALVOCORESSI

1990, tentaram mais uma vez e tiveram êxi- co, no Senegal, Guiné e Costa do Marfim, e
to. A França, que interveio várias vezes para a Baía de Benim.
proteger Habre, recusou-se a fazê-lo de O assassinato do presidente Luiz Cabral,
novo. A proteção dos Estados Unidos e seus da Guiné-Bissau, a deposição do presidente
guardas israelenses não foi suficiente para Sangoule Lamizana, do Alto Volta, um golpe
salvar Habre, que fugiu para Camarões. fracassado contra o presidente Seyni Koun-
Deby impôs algum grau de estabilidade. tche, do Níger (que enfrentou golpes quase
Sua minoria era a maior em um país frag- anuais desde que tomou o poder em 1974)
mentado, mas o acordo a que ele chegou foram todos eventos de 1980 atribuídos a
com o sul relativamente rico teve pouca du- maquinações líbias, assim como um golpe
ração. As guerras civis quase incessantes do abortado em Gâmbia, reprimido com pron-
Chade foram usadas pelos Estados Unidos, ta intervenção senegalesa. As repúblicas
pelo Egito e pelo Iraque – estranha conjun- mais distantes, Centro-Africana, Camarões
ção – para prejudicar Kadafi na Líbia. e Gabão, também sentiam um vento líbio
Quando Reagan tomou posse, em 1981, soprando em sua direção e tinham o dese-
o novo governo em Washington, compre- jo privado de que a França pudesse enviar
ensivelmente irritado e com uma obsessão tropas de volta ao Chade. Gâmbia, Senegal,
extravagante em relação ao comportamento Gana e Gabão romperam relações com a Lí-
muitas vezes ultrajante da Líbia, enviou na- bia e a Nigéria ameaçou fazer o mesmo.
vios de guerra para o Golfo de Sirte e der- Mesmo assim, a Líbia não estava em
rubou dois aviões líbios. Os Estados Unidos posição de criar um império, sendo mais
também impuseram sanções econômicas e, agressiva do que poderosa. Sua população
em 1983 e 1984, enviaram aviões de inteli- não passava de 4 milhões, seu exército, de
gência do tipo Airborne Early Warning and cerca de 40 mil. Durante a crise no Chade,
Control (AWACS) ao Egito para impedir em 1980, o Egito reuniu mais do que o do-
Kadafi de se aventurar naquela direção. A bro dessa força só em sua fronteira com a
seguir, ele ameaçou invadir o Egito e teve Líbia e a cruzou com impunidade. O que
participação em um plano abortado para Kadafi tinha era um estilo político alarman-
derrubar o presidente Nimeiry bombarde- te e o petróleo, que ele usava, em parte, para
ando Cartum, como prelúdio a um golpe de torcer o braço dos clientes a quem escolhia
oficiais sudaneses. Em 1986, os norte-ame- vender por metade do preço ou menos, em
ricanos realizaram um ataque aéreo e naval parte para comprar armas russas. Mas, na
massivo a Trípoli e Benghazi, que não con- década de 1980, a produção de petróleo da
seguiu matar Kadafi. Em um ataque de me- Líbia caiu a um quarto em relação a seu pico
nor porte em 1989, dois aviões líbios foram na década anterior, e embora Kadafi tenha
destruídos depois de os Estados Unidos te- transformado a Líbia na maior praça de
rem acusado a Líbia de projetar uma planta armas de origem russa fora da URSS e da
para fabricar gases venenosos. Os africanos Europa Central e Oriental, grande parte de
estavam alarmados com as atividades de seus armamentos era inadequada para suas
Kadafi e com sua visão de um grande Impé- aventuras estrangeiras ou foi deixada sem os
rio Islâmico Saariano, que representariam devidos cuidados, em lugares onde se dete-
uma ameaça à riqueza do Zaire, intimida- riorava rapidamente.
riam Sudão e Uganda e libertariam uma Suas intervenções no Chade não tive-
faixa no sentido oeste, do Chade, passando ram consequência. Depois de se declarar o
pela Mauritânia, Mali e Níger, até o Atlânti- defensor dos muçulmanos, ele ajudou não
POLÍTICA MUNDIAL | 519

muçulmanos a subir ao poder. O urânio que cáveis, o país dos suspeitos não tinha obri-
ele supostamente cobiçava não apareceu. (A gação de entregá-los, mas os três governos
Faixa de Aozou tinha sido dada ao Chade usaram seu peso na ONU para aprovar uma
pelo acordo franco-britânico de 1899, mas resolução do Conselho de Segurança, em
um acordo franco-italiano, não ratificado, 1991, exigindo que a Líbia assim o fizesse.
de 1935, deu a área à Líbia, e Tombalbaye Dois anos depois, os mesmos três Estados
supostamente a vendeu à Líbia em 1973, por garantiram a imposição de sanções eco-
um acordo do qual não foi feito qualquer re- nômicas contra a Líbia quando esta não
gistro. Em 1989, a Organização da Unidade cumpriu a resolução. A Líbia se recusava a
Africana (OUA) convenceu ambos os países prender ou entregar os suspeitos para jul-
a encaminharem sua disputa ao Tribunal In- gamento no que era considerado território
ternacional de Justiça, que decidiu em favor hostil, mas 10 anos depois da catástrofe,
do Chade.) chegou-se a um novo acordo segundo o qual
Embora hostil ao fundamentalismo eles seriam julgados por um tribunal escocês
islâmico, Kadafi apoiou o Irã contra o Ira- reunido na Holanda. Esse arranjo jurídico,
que. Durante a Guerra do Golfo de 1991, contudo, não resolvia os aspectos políticos
ele criticou a invasão de Saddam Hussein ao do caso. Aparentemente, ele estava relacio-
Kuwait e a intervenção dos Estados Unidos nado com dois indivíduos, mas, em 1988, os
e seus aliados contra ele. Depois da guerra, governos reclamantes estavam mais preocu-
começou a refazer suas relações com o Egi- pados com indiciar Kadafi e seu regime e,
to, onde o presidente Mubarak foi receptivo, mesmo 10 anos depois, tinham interesse em
na esperança de romper vínculos anteriores sua condenação, ainda que fosse apenas para
entre a Líbia e o Sudão (que acolhia funda- justificar as sanções econômicas impostas a
mentalistas egípcios) e de obter vantagens seu país. Sendo assim, as negociações para o
com o petróleo líbio. julgamento foram sendo adiadas. Um único
Em 1988, um avião de passageiros de réu, Ali al-Megrahi, foi condenado e preso, e
uma companhia dos Estados Unidos foi embora pairassem dúvidas sobre o veredic-
destruído ao voar sobre a Escócia. Entre os to, a Líbia reconheceu sua responsabilidade
mortos, muitos norte-americanos. Havia sobre o crime. As sanções da ONU foram
indícios para se suspeitar de que esse crime suspensas (os Estados Unidos e a França se
fora obra de iranianos em uma retaliação abstiveram da votação no Conselho de Se-
contra a destruição de um avião iraniano do gurança). Em uma virada em 2003, Kadafi
mesmo tipo sobre o Golfo Pérsico por fogo abriu mão de qualquer intenção de obter
norte-americano, mas os governos de Esta- armas nucleares e prometeu aumentar a
dos Unidos, Grã-Bretanha e França suspei- produção de petróleo da Líbia, na esperança
taram de dois líbios, a quem identificaram aparente de melhorar relações com mem-
e cuja extradição exigiram para julgamento bros da União Europeia e da Liga Árabe*.
nos Estados Unidos ou na Escócia.
A convenção internacional relativa a
isso – a Convenção de 1971 – dispunha que, * N. de R.T.: Posteriormente se reconciliou com os EUA du-
na ausência de tratados de extradição apli- rante o governo Bush.
22 África Ocidental

Independência cimento foram reforçados pela concorrência


entre os próprios brancos. Sendo assim, em
Os europeus tinham interesse no continen- uma fase final da penetração europeia, a
te africano muito antes de ocupá-lo. No África foi dividida por emissários oficiais,
século anterior à morte do profeta Mao- em parte soldados, em parte administrado-
mé, o norte da África representava a maior res, que faziam reivindicações territoriais
ameaça jamais enfrentada pela cristandade e lutavam por elas, porque os comerciantes
europeia, e, embora essa ameaça tenha sido precisavam de proteção e cada Estado eu-
combatida por Carlos Martel e o imperador ropeu temia que os outros tomassem aquilo
bizantino Leão, o Isauro, a Espanha perma- que ele não tivesse anexado para si.
neceu por séculos sob domínio estrangeiro, No último quarto do século XIX, a Eu-
fortalecida, às vezes, por apoios renovados ropa tinha adquirido uma grande parte da
vindos da África berbere. Quando os cris- África em um curto intervalo, e havia al-
tãos finalmente expulsaram os muçulma- gum risco de lutas entre Estados europeus
nos da Península Ibérica, seu ímpeto levou como resultado da distribuição desigual dos
os aventureiros espanhóis e portugueses espólios. Os europeus passaram a resolver
a entrarem na África e a circundá-la, e fez essas questões de forma amigável entre si.
do Cabo da Boa Esperança uma parada em Houve muitas guerras na África durante o
uma nova rota para o Oriente. Em épocas período colonial, mas nenhuma delas foi
mais modernas, a África se tornou um lugar travada entre países europeus, exceto como
onde os europeus obtinham coisas: escravos parte de uma guerra europeia, e mesmo as
para plantações no Ocidente, alimentos para disputas mais ameaçadoras (por exemplo,
países industrializados cujos povos estavam pelo controle do Vale do Nilo ou pela posse
abandonando a terra pela fábrica, minerais de Angola) foram resolvidas sem o tipo de
preciosos, como ouro e cobre, e diamantes e conflito que, no século anterior, tinha sido
urânio. Inicialmente, apenas o litoral era ex- característico das ambições das potências
plorado, mas, depois, os rumores sobre a ri- europeias na Ásia e na América do Norte.
queza do interior tentaram as expedições or- Os europeus tomaram posse da África
ganizadas a seguir os passos de aventureiros no ápice da Revolução Industrial. A dispa-
e missionários. Embora contido inicialmente ridade técnica entre eles e os africanos era
pela inesperada força dos reinos africanos, o enorme, e a lacuna cultural não era menor.
poder branco acabou prevalecendo – princi- Os europeus continuaram, quase que sem
palmente quando a curiosidade e o enrique- exceção, ignorantes em relação à história
POLÍTICA MUNDIAL | 521

africana (muitas vezes partiam do pressu- tas vezes com doenças infecciosas. Criou-se
posto de que ela não existia) e a seus cos- uma nova classe de migrante, as zonas rurais
tumes, e os africanos adquiriram poucos foram arruinadas e os extremos de pobreza
benefícios da civilização tecnicamente su- eram encontrados – como observou a Real
perior de seus novos senhores. Não houve Comissão para a África Oriental em 1955 –
nenhuma tentativa de parceria entre raças nas principais áreas de colonização europeia.
até quase um século mais tarde, quando os A ocupação europeia criou um problema
europeus estavam em retirada e assim eram econômico espantoso, que gerava problemas
percebidos. Enquanto isso, grandes quanti- sociais graves (principalmente nas cidades),
dades de africanos morriam desnecessária o que, por sua vez, incentivava os observa-
e dolorosamente, principalmente nas áreas dores brancos a desprezarem e se afastarem
governadas por belgas e alemães. As versões dos africanos. Por outro lado, os africanos
francesa e britânica da civilização eram me- mais indignados acusavam os brancos de
nos letais, apesar das guerras, do trabalho explorarem e perverterem os negros.
forçado e das desvantagens das concessões Os líderes políticos africanos se inspira-
minerais. Economicamente, a África ocupa- vam na Índia e na América. Eles formaram
da estagnou até uma boa parte do século XX, congressos nacionais imitando o Congresso
quando a Segunda Guerra Mundial e os êxi- Nacional Indiano, muitos deles eram atraí-
tos incipientes de líderes nacionalistas pro- dos por ideias gandhianas de resistência pas-
duziram algumas transformações surpreen- siva, e a independência da Índia, em 1947,
dentes – a primeira, ao criar uma demanda teve um efeito na África que não havia sido
para as matérias-primas africanas, e a segun- previsto. Do continente americano, princi-
da, influenciando as autoridades coloniais palmente do Caribe, os africanos ganharam
que, embora vagamente preocupadas com o autoconfiança e dignidade, e o hábito de se
bem-estar de seus territórios desde o final da reunir. Em 1900, foi realizada uma primeira
Primeira Guerra Mundial, quase nada fize- conferência pan-africana, seguida de uma
ram a respeito até o início da Segunda. segunda em Paris, durante a conferência de
Entre as exceções a essa estagnação paz de 1919. Essas primeiras reuniões foram
econômica estavam as minas de ouro e dia- dominadas por negros das Índias Ociden-
mantes da África do Sul, a partir da déca- tais, mas a sexta, realizada em Manchester
da de 1870, e cobre da Rodésia do Norte e no final da Segunda Guerra Mundial, teve a
Katanga no século XX. Surgiam cidades e participação dos principais líderes africanos
suas estruturas, com a mão de obra sendo – Kenyatta, Nkrumah, Akintola, Nyerere,
proporcionada por quantidades cada vez Banda – e expressou reivindicações de inde-
maiores de africanos (com salários especiais, pendência que pareceriam totalmente fora
não europeus, e em circunstâncias ainda da realidade cinco anos antes. Apenas 10
piores do que as da Inglaterra vitoriana). O anos mais tarde, a África Ocidental liderava
efeito da industrialização foi muito negativo o caminho para a independência da domi-
para o africano. O beneficio aos novos tra- nação europeia.
balhadores industriais era pequeno, já que Em Acra, capital da colônia britânica
a indústria operava com base em mão de da Costa do Ouro, tiveram início rebeliões
obra barata. A expectativa de vida entre os de ex-soldados contra os preços altos em
mineiros era baixa, eles voltavam para suas 1948. As autoridades coloniais foram pegas
casas jovens e moribundos, inválidos e mui- de surpresa e uma comissão de inquéri-
522 | PETER CALVOCORESSI

to produziu um relatório radical que dizia verter o líder nacionalista de ministro-chefe


que a nova Constituição proposta para a do governador em um primeiro-ministro de
colônia estava desatualizada antes de entrar um território autogovernado. A essas altu-
em vigor: dar aos africanos uma maioria ras, o território estava à beira da indepen-
de cadeiras no conselho legislativo não era dência e, com ela, o governador desapare-
suficiente. Foi indicada uma nova comissão cia. Caso decidisse permanecer membro da
de africanos, com um juiz africano como Commonwealth, o território poderia aceitar
presidente, para formular outra Constitui- a rainha da Inglaterra como sua chefe titu-
ção. Esses eventos coincidiram com o surgi- lar, com um governador-geral como seu re-
mento de um novo líder nacionalista, Kwa- presentante local, ou poderia se tornar uma
me Nkrumah, que, com idade provável de república independente dentro da Com-
38 anos, tinha voltado dos Estados Unidos, monwealth, mas sem qualquer vínculo dire-
em 1947, e estava determinado a pressionar to com a Coroa britânica. Em qualquer caso,
pela independência de forma mais enérgica o novo Estado estabeleceria relações diplo-
do que antigos líderes como J. B. Danquah. máticas com o governo britânico (diferente-
Nkrumah exigia autogoverno imediato, e mente da Coroa) por meio de representantes
saiu do partido de Danquah, formou o Par- chamados de comissários, caso os vínculos
tido da União Popular (Convention People’s com a Commonwealth fossem mantidos, ou
Party), foi premiado com uma sentença de embaixadores, se não o fossem.
prisão e teve vitórias eleitorais em 1951, Considerando-se esse método, o princi-
1954 e 1956. Depois das primeiras vitórias, pal problema era regular o ritmo, um exer-
o governador britânico sir Charles Arden- cício de compromisso entre um fluxo irre-
-Clarke o convocou da prisão e o nomeou sistível e uma potência removível. A Costa
ministro-chefe, adotando a visão de que o do Ouro se tornou autogovernada em 1955,
problema colonial não era como prolongar sob o nome de Gana em março de 1957, e
o colonialismo, e sim como fazer melhor passou a ser uma república em 1960. O país
uso do que restara, nadar (e não ser leva- liderou o caminho para os africanos entra-
do) a favor da corrente e não lutar contra rem na Commonwealth. Nkrumah, influen-
ela inutilmente. ciado pelo exemplo da Índia, calculou que
O método britânico, na Costa do Ouro a associação à Commonwealth seria uma
e em outros lugares, era aumentar gradual- ajuda aos novos Estados que entravam nus
mente os elementos eletivos e africanos nos na sociedade internacional.
conselhos legislativos e executivos. Os legis- O segundo país da África Ocidental a se
lativos nos territórios britânicos avançaram tornar independente foi a Guiné Francesa
de assembleias dominadas por representan- (1958). Os franceses demoraram mais do
tes nomeados para outras, que continham que espanhóis ou portugueses a entrar na
uma maioria de membros eleitos, e, ao mes- África e tiveram menos êxito do que os bri-
mo tempo, o conselho executivo do gover- tânicos ou os holandeses.
nador foi igualmente transformado pela in- Quando, no século XVII, eles seguiram
trodução de líderes do principal partido na a nova moda, sua motivação era imitar, mais
legislatura. O governador mantinha, inicial- do que qualquer grande expectativa de ga-
mente, amplos poderes discricionários, mas, nhos. No século XVIII, contudo, estavam
posteriormente, essa associação entre a au- participando do comércio de escravos em
toridade colonial e os movimentos naciona- grande escala, tendo extraído, em um deter-
listas foi levada um passo adiante ao se con- minado momento, até 100 mil escravos em
POLÍTICA MUNDIAL | 523

um ano, e, depois da abolição desse comér- do Senegal, em 1940, fracassou. Na África


cio, em 1815, e da própria escravidão, em Equatorial, contudo, o governador-geral Fé-
1848 (14 anos depois de sua proibição em lix Eboué, nativo do Caribe, tomou o lado
territórios britânicos), os mercadores france- gaullista desde agosto de 1940, e introduziu
ses substituíram as mercadorias humanas por uma série de reformas sociais e políticas
marfim e borracha, e os exploradores e mis- criativas. Na conferência em Brazzaville,
sionários franceses começaram a penetrar no em 1944, os africanos receberam promessas
interior, estimulando sonhos ambiciosos de de mais participação nos conselhos franco-
um império vasto e compacto que se esten- -africanos mistos, mais descentralização e
desse da costa oeste até o Nilo e do Marrocos ampliação do direito de voto.
ao equador. Nesse processo, a França adqui- A primeira Constituição francesa de
riu 3 milhões de km2 até o final do século, 1946 era liberal do ponto de vista colonial,
algo entre um quinto e um quarto de todo o mas foi rejeitada pelo povo francês, e a se-
continente. Quase o total da grande região gunda Constituição daquele ano era menos
noroeste da África passou ao domínio fran- abrangente, criando a União Francesa, que
cês, tornando-se, em 1895, a Federação da incluía a República Francesa, Estados As-
África Ocidental, governada por um gover- sociados e Territórios Associados (também
nador-geral francês, e que acabou por incluir havia Departamentos Ultramarinos e Ter-
oito colônias separadas e, depois de 1945, os ritórios Ultramarinos, que faziam parte da
dois territórios do Togo e de Camarões, cuja República Francesa). Todos os territórios
administração foi confiada à França. Quatro ocidentais e equatoriais se tornaram terri-
territórios equatoriais também foram federa- tórios associados com representantes na As-
dos em 1910. Apenas nos vales do Níger e do sembleia Nacional Francesa e no Conselho
Nilo, os franceses foram superados pelos bri- da República. Também foram estabelecidas
tânicos. Em 1900, os avanços franceses des- assembleias de representantes em cada terri-
de o Marrocos ao norte, do Senegal a oeste e tório com um grande conselho em nível fe-
do Congo ao sul, onde o grande explorador deral. Entre 1947 e 1954, a França teve uma
de Brazza deixou seu nome, convergiam no sucessão de governos predominantemente
lago Chade. Na Primeira Guerra Mundial, conservadores, mas, em 1956, o governo
a França, que já dominava a enorme ilha de Mollet, que tinha Gaston Defferre como
Madagascar, também adquiriu a maioria dos ministro dos territórios ultramarinos, intro-
Camarões Alemães, deixando uma pequena duziu uma lei orgânica que pretendia levar
fatia que passou aos britânicos, que a admi- a um grau substancial de autonomia através
nistraram com a província oriental da Nigé- do sufrágio universal, de conselhos eleitos e
ria, e metade da Togolândia, que também era da africanização dos serviços públicos.
originalmente alemã e foi dividida em 1919 A lei marcou o abandono da política de
entre França e Grã-Bretanha como proprie- integração e assimilação em favor de uma
tários de territórios adjacentes do Daomé e federação mais livre na qual os territórios
Costa do Ouro. africanos, embora ainda associados à Fran-
Depois da queda da França em 1940, a ça, iriam ampliando cada vez mais a gestão
África Ocidental francesa optou por Vichy de suas próprias questões e desenvolvendo
até a invasão do noroeste do continente pe- seus próprios serviços e personalidades. A
los norte-americanos e pelos britânicos em lei foi aperfeiçoada por uma série de decre-
1942. Uma tentativa dos franceses livres tos que dotavam os 12 territórios na África
e dos britânicos de tomar Dakar, a capital Ocidental e Equatorial de assembleias eleitas
524 | PETER CALVOCORESSI

Tânger

Rabat
Mers-el-Kebir
Fez
Casablanca

MARROCOS

A R G
Saara
Ocidental

MAURITÂNIA
Nouakchott
MALI

Dacar SENEGAL
GÂMBIA
Banjul
er
Níg
Rio
Bamako Niamey
Bissau
Ouagadougou

GUINÉ- G U IN É BURKINA FASO


BISSAU
Conacri BENIM
SERRA GANA
Freetown LEOA COSTA Lago
TOGO

DO Volta
MARFIM Ibadan
LIB

Kumasi
Monróvia
ÉR

Lagos
Abidjan
IA

Accra
u
no
Co mé
to
Lo

Territórios em disputa

0 500 1000 km

0 300 600 milhas

Figura 22.1 Noroeste da África (com quadro da Nigéria na época da Guerra de Biafra).
POLÍTICA MUNDIAL | 525

Argel Tunis
Setif

TU NÍ SIA Trípoli

É L I A
LÍBIA EGITO

Aozou

Bardai Faix
ad
eA
ozo
u
Faia-Largeau

NÍGER Fada SUDÃO

CHADE
Biltine
Lago Chade
Abeche Quadro da Nigéria, maio de 1967
Katsina CENTRO-NORTE
Kano Maiduguri
Zaria Ndjamena
Kaduna NIGÉRIA NOROESTE KANO
Abuja
e
nu NORDESTE
Be
Rio

Enugu KIW
Benim PLANALTO
AR
Ontisha
A DE
OESTE BENUE
Port Harcourt Calabar

CAMARÕES LAGOS CENTRO-LESTE


SUDESTE
BAÍA DO MEIO-
BENIM OESTE
RIOS
526 | PETER CALVOCORESSI

a partir de uma lista comum e de conselhos Quando voltou ao poder, em 1958, de


de governo eleitos por essas assembleias. Gaulle apresentou aos africanos ocidentais
Foram reservados poderes consideráveis e equatoriais uma possibilidade de escolha:
aos governadores, aos altos comissários oci- autonomia dentro de uma communauté, na
dental e equatorial ou ao governo metropo- qual a França manteria o controle das ala-
litano, mas as reivindicações nacionalistas vancas econômicas, ou a independência
garantiram a eliminação de votos especiais – o que era um termo gentil para a expul-
para os brancos, e todos os distritos eleito- são para um mundo sem o franco. Todos
rais, em todos os territórios, tinham maio- optaram pela primeira possibilidade, me-
ria de votantes negros. O Rassemblement nos Guiné, que se tornou um Estado so-
Démocratique Africain, o principal partido berano independente em outubro de 1958,
nacionalista que operava em toda a África descartada de forma humilhante por seus
Ocidental francesa, venceu as eleições se- mentores franceses e forçada a recorrer às
guintes na Guiné, no Sudão*, na Costa do potências comunistas para obter os meios
Marfim e no Alto Volta. de sustento para sua independência. A asso-
Essas mudanças políticas foram prejudi- ciação não funcionou e Touré foi forçado a
cadas no aspecto econômico onde a política mudar de rumo (ver Capítulo 26) antes de
francesa continuou integracionista e, em troca morrer nos Estados Unidos, em 1984, de-
de ajuda financeira e garantia de mercados na pois de um ataque cardíaco, com sua posi-
França, propôs transformar a África francesa ção já prejudicada por descontentamento
em uma zona altamente protegida que servia que chegou ao máximo com um golpe, que
aos interesses da metrópole. Nos anos seguin- colocou o coronel Lansana Conte em seu lu-
tes, os africanos foram ficando cada vez mais gar para enfrentar um legado de repressão,
inquietos em relação à política econômica corrupção e bancarrota. A posição de Conte
nessa zona baseada no franco. Eles afirmavam foi fortalecida pelo fracasso de um contra-
que um sistema que permitisse o livre comér- golpe, mas ele enfrentou queixas populares
cio nessa área, mas que levantasse barreiras permanentes baseadas em rivalidades tribais
em torno dela, favoreceria os membros mais e no remédio padrão do FMI administrado a
fortes em detrimento dos mais fracos, dificul- países insolventes e engolido com repugnân-
taria o crescimento econômico nos territórios cia por suas principais vítimas, os pobres. As
africanos e os impediria de diversificar suas tensões étnicas, elevados déficits comerciais
economias. Além disso, a lei orgânica acen- agravados por quedas no preço da bauxita,
tuou as diferenças entre os líderes africanos. perda de apoio do FMI, declínio e colapso
Alguns deles, Félix Houphouët-Boigny, da dos serviços públicos básicos enfraquece-
Costa do Marfim era um bom exemplo, pa- ram tanto a Conte que ele foi obrigado a
reciam bastante satisfeitos com as propostas conceder eleições em 1993, que venceu pela
francesas, ao passo que outros, entre os quais mais estrita das margens, voltando a fazê-lo
Sekou Touré, da Guiné, era o mais destacada, em 1998 e 2003 – uma espécie de estabilida-
suspeitavam que a lei não fosse um estágio da de, mas com a mudança inevitável e incerta.
independência soberana, e sim um mecanis- As outras colônias francesas na África
mo para adiá-la indefinidamente. Ocidental, que tinham optado pela autono-
mia dentro da communauté projetada, não
mantiveram seu status por muito tempo. Em
1959, Senegal, Sudão, Alto Volta e Daomé de-
* N. de R.T.: Trata-se do Sudão Ocidental, atualmente Mali
e Níger. cidiram formar uma federação com o nome
POLÍTICA MUNDIAL | 527

de Mali e pedir a independência. As duas úl- O imenso território da Nigéria também


timas mudaram de ideia por pressão francesa se tornou independente em 1960, seguido,
e, embora o Senegal e o Sudão persistissem, em 1961, por Serra Leoa, a colônia britâni-
a federação resultante durou apenas alguns ca espremida entre Guiné e Libéria, e, em
meses; depois o Senegal se retirou, deixan- 1965, por Gâmbia, o território mais ao norte
do o Sudão com o novo nome de Mali, que e o último remanescente britânico na África
passou à órbita Guiné-Gana. A ideia de uma Ocidental, um estreito enclave abraçado pelo
federação malinense teve pouca aceitação, Senegal. Entre os territórios cuja administra-
não apenas em Paris, mas também entre os ção fora confiada à França na África Ociden-
Estados africanos franceses mais ao sul, prin- tal, Camarões francês e Togolândia francesa
cipalmente na Costa do Marfim, onde Félix se tornaram repúblicas independentes, en-
Houphouët-Boigny reagiu formando com o quanto Camarões britânico e a Togolândia
Níger e com o Alto Volta e o Daomé, que ha- britânica se vincularam a Nigéria e Gana,
viam se desligado, uma associação chamada respectivamente. Portugal e Espanha foram
de Conselho da Entente, pedindo e recebendo mais lentos para se desvencilhar.
a independência em 1960. Houphouët-Boig-
ny queria fortalecer a Entente introduzindo
a dupla nacionalidade, mas foi enfraquecido A linha costeira do Senegal
por golpes no Alto Volta e Daomé, em 1961, ao Benim
e pela persistente suspeita nesses e em outros
Estados (como o Togo, que entrou em 1966), Exatamente 10 países com uma população
em relação a esse líder, que era considerado combinada não muito maior do que a Grã-
como indevidamente hostil a Nkrumah e -Bretanha ocupavam a costa oeste da Áfri-
muito parcial em relação a Tshombe no Con- ca entre os rios Senegal e Níger. No Sene-
go Belga (ver o próximo capítulo). O resulta- gal, Leopold Senghor – poeta e estudioso,
do dessas forças centrípetas e centrífugas foi o primeiro agrégé africano, um líder cristão
solidificar as várias colônias francesas como em um país com uma imensa maioria mu-
Estados soberanos separados. çulmana, no qual o carisma era algo além,
A independência dos países da enten- em vez de um substituto, da inteligência
te, em 1960, fez com que a communauté – governou por 21 anos antes de dar lugar
perdesse o sentido, embora, em teoria, ela voluntária e pacificamente, em 1981, a Ab-
continuasse existindo como uma associação dou Diouf, que foi confirmado no cargo por
que incluía a França, Madagascar e os países uma convincente vitória eleitoral dois anos
equatoriais. Estes – Gabão, Chade, Ubangi- depois.
-Shari e Congo Francês (os dois últimos Diouf, entretanto, não foi capaz de
rebatizados de República Centro-Africana conter as rivalidades sectárias, escapar do
e Congo-Brazzaville) – apresentaram um controle dos chefes locais mais velhos e
plano para uma federação que, contudo, conservadores, nem recuperar uma eco-
não se concretizou. Eles também obtiveram nomia sobrecarregada por produtos pouco
a independência como países soberanos se- rentáveis e atingida pela seca. O desem-
parados em 1960. Em 1963, os países do Rio prego aumentava, o padrão de vida caía,
Senegal (Senegal, Mali, Guiné e Mauritânia) as disputas regionais e o fundamentalismo
planejaram uma associação, que foi frustra- islâmico começavam a aparecer. Os custos
da por diferenças políticas: a ideia ressurgiu da dívida externa aumentaram a cerca de
no final dos anos de 1960. metade da receita do país, recorrer ao FMI
528 | PETER CALVOCORESSI

implicou uma austeridade dolorosa, e em- tes de wolof, mantinham um movimento


preendimentos como fábricas de fosfato, os secessionista (que parecia ter o apoio da
estaleiros de Dakar e o Plano do Rio Senegal Mauritânia e da adjacente Guiné-Bissau).
perdiam ritmo, assim como a agricultura. A Em 1989, o Senegal renunciou aos planos
ajuda financeira estrangeira suavizava esses para sua integração com Gâmbia. Em 1994,
fracassos. O Senegal recebia muito dinhei- o longo e honesto governo de Jawara como
ro da França e dos Estados Unidos, e Diouf primeiro-ministro e depois como presiden-
conseguiu vencer outras eleições em 1988, te terminou quando um golpe militar, dado
por diversos meios, mas a desordem que pelo tenente Yahya Jammeh (ajudado pelo
se seguiu o obrigou a impor a lei marcial e ditador da Nigéria, Sani Abacha), forçou-o
ele foi ainda mais fragilizado por declínio a fugir. Sua partida pôs fim ao mais longo
econômico, novas medidas de austeridade, intervalo de governo democrático na África
desvalorização do Franco Centro-Africano independente e à dominação do maior gru-
(CFA) e sinais de relutância francesa em po étnico do país, os mandinkas. Gâmbia
resgatá-lo, a menos que ele desse mais reali- dependia de ajuda internacional, mas rece-
dade à democracia do Senegal. Nas eleições beu grande parte do que queria. Sua econo-
seguintes (1993), a primeira disputa mul- mia foi distorcida pela migração do campo
tipartidária do Senegal, Diouf teve apenas para a cidade.
decepcionantes 58%, reduzidos ainda mais Entre Gâmbia e Guiné, na Guiné Por-
no ano seguinte. As relações do país com tuguesa – Guiné-Bissau –, um movimento
seus vizinhos, Mauritânia e Gâmbia, eram de libertação Partido Africano para a Inde-
incômodas, levando, no primeiro caso, à pendência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC),
guerra não declarada (ver o capítulo seguin- fundado em 1956 por Amílcar Cabral, deu
te). Gâmbia era um vizinho mais estranho, início a uma rebelião, em 1959, e à guerra
já que estava totalmente dentro do Senegal. total em 1963, durante a qual os guineenses
Sendo a menor das colônias britânicas na gradualmente estabeleceram o controle so-
África Ocidental, inicialmente levou uma bre grande parte do país. Em 1970, Portugal
existência estável depois da independência. foi implicado em uma invasão da vizinha
Com uma economia que lhe possibilitara Guiné, onde o PAIGC tinha sua base. Um
dispensar a ajuda britânica depois de 1967, inquérito da ONU concluiu que 350 a 400
não vivenciou nada pior do que atritos em invasores tinham desembarcado de navios
suas tentativas de montar uma “associação” tripulados por homens brancos; o Conselho
com o Senegal até que, em 1981, o presiden- de Segurança censurou Portugal. Em 1973,
te Dawda Jawara foi forçado ao humilhante Cabral foi assassinado na capital da Guiné,
expediente de chamar tropas senegalesas Conacri. Guiné-Bissau e as ilhas de Cabo
para manter seu cargo, e aceitou uma con- Verde se tornaram países separados em
federação com o Senegal, pela qual Gâmbia 1975, com planos de uma união que nunca
esperava ter os benefícios da independência se consumou. As ilhas, 10 das quais ficavam
e os da parceria com uma economia maior. a 320 km do continente, proporcionavam
Mas as relações ficaram abaladas pela pre- sustento para não mais do que um terço de
valência do contrabando em Gâmbia e pe- seus habitantes. Elas foram isoladas e man-
las suspeitas do Senegal de que aquela es- tidas politicamente estáveis pelo controle
tava fazendo intrigas entre descontentes na rígido de um grupo dominante até início da
província senegalesa sulista de Casamance, década de 1990, quando Cabo Verde adotou
onde os habitantes, principalmente falan- uma Constituição democrática. Na Guiné-
POLÍTICA MUNDIAL | 529

-Bissau, João Vieira fez da democracia um outras recompensas. O mandato de Momoh


benefício para si em uma eleição em que os foi interrompido subitamente por oficiais de
partidos de oposição eram tão numerosos patente inferior, que o forçaram a fugir. O
que nenhum deles tinha chances de vitória. jovem líder desse golpe, o capitão Valentine
Uma revolta, em 1998, evoluiu para guerra Strasser, prendeu alguns ministros de Mo-
civil na qual ambos os lados recebiam apoio moh, garantiu o cancelamento de cerca de
do Senegal. Guiné-Bissau se tornou uma um terço da dívida externa do país com uma
importante escala no tráfico de drogas entre dúzia de credores em troca da promessa de
o Novo e o Velho Mundo. restaurar o governo civil até 1996. Mas não
Ao sul da costa da Guiné, Serra Leoa (6 estabeleceu uma data para eleições que de-
milhões de habitantes) começou sua exis- veriam dar uma conclusão democrática à
tência como colônia com uma dupla per- sua autoridade transitória e não restabele-
sonalidade: escravos libertos estabelecidos ceu o controle sobre partes ao leste e ao sul
pela Grã-Bretanha no litoral e um interior do país, onde a Força Revolucionária Uni-
suspeito, habitado por povos conquistados ficada (Revolutionary United Front, RUF),
pela Grã-Bretanha pouco depois. Depois expressão de dissenso regional e tribal que
da Segunda Guerra Mundial, foi governa- mesclava objetivos nobres com comporta-
da pelos irmãos Margai – sir Milton até sua mento atroz, recebeu ajuda das vizinhas Li-
morte em 1964, e o mais radical sir Albert béria e Guiné, tomou as principais minas e
até que seus planos de mudanças constitu- fez reféns nativos e estrangeiros.
cionais lhe custaram as eleições de 1966. O país foi atomizado pela disciplina de
O exército fez uma breve intervenção, um exército aumentado, de repente, em 10
principalmente para manter Siaka Stevens vezes, pelas incursões de forças irregulares
fora do poder, mas, em 1968, ele se tornou que queriam aproveitar para saqueá-lo e
primeiro-ministro e, em 1971, presidente pelas não menos oportunistas manobras de
da recém-proclamada República de Serra organizações estrangeiras servindo-se de
Leoa. Stevens transformou o país em uma um tráfico de armas muito ampliado. Stras-
área isolada, governada por partido único, ser foi derrubado pelo segundo na linha de
uma catástrofe econômica e um paraíso comando, o brigadeiro Julius Maada-Bio,
para magnatas corruptos que a sugaram até que em pouco tempo foi substituído por Ah-
secá-la enquanto esperavam que Stevens, já med Tejan Kabbah, devidamente eleito, mas
em idade avançada, saísse. Ele renunciou sem experiência e, por sua vez, deposto em
em 1985, depois de 17 anos de governo, e 1997 pelo major Johnny Paul Koroma, que
foi sucedido pelo general Joseph Momoh, se uniu à causa da RUF. Serra Leoa foi sus-
com promessas de dar fim à corrupção que pensa da Commonwealth, e a Comunidade
caracterizou o governo do qual ele próprio Econômica dos Estados da África Ociden-
tinha sido membro por mais de uma déca- tal (Economic Community of West African
da. Momoh teve dificuldades de se dissociar States, ECOWAS) estabeleceu um grupo
dos desagradáveis pilares do velho regime; o de quatro, liderados pela Nigéria, para res-
mundo empresarial se tornou um campo de tabelecer Kabbah no poder, com ajuda mal
batalha entre operadores libaneses há muito disfarçada de empresas estrangeiras de mi-
estabelecidos e imigrantes israelenses (al- neração. Freetown foi bloqueada e bombar-
guns apoiados por sul-africanos). Conflitos deada, e Kabbah voltou ao poder em 1998.
internos foram agravados por estrangeiros Ele aplicou vingança, mas não extermínio,
rivais atraídos pelo brilho de diamantes e e a RUF voltou para devastar Freetown an-
530 | PETER CALVOCORESSI

tes que fosse imposta uma trégua em 1999. ria como centro de inteligência, deram-lhe
Conversações de paz começaram no Togo. A as costas quando suas perspectivas ficaram
posição de Kabbah foi fortalecida quando o reduzidas. Cinco países da África Ocidental
recém-eleito presidente da Nigéria Olusegun montaram uma força militar, o Grupo de
Obasanjo reverteu a decisão de seu anteces- Monitoramento da Comunidade Econômi-
sor de chamar de volta as tropas nigerianas. ca dos Estados da África Ocidental (Eco-
Chegou-se a um acordo de paz no Togo em nomic Community of West African States
1999, e foi criada uma Missão da ONU em Monitoring Group, ECOMOG), para por
Serra Leoa (United Nations Mission in Sier- fim à luta entre os rebeldes e Doe (sitiado na
ra Leone, UNAMSIL) para supervisionar o capital) e entre as facções rebeldes rivais que
desarmamento e outras disposições. Kabbah lutavam entre si. Mas o Ecomog não conse-
manteve a presidência com seu principal ini- guiu proteger Doe, que foi capturado, tor-
migo, o líder da RUF Foday Sankoh, como turado e morto depois de ser acolhido por
vice-presidente nominal, mas prudentemen- ele. O executor de Doe, Prince Johnson, um
te ausente. Mas os combates continuaram até psicopata alcoolista, tomou o controle tem-
que a Grã-Bretanha decidiu mandar tropas porariamente na capital, mas a maior parte
para dar-lhes um fim. Kabbah voltou ao po- do país estava dominada por Charles Taylor,
der. Cinquenta mil estavam mortos em uma que tinha participado do governo Doe an-
população de 5 milhões. Resgatar a econo- tes de ser acusado de enriquecimento ilícito
mia se mostrou tão difícil quanto pacificar. e levado ao exílio temporário nos Estados
Serra Leoa era um desses países – como Unidos, onde foi preso.
Guiné-Bissau, Libéria e Somália – tão divi- Taylor recrutou nigerianos e ganenses
didos pela fragmentação tribal que deixaram exilados, frustrou os esforços do Ecomog
de ser um Estado, mas em nenhum deles um pela paz, invadiu Serra Leoa e incentivou
fragmento tribal tornou-se um Estado. as suspeitas de que o Grupo estava sendo
A Libéria, praticamente um santuário usado pela Nigéria para promover ambi-
norte-americano até os anos de 1970, foi ções de tipo imperial na África Ocidental.
abalada na década de 1980 pela remoção da (A Nigéria pagava quatro quintos dos custos
dominante família Tolbert e o situacionista e fornecia dois terços dos 15 mil soldados.)
Verdadeiro Partido Whig (True Whig Party) O Ecomog aos poucos prevaleceu contra
pelo sargento (depois general) Samuel Doe. Taylor com o objetivo aparente de forçá-
A sustentação de Doe era predominante- -lo a se entender com o frágil governo em
mente tribal e, embora ele tenha sobrevivido Monróvia, que era protegido pelo Grupo,
por 10 anos protegido por uma guarda trei- com presidentes cada vez mais fantasmas.
nada em Israel e pelo serviço secreto israe- A tarefa de conciliação foi dificultada por
lense, nunca estabeleceu sua autoridade em facções divididas e multiplicadas, e os líde-
todo o país. O desastre econômico superou res nigerianos e ganenses do Ecomog iam
as animosidades tribais, e, em 1990, a inva- ficando cada vez mais preocupados com os
são pelo nordeste deu início a uma cadeia de custos de sua intervenção. Um frágil cessar-
massacres e a uma guerra civil na qual de- -fogo foi negociado no final de 1994, e se
zenas de milhares de pessoas foram mortas converteu, no ano seguinte, em um acordo
e cerca de um milhão ficaram desabrigadas. de compartilhamento de poder, mas Taylor,
Os Estados Unidos, que criticavam a demo- tendo conquistado a Nigéria para seu lado,
lição do regime Tolbert por Doe, mas chega- surgiu como o vencedor efetivo em função
ram a bom termo com ele e usaram a Libé- de ter mais dinheiro, melhores armas e mais
POLÍTICA MUNDIAL | 531

organização. Ele se apresentava como al- em queda devido ao excesso de produção


guém mudado e conciliador, e a guerra foi em termos mundiais prejudicaram a merca-
definhando, tendo custado 150 mil vidas doria que, ainda nos anos de 1980 dava (jun-
além de sofrimento e prejuízos incalculá- to com o café) metade das receitas estrangei-
veis. O Ecomog partiu em 1999. A Libéria, ras da Costa do Marfim, e essa deficiência
assim como Serra Leoa, era um país onde combinou-se com altos empréstimos a custo
cada grupo étnico lutava pelo poder com o elevado para criar uma crise econômica. Em
olhar voltado a seus iguais do outro lado da 1987, a Costa do Marfim suspendeu o paga-
fronteira do país, que lhe dedicavam solida- mento de sua dívida externa (que chegava a
riedade. Taylor, o mais hábil dos senhores 150% do PIB) e suas exportações de cacau.
da guerra da região, parecia, às vezes, pre- Dois anos depois, reduziu pela metade o
tender criar uma potência regional centrada preço pago aos produtores de cacau. As em-
em Monróvia e capaz de encarar a Nigéria, presas privadas eram credoras de mais de 1
mas seu poder era essencialmente militar e bilhão de dólares em dívidas do Estado, e os
despótico. Seu fim veio em 2002, quando as bancos privados estavam quebrando.
diversas pressões se mostraram demais e ele Os empréstimos do Banco Mundial, que
fugiu, sendo sucedido por Ellen Johnson- venciam em 1989, não eram renováveis, e o
-Shirleaf, a primeira mulher a ser chefe de país não era pobre o suficiente para rece-
Estado na África, que tinha sido economista ber perdões especiais de suas dívidas. Cor-
no Banco Mundial. tes nos serviços públicos e nos salários – o
A Costa do Marfim foi o mais bem- FMI exigia cortes de até 75% nos salários do
-sucedido dos países da África Ocidental setor público – provocaram greves e mani-
nas primeiras décadas depois da indepen- festações, mas não foram capazes de corri-
dência. Juntando boa gestão com boa sorte gir os déficits do país. Ao se aproximar do
(um clima benigno, sem deserto propria- fim de seu ciclo natural, Houphouët-Boigny,
mente dito), seu governo visava, antes de admitidamente com 80 anos, mas próximo
mais nada, a intensificar e diversificar o dos 90, deu alguns passos para garantir
setor rural, e em segundo lugar, a dar o de- uma sucessão ordeira. Uma emenda cons-
vido incentivo à industrialização, incluindo titucional, apresentada em 1980, designou
oportunidades para a iniciativa privada den- o vice-presidente como herdeiro, mas nin-
tro de um sistema controlado pelo Estado e, guém foi nomeado para esse cargo, e, cinco
terceiro, a evitar pesados gastos em defesa e anos depois, Houphouët-Boigny anunciou
outras formas de ostentação. O produto in- que permaneceria no cargo até morrer. Em
terno cresceu de forma estável a 3% ao ano, e 1990, ele se rendeu às ansiedades domésti-
a renda média anual dos 8 milhões de habi- cas e aos novos ventos da mudança na Áfri-
tantes do país subiu de menos de 100 dólares ca a ponto de aprovar a formação de mais de
antes da independência para cerca de 800 um partido político, mas sua principal preo-
dólares em 1980. Mas esse aumento médio cupação em seus últimos anos era a cons-
se devia mais ao enriquecimento rápido de trução, a um custo imenso, de uma enorme
poucos do que à difusão da prosperidade igreja em sua aldeia natal e fazer com que
a muitos, e, depois de 1980, o crescimento o Papa a consagrasse, o que foi feito*. Hou-
titubeou. O petróleo começou a jorrar em
1984, mas com poucos efeitos sobre a eco-
nomia, compensando a recessão antes de
* Trata-se da cidade de Yamoussoukro, no centro do país que
aumentar o crescimento. Preços do cacau foi ampliada para se tornar a nova capital.
532 | PETER CALVOCORESSI

phouët-Boigny foi reeleito presidente. Cerca culo e o presidente fugiu. A virada do século
de duas dúzias de partidos recém-estabele- foi marcada pelo conflito entre norte e sul,
cidos se juntaram para apresentar um único com soldados franceses (4 mil) ajudando a
candidato, que, mesmo assim, recebeu 18% conter uma revolta no sul. A paz foi restau-
dos votos dados em eleições realizadas sob rada lentamente por mediadores nigerianos
controle do partido governista e não sem e sul-africanos. A Costa do Marfim era um
manipulação. Os aumentos nos preços do importante membro da União Econômica
cacau e do café, em meados dos anos de e Monetária do Oeste Africano (UEMOA),
1980, não se sustentaram, e a austeridade criada junto com Senegal, Benim, Togo,
e a supressão da burocracia causaram al- Mali e Burkina Faso (e acrescida em 1997 da
guma agitação. Houphouët-Boigny morreu Guiné-Bissau).
em 1993, depois de 33 anos no poder e sem Em Gana, pioneira da libertação da
deixar sucessor designado. O presidente África Ocidental, a liderança pessoal de
da Assembleia Nacional, Henri Konan Bé- Nkrumah se transformou em uma autocra-
dié, avançou com habilidade para vencer a cia febril que, passo por passo, deixou de ser
sucessão, mas não sem dividir seu partido. uma luta para manter a unidade do novo
Ele herdou uma posição de força em uma Estado e modernizá-lo e foi distorcida para
das sociedades mais estáveis da África, mas afirmar a autoridade do próprio Nkrumah.
escolheu adotar um estilo firme, inclusive Ele queria propagar sua visão de unida-
privando de direitos os residentes que não de africana acelerando a independência de
eram oriundos da Costa do Marfim e que outros territórios e unindo as energias dos
representavam um terço do eleitorado. Em africanos e do africanismo a serviço da dig-
1995, foi reeleito confortavelmente, com a nidade africana e da eficácia do continente
maioria de seus adversários se retirando da no mundo. Mas seus métodos e sua perso-
disputa no último momento. Ele acelerou a nalidade nem sempre faziam com que fosse
privatização e a diversificação da economia, bem visto por outros líderes cujo pan-afri-
buscando diminuir a dependência do cacau, canismo era filtrado através de suas diversas
atrair investimento estrangeiro para os vá- experiências nacionais e ambições. Como o
rios minerais e estabelecer um centro finan- pan-arabismo de Nasser, o pan-africanismo
ceiro com uma bolsa de valores para toda a de Nkrumah era suspeito. A exuberância
África Ocidental. O FMI e o Banco Mundial que tanto tinha contribuído para torná-lo
sorriam diante de seus planos: o primeiro o primeiro governante de uma república
concedeu um empréstimo a juros baixos de subsaariana era um ponto negativo em uma
395 milhões de dólares (sob condições que nova situação que exigia as artes da diploma-
incluíam reduções no controle de preços e cia tanto quanto o entusiasmo da liderança.
no excesso de funcionários no setor públi- A segunda ambição de Nkrumah era
co), e o segundo deu uma garantia de 30 fazer de Gana um moderno país industrial.
milhões para facilitar o desenvolvimento do Essa ambição foi impedida por um comple-
fornecimento de energia. A dívida externa xo que incluía regionalismo, conservado-
continuou alta, mas foi renegociada. Con- rismo e ciúmes políticos e por uma grave
tudo, mesmo nesse país africano exemplar, queda no preço mundial do cacau, a prin-
os dias de prosperidade tinham terminado, cipal fonte de receita do país. O Convention
o padrão de vida estava caindo, os salários People’s Party, cuja força principal estava
no setor público ficavam sem serem pagos, nas regiões litorâneas, tinha a oposição de
rebeliões na capital marcaram o final do sé- chefes os quais considerava força desagre-
POLÍTICA MUNDIAL | 533

gadora e reacionária e a posição do United Em termos mundiais, Nkrumah queria


Party, liderado por K. A. Busia e J. E. Ap- seguir uma política de não alinhamento.
piah. Acima de tudo, sua principal peça de Suas circunstâncias eram excepcionalmente
propaganda não deu certo. Ele retomou e favoráveis. Com a independência, os recur-
abandonou o plano britânico de construir sos e as reservas de Gana –200 milhões de
uma barragem em torno do rio Volta e fez libras esterlinas, eram maiores do que as de
um acordo com uma empresa norte-ameri- Índia – davam uma base material para al-
cana para construir uma fundição que com- gum nível de independência que poderia ser
praria e refinaria as grandes jazidas de bau- mantido com mais facilidade, já que a Guer-
xita de Gana. O Banco Mundial emprestaria ra Fria até então não havia atingido a África,
o dinheiro para construir a barragem com mas, na prática, aos olhos de outros países;
base na força dos lucros projetados para o Gana nunca obteve o status de não alinhado
país com a venda da bauxita, mas o contrato sob o governo de Nkrumah.
com a corporação norte-americana Kaiser Durante metade do período de 1957
não previa que a bauxita usada na fundição a 1966, o país parecia pró-Ocidente, e, na
viesse necessariamente de Gana, e a empre- outra metade, pró-Oriente. Gana perma-
sa importava o mineral de outros lugares. A neceu na Commonwealth, recebeu a visita
barragem foi construída, mas os lucros do da Rainha Elizabeth II, em 1961, e seu líder
país com a fundição eram mínimos, e um foi recebido em Washington pelo presidente
país que tinha iniciado sua existência inde- Eisenhower, mas a crise no Congo e prin-
pendente com reservas invejáveis começou cipalmente o assassinato de Lumumba, pelo
a decair para as dívidas. Outras empresas qual ele culpou o Ocidente, fizeram com
estrangeiras seduziram Gana para projetos que Nkrumah se voltasse contra o mundo
caros, dos quais o mais notório era a amplia- ocidental, enquanto a formulação, na teoria
ção da estrada Acra-Tema para uma rodovia e na prática, de seu “socialismo científico”
de quatro pistas com as características de com a inauguração, em 1962, de um sistema
uma motorway britânica. Nkrumah con- de partido único, fez com que o Ocidente se
tribuía com essas extravagâncias fazendo voltasse contra ele. Ao contrário do eviden-
construções grandiosas. A atividade eco- te pragmatismo de Nasser, Nkrumah foi se
nômica inchada levava consigo uma carga tornando cada vez mais ideológico e ilógico,
enorme de corrupção. A incapacidade de desenvolvendo uma forma de planejamento
Nkrumah de cumprir suas promessas de econômico semelhante aos modelos comu-
uma vida melhor para todos era intensifica- nistas, mas continuando dependente de ca-
da por uma conduta cada vez mais ditatorial pital ocidental para seu êxito. O golpe que o
e suspeita. A estreiteza que ficou clara, por depôs foi comandado pela CIA.
exemplo, com a remoção do presidente do Nkrumah desperdiçou o invejável le-
Supremo Tribunal depois de um veredicto gado de Gana e acreditava em sua própria
que não era do seu agrado em um julgamen- visão. Ele reduziu o país à bancarrota e deu
to por traição, junto com corrupção cada início à corrupção que os regimes subse-
vez maior e desregramento na administra- quentes não conseguiram dominar.
ção, destruiu as tentativas de Nkrumah de Com um interlúdio de dois anos, sua
obter amigos e ajuda do exterior e criou queda foi seguida de quatro governos mili-
uma oposição no exército, que o depôs em tares de incapacidades variadas. O primeiro
um sangrento golpe em 1966, enquanto ele deles, liderado pelo coronel Ankrah, des-
estava em viagem à China. cobriu que as extravagâncias de Nkrumah
534 | PETER CALVOCORESSI

reduziram as reservas a 4 milhões de libras com uma economia em colapso e tensões


esterlinas, aumentaram a dívida externa a sociais agravadas. No final de 1981, Liman
279 milhões, e geraram um déficit nas con- foi deposto e Rawlings retornou, combateu
tas externas de 53 milhões de libras. Ankrah a decadência econômica e as tramas e rebeli-
fez algumas melhorias nesse quadro desani- ões esporádicas, afastou-se de seus parceiros
mador antes de transferir o poder em 1969, mais radicais e introduziu uma substancial
mas o crescimento econômico continuou deflação e uma série de desvalorizações para
abaixo de 1% ao ano, a população aumen- receber ajuda do FMI. Tendo atacado Liman
tava entre 3,5 e 4% anuais, o padrão de vida por estar disposto a negociar com o FMI e
foi reduzido por uma forte desvalorização, não conseguindo obter ajuda econômica em
e as primeiras tentativas do novo primeiro- outro lugar, Rawlings passou a uma política
-ministro, Kofi Busia, de obter um alívio da de crescimento orientada pelo Fundo e teve
dívida externa tiveram limitado êxito. No alguns êxitos específicos: a inflação caiu de
início de 1972, Busia foi derrotado pelo lega- 100 para 20%, o orçamento foi equilibrado e
do de seu predecessor, por uma política im- o crescimento chegou a 6%.
prudentemente liberal que permitiu entrada Mas as receitas do cacau e da madeira
de produtos estrangeiros que prejudicaram decaíram (as vendas de ouro, contudo, au-
o balanço de pagamentos e por uma drástica mentaram); a dívida externa ainda era um
desvalorização que dobrou a dívida exter- peso asfixiante; o custo do petróleo impor-
na de uma só vez. Ele foi deposto enquanto tado, que havia quintuplicado na década que
estava em Londres pelo (militar) Conselho antecedeu ao retorno de Rawlings, absorvia
de Redenção Nacional sob a presidência do quase metade das receitas estrangeiras do
coronel I. K. Acheampong. Esse grupo bem- país; a desvalorização do cedi em 1983, de
-intencionado lutou, nem sempre de forma 2,75 a 1,62 em relação ao dólar, causou gran-
harmoniosa, contra problemas econômicos de aflição; promessas de uma volta breve ao
que estavam sendo agravados por aumentos governo civil e de consulta ao povo não fo-
súbitos do petróleo e outros produtos im- ram cumpridas; o governante Conselho Na-
portados e pelos consequentes aumentos no cional de Defesa Provisório era um grupo
custo de vida. Os credores de Gana deram com boas intenções, mas nenhuma postura
algum relaxamento no pagamento das dívi- constitucional sólida; fazer oposição na po-
das, mas não tanto quanto o país esperava. lítica ou na administração passou a ser um
Em 1978, Acheampong foi derrubado pelo caminho para a cadeia, mas esse tratamento
general F. W. K. Akuffo, que durou menos não impediu os inimigos de Rawlings, no
de um ano diante de uma maré crescente país nem no exterior (a maioria na Costa do
de indignação. Ele também foi derrubado e, Marfim e no Togo), de manter suas intrigas
junto com Acheampong e outros seis, exe- contra ele. Rawlings abriu mão do apoio dos
cutado depois de um golpe liderado pelo radicais, introduziu medidas que prejudi-
tenente da aeronáutica Jerry Rawlings, que cavam mais às massas dos que aos poucos
prometeu dar um fim à corrupção, reverter que estavam situados nas altas camadas da
o declínio econômico e restaurar o gover- sociedade e arriscou o descontentamento de
no civil. Em seus três meses no poder, ele oficiais de baixa patente que tinham tomado
só conseguiu cumprir a terceira promessa, mais de uma iniciativa de golpe na história
completando um processo eleitoral que já de Gana. Um desses golpes, em 1989, embo-
havia sido desencadeado e que instalou o ra não tenha tido êxito, foi o mais significa-
Dr. Hilla Liman na presidência de um país tivo por vir do próprio povo ewe a que ele
POLÍTICA MUNDIAL | 535

pertencia. Mesmo assim, ele permaneceria tões africanas como presidente da ECOWAS
no poder pelo restante do século. (cujos membros francófonos confiavam mais
Em 1990, Rawlings estava sendo pres- prontamente em Gana do que na Nigéria),
sionado a realizar reformas constitucionais como estadista mais velho aos olhos dos no-
pelas forças internacionais, pela comunidade vos homens em Serra Leoa e Gâmbia, e, um
financeira estrangeira e pela preferência da visitante respeitado a uma série de Estados
região por mais democracia, enquanto con- do sul da África. Ele derrotou vários antigos
tinuava avesso a um sistema multipartidário inimigos, em 1996, com margem confortável
ou, pelo menos, a mais de dois partidos. Ines- – os votos da zona rural foram dados solida-
peradamente, em 1991, ele anunciou um pro- mente a ele –, mas, nas eleições parlamenta-
grama para a volta ao governo civil e, no final res, os partidos de oposição tiveram um re-
do ano seguinte, foi reeleito por uma maio- sultado suficiente para começar a se preparar
ria de dois terços. As eleições parlamentares para a presidência em 2000.
foram boicotadas por uma oposição cínica Seu sucessor, John Kufuor, manteve o
e dividida, cuja recusa a entrar na refrega rumo de estabilidade e progresso econômico.
multipartidária deu a Rawlings 189 cadeiras No Togo, onde o primeiro presidente,
em uma assembleia de 200 e transformou Sylvanus Olympio, foi assassinado em 1963,
Gana em um Estado de partido único com e o segundo, Nicholas Grunitzky, deposto
uma constituição multipartidária. Também alguns anos depois, Gnassingbe Eyadema
era um Estado com expectativas econômicas se manteve no poder contra a impopulari-
melhores do que quando Rawlings tomou o dade e golpes frequentes – em grande parte,
poder pela segunda vez, 11 anos antes. Com regionais e étnicos. A força política do pre-
o auxílio de 2 bilhões de dólares em ajuda sidente estava localizada ao norte, de onde
estrangeira, as despesas do governo foram vinha grande parte dos oficiais do exército.
cortadas; a inflação, reduzida a 15%; o cres- A situação se transformou em crise aber-
cimento no setor agrícola ficou, em média, ta quando, depois de rebeliões, em 1991, e
em 2,5% desde o início dos anos de 1980; uma conferência que durou dois meses para
haviam sido desenvolvidas novas fontes de expor acusações de fraude e assassinatos nas
receita, por exemplo, na pesca; e falava-se em altas esferas e propostas de reforma cons-
Gana emular os tigres do Sudeste Asiático, titucional, o presidente voltou-se contra o
como Taiwan, Coreia do Sul e Hong Kong. primeiro-ministro, Joseph Kokou Koffigoh,
Por outro lado, o progresso econômico con- demitiu o comandante em chefe do exército
tinuado dependia de uma crescente ajuda (ambos ewes) e cancelou as eleições plane-
internacional e de taxas de crescimento cada jadas. O exército, cuja atitude vinha sendo
vez maiores, ao passo que a economia perma- incerta, apoiou o presidente, com medo de
necia muito dependente do cacau e do ouro, espalhar a desordem – parte da qual era su-
a corrupção continuava no setor privado, não postamente incitada pelo próprio presidente
havia verbas domésticas para investimento e para manter o exército ao seu lado. Outras
as estrangeiras eram decepcionantemente pe- rebeliões graves em 1993 levaram meio mi-
quenas, as greves aumentavam, e as previsões lhão de congoleses a fugirem para Gana e
de superávits orçamentários e comerciais não Benim, depois, Eyadema permitiu que as
se cumpriram. Mas o balanço desses ganhos eleições acontecessem e foi declarado ven-
e perdas econômicos, junto com conflitos na cedor. Em cooperação com o FMI, o Togo
Nigéria (ver a seguir), incentivou Rawlin- desenvolveu uma economia baseada em ni-
gs a cumprir um papel mais forte nas ques- chos, autossuficiente em alimentos, estimu-
536 | PETER CALVOCORESSI

lando o turismo e uma modesta indústria e coalizão governante era predominantemen-


servindo de entreposto a seus vizinhos sem te fon, sulista e cristã, perdeu, em 1996, para
acesso ao mar. Eyadema morreu depois de um Kerekou ressurgido, que nesse intervalo
25 anos na presidência. Sua morte foi segui- tinha abandonado o marxismo em nome de
da de caos inesperado até que seu filho assu- um cristianismo entusiasmado e conquista-
miu seu lugar com ajuda do exército. ra o apoio de Sani Abacha, da Nigéria.
No adjacente Daomé, rebatizado de
Benim em 1972, um país que vivia sob a
sombra da Nigéria e sem empregos nem Sem acesso ao mar:
recursos, os militares entravam e saíam do Mali, Burkina Faso, Níger
governo, depondo um presidente civil e
instalando outro até que, em 1970, força- Por trás do arco de Estados que vai da foz do
ram três ex-presidentes a trabalharem jun- rio Senegal quase até a do rio Níger, estão três
tos em um sistema rotativo que se revelou países grandes, áridos e sem acesso ao mar.
mais do que um interlúdio de dois anos an- Mali, Burkina Faso (ex-Alto Volta, o menor
tes de mais um governo militar. Em 1972, o dos três) e Níger. No Mali, Modibo Keita, um
coronel Matthieu Kerekou tomou o poder, dos arquitetos da abortada federação maline-
sobreviveu a vários atentados contra sua sa, foi derrubado em 1968 pelo general Mous-
vida – incluindo um, em 1977, supostamen- sa Traore, que governou por 23 anos. Ao bus-
te lançado a partir do Togo, com ajuda de car ajuda estrangeira, ele oscilou entre países
França, Marrocos e Gabão – foi reeleito em comunistas da Europa e da Ásia (que visitou
1984 e (por estreita margem) em 1989, fez em 1986) e o mais ágil, ainda que difícil de
uma série de visitas a capitais comunistas, engolir, socorro do FMI. Mali tinha proble-
incluindo Pequim (1986) e depois retomou mas com os tuaregues, habitantes do deserto,
cautelosamente a conexão francesa. A opo- e berberes que também viviam em Burkina
sição estava dividida, consistindo em jovens Faso, Níger, Argélia, Líbia e Chade. Quando a
sem emprego, oficiais de menor patente sem descolonização passou a ser uma perspectiva
promoção, sindicatos e rivais étnicos no concreta, nos anos de 1950, os tuaregues ti-
sul, e ele viu seu país se tornar um pequeno nham esperanças de garantir um Estado pró-
exportador de petróleo e também um en- prio com ajuda da França. Depois da inde-
treposto para drogas vindas da Ásia para o pendência – e muito em função da seca – eles
Ocidente. Mas, em 1990, seus dias estavam se dispersaram em países vizinhos, principal-
contados e o Benim tomou a dianteira na mente a Líbia, onde participaram das guerras
África Ocidental rumo a um sistema multi- de Kadafi no Chade, de onde começaram a
partidário. Kerekou, como Kaunda na Zâm- voltar ao Mali em torno de 1990, causando
bia um ano depois, aceitou sua demissão enfrentamentos nesse país e no Níger. Traore
pacificamente e foi sucedido por Nicéphore estava tentando dar fim a essa luta quando foi
Soglo, que libertou prisioneiros políticos, derrubado pelo exército. Um governo provi-
renunciou à mão forte no governo e intro- sório fez, com ajuda da Argélia, um acordo
duziu mudanças econômicas calculadas com os tuaregues, que lhes dava autonomia
para receber ajuda financeira estrangeira regional mas não satisfaziam um grupo mais
(principalmente francesa). Por outro lado, combativo, e os enfretamentos continuaram
as reformas econômicas deixaram grandes com crueldade cada vez maior. Um surto de
quantidades de pessoas desempregadas e democracia produziu 20 partidos políticos
apareceram quase 100 partidos. Soglo, cuja para concorrer nas eleições de 1992. Alpha
POLÍTICA MUNDIAL | 537

Konare foi eleito presidente, sobreviveu a um civil na Nigéria, Diori apoiou o governo cen-
golpe, em 1996, pela restauração da ditadura tral, desafiando o apoio que a França dera a
de Traore, enfrentou secas, corrupção, uma Biafra, e pagou o preço em 1974, quando o
dívida destrutiva e foi reeleito em eleições exército o depôs (uma seca no ano anterior,
caóticas em 1997. A partir de 2002, Amadou extrema até mesmo pelos padrões do Níger,
Toure deu ao Mali um bem-vindo período de enfraqueceu sua posição). Seu sucessor, Sey-
governo civil – um general transformado em ni Kountche, inaugurou o governo militar e
civil, em busca de um partido. permaneceu como presidente até sua morte,
Parte do legado do Mali anterior à in- em 1987. Ele foi seguido pelo coronel Ali
dependência era uma disputa de fronteira Seybou, que se esperava que levasse um esti-
com Burkina Faso, que foi agravada quando lo de vida menos ofensivo do que Kountche,
o capitão Thomas Sankara assumiu o poder mas isso não aconteceu. Uma nova Consti-
em 1983 (depondo um regime civil de três tuição restaurou o governo civil em 1993,
anos, que tinha sucedido o regime militar mas gerou um impasse entre o presidente e
do general Saye Zerbo). Sankara era de uma o primeiro-ministro em caso de discordân-
eficiência atrativa, jovem e honesto, mas sua cia. Isso aconteceu, e o presidente Ousmane
autoridade se baseava em um amálgama de Mahamane, um hausa, foi forçado a compe-
elementos contraditórios. Ele desenvolveu tir com o primeiro-ministro Amadou Hama
boas relações com o Benim e projetou uma pelo apoio do segundo maior grupo, os son-
união com Gana, mas essa tendência preo- ghai. Um golpe, em 1996, no qual se podia
cupava o Mali, que lançou uma guerra curta ver, mais uma vez, a mão de Abacha, deu a
e mal conduzida em 1985. Dois anos depois, presidência ao autodeclarado apolítico, mas
Sankara foi assassinado e sucedido por um autocrático, general Ibrahim Bara Mainas-
amigo íntimo, Blaise Compaore, que, me- sara, que foi assassinado em 1999. O Níger
nos radical e mais autocrático, presidiu um tinha muitos ex-presidentes, e também tinha
sistema multipartidário no qual seu partido uma minoria tuaregue perfazendo um ter-
tinha o maior poder, o qual ele não se aca- ço da população, que se sentia excluída dos
nhou em usar contra sindicatos, estudantes empregos e da educação, mas não conseguia
e outros que tivessem visões próprias. Com- formar uma força rebelde eficaz de mais de
paore foi atingido constantemente por con- 2 mil. Mainassara incluiu tuaregues em seu
flitos, ou coisa pior, com a Costa do Marfim. governo. O urânio do Níger fez do país um
O Níger também sofreu tramas e desor- centro de atenção francesa, por ser conside-
dens, geralmente instigado por insatisfação rado um metal escasso, mas a ajuda da Fran-
militar com a eficiência ou honestidade do ça foi muito reduzida nos anos de 1990.
governo civil. Esses golpes aconteciam com
um mínimo de violência e eram uma forma
aceita, ainda que não muito satisfatória, de Nigéria
mudar um governo que tinha fracassado,
mas que não tinha sucessor pronto em um A Nigéria foi criação do século XX. As co-
Estado de partido único. lônias do Lagos e da Nigéria do Sul foram
O primeiro governante do Níger, Hama- unificadas pela Grã-Bretanha em 1906. A
mi Diori, conquistou sua posição com muita primeira era a terra dos iorubá, cuja socie-
ajuda francesa contra um rival, Djibo Baka- dade era parcialmente baseada em chefes
ry, que se inclinava mais para a esquerda e tribais e, em parte, em cidades cultivadas. O
ao norte islâmico do país. Durante a guerra povo dominante nestas era o ibo, que não ti-
538 | PETER CALVOCORESSI

nha chefes nem cidades, mas era o mais uni- ria só poderia ser governado por uma coali-
do como nação e apresentava um vigor que zão de todos os principais grupos dentro de
os fazia percorrer longas distâncias a partir uma estrutura federal, mas o líder do oeste,
de suas casas no norte da Nigéria e para as o chefe Obafemi Awolowo, preferiu formar
partes oeste e norte da federação criada pelos uma oposição no parlamento federal.
britânicos quando, em 1914, eles uniram essa O consenso entre leste e norte não du-
região norte da Nigéria a suas colônias ao sul. rou muito, nem a coesão com o oeste. Os
O norte estava em um estado de movi- ibos desagradaram seus parceiros nortistas
mento quando os britânicos chegaram, no ao tentarem conquistar cadeiras no par-
final do século XIX. No início daquele sécu- lamento na região norte. No oeste, o chefe
lo, os islamizados fulani tinham estabelecido Samuel Akintola desafiou e Awolowo conse-
sua autoridade sobre uma mescla de Estados guiu que ele e outros líderes fossem julgados
hausa pré-existentes, e assim, criaram o Im- e presos. Akintola não estava satisfeito com
pério de Usman dan Fodio e seus descen- a política de Awolowo de formar uma oposi-
dentes. Os conflitos entre fulani, hausa e ou- ção em nível federal. Ele preferia uma polí-
tros persistiram, e os britânicos assumiram tica de aliança com o norte, livrando-se dos
a tarefa de resolvê-los como prelúdio para ibos e obtendo para seu próprio povo uma
unir todos os seus territórios nessa parte do fatia do poder, prerrogativas e finanças do
mundo, mas a federação que criaram foi um governo central. Em 1963, foi formada uma
amálgama inquieto de países e culturas sem quarta região, a centro-oeste. Em 1964, o
consciência nacional nem unidade. Depois censo mostrou uma população total de 55,6
da Segunda Guerra Mundial, a metade sul milhões para o país, dos quais 29,8 milhões
do país pressionou pela independência, en- estavam no norte – mais da metade. Essa
quanto o norte hesitava, com medo de ser preponderância demográfica do norte au-
reduzido à dependência em relação ao sul, mentou os atrativos para uma aliança com
com suas janelas litorâneas para o comércio, seus líderes e, junto com acusações de que
as habilidades e as maneiras do mundo. o censo havia sido fraudado, também au-
O norte inclusive cogitava a ideia de um mentaram as tensões políticas. As eleições
país separado com acesso ao mar, fosse por na região oeste, em 1965, geraram alegações
um corredor fluvial pelo Níger ou através do de flagrantes malversações. No ano seguin-
Daomé ou Camarões, de um lado ou do ou- te, tiveram início lutas mais graves no norte.
tro. Antes da independência, rebeliões com A instável Constituição tripartite do país se
tonalidades raciais e religiosas deram o aler- rompeu, inicialmente, com uma insurreição
ta para os riscos que o novo país correria, predominantemente ibo, depois um golpe
mas as vantagens da unidade pareciam fa- que provocou uma tentativa de criar um
zer com que o experimento valesse a pena e, país ibo, e, por fim, sucessivas redivisões do
em 1960, a Nigéria se tornou independente país em mais e mais Estados.
com uma Constituição baseada em três re- Em 1966, um grupo de jovens oficiais
giões. O cargo de primeiro-ministro federal ibos se rebelou, em parte como protesto
foi para um nortista, sir Abubakr Tafewa contra o mau governo e, em parte, como
Balewa. O líder do leste, Namdi Azikiwe, demonstração contra o norte e seus aliados
tornou-se presidente e seu partido coope- no oeste. Os primeiros-ministros federal e
rava com o principal partido do norte no do norte, sir Abubakr Balewa e o sardauna
governo central. Azikiwe acreditava que um de Sokoto, foram assassinados, junto com
país tão grande e heterogêneo como a Nigé- o chefe Akintola e muitos outros, mas ofi-
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ciais de alto nível entraram em cena para o mundo. Janeiro de 1970 se tornou decisivo.
impedir que os eventos fossem mais longe Naquele mês, Biafra foi forçada a capitular e,
e parar os oficiais de mais baixa patente. O assim, deixou de existir. Gowon demonstrou
general Johnson Ironsi foi proclamado chefe ser um vitorioso com qualidades de estadista,
de Estado, com a missão de impedir que o pregou e praticou a reconciliação. O cresci-
país se desagregasse e de fazer uma adminis- mento econômico da Nigéria foi retomado
tração competente e honesta. Ironsi era ibo, em ritmo acelerado, e o país se tornou um dos
tinha boas intenções, mas não as qualifica- maiores produtores e exportadores de petró-
ções para a delicada tarefa de manter o país leo do mundo, além de ser rico em carvão, es-
unido, e, quando inadvertidamente sugeriu tanho e outros minerais, bem como em agri-
que uma Constituição unitária poderia ser cultura, mas o governo, mesmo assim, estava
melhor para a Nigéria do que uma federal, gastando demais suas receitas, e os problemas
os medos nortistas de dominação ibo explo- internos não foram extintos por essa riqueza.
diram em outro golpe e foi a vez dele ser as- Os ricos ficavam mais ricos e os pobres, na
sassinado e substituído pelo coronel Yakubu maior parte, continuavam pobres ou, com a
Gowon, cristão do norte, que libertou vários inflação, ficavam mais pobres ainda. O enor-
civis da cadeia, incluindo Awolowo, e mani- me exército e uma grande força policial de 30
festou as esperanças de sempre de retorno mil membros ficaram conhecidos pela cor-
rápido ao governo civil. rupção, assim como os setores mais afluentes
Uma conferência em Lagos chegou a da vida civil. Houve greves e desemprego. O
um acordo sobre uma estrutura federal de problema constitucional não estava resolvido.
limites pouco rígidos e em quatro níveis, Depois da guerra civil, o país foi dividido em
mas ela coincidiu com um contramassacre 12 estados (mais tarde ampliados para 19),
de ibos no norte e a fuga dos sobreviventes mas Gowon inadvertidamente indicou que
para a região leste. poderia haver mais, com uma base étnica
Depois do primeiro golpe, em 1966, o te- que, se aplicada com seriedade, poderia gerar
nente-coronel Odumegwu Ojukwu foi indi- até 300 ou 400. O censo de 1973 identificou
cado governador militar da região leste e con- uma população de 79,76 milhões, um cresci-
cluiu que a salvação dos ibos só poderia ser mento de 43,5% desde 1963 e um aumento
garantida pela secessão e, em maio de 1967, anual duas vezes o das populações que mais
proclamou o Estado independente de Biafra cresciam no mundo. Ninguém acreditava nos
e a guerra começou. Tentativas de mediação números, embora eles agradassem algumas
pela OUA (em Kinshasa em 1967, em Argel pessoas, em algumas áreas. O fato de que os
em 1968, e em Addis Abeba em 1969) não ti- aumentos variassem de foram suspeita de um
veram sucesso. O exército federal, ampliado estado a outro forçou Gowon a dizer que eles
de 10 mil a mais de 200 mil homens, preva- não seriam usados como base para qualquer
leceu gradualmente, apesar da resistência de decisão política. Em 1974, anunciou-se, para
Biafra. Enquanto a Grã-Bretanha e a URSS alívio de muitos nigerianos, que o retorno à
forneciam armas ao governo federal, a França vida civil proposto para 1976 seria adiado. A
as dava a Biafra, e dois de seus maiores par- incapacidade visível de Gowon para arrancar
ceiros na África, Costa do Marfim e Gabão, a erva daninha da corrupção levou à sua de-
reconheciam o país secessionista – como fi- posição em 1975, enquanto ele estava fora do
zeram Zâmbia e Tanzânia. O sofrimento em país, e ele teve permissão para ir para a In-
Biafra, superpovoada e praticamente cercada, glaterra com sua família. Seus sucessores, os
era apavorante e foi muito divulgado em todo generais Murtala Muhammad (assassinado
540 | PETER CALVOCORESSI

depois de alguns meses) e Olusegun Obasan- sultado de negligência, ineficiência e investi-


jo, foram mais firmes em seus ataques à cor- mento incompetente, importando comida. O
rupção e outros problemas. O segundo, que país também estava assustadoramente sem lei
não se dizia presidente, prometeu restaurar o e era ostensivamente corrupto; suas divisões
governo civil, em 1979, e, depois de prolon- e desconfianças étnicas não tinham evapo-
gados debates que produziram a Constituição rado; seu exército (embora reduzido de 230
mais volumosa do mundo, Alhaji Shehu Sha- mil para cerca de metade disso em 1980) era
gari se tornou presidente de uma federação um legado caro e perturbador da guerra civil.
de 19 estados. Mas o otimismo e os recursos do novo go-
A Nigéria era um gigante entre os paí- verno civil foram demonstrados quando ele
ses da África, não só em tamanho. Tinha ri- se sentiu capaz de produzir um plano quin-
queza. Como o Zaire e a África do Sul, tinha quenal para 1981-1985, que visava a tornar a
potencial para se tornar o motor econômico Nigéria autossuficiente em alimentos e bens
de uma ampla região, aliando recursos com industrializados até o final desse período.
conhecimento e capital estrangeiros. Estava Tanto o regime militar que saía quanto
entre os seis primeiros produtores de petró- seu sucessor civil pretendiam que a Nigé-
leo do mundo e tinha um PIB, no final dos ria cumprisse um papel positivo nas ques-
anos de 1970, de cerca de 35 bilhões (460 dó- tões africanas, talvez também nos assuntos
lares per capita) e uma taxa de crescimento mundiais. O país forçou sua entrada no
de 6 a 7% por ano. No ápice, em 1974-1976, a Conselho de Segurança em 1976, contra a
produção de petróleo passou de 2 milhões de candidatura de outro Estado africano in-
barris por dia. Mas essa bonança gerou uma dicado pela OUA. Investiu muita energia e
orgia de atividade que saiu de controle. O pe- dinheiro no Festival de Artes Africanas de
tróleo nigeriano, de produção excepcional- 1976 em Lagos, uma festa de prestígio que
mente cara, chegou aos mercados mundiais fracassou, em parte, em função de caos or-
no mesmo período em que o petróleo que vi- ganizativo e escândalos sobre despesas exa-
nha do Alasca ou do Mar do Norte, fazendo geradas. O país tinha tanto domínio sobre
com que a demanda diminuísse, o preço teve a Comunidade Econômica de Estados da
de ser reduzido, e a produção, contida em 1,5 África Ocidental (ECOWAS) que essa Or-
milhão de barris: o balanço de pagamentos, ganização não teria consistência sem a Ni-
que tinha apresentado um superávit de mais géria. Lagos se tornou um porto obrigatório
de 4 milhões de nairas em 1974, foi subita- para a parada de políticos britânicos, norte-
mente para o vermelho em 1977, as reservas -americanos e outros que tentavam resolver
caíram dois terços, e a inflação subiu a 40% a crise na Rodésia. Como membro da OUA,
ao ano. Mas o crédito da Nigéria permanecia da Commonwealth e da OPEP, assim como
alto, e o país conseguiu tomar grandes somas da ONU, a Nigéria participava de um leque
emprestadas para voltar ao rumo mais con- único de organizações internacionais.
sistente. Seu problema básico não era como No último dia de 1983, o exército vol-
equilibrar as contas, e sim como aplicar suas tou ao poder. O major-general Muhammad
receitas invejáveis. Nessa época, era um país Buhari tornou-se chefe de Estado no lugar
imensamente rico, mas cujos habitantes nada de Shagari. Havia muitas razões para o le-
viam dessa riqueza e continuavam a viver vante que desagradou poucos nigerianos:
em uma sociedade colonial, principalmente eleições descaradamente fraudadas no ano
agrícola, que estava usando não mais do que anterior; corrupção ainda mais descarada;
metade de suas terras cultiváveis e, como re- preços de alimentos subindo muito, uma
POLÍTICA MUNDIAL | 541

economia não mais impulsionada pelo pe- zação de antemão: as receitas oriundas do
tróleo, cujo preço tinha sido reduzido em petróleo tinham afundado para metade de
10%, e a produção, em cerca de 25%; dis- seu valor de 1980, e o governo Buhari esta-
putas constitucionais intermináveis; desor- va nervosamente ciente do papel cumprido
dens religiosas no norte, principalmente pelo produto na decadência e na destruição
em Kano, onde milhares de pessoas foram do governo Shagari. Dentro de dois anos
mortas na repressão a rebeliões dos muçul- (em 1985), Buhari foi expulso por um dos
manos maitatsines no final de 1980, e mais principais membros do conselho de gover-
uma vez nos estados de Borno e Gongola no, o general Ibrahim Babangida, figura re-
em 1982 e 1984, respectivamente. corrente nas crises políticas da Nigéria, mas
O novo governo era semelhante a seu que até então tinha evitado o primeiro lugar
predecessor, conservador e comprometido e suas responsabilidades.
com a geração de prosperidade sem corrup- As principais tarefas de Babangida
ção. Para alguns, incluindo oficiais de baixa eram resgatar a economia, restaurar o go-
patente esperando sua vez e muçulmanos verno civil dentro de um tempo razoável, e
de visão puritana, era muito parecido com impedir que os conflitos regionais da Nigé-
o regime Shagari, com muitos dos mesmos ria se transformassem em uma guerra reli-
empresários e chefes nos cargos de poder giosa entre o norte e o sul, muçulmanos e
federal e provincial. Em poucos meses, era cristãos. Os problemas econômicos do país
ameaçado com rumores de novos golpes, não surgiram da falta de recursos, e sim do
que alguns suspeitavam ser inventados para uso muito otimista de uma única fonte de
possibilitar ao governo evitar a ação de den- riqueza (o petróleo), cujo valor tinha desa-
tro das fileiras intermediárias do exército, bado subitamente por razões que estavam
insatisfeitas com a lentidão de medidas con- fora do controle da Nigéria. O fim do surto
tra os aproveitadores. Quando o governo do petróleo atordoou a Nigéria com mais
agiu, essa ação fracassou. O mais conhecido força porque o país vinha dependendo mui-
dos supostos aproveitadores, Umaru Dicko, to da onda que agora terminava. Com o fim
tinha se refugiado em Londres, onde foi se- desse ciclo, deixou-se que o naira flutuasse,
questrado por três israelenses e um nigeria- e, em pouco tempo, a moeda perdeu 70%
no, com envolvimento pouco ocultado do de seu valor. A inflação, o congelamento
governo nigeriano e uma suspeita razoável de salários e taxas de juros punitivas atin-
de participação oficial de Israel: esse golpe giam pobres e as manadas de novos ricos
foi frustrado quando a polícia britânica re- que haviam surgido com o surto. A renda
tirou Dicko de uma mala na qual ele seria per capita média desabou em cinco anos, de
levado de avião à Nigéria. mais de mil dólares, para 250. Babangida
O governo Buhari foi um fracasso to- precisava restaurar a confiança dentro do
tal. Denunciou a corrupção sem reduzi- país e recuperar a confiança internacional
-la, massacrou criminosos sem reduzir a e suas verbas, mas sua tentativa de fazê-lo
criminalidade, intensificou a austeridade evocou fortes críticas daqueles, incluindo
econômica sem qualquer benefício que jus- Obasanjo, que criticavam uma política eco-
tificasse e renunciou à ajuda do FMI (para nômica que tornava os pobres mais pobres
aumentar seu crédito internacional) ao se e os especuladores mais ricos, sem reverter
recusar a desvalorizar o naira. Irritou seus a recessão industrial. Como prelúdio para
parceiros na OPEP quando reduziu os pre- a restauração do governo civil, foi eleita
ços de seu petróleo sem avisar a Organi- uma Assembleia Constituinte em 1987, mas
542 | PETER CALVOCORESSI

com competência limitada: ela não poderia amplo rompimento por lei e ordem era anun-
questionar o princípio federal, o biparti- ciado por revoltas em Lagos e outras cidades
darismo, a cassação de ex-políticos nem a (principalmente contra aumentos de preços)
religião. A confiança de Babangida em si e saques e conflitos religiosos no norte e no
mesmo foi demonstrada por dois atos im- nordeste. O mandato de Babangida no car-
pressionantes em 1989. go foi prorrogado até agosto de 1993, mas
Quando a comissão eleitoral aprovou personalidades poderosas dentro da Nigéria
seis partidos políticos, dos quais o governo e seus principais credores – os Estados Uni-
escolheria dois, Babangida rejeitou todos os dos, o Japão, a Alemanha – não estavam mais
seis e autorizou outros dois, de sua própria ocultando sua opinião de que ele deveria sair.
escolha. Em segundo lugar, ele interveio na A dívida externa tinha chegado a 30 bilhões,
sucessão no sultanato de Sokoto. A morte do a corrupção era visível, a Nigéria estava se
sultão idoso, em 1988, provocou um enredo tornando um grande entreposto internacio-
político-religioso que evoluiu para um pro- nal de drogas, e sua própria existência como
blema de relações entre o sultanato e o go- Estado unificado estava mais uma vez em
verno. Um filho do falecido foi proclamado questão. A eleição presidencial de 1993 foi
sultão no lugar de seu pai, mas o governo in- cancelada quando parecia que o vencedor
terpôs um veto e indicou, em seu lugar, um seria o chefe Moshood Abiola, iorubá mi-
muçulmano eminente, Ibrahim Dasuki, des- lionário líder do Partido Social-Democrata
cendente direto, em uma linhagem menor, (Social Democratic Party, SDP). Abiola fu-
de Usman dan Fodio. Não menos perturba- giu para a Inglaterra e foi preso ao voltar. Os
dores do que esses problemas econômicos planos de Babangida para uma nova eleição
e religiosos era a demografia. A população foram rejeitados pelo SDP que, junto com a
estava projetada em 250 milhões para 2020, Convenção Republicana Nacional (National
na ausência de controle de natalidade, do Republican Convention, NRC), ofereceu-
qual havia apenas a mais modesta perspec- -se para formar um governo conjunto com
tiva. Esse problema era de toda a África, os militares, mas essa oferta foi rejeitada
mas especialmente preocupante na Nigéria, por Babangida. As apreensões entre oficiais
que, com as tendências de então, seria um de alta patente causaram divisões, cujo re-
dos países mais superpopulosos do mundo e sultado foi a substituição de Babangida por
drasticamente carente de alimentos, escolas, seu vice, o general Sani Abacha, com Ernest
hospitais e outros serviços cruciais. Shonekan como testa de ferro que renunciou
Babangida governava através de corrup- depois de alguns meses. Em 1994, Abacha,
ção, opressão e fraude, tendo prometido e um tirano perturbado, aprovou uma ocu-
adiado repetidas vezes o retorno ao governo pação pela Nigéria da Península de Bakassi
civil. Em 1991, ele cancelou uma eleição pre- em Camarões, que incluía os acessos aos rios
sidencial pela terceira vez, mas, inesperada- Calabar e Cross, áreas ricas em petróleo. Ele
mente, no mesmo ano, foram realizadas elei- apoiou forças antidemocráticas em Benim,
ções para governos e assembleias nos vários Gâmbia e Níger, e entrou na guerra civil em
estados, que agora eram 29. O recém-auto- Serra Leoa. As ideias da Nigéria como força
rizado Partido Social-Democrata conquistou estabilizadora e dínamo econômico na Áfri-
maioria em 16 assembleias e na Convenção ca Ocidental desapareceram à medida que
Nacional Republicana, o maior número de o país acelerava rumo à desintegração, à di-
governos. Multiplicavam-se as exigências de vergência religiosa e ao terror. A execução,
renúncia de Babangida, à medida que um em 1995, do escritor e ativista político Ken
POLÍTICA MUNDIAL | 543

Saro-Wiwa, junto com oito outros manifes- onde os muçulmanos e os cristãos lutavam
tantes das terras petrolíferas Igoni, depois de de tempos em tempos, nem ao sul, onde
um julgamento visivelmente insatisfatório e quase metade da população da região do
às vésperas da conferência da Commonwe- Delta morreu em transtornos violentos.
alth evocaram a condenação mundial, mas Um quarto de século de instabilidade
nenhuma ação efetiva. política, desastre econômico e mau governo
A participação da Nigéria na Com- deixaram a África Ocidental com a indepen-
monwealth foi suspensa (ou seja, não can- dência que tinha conquistado das potências
celada), e os Estados Unidos e outros com- coloniais, mas pouco dos frutos previstos
pradores de petróleo do país não aceitaram a partir dela. Os ânimos estavam baixos; as
privar-se dele com um boicote internacional. expectativas, reduzidas; a decepção, amar-
Abacha prometeu restaurar o governo ga; e as disposições, poucas. Vários Estados
civil até outubro de 1998 e se preparou para da região esperavam aliviar sua má situação
isso aperfeiçoando um novo tipo de demo- econômica por meio de associações federais.
cracia multipartidária: cinco partidos, todos Em 1975, 16 deles criaram a Comunidade
indicados pelo mesmo indivíduo – ele mes- Econômica dos Estados da África Ocidental,
mo – para uma presidência transformada uma casa de passagem entre as soberanias na-
em civil. Mas ele morreu de repente. Ca- cionais e a pan-africana OUA. Os primeiros
sualmente, Abiola também morreu depois objetivos eram aumentar o comércio entre
de anos de confinamento solitário e maus- os membros e financiar empreendimentos
-tratos de brutalidade imensurável. O suces- de cooperação na agricultura, nas comuni-
sor de Abacha foi o segundo no comando, cações e na educação, com mais cooperação
Abdulsalam Abubakr, um muçulmano do econômica no futuro, mas a ECOWAS, tendo
norte, como a maioria dos oficiais. Sua pro- temido inicialmente a dominação econômi-
moção não tinha a aprovação de seus cole- ca da Nigéria, acabou sendo um instrumento
gas generais, que estavam divididos em rela- dos desígnios políticos nigerianos com seu
ção a uma transferência de poder aos civis, envolvimento na Libéria e em Serra Leoa.
mas, em 1999, foi realizada uma eleição, e A afluência da Nigéria dava esperanças aos
o ex-general Obasanjo se tornou presidente membros, mas seu poder gerava incertezas,
civil. As eleições certamente foram frauda- principalmente aos membros francófonos,
das, mas é provável que desnecessariamente. seis dos quais criaram uma comunidade den-
Obasanjo, que era iorubá, tinha forte apoio tro de uma comunidade: a Comunidade da
não apenas de oficiais superiores mas tam- África Oriental (Communauté de l’Afrique de
bém nas regiões norte e leste – mas não no l’Ouest, CEAO). A CEAO tinha equivalentes
oeste iorubá, onde a Aliança pela Democra- na África Central na Comunidade Econô-
cia teve uma vitória arrasadora (fracassando mica dos Estados da África Central (Com-
em todos os outros lugares). A Nigéria era, munauté Economique des Etats de l’Afrique
a essas alturas, o mais destacado exemplo Centrale, CEEAC) e na União Aduaneira e
de transformação de rico em miserável, tão Econômica da África Central (Union Dou-
dividida como sempre por raça e religião, anière et Economique de l’Afrique Centrale,
devastada por uma corrupção ultrajante e UDEAC) cujos nomes indicavam suficiente-
por uma exagerada independência no preço mente suas ambições. Todos os seis membros
caprichoso de seu petróleo. Obasanjo con- da segunda pertenciam à primeira, cujos 10
quistou mais um mandato em 2002, mas membros incluíam Estados ingleses e portu-
não conseguiu levar estabilidade ao norte, gueses, bem como falantes de francês.
544 | PETER CALVOCORESSI

Em 1948, a França instituíu uma zona exigiam e, em parte, porque os bancos não
do franco ao aceitar comprar moedas locais confiavam nesses candidatos.
a uma taxa fixa de 50 francos CFA (Colônias Os membros da ECOWAS e da CEAO
Francesas da África) por um franco francês, também estabeleceram acordos de defesa: a
uma maneira onerosa de garantir influência ECOWAS, em 1981, com Mali, Guiné-Bis-
política e um sistema cada vez mais desa- sau e Cabo Verde se abstendo; a CEAO em
gregador na medida em que as várias moe- etapas, a partir de 1977, com o Togo se jun-
das divergiam entre si. O franco francês foi tando aos seis originais. Os signatários do
se tornando cada vez mais extravagante- pacto de defesa da CEAO estavam divididos
mente desvalorizado, a mão de obra, mais entre alguns que o consideravam como um
cara, o investimento francês era redirecio- primeiro passo para se livrarem das tro-
nado a países anglófonos onde prevaleciam pas francesas na África Ocidental e outros,
taxas de câmbio reais; e se formou um agi- longe de estarem prontos para aprovar esse
tado negócio de contrabando de bens para passo. Esses sistemas de defesa tinham mui-
os países francófonos em troca de moedas to menos consequências do que os acordos
locais conversíveis em francos franceses a econômicos. Estes eram, por sua vez, pre-
taxa fixa, que permaneceram inalteradas judicados pela natureza inescapavelmente
por quase um século. Em 1994, o governo mundial dos problemas de que tratavam.
francês de Edouard Balladur desvalorizou o Os problemas políticos da África Oci-
franco CFA à metade em relação ao franco dental eram, em grande parte, domésticos,
francês (e o franco das Comoros associado e a responsabilidade recaía sobre os novos
em um terço). Os objetivos e as esperanças governantes. O passado colonial tinha certa
dessa desvalorização eram aumentar o in- responsabilidade, mas ela estava diminuin-
vestimento e a liquidez e – uma precondi- do. O colonialismo tinha, por sua própria
ção necessária – uma mudança de humor natureza, destruído a classe dominante e
entre os credores, que poderiam ser induzi- suas instituições. Mesmo onde os governan-
dos a cancelar parte de suas dívidas. Algu- tes coloniais praticavam o governo indireto
mas dívidas foram canceladas, mas credo- e, assim, faziam uso do sistema nativo, esse
res já comprometidos com o cancelamento sistema e seus protagonistas foram rebaixa-
das dívidas de antigos satélites da URSS na dos. Mais além, os novos nacionalistas, que
Europa estavam relutantes a enfrentar os lideraram as bem-sucedidas campanhas
problemas da África com igual vigor. A in- pela independência – diferentemente dos
flação a 30-40% na maior parte da zona foi líderes do Congresso Nacional na Índia, que
contida e depois reduzida a cerca de 10%. foi fundado no século XIX – não tinham
O crescimento geral dos países da África mínima experiência de governo e autorida-
Ocidental em 4-5% foi mais forte do que as de precária. Sua autoridade era pessoal, de-
taxas desprezíveis da África Central, onde rivava de carisma ou de patente, de forma
o crescimento dependia demais do simples que a escolha do povo, quando era possível,
otimismo. A liquidez doméstica aumentou, ficava entre o demagogo e o general. Alguns
principalmente por meio de repatriação eram muito bons, e outros, muito ruins, mas
de capital que tinha fugido para o exterior, todos careciam de apoio político sistemáti-
mas o dinheiro continuava nos bancos em co, sendo obrigados a depender de sua es-
vez de ser investido, em parte porque os perteza ou de sua espada.
candidatos potenciais aos empréstimos re- O resultado natural era uma tirania en-
cuavam diante das taxas de juros que eles raizada ou mudanças constantes. Na África
POLÍTICA MUNDIAL | 545

Ocidental, havia mais instabilidade do que lamentavelmente pequenos (nove tinham


tirania. As liberdades foram restringidas ou menos de um milhão de habitantes na inde-
atacadas com a alegação de que o autocra- pendência) e outros eram grandes a ponto
ta ou o Estado de partido único seria mais de serem impossíveis de administrar. Quase
eficiente, mas esses regimes não cumpriram todos eram multilíngues, multirreligiosos e
essas premissas. multiculturais – e não as unidades que pa-
A África Ocidental assistiu a um mo- reciam ser no mapa ou aos olhos de quem
desto avanço econômico nos anos de 1960, estava de fora. Suas fronteiras, inicialmente
contido nos anos de 1970 e revertido nos de sacrossantas, aos poucos foram deixando de
1980 – elemento que se repetiu na maioria ser. Os estrangeiros davam as costas ao in-
da África Subsaariana. No decorrer do sé- vestimento na África e ignoravam suas atra-
culo XX, a população do continente foi mul- ções turísticas. Mesmo assim, grande parte
tiplicada quase 10 vezes (de 100 milhões a do continente possuía excelentes terras agrí-
um inesperado bilhão ou quase isso) e se colas, valiosos minerais e recursos abundan-
mudou para as cidades. Os migrantes se tor- tes de energia. O balancete econômico não
naram refugiados. A demanda por comida era totalmente negativo, mas as soluções
criada pela primeira dessas tendências foi para séculos de estagnação econômica, se-
ampliada pela segunda, à medida que esses guidos de décadas de más políticas e maus
migrantes se tornaram consumidores não governos, demandavam graves sacrifícios
produtivos de alimentos. O campo ficou que deveriam recair principalmente sobre
vazio, as cidades, insalubres e perigosas. O os numerosos pobres, tornando-os, não so-
déficit de alimentos foi agravado ainda mais mente mais pobres, mas também pouco dis-
pela visão pós-independência de que o ca- postos a confiar em seus governos. A receita
minho para a prosperidade era a industria- do FMI para a salvação tinha dois gumes.
lização. A aplicação dessa panaceia criou Por um lado, as instituições internacionais
mais dívida do que sucesso, só aumentou forneciam verbas, mas, por outro, exigiam a
a produção industrial da África em termos desvalorização de moedas, liberalização do
marginais (ela continuou em torno de 1% da comércio e aumentos de produtividades que
produção mundial), expôs a falta de gestores na maioria das vezes só poderiam ser fei-
adequados e estimulou a corrupção inerente tos demitindo pessoas, aumentando preços
em uma corrida por contratos. A ajuda foi e reduzindo serviços. Era um remédio que
mal utilizada, e, muitas vezes, o mau uso era curava a comunidade matando seus mem-
incentivado por doadores ignorantes ou ga- bros. Os planos para compensar os efeitos
nanciosos. Os fracassos industriais e comer- dolorosos eram de novo, na maioria das ve-
ciais também aconteciam em outros setores: zes, frágeis ou evitados. O Banco Mundial,
estradas, escolas e universidades decaíram em uma revisão de 1989 dos conhecidos
e a saúde se deteriorou. Apenas metade das problemas do baixo desempenho agrícola,
crianças ia à escola e metade dos professores do declínio industrial e da excessiva dívida,
não tinha qualificação. A corrupção nas em- apontou suas fontes políticas e econômicas:
presas mal se diferenciava da corrupção no a precariedade do Estado de Direito, a au-
governo, que se estendia a atacar o judiciá- sência de imprensa livre.
rio e a imprensa. As guerras, a seca, a fome O Banco Mundial e o FMI tinham con-
e termos comerciais desfavoráveis em um dicionado anteriormente a ajuda a planos e
mundo governado pelos países mais ricos desempenho econômicos, definindo termos
pioravam a situação. Alguns Estados eram que significavam muita dificuldade ou pior
546 | PETER CALVOCORESSI

para pequenas empresas e indivíduos. Es- para um grupo agressivamente dominante


sas instituições, identificando bom governo determinado a monopolizar o poder. No úl-
como um requisito econômico central, ain- timo quarto do século, as guerras regionais,
da tentaram promover ou recompensar o os conflitos endêmicos e violentos dentro
bom governo. dos Estados e uma dívida sempre crescen-
A instabilidade do Estado africano, te estavam destruindo as sociedades e seu
e, assim, seu desempenho decepcionante, futuro. As cifras mais eloquentes eram a re-
deviam-se a mais do que as limitações de dução dos recursos alocados à educação, de
suas principais personalidades. A explosão 10-12% a 3-4% dos gastos públicos, à me-
populacional pós-independência anulou o dida que – nos piores casos – os Estados se
crescimento econômico e aumentou a po- dissolviam em territórios abertos para ban-
breza, a corrupção e a criminalidade em dos rivais se alternarem para saquear.
cidades inchadas. Ela mudou o balanço en- A África, na segunda metade do século
tre cidade e campo em um ritmo do qual a XX, era conhecida, acima de tudo, pela des-
primeira não tinha como dar conta. Con- colonização que triplicou o número de paí-
tribuiu para fracassos que, com frequência, ses independentes no mundo. A Guerra Fria
equivaliam ao colapso, na educação em to- afetou esses novos países através da intera-
dos os níveis, nos serviços e nos padrões de ção das superpotências, mas eles não cum-
saúde, nos transportes e em outros serviços priam mais do que um papel marginal no
públicos. Políticas econômicas mal concebi- conflito. Contudo, tiveram um papel mais
das e mal administradas produziram dívidas sutil nas questões internacionais. Deviam
externas destrutivas, fora de todas as pro- sua independência à visão quase universal
porções aceitáveis em relação ao PIB ou às de que deveriam tê-la, mas foram forçados
receitas de exportações. Mas, apesar desses a entender que continuavam dependentes
obstáculos, o Estado carecia dos atributos em aspectos cruciais: a predominância da
essenciais de um Estado: definição e auto- economia sobre a teoria política e a vontade
ridade. Em 1964, a OUA decidiu sacramen- popular. De acordo com isso, os mais fortes
tar as fronteiras delineadas e herdadas das países do mundo vieram a usar seu poder
potências coloniais para evitar as disputas não para ocupar ou abusar fisicamente dos
que provavelmente levariam à guerra, mas países mais fracos, mas para exigir, através
esse ato também significava petrificação, de padrões econômicos dominadores do
e a maioria dos Estados africanos acolheu, comportamento doméstico, em troca de aju-
como resultado, conflitos étnicos dentro de da econômica – mistura de propósitos mo-
si, ou minorias étnicas com membros do rais com a força bruta em desafio à doutrina
outro lado da fronteira: eram arenas, e não da imunidade do Estado em relação à inter-
ágoras. Os grupos ou partidos políticos ten- ferência estrangeira. A proliferação dos paí-
diam a ser faccionais em vez de nacionais, e ses (principalmente na África) modificou a
só os exércitos eram mais próximos de uma teoria e a prática em relação à natureza e aos
condição nacional. A multiplicação dos privilégios do Estado que, desenvolvidos na
partidos políticos em nome da democracia Europa, foram exportados para outros conti-
tendia a produzir crises quinquenais e insti- nentes em um período em que essa estrutura
tucionalizar conflitos étnicos com vantagem estava deixando de ser axiomática.
África Central
23
Congo-Zaire-Congo povos diferentes; alguns constituíram fe-
derações tribais: os bakongos no oeste, in-
A África Ocidental se tornou independente cluindo a capital Leopoldville, e também nos
sem nada que possa ser chamado de crise territórios vizinhos de Angola e Congo-Bra-
internacional, e a África Oriental seguiria zzaville; os balubas no sul do Kasai e norte
o mesmo caminho alguns anos mais tarde, de Katanga e os balundas no sul de Katanga.
mas a independência do Congo Belga gerou Apesar de seu grande tamanho, o Congo só
não apenas caos interno e guerra civil, como tocava o oceano no final de um corredor en-
também uma grave crise internacional. Os tre Congo-Brazzaville e Angola. Sua história
países africanos estavam divididos, e a ONU moderna começou com os empreendimen-
foi chamada para cumprir funções espera- tos de exploradores pelo rio Congo, o país
das e não esperadas, no decorrer das quais ficou famoso como resultado da expedição
foi atacada por alguns de seus principais de H. M. Stanley, em 1874, e era objeto de
membros e seu secretário-geral morreu. As competição internacional entre as principais
fontes dessa catástrofe foram, em primeiro potências europeias. A Grã-Bretanha, já com
lugar, a pressa com que os belgas partiram muitas possessões e atarefada em outros lu-
de uma colônia que eles não tinham prepa- gares, não entrou na lista em nome próprio,
rado para a independência; em segundo, o mas pressionou pelas reivindicações de seu
imenso tamanho do Congo e sua diversida- velho amigo, Portugal. A França e o Império
de tribal e étnica; terceiro, a revolta, imedia- Alemão de três anos não foram tão altruístas
tamente posterior à independência, da Force e, em 1876, uma conferência internacional
Publique, ou exército, cuja conduta amoti- chegou a um acordo temporário ao criar a
nada deixou o novo governo central impo- Associação Africana Internacional, que de-
tente; a seguir, a tentativa de separar a rica veria agir como uma espécie de missão cul-
província sulista de Katanga e transformá-la tural composta para iluminar o coração mais
em um país à parte; e, por fim, o fato de que escuro da África e descobrir o que havia lá.
a ONU foi chamada a realizar muitas tare- Essa conferência se reuniu, não por aci-
fas pouco coerentes e foi prejudicada pelas dente, em Bruxelas, convocada pelo rei bel-
inadequações de seus próprios mecanismos ga Leopoldo II.
e ações independentes de certos governos, A Associação Africana Internacional
principalmente o russo e o britânico. não eliminou as ambições das potências
O Congo Belga era um território de mais europeias, e, no início da década de 1880,
2
de 2,5 milhões de km , habitado por muitos havia muito medo do resultado de seus ciú-
548 | PETER CALVOCORESSI

mes na África Ocidental, do Níger ao Con- lugar dentro dele ou deixá-lo e estabelecer
go. Em 1884, uma conferência concebida e o seu próprio país. A segunda mudança era
presidida por Bismarck em Berlim organi- a transformação do território em uma par-
zou as coisas segundo a ideia de que havia o ceria estrondosa entre a administração, as
suficiente para todos e nenhuma razão para casas financeiras belgas e a Igreja Católica.
lutar: os europeus melhor fariam se reco- E assim permaneceu por quase meio sécu-
nhecessem as possessões uns dos outros e lo. Prestava-se alguma atenção ao bem-estar
aprovassem tacitamente aquisições futuras econômico dos africanos, mas não era tole-
de qualquer coisa que ainda não estivesse rada nenhuma atividade política, e a edu-
sob bandeira europeia. O Congo foi con- cação além do nível básico era reservada a
fiado à Associação Internacional do Congo, poucos. Quando pensavam sobre o futuro,
que era a Associação Africana Internacional os belgas imaginavam um lento avanço por
com novo nome, e, na prática, significava parte dos africanos até que se pudesse con-
Leopoldo II em pessoa. Dessa forma, o rei se ceber uma nova forma de associação, mas
tornou o maior proprietário privado de ter- uma transferência de poder aos segundos
ras do mundo, embora ainda não conheces- não passava pela cabeça dos primeiros e não
se a riqueza dessa propriedade. Suas obri- foi dado nenhum passo na formação, nem
gações eram extirpar o tráfico de escravos, mesmo de uma elite.
permitir o livre comércio e garantir a liber- Essa visão começou a ser questionada
dade de passagem para todos no rio Congo. na década de 1950. Os missionários toma-
Ele não cumpriu a primeira obrigação até ram ciência das pressões do nacionalismo e
que protestos na Grã-Bretanha e em outros ficaram desconfortáveis com os pressupos-
países o forçaram a abolir o tráfico – e, em tos com que o território era governado. Em
seu lugar, recorrer ao trabalho forçado. A Bruxelas, onde uma coalizão de esquerda
administração dessa propriedade se tornou chegou ao poder em 1954, a libertação dos
um dos mais notórios escândalos desde a territórios franceses e britânicos não pode-
denúncia de Cícero em relação ao procônsul ria ser ignorada. A oferta de de Gaulle para
Verres, e, em 1908, o Congo foi transferido autonomia das colônias francesas foi feita
de Leopoldo ao Estado belga, que enviou em Brazzaville bem do outro lado do rio em
um governador-geral para administrar com relação a Leopoldville. Os líderes africanos,
a ajuda de servidores públicos belgas. Os alguns se encontraram pela primeira vez na
interesses dos africanos deveriam ter prio- feira de Bruxelas de 1958, começaram a de-
ridade em relação à exploração do domínio, fender a independência e muitos participa-
mas não se considerava que esse princípio, ram da Conferência Pan-Africana do mes-
na prática, envolvesse algum avanço para os mo ano em Acra, onde foram incentivados
africanos nem qualquer mescla de raças que por colegas africanos e tiveram reforçada
não a mais rudimentar. sua determinação de não ficar para trás.
Pouco depois da Primeira Guerra Mun- Alguns dias depois da Conferência de
dial, teve início a mineração de cobre em Acra, houve revoltas em Leopoldville. O
Katanga, que trouxe consigo duas mudan- recém-nomeado governador-geral Maurice
ças potenciais. Na primeira, a província van Hemelrijk acreditou que a aceleração
tornou-se duas vezes mais rica do que o era a única política sensata. Ele defendia
restante; se o Congo um dia se tornasse um um parlamento para o Congo até o final de
país independente, os habitantes de Katan- 1960, e a independência em 1963 (o que foi
ga estariam em posição de exigir o primeiro antecipado, no final de 1959, para indepen-
POLÍTICA MUNDIAL | 549

dência em 1960), mas foi forçado, por pro- equivalentes modernos de chefes tribais e
testos conservadores na Bélgica, a renunciar locais: Joseph Kasavubu, o mais sereno e
em setembro de 1959. Seu sucessor, Auguste aristocrático líder da Abako, que foi fun-
de Schryver, descobriu que teria de avan- dada em 1950 entre os bakongos, com o
çar ainda mais rápido. Os conflitos tribais objetivo de restaurar o velho Império do
começaram antes do final do ano, e, em ja- Congo, mas que se converteu à ideia de
neiro de 1960, os belgas organizaram uma um Estado congolês, desde que fosse fede-
conferência em Bruxelas, na qual, para sua ral; Moise Tshombe, o rico évolué de classe
surpresa, os africanos demandaram, unidos, média e líder da Conakat, através do qual
independência imediata. Os belgas concor- os balundas queriam exercer o poder em
daram em sair do Congo no final de junho – Katanga, dentro de um Congo federal ou
nunca tanto tinha sido concedido tão rapi- de forma independente; e Jason Sendwe,
damente. As fronteiras do novo país seriam cujos balubakats olhavam aos balundas, ao
as mesmas da colônia, e quando sir Roy We- sul, com considerável desconfiança e impe-
lensky sugeriu que Katanga se separasse do diam a Conakat de falar pelo conjunto de
Congo e se unisse à Federação Rodesiana, o Katanga. A tendência de Lumumba a entrar
governo belga ficou muito incomodado. A em conflito com outros líderes de seu pró-
estrutura interna do novo Estado, contudo, prio partido e uma mudança de atitude em
ficou sem ser decidida, enquanto a distri- Bruxelas levaram a tentativas de criar uma
buição dos principais cargos também ficou frente anti-Lumumba, mas as tentativas
dependendo de eleições, que foram reali- fracassaram, seu partido saiu das eleições
zadas em maio. Os belgas fizeram algumas como o maior, e ele foi empossado como
tentativas de reparar seus pecados de omis- primeiro-ministro de um amplo governo
são realizando um programa emergencial de coalizão, com Kasavubu de presidente.
de formação para os africanos em Bruxelas A independência foi proclamada em 30 de
e angariando a ajuda de Gana para a forma- junho de 1960, e as celebrações oficiais du-
ção de mais africanos no Congo. raram quatro dias.
O mais destacado dos políticos congo- Depois de 48 horas, ocorreram os pri-
lenses, e o favorito dos belgas, era Patrice meiros motins na Force Publique. Os solda-
Lumumba, um dos fundadores, em 1958, dos esperavam que a independência melho-
do Movimento Nacional Congolês (Mou- rasse instantaneamente seus soldos e abrisse
vement National Congolais) – o principal o caminho para postos de oficial, que esta-
partido não tribal do Congo. Lumumba e vam totalmente preenchidos por brancos,
seus principais parceiros, Cyrille Adoula e, quando nada aconteceu, eles decidiram
e Joseph Ileo, exigiam a africanização dos substituir seus oficiais. Essa indisciplina foi
serviços públicos e das profissões, tendo acompanhada de alguma violência e estu-
em vista a independência final. Na confe- pros, que os relatos multiplicavam muitas
rência de Acra, Lumumba fez amizade com vezes. Um sargento africano, Victor Lun-
Nkrumah e, embora tenha radicalizado dula, foi nomeado comandante em chefe,
suas reivindicações, durante 1959, e aca- e a situação parecia ter sido controlada em
bado na prisão, manteve sua boa imagem alguns dias, mas em seguida aconteceram
com os belgas até às vésperas da indepen- mais motins, ainda mais violentos. Contu-
dência. Ele queria uma federação forte em do, não houve mortes até a proclamação por
vez de uma difusa, diferentemente de seus Tshombe da independência de Katanga em
adversários, que eram essencialmente os 11 de julho.
550 | PETER CALVOCORESSI

O motim do exército congolês foi a da forças da ONU que começaram a chegar


principal fonte de todos os problemas do a Leopoldville em 14 de julho para restaurar
país, privando o governo de poder e au- a ordem e tomar o lugar dos belgas – mas
toridade. A revolta causou pânico entre sem acordo sobre se a restauração da lei e
os europeus, e os belgas anunciaram que, da ordem incluía a submissão de Katanga à
com ou sem consentimento congolês, autoridade do governo central.
voltariam para proteger seus cidadãos. A Lumumba e Kasavubu começaram tra-
consequência imediata do ato de secessão balhando em harmonia, mas romperam em
unilateral de Tshombe foi enfurecer Lu- setembro, e esse demitiu aquele e nomeou
mumba, que passou a suspeitar de uma um novo governo. O parlamento apoiou
trama entre Katanga e a Bélgica para sub- Lumumba, que sustentava, com alguma
verter a independência do novo Estado e justiça, que a ação do presidente era ilegal.
separar sua província mais rica. Os even- Na crise que se seguiu, o representante de
tos posteriores fortaleceram essa suspei- Hammarskjöld em Leopoldville, Andrew
ta. Embora tenha continuado, por algum Cordier, fechou aeroportos e rádio, dando,
tempo, disposto a discutir com os belgas a assim, uma vantagem a Kasavubu ao negar
manutenção da lei e da ordem, Lumumba ao mais popular, Lumumba, a oportunidade
não se dispunha a fazer o que Tshombe ti- de defender sua visão em diferentes partes
nha feito e pedir ajuda deles para reprimir do país ou fazer sua voz ser ouvida no ar.
os motins. Como não havia outra força Essa ação gerou um amargo ressenti-
imediatamente disponível, esse conflito mento dentro do Congo e além, e levou a fe-
entre Lumumba e os belgas possibilitou rozes ataques congoleses à ONU, com apoio
que os motins se espalhassem e se consoli- dos russos. Lumumba permaneceu em Leo-
dassem. Ao mesmo tempo, o conflito entre poldville, em sua residência oficial. O suces-
Lumumba e Tshombe deixou o primeiro sor de Cordier, Rayeshwar Dayal, recusou-
mais ansioso por manter o exército congo- -se a lhe dar assistência, e ele se tornou, na
lês do que por desarmá-lo, com o resulta- prática, o protegido da ONU (que agora era
do de que, quando as forças da ONU che- atacada por ser pró-Lumumba) até fugir de
garam para restaurar a ordem, Lumumba Leopoldville no final de novembro, esperan-
as dissuadiu de dar o passo essencial de do chegar a Stanleyville de carro. Ele foi al-
desarmar as unidades amotinadas. cançado com a ajuda de aviões e foi alojado
Essas não foram as únicas consequên- na cadeia em Thysville, de onde fugiu para a
cias. Os belgas, que ocuparam Leopoldville capital de Katanga, Elisabethville, em 17 de
com unidades de paraquedistas em 11 de janeiro, apenas para ser capturado de novo e
julho, na prática suspenderam o recém-assi- assassinado.
nado tratado de amizade com o Congo e se Pouco depois do conflito Lumumba-
voltaram para Tshombe, a quem deram uma -Kasavubu em setembro, o coronel Joseph
força armada e um comandante em chefe Mobutu, chefe do Estado-Maior do exérci-
belga. Assim, anularam não apenas a asso- to (o comandante em chefe Victor Lundula
ciação belgo-congolesa, mas também a uni- não estava na capital), deu início à sua as-
dade do Congo. Essa unidade já era precá- censão ao poder que, com ajuda da CIA, ele
ria, e as tentativas de restabelecê-la formam transformaria em uma ditadura despótica e
uma das duas principais linhas na complexa mesquinha entre 1965 e 1997. Expulsou o
história dos três anos seguintes. A outra li- parlamento e as embaixadas russa e tcheca e,
nha foi o conflito sobre os poderes e deveres quando as tentativas de reconciliar Lumum-
POLÍTICA MUNDIAL | 551

ba e Kasavubu fracassaram, declarou-se em ram os africanos pela crueldade com que, ao


favor do segundo, que aceitou a usurpação chegar à província oriental, propuseram re-
do coronel. Mobutu introduziu uma nova solver o problema dos antilumumbistas. Eles
Constituição e algum grau de ordem e efi- foram expulsos por um pequeno grupo de
ciência, mas, embora apoiado pelo Ociden- soldados da ONU. Nesse meio-tempo, Gi-
te, fracassou em estabelecer o tipo de regime zenga tergiversava sobre suas relações com
militar que os outros soldados estavam es- Ileo, observando o estado das relações des-
tabelecendo com sucesso nos países asiáti- te com Tshombe, mas, quando foi nomeado
cos e árabes nessa época. As províncias não primeiro-ministro de Adoula, aceitou o car-
respondiam; os recursos disponíveis – co- go partindo da ideia de que este usaria a for-
municações, pessoal com formação – eram ça para dar um fim à secessão de Katanga.
totalmente inadequados; o exército estava Ele acompanhou Adoula à conferência
dividido, com o general Lundula e as forças de países não alinhados em setembro de
na província oriental ainda pró-Lumumba, 1961. O fracasso das operações contra Ka-
assim como muitos políticos e, até onde se tanga, que será descrito a seguir, renovou
poderia verificar, a preferência popular. suas suspeitas e ele voltou para sua base em
Em fevereiro de 1961, estava claro que a Stanleyville, recriando assim o padrão tri-
dupla Mobutu-Kasavubu tinha fracassado e partite. As tentativas de induzi-lo a voltar à
um novo governo foi nomeado sob coman- capital não tiveram êxito, ele foi levado até lá
do de Ileo, durando seis meses, até agosto, detido, em janeiro de 1962, foi encarcerado
quando foi sucedido por Adoula, que per- e expulso do governo.
maneceu como primeiro-ministro até 1964. A secessão de Katanga foi um estado de
Nesse período, os lumumbistas, liderados coisas formal, embora ilegal, com um início
por Antoine Gizenga em Stanleyville, e os e um fim precisos. Tshombe a proclamou
katanguenses, liderados por Tshombe e Go- em 11 de julho de 1960 e renunciou em 21
defroid Munongo em Elisabethville, eram fa- de dezembro de 1961. Seu início, portanto,
tores separados e, muitas vezes, separatistas, coincidiu com o motim da Force Publique e
na situação. Foram feitas várias tentativas de a intervenção belga, e ela foi acompanhada
juntar todas as três seções, mas ações vol- por um apelo à Bélgica (e uma recusa) para
tadas a Stanleyville geralmente faziam com que permitisse que Kasavubu e Lumumba,
que Elisabethville se retraísse, e vice-versa. o presidente federal e o primeiro-ministro,
A secessão de Stanleyville nunca foi for- fossem a Elisabethville. Como resultado
malizada da mesma forma que a de Katanga, dessas ações, Katanga, pela primeira vez, foi
desenrolando-se depois do rompimento en- protegida do caos que se desenvolvia nas ou-
tre Lumumba e Kasavubu e ganhando força tras áreas, e, enquanto a ONU estava tentan-
depois do assassinato do primeiro, quando do restabelecer a ordem na província de Le-
parecia que os russos reconheceriam o gru- opoldville, os belgas o fizeram em Katanga.
po de Stanleyville como governo do Congo e Eles também proporcionavam a Tshombe,
lhe forneceriam armas. Porém, se os russos por solicitação desse, serviços administrati-
esperavam garantir um bastião na África ex- vos e gerenciavam as minas, pagando royal-
plorando as emoções geradas pela morte de ties a Tshombe em vez de ao governo central.
Lumumba, erraram o cálculo, pois seus ros- Esses pagamentos eram um descumprimen-
tos eram tão brancos quanto o de qualquer to direto do acordo pré-independência (a loi
belga, sua intervenção, em princípio, igual- fondamentale) que foi assinado pelo governo
mente mal vista, e, em vez de agradar, choca- belga e aceito por Tshombe, entre outros,
552 | PETER CALVOCORESSI

mas permitiam que ele recrutasse e pagas- midade, que os belgas deveriam se retirar
se um exército de estrangeiros com o qual e que outros países deveriam se abster de
combateria seus adversários congoleses e, se agravar a situação, confirmou a autoridade
necessário, a ONU. já concedida a Hammarskjöld, e elogiou o
A ONU veio ao Congo em resposta a que ele tinha feito. Os belgas começaram a
três apelos de Kasavubu e Lumumba em 10, retirada no dia 20 e, no dia 23, tinham dei-
12 e 13 de julho de 1960. Inicialmente, eles xado o Congo mais uma vez – com exceção
pediram ajuda técnica, incluindo a organi- de Katanga. Gana e Guiné ameaçaram reti-
zação de equipamento e forças de seguran- rar suas tropas da força da ONU e colocá-
ça; em suas segunda e terceira mensagens, -las à disposição do governo de Leopoldville
apelavam por ajuda contra a agressão bel- para ajudar a expulsar os belgas de Katanga
ga. Hammarskjöld, tomando iniciativa sob e forçar a província a aceitar a autoridade do
o Artigo 99 da Carta da ONU, pediu que o regime Kasavubu-Lumumba. Consequen-
Conselho de Segurança considerasse a pos- temente, a ONU tinha de discutir com a
sibilidade de fornecer ajuda técnica ao Con- máxima urgência se sua própria força tinha
go e debatesse o problema da lei e da ordem. direito de entrar em Katanga para chegar
O Conselho autorizou o envio de ajuda mi- a esse objetivo, e, caso negativo, deveriam
litar ao governo congolês com a condição de ser aprovadas novas resoluções para que
que os soldados da Organização não usas- isso fosse possível. Esperando conseguir se
sem a força a não ser em defesa própria. O desviar dessas dificuldades, Hammarskjöld
Órgão estava dividido sobre pedir ou não voou para Bruxelas e para o Congo para ga-
que os belgas se retirassem, com Grã-Bre- rantir a entrada de unidades da ONU por
tanha, França e China se abstendo de votar. meio de negociação e anunciou, em 2 de
Hammarskjöld pediu ajuda militar e de ou- agosto, que um primeiro contingente o faria
tra ordem aos países africanos ao norte do em três dias. Mas as autoridades de Katanga
Congo – um apelo posteriormente ampliado disseram que resistiriam, e Ralph Bunche,
a certos membros na Europa e na Ásia. Os enviado a Elisabethville para descobrir se
primeiros soldados chegaram ao Congo em eles realmente o fariam, aconselhou adiar
14 de julho, e, quatro dias depois, foi reu- a ação. Em vez de usar a força, e sem ter
nida uma força de 4 mil, com o transporte certeza de que tinha poder para isso naque-
aéreo sendo realizado pelos Estados Unidos, las circunstâncias, Hammarskjöld voltou
pela Grã-Bretanha e pela URSS. Surgiram a Nova York para buscar mais instruções
diferenças de opinião sobre as funções das do Conselho de Segurança. Esse recuo foi
tropas da ONU. O general Alexander, que considerado uma vitória de Katanga e en-
estava no comando do contingente de Gana, fureceu ainda mais Lumumba, que concluiu
começou a desarmar os amotinados da For- que a ONU o tinha decepcionado e que ele
ce Publique, e, se tivesse obtido permissão buscaria apoio africano para uma campanha
para continuar a fazê-lo, tudo poderia ter contra Katanga.
sido diferente, mas Lumumba insistiu em A reunião seguinte do Conselho de
parar o processo, em parte porque descon- Segurança aconteceu em 8 e 9 de agosto e
fiava da interferência externa e, em parte, (com a abstenção de França e Itália) repe-
porque queria usar a Force Publique contra tiu a ordem para que os belgas se retirassem
Katanga. imediatamente, autorizou a entrada de for-
O Conselho de Segurança se reuniu de ças da ONU em Katanga e reiterou que elas
novo em 20 de julho e decidiu, por unani- não deveriam ser usadas para influenciar o
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conflito interno. A última parte da resolu- mante e cujo suposto pró-comunismo era
ção tinha pouca coerência com a primeira, constrangedor, deu a Tshombe ainda mais
já que a essência do conflito era a autorida- margem de manobra; o projetado ataque
de de Leopoldville sobre Elisabethville, e a a ele foi suspenso e as tropas belgas come-
entrada das tropas da ONU em Katanga, çaram a aproveitar a oportunidade para se
mesmo que voltada apenas a forçar a saída deslocar para o norte e estabelecer um se-
dos belgas, não poderia deixar de ter um gundo Estado secessionista em Kasai, sobre
efeito sobre o equilíbrio de forças congole- a curta presidência de Albert Kalonji. Um
sas que estavam em conflito. Hammarskjöld estado separado, apoiado pelos belgas, sur-
voltou ao Congo e retomou sua política de giu no Sul, enquanto no nordeste os russos
fazer com que as forças da ONU entrassem estavam trabalhando com a ideia de outro
em Katanga sem que se derramasse sangue. Estado separado.
Ele entrou em Katanga com uma força sim- O Congo parecia estar por se desagregar
bólica, mas se recusou a levar um represen- em três unidades em guerra, duas seriam
tante de Lumumba, aumentando o conflito bases estrangeiras. A situação ficou mais
com este, que se convenceu de que o secre- grave na abertura da Assembleia Geral da
tário-geral estava envolvido em uma trama ONU em setembro, quando Khruschev che-
contra ele. De sua parte, Hammarskjöld se gou em pessoa para atacar o secretário-geral
convenceu de que o principal objetivo de e duas delegações congolesas rivais compe-
Lumumba era se livrar da presença da ONU. tiam pelas cadeiras na Assembleia e pelos
Tshombe, enquanto isso, usava a margem de ouvidos de seus membros.
manobra proporcionada por esses conflitos Essa sessão da Assembleia ganhou visi-
para consolidar sua posição. Outra reunião bilidade pela admissão de 17 novos mem-
do Conselho de Segurança em 21 de agosto bros africanos. Eles se recusavam a apoiar o
deu um mau sinal, quando URSS e Polônia ataque russo a Hammarskjöld e se juntaram
se opuseram a uma resolução de forte apoio ao bloco ocidental para isolar os países co-
a Hammarskjöld. munistas, mas não estavam de acordo com
Durante o mês de agosto, a situação no as visões ocidentais predominantes sobre o
Congo piorou, com todas as perspectivas de Congo, nem continuaram unidos entre si.
um choque entre os exércitos do Congo e de Na Grã-Bretanha, na França e nos Estados
Katanga. Uma conferência de 13 países afri- Unidos, o caso de Katanga, propagado por
canos em Leopoldville não deu a Lumumba um lobby que recebia recursos abundantes,
o apoio que ele queria e desaconselhou o ata- ganhou muitos adeptos nos círculos polí-
que a Katanga, mas os soldados congoleses ticos e empresariais, sob a alegação de que
estavam tomando a situação em suas pró- Katanga era um oásis de paz e sanidade em
prias mãos e levaram a cabo um massacre um Congo bárbaro e cada vez mais comu-
dos balubas, que estavam tentando estabele- nista. Essa tese não foi aceita pelos africanos,
cer um Estado próprio. (Eles já tinham sofri- que condenaram unanimemente Tshombe
do um massacre por parte dos balundas, já e suas atitudes, ao mesmo tempo em que
que Tshombe não conseguia estabelecer sua se dividiam sobre o que fazer. Um grupo se
predominância sobre Katanga sem essa alte- voltou contra a ONU e retomou o plano de
ração radical no equilíbrio numérico.) Lumumba de uma invasão conjunta de Ka-
Nesse momento, a disposição de Kasa- tanga por parte de africanos. Outro grupo
vubu de se livrar de Lumumba, cuja impre- continuava apoiando a ideia de uma ação da
visibilidade tinha aumentado de forma alar- ONU, embora insatisfeito com o tipo de ação
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que aparentemente era cogitado, e se tornou manipulando as ex-colônias francesas a seu


um grupo de pressão na ONU com o obje- favor. Ileo, contudo, arrependeu-se rapida-
tivo de persuadir o secretário-geral e outros mente de ter se aproximado tanto de Katan-
membros de que uma política de subjugar ga, passou a tentar restaurar as relações com
Katanga pela negociação não tinha chances e Gizenga e a ONU e, em outra conferência
deveria ser substituída pela ação direta. Um em Coquilhatville, ordenou e realizou a pri-
terceiro grupo de africanos, que consistia em são de Tshombe.
colônias francesas recentemente emancipa- Em julho, o Parlamento Congolês se
das, acreditou durante um tempo na aliança reuniu em Lovanium, a cidade universitá-
Mobutu-Kasavubu e na irradiação gradual ria perto de Leopoldville, para montar uma
de lei e ordem de Leopoldville para todas as grande coalizão. Tshombe foi libertado, Ileo
províncias. O declínio temporário de Mobu- abriu caminho a Adoula, um honesto e res-
tu, o assassinato de Lumumba e a instalação peitado administrador das relações huma-
de Ileo proporcionaram um pano de fundo nas, e Gizenga entrou para o governo. No
depressivo para os eventos nos últimos me- lado da ONU, a substituição de Dayal pelo
ses de 1960 e início de 1961, durante o qual tunisiano Mahmud Khiari e pelo ganense
Hammarskjöld fez tentativas bem-sucedidas Robert Gardiner ajudou a melhorar as rela-
de fazer com que russos e belgas interrom- ções entre o governo e a Organização. Mas
pessem seu apoio independente a Stanleyvil- a grande coalizão não aconteceu. Tshombe
le e Elisabethville. agora era o estranho entre os outros.
Em 21 de fevereiro de 1961, o Conselho Seguiram-se operações militares contra
de Segurança autorizou explicitamente as Katanga, que agora era, em termos africa-
tropas da ONU a usar a força como último nos, uma potência formidável, equipada,
recurso para impedir uma guerra civil, mas desde o início do ano, com homens, supri-
não autorizou o uso da força contra Katan- mentos e até mesmo aviões fornecidos por
ga, nem para remover os belgas, nem para Bélgica, França, África do Sul e Rodésia do
garantir uma solução política. Esse desdo- Sul. Alguns belgas específicos tinham sido
bramento marcou a volta das boas relações retirados como resultado de esforços de ne-
entre Hammarskjöld, os países africanos in- gociação, mas os representantes locais da
dependentes e o Ocidente – ou, pelo menos, ONU estavam convencidos de que Tshombe
os Estados Unidos, onde Kennedy acabara apenas ganhava tempo e não tinha qualquer
de assumir a presidência –, mas afastou não intenção real de dispensar seus mercenários
apenas Tshombe, como também o governo belgas e outros, nem chegar a um acordo
Kasavubu-Ileo, que suspeitava que a ONU com Leopoldville. Essas suspeitas foram re-
estivesse a serviço do Ocidente, não via com forçadas quando forças da ONU prenderam
bons olhos qualquer aumento em suas pre- cerca de 100 oficiais de outros países que
tensões e agora começava a se aproximar de tinham sido declarados estrangeiros inde-
Tshombe. sejáveis pelo governo de Adoula. Tshom-
Em uma conferência em Tananarive, em be aquiesceu, mas o representante local da
março, Tshombe convenceu Ileo a aceitar ONU, Conor Cruise O’Brien, aceitou que,
um plano para uma Confederação pouco rí- para minimizar as afrontas pessoais, os de-
gida de Estados congoleses. Nenhum dos lu- talhes fossem tratados pelo cônsul belga em
mumbistas participou da conferência, cujos Elisabethville, que garantiu a partida volun-
procedimentos consideravam um ardil do tária dos oficiais, mas depois não cumpriu
Ocidente para dar legitimidade a Tshombe sua palavra. Mais além, outros oficiais es-
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trangeiros fora de Elisabethville permane- na Rodésia, em 17 de setembro, e morreu


ceram intocados. Essa tentativa de expulsar quando seu avião caiu a caminho.
alguns oficiais foi duplamente infeliz para a Essa terrível calamidade – porque Ham-
ONU, pois seu fracasso incentivou a obsti- marskjöld foi uma das personalidades de
nação de Katanga enquanto sua legalidade mais destaque nas questões internacionais
era fortemente atacada por representantes do pós-guerra – foi seguida por um cessar-
britânicos no Congo e em Nova York. Por -fogo e pelo retorno de Tshombe a Katan-
um tempo, a Grã-Bretanha se tornou um ga. Depois da nomeação de U Thant para
aliado tão útil a Katanga como a Bélgica ou cumprir o restante do mandato de Ham-
a França. marskjöld, o Conselho de Segurança retor-
Diante desse revés, a ONU tinha de nou a seu conhecido dilema: tentar conciliar
decidir se dava outros passos ou consentia. Adoula e Tshombe ou subjugar o segundo.
Khiari e O’Brien, acreditando que Munongo Em 24 de novembro, o Conselho, com a abs-
era o verdadeiro núcleo de resistência, espe- tenção da Grã-Bretanha e da França, auto-
ravam separá-lo de Tshombe e levar este a rizou U Thant a usar a força para expulsar
Leopoldville, onde Hammarskjöld viria falar mercenários e assessores políticos estrangei-
com ele com um estado de espírito mais tra- ros de Katanga, sustentando implicitamente
tável. Mas Tshombe não se deixou seduzir, a política de O’Brien, embora ele tenha sido
e O’Brien, acreditando ter a autoridade de retirado de cena. As forças da ONU ainda
Khiari para usar a força e dominar os ofi- estavam em Elisabethville, mas em situação
ciais estrangeiros em Katanga e dar um fim estranha, já que os mercenários de Tshombe
à secessão, planejou uma segunda operação estavam visivelmente inclinados a provocar
militar, que incluía o sequestro, na prática, a próxima rodada de combates, na qual cer-
de Tshombe. Ela fracassou. Os katanguenses cariam e destruiriam as forças da ONU. Os
estavam mais bem preparados, e o governo representantes da Organização em Katanga
britânico, ao se recusar a permitir que aviões decidiram agir para impedir que suas uni-
etíopes sobrevoassem a Rodésia em direção dades dispersas fossem abatidas isolada-
ao Congo, deu a eles uma vantagem decisiva. mente antes da chegada de reforços, mas,
Forças da ONU capturaram o prédio mais uma vez, foram prejudicados pela Grã-
dos correios e a estação de rádio em Elisa- -Bretanha que, tendo prometido um supri-
bethville. Tshombe se refugiou com o vice- mento de bombas de 100 libras, sucumbiu a
-cônsul britânico e depois foi para a Rodé- pressões da direita e cancelou esse compro-
sia. A operação da ONU gerou um banho misso. Os combates não foram conclusivos,
de sangue que, muito exagerado em seus e, quando Tshombe concordou em se reunir
relatos, chocou e entrou em conflito com os com Adoula, U Thant ordenou outro ces-
que achavam que uma força de paz deveria sar-fogo. Em 21 de dezembro de 1961, em
conseguir paz sem usar a força; e Tshombe Kitona, Tshombe renunciou à secessão. O
conseguiu escapar. Hammarskjöld chegou acordo de Kitona foi aprovado pela Assem-
em Leopoldville e encontrou uma situação bleia de Katanga dois meses depois.
totalmente inesperada: confusão e impasse Entretanto, os problemas no Congo
em Katanga, hostilidade teimosa e efetiva não foram amenizados. Durante a maior
por parte da Grã-Bretanha e, em menor parte de 1962, Adoula e Tshombe realiza-
grau, também dos governos belga e norte- ram discussões infrutíferas sobre a imple-
-americano. Ele decidiu procurar Tshom- mentação do Acordo de Kitona, que tinha
be e conversar com ele, partiu para Ndola, em Katanga, a oposição de Munongo e de
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secessionistas europeus. Tshombe, que in- assim que surgisse qualquer discrepância de
tercalava suas reuniões com Adoula com objetivos entre os membros da Organização.
visitas secretas a Welensky na Rodésia, pa- Os êxitos da ONU foram consideráveis.
recia incapaz de se decidir e acabou partin- Ela atingiu quase que imediatamente seu
do para uma estada prolongada na Europa. primeiro objetivo de fazer com que os bel-
Embora Adoula tivesse aceitado três ka- gas, que haviam retornado quando a Force
tanguenses em seu gabinete em 1963, não Publique se amotinou, saíssem (com exce-
houve qualquer reconciliação verdadeira. ção de Katanga). Sua intervenção impediu
O governo central continuava a ser pres- a ação de países individualmente, por con-
sionado por problemas de economia bem ta própria, e garantiu uma retirada em um
como de lei e ordem, e, no início de 1964, caso, o russo. Os receios de que a África se
estourou uma revolta mais séria em Kwi- tornasse um grande teatro da Guerra Fria
lu, sob a liderança de Pierre Mulele, que foram suavizados. A ONU conseguiu man-
recentemente fizera uma viagem à China. ter a economia do Congo funcionando, pro-
Essa erupção era um péssimo sinal, porque vendo serviços administrativos elementares
as tropas da ONU estavam indo embora. e impedindo fome e epidemias. Poderia re-
O último avião saiu no final de junho, no ceber o crédito por conter guerras civis no
quarto aniversário da independência. Congo que quase que certamente teriam
O balanço desses quatro anos de esfor- sido piores sem a presença da Organização
ços internacionais, por vezes cooperativo e, e se tornaram piores quando essa presença
por vezes, competitivo, não é fácil de fazer. foi removida. Por fim, quando as forças da
No início, a ONU, ao se ater à letra da lei, ONU partiram, em 1964, Katanga não ti-
desistiu de desarmar a amotinada Force Pu- nha se separado, mas ainda era, como estava
blique, uma grande fonte de contínua desor- destinada a ser, mais rica do que o restan-
dem. Houve erros e mal-entendidos no tra- te do país, economicamente tão dominante
to das relações com o legalmente nomeado que seus líderes estavam em posição de que-
ainda que pessoalmente difícil primeiro-mi- rer separar-se ou reivindicar uma posição
nistro Patrice Lumumba, e a desconfiança dominante no governo central.
resultante afetou não apenas a própria ima- A falta de autoridade do governo cen-
gem da ONU e suas operações mas também tral ficou patente imediatamente depois da
as relações entre os países da África e deles partida das forças da ONU: a guerra civil
com outros. Em Katanga, a ONU conquis- recomeçou. O governo Adoula foi inicial-
tou a hostilidade de certas potências e sofreu mente reconstituído e depois substituído
a crítica de que suas forças tinham vindo por uma nova administração, comandada
para garantir a ordem, mas tinham derra- por Tshombe, que voltou da Europa quando
mado sangue em nome da paz. Independen- a ONU foi embora. Ele tentou formar uma
temente do fato de que todas as operações coalizão ampla e recrutar o apoio da OUA,
policiais devam considerar o uso da força mas Gizenga (que, entre outros líderes, foi
como último recurso, a responsabilidade libertado da prisão) formou um novo par-
pelas ambiguidades com relação a Katanga tido de oposição, e a OUA – apesar de criar
é basicamente dos membros do Conselho uma comissão de reconciliação presidida
de Segurança, cujas instruções não tinham a por Kenyatta – não foi capaz de encontrar
precisão necessária. Além disso, uma opera- uma solução para os problemas do Congo.
ção conjunta como foi a da ONU no Congo Tshombe também ficou muito descontente
estava fadada a se deparar com dificuldades por não conseguir controlar a situação a não
POLÍTICA MUNDIAL | 557

ser pelas armas e começou, pouco depois de a independência, também assumiu a res-
seu retorno, a recrutar uma nova força de ponsabilidade. Mobutu, que tinha sido lu-
mercenários (principalmente) belgas e sul- mumbista, derrotou a revolta de Mulele, em
-africanos. Essa força teve rápido sucesso, e 1966, e, no ano seguinte, sobreviveu a uma
os rebeldes que tinham tomado Stanleyville tentativa, ajudada por mercenários, de reco-
se viram ameaçados com a perda de todos locar Tshombe no poder. Ele refez o mapa
os seus principais baluartes. Nesse meio- político, reduzindo o número de províncias
-tempo, tinham feito reféns, e, em uma ten- de 21 para 12 e, depois, para oito, e reduziu
tativa de resgatá-los, paraquedistas belgas a probabilidade de secessão nacionalizando
foram levados em aviões norte-americanos, os bens da (belga) Union Minière. Retomou
da ilha britânica de Ascension a Stanleyville, as relações com a Bélgica, que visitou em
que fora recapturada pelos rebeldes. 1969, concluiu acordos técnicos e financei-
Em torno de 200 reféns foram mortos ros e recebeu o rei balduíno em Kinshasa.
nessa operação (ou, como sustentam alguns, Embora tivesse de prender muitas pessoas
por causa dela) além dos cerca de 20 mil no processo, ele deu uma aparência de paz
congoleses que perderam a vida no frenesi e alguma perspectiva de melhoria econô-
dessa rebelião. Os africanos fora do Congo mica a um país exausto. Em 1970, tornou-
estavam divididos entre os que tomavam -se presidente por sete anos. Sentia-se forte
o rumo fácil de denunciar belgas, norte- o suficiente para dar atenção a problemas
-americanos e britânicos como imperialis- africanos mais amplos, reunindo-se com o
tas reincidentes e os que, concentrando-se presidente Ngouabi, de Congo-Brazzaville
em sua antipatia por Tshombe, defendiam o (teve início uma necessária melhora nas re-
direito do governo congolês de pedir ajuda lações entre os dois países), e também com
externa se quisesse. Tshombe, cujo convite os presidentes Kaunda e Gowon. Ele intro-
para participar de uma conferência de che- duziu civis e jovens em cargos importantes
fes de Estado da OUA no Cairo já tinha sido no governo, no lugar de Adoula, que ficou
recusado em julho, ficou de fora de uma doente, e outras figuras de alto escalão, que
conferência de países não alinhados na mes- ele demitiu. Consolidou seu poder pessoal,
ma cidade em outubro. Em sua chegada ao rebatizou o país de Zaire e trabalhou para
Cairo, ele foi escoltado a um hotel e mantido transformá-lo no Irã da África, com ele
ali até decidir voltar a Leopoldville. mesmo como xá.
Em Leopoldville e Stanleyville, os líde- Em 1977, os povos lundas do Zaire e da
res congoleses estavam divididos. A uni- vizinha Angola, organizados na Frente de
dade rebelde não sobreviveu a reveses, e a Libertação Nacional Congolesa (Front de
nomeação de Tshombe como primeiro-mi- Libération Nationale Congolaise, FLNC),
nistro por Kasavubu não gerou nenhuma revoltaram-se em Shaba (ex-Katanga). O
reconciliação verdadeira. Embora Tshombe Ocidente pressupôs que os cubanos, que
tenha obtido sucesso nas eleições de abril estavam ajudando a treinar refugiados do
de 1965, Kasavubu o demitiu pouco depois, Zaire em campos angolanos, tinham pro-
mas não conseguiu construir um novo go- movido a revolta, mas Fidel Castro jurou
verno sem ele, e, em novembro, o exército, que, pelo contrário, tentou contê-la, e não
na pessoa de Mobutu, entrou em cena, de- havia qualquer evidência para contradizê-
mitiu o presidente e estabeleceu o governo -lo. A riqueza da província – cobalto, urâ-
militar. Com essa revolução, o exército, nio, diamantes e cobre – fazia dela ponto de
que conseguiu o poder real sozinho desde preocupação do mundo exterior, e, apesar
558 | PETER CALVOCORESSI

do constrangimento de ajudar um regime não concedeu nenhuma delas. Ele aceitou


tão corrupto como o de Mobutu tinha se um sistema multipartidário, fazendo sur-
tornado, a França transportou 1.500 solda- gir centenas de partidos, dos quais propôs
dos marroquinos, em grande parte pagos legalizar três, mas eram apenas manobras.
pela Arábia Saudita, para fortalecer um A realidade era que havia dois governos
exército zairense que era amplamente con- na capital, com governadores de província
siderado inútil. que, na prática, eram procônsules indepen-
Um ano depois, aconteceu uma segun- dentes, e havia ausência de lei em todas as
da revolta. Foram mortos 130 europeus e, partes. Ao promover um primeiro-ministro
para salvar outras vidas, 700 paraquedistas depois do outro, Mobutu enfraquecia a to-
franceses e 1.700 belgas foram ao Zaire em dos, e, quando o Conselho Supremo indicou
aviões dos Estados Unidos. Tendo evacua- um novo primeiro-ministro (Etienne Tsi-
do 2.500 europeus, eles foram substituídos shekedi, que tinha sido ministro na época
por uma força africana mista recrutada em de Kasavubu), ele instalou outro. Mobutu
Marrocos, Senegal, Costa do Marfim, Togo mantinha um parlamento subserviente por
e Gabão. Essa intervenção africana deveria ter mandato já expirado. A economia conti-
ser acoplada a um esforço internacional nuava a se dissolver, os preços disparavam,
mais amplo de resgatar o Zaire da bancar- os salários não eram pagos, a educação, o
rota em que havia caído pelo colapso do transporte e outros serviços desabavam, as
preço mundial do cobre, o fechamento de fraudes aconteciam abertamente, grandes
sua principal saída ferroviária (a Benguela, quantidades de pessoas viviam com medo,
em Angola) e as malversações de Mobutu. partes do exército estavam fora de controle.
Mas a ajuda financeira do FMI e da CEE Em rebeliões graves, possivelmente incita-
dependia de reformas internas e de super- das pelo governo, lojas e fábricas, além de
visão residente do Fundo, e, como Mobutu propriedades privadas, foram saqueadas e
adiou as primeiras e desdenhou a segunda, Mobutu foi forçado à reclusão, mas não a
os planos deram em nada. Alguns segmen- deixar o cargo. Ele mantinha parte de seu
tos da economia prosperaram, mas o país exército de 50 mil membros paga, usando
acumulou imensas dívidas e foi socorrido bens e as impressoras do banco central para
pelos países ocidentais que valorizavam garantir sua lealdade e sustentar seu estilo
seus minerais e sua estabilidade superfi- imperial, mas as unidades que não eram
cial. Nas três décadas em que Mobutu go- pagas recorriam ao terrorismo e à extorsão.
vernou, a maioria dos zairenses foi ficando Parte de sua abalada imagem internacional
mais pobre e a vida do cidadão médio no se recuperou ao ajudar a mediar em Angola,
país terminava aos 40 anos, enquanto o aproveitando-se dos temores internacionais
próprio Mobutu e sua família iam ficando de mais caos, mas o câncer e a insurreição
cada vez mais prodigiosa e escancarada- explosiva no leste do Zaire o venceram. Na
mente ricos. Durante a maior parte desse distante província de Kivu, Laurent Kabila
período, Mobutu parecia irremovível, mas, manteve, desde os anos de 1960, um bailia-
em 1990, os mercados e as universidades es- do popular e ostensivamente socialista. Esse
tavam em ebulição, e uma oposição aberta domínio começou a se expandir na década
explodia de tempos em tempos, mesmo na de 1980, e, na de 1990, Kabila era um entre
capital. Graves desordens culminaram em vários líderes que buscavam uma forma de
um massacre em Lumbumbashi. Mobutu derrubar Mobutu e o suceder. Ele recebeu
prometeu mudanças constitucionais, mas um impulso quando os banyamulenges –
POLÍTICA MUNDIAL | 559

tutsis que viviam em Kivu há alguns sécu- de comandantes maiores ou menores, não
los, mas que o governo de Kinshasa queria fizeram muito para mudar a situação.
expulsar e tinha privado de cidadania em Empobrecida por Mobutu, assolada pe-
1981 – uniram-se a ele. los fugitivos dos conflitos hutu-tutsi, essa
Essa conjunção levou a uma guerra re- região outrora afluente ficou mais confusa
gional e daí ao colapso rápido de Mobutu com as políticas indecisas dos Estados Uni-
(1997 – ele morreu alguns meses depois de dos, que não tinham certeza se deveriam
sua derrota) e seu regime. Kabila chegou a ter políticas em relação à África que fossem
Kinshasa com intenções não claras, poucas além, no caos do Zaire, de calcular se Mo-
obrigações, uma série de adversários e mui- butu ou Kabila serviriam melhor aos seus
to o que esconder. Ele declarou seu desejo propósitos. Assassinado em 2001, Kabila
de instalar uma ordem democrática ao cabo foi sucedido por seu filho Joseph, que uniu
de dois anos e ofereceu cargos a outras per- forças com o filho de Mobutu, Francis, o ve-
sonalidades políticas, excluindo, contudo, terano Gizenga, e pacificou razoavelmente
Tsishekedi, que, junto com outros rivais, ele o país para realizar e vencer as eleições em
prendeu. Mas não tinha credenciais demo- 2006, e dar início à imensa tarefa de reparar
cráticas, suas próprias tropas não eram mais a desintegração do Zaire e restaurar a saúde
bem controladas do que tinham sido as de pública e a segurança pessoal básicas.
Mobutu, e ele foi responsabilizado por en-
volvimento em massacres de hutus no leste.
As divisões étnicas e políticas foram aumen- Ruanda e Burundi
tadas pela ruína da economia, e a vitória de
Kabila acelerou sua desintegração. O país As ex-colônias alemãs de Ruanda e Burun-
foi rebatizado de República Democrática di foram postas sob mandato belga depois
do Congo, mas Kabila não controlava mais da Primeira Guerra Mundial. A população
do que metade dele. Ele devia sua vitória à consistia em hutus, em tutsis, supostamen-
ajuda de Uganda e Ruanda, mas afrontou te descendentes de invasores guerreiros que
os presidentes Museveni e Bizimanga, que, chegaram no século XVI e se tornaram uma
além disso, entraram em conflito entre si: minoria governante semidivina, e em pig-
seus interesses diferiam, já que o primeiro meus twis, uma minoria distinta, mas pe-
estava principalmente preocupado em im- quena, desprezada por hutus e tutsis. Esses
pedir incursões hostis em suas fronteiras dois grupos falavam a mesma língua, casa-
e nas áreas minerais próximas, enquanto o vam-se entre si e se pareciam muito, mas se
segundo pretendia se antecipar, com vio- diferenciavam na ocupação: os hutus eram
lência generalizada, a qualquer novo ataque principalmente agricultores que plantavam
de exilados hutus a ele e à dominação tutsi bananas e outros cultivos, enquanto os tut-
de Ruanda. Contra esses aliados de primei- si criavam gado. A distinção foi aumentada
ra hora, Kabila teve ajuda do Zimbábue, de nos 80 anos de domínio colonial, quando os
Angola e da Namíbia, sem a qual ele teria tutsis foram tratados como uma casta admi-
perdido a capital a elementos amotinados nistrativa superior e nela se transformaram.
em seu próprio exército. Mas a presença Em 1959, os hutus de Ruanda se revolta-
dessas forças estrangeiras não era bem vista ram. O monarca tutsi, ou mwami, que tinha
aos olhos do povo, e elas não demonstravam subido ao poder depois da misteriosa mor-
querer ir embora de novo. Os acordos de te de seu meio-irmão, foi deposto em 1961
cessar-fogo, assinados em 1999 por dúzias e fugiu para Uganda. Foi proclamada uma
560 | PETER CALVOCORESSI

república governada por Grégoire Kayiban- Em 1964, pouco depois da indepen-


da, um hutu. Em 1962, o mandato belga foi dência, os hutus de Ruanda perpetraram
encerrado, e Ruanda e Burundi deixaram de um massacre genocida de tutsis, que fugi-
ser administrados conjuntamente, a primei- ram para Uganda. Os hutus de Ruanda se
ra se tornou uma república independente, e dividiram entre si e em relação aos tutsis:
o segundo, uma monarquia independente a divisão era em parte regional, mas tam-
(tutsi). Em ambos os países, grupos espe- bém com relação aos tutsis. O presidente
ciais – governantes, oficiais do exército, in- Kayibanda, um hutu do sul, foi derrubado
telectuais e clero – retomaram antigos pre- em 1973 e substituído pelo general Juvenal
conceitos e ódios latentes e levaram massas Habyarimana, do norte, que repeliu uma in-
de pessoas comuns inofensivas à prática de vasão tutsi a partir de Uganda em 1990, com
torturas e massacres. ajuda francesa, ao preço de aceitar compar-
No Burundi, os tutsis que governavam tilhar o poder com tutsis. Para sustentar-se
foram cruelmente atacados pelos hutus em contra hutus rivais, que não confiavam em
1965, e a monarquia foi derrubada um ano suas atitudes, ele criou um movimento hutu
mais tarde, mas os tutsis permaneceram jovem que se tornou uma força sinistra, re-
no poder até 1972, quando os hutus subi- cebendo armas do governo e incitada pelo
ram novamente, muitos tutsis foram mas- rádio a massacrar tutsis e os hutus mais mo-
sacrados, e cerca de 200 mil fugiram para derados. Os primeiros eram considerados
a Tanzânia. Em 1987, um novo presidente, por muitos hutus como uma quinta coluna,
Pierre Buyoya, deu aos hutus uma pequena pronta para se juntar aos exilados tutsis em
maioria em seu gabinete e o posto de pri- Uganda para exterminar os hutus, mas, em
meiro-ministro. Ele arriscou a hostilidade 1993, Habyarimana, em grande parte como
dos tutsis (meros 16% da população), que resposta a pressões estrangeiras, concordou
temiam que as concessões fossem o começo com uma conferência em Arusha, na Tanzâ-
de um desastre, e dos hutus, que chamavam nia (implementando um acordo anterior em
o primeiro-ministro hutu de colaborador, Kinshasa, no Zaire) para criar um governo
mas ele sobreviveu a atentados contra a sua binacional. Esse acordo alienou e alarmou
vida e a uma invasão a partir da Tanzânia, os hutus que queriam um Estado puramen-
e foi sucedido, em 1993, por um hutu, Mel- te hutu e não se sentiriam seguros com algo
chior Ndadye. Ndadye foi morto por oficiais diferente. Consequentemente, Habyarimana
tutsis, e seu sucessor morreu no ataque que vacilou até ser ameaçado com sanções eco-
matou o presidente ruandês Juvenal Habya- nômicas pelo Banco Mundial e pelo FMI.
rimana (ver a seguir). Em 1994, o exército Em 1994, voltando de uma conferência
tutsi do Burundi eclipsou o governo civil e, em Dar-es-Salaam, ele foi morto, junto com
pelo menos, tolerou massacres dispersos. Os seu colega presidente do Burundi, quando
hutus foram amontoados em campos cha- seu avião foi destruído ao pousar na capital.
mados de aldeias, dos quais alguns saíam à Esse era o sinal para a invasão de exi-
noite para se vingar. Buyoya foi reinstalado lados tutsis que estavam no Burundi. Meio
em 1997, mas o país estava em um estado milhão de hutus foram horrivelmente mas-
quase submerso de guerra étnica. Em 2003, sacrados e uma quantidade duas ou três
foi concebido um acordo de compartilha- vezes maior fugiu para países vizinhos,
mento de poder: hutus e tutsis ocupavam as principalmente o Zaire. As tentativas inter-
cadeiras da câmara baixa do parlamento na nacionais de proteger os refugiados eram
proporção de 60-40 e no senado, 50-50. frustradas pela recusa dos governos (com
POLÍTICA MUNDIAL | 561

exceção do francês) de proporcionar forças foram os casos mais claros de genocídio


ou fundos para ajudar os países africanos desde a adoção, em 1948, da Convenção so-
dispostos a intervir. A tentativa francesa de bre o Genocídio – com a possível exceção
socorrer refugiados no canto sudoeste de das campanhas na Guatemala contra seus
Ruanda foi interrompida quando a força povos indígenas.
envolvida, relativamente pequena, passou
a sofrer ameaça militar. Agências civis de
socorro não conseguiam convencer os refu- África Centro-Ocidental
giados que estavam nos campos localizados
nas fronteiras de Ruanda com Zaire, Burun- Entre a Nigéria e o Congo, estão concen-
di e Tanzânia a retornar a suas casas e suas trados territórios menores. Em Camarões –
lavouras, que ficaram sem serem cuidadas, onde moram dois terços da população des-
já que esses campos continham não apenas ses territórios e local de tensões linguísticas
um milhão ou mais de refugiados destituí- relativamente bem resolvidas –, a França
dos mas também hutus armados e vinga- interveio para sustentar o governo amigo de
tivos cuja única perspectiva era lutar para Ahmadu Ahidjo contra uma revolta cujas
voltar ao poder mobilizando , à mão arma- causas eram principalmente econômicas.
da, os refugiados indefesos contra os tutsis. Ahidjo renunciou de repente em 1982, sen-
A ONU e outras agências tiveram de optar do sucedido por Paul Biya, que se revelou
entre abandonar os refugiados que morriam decepcionantemente ineficaz. Fortes quedas
aos milhares ou continuar o fornecimento nos preços dos principais produtos de ex-
de alimentos, sabendo que as gangues que portação de Camarões – café, cacau, algo-
dominavam os campos se apropriariam dão – geraram uma dívida destrutiva, dei-
deles. Uma tentativa do novo governo tut- xaram servidores públicos sem pagamento,
si de convencer os refugiados a voltarem incentivaram a corrupção e o contrabando,
para casa, nomeando como novo primeiro- obrigaram a um recurso ao FMI e à auste-
-ministro o hutu Pasteur Bizimanga, não foi ridade, e estimularam brigas políticas que
capaz de dar as garantias necessárias. Em Biya não conseguiu dominar.
Ruanda, os tutsis, tendo sofrido, talvez, um Ele se recusou a nomear um primeiro-
milhão de mortes por violência, tornaram- -ministro até ser forçado. Sua vitória nas
-se uma minoria ainda menor, mais dis- eleições de 1992 foi estreita e suspeita, e ele
posta ao combate, mais vulnerável e mais foi reeleito presidente depois de adiar as
intransigente. Depois de um ano, o governo eleições enquanto os adversários brigavam
do Zaire decidiu forçar os indesejáveis hutus pela escolha de um único candidato. Foi re-
acampados a sairem de seu território, mas a eleito mais uma vez em 1997, quando uma
maioria preferiu fugir mais para o interior equipe de observação da Commonwealth
do país, onde eles se viram entre as forças fez um relatório criticando as fraudes eleito-
anti-Mobutu de Kabila e o medo de voltar rais (Camarões entrou para a Commonwe-
para casa. Em 1996, as unidades banyamu- alth em 1994). Os repetidos êxitos de Biya
lenges atacaram cerca de 40 campos de re- refletiam sua popularidade nas regiões ao
fugiados no Zaire, matando ou dispersando norte do país, de população mais densa. Ele
os ocupantes, e a maioria dos sobreviventes conquistou um quarto mandato sucessivo
foi empurrada de volta para Ruanda ou Bu- em 2002.
rundi, onde sua presença trouxe de volta as No Gabão, as esperanças se transforma-
matanças. Os massacres dos anos de 1990 ram em desilusão. Potencialmente um dos
562 | PETER CALVOCORESSI

países mais ricos da África, foi governado cidades, exacerbou conflitos étnicos e au-
pelos presidentes Leon M’Ba (deposto em mentou as importações e a dívida externa.
1963, mas restaurado por tropas francesas) Quando o exército se recusou a conter re-
e Albert Bongo, que mudou seu nome para beliões, em 1985, o presidente só se salvou
Omar depois da conversão ao Islã, em 1973, com o uso da guarda presidencial, e, seis
e completou a transição do país para um anos depois, ele perdeu importância, embo-
Estado de partido único. Apesar da riqueza ra escapasse de sofrer represálias, e mante-
natural que incluía um quarto do estoque ve sua posição e alguns de seus poderes. As
mundial de manganês, o Gabão foi atingido eleições de 1992, locais e depois presiden-
por uma crise econômica nos anos de 1970 cial, levaram à instalação de Pascal Loussa-
e de 1980, de forma que o governo teve de ba como presidente, mas Nguesso recupe-
impor uma taxa sobre salários e rolar os pa- rou o poder, em 1997, depois de combates
gamentos de sua dívida externa como única violentos nos quais teve apoio do presidente
forma de evitar o não pagamento. Graves Bongo (seu sogro), do Gabão, e de outros vi-
rebeliões, em 1990, forçaram Bongo a intro- zinhos, bem como de empresas petrolíferas
duzir um sistema multipartidário mais rápi- norte-americanas e francesas.
do do que ele queria. Depois de eleições nas As tropas francesas foram retiradas na-
quais o Partido Democrata Gabonês (Parti quele ano, e Sassou-Nguesso se tornou um
Democrate Gabonais, PDG) superou con- sobrevivente.
fortavelmente seus desafiantes, ele formou Na República Centro-Africana, que
um novo governo de seis partidos, com o não tinha saída para o mar, um golpe do
PDG mantendo os principais ministérios, coronel Jean-Bedel Bokassa, semelhan-
mas com minoria de lugares no gabinete, e te em suas origens aos golpes militares
ele próprio foi reeleito presidente em 1993 – de Burkina Faso, Benim e Níger, levou a
por ínfima margem e contra um desafiante monstruosidades quando o coronel se de-
apoiado por Camarões. clarou imperador e assumiu níveis insanos
Em Congo-Brazzaville, o primeiro pre- de ostentação e crueldade. A França, depois
sidente, Fulbert Yalou, foi derrubado por de ser constrangidamente associada a uma
uma revolução, com a França se recusando das tiranias mais indecentes da época, aju-
a intervir em uma situação que reconhecia dou a derrubá-la em 1979. Uma tentativa
como de indignação popular bem funda- de Bokassa de retornar fracassou em 1983,
mentada. Alphonse Massemba-Debat, e e, depois de um curto período de transição,
depois Marien Ngouabi, levaram o país para André Kolongba, dependente e parente do
a esquerda, mas o segundo foi assassinado presidente Mobutu, governou por 12 anos.
em 1997, e o primeiro, executado pouco de- Ele resistiu à tendência a um Estado mul-
pois. Denis Sassou-Nguesso (presidente de tipartidário enquanto pôde, recebeu ajuda
1979 a 1992) do Partido Congolês do Tra- do Iraque até a Guerra do Golfo de 1991,
balho (Parti Congolais du Travail) manteve substituiu-a apenas parcialmente por aju-
os partidos pró-chinês e pró-russo contidos, da de Taiwan e, mais importante, perdeu
mas não totalmente fora de ação. Seu mal os favores da França, que ainda tinha (até
planejado uso das verbas públicas e despe- 1999) 3.500 soldados no país. Incapaz de
sas extravagantes em projetos de pouco mé- adiar mais as eleições, Kolongba foi elimi-
rito, coincidindo com quedas na produção e nado no primeiro turno, tentou cancelar o
no preço do petróleo, debilitou a economia, segundo, mas foi substituído em 1992 por
incentivou um fluxo autodestrutivo para as André-Félix Patasse (reeleito em 1999). Ele
POLÍTICA MUNDIAL | 563

perdeu o poder e (em 2002) seu cargo para outros lugares fracassou. Os conspiradores
François Bozizé, que prometia um governo pretendiam tomar o país e instalar um go-
democrático civil. verno subserviente, na expectativa de altos
A ilha espanhola de Fernando Pó, na ganhos financeiros com seus supostos re-
Baía de Biafra – rebatizada Ilha Macias cursos naturais.
Nguema – junto com Rio Muni, um enclave As Ilhas de São Tomé e Príncipe, a 320
no Gabão, tornou-se o Estado independen- km a oeste do Gabão, no Golfo da Guiné,
te da Guiné Equatorial, em 1968, e, pouco que foram vistas pela primeira vez pelos
tempo depois, uma autocracia caracterizada portugueses no século XV, tornaram-se
por calamidade econômica e assassinatos independentes em 1975 e avançaram na
em massa. O presidente Obiang Nguema, mesma direção democrática quando o pre-
que substituiu Francisco Macias Nguema sidente Aristide Pereira foi derrotado nas
em 1979 e dependia, para sua proteção, de eleições de 1991 por Antonio Mascarenhas
seus guardas marroquinos, não representou Monteiro; mas foram tomadas por desem-
grande avanço em relação a seu predeces- prego, inflação e dívida externa crescentes.
sor, mas foi forçado, na década de 1990, a Um golpe por parte de oficiais de patente in-
estabelecer uma ordem multipartidária. Em ferior, em 1995, contra o presidente Miguel
2004, uma trama envolvendo piratas autô- Trovoada fracassou apesar da complacência
nomos da África do Sul, Grã-Bretanha e de do primeiro-ministro Carlos da Graça.
24 África Oriental

Sudão e buscava ajuda no Egito para expulsar


os britânicos. Essa linha antibritânica foi
A história do Sudão nos tempos modernos intensificada durante a Segunda Guerra
é uma alternância entre sujeição e autogo- Mundial, quando nacionalistas levanta-
verno. De 1820 a 1881, foi parte do Impé- ram a questão da situação do país depois
rio Otomano e, na prática, de seu paxalato da guerra e receberam respostas contrá-
egípcio autônomo. De 1881 a 1898, foi go- rias dos britânicos, que estavam ocupados
vernado pelo mádi Muhammad Ahmad com a realidade presente e premente das
Abdullah (morto em 1885) e seus sucesso- campanhas contra os italianos na Etiópia e
res. De 1899 a 1955, estava, em teoria, sob contra os alemães no norte da África. Os
domínio anglo-egípcio e, na prática, sujeito egípcios viram oportunidades nessa situa-
à Grã-Bretanha. Em 1956, tornou-se um ção e apoiaram a formação, por Azhari,
Estado independente e, depois, membro da do Partido Ashigga, que visava à união do
Liga Árabe e da ONU. Sudão com o Egito. Ele tinha o apoio de
O condomínio anglo-egípcio não refle- Ali el-Mirghani, um dos dois principais
tia nenhum acordo anglo-egípcio sobre o líderes religiosos do Sudão. Como respos-
Sudão. As potências administradoras con- ta direta, foi criado o Partido Umma para
cordavam em poucas coisas e não faziam trabalhar pela independência do Sudão,
esforços para trabalharem juntas. Depois sob a liderança do outro principal líder re-
do tratado anglo-egípcio de 1936, os bri- ligioso sudanês, Abd al-Rahman al-Mahdi,
tânicos permitiram um grau maior de pe- o filho póstumo do famoso mádi. O Parti-
netração egípcia, mas, embora tenha sido do Umma era suspeito de sonhar com um
cobiçado por governos egípcios, o Sudão ressurgimento da monarquia madista, com
atraía poucos administradores do Egito. ajuda britânica.
O nacionalismo sudanês ganhou força na O conflito entre Grã-Bretanha e Egito,
década de 1930, sob a liderança de Ismail que existia independentemente do Sudão,
al-Azhari, que se tornou secretário do Con- foi intensificado por essas ações, e, quando
gresso Geral dos Diplomados (Graduates os administradores britânicos deram um
General Congress), formado em 1938. De- passo em direção ao autogoverno suda-
vido ao papel ativo da Grã-Bretanha e ao nês ao criar um conselho consultivo para o
comparativamente negativo papel do Egi- norte do país, o primeiro-ministro egípcio,
to, o nacionalismo sudanês foi, em princí- Mustafá al-Nahhas Pasha, fez renascer a pa-
pio, mais antibritânico do que antiegípcio lavra de ordem da unidade do Vale do Nilo.
POLÍTICA MUNDIAL | 565

o
Rio Nil
Cartum
Asmara ER
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SUDÃO DJIBUTI Djibuti

Addis Abeba

E T I Ó P I A

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Victoria
RUANDA

BURUNDI OCEANO ÍNDICO


Mombassa
T A N Z Â N I A
Zanzibar
Dar-el-Salam

Majunga
Ihas
Comoros

Tananarive
AR
SC
GA

0 150 300 km
DA

0 75 150 milhas
MA

Figura 24.1 O Chifre e o Leste África.


566 | PETER CALVOCORESSI

Os britânicos desagradaram o norte e o que isso produziria uma unificação dos dois
sul do Sudão ao deixar o sul fora dos no- países, mas a Grã-Bretanha e o Egito ainda
vos conselhos. A região se sentiu afrontada, não conseguiam chegar a um acordo sobre
ao passo que o norte suspeitava de um pla- as mudanças constitucionais imediatas, e,
no britânico para anexá-lo a Uganda. Esse em 1948, os britânicos introduziram uma
conflito, que levaria a graves combates às nova Constituição sem a anuência do Egito.
vésperas da independência, era religioso, Foram estabelecidos conselhos legislativos
racial e econômico. O sul era formado pe- e executivos cobrindo todo o Sudão, mas
las três províncias de Bahr al-Ghazal, Alto as eleições para eles foram boicotadas pelos
Nilo e Equatoria, com uma população de partidos pró-egípcios. Depois de manifesta-
mais de 3 milhões, em um total de 10 mi- ções antibritânicas, Azhari foi preso. O Egi-
lhões. Essas províncias, que faziam frontei- to, nessa época, estava envolvido na guerra
ra com cinco países africanos (a República árabe-israelense e seu desenlace imediato.
Centro-Africana, Congo, Uganda, Quênia Em 1951, o governador britânico no-
e Etiópia) se inspiravam em seus vizinhos meou uma comissão para discutir mais
africanos e não no mundo árabe. Os habi- avanços constitucionais. O Sudão avançava
tantes, embora incluíssem cerca de 40% de a passos largos em direção ao autogoverno
muçulmanos africanos, eram predominan- e à autodeterminação, e o Egito, consequen-
temente negroides e pagãos; algumas tribos temente, concretizou uma ameaça feita em
continuavam a apresentar a fraqueza infli- 1950 de cancelar o acordo de condomínio de
gida por escravistas do norte que retiraram 1899 e o tratado anglo-egípcio de 1936. O rei
sistematicamente os melhores homens e Farouk foi declarado rei do Egito e do Sudão,
mulheres; a pobreza do sul era pior do que mas, em 1952, como resultado da revolução
a do norte. Depois da guerra, os britânicos, no Egito, deixou de ser rei de ambos.
que tinham sido acusados, no passado, de Alguns meses antes, a Grã-Bretanha
acentuar a divisão entre norte e sul, adota- tinha apresentado um estatuto de autogo-
ram uma política de unificação, mas, em verno para o Sudão, que o novo governo
1946, foi realizada uma conferência sem egípcio, cujo chefe, o general Neguib, era
representantes do sul, o que deu à região metade sudanês, aceitou com certas modi-
razões para se queixar de que a unificação ficações que reduziram os poderes especiais
significava, na verdade, subordinação. Em do governador no sul. Todos os principais
outra conferência, em Juba, em 1947, os partidos sudaneses emitiram declarações
nortistas afirmaram que o sul tinha con- pró-egípcias, e o estatuto emendado foi cor-
cordado com a unificação, ao passo que os porificado em um acordo de 1953, voltado a
sulistas negavam essa interpretação e conti- levar à independência, no máximo, em 1961.
nuavam a demandar separação do norte ou As eleições, precedidas por forte cam-
uma federação com garantias. panha egípcia, foram realizadas no final
Essa disputa interna era obscurecida de 1953 e deram uma vitória arrasadora ao
em parte pela disputa maior entre Egito, partido reformado de Azhari, agora chama-
que insistia na unidade do Vale do Nilo, e do de Partido Unionista Nacional (National
a Grã-Bretanha, que insistia no direito do Unionist Party). Azhari se tornou primeiro-
Sudão decidir por si depois de um período -ministro em 1954; Neguib perdeu sua posi-
de autogoverno sob a égide britânica. Em ção no Egito no mesmo ano.
1947, o Egito aceitou o princípio de autode- Em 1955, às vésperas da independência,
terminação acreditando equivocadamente o sul explodiu, afrontado pela distribuição
POLÍTICA MUNDIAL | 567

de cargos do novo governo e pela rejeição, sul se deteriorou drasticamente. O governo


por seu presidente, da demanda do direito sudanês aplicou uma política de arabiza-
à secessão ou à autonomia em um sistema ção e via com suspeição os missionários
federal que não fosse rígido. Um segmento cristãos estrangeiros, que suspeitava serem
do exército que se voltou contra seu oficial agentes de uma política ocidental de sepa-
árabe desencadeou a violência que se espa- ratismo. A Lei das Sociedades Missionárias
lhou rapidamente e só foi controlada quan- de 1962 limitou suas atividades e induziu
do o primeiro-ministro invocou a ajuda do uma quantidade deles a ir embora; os 300
governador britânico e deslocou para o sul sobreviventes foram expulsos em 1964, de-
forças consideráveis do norte. O sul, sub- pois da retomada total da insurreição pelo
metendo-se, afirmava que o tinha feito con- movimento separatista Anya Nya, e trouxe-
fiando na mediação britânica e tinha sido ram com eles para o mundo exterior relatos
decepcionado posteriormente. A repressão de grandes massacres por tropas do gover-
foi geral e brutal. Os sulistas foram execu- no. Em 1964, o regime militar do general
tados às centenas e deportados para o norte Abboud foi derrubado e, depois de algumas
aos milhares, e fugiram para territórios ára- semanas, durante as quais governou em
bes vizinhos às dezenas de milhares. O sul conjunto com uma administração civil, ele
se tornou uma área fechada onde era difícil renunciou. Ser el-Khatim Khalifa formou
obter informação confiável e emanavam re- uma coalizão transitória de intelectuais e
latos pavorosos. políticos ressurgidos que foi substituída,
A revolta acelerou a independência, que no início de 1965, por uma coalizão nor-
chegou no primeiro dia de 1956 e foi seguida mal de políticos na qual o Partido Umma
da desagregação do partido de Azhari, uma tinha a maior voz. Um sulista, Clement
coalizão liderada por ele e, depois, uma coa- Ngoro, ocupava o ministério do interior e
lizão sem ele. Formaram-se novos partidos. aconteceram negociações norte-sul tanto
Abdullah Khalil, que sucedeu Azhari em no Sudão quando em Nairobi, com alguns
1956, enfrentou dois anos de problemas eco- importantes exilados sulistas.
nômicos (aliviados por um acordo de ajuda Uma outra conferência planejada para
com os Estados Unidos em 1958) e temores fevereiro, em Juba, foi adiada devido a uma
renovados em relação ao Egito. Em 1958, os recusa do Anya Nya a se render de antemão,
egípcios enviaram soldados para duas áreas mas as discussões foram retomadas em Car-
disputadas na fronteira sudanês-libanesa, tum, em março. Com o sul demandando
mas essa demonstração desprovida de tato uma Constituição federal e os políticos do
se refletiu no Cairo nas eleições do mesmo norte investindo contra tramas separatistas,
ano, que deram ao Partido Umma o maior pouco se conseguiu. A luta continuou e a
número de cadeiras. Não obstante, Khalil opinião sulista se afastou cada vez mais da
tinha medo de uma aliança entre Azhari e federação e se aproximou da independên-
Nasser, e era suspeito de envolvimento em cia, com ambos os lados buscando apoio de
um golpe do exército pelo qual ele e seu go- países vizinhos. O governo sudanês se esfor-
verno, e mais a Constituição, foram todos çava para melhorar as relações com Etiópia,
varridos. O general Ibrahim Abboud assu- Uganda e República Centro-Africana, e a
miu o poder com um conselho superior de União Nacional Africana Sudanesa (Suda-
oficiais. nese African National Union) apelou à opi-
O governo militar durou seis anos, du- nião africana por meio da OUA e seu Comi-
rante os quais a situação nas províncias do tê de Libertação em Dar-es-Salaam.
568 | PETER CALVOCORESSI

Em 1969, um grupo de oficiais militares impondo e implementando violentamen-


liderados pelo general Gaafar Muhammad te leis e punições islâmicas, chamando a si
Nimeiry tomou o poder e estabeleceu um mesmo de imã (embora um terço de seus
governo mais esquerdista e pró-egípcio. A concidadãos não fossem muçulmanos) e
coincidência de grupos semelhantes na So- fazendo valiosas concessões a sauditas e
mália e na Líbia deu surgimento a projetos outros magnatas. Sadiq al-Mahdi se opôs à
vagos de uma união de todos esses países severidade da aplicação da xariá e foi colo-
com o Egito e da criação de um bloco árabe cado na prisão em 1983, mas libertado no
de países no nordeste da África. Esse plano ano seguinte. Em 1985, cerca de um terço da
foi ampliado para atrair o Iêmen do Sul e população passava fome, a má administra-
a Síria, ligando-o com a defunta união de ção havia paralisado os serviços públicos e
1958 com o Egito como fator comum fun- as obras básicas (irrigação, por exemplo), e a
damental, mas esses esquemas deram em política especial de segurança era merecida-
nada. No Sudão, eles foram atacados como mente detestada, o serviço da dívida externa
sendo desvios dos problemas domésticos excedia o valor das exportações, os emprés-
mais urgentes, principalmente a guerra civil timos estrangeiros só poderiam ser obtidos
no sul. Nimeiry sobreviveu a uma série de a custo desastroso, o sul estava em armas
atentados para derrubá-lo, que foram pelo mais uma vez contra Cartum e, para todos
menos ajudados, se não instigados, pela Lí- os propósitos, autônomo.
bia e pela Etiópia. Em 1977, o Sudão chegou Em abril, Nimeiry, em visita aos Estados
perto de entrar em guerra com a Etiópia Unidos, foi deposto pelo exército depois do
como resultado da ajuda que estava dan- que era uma greve por parte dos profissio-
do à revolta eritreia contra Addis Abeba. nais liberais – um golpe preventivo dos mili-
Em casa, uma reconciliação entre Nimeiry tares para evitar ações mais radicais,
e seu principal adversário, Sadiq al-Mahdi, O governo militar que o sucedeu mos-
marcada pela eleição do segundo como trou ser apenas uma parada intermediária
vice-presidente da União Socialista Suda- enquanto os partidos políticos tradicionais
nesa (Sudanese Socialist Union), trouxe os discutiam uma coalizão civil com al-Mahdi
muçulmanos fundamentalistas para dentro de primeiro-ministro, mas ele, fraco e instá-
do governo e, assim, dividiu a Irmandade vel, deu sorte ao azar ao adotar (contrarian-
Muçulmana entre os que estavam dispostos do sua retórica de campanha) políticas fun-
a compartilhar o poder e outros, que insis- damentalistas islâmicas e rompeu com seus
tiam no governo teocrático amplo. A coali- aliados do Partido Democrático Unionista
zão se desagregou em 1979. por não conseguir pôr fim – ou não tentar o
Durante os primeiros anos da década de suficiente – na guerra no sul, sendo acusado
1980, a queda de Nimeiry era prevista com de sabotar ações pela paz. O PDU deixou o
segurança. Seus problemas no sul ressurgi- governo em 1988, e ele passou a depender
ram, a economia ia de mal a pior, estudantes da Frente Islâmica Nacional (National Isla-
e outros descontentes se manifestavam con- mic Front, NIF). O exército temia ser derro-
tra ele, seus fornecedores – principalmente a tado no sul, estava impaciente com suas va-
Arábia Saudita e os Estados Unidos – come- cilações e com medo do colapso econômico.
çaram a se perguntar se não estariam me- A guerra, retomada em 1983, custou pelo
lhor sem ele, e suas fronteiras eram atraves- menos meio milhão de mortos e 1,5 milhão
sadas por hordas de refugiados destituídos e de refugiados. A dívida externa aumenta-
famintos da Etiópia e do Chade. Ele reagiu ram para 7 bilhões de dólares, discussões
POLÍTICA MUNDIAL | 569

com o FMI foram rompidas, as rebeliões por cados – em retaliação por ataques às embai-
alimentos se tornaram frequentes. Em 1989, xadas norte-americanas em outros lugares
o exército retomou o poder explícito com o da África Oriental por militantes islâmicos
general Omar al-Bashir, um islamista mais anti-norte-americanos. George W. Bush for-
circunspecto, mas não menos convicto do taleceu as sanções econômicas dos Estados
que seu antecessor; o exército, a essas altu- Unidos, e, em 2005 a guerra entre o sul e
ras, tinha se tornado permeado pela NIF, e o norte foi declarada encerrada. Garang se
al-Bashir era um testa de ferro mascarando tornou vice-presidente do Sudão. As mortes
o poder de Hassan al-Turabi, líder da NIF, foram avaliadas em 1,5 milhão. O status e a
que conseguiu demandar para si e para seu disposição do sul continuaram incertos. A
Partido um perverso monopólio da ortodo- fronteira entre norte e sul ficou indefinida,
xia islâmica. Além de seu apelo aos oficiais assim como as fronteiras entre o Sudão e
do exército, a NIF tinha conquistado adep- seus vizinhos quenianos e ugandenses.
tos entre empresários e funcionários públi-
cos como reação à enorme incompetência
e à corrupção ultrajante dos governos ante- Darfur
riores, mas não conseguiu conter a inflação,
atrair investimento estrangeiro nem parar a Situada entre o Sudão e o Chade, Darfur – a
guerra no sul – apesar de a região continuar terra dos furs – era, no século XVII, o Esta-
dividida sobre aceitar ou não qualquer coisa do sucessor de uma série de países indepen-
que não fosse a independência total e uma dentes e prósperos, que, no início do século
divisão entre a facção (principalmente nuer) XX foram absorvidos pelo Sudão.
liderada por Riak Machar e as forças (prin- Com a independência do Sudão em
cipalmente dinkas) do Exército de Liber- 1956, Darfur envolveu-se tangencialmen-
tação do Povo Sudanês (Sudanese People’s te em guerras civis norte-sul (1956-1972)
Liberation Army) de John Garang. O go- e ainda era um lugar de inquietação quan-
verno em Cartum era amplamente criticado do elas terminaram, pois também estava
por sua condução da guerra, afastou ainda envolvida no conflito entre Chade e Líbia.
mais o Egito e a Etiópia por sua cumplicida- Quando o general al-Bashir tomou o po-
de em um atentado para matar o presidente der no Sudão, o novo governo em Cartum
Mubarak em Addis Abeba, em 1995, e pre- engajou-se na guerra em Darfur em nome
judicou suas relações com a Arábia Saudita do Islã e com armas fornecidas pela China.
por suas simpatias pelo Iraque. Ele se livrou Os Estados Unidos estavam preocupados
das armadilhas militares em 1993, conver- com esses levantes que coincidiram com os
tendo al-Bashir e outros em civis, mas dei- ataques da Al-Qaeda às embaixadas norte-
xando o papel de al-Turabi inalterado (mas -americanas no Quênia e na Tanzânia. O
prejudicado por um acidente). Essa parceria governo sudanês tentava ocultar suas ope-
começou a fazer água: a guerra, a seca e a rações aparentemente genocidas agindo por
obstrução dos serviços de ajuda interna- meio de milícias semi-independentes, os
cional por parte de Cartum criaram uma janjaweeds, mas os relatos de atrocidades
maré crescente de fome e uma calamidade se tornaram tão horripilantes que a União
humanitária impressionante até mesmo nos Africana (UA) foi convencida a enviar uma
registros da África Oriental. A própria Car- força, aceita com relutância por Cartum,
tum foi atacada pelos Estados Unidos, que para aliviar a situação. Entretanto, essa força
destruíram alvos – provavelmente equivo- era pequena demais para ser eficaz, de for-
570 | PETER CALVOCORESSI

ma que o Conselho de Segurança da ONU à frente dos seus vassalos proprietários de


se sentiu obrigado a proporcionar uma força terras e religiosos ricos que eram as pessoas
de paz internacional de 20 mil membros. As mais eminentes e poderosas em seu reino.
mortes em Darfur aumentaram para várias Uma tentativa de golpe, no final de 1960,
centenas de milhares, com um número mui- seguida de motins no exército, em mar-
tas vezes maior de desabrigados, famintos ço de 1961, e uma suposta conspiração em
ou pessoas sem água e horrorizadas demais agosto daquele ano, revelou a existência de
para voltar para casa, mesmo se pudessem, descontentamentos entre jovens educados
e vários grupos entre os furs estavam lutan- e oficiais de patente inferior, que viam no
do entre si. Enquanto alguns fugiam em di- príncipe Asfa Wossen uma possibilidade
reção ao oeste, para o Chade, o presidente de um progresso mais vigoroso, mas o im-
Deby pedia ajuda internacional, insistindo perador restabeleceu seu controle com uma
em que ela não deveria vir da UA nem da facilidade impressionante e deu continuida-
ONU, mas da UE, onde ele poderia ter cer- de à sua política de avanços internos lentos.
teza da presença simpática da França. Um Ele também cultivava boas relações com os
acordo de paz, concluído em 2007, foi um países que surgiam na África (talvez como
primeiro passo em direção à salvação das garantia contra hostilidades dos muçulma-
vítimas sobreviventes, mas apenas parcial- nos tradicionais contra sua base de poder
mente eficaz, já que forças predadoras se predominantemente cristã); em 1958, sua
dividiram em fragmentos, dos quais muitos capital se tornou a sede da Comissão Eco-
não podiam ser incluídos em acordos for- nômica das Nações Unidas para a África e,
mais. As condições nos chamados campos em 1963, a Organização de Unidade Africa-
continuavam brutais e tão perigosas que na surgiu ali.
muitas organizações de ajuda foram força- Para essas duas Organizações, o impe-
das a abandonar seu trabalho. O Tribunal rador construiu sedes espaçosas.
Penal Internacional decidiu indiciar o pre- A principal preocupação externa da
sidente al-Bashir. Etiópia era com seus vizinhos somalis, não
bantos, que, diferentemente dos etíopes,
foram não apenas conquistados pelos euro-
O Chifre peus no século XIX, mas também divididos
entre eles. Os somalis, muçulmanos mas
O antigo reino da Etiópia, um amálgama não árabes, surgiram no Chifre da África
de raças, línguas e religiões, manteve sua próximo ao final da Idade Média europeia
independência, até mesmo no século XIX e depois se juntaram aos ataques muçulma-
e depois disso, uma certa imunidade em nos contra o reino cristão da Etiópia. Eles
relação às tendências modernizantes que foram conquistados na segunda metade
geralmente acompanham o colonialismo do século XIX, primeiro pelos franceses
e os movimentos anticoloniais. Dominado na década de 1860 e depois pelos britâni-
durante apenas cinco anos no século XX cos e pelos italianos (que também tomaram
(1936-1941), retomou seu estilo de vida a Eritreia – assim batizada pelos italianos
reverenciado sob o governo de seu astuto naquele século – que flanqueava o Mar
monarca Haile Selassie, que tinha subido Vermelho ao norte da Etiópia) na década
ao trono pela primeira vez em 1930, aos 38 de 1880. A colônia britânica do Quênia se
anos. O imperador era um cauteloso inova- estendia ao norte sobre uma área predomi-
dor cujas tendências reformistas estavam nantemente somali, e a Etiópia se apropriou
POLÍTICA MUNDIAL | 571

do território de sua província de Ogaden, Na conferência realizada na Lancaster


que muitos somalis reivindicavam. As rela- House sobre o Quênia, em 1962, os soma-
ções entre a Etiópia e os somalis, portanto, lis pediram, sem sucesso, um plebiscito no
eram inerentemente ruins, e as relações bri- Distrito da Fronteira Norte do Quênia (uma
tânicas com ambos, desconfortáveis, já que área de mais de 260.000 km2) e sua união
os etíopes desconfiavam que a Grã-Breta- com a Somália. No mesmo ano, políticos
nha favorecia as reivindicações dos somalis quenianos discutiram com os somalis uma
contra a Etiópia, enquanto estes considera- Federação da África Oriental que incluiria
vam os britânicos contrários a suas reivin- não apenas a Somália e os territórios britâ-
dicações contra o Quênia. nicos nessa região mas também a Etiópia;
Em 1935, insatisfeitos com a esterili- no caso de isso acontecer, os quenianos dei-
dade de sua parte na Somalilândia e seus xaram muito claro que pretendiam manter
resultados imperiais em geral, exploraram todo o Distrito da Fronteira Norte para si.
um incidente em Wal Wal, na disputada Em dezembro, uma comissão de fronteiras
Ogaden, para conquistar a Etiópia. Suspei- recomendou que o distrito fosse dividido
tava-se que eles cogitassem a ideia de uma em regiões, a ser, ambas, incluídas no novo
Grande Somália que anexasse a Somali- Estado queniano.
lândia Britânica, mas sua derrota para bri- Essa recomendação, que foi aceita pelo
tânicos, em 1941, fez ressurgir o Império governo britânico, gerou rebeliões e uma
Etíope independente (ao qual a Eritreia foi ruptura de relações diplomáticas por par-
acrescentada em 1952, depois de um pe- te da Somália. O Quênia conseguiu trazer
ríodo de administração britânica) e deixou para o seu lado outros países africanos, e a
os somalis subjugados e divididos. No final delegação queniana se retirou de uma con-
da guerra, Ernest Bevin propôs uma grande ferência afro-asiática em Moshi, Tanganica,
Somália formada pela Somalilândia Britâ- em 1963, quando os somalis levantaram a
nica e Italiana e partes da Etiópia, mas essa questão da fronteira. Em uma outra con-
noção contrariava a Etiópia sem beneficiar ferência, em Addis Abeba, vários africanos
os somalis. As discussões sobre a fronteira repreenderam os somalis por levantar mais
etíope-somali avançaram lentamente até uma vez a questão.
1959, quando uma conferência em Oslo, Muitos somalis não aceitavam o trata-
com Trygve Lie como árbitro, apresentou do de 1897, pelo qual os britânicos cediam
um acordo que não agradava ninguém. Em parte da Somalilândia Britânica à Etiópia.
1960, a Somalilândia Italiana, à qual os ita- Entre a Somalilândia Italiana e a Etiópia,
lianos tinham voltado em 1950 para admi- não havia fronteira definida. Na indepen-
nistrar um mandato de 10 anos, tornou-se dência, os somalis deixaram de questio-
independente, e na medida em que essa data nar um vizinho que possuía equipamento
se aproximava, os britânicos, que tinham norte-americano. Também a Etiópia, cons-
ficado nervosos pela interferência egípcia ciente das divisões raciais dentro de suas
na Somalilândia Britânica, aceleraram sua fronteiras, evitou o choque. Mas a reivin-
própria colônia para que pudesse ser unida dicação somali contra o Quênia alarmava a
à Somalilândia Italiana e formar a Repúbli- Etiópia em função de suas afinidades com
ca Independente da Somália – grande, mas as reivindicações somalis sobre a província
pobre, racialmente mista, mal preparada e de Ogaden, da Etiópia. Os combates foram
alvo de desconfianças e ameaças por parte acontecendo extraoficialmente ao longo da
de seus vizinhos etíopes e quenianos. fronteira durante o ano de 1962. No ano
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seguinte, o presidente somali, Abdurashid um issa, foi acusado de múltiplas atrocida-


Shermake, visitou a URSS, o Egito, a Índia, des contra os afares, o que lhe custou a per-
o Paquistão e a Itália, e recebeu pouca ajuda da do apoio francês e o isolou dos vizinhos
ou estímulo. A independência do Quênia de país no leste da África e da Península
no final daquele ano testemunhou a conclu- Arábica.)
são de um tratado de defesa queniano-etío- O Chifre da África ganhou importância
pe, e, alguns meses mais tarde, começaram internacional no contexto da Guerra Fria. A
os combates abertos entre a Etiópia e a So- região oferecia, no extremo sul do Mar Ver-
mália. Os russos ofereceram sua mediação, melho, uma ponte entre África e Ásia menos
e um vice-ministro das relações exteriores importante do que a passagem complemen-
da URSS foi a Mogadíscio, causando preo- tar através do Sinai, e, no sentido oriental,
cupação aos russos, se não pelos somalis, dava para as águas mais amplas do Oceano
ao menos com possíveis influências norte- Índico. Os Estados Unidos estabeleceram
-americanas ou chinesas no Chifre da Áfri- influência e bases na Etiópia.
ca. Uma mediação mais eficaz foi feita pelo A URSS respondeu na Somália, onde
presidente do Sudão e o rei do Marrocos, fornecia armas para serem usadas pelos
e, depois de conversações em Cartum, as somalis contra seus vizinhos, em troca de
hostilidades foram suspensas. Mas o pro- instalações para armazenagem e comuni-
blema subjacente não foi resolvido, e outras cações, postos de inteligência e uma grande
discussões que aconteceram em 1965 entre base aérea. Em 1974, essas manobras foram
Quênia e Somália foram abortadas. As lutas inflamadas e transformadas pela revolução
esporádicas continuaram até 1967, quando na Etiópia.
um novo governo somali pediu que o presi- Haile Selassie foi pressionado por ami-
dente Kaunda mediasse. As relações diplo- gos e parentes a renunciar em 1973, quando
máticas foram retomadas no ano seguinte. chegou aos 80 anos. Estava velho e sobrecar-
Na Somalilândia Francesa, um movi- regado – seu herdeiro teve um derrame em
mento em favor da fusão com os territórios 1973, sua aliança com Israel desabou naque-
italiano e britânico foi frustrado por uma le ano de guerra no Oriente Médio, a cordia-
votação na Assembleia em Djibuti para con- lidade dos Estados Unidos estava minguan-
tinuar como um Território Ultramarino da do, os estudantes estavam se rebelando e os
União Francesa, mas, em 1975, a França de- trabalhadores faziam greves – mas ele se re-
cidiu ir embora (mantendo, contudo, uma cusou a renunciar. Ele tomou a iniciativa de
força de 4 mil soldados), e, em 1977, surgiu aliviar o controle que tinha imposto sobre o
a independente República de Djibuti, in- país, mas o passado explodiu em sua cara.
cluindo o porto de Djibuti e a margem oci- Um grupo de oficiais do exército se amoti-
dental do Bab el-Mandeb, era cobiçada pela nou, e esse motim levou a mais revoltas por
Somália e vital para o comércio externo da parte de soldados, sargentos e oficiais de
Etiópia, e estava dividida entre os afares, que menor patente, ao destronamento do im-
tinham membros de sua etnia na Etiópia perador (que mais tarde morreu na prisão,
e na Eritreia, e os issas, que eram somalis. possivelmente maltratado ou assassinado) e
(Depois da queda de Mengistu na Etiópia, o a diversos assassinatos políticos. A influên-
Djibuti adotou, em 1992, uma Constituição cia destrutiva do imperador ancião, ainda
multipartidária que, contudo, não alterou a que fosse nobre, produziu pressões intolerá-
natureza essencialmente étnica de sua polí- veis (entre regiões e classes, e mesmo dentro
tica. O presidente Hassan Gouled Aptidon, do exército), conspirações, corrupção, mau
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governo e estagnação, todos piorados pela Com esses eventos, a Somália passou da
seca e fome que afligiu grande parte da Áfri- proteção russa à norte-americana, mas tam-
ca no início dos anos de 1970 e a afluência bém era um país profundamente dividido.
contrastante da corte e dos nobres. O pri- No último terço do século XIX, colonizado-
meiro motim foi seguido por uma série de res franceses, britânicos e italianos assegu-
governos de curta duração e pela formação raram um controle irregular sobre uma rede
de um amálgama pouco consistente de gru- de clãs e subclãs de pastores que se reafir-
pos chamados de Derg (ou comitê), cujos maram depois da independência em 1960.
membros pareciam ser fluidos e em grande O sistema de clãs operava dentro de uma
parte desconhecidos, mas que se tornou o estrutura mais ampla, ainda que mais vaga,
poder real na capital. de pessoas do meio urbano versus o resto,
A figura dominante no novo regime era o que foi acentuado – principalmente em
o coronel Haile Mariam Mengistu, de há- Mogadíscio – por um afluxo de pessoas em
beis manobras, e que derrotou seus rivais busca de trabalho nos anos coloniais, e uma
do Partido Revolucionário do Povo Etíope segunda migração de refugiados das guerras
(Ethiopian People’s Revolutionary Party) com a Etiópia.
com a ajuda do socialista Meison, que de- Em 1969, Shermake foi assassinado e
pois ele afastou. Mengistu e seus Alyotawi sucedido, depois de um interregno e um gol-
Seded asseguraram o controle em Addis pe militar, pelo coronel Siad Barre, que per-
Abeba, mas não sobre o país como um todo tencia ao clã marehan, uma parte dos povos
e, particularmente, não na Eritreia, no norte darodes, imprensados entre os issas ao norte
e nas terras disputadas ao sul. Durante os 17 e os hawiehs ao sul. Barre pretendia centra-
anos seguintes, Mengistu esteve em guerra lizar a Somália em torno de Mogadíscio e
em várias frentes, e sem ajuda estrangeira, dele próprio. Além de fortalecer os vínculos
teria perdido uma delas. Ele recebeu ajuda com a URSS e com o mundo árabe, ele pro-
da URSS e de seus representantes cubanos mulgou um programa socialista excêntrico,
quando, em 1977, Moscou decidiu apoiá-lo, beneficiou-se, depois de 1977, dos favores
colocando em risco e anulando sua aliança norte-americanos e invadiu a Etiópia com
com a Somália para retirar os Estados Uni- esperanças infundadas de apoio militar dos
dos da Etiópia. As armas cubanas salvaram Estados Unidos. Quando suas forças foram
Harar e Diredawa para a Etiópia e repeliram expulsas rapidamente pelos etíopes, com
os somalis, que quase conquistaram o Oga- ajuda russa e cubana, sua posição foi muito
den. Esse alívio possibilitou a Mengistu re- prejudicada por essa aventura mal conce-
sistir aos eritreus até que, mais uma vez com bida e humilhante. Ele se tornou um nepo-
ajuda russa e cubana, ele conseguiu montar tista bruto e autocrático, perdeu o apoio de
uma contraofensiva. Por um tempo, Men- subclãs aliados e, apesar de um apoio à sua
gistu estava salvo, e a URSS, comprometida liderança contra a invasão etíope de 1982,
em apoiar o império cristão amárico de Hai- envolveu-se em uma guerra civil que ace-
le Selassie em suas novas cores sob o Derg. lerou a desintegração do Estado, gerou pe-
Além de seus conflitos com eriteus e soma- núria, pilhagens e uma fuga de 2 milhões de
lis, Mengistu enfrentava revoltas em Tigre, pessoas aterrorizadas e famintas. Em um de-
no noroeste, e por parte dos povos oromo terminado momento, a Cruz Vermelha esta-
ou galla, no sul (sendo que os segundos va dedicando um terço de seus recursos em
constituíam cerca de metade da população todo o mundo à Somália, e 20 outras agên-
do país). cias humanitárias estavam envolvidas no
574 | PETER CALVOCORESSI

país. Um dos poucos países homogêneos da da fome tinha passado em meados de 1992,
África foi transformado, sob o comando de mas as agências de socorro continuavam a
Barre, em um labirinto de hostilidade acirra- ter 10 a 20% de seus suprimentos roubados,
do por uma enorme quantidade de dinheiro e, no final do ano, foi enviada uma missão
norte-americano que, embora muitas vezes da ONU (UNOSOM) para supervisionar e
alocada a projetos inadequados e incom- melhorar a distribuição de ajuda internacio-
pletos, criou potes de outro. A parte norte, nal àqueles a quem ela se destinava.
anteriormente britânica, pretendia se sepa- A UNOSOM não tinha autoridade nem
rar como República da Somalilândia, mas meios para desarmar as facções que estavam
seu presidente Muhammad Egal não obteve roubando as agências, embora o secretário-
reconhecimento internacional (exceto de -geral Boutros-Ghali tenha dito com firme-
Djibuti, em 1997) e conseguiu pouca ajuda za que o desarmamento era uma precondi-
estrangeira. ção necessária às tarefas da UNOSOM. Essa
A oposição acumulada forçou Barre a divergência, essencialmente entre a ONU e
fugir em 1991, quando os líderes de clãs que os Estados Unidos, levou a mais divisões e
tinham somado forças contra ele retomaram a desastres que fizeram com que os norte-
as hostilidades entre si. O mais destacado -americanos se recusassem a dar forças ter-
deles era Muhammad Farah “Aideed”, que restres para outras operações da ONU. (Na
(como Barre) era um soldado e policial com Bósnia e no Kosovo, insistiram em recorrer
formação na Itália, e foi mantido na prisão à Otan, e a força internacional enviada ao
por Barre durante anos, mas foi libertado Timor Leste foi totalmente australiana.)
quando este precisou de seus talentos contra A força inicial da UNOSOM, formada
a Etiópia. Ele deixou por pouco de ser o su- por 500 paquistaneses com poderes muito
cessor de Barre quando, por um erro tático, limitados, foi rapidamente ampliada para um
permitiu que Mogadíscio caísse nas mãos de corpo de paz neutro, multinacional, e deste
seu rival Ali Mahdi Muhammad, que assu- para um combatente ativo na luta de facções
miu o título de presidente. Para compensar da Somália, além do conflito armado entre
essa falha, Aideed buscou aliados entre ou- os Estados Unidos e a facção Aideed. Os Es-
tros grupos, incluindo fanáticos islâmicos tados Unidos forneceram unidades à UNO-
que ficaram a seu lado quando os Estados SOM e também enviaram uma Unidade de
Unidos o escolheram como inimigo especial Ação Rápida de 1.300 membros, que depen-
e tentaram matá-lo. Havia na Somália duas dia da ONU. As forças da UNOSOM eram
calamidades separadas, mas interligadas. comandadas por um general turco, com um
Uma era o caos e a matança que se seguiram norte-americano no segundo posto de co-
ao colapso do regime de Barre, e a segun- mando. O comandante da Unidade de Ação
da, a seca, a fome e as doenças resultantes, Rápida, o almirante Jonathan Howe, tornou-
em primeiro lugar, de causas naturais, o que -se representante especial do secretário-geral
agravava em muito a primeira. A primeira da ONU quando o primeiro ocupante do
era sentida principalmente na capital e no cargo (o argelino Muhammad Sahoun) re-
litoral, e a segunda, mas gravemente em 160 nunciou em protesto à parcialidade norte-
km para o interior. A primeira demanda- -americana. Na UNOSOM ampliada, havia
va mediação ou intervenção internacional 28 mil membros – os Estados Unidos for-
mais firme para pacificar e desarmar as fac- neciam 8 mil, com contingentes italianos e
ções em guerra; a segunda demandava ali- franceses em terceiro e quarto lugares, depois
mentos, medicamentos e proteção. O pior dos paquistaneses em segundo. Os primeiros
POLÍTICA MUNDIAL | 575

norte-americanos foram bem recebidos por As misturas étnicas ao longo das frontei-
Aideed, a quem os Estados Unidos pareciam ras entre a Somália e a Etiópia aumentavam
favorecer em detrimento de Ali Mahdi, mas, as ambiguidades e os conflitos na região. A
no decorrer de 1993, abandonaram a política Frente de Libertação Nacional Unificada
de unir os chefes militares locais e decidiram, (United National Liberation Front, UNLF),
em vez disso, eliminar Aideed politicamente criada sob os auspícios etíopes, visava a se-
e, se necessário, pessoalmente. Ele se tornou parar partes da Somália ou, pelo menos,
antiamericano e anti-ONU, e seus seguidores participar de suas guerras civis, e a Etiópia
mataram 25 paquistaneses em um tumulto mobilizou forças militares em grande escala
pelo qual os norte-americanos o responsa- para garantir suas reivindicações em áreas
bilizavam, mas que ele descreveu como uma disputadas e invadiu a Somália.
tentativa de tomar sua estação de rádio. Os Na Etiópia, o governo de Mengistu con-
Estados Unidos retaliaram enviando uma seguiu intimidar a Frente de Libertação da
segunda força (formada principalmente por Somália Ocidental e conter, se não derrotar,
adolescentes) para capturar Aideed, mas ela a Frente de Libertação do Povo Eritreu (Eri-
só capturou dois de seus ajudantes, matou trean People’s Liberation Front, EPLF). O
500 somalis e feriu, talvez, outros mil, perdeu Sudão e a Arábia Saudita tentaram unificar
dois helicópteros e teve de ser resgatada por grupos eritreus menores – três deles assina-
unidades paquistanesas da UNOSOM e ou- ram um acordo em Jeddah no início de 1983
tras. Foram mortos 18 jovens norte-america- – como prelúdio a um acordo mais amplo
nos. Clinton decidiu se retirar. As tropas nor- com a EPLF, em cuja inclinação à esquerda
te-americanas saíram durante o ano de 1994, não confiavam, mas essas ações não tiveram
seguidas pela UNOSOM. Não foi feito ne- efeito, e a EPLF demonstrou sua vitalidade
nhum progresso no sentido de reunificar ou ao infligir graves derrotas às forças do go-
pacificar a Somália, que, depois de três anos, verno etíope em 1983 e novamente em 1988.
permanecia dividida entre coalizões tribais Os Estados Unidos reclassificaram a EPLF
manobrando umas contra as outras e fingin- como um movimento democrático de liber-
do ignorar o feudo separado do presidente tação em vez de uma insurreição marxista.
Egal no norte. Depois que Aideed morreu, A revolta em Tigre ganhava e perdia forças
em 1996, seus rivais concluíram uma aliança ao sabor dos acontecimentos na Eritreia, e o
– o Pacto Sedere – contra seu filho Hussein, governo sofreu graves derrotas ali em 1989.
com incentivo etíope. Os somalis continua- A ajuda russa estava minguando, e Mengis-
ram sem governo – uma área, em vez de um tu se sentiu obrigado a oferecer à Eritreia
país, na qual 20 chefes disputavam o poder a autonomia em uma federação. Um golpe
em nível local, os armamentos eram o úni- contra ele fracassou, mas o exército, do qual
co produto com suprimento pleno, e o ban- ele dependia, já estava farto da guerra e pres-
ditismo, uma atividade central de inúmeras sionava por qualquer acordo com a Eritreia
forças armadas. A partir desse caso, surgiram que não fosse a independência. As conversa-
duas principais forças, uma sob comando do ções começaram em 1989, com o ex-presi-
coronel Ahmed Yusuf, com quartel-general dente norte-americano Jimmy Carter como
em Baidoa, de onde esperava avançar até intermediário. Em 1991, Mengistu fugiu e a
Mogadíscio com ajuda etíope, e a outra – a capital e o governo central foram tomados
União das Cortes Islâmicas (criticadas pelos por “Meles” Zenawi, agora ex-comunista,
Estados Unidos) – que tomou o controle da na condição de chefe da Frente Democrática
capital e, assim, frustrou a iniciativa de Yusuf. Revolucionária do Povo Etíope (Ethiopian
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People’s Revolutionary Democratic Front, moradia e soldados desmobilizados, e para


EPRDF: seus principais componentes eram ampliar suas escolas inadequadas e construir
o Movimento Democrático do Povo Eritreu, uma moderna economia de mercado.
a Frente de Libertação do Povo Tigre e a Or- Suas fronteiras com a Etiópia eram des-
ganização Democrática do Povo Oromo). confortavelmente incertas, e, em 1998, uma
Um ano mais tarde, aconteceram eleições invasão eritreia de base discutível, seguida
caóticas, e outras, menos caóticas, em 1994. de um contra-ataque etíope, resultou em pe-
A EPRDF manteve a dominação, embora os sados combates e muitos refugiados. Ambos
oromos e outros, desconfiados dos amaras, os lados tinham armamentos modernos,
queriam a secessão ou, pelo menos, uma fe- comprados principalmente da Rússia e de
deração etíope com vínculos pouco rígidos. ex-satélites soviéticos na Europa. A guerra
Os afares estavam igualmente divididos. A se espalhou militar e diplomaticamente. A
EPRDF teve uma vitória esmagadora nas Etiópia apoiava dissidentes eritreus no Su-
eleições centrais e regionais de 1995, boico- dão; a Eritreia enviou ajuda aos etíopes que
tadas pelos principais partidos de oposição. se opunham à minoria governante tigre na
A Etiópia, sem acesso ao mar, mas com di- Etiópia e a Hussein Aideed na Somália.
reitos de acesso ao porto eritreu de Assab, no
Mar Vermelho, adotou uma política de con-
cessão de autonomia ao longo de cinco anos Uganda, Tanzânia, Quênia
para uma série de regiões (originalmente 14,
mas reduzidas a 10), cuja identidade étnica A potência preponderante na África Central
ameaçava transformar a autonomia em frag- e Sul era a Grã-Bretanha, mas os primeiros
mentação. Para todos os povos da região, os europeus a chegar ali foram os portugue-
horrores de guerras aparentemente inter- ses. Bartolomeu Dias tocou a terra na Áfri-
mináveis eram aumentados por ondas de ca Oriental em sua jornada do Cabo à Ín-
escassez tão letais que o mundo as colocava dia e na volta. Nessa costa, os portugueses
como principais notícias, e se mobilizou por entraram em contato com o mundo árabe,
um breve tempo para apoiar agências de so- estabelecendo portos de parada e manuten-
corro com uma sobrecarga de trabalho e um ção onde os árabes já estavam realizando
déficit de verbas insustentável. Nas questões comércio: Kilwa, Zanzibar, Mombasa, Ma-
externas, Meles era hostil à Frente Islâmica lindi. A natureza e a amplitude dos direitos
no Sudão (principalmente depois do atenta- dos portugueses eram vagas e flutuantes, e
do à vida de Mubarak em Addis Abeba em foram gradualmente reduzidas pelos árabes
1995), ao Quênia e à facção Aideed na So- e depois pelos britânicos e holandeses, até
mália. Ele equilibrou as boas relações com os que apenas o território de Moçambique per-
Estados Unidos enquanto visitava a China. maneceu com eles.
Na Eritreia, a EPLF agiu como se o país O interesse britânico era duplo. Para
já fosse independente – o que ele se tornou a potência dominante no Oceano Índico,
em 1995, com Issayas Aferworki como pre- os territórios litorâneos eram uma atração
sidente de um país com 3 milhões de pessoas natural, enquanto a Grã-Bretanha também
divididas quase que igualmente entre o Islã se tornou uma potência africana continen-
e o cristianismo, falando uma dúzia de lín- tal ao estabelecer controle sobre regiões no
guas, carentes de alimentos por uma década interior que eram consideradas necessárias
ou mais, lutando para atender grandes quan- para salvaguardar os interesses estratégicos
tidades de pessoas expulsas de seus locais de britânicos no Cabo e no Vale do Nilo.
POLÍTICA MUNDIAL | 577

Um impulso ao norte, a partir do Cabo, da capitulação dos italianos em Adowa, em


desviando das repúblicas bôer e conti- 1896, ao imperador Menelik II, a Grã-Breta-
nuando dentro da Rodésia, combinou-se nha temia que a Etiópia fizesse uma aliança
com um impulso ao sul, vindo do Egito e do com a França ou com os mahditas no Sudão,
Sudão para resultar na importância estraté- e lorde Salisbury pressionou pela constru-
gica de Uganda e na rota de acesso a ela atra- ção da ferrovia ugandense como um passo
vés do Quênia. Em um capítulo particular- para a reconquista do Sudão. Não menos
mente pitoresco da história da exploração, a importante era a disputa com a Alemanha,
Grã-Bretanha adquiriu Uganda e Quênia no cuja determinação de se tornar uma potên-
final do século XIX, acrescentando Zanzi- cia africana tinha sido expressa na Confe-
bar em 1890 (em troca de dar a Heligolândia rência de Berlim de 1884-1885.
à Alemanha) e Tanganica em 1919, como Os alemães tinham demarcado suas rei-
território sob mandato, depois da derrota vindicações no sudoeste da África e no leste,
alemã na Primeira Guerra Mundial. para o constrangimento da Grã-Bretanha,
A potência britânica não foi mobilizada que não gostava da expansão alemã na Áfri-
em termos territoriais, inicialmente. Prefe- ca, mas precisava da sua amizade na Europa
rindo, como de costume, a abordagem indi- durante o período de más relações anglo-
reta, a Grã-Bretanha optou por exercer sua -francesas, entre 1880 e 1904. Consequente-
influência no litoral, através do sultão de mente, a Grã-Bretanha aceitou a ocupação
Zanzibar, um potentado árabe que também alemã do sudoeste africano, enquanto toma-
era sultão de Muscat (Omã), na Península va a precaução de garantir a Bechuanalân-
Arábica, mas tinha mudado sua capital para dia contra possíveis aspirações alemãs (ou
Zanzibar em 1840. (Zanzibar e Muscat fo- boers) que pudessem interferir na ferrovia
ram separados mais uma vez em 1861, com a partir do Cabo em direção norte. No leste
dois filhos de um sultão falecido estabele- da África, a Grã-Bretanha também aceitou
cendo Estados e dinastias separados como a presença alemã e desistiu de usar o sultão
resultado da mediação do vice-rei da Índia, de Zanzibar para dificultar as coisas para os
lorde Canning.) No interior, os governos alemães em Tanganica, ao mesmo tempo em
britânicos deixaram a tarefa da expansão que arrendava do sultão, em 1887, uma faixa
a interesses comerciais até o último quarto litorânea de 16 km (que incluía Mombasa)
do século XIX, quando a falência das com- e avançava o poder britânico em Uganda e
panhias licenciadas para explorar partes da Niasalândia, de forma que o Império Ale-
África, acoplada à expansão competitiva das mão emergente pudesse ser contido dentro
potências europeias no continente, induziu de limites compatíveis com os interesses
a Grã-Bretanha a mudar para políticas de britânicos essenciais. A Primeira Guerra
anexação territorial. Mundial eliminou o fator Alemanha, mas a
A falência da British East Africa Com- parte inicial do século XX assistiu a um em-
pany, por exemplo, fez com que o gabinete preendimento que produziria seus próprios
de lorde Rosebery endossasse um proteto- problemas: o desenvolvimento do Quênia
rado britânico sobre Uganda, com os inde- por colonos brancos. Embora a retirada das
cisos colegas do primeiro-ministro sendo complicações das grandes potências tenha
convencidos por um exagero sobre as in- possibilitado ao Ministério das Relações
tenções estratégicas de outras potênciais eu- Exteriores da Grã-Bretanha tirar a África
ropeias, principalmente a Itália e a Bélgica, Oriental da cabeça, o surgimento de novas
e as regiões das nascentes do Nilo. Depois complicações de natureza distinta não preo-
578 | PETER CALVOCORESSI

cupou o Ministério Colonial até que fosse servadorismo do kabaka, que estava preocu-
tarde demais, pois, embora a Declaração pado em preservar seus poderes tradicionais
de Devonshire de 1923 tivesse afirmado a e a identidade separada de seu principado.
primazia dos interesses africanos, a comu- Em 1953, um ministro britânico deixou esca-
nidade de colonos pressupunha, o que foi par em Londres uma observação inoportuna
permitido até as vésperas da independência, sobre a Federação da África Oriental, que foi
que seus próprios poderes e privilégios não tomada pelo kabaka – e por muitos outros
seriam ameaçados em um futuro próximo. africanos – como sinal de um esquema bri-
Ainda nos anos de 1950, ambas as raças tânico para criar uma nova unidade política
acreditavam que uma devoção do governo de grande porte com vistas à melhor preser-
branco aos princípios da autodeterminação vação do poder dos brancos. Uma federação
e ao governo da maioria não chegaria ao centro-africana estava sendo formada nessa
ponto de colocar uma importante comuni- época, e os africanos orientais temiam que
dade branca sob governo dos negros. os colonos brancos no Quênia recebessem
A independência na África Oriental em toda a região oriental os poderes que a
seguiu a da região ocidental, mas – em minoria branca da Rodésia do Sul estava no
parte por vir depois – foi obtida através processo de confirmar em seu próprio país e
de um desenvolvimento encurtado do pa- estender à Rodésia do Norte e à Niasalândia.
drão estabelecido da evolução, de conse- Seguiu-se uma disputa entre o governador e
lhos específicos a conselhos mistos, e, daí, o kabaka, que foi mandado ao exílio por não
aos parlamentos integralmente eleitos que observar o Acordo de Uganda de 1900, pelo
acompanhavam o autogoverno e pressa- qual ele era obrigado a aceitar as orientações
giavam a independência. Tanganica se tor- britânicas em determinados assuntos.
nou independente em dezembro de 1961; O exílio do kabaka durou até 1955.
Uganda, em outubro de 1962; e o Quênia, Uma comissão sob comando de sir Keith
em dezembro de 1963; mas, apesar da pro- Hancock formulou uma nova Constitui-
ximidade geográfica, as circunstâncias nos ção que o kabaka aceitou pelo acordo de
três territórios eram diferentes. Namirembe e pela qual ele concordava
As características especiais do avanço em entregar Buganda a uma monarquia
de Uganda para a independência residiam constitucional e reconhecê-la como parte
na complexa estrutura política do país. O integrante de Uganda; o parlamento de
protetorado de Uganda incluía uma série de Buganda, ou lukiko, enviaria representan-
entidades monárquicas, das quais a mais im- tes com lugar no parlamento de Uganda
portante era Buganda, comandada por seu (embora tenha começado se recusando a
kabaka Frederick Mutesa II. Outras eram fazê-lo). Assim, o kabaka foi restaurado,
Bunyoro, Toro, Ankole e Busogo. Também mas o principado ao qual ele retornou
havia uma antiga disputa territorial entre era uma democracia em desenvolvimen-
Buganda e Bunyoro. A existência desses to dentro de uma democracia maior, e o
principados dava a Uganda um nacionalismo objetivo britânico de criar uma Uganda
forte de tipo tradicionalista, que era antagô- independente que fosse uma democracia
nico ao governo britânico e às formas mais parlamentar unitária e não uma federação
democráticas e antimonárquicas de nacio- tinha avançado significativamente.
nalismo. A relativa fraqueza dessas últimas A Grã-Bretanha não conseguiu resolver
linhas tendia a dar à administração colonial o conflito de Buganda com Bunyoro. Essa
um papel progressista em oposição ao con- disputa datava de 1893, quando os britâni-
POLÍTICA MUNDIAL | 579

cos, sob comando de sir Frederick Lugard e, seguinte para ocupar o papel que lhes fora
depois de o kabaka, guerrearam com Bunyo- alocado em uma eleição geral, declararam
ro. Buganda tirara de Bunyoro cinco países Buganda independente. O Congresso do
e duas partes de distritos, e essa transferên- Povo de Uganda, que tinha sido formado
cia foi sacramentada no Acordo de Ugan- por Milton Obote para lutar pela inde-
da de 1900 pela Grã-Bretanha, que, desde pendência, estabeleceu uma aliança com o
então, tinha ignorado todas as reclamações partido situacionista de Buganda, o Kabaka
de Bunyoro até que, em 1961, nomeou uma Yekka, para vencer com maioria parlamen-
comissão (a Comissão Molson) para tentar tar. Obote assumiu o lugar de Kiwanuka, e
resolver a disputa antes da independência. a independência veio em outubro de 1962.
A comissão recomendou um compromisso No ano seguinte, Uganda se tornou uma
que só foi implementado parcialmente. Bu- república dentro da Commonwealth e o
ganda teve confirmada sua posse de quatro Kabaka aceitou o cargo ornamental de pre-
distritos que lhe foram dados pela Comis- sidente, mas sua aliança com Obote não
são, mas adiou-se uma decisão sobre o res- durou. No princípio de 1966, rumores de
tante do território. Em 1964, depois da in- escândalos em altas esferas enfraqueceram
dependência, o governo de Uganda realizou a posição de Obote. Ele assumiu poderes
um plebiscito que tinha sido recomendado de emergência, demitiu e prendeu vários
pela Comissão Molson e que restaurou essas de seus ministros e demitiu o presidente.
áreas a Bunyoro definitivamente. Dois meses mais tarde, introduziu uma
As mudanças constitucionais em Ugan- nova Constituição que precipitou um novo
da iniciaram em 1950, quando o conselho choque entre ele e o lukiko e nomeou a si
legislativo recebeu um número igual de mesmo presidente. Rumores recorrentes de
membros oficiais (ou seja, funcionários planos bugandas de recorrer à força o indu-
coloniais) e membros extraoficiais. Des- ziram a agir primeiro. O palácio do kabaka
tes, oito eram africanos, quatro asiáticos e foi saqueado e este, escapando por pouco,
quatro europeus, em reconhecimento a um foi forçado mais uma vez ao exílio. Nenhum
problema étnico que, contudo, não impe- Kabaka residiu em Buganda até 1993.
diu o avanço para a independência, devido Obote foi derrubado por um golpe dado
ao fato de que os colonos europeus repre- pelo exército enquanto estava em uma con-
sentavam uma quantidade muito pequena ferência da Commonwealth em Cingapura,
para pensar em manter o poder político, e em 1971. Ele entrou em conflito não apenas
os asiáticos consideravam conveniente, no com os tradicionalistas em Buganda mas
início, estabelecer a harmonia, em vez do também com as classes proprietárias, em
conflito, com a maioria africana. Em 1952, função de declarações levemente à esquer-
estabeleceu-se no conselho executivo um da, e com os intelectuais, por desprezo auto-
equilíbrio semelhante de membros oficiais ritário. Depois de sobreviver a um atentado
e extraoficiais, e, em 1954, o conselho foi contra sua vida em 1969, ele tentou limitar o
dobrado de tamanho. Em 1961, Uganda re- poder do exército e de seu comandante Idi
cebeu autogoverno e Benedikto Kiwanuka Amin, mas não conseguiu, e Amin tomou
se tornou primeiro-ministro, mas o sepa- seu lugar. Saudado inicialmente como um
ratismo buganda continuou a postergar a bom e sólido militar (e campeão de boxe)
independência completa. Os lukiko, que com uma respeitável formação britânica,
tinham feito uma petição à Coroa britâni- Amin instituiu um reino de terror, princi-
ca, em 1957, por mais autonomia no ano palmente depois de uma tentativa fracassa-
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da de Obote de invadir Uganda, em 1972, a visório comandado pelo ex-vice-reitor da


partir da Tanzânia, com uma força de cer- Universidade Makerere, o Dr. Yusufu Lule.
ca de mil homens. Amin não titubeou em Depois de dois meses, ele foi deposto pelo
cumprir um papel nas questões internacio- Conselho Consultivo Nacional e substituí-
nais. Proclamou-se amigo de Israel, mas do por Godfrey Binaisa, um advogado que
depois mudou de lado e se tornou um forte tinha ocupado um ministério no governo
partidário dos palestinos. de Obote. Binaisa também foi deposto pelo
Ele causou uma agitação especial ao exército e colocado sob detenção enquanto
avisar os 70 mil asiáticos que eles deveriam um conselho pró-Obote assumiu o gover-
deixar o país dentro de três meses, embora no. Essas mudanças, junto com a conhecida
tenha isentado depois os que fossem cida- parcialidade de Nyerere em favor de Obote,
dãos ugandenses. Como a maioria era de que em pouco tempo reapareceu em Ugan-
cidadãos britânicos, a ação constrangeu em da, eram um presságio do retorno deste ao
muito o governo da Grã-Bretanha que, re- poder, e, no final de 1980, sua popularida-
cusando tolamente uma oferta anterior de de na metade norte do país e o apoio ativo
Obote para discutir o problema, agora se das autoridades civis e militares o levaram
via pego entre sua evidente obrigação de de volta à presidência por uma margem es-
permitir que cidadãos britânicos entrassem treita e discutida. Seu governo, que durou
na Grã-Bretanha e o clamor contra isso, por até 1985, foi desastroso e pouco menos san-
eles serem muitos e negros. grento do que o de Amin. Com as disputas
Amin também expulsou a missão mi- étnicas sem resolver e o exército fora de
litar britânica e um alto comissário que ele controle, os massacres só foram reduzidos
acusou de cumplicidade na tentativa de pela fuga em massa – principalmente para
contragolpe de Obote. No ano seguinte, o Sudão e para o Zaire. Em pouco tempo,
deu início à encampação de centenas de os que derrubaram Obote estavam lutando
empresas estrangeiras, na maioria britâni- entre si. O vitorioso final foi o Exército de
cas, enquanto, em todo o país, o número de Resistência Nacional (National Resistan-
ugandenses, conhecidos e desconhecidos, ce Army), de Yoweri Museveni, que, tendo
que desapareciam chegava à terrível cifra de derrotado as forças de Obote e o governo
500 mil quando ele foi derrubado em 1979. militar que o sucedeu, de Tito Okello, deu
Amin era o que as pessoas comuns chamam um fim à oposição organizada com a derro-
de louco. (Por coincidência, em 1979 de- ta do general Basilio Okello no norte (mas
sapareceram outros dois monstros loucos, a faxina continuou por três anos). Museve-
o imperador Jean-Bedel Bokassa da África ni se tornou o novo presidente aos 40 anos,
Central e o presidente Macias Nguema, da com uma reputação de decência e habilida-
Guiné Equatorial. Todos os três haviam re- de política, um legado assustador de destrui-
cebido mais apoio do que era decente das ção selvagem e nenhuma maneira óbvia de
três potências coloniais antecedentes.) converter a simpatia estrangeira em ajuda
A queda de Amin foi causada por uma econômica. A infraestrutura do país tinha
invasão da Tanzânia, o único passo prático sido destruída, a dívida externa e seu serviço
por parte de um país africano para se livrar acorrentavam uma economia que também
de uma tirania bárbara. Uma força tanzania- estava tomada pelos custos de um exército
na, acompanhada pelo Exército de Liber- inchado, e o norte e outras regiões ansiavam
tação Nacional de Uganda, tomou a capital por um federalismo descentralizado. Muse-
sem dificuldade e instalou um governo pro- veni estava comprometido com um Estado
POLÍTICA MUNDIAL | 581

de partido único, mas obrigado a conceder o 1969. Em eleições realizadas em um pe-


princípio do pluralismo. Ele foi prejudicado, ríodo de 1958-1959, a TANU conquistou
de certa forma, por seu suposto envolvimen- todas as cadeiras a que concorreu, e, em
to na invasão de Ruanda pelos tutsis a partir 1960, ampliou suas vitórias a todo o país.
de Uganda em 1990 – um fiasco –, mas as O experimento multirracial foi abandona-
eleições de 1996 lhe deram aprovação po- do depois de uma mudança de governador
pular clara, ainda que não universal. A agi- e de secretário colonial em 1959, e Tanga-
tação armada no norte e no oeste, ajudada nica conquistou a independência em 1961,
pelo Sudão e por Mobutu, foi reduzida, mas escolhendo ser uma república e membro da
não eliminada, pelo enfraquecimento do Commonwealth.
primeiro e pela derrubada do segundo. Em Tanganica não tinha as riquezas subter-
conjunto com Tanzânia, Etiópia e o novo re- râneas de alguns países africanos, mas tinha
gime de Kabila no Zaire, Museveni promo- duas vantagens distintas, ainda que enga-
veu o Mercado Comum da África Oriental nosas: não tinha grupo étnico dominante e
e do Sul (COMESA, Common Market for tinha em Julius Nyerere um líder extraordi-
Eastern and Southern Africa) que visava a nariamente inteligente e humano. Seu aborre-
maximizar a cooperação na grande faixa de cimento peculiar era o problema de Zanzibar.
território entre o Mar Vermelho e a região Por um ato que decretava a união com
dos grandes lagos até o extremo sul da Áfri- as ilhas de Zanzibar e Pemba em 1977, Tan-
ca, e fortalecer os Estados-Membros contra ganica se tornou a Tanzânia. Em Zanzibar,
a interferência estrangeira indesejada, mas quando ainda era uma dependência bri-
todos esses parceiros estavam divididos em tânica, a União Afro-Shirazi deu um gol-
outros temas. pe bem-sucedido no início de 1964. Esse
Através da parceria oficial-extraoficial Partido, que representava a maior parte
no governo, Tanganica avançou ao autogo- da população africana de cerca de 200 mil
verno e à independência, mas as autorida- (com os árabes totalizando cerca de 44 mil)
des britânicas tentaram dar um caráter es- sofrera um revés nas eleições de 1961, que
pecial multirracial aos eventos defendendo deu o controle a uma coalizão do Partido
a igualdade de raças em vez de igualdade de Nacional de Zanzibar e do Partido do Povo
indivíduos. Esse conceito foi consolidado de Zanzibar, e, em 1963, os britânicos, ig-
na Constituição de 1955, que dizia que os norando alertas de Tanganica, transferiram
eleitores de cada distrito deveriam, todos, o poder ao sultão e à minoria árabe, com o
eleger um membro de cada uma das três resultado de que Zanzibar levou para a in-
raças, mas um partido formado para apli- dependência um conflito racial embutido,
cá-la, o Partido Tanganica Unida (United que foi abrandado artificialmente em favor
Tanganyika Party), nunca teve muito apoio de uma minoria. A Afro-Shirazi não queria
e foi eclipsado pela União Nacional Africa- o sultão nem qualquer tipo de dominação
na de Tanganica (Tanganyika African Na- árabe. Seus líderes – Abeid Karume, Ab-
tional Union, TANU), formada por Julius dullah Hanga, Othman Shariff – lideravam
Nyerere em 1954. Em 1957, Nyerere, que o que era essencialmente uma revolta an-
vinha pedindo independência há 25 anos, tiárabe e proclamaram a república com os
foi nomeado membro do conselho legis- dois primeiros como presidente e vice. Seus
lativo junto com Rashid Kawawa, mas re- aliados incluíam um partido árabe de me-
nunciou em pouco tempo para pressionar nor importância, o Partido Umma, lidera-
pela independência mais rapidamente, em do por Abdul Rahman Muhammad Babu,
582 | PETER CALVOCORESSI

o correspondente local da agência de notí- Fria, mas, em troca, conseguiu pouco do


cias Nova China e um soldado de qualquer lado comunista e apenas ajuda relutante
causa, designado marechal de campo, John do Ocidente. Ele tentou promover o de-
Okello, que se dizia que havia lutado em senvolvimento de seu país aplicando ideias
Cuba, mas em pouco tempo foi mandado socialistas à sociedade rural e à produti-
ao exílio quando o valor de seus serviços vidade agrícola, mas não conseguiu con-
revelou ser menor do que o constrangimen- vencer nem coagir as pessoas do campo a
to de sua presença. Os afro-shirazis e seus entrar em coletivos e legou a seu sucessor
amigos passaram a ser chamados imedia- Ali Hassan Mwinyi uma economia que,
tamente de ferramentas da China por um em parte por má gestão e, em parte, por
mundo chocado. má sorte e sua própria fraqueza inerente,
Houve alarme em Dar-es-Salaam, e, enfrentou escassez, racionamento, um pa-
em 17 de Janeiro, Nyerere enviou policiais drão de vida decrescente e dívidas impagá-
armados a Zanzibar para controlar a situa- veis: 40% das receitas de impostos tinham
ção. Em 20 de janeiro, soldados se amotina- de ser gastos no serviço da dívida pública.
ram em Dar-es-Salaam; um segundo motim Ele renunciou à presidência em 1985, mas
ocorreu em Tabora, na Tanganica Central, permaneceu como presidente do partido
no dia seguinte. Atos semelhantes de insu- do governo na Tanzânia, Chama cha Ma-
bordinação aconteceram em Uganda e no pindusi (CCM), e foi reeleito para o cargo
Quênia, nos dias 23 e 24. Em todos esses em 1997, por mais cinco anos. Ele criticou
lugares, a ordem foi restaurada com a aju- a política econômica de seu sucessor quan-
da de tropas britânicas que ainda estavam do Mwinyi pediu ajuda ao FMI e garantiu
estacionadas em Nairobi (o prazo para sair altos créditos ao preço de desvalorizar a
era o final do ano). Os amotinados pediam moeda em 50% e aceitar o pacote padrão
melhores soldos e a substituição dos oficiais de fundos do FMI em troca de austeridade
britânicos por africanos, e estavam usando a – a política a que Nyerere tinha se oposto.
violência para protestar, não para derrubá- Mwinyi também teve problemas em Zanzi-
-los. Mas à luz dos eventos em Zanzibar, cir- bar, onde ele havia sido presidente. Seu su-
culavam rumores de uma ampla trama co- cessor, Abdul Wakif, era um testa de ferro
munista, reforçados pela presença de Okello e os zanzibaritas temiam uma anexação to-
em Dar-es-Salaam às vésperas das primeiras tal; eles foram às ruas e pessoas morreram.
circunstâncias. Os britânicos saíram uma Depois das eleições, Mwinyi nomeou John
semana depois de sua chegada, e a Tanzânia Malecela como novo primeiro-ministro,
passou a existir, com Nyerere de presiden- que, assim, foi designado como o próximo
te e Karume de primeiro vice-presidente. A presidente, mas Nyerere e o CCM preferi-
associação se revelou infeliz. Nyerere teve ram Ben Mkapa, vencedor de eleições caó-
negada influência em Zanzibar e até mesmo ticas em 1995, que indicaram pouca con-
acesso a ela. Karume estabeleceu um regime fiança na democracia multipartidária (que
autocrático e escandaloso e conseguiu, em Nyerere combateu constantemente) e en-
1969, obter de Nyerere o retorno a Zanzibar fraqueceu a presidência. Nyerere morreu
de inimigos políticos que, depois disso, fo- em 1999 – um estadista destacado por sua
ram mandados para a morte. Ele foi assassi- probidade e moderação, junto com uma
nado em 1972. devoção apaixonada à liberdade dos indi-
Nyerere tentou manter um rumo equi- víduos e dos povos. Seus sucessores fize-
librado entre os protagonistas da Guerra ram o melhor possível do pouco que o país
POLÍTICA MUNDIAL | 583

tinha – o principal recurso era a ausência os colonos brancos, bem como hostilidades
de um padrão tribal. em relação aos vizinhos negros.
Uma das mais importantes eleições na Os kikuyus e os luos eram os dois prin-
história da descolonização britânica foi rea- cipais grupos étnicos do Quênia, liderados
lizada, não em qualquer colônia, mas na respectivamente por Jomo Kenyatta, que foi
própria Grã-Bretanha. Em 1959, o eleitora- estudante de antropologia na Universidade
do devolveu Harold Macmillan ao poder, e de Londres e presidente da União Nacional
uma de suas primeiras ações depois dessa Africana do Quênia (Kenya African Natio-
experiência renovadora foi uma viagem pela nal Union, KADU), tendo retornado à Áfri-
África que deixou clara uma nova atitude ca em 1947, e Oginga Odinga. Os britânicos
em relação às questões coloniais. se recusavam a permitir que eles formassem
Macmillan sentiu os “ventos da mudan- partidos no Quênia central e promoveram,
ça” e estava determinado a se deixar levar como contrapeso, uma associação de tri-
por eles. Seu novo secretário colonial, Iain bos menores, a União Democrática Africa-
Macleod, deparou-se imediatamente com a na do Quênia (Kenya African Democratic
mais difícil de todas as situações africanas: Union, KADU). Pouco depois do retorno de
o Quênia. Kenyatta, os kikuyus formaram uma socie-
No Quênia, membros extraoficiais do dade secreta camada Mau Mau, cujas ativi-
conselho legislativo começaram a receber dades – conhecidas pelas autoridades, mas
nomeações ministeriais imediatamente não levadas muito a sério – eram a expres-
após o final da Segunda Guerra Mundial. são militante de um profundo movimento
Entretanto, eles não eram negros, e sim nacionalista ou xenófobo. Os Mau Mau ad-
brancos representantes dos colonos britâni- ministravam juramentos e realizavam ritos
cos que vinham chegando ao Quênia desde secretos, e tinham crenças apocalípticas,
o início do século e vinham adquirindo e todas elas antieuropeias e anticristãs. Com
trabalhando, de boa fé e com esforço inte- o tempo, a sociedade se tornou extrema
ligente, a boa terra agrícola no que passou em suas ambições e cruel em suas práticas.
a ser chamado de White Highlands. Essa co- Passou a assassinar – principalmente outros
munidade também se tornou politicamente kikuyus – e finalmente desenvolveu uma
poderosa, com esperanças de governar o campanha de violência e guerrilha. O gover-
Quênia em lugar das autoridades coloniais no declarou emergência, chamou reforços
ou compartilhar um Estado multirracial em militares de territórios vizinhos e da Grã-
uma escala proporcional à sua riqueza e so- -Bretanha, prendeu milhares de kikuyus,
fisticação, e não ao número de seus mem- incluindo Kenyatta (que foi sentenciado,
bros. Era, em outras palavras, uma aristo- em 1954, a sete anos de cadeia por organi-
cracia que teria poucas perspectivas em zar os Mau Mau), e gradualmente suprimiu
uma democracia e se deparou subitamente a rebelião. Também deu início a um pro-
com problemas mais conhecidos pelos his- grama para a reorientação psicológica dos
toriadores do que pelos fazendeiros: uma detentos, embora, em outros departamen-
aristocracia de quem os eventos exigem tos, tenha sucumbido às paixões infecciosas
que aceite um futuro não aristocrático. Em causadas pelos Mau Mau e foi responsável
1953, essa comunidade e o regime colonial pela aplicação de surras violentas nos pre-
enfrentaram uma revolta selvagem entre os sos, notadamente no campo de Hola, onde
kikuyus que moravam em Nairobi e arredo- desumanidades e assassinatos graves foram
res e há muito alimentavam queixas contra divulgados por um inquérito em 1959. As
584 | PETER CALVOCORESSI

vítimas africanas dos Mau Mau chegaram a bos mais fracas se combinaram para se opor
10 mil, e o número de europeus mortos foi aos kikuyus e luos, mais fortes, e pressionar
de 68. Para suprimir a insurreição, os britâ- por uma Constituição federal na qual os
nicos levaram cinco anos e precisaram de 50 poderes importantes residiriam nas regiões
mil soldados. em vez de no governo central; as conferên-
O governo britânico entendeu que os cias constitucionais passaram a ser disputas
Mau Mau não poderiam ser transforma- entre a KADU, os proponentes do regiona-
dos em desculpa para abandonar os avan- lismo liderados por Ngala, e a KADU, que
ços constitucionais, e, em 1956, o ano da argumentava que o excesso de regionalismo
suspensão da emergência, introduziu mu- faria com que a Constituição não funcio-
danças no conselho legislativo. O princípio nasse e que o Quênia não tinha dinheiro
orientador era o do multirracialismo ou nem administradores com formação para
parceria entre raças, uma teoria de gover- dar conta das complicações e duplicações
no quase sem apoio entre os africanos, que de um sistema federal. A vantagem ficou
exigiam maioria nos conselhos legislativo com a KADU, sob a liderança de Kenyatta,
e executivo e se recusavam a aceitar a pa- que se tornou primeiro-ministro em junho
ridade com os membros europeus eleitos de 1963, e o governo britânico foi forçado
no primeiro ou uma minoria e cadeiras no a emendar propostas constitucionais de na-
segundo. Para os africanos, o multirracialis- tureza federal que antes tinham sido aceitas
mo era um sistema para dar participações por todos os partidos: o sucesso eleitoral da
injustas aos brancos. Os africanos também KADU no início do ano possibilitou que
insistiam em ter uma data para a indepen- ela desse ao governo britânico a opção de
dência, ao passo que o governo britânico, revisar a Constituição às vésperas da inde-
não disposto a aceitar as evidências de um pendência ou vê-la alterada imediatamente
ritmo que se acelerava em toda a África depois. Os britânicos preferiram abrir ca-
nem afrontar os colonos quenianos indi- minho na esperança de poupar o Quênia de
cando uma data aceitável aos africanos, ten- uma crise constitucional no dia seguinte à
tou avançar para a independência em um independência, mesmo que o custo da con-
ritmo não revelado, sem perder controle da cessão fosse uma acusação não implausível
situação. Em 1959, essa política foi aban- de má fé por parte da KADU. O Quênia se
donada (junto com o secretário colonial de tornou independente em 12 de dezembro
então), e Kenyatta foi libertado com restri- de 1963, e passou a ser uma república em
ções. Em 1961, ele recebeu liberdade total e 1964, quando Kenyatta suspendeu as salva-
permissão para concorrer e ser eleito para a guardas constitucionais para as minorias e
Assembleia Legislativa. os direitos regionais, absorvendo a KADU
Uma conferência constitucional foi rea- na KADU e criando um Estado centralizado
lizada na Lancaster House, em Londres, em de partido único. Ele removeu seu principal
1960, e, pouco depois, o líder do governo na rival Oginga Odinga da vice-presidência e
Assembleia Ronald Ngala foi promovido a o colocou em detenção, mas, em uma ati-
ministro-chefe. Mas os líderes políticos afri- tude contrária, favoreceu a carreira política
canos estavam divididos. Muitos represen- do hábil jovem luo Tom Mboya. (Em 1969,
tavam tribos em vez de uma nação, e não fo- Mboya foi assassinado.)
ram capazes de criar o movimento unificado O Quênia sob o governo de Kenyatta foi
pela independência que era característico de um país relativamente estável, administrado
outros países africanos emergentes. As tri- por uma elite negra cada vez mais corrup-
POLÍTICA MUNDIAL | 585

ta. Nairobi passou a ser um ímã para os de- lários caíram, os agricultores sem-terra iam
sempregados do campo que se juntavam em em multidões para a capital, que se tornou
favelas, esporadicamente destruídas pelas uma das cidades mais perigosas da África,
autoridades. As relações do país com seus e, em meados dos anos de 1980, a corrup-
vizinhos se deterioraram. Seu capitalismo ção levou a escândalos financeiros, bancos
dinâmico entrava em atrito com o socialis- em falência e intrigas da política secreta. A
mo possivelmente mais saudável, mas de importância do litoral oceânico do país (um
menos êxito, da Tanzânia, e essas diferenças paraíso tropical) atraía os Estados Unidos,
ideológicas se transformaram, na década de que construíram bases ali, concederam con-
1970, em contendas, expulsões mútuas e fe- tratos lucrativos e deram verbas para servi-
chamento de fronteira. Com Uganda, uma ços tanto estratégicos quanto secundários,
disputa de fronteiras iniciada por Amin menos sérios. As relações do Quênia com
quase levou à guerra. A idade avançada de seus vizinhos eram ruins principalmente
Kenyatta era outra fonte de preocupações. com Uganda. Cada país acolhia refugiados
Esperava-se que sua família e seus parentes do outro. O assassinato, em 1990, de Robert
tentassem manter o poder quando ele mor- Ouko (luo), ministro do exterior e possível
reu, mas, nesse momento (1978), o vice-pre- sucessor de Moi, e a prisão em 1991, depois
sidente Daniel Moi assumiu suavemente seu de acúmulo de acusações de grandes mal-
lugar com promessas de continuidade dos versações, do ex-ministro da economia Ni-
bons rumos do país e de apagar suas carac- cholas Biwott, aumentaram o clamor contra
terísticas menos admiráveis. o governo, mas não a coerência na oposi-
Moi tinha sido um servidor útil da ção. Desordens graves que se aproximavam
KADU e foi promovido por Kenyatta a mi- da guerra civil devastaram o Vale do Rift na
nistro do interior e depois a vice-presidente. medida em que kikuyus e luos eram mortos
Seu avanço indicava que o Quênia teria um ou expulsos de suas casas pelos kalenjins, o
governo de coalizão tribal e domínio ki- povo de Moi. As divisões étnicas foram au-
kuyu. Ele demonstrou uma autoridade ines- mentadas pelas divisões de classe quando
perada e deu ao Quênia uma segunda fase de Moi manobrava entre os ricos proprietários
relativa estabilidade política. Resistiu a um de terras e magnatas, por um lado, e comer-
desafio semidissimulado de Charles Njonjo ciantes menos ricos e especuladores, nas
(um dos colegas mais efusivos de Kenyatta e cidades em rápido crescimento, por outro.
porta-estandarte dos kikuyus) e sobreviveu Em 1992, as eleições – as primeiras multi-
a uma tentativa de golpe em 1982, mas sua partidárias da era Moi – não puderam ser
posição foi prejudicada por ressentimen- mais adiadas, a KADU teve grandes perdas,
to kikuyu em relação à sua promoção – ele 15 ministros perderam suas cadeiras, mas a
vinha da tribo menor kalenjin – e pela re- oposição perdeu a oportunidade e grande
cessão econômica. Ele atacou organismos parte de seu crédito. Os governos estran-
independentes (advogados, por exemplo) e geiros suspenderam a ajuda com a multipli-
recorreu ao governo de mão forte, prisões e cação de relatos de corrupção e desrespeito
tortura, enquanto ele próprio foi ficando vi- aos direitos humanos. Assim como a Nigé-
sivelmente rico e cercado por apadrinhados ria no lado oposto do continente, o Quênia
medíocres. A ambição do Quênia de ser a poderia ser dínamo ou demônio. O país
Costa do Marfim oriental – um país capi- esperava cumprir um papel de destaque no
talista dinamicamente bem-sucedido – per- Mercado Comum da África Oriental e do
deu força, o desemprego aumentou, os sa- Sul – uma associação de 20 países com uma
586 | PETER CALVOCORESSI

população de mais de 300 milhões, que pre- pois o demitiu. Os processos por corrupção
tendia se tornar uma área de livre comércio foram interrompidos. Odinga formou uma
até o ano 2000 e uma união alfandegária coalizão de partidos de oposição, parecia
completa até 2004. estar a caminho da vitória em 2007, mas
Mas o Quênia tinha poucos amigos en- foi declarado perdedor por uma pequena
tre seus vizinhos. Em 1992, negociou um margem, para descrédito geral. Os Estados
programa considerável de empréstimos do Unidos aceitaram a validade do veredicto
FMI para ajudar a pagar o serviço de sua dí- da comissão eleitoral do Quênia, mas os ob-
vida externa (mais de 6 bilhões de dólares) e servadores europeus, não. Nem os próprios
para a ajuda doméstica e desenvolvimentos eleitores. Violentos protestos atingiram vá-
sociais: faltava-lhe infraestrutura de capital, rias partes do país. Centenas de pessoas –
habilidades, material e educacional (par- talvez mil – foram mortas na primeira se-
ticularmente estradas e irrigação), e bom mana depois das eleições, e 250 mil estavam
governo. Implementou grande parte de um fugindo de suas casas. O choque e o espanto
programa de privatização acordado com o causados por esses eventos eram ainda mais
FMI e desfrutou de importações em ascen- críticos levando-se em conta que o Quênia
são e crescimento econômico (com o chá, o pós-colonial tinha sido considerado uma
café e o turismo na liderança), mas renun- história de sucesso. Era uma história de su-
ciou, em 1997, a uma parte substancial da cesso em um país de considerável tamanho,
ajuda do FMI por não dar passos para con- do qual menos da metade era produtiva,
ter a corrupção. Moi se sentiu forte o sufi- onde as lealdades permaneciam tribais em
ciente para desafiar o FMI, jogar um partido vez de nacionais, onde a maior tribo (os ki-
de oposição contra o outro e trazer de volta kuyus) tinha se espalhado para além de suas
ao movimento Biwott e outros amigos de- fronteiras tradicionais em função de habili-
sacreditados. Os kikuyus, especialmente im- dades empreendedoras, mas também pela
portantes em função de seus números (22% corrupção generalizada, onde se previa que
da população) e seu tino para os negócios, a população dobrasse a cada 50 anos (a me-
jogavam para ganhar espaço entre governo nos que fosse devastada pela praga já visível
e oposição, enquanto a queda de Mobutu na forma da AIDS). Os problemas imedia-
no Zaire encorajou dissidentes de diversos tos foram enfrentados com a mediação do
tipos, de adversários tribais a gerações mais ex-secretário-geral da ONU, Kofi Annan, e
jovens, a se manifestar mais abertamente e outras personalidades africanas, mas o pro-
até mesmo ameaçar a anarquia. Nada disso blema básico permanecia. O Quênia estava
impediu Moi de garantir mais um mandato em uma etapa transitória entre uma asso-
em 1997. ciação pouco definida de tribos que vinha
Em 2002, Moi foi sucedido por Mwai sendo filtrada através do governo colonial e
Kibaki (um kikuyu), que prometeu inves- um Estado em estilo europeu (para o Estado
tigar e eliminar a corrupção e conciliar as soberano europeu, ver o Anexo) ao mesmo
tribos, mas fracassou em ambos. Depois tempo em que se juntava de uma só vez ao
de indicações de que criaria o cargo de desenvolvimento econômico que tinha co-
primeiro-ministro para compartilhar o po- meçado séculos antes na Europa com a in-
der, com ele próprio na presidência e Raila venção da carta de crédito.
Odinga – filho do luo Oginga Odinga – no Antes e depois da independência, esses
novo cargo, ele sucumbiu a pressões parti- três países cogitavam esquemas de integra-
dárias, deu a Odinga um cargo menor e de- ção econômica mais próxima, ou mesmo
POLÍTICA MUNDIAL | 587

uma federação. Em 1963, Kawawa e Obo- associação regional que tivesse probabilida-
te foram a Londres para tentar persuadir a des de prejudicar os esquemas pan-africanos
Grã-Bretanha a apressar a independência do de Nkrumah e a tendência de Tanganica em
Quênia (postergada pelos Mau Mau) e pou- suas políticas internas e externas. No final,
co depois de seu retorno, líderes dos três paí- Tanganica, com pesar, mas firme, insistiu em
ses declararam sua intenção de federar-se. uma decisão e o esquema desabou.
Uganda, contudo, tinha reservas em relação Os três territórios no leste da África fi-
a uma federação porque Obote temia que zeram algumas tentativas de integrar suas
Buganda insistisse em ser membro pleno economias. Sob governo britânico, tiveram
dessa união em vez de uma parte integrante uma moeda e determinados serviços con-
de Uganda. Kenyatta descartou posterior- juntos (correios, ferrovias, serviços de saú-
mente qualquer intenção séria de constituir de) e constituíram um mercado comum.
uma federação, declarando que o plano tinha Tanganica e Uganda reclamavam, em inter-
sido nada mais do que uma forma de pres- valos e com alguma justificativa, que o Quê-
sionar a Grã-Bretanha a apressar a indepen- nia levava a maior parte dos resultados e, em
dência do Quênia. Talvez Nyerere tenha sido 1960, a Comissão Raisman foi indicada para
o único a falar com sinceridade. O processo relatar essas divergências. Ela recomendou
certamente foi protelatório. Obote não com- que os vínculos fossem mantidos, sujeitos a
pareceu a uma reunião realizada em Nairo- alguma reorganização em favor de Tangani-
bi para discutir o esquema, e os quenianos ca e Uganda. Em 1964, o Quênia ofereceu
estabeleceram um sistema estranho em que mais concessões para impedir a desagrega-
eram representados pela KADU em uma ção de sua união parcial e, em 1968, depois
reunião e pela KADU na outra. Também de uma nova investigação e um relatório de
havia diferenças verdadeiras, como a locali- um especialista dinamarquês, os três países
zação da capital federal, a escolha de um pre- assinaram um Tratado de Cooperação da
sidente federal (a promoção de Kenyatta, o África Oriental, que se tornou letra morta
candidato óbvio, desencadearia uma disputa quando os três parceiros adotaram políticas
inoportuna pela presidência do Quênia), a sociais e econômicas divergentes e suas re-
divisão de poderes e outras questões cons- lações ficaram estremecidas, e ele foi final-
titucionais, a oposição de Gana a qualquer mente dissolvida em 1977.
25 O extremo sul da
África

O legado de Cecil Rhodes no britânico sobre a política em relação aos


Boers: em 1899, foi o governo, e não Rho-
Próximo ao final do século XIX, os britâni- des, que fez a Guerra dos Boers. Da Rodésia
cos na Colônia do Cabo, espremidos no in- do Sul, ele continuou para o outro lado do
terior pela ocupação alemã do sudoeste da Zambezi e com legalidade questionável con-
África, de um lado, e as repúblicas boers dos quistou concessões do soberano, ou litunga,
rios Orange e Vaal, outro, aventuraram-se da Barotselândia e outros chefes africanos.
para o norte com vistas a impossibilitar uma Acrescentou a Niasalândia a seu império,
união entre esses dois inimigos potenciais mas não chegou a Katanga, uma provável
e garantir a passagem de uma ferrovia para próxima candidata. O governo britânico
o norte, através do território britânico. Em deu direitos minerais à South Africa Com-
1844, a Grã-Bretanha declarou um proteto- pany (que acabaram por ser extremamente
rado sobre a imensa e, em grande parte, de- lucrativos depois da abertura das minas de
serta as margens Bechuanalândia, mas, pelo cobre da Rodésia do Norte), mas limitou
restante do século, foi um cidadão britânico, seus direitos administrativos. Em 1923, a
em vez de qualquer governo britânico, que Grã-Bretanha transferiu o controle dos as-
dirigiu o avanço do país. Esse cidadão foi suntos internos à comunidade de colonos
Cecil Rhodes e uma razão pela qual ele con- brancos da Rodésia do Sul. A alternativa de
seguia dirigir a política de seu país foi que uni-la à África do Sul foi debatida, mas re-
conseguia financiá-la. jeitada por essa comunidade. A questão das
Rhodes penetrou o norte, da Bechua- formas de associação entre os vários terri-
nalândia com os olhos no rio Zambezi – e, tórios britânicos já tinha vindo à tona, mas,
possivelmente, até mesmo, no Nilo. Sua em 1929, quando a Comissão Hilton Young
empresa, a British South Africa Company, apresentou seu relatório sobre a região, es-
foi licenciada pelo governo britânico, em perava-se que a Rodésia do Norte e a Nia-
1889, para administrar a Bechuanalândia salândia se associassem à Tanganica e não à
e, em 1896-1897, ele conquistou os ndebele Rodésia do Sul, e em 1930, a Grã-Bretanha
e os shona e também se tornou governante acentuou as diferenças entre as duas Rodé-
do que viria depois a ser chamado de Ro- sias ao declarar que nos protetorados os in-
désia do Sul. Em 1896, o fracasso do ataque teresses nativos eram fundamentais.
ao Transvaal, que ficou conhecido como A Niasalândia tinha sido um prote-
Jameson raid, acabou com sua ambição de torado desde 1907 – os primeiros a entrar
governar também Johannesburgo e resultou aí eram missionários escoceses e não pio-
em uma reafirmação do controle do gover- neiros militantes – e a Rodésia do Norte se
POLÍTICA MUNDIAL | 589

tornou protetorado em 1924. Na Rodésia consistia em uma colaboração nas questões


do Sul, A Lei de Distribuição de Terras de de interesse comum entre os governadores
1930 apontava na direção oposta. Rhodes dos protetorados e o primeiro-ministro da
estava interessado principalmente nos di- Rodésia do Sul. Esse conselho foi criado em
reitos minerais. Pela chamada Concessão 1944, mas os protagonistas da maior união
Russ, assinada pelo monarca Ndebele, Lo- não se sentiram desestimulados e, nove
bengula, Rhodes adquiriu, por 1.200 libras, anos depois, garantiram a criação de uma
um ano de direitos minerais (que sua em- federação Centro-Africana. Ao longo des-
presa vendeu, em 1933, ao governo da Ro- ses anos, a Rodésia do Sul estava aplicando
désia do Sul). Também de Lobengula, ele uma política de associação com a Rodésia
adquiriu indiretamente, por meio de um do Norte em detrimento da associação com
certo Lippert, pelo valor demil libras, um a África do Sul: não cogitava uma existência
ano de direitos “fundiários” que depois fa- separada, embora um grupo branco menor
riam surgir uma longa controvérsia sobre quisesse ter status de domínio dentro da
a possibilidade de sua empresa ter com- Commonwealth.
prado toda a superfície da Rodésia do Sul. Os líderes brancos nas Rodésias do
Na época do autogoverno, a empresa, que Norte e do Sul estavam desconfiados um
tinha vendido anteriormente 31 milhões de do outro. Roy Welensky, no norte, onde es-
acres, transferiu um balanço de 45 milhões tavam as riquezas, suspeitava que o sulista
de acres ao novo governo. Em 1914, 21 mi- Godfrey Huggins queria tomar a Rodésia
lhões de acres tinham sido “reservados” do Norte para o benefício da população
para a população nativa, e uma comissão branca mais numerosa do Sul. Por outro
real considerava isso suficiente. Em 1930, o lado, a Rodésia do Sul, embora mais pobre,
país como um todo foi dividido pela Lei de tinha um grau mais elevado de semi-inde-
Distribuição de Terras em Áreas Europeias, pendência, brancos na Rodésia do Norte
Áreas para Compra por Nativos, Áreas De- (excluindo-se os administradores coloniais)
socupadas e Florestas. No entanto, a divisão que queriam garanti-la entrando pela porta
foi considerada injusta pelos africanos, já dos fundos da Rodésia do Sul. Essas atitu-
que os europeus, que constituíam menos de des vieram à tona na conferência de Victo-
um quinto da população, receberam uma ria Falls, em 1949, que, sem a presença de
parcela um pouco maior do todo, além de qualquer africano, transformou-se em uma
todas as cidades – área na qual nenhum briga entre Huggins e Welensky, com o se-
africano poderia possuir terras. Em 1930, gundo retomando a posição de que não de-
a divisão se acirrou em vez de acalmar, em veria haver federação alguma sem referen-
primeiro lugar, ressentimentos em relação do. Os nortistas desconfiavam da ideia de
a como a terra tinha sido adquirida, e mos- federação, mas a conferência a colocou no
trou que os interesses nativos na Rodésia do mapa e fez dela o ponto central das conver-
Sul seriam tudo, menos fundamentais. Em sas nos anos seguintes.
1938, a Comissão Bledisloe rejeitou uma Essa conferência foi seguida por outra,
união mais próxima entre as duas Rodésias de 1951, em Londres, com representantes
e a Niasalândia pela razão específica de que dos três territórios e os dois departamentos
as divergências nas políticas nativas e a hos- de estado britânicos relacionados ao tema
tilidade dos africanos a tornavam impra- (o Colonial Office e o Commonwealth Re-
ticável. A comissão recomendou não mais lations Office). Seu relatório, ao mesmo
do que um Conselho Centro-Africano, que tempo em que reconhecia mais uma vez a
590 | PETER CALVOCORESSI

CHADE
ETIÓPIA
SUDÃO

S
ÕE
REPÚBLICA
AR

CENTRO-AFRICANA
M

Douala
CA

Bangui

Rio Yaoundé UGANDA


Muni
GUINÉ QUÊNIA
O

EQUATORIAL
NG

Libreville RUANDA
CO

GABÃO
BURUNDI
Brazzaville ZAIRE
Pointe Kinshasa (REPÚBLICA
Noire TA N Z Â N I A
DEMOCRÁTICA
DO CONGO)

Luanda

MALAUI
ANGOLA
Benguela Lilongwe
ZÂMBIA
E
Lusaka
QU
BI
Harare AM

M
ZIMBÁBUE
Bulawayo Beira
NAMÍBIA
Baía de
BOTSUANA
Walvis
Windhoek Gaborone
Pretória
Maputo
Príncipe
Joanesburgo SUAZILÂNDIA
São Tomé

LESOTO
Durban
ÁFRICA
DO SUL
Cidade do Cabo
Capital

Cidade

0 250 500 km

0 150 300 milhas

Figura 25.1 África Equatorial e do Sul.


POLÍTICA MUNDIAL | 591

oposição africana à federação, esperava que a federação não deveria receber status de
ela evaporasse sob o impacto das vantagens domínio sem consentimento da maioria da
econômicas que eles listaram. Em outra população, e a criação de um Departamen-
conferência do mesmo ano, em Victoria to de Assuntos Africanos com poderes de
Falls, os políticos (incluindo os dois secre- bloqueio voltado (sem sucesso, como ficou
tários de Estado britânicos), altos funcioná- claro) a impedir legislação discriminatória
rios e líderes rodesianos brancos aceitaram em termos raciais. A federação passou a
a maior parte dos argumentos oficiais. Essa existir em 1º de agosto de 1953. Huggins se
conferência teve a participação de africanos tornou primeiro-ministro federal, com We-
da Rodésia do Norte e da Niasalândia, mas lensky como seu vice e um gabinete de seis
eles ficaram menos impressionados com as membros. Huggins também se tornou líder
vantagens econômicas de uma federação do recém-formado Partido Federal, com ra-
do que com o medo de ficar sob governo da mificações em ambos os lados do Zambezi.
minoria branca em Salisbury. Na Rodésia do Sul, ele foi sucedido por Gar-
A mudança de governo em Londres, dos field Todd como primeiro-ministro e líder
Trabalhistas para os Conservadores, alterou do Partido Unificado.
o equilíbrio em favor da federação. Enquan- A Federação Centro-Africana durou
to os ministros trabalhistas haviam passado 10 anos. Foi aceita com apreensão pelos
a ver com bons olhos uma federação, mas brancos na Rodésia do Sul que temiam
não estavam dispostos a avançar sem antes a mão de obra barata negra e entendiam
descobrir mais sobre os desejos da popu- que a conexão com a potência protetora
lação africana, os ministros conservadores britânica ao norte funcionaria como um
eram mais simpáticos à sua aprovação, con- empecilho a seus planos para lidar com a
sideravam impossível saber o que os africa- situação racial. Mas, como um todo, a fe-
nos realmente pensavam, atribuíam a oposi- deração foi bem recebida pelos brancos,
ção dos africanos a um facciocismo irascível que acreditavam que dentro dela preser-
e ignorante, e acreditavam que, em qualquer variam seus padrões de vida privilegiados,
caso, era dever do governador fazer o que ampliariam muito as coisas materiais que
fosse melhor, mesmo se algumas pessoas já estavam fazendo bem e, de alguma for-
ainda não entendessem o quanto isso era ma, encontrariam uma maneira de encai-
bom. Uma outra conferência reuniu-se, des- xar uma pequena classe média africana na
ta vez na Lancaster House em Londres (o ordem existente.
berço das novas Constituições), e foi boico- A ideia de parceria, que foi escrita na
tada pelos africanos dos dois territórios do Constituição e salvou várias consciências
norte, mas a delegação da Rodésia do Sul desconfortáveis em Londres, significava, na
incluiu Joseph Savanhu e Joshua Nkomo, melhor das hipóteses, uma metade de po-
que se comportaram como simpatizantes der compartilhada com os africanos em um
incômodos até o fim da conferência. O re- futuro que mal se podia ver. Como os bel-
sultado foi uma Constituição Federal com gas no Congo, eles consideravam o africano
reservas temporariamente importantes. A um homem econômico, que poderia ficar
federação teria três administrações terri- satisfeito com meios materiais de sobrevi-
toriais e assembleias separadas, bem como vência (avaliados sabe-se lá de que forma)
um governo e um parlamento federais, a e, com exceção de alguns excêntricos com
manutenção do protetorado britânico sobre muita educação, não tinham qualquer inte-
os territórios no norte, a disposição de que resse na política. Eles subestimavam grave-
592 | PETER CALVOCORESSI

mente o nacionalismo e também a força da Unidos, na Escócia, em Liverpool, Tyneside


indignação humana diante da desigualdade e Gana.
e da injustiça. As ideias não eram o seu for- Em 1958, o Dr. Banda chegou à Nia-
te, e por isso eles não conseguiram enten- salândia para liderar uma cruzada antife-
der que elas estavam na raiz da recusa dos deração em conjunto com nacionalistas de
africanos em aceitar serem governados por uma geração mais jovem, que estava feliz
eles. Do primeiro-ministro para baixo, eles de atuar sob a liderança desse famoso an-
insultavam e humilhavam seus concidadãos cião. Como em muitos casos, as diferenças
negros com observações sobre morar em de objetivos e perspectivas submergiram no
árvores e a aplicação prática da segregação simples objetivo central de separar-se da fe-
em lugares públicos como escritórios e res- deração e estabelecer um Estado soberano
taurantes. Assim, confirmavam rapidamen- independente. Um debate secreto e confu-
te a convicção dos africanos de que a parce- so entre líderes nacionalistas, em 1959, foi
ria não seria um empreendimento, sim um apresentado como uma conspiração para
fingimento. matar vários europeus e tomar o poder.
A federação teve vida curta e violenta, e Banda não estava presente nessa reunião e,
foram os africanos que deram início à vio- ou não sabia coisa alguma sobre ela, ou não
lência. A maioria deles nunca esteve interes- se importava com o que acontecesse ali, ou,
sada nos aspectos econômicos da federação que ainda, sabia tudo sobre ela e escolheu fa-
ou nunca os entendeu, e os mais sofisticados zer vista grossa. Ele mesmo era um homem
os consideravam uma farsa. Os partidários de capacidade oratória considerável (até
da violência, pelas circunstâncias e pelas violenta) que pregava a não violência, mas a
reações exageradas dos brancos, ganharam situação era tamanha inquietação e violên-
cada vez mais destaque. Um incidente cau- cia crescente, o governador da Niasalândia
sado por ladrões em uma casa noturna em pediu que as tropas rodesianas ajudassem a
Cholo, na Niasalândia, em 1953, causou manter a ordem. A Rodésia do Sul enviou
a morte de 11 africanos e ferimentos em 3 mil soldados e aproveitou a oportunidade
muitos, o que levou as autoridades exagerar para declarar estado de emergência em seu
quanto a predominância do vandalismo e da próprio território.
subversão. Isso também abriu caminho para O governador da Niasalândia fez a mes-
eventos mais significativos na Niasalândia. ma coisa uma semana depois. Entre 2 mil e
A Niasalândia foi incluída na federação 3 mil africanos foram presos na federação,
porque os britânicos insistiram, pois não o Congresso Nacional Africano foi dissol-
estavam dispostos a ficar com ela nas mãos vido nos três territórios e Banda e seus as-
como uma dependência separada, com pou- sociados estavam entre os que acabaram na
cas esperanças de que ela viesse a ser mais do cadeia. O secretário colonial britânico Alan
que um dreno no tesouro britânico. Era um Lennox-Boyd disse que havia evidências de
país africano com uma população branca de um massacre iminente.
apenas 1 em 500, sem colonos nem indústria, Esses eventos dramáticos evocaram ce-
cujo povo dependia da Rodésia do Sul e da ticismo e alarme, e o governo britânico no-
África do Sul para os empregos que não ha- meou uma comissão comandada pelo juiz
viam sido criados em seu próprio país. Tinha do Superior Tribunal, Sir Patrick Devlin,
uma figura carismática além do horizonte: o para verificar as alegações pelas quais essas
Dr. Hastings Banda, que passou metade de medidas de emergência tinham sido justifi-
sua vida exercendo a medicina nos Estados cadas. A comissão não conseguiu encontrar
POLÍTICA MUNDIAL | 593

evidências de qualquer trama de assassi- salário para os africanos, recomendado pelo


nato e isentou especificamente Banda. Ela Departamento do Trabalho. Eles considera-
concluiu que o governador da Niasalândia vam o relativamente liberal Todd como um
tinha ficado em uma posição na qual teria Jonas eleitoral. Foi dada uma cadeira para
de abdicar ou recorrer a poderes de emer- ele no novo gabinete formado por Sir Edgar
gência e tropas, e que, em consequência Whitehead, mas logo foi abandonada e, nas
disso, a Niasalândia tinha se tornado tem- eleições, seu novo Partido da Rodésia Uni-
porariamente um estado policial, no qual ficada (United Rhodesia Party) conquistou
era inseguro expressar aprovação das políti- uma única cadeira. Whitehead entrou com
cas do Congresso que a grande maioria dos dificuldade para o governo, embora o Parti-
africanos apoiava. Esse relatório, ao escan- do da Soberania (Dominion Party), liderado
carar um mito propagado por autoridades por Winston Field, que fazia campanha pela
em Londres e Salisbury, deu impulso à cam- independência até 1960, tenha obtido mais
panha antifederação e desacreditou as boas votos. Esse eclipse de Todd foi, em parte,
intenções de seus opositores. Pouco depois uma reação branca à reanimação do Con-
de seu surgimento, o Ministério Colonial foi gresso Nacional Africano por George Nyan-
posto a cargo de um membro mais liberal doro e Robert Chikerema, em 1957, e tam-
do governo conservador, Iain Macleod, e o bém a primeira de uma série de ações que
primeiro-ministro Harold Macmillan co- colocaram a posição de primeiro-ministro
meçou uma série de ações voltadas a dar às nas mãos de políticos cada vez mais extre-
políticas coloniais britânicas uma direção à mistas, que foram, aos poucos, forçados a
esquerda. Essas ações incluíram sua viagem serem mais explícitos em relação à demanda
pela África, seu discurso sobre o “vento da branca básica por independência em relação
mudança” na Cidade do Cabo durante essa à Grã-Bretanha como única forma de garan-
visita, a nomeação da Comissão Monckton tir que o poder permanecesse nas mãos de
e a primeira visita de Macleod ao Quênia – brancos por um futuro considerável.
tudo isso em 1960. Em 1959, na Rodésia do Norte, uma
A Constituição Federal de 1953 deixou nova Constituição precedeu eleições que
intactas três Constituições territoriais. Tam- deram a vitória ao Partido Federal Unifica-
bém tinha deixado claro que a federação do (United Federal Party, o novo nome para
não poderia ter esperanças de independên- a versão local do partido de Huggins-We-
cia ou de obter status de domínio até que lensky). O partido, contudo, foi quase que
elas fossem tocadas. Em 1958, houve elei- universalmente rejeitado pelos africanos,
ções para os parlamentos federal e da Rodé- apesar de ser apoiado por toda a imprensa.
sia do Sul. No primeiro, Welensky, que havia Essas eleições mostraram que os encantos
sucedido a Huggins (agora Lorde Malvern) da federação não estavam surtindo efeito,
em 1956, teve uma vitória esmagadora. Pou- mesmo antes do suposto plano de assassina-
cos entre os africanos que estavam qualifica- to e dos julgamentos da Comissão Devlin.
dos se deram ao trabalho de fazer cadastro Por volta de 1960, começou, na prática,
para votar, em parte porque não gostavam uma corrida entre as forças que queriam
do sistema de eleitores com dois status di- obter independência para a federação do
ferentes e em parte porque tinham medo da governo britânico e as que queriam romper
polícia. Na Rodésia do Sul, Todd foi força- com a federação e estabelecer o governo ne-
do a renunciar por seus colegas de gabinete, gro em suas várias partes. O governo britâ-
que se recusaram a aceitar um aumento de nico, pego nesse fogo cruzado, lançou mão
594 | PETER CALVOCORESSI

do recurso de enviar uma comissão para Cecil Rhodes, dependia em parte de um


examinar a situação. Welensky se opôs a grupo de membros do parlamento em West-
essa manobra em particular, mas concordou minster) foi derrotado por Macmillan e Ma-
com ela em público. Os africanos a boicota- cleod. Cada lado desconfiava, talvez com
ram. A comissão, presidida por Lorde Mon- razão, que o outro estava por usar a força,
ckton, um eminente assessor jurídico da e Welensky convocou tropas. As propostas
coroa e ex-ministro conservador, apresen- constitucionais que surgiram teriam impos-
tou um relatório ambivalente, no qual uma sibilitado Welensky de garantir o controle
maioria exaltava o princípio da federação, do parlamento da Rodésia do Norte, mas
mas o considerava inviável. O trabalho da um documento do governo (White Paper)
comissão inevitavelmente levantou a ques- fez algumas concessões a Welensky. Kenne-
tão do direito de se separar da federação, th Kaunda e outros líderes do Partido pela
embora os líderes brancos na Rodésia e seus Independência Nacional Unificado (United
amigos na Grã-Bretanha afirmassem que a National Independence Party, UNIP) acu-
comissão não tinha poderes para analisar a saram os britânicos de jogar nos bastidores
questão, e que o primeiro-ministro britâni- com o resultado acordado da conferência.
co tinha prometido que ela não seria levan- Houve manifestações violentas na Rodésia
tada. Uma maioria concluiu que não havia do Norte e as concessões foram revertidas.
direitos legais de secessão, mas que, como Essas idas e vindas refletiam a divisão
uma questão de política prática, o tema de- no Partido Conservador Britânico e do ga-
veria ser colocado na pauta de uma confe- binete. Não havia muitas dúvidas de que a
rência de revisão federal e a Grã-Bretanha federação estava condenada, embora nin-
deveria declarar sua disposição de permitir guém estivesse disposto a dizer isso. E, em-
a secessão depois de passado um período bora Welensky e seus seguidores brancos
experimental definido de funcionamento tivessem amigos fervorosos em Londres,
da federação. Essa recomendação colocava havia uma opinião cada vez mais difundida
a federação à prova. O relatório da comissão que reconhecia a maior conveniência de ser
marcava uma uma mudança de rumos fa- amigo de Kaunda e dos muitos países afri-
vorável ao rompimento da federação, ainda canos que estavam do lado dele. Foi apre-
que ela tenha dado mais atenção às reformas sentado um terceiro conjunto de propostas
voltadas a fazer com que ela funcionasse que garantiam que nem o UNIP nem o Par-
(como a paridade entre europeus e africanos tido Federal pudessem ter maioria parla-
no parlamento federal, direito de voto mais mentar e, de qualquer forma, as propostas
amplo, e avanços imediatos em direção ao eram muito complicadas para serem enten-
autogoverno na Rodésia do Norte). didas por quem quer que fosse, com exce-
Uma Conferência Federal de Revisão ção de um louco por Constituições. Elas
se reuniu em Londres no final de 1960. A foram rejeitadas por Kaunda.
Constituição Federal não exigia essa confe- Durante esse período, outra conferên-
rência em tal momento, mas, na avaliação cia passou por esforços semelhantes para
do governo britânico, ela havia se tornado produzir uma nova Constituição para a Ro-
necessária. Mesmo assim, a conferência désia do Sul. Suas propostas, que garantiam
nada conseguiu e foi suspensa sine die, a ser uma representação parlamentar maior para
seguida por outra conferência (constitucio- a minoria dos africanos, mas também reti-
nal) da Rodésia do Norte que gerou lutas de ravam quase todos os poderes residuais do
bastidores, nas quais Welensky (que, como governo britânico, foram aceitas por Nko-
POLÍTICA MUNDIAL | 595

mo na conferência, mas repudiadas logo mas que conseguiu sobreviver a ameaças de


depois, porque ele passou a acreditar, mais guerra civil e desenvolver a economia agrí-
uma vez provavelmente com razão, que, cola do Malaui, até a obtenção, em 1978,
se aceitasse o maior número de cadeiras, de um empréstimo europeu de 14 milhões
o governo britânico daria independência de libras. Sob uma justificativa plausível de
imediatamente à Rodésia do Sul com seus necessidades econômicas, ele fez um acordo
governantes brancos, as quais interrompe- comercial (1967) e estabeleceu relações com
riam ou reverteriam os avanços em direção a África do Sul, apoiando a Renamo em Mo-
ao governo da maioria negra. O governo çambique até cerca de 1986.
britânico tinha esperanças de encontrar Autocrático, radicalmente antico-
uma fórmula consensual o suficiente para munista, moralmente intolerante, Banda
possibilitar que se desse a independência tinha alguns traços dos nacionalistas sul-
de boa consciência e sair de uma situação -africanos. Quando a idade reduziu suas
incorrigível, mas a insistência dos africanos capacidades, a autoridade passou à Cecilia
na fórmula mágica dos direitos da maioria Kadzamisa e seu tio John Tembo, que se
– apoiada por muito britânicos – frustrou tornou herdeiro de Banda em uma situa-
seus esforços e manteve a fórmula consen- ção de crescente incerteza. Em 1993, um
sual em suspensão. referendo sobre mudança constitucional,
No ano seguinte, 1962, houve um plano seguido de uma cirurgia cerebral em Ban-
britânico, abortado, de dividir a Rodésia do da na África do Sul, fortaleceu a oposição a
Norte elevando a Barotselândia a um Estado um regime que se aproximava de seu fim.
separado sob comando de seu governante Quando chegaram as eleições, o partido de
tradicional e conservador, o litunga, e dan- Banda manteve algumas cadeiras no seg-
do mais uma parte dela à Rodésia do Sul. O mento central do país, mas o Norte e o Sul
único efeito dessa ideia bizarra foi criar mal- foram varridos por dois partidos diferentes
-estar entre os nacionalistas e os tradiciona- e o vencedor no Sul, a Frente Democrática
listas. R. A. Butler foi nomeado para um car- Unificada (United Democratic Front) – ob-
go especial de assuntos centro-africanos. Sua teve uma maioria parlamentar gritante. Seu
tarefa era amenizar os conflitos internos no líder, Bakili Muluzu, tornou-se presidente,
Partido Conservador e dar impulso à federa- mas com uma necessidade de conciliação
ção. No final do ano, a Niasalândia recebeu com o Norte. Banda, em idade avançada, e
a promessa de autogoverno e o direito de se seus parceiros mais próximos foram acu-
separar da federação. Na Rodésia do Norte, o sados de assassinato e outros crimes. Ele
UNIP foi convidado a entrar para o governo morreu em 1997, com quase cem anos, até
em 1962, e o direito de secessão foi reconhe- onde se sabe. O Malaui entrou em um tris-
cido em 1963. Com a secessão da Rodésia do te declínio econômico com governo fraco,
Norte, nada restara da federação, que expi- dois terços de seu povo na pobreza e dis-
rou no último dia de 1963. putas com o FMI sobre o nível dos salários
A Niasalândia e a Rodésia do Norte, in- do setor público. A situação começou a
dependentes a partir de julho e outubro de melhorar depois que as eleições, em 2005,
1964, tornaram-se as repúblicas do Malaui e levaram ao poder um novo governo lidera-
de Zâmbia (ambas dentro da Commonwe- do por Bungu wa Mathiriku.
alth) com Banda e Kaunda como seus pre- Os destinos da Zâmbia foram diame-
sidentes. Banda se tornou um ditador con- tralmente diferentes. O país se tornou inde-
servador, intolerante com relação à oposição, pendente com muitos recursos e exporta-
596 | PETER CALVOCORESSI

ções, e um balanço de pagamentos favorável. havendo rebeliões graves na Copperbelt em


Seu principal bem era o cobre, mas também 1986. Independentemente de essas rebeliões
era rico em outros minerais, água e agri- terem sido ou não inflamadas por agentes
cultura. Um surto de crescimento no final da África do Sul, esse país aplicou sanções
da década de 1960 fortaleceu as esperanças econômicas e militares contra Zâmbia, que
de prosperidade junto com o progresso na tinha se tornado uma importante base e um
educação e outros serviços sociais, mas os quartel-general para as campanhas do Con-
anos de 1970 foram uma grande decepção, gresso Nacional Africano (CNA) contra o
principalmente depois do fechamento da Apartheid. Economicamente, a dependência
fronteira com a Rodésia em 1973. A ferrovia de Zâmbia em relação às rotas e portos sul-
Tanzam não correspondeu às expectativas. -africanos tinha aumentado em função de
Os preços do cobre desabaram em 1975, al- desordens em Moçambique e Angola, que
gumas minas deixaram de ser lucrativas, os limitavam as alternativas.
brancos começaram a sair de Copperbelt, Em 1987, a força aérea sul-africana ata-
a província onde estava a região de mine- cou Lusaka e matou vários zambianos, e, em
ração. Os negros perderam seus empregos 1989, Kaunda restringiu a presença do CNA
e seus problemas foram aumentados por na Zâmbia, rejeitou suas táticas combativas
uma escassez de milho. A popularidade de e iniciou um diálogo com o presidente que
Kaunda definhou e houve tramas contra ele estava assumindo na África do Sul, F. W. de
ou, pelos menos, rumores de tramas. Com o Klerk. O descontentamento popular cres-
final da guerra na Rodésia, ficou claro que a cente, aliado a inquietações cada vez maio-
responsabilidade pelos problemas da Zâm- res no exército e nas Igrejas, forçou Kaunda
bia não poderia ser atribuída a ela. Um dos a abandonar, em 1990, sua oposição ao sis-
países potencialmente mais ricos da África tema multipartidário que ele tinha suspen-
e beneficiário de uma boa parcela de ajuda dido no início de seu governo. Na verdade,
financeira e técnica do Ocidente, Zâmbia os partidos estavam surgindo e o sistema de
tinha recaído em dificuldades econômicas partido único estava se dissolvendo sozinho.
graves porque o desenvolvimento tinha so- As eleições de 1992 deram uma vitória ar-
frido de uma má gestão atroz. Os pobres fi- rasadora ao Movimento pela Democracia
cavam mais pobres e careciam de produtos Multipartidária (Movement for Multiparty
básicos, a agricultura era negligenciada e Democracy, MMD). O UNIP conquistou
uma elite de moradores das cidades flores- todas as cadeiras nas províncias orientais,
cia. Kaunda, com sua retidão pessoal ima- mas poucas nos outros lugares. Kaunda re-
culada, mesmo assim era criticado por es- nunciou imediatamente e Frederick Chiluba
colher assessores medíocres, por se recusar se tornou o segundo presidente da Zâmbia.
a enfrentar os fatos econômicos e por presi- Kaunda voltou à política em 1995 quando
dir um declínio deprimente da situação de a coalizão de Chiluba se desfez e seu apoio
seu povo. Para garantir a reeleição em 1978 popular desabou (junto com o preço do
ele recorreu à desqualificação dos rivais de cobre), mas ele foi impedido de concorrer
antemão e, em 1980, tomou medidas de à presidência, em 1996, por uma emenda
emergência contra uma suposta conspira- constitucional desqualificando candidatos
ção para derrubá-lo. Para garantir créditos cujos pais tivessem nascido fora de Zâmbia,
estrangeiros essenciais através do FMI ele e foi preso em 1997 por acusações de tramar
cortou subsídios aos alimentos, com o resul- contra o Estado. A participação nas eleições
tado inevitável de que os preços dispararam, de 2001 caiu a 30%. A política se tornou
POLÍTICA MUNDIAL | 597

cáustica. Economicamente, a principal espe- po. Entretanto, não havia base para acordo,
rança da Zâmbia residia na venda das par- já que o governo estava comprometido com
ticipações majoritárias que o governo tinha condições que iam contra a demanda fun-
nas minas de cobre a empresas estrangeiras, damental da grande maioria da comunidade
uma vez que o país afundava na depressão branca da Rodésia: a preservação indefinida
social e moral acentuada por pobreza pro- do domínio da maioria.
funda e a epidemia de AIDS: 1 milhão de O governo propôs a nomeação de uma
crianças estariam órfãs. Comissão Real comandada pelo presidente
Na Rodésia do Sul, a Constituição de do Superior Tribunal da Rodésia, Sir Hugh
1961 só deixou uma questão política entre Beadle para examinar formas de testar a
os governos local e britânico: a independên- vontade popular, mas essa proposta foi re-
cia. Winston Field conjecturou um domínio jeitada por Smith e, em 11 de novembro de
rodesiano independente que abrangeria a 1965, o governo Smith declarou o país inde-
Rodésia do Sul e a maior parte da Rodésia pendente e foi demitido por Sir Humphrey
do Norte, com a Barotselândia e a Niasalân- Gibbs, mas continuou sendo o governo efe-
dia como Estados separados comandados tivo da Rodésia dentro de suas fronteiras.
por altos comissários nomeados pelo reino O governo britânico estava determi-
Unido, mas esse esquema foi atropelado pe- nado a não usar a força, exceto em caso de
los acontecimentos. Em 1963, ele deu início grande transtorno à ordem pública. A situa-
a negociações com a Grã-Bretanha, unica- ção era do tipo em que os governos britâ-
mente sobre a questão da independência, e nicos não teriam hesitado em usar a força,
se deparou com cinco condições: progresso mas o caso da Rodésia era diferente em dois
livre em direção ao governo da maioria, ga- aspectos decisivos: primeiro, porque, embo-
rantias contra emendas regressistas à Cons- ra tecnicamente uma colônia, a Rodésia foi
tituição de 1961, melhoria imediata dos administrada e, na prática, governada por
direitos dos africanos, fim da discrimina- sua própria população branca por mais de
ção racial e uma base para a independência 40 anos, e, segundo, porque o governo rebe-
aceitável ao povo do país como um todo. Ian lado era branco e não negro, de forma que
Smith, que depôs Winston Field em 1964, um recurso à força naquilo que os brancos
tentou atender à última e mais difícil dessas da Rodésia tinham transformado em uma
condições reunindo um indaba de chefes questão racial dividiria muito a opinião na
que, tendo sido recebidos com honras de Grã-Bretanha e poderia inclusive submeter
governo e boas viagens ao exterior, disseram os oficiais britânicos a um teste de obediên-
exatamente o que se esperava deles – mas cia no qual eles poderiam não ser aprova-
sem convencer a ninguém na Grã-Bretanha dos. O governo britânico ficou com duas
de que isso era uma demonstração da von- opções: negociação ou coerção econômica.
tade popular. O advento do governo Traba- Durante um ano, ele usou as duas
lhista em Londres, no final de 1964, causou opções. Impôs sanções relacionadas ao pe-
desalento entre brancos em Salisbury e tróleo e garantiu uma resolução no Conse-
aumentou a demanda por uma declaração lho de Segurança proibindo o fornecimento
unilateral de independência, mas o novo go- de armas à Rodésia e solicitando um boicote
verno britânico, acossado pela crise econô- econômico internacional. Mais de 40 países
mica e com uma maioria parlamentar mí- cumpriram a solicitação. Em 1966, o Con-
nima, decidiu manter as conversações com selho de Segurança, por solicitação da Grã-
Salisbury em andamento para ganhar tem- -Bretanha, autorizou o uso da força para im-
598 | PETER CALVOCORESSI

plementar sanções relacionadas ao petróleo No primeiro aniversário da declaração


e, mais tarde, impôs sanções obrigatórias a unilateral de independência, a inutilidade
uma grande quantidade de mercadorias. dessas negociações ficou patente e a Grã-
Após 18 meses, essa proibição foi transfor- -Bretanha estava diante de uma longa ba-
mada em total, mas, apesar das dificuldades, talha econômica que, caso fosse travada,
que levaram tempo para fazer efeito, o regi- estava fadada a evoluir para uma disputa
me de Smith conseguiu se manter graças ao entre a imensa maioria das Nações Unidas,
governo da África do Sul (que dava crédito por um lado, e, por outro, entre a África do
e produtos e facilitava a exportação de pro- Sul e (menos decidido) Portugal, cuja polí-
dutos da Rodésia), graças à capacidade do tica era manter a batalha em andamento até
país de retaliação econômica contra Zâmbia que os opositores da Rodésia se cansassem e
(que dependia dele para obter carvão para deixassem de aplicar as sanções. Duas ten-
suas minas de cobre e em outros aspectos) tativas de resolver o problema por meio de
e graças, também, à relutância do governo negociações pessoais entre Harold Wilson e
britânico em intensificar medidas econô- Ian Smith – uma delas a bordo do HMS Ti-
micas enquanto pudesse continuar com ger, em 1966, e a segunda, a bordo do HMS
esperanças de uma solução negociada. As Fearless, em 1968 – fracassaram devido à
exportações da Rodésia foram substancial- obstinação de Smith, mas a volta dos con-
mente bloqueadas, suas reservas acabaram, servadores ao poder na Grã-Bretanha, em
seu governo teve de recorrer a empréstimos 1970, fez ressurgir a perspectiva de um acor-
estrangeiros, o país se tornou praticamente do e renovou a desconfiança dos africanos.
dependente da África do Sul, mas o regime Uma exploração extraoficial das chances
não foi forçado a capitular, e a economia se de acordo feita por Lorde Alport produziu
ajustou. uma resposta pessimista, mas Sir Alex Dou-
Ao aplicar as sanções, a Grã-Bretanha glas-Home, de volta ao Ministério das Rela-
não pretendia destruir a economia da Ro- ções Exteriores em Londres, abriu diálogo
désia, nem mesmo o regime de Smith, mas com Smith, por intermédio de Lorde Good-
forçá-lo a se submeter. Essas metas não eram man e apresentou um plano para o retorno
bem vistas pela maioria da Commonwealth, à constitucionalidade, desde que ele estivesse
que suspeitava que o governo britânico es- convencido de que isso era aceitável ao povo
tava inclinado a fazer um acordo com Smi- da Rodésia como um todo. Uma comissão
th, mesmo tendo que trair as promessas de liderada por Lorde Pearce foi à Rodésia, em
seus predecessores e suas próprias. Em uma 1972, para encontrar a resposta a essa per-
conferência da Commonwealth em Lagos, a gunta e relatou que a maioria dos africanos
Grã-Bretanha conseguiu ganhar tempo, mas rejeitava o plano. Dentro do país, as opera-
não recuperar a confiança de seus parceiros ções guerrilheiras, que tinham começado
africanos na organização e, em outra confe- sem sucesso alguns anos antes, aumentaram,
rência, em Londres, foi obrigada, por uma mas foram contidas pelas forças de Smith,
demonstração de firmeza quase unânime com ajuda sul-africana. As tentativas da OUA
por parte de membros de todos os continen- de curar as divisões entre líderes negros ro-
tes, a prometer que pediria ao Conselho de desianos não tiveram êxito, mas o colapso
Segurança que aplicasse sanções obrigató- do domínio português em Moçambique, em
rias se as negociações entre Londres e a Sa- 1974, transformou a situação ao infligir gol-
lisbury não gerassem uma volta à legalidade pes estratégicos e psicológicos aos brancos
até o final do ano. da Rodésia (as fronteiras a ser defendidas fi-
POLÍTICA MUNDIAL | 599

caram muitas centenas de quilômetros mais A ideia de uma conferência constitu-


longas) e apresentar novos problemas para cional foi mantida viva por Smith e Nkomo,
a política a ser implementada pela África do mas as perspectivas foram reduzidas pela
Sul. Os líderes dos países vizinhos – Zâmbia, intransigência branca e por novas divisões
Botsuana, Moçambique, Zaire, Tanzânia – entre os líderes negros, que foram convenci-
queriam a derrubada de Smith sem guerra. dos temporariamente a dar uma mostra de
Eles estavam dispostos a dialogar, e a tentar unidade. O fracasso da iniciativa Vorster-
convencer os negros da Rodésia a conversar -Kaunda deixou poucas perspectivas com
sobre um curto período de transição antes exceção da guerra. Na Rodésia, o impasse
do governo da maioria e sobre garantias para continuava, mas em torno dele, acontece-
as vidas e propriedades dos brancos. Eles fo- ram duas grandes mudanças. Para Vorster, a
ram encorajados pelas mudanças na política situação na Rodésia representava um grande
implementada pela África do Sul, principal- risco, cuja natureza havia mudado. O fracas-
mente por um discurso na ONU, em que o so da conferência de Victoria Falls tornou
representante sul-africano falou abertamente definitivo o afastamento de Vorster em rela-
sobre a existência do Apartheid em seu país, ção a Smith: o principal perigo para a África
criticou-o e vislumbrou um tempo (não es- do Sul não era mais o desaparecimento do
pecificado) em que ele terminaria. Essa de- domínio branco, mas sua persistência em
claração surpreendente foi ajustada depois, circunstâncias insustentáveis. Smith não
supostamente para um público interno, pelo era mais um escudo, e sim um calcanhar de
presidente Vorster que disse que isso não sig- Aquiles. Em segundo lugar, a intervenção
nificava “um homem, um voto” nem um par- russo-cubana em Angola trouxe os Estados
lamento negro. O ato de equilíbrio de Vors- Unidos para a confusão. A principal preo-
ter foi dirigido a quem via de fora, e Kaunda cupação norte-americana, além de retirar
mandou um enviado falar com ele, que pa- as armas cubanas da África e impedir que a
recia ávido para empreender uma mudança influência russa se espalhasse, era a estabili-
de regime na Rodésia sem derramamento de dade, que na Rodésia era impossível sem o
sangue. Em dezembro de 1974, Smith liber- eclipse do poder branco.
tou os dois principais líderes nacionalistas Smith não se deu conta do rumo que
presos, Joshua Nkomo e Ndabaningi Sithole, os eventos tomavam. As sanções eram uma
como preliminar a um cessar-fogo e a uma farsa. A patrulha naval em Beira, mantida
possível conferência constitucional, e no mês pelos britânicos por 10 anos (até Moçambi-
de setembro seguinte, Smith, por incentivo que se tornar independente, em 1975) a um
de Vorster, participou de uma conferência custo de pelos menos 100 milhões de libras,
com nacionalistas em uma ponte sobre as impedia a entrega de petróleo cru à Rodésia
cataratas de Victoria, com a participação do através de Beira, mas nada se fazia para im-
próprio Vorster e de Kaunda. A conferência pedir o fornecimento de produtos refinados
foi um fracasso, tecnicamente por causa de através de Lourenço Marques ou de outras
uma disputa sobre os termos de referência já rotas. Portugal e África do Sul faziam pou-
acertados entre Vorster e Smith, e, substan- co segredo de que ajudavam Smith a driblar
cialmente, porque Smith não estava disposto as sanções. A adesão dos norte-americanos
a discutir qualquer proposta constitucional era parcial: a importação de cromo e outros
com exceção da sua, que naquele momento minerais da Rodésia foi legalizada em 1971.
não incluía a transferência do poder à maio- E depois ficou claro que Smith tinha pleno
ria negra. suprimento de petróleo, principalmente de
600 | PETER CALVOCORESSI

empresas britânicas e associadas que não superficial de Kissinger no sul da África, no


deixavam de conceber formas de ajudá-lo – início dos anos de 1970, fez ele concluir que
para o que podiam contar com a benevolên- Washington deveria, e poderia, melhorar
cia das autoridades britânicas e seus minis- suas relações com regimes brancos e negros
tros, que fingiam não ver o tráfico – grande para impedir que a URSS fizesse isso, par-
demais para ser invisível. (Mesmo quando tindo da premissa de que os regimes que ele
essa história inverossímil passou a ser de viu continuariam lá. O colapso do domínio
conhecimento público, não houve proces- português prejudicou essa política. Ao se
sos contra empresas ou indivíduos que, des- cortarem todas as saídas para o comércio
cumprindo a lei, conduziram uma política da Rodésia, menos a da África do Sul, a pri-
externa divergente dos compromissos e ob- meira ficou mais dependente da segunda e
jetivos aparentes de seu governo.) menos atrativa a esta como aliada, reduzin-
Smith também foi incentivado por dis- do em muito as chances de sobrevivência de
sensões entre seus adversários negros. Sua Smith. A leste, o colapso do domínio portu-
tática era explorar essas diferenças com o guês não apenas fechou as rotas da Rodésia
objetivo de preservar o controle branco por ao mar, mas também abriu uma nova frente
meio de um acordo com um ou mais dos guerrilheira. A oeste, criou em Angola uma
líderes negros, de preferência Nkomo: a crise internacional pela qual a URSS assegu-
clássica política de dividir e conquistar. Mas rou um pequeno baluarte no sul da África.
Smith tinha objetivos grandes demais, agar- As reações imediatas dos Estados Unidos,
rando-se muito ao domínio da maioria ne- todas elas equivocadas, foram transferir a
gra e, então, quando foi forçado a entrar em ajuda dos portugueses aos movimentos de
um acordo com o bispo Muzorewa e outros, libertação de Angola, que fracassaram, e
o resultado era bom demais para se manter. instigar uma invasão sul-africana, que tam-
As negociações entre Smith e Nkomo bém fracassou. Ao voltar à África em 1976,
se romperam na primeira metade de 1976. Kissinger anunciou uma virada radical em
As operações guerrilheiras, embora ainda prol dos negros ao se declarar favorável ao
relativamente ineficazes e limitadas a áreas governo da maioria, não apenas na Rodésia,
de fronteira, estavam aumentando, com Ro- mas também na Namíbia e na África do Sul.
bert Mugabe surgindo como o líder no qual Entretanto, esse pronunciamento foi apenas
a maioria dos guerrilheiros confiava: ele era o prelúdio retórico de uma aliança incô-
o único que não estava interessado em ne- moda com a África do Sul para pressionar
gociatas com os brancos. Mugabe evitava a Smith. Vorster interrompeu a ajuda militar
politicagem que fazia parte da natureza de e permitiu que os canais que Smith ainda
Smith e também vislumbrava a solução do tinha para o mundo exterior fossem conges-
conflito por outros meios. Smith, incapaz de tionados. Kissinger foi à África do Sul para
distinguir um tipo de esquerdista de outro, uma tensa reunião com Smith, que teve de
estava muito confiante em sua capacidade ceder ao poder superior. Ele aceitou o go-
de retratar Mugabe como uma marionete verno de maioria dentro de dois anos, junto
moscovita e subestimava os guerrilheiros. com um plano de transição que incluía uma
O colapso do domínio português e a maioria negra no gabinete e um primeiro-
intervenção russo-cubana em Angola obri- -ministro negro.
garam os Estados Unidos a rever suas po- A guerrilha ganhou importância du-
líticas, que eram baseadas em uma estabili- rante o ano de 1976, espalhando-se para o
dade que não existia mais. A primeira visita coração do país, prejudicando visivelmen-
POLÍTICA MUNDIAL | 601

te, e muito, a economia e a mão de obra, e principalmente Zâmbia e Moçambique, es-


estimulando a emigração dos brancos. Mas tavam sofrendo muito com as consequências
em sua mente, Smith estava longe de se econômicas da guerra e dos ataques retalia-
render. Ele insistia em interpretar o gover- tórios da Rodésia contra os campos guerri-
no da maioria como sendo, não o governo lheiros em seus territórios.
dos negros, mas o governo da maioria res- Ao tomar posse em 1977, o presiden-
ponsável, ou seja, rejeitava o princípio de te Carter nomeou Andrew para lidar com
“um homem, um voto”. Embora anuncias- assuntos africanos. Londres tinha em Da-
se o fim do domínio branco, ele conseguiu vid Owen um novo ministro do exterior e,
dar a impressão de que o controle pelos depois de uma viagem conjunta às capitais
brancos continuaria. Conseguiu destruir o africanas, esses dois apresentaram um novo
plano Kissinger. Kissinger tinha dado a en- plano para dar fim à Declaração Unilateral
tender a ambos os lados mais do que havia de Independência (Unilateral Declaration of
sido acordado com qualquer um deles. Ele Independence, UDI) pela transferência de
deixou que Smith pensasse que os detalhes poder à maioria branca depois de uma breve
que ele esboçara tinham sido aceitos pelos retomada da autoridade britânica e eleições
presidentes da Linha de Frente Africana e a serem realizadas sob supervisão interna-
pelos líderes guerrilheiros, quando não era cional. O plano fracassou principalmente
o caso. Os presidentes da Linha de Frente porque Smith ficou indignado com sua cláu-
reclamavam, por sua vez, que tinham sido sula estabelecendo “um homem, um voto”
enganados por Kissinger; consideravam e a perspectiva de perder o controle branco
como termos negociáveis aquilo que Smith das forças armadas e da segurança. Smith
via como parte da barganha forçada a ele viajou para uma reunião secreta com Kaun-
por Kissinger. Sendo assim, era fácil para da, mais uma vez em busca de uma aliança
Smith declarar-se livre dessa negociação, com Nkomo – que o frustrou novamente.
a menos que nenhuma letra dela fosse al- Portanto, ele recorreu a sua segunda opção
terada. O plano Kissinger era um conjunto para a mesma tática: um acordo com outros
de compromissos imprecisos que estavam líderes africanos para impedir a vitória de
longe de ser consensuais. Uma conferência Mugabe. Depois de negociações ácidas com
com todas as partes interessadas em Gene- Muzorewa, Sithole e o chefe Jeremiah Chi-
bra não conseguiu resgatar o plano, tam- rau, Smith aceitou um voto por pessoa, mas
pouco uma investida diplomática britânica garantiu a posição branca através de direi-
posterior pelo continente. tos sacramentados na Constituição. A Grã-
A essas alturas, o impasse parecia pior -Bretanha e os Estados Unidos apoiaram o
do que nunca, mas os líderes guerrilheiros esquema com a reserva que o tornava sem
tinham concordado, nesse meio-tempo, em sentido: eles o aprovariam se a Frente Patrió-
colaborar, militar e politicamente, como tica também aprovasse. Mas tratava-se de
Frente Patriótica. Ainda que frágil, essa um plano para manter a Frente fora.
aliança viria a vencer a guerra. As potên- Depois de muitos debates e questiona-
cias externas tampouco estavam preparadas mentos, os brancos da Rodésia aprovaram
para permanecer inativas. A Grã-Bretanha, a nova Constituição em um referendo de
os Estados Unidos e a África do Sul estavam 1979. Eleições que contaram com uma boa
comprometidas com a substituição do regi- participação deram a vitória a Muzorewa
me de Smith por outra coisa, assim como os e ele se tornou primeiro-ministro do país
presidentes da Linha de Frente, cujos países, adequadamente batizado de Zimbábue-Ro-
602 | PETER CALVOCORESSI

désia. Mas essa solução não era convincente. e o contrário na de outros, deram a Muga-
Os brancos continuavam no controle por be e seu partido União Africana Nacional
um tempo indefinido e o novo governo não do Zimbábue (Zimbabwe African National
conseguia introduzir nem mesmo reformas Union, ZANU) uma maioria decisiva e ab-
de aparência para aliviar, muitos menos en- soluta, e ele se tornou primeiro-ministro do
cerrar, a discriminação racial. Estado independente do Zimbábue.
As eleições na Rodésia coincidiram com A independência transformou o con-
eleições na Grã-Bretanha que devolveram flito entre brancos e negros, de uma luta
aos conservadores o poder com uma pri- pelo poder em disputas por terra, e acirrou
meira-ministra suspeita de ter mais simpa- o conflito entre os Shona e os Ndebele, per-
tia por Smith do que a maioria dos políticos sonificados por Mugabe e Nkomo. O segun-
britânicos. Margareth Thatcher parecia, por do foi expulso do governo em 1982, fugiu
suas declarações públicas, ser favorável ao para a Inglaterra, voltou para as eleições em
reconhecimento do governo de Muzorewa e 1985, fez as pazes com Mugabe em 1987 e
à imediata suspensão das sanções, mas pre- se tornou vice-presidente, mas também uma
valeceu o pragmatismo britânico. A Frente personagem da história: o pai-fundador de
Patriótica era agora muito eficaz para ser um Estado africano moderno cujas conquis-
afrontada impunemente. Ela estava ao lado tas foram frustradas, sendo ele um líder de
do vencedor. Em uma conferência da Com- minoria. Os Ndebele eram numerosos o su-
monwealth em Lusaka, os britânicos con- ficiente para desagregar o Estado, mas não
tinuaram contendo o reconhecimento do para criar por contra própria uma sociedade
acordo Muzorewa-Smith até que se pudes- construtiva em um ambiente hostil. Duran-
se fazer mais uma tentativa de conciliar as te os anos de 1980, eles foram gradualmente
partes em guerra. A Grã-Bretanha preparou alienados e amedrontados, a ZANU au-
uma nova Constituição, sem as disposições mentou seu controle sobre a Ndebelelândia
mais explicitamente pró-brancos do docu- e Mugabe estabeleceu, na prática, um siste-
mento de 1978, e a apresentou a ambos os ma de partido único em um sistema cons-
lados em uma conferência em Londres no titucionalmente multipartidário. As grandes
final de 1979, somente com duas alterna- esperanças investidas no próprio Mugabe
tivas: pegar ou largar. O novo ministro do foram obscurecidas quando a violência le-
exterior, Lorde Carrington, ameaçou reco- vou a detenções ilegais sem julgamento, agi-
nhecer Muzorewa se a Frente Patriótica não tações em unidades do exército e desvios de
reconhecesse essa Constituição, enquanto, alimentos de áreas escolhidas politicamente,
por outro lado, Mugabe e Nkomo estavam resultando em fome nessas áreas. Nem todos
sob forte pressão dos presidentes da Linha os colegas mais velhos de Mugabe resistiram
de Frente para chegar a um acordo. às tentações do poder e, em 1988-1989, es-
Essa combinação prevaleceu. Os bran- cândalos forçaram cinco ministros a renun-
cos e Muzorewa, embora decepcionados e ciar e um a se suicidar. A preferência explíci-
com raiva, não tiveram outra alternativa a ta de Mugabe pelo socialismo estatal em um
não ser aceitar, porque o que tinham cons- Estado de partido único carecia de popu-
truído não era consistente. A conferência, laridade não apenas na opinião ocidental e
ao contrário das expectativas iniciais, che- seus governos, mas também em seu próprio
gou a um acordo. Um governador britâni- partido, onde cada setor temia que, em um
co foi para Salisbury por quatro meses. As Estado de partido único, outro setor do par-
eleições, justas e livres na visão de alguns, tido se tornaria o único grupo governante.
POLÍTICA MUNDIAL | 603

Um plano econômico imponente, que tinham acontecido no período de 1930-1960


começou atraindo apoio internacional, – receberam a promessa de recuperá-las,
tornou-se precário por causa da seca, da mas o novo Estado também prometeu pa-
instabilidade política, do mau sistema de gar indenizações em moeda estrangeira aos
transporte e distribuição, da fuga da terra proprietários brancos expulsos, a uma taxa
em direção às cidades superpovoadas com aplicável a vendas entre comprador e ven-
moradias inadequadas e nenhum emprego, dedor voluntários. Um primeiro plano para
além de uma dívida externa intolerável, re- assentar 162 mil famílias em cinco anos
ceitas estrangeiras em queda à medida que atingiu somente um terço de sua meta, em
os preços mundiais diminuíam e uma infla- parte por dificuldades práticas como a ne-
ção que subia e descia, mas com um PIB que cessidade de construir novas estradas, em
só descia. Todos esses elementos fragiliza- parte, porque havia pouca terra disponível
vam a posição pessoal do homem cuja pre- para os sem-terra, e em parte porque o go-
eminência o tinha tornado particularmente verno insistia que os recém-chegados deve-
vulnerável a oscilações da sorte. riam antes renunciar ao título (se houvesse)
Dois fatores especiais agravaram a si- da terra que estavam deixando.
tuação. O primeiro foi a guerra em Moçam- Embora o mandato de Mugabe fosse até
bique. O Zimbábue formou, em 1982, uma 2001 e seu partido tivesse vencido quase to-
Força-Tarefa Especial para defender o ole- das as cadeiras no parlamento, ele perdeu es-
oduto que ia até a Beira, na costa moçam- paço pessoalmente: seu envio de tropas para
bicana, contra os guerrilheiros da Renamo, ajudar Kabila no Congo custou dinheiro e
e essa tarefa relativamente modesta o levou vidas, sua política de alianças com Kabila e
a se aprofundar na guerra civil em Moçam- Dos Santos parecia ideológica e pragmati-
bique. Em 1986, a Renamo declarou guerra camente inócua, a corrupção e a ostentação
contra o Zimbábue, levando as hostilidades em altas esferas era visível, os salários e o
à sua província leste de Manicalândia e le- emprego decaíram, o declínio econômico
vando à criação, em 1989, do Movimento de acelerado reduziu o valor externo da moeda
Unidade do Zimbábue, por membros des- em três quartos. Em 2000, tendo alienado
contentes da ZANU – principalmente Edgar muitos entre seu próprio povo shona, bem
Tekere, a quem Mugabe tinha demitido de como os ndebeles e a minoria branca, ele ti-
seu governo. nha poucas perspectivas de manter o poder
Em segundo lugar, deixou-se que o pro- sem fraude e violência. Mas, não tendo ad-
blema agudo da propriedade da terra, ou versário de destaque comparável, recusou-
seja, a ocupação, pelos brancos, da melhor -se a designar um sucessor dentro de seu
terra cultivável por um custo irrisório, fosse partido. Aparentemente convencido de sua
se agravando. A Grã-Bretanha ofereceu-se popularidade, embora forçado a recorrer à
para contribuir com 75 milhões de libras repressão e à brutalidade, ele se agarrou ao
para um reassentamento, mas insistiu, em poder sem maior inconveniência do que a
uma etapa posterior das negociações de expulsão da Commonwealth (2003), en-
independência, que não deveria haver ex- quanto a hiperinflação grassava e seu povo
propriação por 10 anos. Uma promessa de passava fome, e, no final de 2007, anunciou
financiar metade do custo de um acordo sua intenção de buscar outro mandato. Em
eventual não acabou com a desconfiança 2008, as eleições para o parlamento e a pre-
dos negros. As famílias expulsas de sua ter- sidência deram a vitória a Morgan Tsvangi-
ras depois de 1980 – as expulsões em massa rai e seu partido, gerando uma grave crise
604 | PETER CALVOCORESSI

política. Os resultados da votação levaram durante o século XVI, mas os Portugueses


um mês para serem divulgados. Posterior- foram aos poucos sendo expulsos da Áfri-
mente, a comissão eleitoral proclamou, ca ocidental pelos holandeses, britânicos e
depois de uma série de recontagens, que o franceses, e iriam encontrar seus maiores
MDC tinha conquistado uma pequena mar- prêmios mais ao sul. Luanda, a capital de
gem parlamentar e, após mais postergações, Angola, foi fundada, em 1576, por um neto
que Tsvangirai tinha obtido mais votos do de Dias, ela foi dominada pelos holandeses
que Mugabe para a presidência, mas não o por um breve período, mas foi recapturada
suficiente para garantir o cargo. Enquan- pelo aventureiro brasileiro Salvador de Sá,
to isso, Tsvangirai e alguns de seus colegas que se tornou seu governador e restaurou
fugiram do país e Mugabe, no que poderia o domínio português. O tráfico foi abolido,
ser chamado, com a maior boa vontade, de em 1836, e a própria escravidão, suposta-
desconexão com a realidade, recusou-se a mente, em 1858. Durante a fase mais inten-
reconhecer sua perda de poder e mandato, sa da refrega europeia pela África, Portugal
e desdenhou esforços de chefes de Estado foi apoiado esporadicamente, mas de forma
vizinhos para negociar uma forma de sair ineficaz, pela Grã-Bretanha, e por mais nin-
do impasse. Mugabe aceitou a necessidade guém. A Alemanha cobiçava os territórios
de um segundo turno de votação para a pre- portugueses e esperava conquistá-los em-
sidência, e Tsvangirai concordou, apesar de prestando a Portugal mais dinheiro do que
indicações patentes de que Mugabe estava este poderia pagar, e depois executando a
determinado a vencer pelo terror, se fosse dívida. O sonho português de ligar Angola
necessário. O MDC, então, mudou de ideia a Moçambique por uma faixa de terra nun-
e decidiu não disputar as outras eleições ca foi concretizado. Embora Moçambique
por medo de provocar violência insensata, tenha sido colonizado nos 25 anos antes de
e Mugabe conquistou mais uma vez a presi- Segunda Guerra Mundial, os portugueses
dência, mas sofreu o tipo de choque do qual só demonstravam um interesse morno na
um ditador raramente se recupera. África, enquanto sua lentidão na supressão
da escravidão lhes rendeu uma notoriedade
escandalosa, principalmente depois da pu-
Moçambique-Angola-Namíbia blicação, em 1906, de A Modern Slavery, de
H. W. Nevinson.
Até 1974, o cone sul da África era flanquea- Grandes rebeliões em Angola, em 1922
do pelos territórios portugueses de Angola e 1935, foram reprimidas com crueldade,
e Moçambique. Os portugueses foram os mas também alimentaram movimentos na-
primeiros a chegar e os últimos a sair do cionalistas. Lisboa começou a ver que seu
continente: os primeiros colonialistas e os domínio era menos ameaçado por podero-
últimos imperialistas. Esse pequeno país sos brancos locais do que pelo nacionalismo
europeu se aventurou pela primeira vez negro, mesmo que os nacionalistas fossem
em continentes estrangeiros há 500 anos prejudicados no curto prazo por analfabe-
e adquiriu, na África, terras que eram 23 tismo, divisões tribais e a enorme força da
vezes seu próprio tamanho. Bartolomeu política e do exército portugueses. Em 1952,
Dias circundou o Cabo da Boa Esperança as colônias de Portugal foram rebatizadas
em 1487, seguido por Vasco da Gama em de províncias ultramarinas e a década de
1498. O tráfico da Guiné, do qual a Gui- 1950 assistiu a um surto de obras públicas
né portuguesa era uma relíquia, floresceu e planos de desenvolvimento. A mudança
POLÍTICA MUNDIAL | 605

de nome permitia a Portugal alegar que não nião pública politicamente ativa protegia
tinha obrigações de apresentar relatórios à o governo daquilo que havia sido um dos
ONU em função do Artigo 73(e) da Carta. fatores mais fortes da descolonização em
Esse subterfúgio era apoiado pelos amigos Londres, Paris e Bruxelas, mas 10 anos de
norte-americanos e britânicos de Portugal e combates onerosos e malsucedidos em três
seus aparentados brasileiros, mas, em 1963, territórios muito separados desgastaram
os Estados Unidos e a Grã-Bretanha vota- a disposição dos militares portugueses. Os
ram por uma resolução da Assembleia Geral movimentos de libertação conquistaram
da ONU exigindo que Portugal acelerasse a o apoio popular, ampliando suas áreas de
autodeterminação: só a Espanha e a África controle e recebendo armas do exterior, e os
do Sul votaram contra, a França se absteve. portugueses tentaram bombardeios e arame
Portugal praticava uma política de assi- farpado, mas os primeiros foram ineficazes
milação como forma de expandir gradual- contra guerrilheiros e o segundo não con-
mente os direitos civis, mas a imigração seguiu separá-los da população. O governa-
crescente vinda daquele país em meados dor de Guiné-Bissau, o general António de
dos anos de 1950 alterou padrões sociais e Spínola, convencido da inutilidade da luta,
econômicos, reforçou as barreiras de cor e renunciou, em 1973, e voltou a Lisboa como
levou muitos angolanos ao desemprego e ao eloquente opositor da continuidade do do-
semiemprego. Dezenas de milhares, a maior mínio colonial. Suas ações e seus escritos
parte do Congo, foram para o exílio, e os contribuíram para que a ditadura, fundada
movimentos nacionalistas estabeleceram em 1926, fosse derrubada pelo exército em
seus quartéis-generais em Leopoldville. A 1974. O Movimento das Forças armadas,
emancipação das colônias britânicas e fran- que assumiu o controle de Lisboa, declarou-
cesas no oeste da África e no Congo Belga -se favorável à independência nas colônias
aproximou de Portugal o problema moder- africanas de Portugal.
no da África e, em 1961, houve rebeliões Em Moçambique, um movimento de
em Luanda, estimuladas parcialmente pelas libertação, a “Frelimo”, deu início a uma
aventuras do capitão Henrique Galvão, que rebelião armada em 1964, mas sofreu, em
tomou o navio Santa Maria e era esperado 1969, o assassinato de seu líder Eduardo
na costa de Luanda no papel de libertador. Mondlane. Os portugueses persistiram
Também houve transtornos no norte com um programa de desenvolvimento
e uma invasão a partir da fronteira com o econômico em associação com empresas
Congo. Os portugueses foram pegos de sur- sul-africanas, europeias e norte-america-
presa, sofreram baixas de 1.400 e responde- nas (que, assim, adquiririam um interesse
ram ao barbarismo na mesma moeda. As particular no domínio português). Esses
perdas africanas foram da ordem de 20 mil e eventos, voltados à construção de uma
um fluxo de refugiados com ferimentos ter- barragem hidrelétrica em Cabora Bassa,
ríveis, no decorrer dos anos seguintes, man- que acrescentaria um milhão de pessoas à
chou o nome dos portugueses. Em 1970, as população branca, eram claramente políti-
guerras coloniais estavam forçando Portugal cos, pois Moçambique já tinha seus siste-
a alocar metade de seu orçamento e mais de mas hidrelétricos. As implicações políticas
6% de seu PIB às despesas militares, para – e o lobby por parte de países africanos
mobilizar os maiores exércitos jamais vistos – fizeram com que alguns dos participan-
na história de Portugal e convocar jovens tes pensassem duas vezes e, nos casos de
por quatro anos. A ausência de uma opi- Suíça e Itália, optassem pela retirada. Com
606 | PETER CALVOCORESSI

a independência, a principal ameaça a Mo- muito a velha guarda da Frelimo por incom-
çambique vinha da África do Sul, que fez petência militar e corrupção pessoal. Chis-
jogo duplo durante grande parte dos anos sano preferia a diplomacia à guerra, ainda
de 1970 e de 1980. O presidente Vorster que somente porque seu governo era capaz
aceitava publicamente a vitória da Freli- de conter a Renamo, mas não de extingui-la,
mo, em 1974, e desejava sucesso ao novo enquanto a África do Sul a apoiasse. No lado
governo de Samora Machel, mas a preocu- do governo, a moral e a disciplina estavam
pação maior da África do Sul era proteger em baixa à medida que subia o custo de vida,
seu flanco contra o CNA – que tinha bases e a pacificação parecia estar fora do alcance.
e amigos em Moçambique – fosse por meio Chissano tomou um rumo reformista, afas-
de acordos anti-CNA com o governo de tado do centralismo comunista e em direção
Moçambique, fosse ajudando os inimigos a um sistema multipartidário, e o Moçambi-
insurgentes do governo, a Renamo (ou am- que comunista abandonou o partido único
bos). Em 1984, a África do Sul concluiu em mais rapidamente do que seus vizinhos no
Nkomati um acordo segundo o qual dei- Malaui, em Zâmbia e na Tanzânia. O acor-
xaria de fornecer suprimentos à Renamo e do de Roma, negociado com a África do Sul,
daria fim à guerra contra Moçambique em em 1990, com a ajuda do presidente Kaun-
troca de que este abandonasse o CNA, mas da, estabeleceu um cessar-fogo e um plano
apesar da posterior confirmação dessas para a redução das forças e sua concentração
promessas, a Renamo continuou receben- em determinadas áreas. A Renamo criticou
do ajuda da África do Sul. o acordo porque as forças do Zimbábue não
O interesse do presidente Botha na paci- foram retiradas de território moçambicano.
ficação do sul de Moçambique (de onde vi- O governo foi enfraquecido por um golpe
nha um quarto dos trabalhadores das minas (fracassado) contra Chissano em 1991, en-
da África do Sul) não se estendia ao norte. quanto a Renamo foi fortalecida quando
A Renamo era um espinho útil espetado em seu líder, Alfonso Dhlakama, foi recebido
Machel, desde que não o forçasse a cair nos pelo papa e por líderes portugueses (entre
braços da URSS. Mas, apesar da ajuda da outros) na Europa. Novos acordos foram
África do Sul e dos simpatizantes portugue- assinados e a ONU concordou em enviar 7
ses, a Renamo não conseguiu criar qualquer mil observadores sob a Operação da ONU
coisa que se assemelhasse a um governo ri- para Moçambique (ONUMOZ), mas a Re-
val. Todavia, o governo de Machel tampou- namo continuava sendo um obstáculo, já
co conseguiu acabar com ela, não apenas que sua posição melhorava constantemen-
por causa da ajuda estrangeira, mas também te nas regiões norte e central, alienadas do
por dois fatores internos: Moçambique era governo por desconfiança em sua formação
um país grande, dividido em diversas áreas predominantemente sulista (xichangana).
desconfiadas umas das outras e da autorida- Em 1992, os antigos inimigos concordaram
de central, e o governo de Machel tendia a com um cessar-fogo e, com exceção de dis-
desconsiderar costumes tradicionais e sus- putas localizadas, os combates foram ter-
cetibilidades regionais em seu impulso em minando. A economia se recuperou, mas a
direção à modernização. Machel morreu em distância entre pobres e ricos aumentou. Em
um desastre de avião na África do Sul, pro- 1995, Moçambique se tornou o 53º membro
vavelmente acidental, em 1986. Seu sucessor, da Commonwealth, o primeiro sem uma co-
Joaquim Chissano, com 49 anos, represen- nexão britânica anterior à independência, e
tava uma geração mais jovem que criticava começou a reverter seu destino destroçado
POLÍTICA MUNDIAL | 607

atraindo investimentos de empresas estran- força aérea sul-africana, humilhada. A UNI-


geiras que estavam de olho nas perspectivas TA, embora abatida no sul, foi reabilitada
de turismo, praias e jogo, e de fazendeiros pelo Zaire e pelos Estados Unidos, mas era
brancos que fugiam de uma África do Sul apenas uma jogada tática quando estavam
branca. Chissano perdeu o cargo em 2005, sendo iniciadas conversações em Londres
quando seu mandato terminou constitucio- entre a África do Sul, Angola e Cuba, com
nalmente, deixando seu país melhor e mais a aprovação dos Estados Unidos (mas com
respeitado do que quando assumiu. a UNITA deixada à sua própria sorte). Em
Em Angola, não havia um equivalente 1991, os acordos de Bicesse determinavam
único da Frelimo e quando, às vésperas da a retirada de tropas sul-africanas e cuba-
independência, a Frente Nacional de Liber- nas: as primeiras saíram em 1989, metade
tação de Angola (FNLA), de Holden Rober- dos cubanos no mesmo ano e o restante em
to, atacou o Movimento Popular de Liberta- meados de 1991. A guerra civil foi interrom-
ção de Angola (MPLA), de Agostinho Neto, pida temporariamente.
a África do Sul invadiu Angola em apoio a Foi solicitado que a ONU, que tinha su-
um terceiro movimento, a União Nacio- pervisionado a retirada cubana por intermé-
nal para a Independência Total de Angola dio da Missão de Verificação da ONU em
(UNITA), de Jonas Savimbi. Angola (United Nations Angola Verification
Mas Neto apelou para Fidel Castro (so- Mission, UNAVEM I), supervisionasse a im-
bre a intervenção cubana, ver o Capítulo plementação dos acordos de Bicesse (UNA-
26) e os sul-africanos foram forçados a re- VEM II) e, depois, eleições gerais e presiden-
cuar, por um tempo, embora continuassem ciais. Pelos acordos, Savimbi reconhecia José
a armar Savimbi, que conseguiu conquistar dos Santos (o sucessor de Neto na liderança
o controle sobre uma parte importante do do MPLA) como presidente e os dois líde-
país, principalmente as regiões montanho- res concordavam em retirar suas tropas para
sas no interior, tradicionalmente hostis aos os 50 pontos especificados e fundi-las em
povos do litoral que favoreciam o MPLA, e um exército conjunto de 50 mil membros –
temidas por estes. Os Estados Unidos apoia- um quarto das forças combinadas dos dois.
vam a UNITA, mas, prejudicavam a capaci- Formaram-se partidos políticos às dúzias e
dade do MPLA de prescindir dos cubanos, foram realizadas eleições sob a supervisão da
o que era o principal objetivo de Washing- ONU em 1992. Graças, em grande parte, à
ton. Reagan chamava Savimbi de democra- UNAVEM, as eleições foram pacíficas, jus-
ta e enviou imensas quantidades de ajuda tas e muito populares – mais de 90% dos que
para ele, descumprindo a Emenda Clark, de estavam habilitados votaram. Mas Savimbi,
1974, que a proibia. As incursões militares contrário às suas expectativas, descobriu não
da África do Sul eram de valor duvidoso. ser o vencedor: a UNITA teve 34% dos vo-
Partes de Angola foram ocupadas, devas- tos contra 54% do MPLA e, embora Santos
tadas e depois abandonadas. Em 1985, An- tenha ficado um pouco abaixo dos 50% ne-
gola, fortalecida por novos equipamentos cessários para sua confirmação como presi-
militares russos, foi para a ofensiva contra dente, Savimbi teve apenas 40%. Decepcio-
a UNITA e a África do Sul aceitou o desa- nado e desanimado com esse fracasso, mas
fio de resgatá-la. Ambos os lados fracassa- ainda fortalecido pelo apoio dos Estados
ram. Um massacre conjunto da UNITA e da Unidos, Savimbi recomeçou a guerra que,
África do Sul, na base estratégica de Cuito durante a maior parte de 1993-1994 causou
Cuanavale, em 1987-1988, foi frustrado e a mil mortes ou mais por dia. A UNAVEM III,
608 | PETER CALVOCORESSI

com meras 400 pessoas e com pouca verba O sudoeste da África, enorme, rico e
e outros recursos, não conseguia impedir a subpovoado, a extensão mais estéril da Áfri-
destruição de suas realizações, conquistadas ca, com exceção do Saara, passou ao domínio
a duras penas. As tentativas de interromper alemão no século XIX porque mais ninguém
os combates – principalmente pelo protoco- o queria. Na década de 1870, a Colônia do
lo de Lusaka, mediado pela Zâmbia, rompi- Cabo considerou e rejeitou expressamente
do com frequência e transformado em letra a anexação, e mesmo a divisão de 1884 em
morta em 1997 – eram recusadas por Savim- Berlim deixou o Sudoeste da África como res
bi, que não aceitava ceder território conquis- nullius. Nos últimos anos do século, contu-
tado nas últimas batalhas. Ele exigia uma do, os alemães entraram, inicialmente como
UNAVEM reformada, o que o Conselho de aliados dos hereros bantos, contra os namas
Segurança se recusava a dar, a menos que a (um povo aborígene que só era menos anti-
UNITA aceitasse os acordos de Lusaka. go do que os bosquímanos), e, depois, como
A UNAVEM III foi dissolvida e subs- colonos e agricultores. Rebeliões dos hereros
tituída por uma ainda mais fraca Missão e depois dos namas levaram à repressão sel-
Observadora da ONU em Angola (UN Ob- vagem que chegou a genocídio e, em 1907, o
server Mission in Angola, Unoma). Savimbi território foi devastado, subjugado e entregue
continuava obstinado, servindo-se do apoio a fazendeiros alemães junto com os africanos
de Mobutu no Zaire e dos governantes ri- sobreviventes, que se tornaram pouco mais
vais em Brazzaville (Nguessou e Lissouba), do que escravos. Na Primeira Guerra Mun-
mas, nos últimos meses de 1999, a UNITA dial, o território foi conquistado pelo general
sofreu graves perdas e, em 2002, as guerras Botha e um exército sul-africano em questão
civis que duraram quase meio século termi- de semanas, mas, depois da guerra, foi – jun-
naram. Savimbi foi morto em combate e a to com outras possessões alemãs fora da Eu-
riqueza natural de Angola ajudou o país a se ropa – posto sob mandato internacional em
recuperar de forma admiravelmente rápida. vez de ser tratado como espólio do conquis-
Angola foi devastada durante tantos tador. O mandato foi confiado pelas Prin-
anos por ser rica. A guerra em que cada lado cipais potências aliadas e associadas ao rei
gastava entre 1 e 2 bilhões de dólares por ano George V, para que administrasse o território
foi financiada por petróleo e diamantes – pe- através de seu governo na África do Sul, mas
tróleo que permitia ao governo fazer emprés- sem qualquer transferência de soberania. O
timos no exterior (hipotecando o futuro) e acordo do mandato estabelecia, entre outras
diamantes que a UNITA vendia ao cartel in- coisas, a supressão do comércio de escravos,
ternacional administrado por de Beers. Um armas e bebidas alcoólicas, proibia o estabe-
enredo secundário no drama de Angola era lecimento de bases militares e o treinamento
a relativamente pequena província de Cabin- militar de africanos, garantia liberdade re-
da, que tinha pouco destaque antes da desco- ligiosa e exigia que a potência que estivesse
berta de petróleo em 1966. Sua população de exercendo o mandato submetesse relatórios
100 mil incluía um movimento secessionis- anuais à Comissão Permanente de Mandatos
ta, era cobiçada pelo Zaire, mas Mobutu foi da Liga das Nações e encaminhasse à Liga as
comprado por Neto em 1978. queixas e solicitações dos habitantes. Em sua
A independência de Angola, em 1975, execução do mandato, o governo da África
transformou a situação no sudoeste da Áfri- do Sul tratou a nova ordem como um equi-
ca, que em pouco mais de uma década se valente da anexação. Foram feitas tentativas
tornou o Estado independente da Namíbia. de converter o Sudoeste da África em uma
POLÍTICA MUNDIAL | 609

quinta província do país e embora essas -africana. A África do Sul se ofereceu para
tentativas tenham encontrado a resistência negociar com os Estados Unidos, a Grã-
bem-sucedida da Liga, o caráter do território -Bretanha e a França, e os sobreviventes das
foi profundamente alterado por um afluxo de Principais Potências Aliadas e Associadas da
sul-africanos brancos que adquiriram terra a Primeira Guerra Mundial, um acordo para
preços baixos e se tornaram uma classe do- colocar o Sudoeste da África sob administra-
minante com um parlamento eleito. ção do Tribunal Internacional, mas essa ideia
Ao norte, foram reservadas áreas aos nova foi rejeitada por um comitê especial
africanos. A imigração branca foi proibida da ONU e foi retirada em 1955. Em 1957, a
nessas áreas, que tinham um governador- ONU nomeou um comitê mediador de três
-geral nomeado pela África do Sul agindo membros (Grã-Bretanha, Estados Unidos e
por meio de chefes africanos que recebiam Brasil) que visitou Pretória no ano seguinte
salários se fossem complacentes, mas eram e recomendou que nem o Conselho de Tutela
depostos se não o fossem. nem um orgão que consistia em ex-membros
Depois da Segunda Guerra Mundial, da Liga deveriam receber relatórios da po-
Smuts repetiu apelos pela integração do ter- tência mandatária, mas a África do Sul insis-
ritório à África do Sul, com base em proxi- tia que o mandato tinha terminado e estava
midade e vantagens econômicas. Ele negava continuando a administrar voluntariamente
que, como poder mandatário, a África do o território no mesmo espírito. A seguir, a
Sul tivesse obrigação de negociar um acordo África do Sul sugeriu uma divisão em que a
de tutela com a ONU e afirmava que os habi- parte sul do território seria anexada a ela e a
tantes do território eram felizes e prósperos parte norte (onde não havia brancos) estaria
e queriam fazer parte dele. Smuts foi obri- sob sua tutela a seria, quanto a administra-
gado a abandonar essa tentativa para garan- ção, parte do país. A Assembleia Geral rejei-
tir a integração e concordou em apresentar tou essa proposta. O território foi, na prática,
os relatórios à ONU sobre as condições no sendo absorvido pelo sistema administrativo
território, mas, depois de 1948, o movimen- da África do Sul e se tornou também sujeito
to nacionalista interrompeu os relatórios e às políticas e práticas do Apartheid.
também cedeu seis cadeiras na câmara baixa Em 1959, um relatório do Comitê da
do parlamento sul-africano a representantes ONU sobre o Sudoeste da África condenou
dos 53 mil habitantes europeus do Sudoeste amplamente a execução do mandato pela
da África (os não europeus eram 400 mil). África do Sul e, no ano seguinte, vários paí-
O Tribunal Internacional de Justiça de- ses africanos iniciaram um sólido processo
cidiu, em 1950, em um parecer consultivo no Tribunal Internacional de Justiça, recla-
(que foi desdobrado em pontos específicos mando que o acordo do mandato havia sido
em outras opiniões, em 1955 e 1956), que o violado. A Etiópia e Libéria, antigos mem-
mandato ainda estava em vigor, que a África bros da Liga e os mais antigos Estados inde-
do Sul não era obrigada a colocar o território pendentes do continente, também dirigiram
sob tutela, mas sim a apresentar relatórios e requerimentos ao tribunal na mesma linha
transmitir solicitações. A partir dessa época, e engajaram um eminente advogado norte-
as tribos herero, nama e damara divulga- -americano, Ernest Gross, para defender seu
ram suas visões ao mundo por meio de seu caso em Haia. Em 1960, o tribunal aceitou
porta-voz, o reverendo Michael Scott, que a jurisdição pela pequena margem de oito
apresentou um quadro de suas condições e juízes a sete. Depois de um processo arras-
desejos muito diferente da linha oficial sul- tado e caro, o tribunal rejeitou a petição dos
610 | PETER CALVOCORESSI

demandantes em julho de 1966 e, apesar de sul-africano nomeou a Comissão Odendaal


uma decisão preliminar em 1960, decidiu, para fazer recomendações sobre o Sudoeste
pelo voto de Minerva do presidente, que não da África. Essa ação foi causada por mais in-
tinha competência sobre a questão que estava terferência internacional, pois, em 1960, ha-
diante dele. Essa recusa a avaliar o mérito do via sido formada uma Organização do Povo
caso causou espanto geral e foi considerada do Sudoeste da África (South-West Africa
totalmente insatisfatória, no sentido de que People’s Organization, Swapo) que se decla-
o resultado se deveu plenamente a acidentes rou em guerra contra a África do Sul, dando
de morte ou má saúde, sem os quais o jul- início a distúrbios de consequência imprevi-
gamento a essas alturas teria sido no sentido sível no território. O relatório da Comissão
contrário. Os efeitos imediatos, além do júbi- Odendaal, de 1964, recomendava dividir o
lo na África do Sul e um pouco de descrença território em uma área branca e 10 negras, e
no papel do direito nas questões internacio- gastar mais de 80 milhões de libras em cinco
nais, foram devolver a questão do Sudoeste anos em comunicações, água e outras obras.
da África à arena da política (onde ela estava As regiões negras teriam determinados po-
fadada a acabar de qualquer forma). deres de governo local, mas questões de defe-
Em outubro de 1966, a Assembleia Geral, sa, segurança interna, fronteiras, água e ener-
afastando a ideia de mais recursos ao tribunal, gia seriam reservadas às autoridades centrais.
decidiu, por 114 votos a 2, com duas absten- A terra habitável e os minerais conheci-
ções, que o mandato estava terminado e que dos estavam dentro da área branca. A análi-
a ONU deveria assumir a administração do se desse relatório foi adiada para depois da
território. Foi nomeado um comitê especial decisão por parte do Tribunal Internacional.
para examinar como a segunda parte dessa A independência de Angola deu à Na-
resolução poderia ser aplicada. Essencialmen- míbia uma fronteira com um Estado negro
te, a maioria da Assembleia estava em busca independente e, à Swapo, bases fáceis de
de um curso de ação no qual a Grã-Bretanha alcançar a partir dessa fronteira. A África
(que se absteve da resolução) e os Estados do Sul abandonou sua política de anexação
Unidos (que votaram a favor) participassem. pela alternativa de transferir autoridade a
O comitê, bem como uma reunião posterior uma aliança anti-Swapo que provavelmente
da Assembleia Geral em 1967, ficou dividido responderia às necessidades e suscetibilida-
entre os que afirmavam, sem contradição, a des sul-africanas. Discussões no Turnhalle,
monstruosidade da conduta da África do Sul Windhoek, no período de 1975 a 1977, leva-
e os que perguntavam, sem resposta, o que se- ram à formação da Aliança Democrática do
ria feito a respeito. Em 1968, a ONU criou o Turnhalle (Democratic Turnhalle Alliance,
Conselho para a Namíbia (como o território DTA), uma associação inter-racial de par-
passou a ser chamado). Esse Conselho não es- tidos de base racial, que tinha a oposição
tava em posição de fazer qualquer coisa. Em do Partido Nacional Namíbio (Namibian
1970, o Conselho de Segurança declarou a National Party, uma coalizão de cinco parti-
ocupação da Namíbia pela África do Sul ilegal dos) e de segregacionistas brancos. A confe-
por descumprir os termos do mandato. Com rência do Turnhalle gerou um plano para a
efeito, a ONU anulou o mandato. Os mem- transição à independência, no final de 1978,
bros ocidentais do Conselho se abstiveram, junto com uma proposta de Constituição
mas não vetaram. tão complexa e uma fragmentação tão ex-
Enquanto o caso ainda estava em anda- cessiva do território, que aumentaram as
mento no Tribunal Internacional, o governo suspeitas de que seu principal objetivo era
POLÍTICA MUNDIAL | 611

deixar todos os poderes efetivos em Pretó- as conversações. O assassinato do chefe Cle-


ria. O plano, cuja meta essencial era colocar mens Kapuuo, inimigo da Swapo e pilar da
um governo aceitável na Namíbia antes das DTA, e a dura repressão pelo administrador
eleições e antes da independência, nasceu sul-africano que se seguiu a ele, destruíram
morto porque era inaceitável à ONU, que completamente as negociações. Entretanto,
estava elaborando paralelamente outros pla- elas foram retomadas depois de fortes pres-
nos. Vorster, tendo abandonado a anexação, sões de Zâmbia e Tanzânia sobre a Swapo
abandonou a alternativa Turnhalle, e não a para que se mantivesse nas conversações e a
substituiu por qualquer outra nova política, ONU conseguiu convocar uma conferência
mas anexou formalmente o porto da Baía de de todas as partes interessas em Genebra,
Walvis, que nunca tinha sido parte do ter- no início de 1981. Além dos protagonistas
ritório sob mandato, e as 12 ilhas Pinguim. – África do Sul e Swapo – os cinco países
A iniciativa passou à ONU, que, pela ocidentais e os seis países negros africanos
Resolução 435 do Conselho de Segurança, participaram como observadores.
adotou seu próprio programa e também es- A conferência não deu em nada por
tabeleceu um “grupo de contato” que con- causa da África do Sul. A independência da
sistia nos Estados Unidos, Canadá, Grã-Bre- Namíbia foi postergada ainda mais por duas
tanha, Alemanha Ocidental e França, para mudanças: a sucessão de P. W. Botha na li-
negociar com a África do Sul. O programa derança da África do Sul e a chegada de Ro-
da ONU exigia um cessar-fogo, a liberta- nald Reagan à Casa Branca em Washington.
ção de prisioneiros, o retorno de fugitivos O primeiro conduziu, por alguns anos, uma
à Namíbia (mas com a retenção dos guer- política mais vigorosa do que seu antecessor,
rilheiros da Swapo em suas bases em An- e o segundo vinculou o progresso na Namí-
gola) retirada de todos os 20 mil soldados bia à remoção dos cubanos de Angola.
da África do Sul (com exceção de 1.500), o O resultado foi o impasse. A DTA estava
envio de uma força da ONU, eleições para enfraquecida, seu líder Dirk Mudge renun-
uma assembleia constituinte, supervisão do ciou ao conselho de ministros e surgiu uma
processo como um todo por um Represen- nova associação de grupos anti-Swapo – a
tante Especial da ONU e por um Grupo de Conferência Multipartidária (Multi-Party
Transição da ONU (UN Transitional As- Conference, MPC). Em 1984, a África do Sul
sistance Group, UNTAG) e, tudo isso até a se declarou disposta a dar a independência a
independência, no último dia de 1978. A um governo de unidade nacional, mas não
África do sul aceitava o plano, desde que houve unidade em uma conferência em Lu-
a questão da Baía de Walvis fosse expres- saka, da qual participaram a Swapo e a MPC,
samente uma excessão e que houvesse um com a primeira se recusando a cooperar com
cessar-fogo efetivo antes de começar a reti- a segunda se não fosse com base em um ca-
rada das forças sul-africanas. A Swapo esta- lendário preciso para a independência. Em
va preocupada com a mobilização das for- 1985, a África do Sul entregou alguns pode-
ças sul-africanas restantes, que desejava ver res a um governo de transição, mas a chave
concentradas no sul e com a mal definida da situação estava fora do território, em An-
cooperação entre os representantes da Áfri- gola. Como parte do acordo de Brazzaville,
ca do Sul e da ONU. Enquanto a discussão de 1988, para a retirada de tropas de Angola,
sobre esses pontos ainda estava em anda- os governos sul-africano e angolano con-
mento, a África do Sul fez pesados ataques cordaram com uma patrulha militar con-
às bases da Swapo em Angola e esta cessou junta na fronteira angolana com a Namíbia.
612 | PETER CALVOCORESSI

A execução desse acordo e a preparação e a 1853 e 1872, e, na segunda ocasião, o direito


supervisão de eleições foram assumidas pela de ter seu próprio primeiro-ministro.
ONU (Untag). Nas eleições de 1989, a Swapo Na segunda parte do século XIX, a
teve 57% dos votos – menos do que os dois África do Sul conquistou um inespera-
terços dos votos que teriam lhe dado pode- do destaque no pensamento britânico,
res ilimitados para definir a Constituição. A por duas razões distintas. A primeira foi a
DTA teve 29% dos votos e 21 cadeiras. Ado- descoberta de sua riqueza – diamantes na
tou-se rapidamente uma Constituição em década de 1860 e ouro na de 1880. A se-
1990, e o líder da Swapo, Sam Nujoma, foi gunda foi a convicção de que a África do
eleito o primeiro presidente da Namíbia. A Sul era uma ligação vital nas comunica-
Swapo se revelou conciliadora, não fez qual- ções imperiais britânicas e que, portanto,
quer tentativa de monopolizar o poder ou a Grã-Bretanha deveria manter um con-
os cargos, conseguiu combinar um sistema trole firme, não apenas sobre a Cidade do
multipartidário com estabilidade e respeitou Cabo e Simonstown, mas também sobre o
a independência do judiciário e da imprensa. interior. A segunda preocupação fazia dos
O porto da Baía de Walvis foi transferido à holandeses, ou boers, inimigos potenciais,
Namíbia em 1994. já que poderiam convidar outras potências
europeias a ocupar o delicado interior ou
causar problemas para os britânicos com
África do Sul uma aliança com seus semelhantes na Co-
lônia do Cabo. Além disso, as tentativas dos
Os povos bantos chegaram ao extremo Sul boers de chegar à costa em território por-
do continente africano no século XVIII. Ali tuguês e negociar com o mundo exterior
encontraram os holandeses, entraram em
através de portos portugueses ameaçavam
conflito com eles e foram gradualmente do-
os lucros monopolistas dos comerciantes
minados e transformados em lenhadores de
britânicos no Cabo. Os britânicos come-
madeira e puxadores de água. Os holande-
çaram a expandir com mais determinação
ses que havia seguido os portugueses até o
do que antes. Tomaram a Basutolândia* dos
Cabo e inicialmente só foram confrontados
boers e a transformaram em um protetora-
pelos hottentots, desfrutaram de um breve
do em 1868. Anexaram Kimberley, a cidade
domínio até que, com seu país de origem
dos diamantes, em 1871, e o Transvaal em
tendo se tornado parte do Império Revolu-
1877. Tendo se deparado com os bantos,
cionário Francês, passaram a ser presa fácil
lutaram várias guerras (com destaque para
para os britânicos nas guerras napoleôni-
cas e perderam a base na Cidade do Cabo, a guerra zulu em 1879) e, em 1880-1881,
que haviam fundado em 1652. Na década foram à guerra contra os Boers, a quem
de 1830, eles juntaram suas coisas e saíram também acusavam de maltratar os bantos.
para estabelecer Estados independentes – O governo Liberal britânico, perplexo pelos
com sucesso além do Rio Orange e do Vaal, dilemas práticos e morais mais graves da
mas sem sucesso em Natal, onde, mesmo questão irlandesa, estava dividido em re-
derrotando os zulus, foram mais uma vez lação à atitude correta diante dos boers, e,
empurrados pelos britânicos que se expan- depois da batalha de Majuba, em 1881, ado-
diam e anexaram Natal em 1843. A colônia
britânica do Cabo cresceu política e demo- * N. de R.T.: Atual Lesoto, Estado totalmente enuavado na
craticamente, recebendo Constituições em África do Sul.
POLÍTICA MUNDIAL | 613

tou uma política de conciliação, restaurou africanos no processo. O Transvaal e o Esta-


as repúblicas boers do Transvaal e Orange do Livre de Orange receberam o autogoverno
Free State e reconheceu implicitamente a em 1906-1907, e a Constituição de 1908 foi
existência de um nacionalismo boer. dada a um parlamento exclusivamente bran-
Cecil Rhodes se tornou primeiro-minis- co que – embora tivesse a intenção de ser um
tro da Colônia do Cabo em 1890 e, por al- símbolo de reconciliação anglo-boers – ago-
guns anos, sua voz foi mais decisiva que a de ra, visto em retrospectiva, parece mais um
Londres. Dentro da Colônia, sua política era compromisso com a exclusão dos africanos.
de cooperar com os boers para governar de Por outro lado, os britânicos sacramen-
forma paternal os africanos, mas qualquer taram a supremacia britânica ao insistir na
extensão dessa política para formar uma en- extinção da soberania das repúblicas e na
tente anglo-boers em um campo mais am- predominância da língua inglesa, de forma
plo era impedida pelos temores britânicos que os boers faziam planos para o dia em
em relação a posturas políticas e comerciais que o equilíbrio de poder na África do Sul
das repúblicas boers. Rhodes desenvolveu mudasse a seu favor e eles conseguissem
e financiou o eixo Cabo-Bechuanalândia- virar o jogo com os britânicos. Ao criar a
-Zambezi, que colocou as repúblicas boers União da África do Sul, em 1910, o governo
em risco, contrapunha-se à ameaça alemã britânico tentou confederar as duas repú-
do Sudoeste da África e impediu uma pos- blicas bôer autogovernadas e duas colônias
sível aliança antibritânica entre os alemães e britânicas como um domínio independente
o Transvaal. Em 1895, ele se superou. Com dentro do Império Britânico, mas esse do-
a conivência de parte do governo britânico, mínio sul-africano era fundamentalmen-
estimulou uma rebelião contra o presidente te diferente dos outros três domínios, em
Kruger do Transvaal e enviou o Dr. Jameson função da persistente cultura não britânica
para atacar o território bôer e sustentá-la. dos boers (ou africâners) e à existência de
O resultado foi um revés para os atacantes uma maioria africana nas sombras. Quan-
e para o governo britânico quando o im- do a guerra começou na Europa, em 1914, o
perador alemão enviou a Kruger seu apoio domínio se juntou às hostilidades e enviou
moral por telegrama. Mas embora Kruger forças além-mar, mas os boers se revolta-
tenha triunfado e Rhodes caído, o governo ram, recusando-se, como recusariam mais
britânico, que retomou o papel dominante, uma vez em 1939, a ser contados simples-
adotou os objetivos básicos de Rhodes de mente como parte da nação sul-africana.
prevenir o surgimento de um Estado sul- Eles se consideravam um povo, ou Volk, e
-africano boer que incluísse as repúblicas não um Estado.
boers e as colônias britânicas. Ao vencer a A persistência de um nacionalismo afri-
Guerra dos Boers em 1899-1901, a Grã- câner distinto, que acabou triunfando por
-Bretanha adiou esse desfecho, mas não o meio de vitórias eleitorais do Partido Na-
impediu, porque ele veio em 1961, e o país cional, foi acompanhado pelo crescimento
conseguiu o ódio dos boers feridos, mas não de um movimento nacionalista africano
entendeu sua profundidade. frustrado pelos africâners. Estes tiveram de
Depois da Paz de Vereeniging, em 1902, recorrer a medidas cada vez mais severas e
os britânicos aplicaram duas políticas pouco ideologias extremas para preservar e justi-
compatíveis. Por um lado, dedicaram-se a ficar sua supremacia recém-conquistada, e,
serem justos e generosos para com os boers em meados do século, a África do Sul tinha
derrotados, muitas vezes se esquecendo dos se tornado uma oligarquia governada por
614 | PETER CALVOCORESSI

um grupo racial específico, sem o consen- 1939. Ele e Smuts uniram forças em um go-
timento da maioria que governava, a qual, verno de coalizão em 1933, mas quando a
para piorar as coisas, era de cor diferente. guerra estourou na Europa, em 1939, eles
A atitude africâner em relação à cor se separaram mais uma vez e Hertzog se
era um caso extremo de um preconceito aproximou de D. F. Malan, que fundou um
comum. Ela foi importante em sua decisão novo partido nacionalista em vez de seguir
de sair da colônia do Cabo, onde os britâ- Hertzog na aliança com Smuts. Mas os na-
nicos estavam colocando em prática ideias cionalistas se recusavam a se aliar ao fascis-
mais liberais e onde os coloureds (os filhos ta Ossewa Brandwag, liderado por Oswald
de brancos com empregados negros) rece- Pirow. Nas primeiras eleições posteriores
beram o direito de voto em 1853, sujeito a à guerra (1948), o Partido Unificado foi
certos testes educacionais – um direito que derrubado pelo Partido Nacional, que em-
mantiveram até 1956. Mas o africano era um barcou em um longo período de poder sob
fator essencial no Estado, já que sua mão de uma série de primeiros-ministros – Malan,
obra era necessária na indústria e poderia J. G. Strijdom, H. F. Verwoerd, B. J. Vorster,
ser usada a baixo custo, devido à escassez P. W. Botha – que transformaram a África
de trabalho nas reservas nativas (as quais, do Sul em uma república independente fora
perfazendo um décimo da superfície do Es- da Commonwealth e em um Estado policial
tado, deveriam, em teoria, acomodar todos baseado na discriminação racial.
os africanos, mas eram incapazes de supor- As políticas do Partido Nacional se
tar mais de metade deles). A cor passou a ser baseavam no desprezo, nos temores e nos
igualada a degradação econômica: um negro ódios de uma minoria diante de uma maio-
era um trabalhador que se poderia contratar ria de raça e cor diferentes, e em uma teoria
por um salário baixo. E a degradação eco- elaborada nesse contexto. Para o africâner,
nômica levou à degradação social conforme o africano, principalmente o urbano, era
os africanos foram sendo amontoados em um bárbaro incivilizado não apto à respon-
favelas que faziam diminuir a autoestima sabilidade pública nem à interação privada
e aumentar a criminalidade. Enquanto, na ou era, principalmente o africano rural, um
Europa, as vítimas da Revolução Industrial empregado domado, feliz e bastante pregui-
eram os membros menos afortunados da çoso, cujo principal desejo era permanecer
sociedade, na África do Sul, que exaltava em seu estado resignado e servil. A mistu-
a mineração e a indústria pesada acima da ra de raças era biologicamente má. Assim
agricultura, as vítimas estavam em uma so- sendo, a lógica, assim como o preconcei-
ciedade separada, alienada e cada vez mais to, ditava as tentativas de separar as raças
hostil. Natal possuía um elemento adicional: que coletivamente equivaliam à política do
os asiáticos que migraram inicialmente para Apartheid. Embora as raças devessem con-
lá, em busca de trabalho, no século XIX. tinuar tendo algum contato entre si por um
O Partido Nacional foi formado pelo período de transição, o objetivo era a segre-
general James Hertzog, que foi apoiado pelo gação dos africanos negros em territórios
Partido Trabalhista (os representantes do separados – apelidados de bantustões – que
trabalhismo branco) e teve a oposição do se- seriam enclaves raciais, economicamente
tor britânico do eleitorado e dos africâners autossuficientes, dentro de uma única co-
moderados, liderados por Louis Botha até munidade política sul-africana. Os cientis-
sua morte, em 1919, e depois por Jan Smuts. tas, incluindo os sul-africanos, rejeitavam
Hertzog foi primeiro-ministro de 1924 a as afirmações biológicas que estavam na
POLÍTICA MUNDIAL | 615

base da política do Apartheid, os economis- ensões africanas. Os líderes do Congresso


tas demonstravam que as áreas nativas nun- promoviam uma política de greves e deso-
ca poderiam se tornar viáveis a não ser a um bediência civil para chamar atenção às rei-
custo inaceitável à população branca, e que vindicações formuladas em 1955 pela Carta
a comunidade branca não poderia passar de Kliptown. O governo respondia acusan-
sem a mão de obra negra: o africano seria do os líderes de traição. Foram processadas
devolvido ao interior semi-industrializado, 156 pessoas, em um julgamento que durou
enquanto os centros urbanos continuariam quatro anos e terminou com a absolvição de
sedentos por seus serviços. A teoria tam- todos os acusados. Em 1957, um aumento
bém desconsiderava a força dos sentimen- nos preços das passagens gerou um boico-
tos humanos de justa indignação, e a cons- te aos ônibus, no qual os africanos, fazendo
ciência política dos africanos que sabiam o uma marcha de muitos quilômetros para
que acontecia em outros lugares da África. trabalhar todos os dias, demonstravam sua
Por fim, muitos dos protagonistas do Apar- pobreza e sua disciplina, mas a violência
theid subestimavam até onde suas políticas também cresceu e, em 1958, manifestações
os forçavam a governar por meio de violên- no Transvaal foram brutalmente reprimi-
cia e fraude, e atraíam condenação mundial. das. Em 1959, um segmento do Congres-
As prisões encheram, a violência se tornava so Nacional Africano foi extinto para que
uma parte comum do processo de governo, se forma-se o Congresso Pan-Africanista
as execuções aconteciam ao ritmo de uma (Pan-Africanist Congress), liderado por Ro-
por dia, o correio deixou de ser privado, os bert Sobukwe.
espiões e os informantes se multiplicavam Em 21 de março de 1960, uma multidão
à medida que uma força policial inevitavel- de 3 a 4 mil africanos, posteriormente relatada
mente brutalizada se tornou instrumento como de dimensões muito maiores, dirigiu-
de agressão, e o regime se sentiu obrigado a -se à delegacia de polícia de Sharpeville. Era
construir um exército de cidadãos brancos uma entre várias multidões semelhantes que
com uma força potencial de 250 mil, um estavam fazendo a mesma coisa em todo o
destacamento em tempo parcial de 50 mil país para protestar contra as leis de passe, que
(baseado em quatro anos de serviço militar exigiam que os adultos sempre portassem do-
obrigatório) e uma força policial de 20 mil, cumentos de identidade. Para organizar essa
mais uma reserva policial de 6 mil. manifestação, Sobukwe disse que os africanos
Do outro lado, o movimento nacionalis- deixassem seus passes para trás e se apresen-
ta africano também recorreu à violência. Em tassem nas delegacias de polícia de maneira
1912, foi formado um Congresso Naciona- ordeira e desarmados. As multidões estavam
lista Nativo (Native Nationalist Congress), em clima de festa. Em Sharpeville, onde uma
posteriormente rebatizado de Congresso pequena força policial de 75 membros estava
Nacional Africano (African National Con- nervosamente de serviço, alguém disparou
gress). O objetivo de seus primeiros líderes uma arma e dentro de poucos minutos dúzias
– chefes tribais e depois advogados – era de africanos estavam mortos e outros muitos
garantir um lugar para os africanos negros estavam, feridos; os ferimentos das vítimas
na sociedade sul-africana sem desavenças eram, segundo um testemunho do hospital,
de qualquer ordem, mas os líderes e a base quase todos nas costas. Em Langa, na Provín-
começaram a ter dúvidas em relação a suas cia do Cabo, houve uma cena semelhante e,
propostas durante o período Hertzog. A vi- ao todo, naquele dia, 83 africanos foram mor-
tória nacionalista, em 1948, acirrou as apre- tos e cerca de 350, feridos. Sharpeville ficou
616 | PETER CALVOCORESSI

conhecida no mundo inteiro. Estadistas de e a classificação por raças. A posição dos


todas as cores criticaram o derramamento de indivíduos diante da lei também foi afetada
sangue, bandeiras foram desfraldadas a meio pela Lei de Emenda da Legislação sobre Na-
mastro e foram feitas homenagens formais de tivos de 1957, que dava às autoridades poder
silêncio aos mortos. Na África do Sul, decla- para excluir os africanos de lugares como
rou-se estado de emergência enquanto conti- igrejas, com base na possibilidade de que
nuavam os protestos contra as leis de passe, eles pudessem causar um problema jurídico
as milícias foram convocadas e milhares de (a Igreja Reformada da Holanda protestou
africanos foram postos na cadeia. e depois cedeu); pela Lei de Serviços Sepa-
Não obstante, os principais líderes afri- rados de 1953, que declarava que serviços
canos – o chefe Albert Luthuli (que pouco separados para negros e brancos não preci-
depois recebeu o Prêmio Nobel da Paz), savam ser iguais, como os tribunais haviam
Nelson Mandela, Walter Sisulu – continua- insistido; pelas Leis de Emenda da Legisla-
vam a lutar por meios não violentos. Uma ção Geral, de 1961, 1962 e 1963, que reduziu
greve bem-sucedida de três dias, em 1961, em muito os direitos do indivíduo contra a
foi seguida de preparativos para a não co- polícia, introduziu a prisão domiciliar por
operação no interior, e Mandela passou à períodos de mais de cinco anos e sancio-
clandestinidade para organizar a campanha. nou a detenção indefinida de suspeitos; e
À medida que seus líderes, suas atividades pela Lei de Emenda da Legislação Banto de
e suas organizações iam sendo prescritos, 1963, que legalizou a expulsão de qualquer
ambos os congressos produziam mais gru- africano de qualquer área urbana, indepen-
pos combativos, como Sword of the Spirit e dentemente do tempo pelo qual estivesse
Poqo (fundados em 1961 e 1962, respecti- morando nela, e a concessão de permissão
vamente, sendo que o segundo usava o as- de uso, permitido-lhe trabalhar, mas não
sassinato como arma). Em 1963, o governo se estabelecer. Uma segunda categoria de
processou Mandela, Sisulu e outros em mais estatuto formalizou o controle nacionalista
um julgamento de massas em Rivonia e os sobre a estrutura do Estado. Em 1949, a re-
sentenciou a longas penas de prisão. presentação indiana separada no parlamen-
O governo não hesitava em usar a força, to foi abolida e o governo lançou seu ataque
mas preferia, como qualquer governo, dar ao voto dos coloureds na província do Cabo.
cobertura legal a suas ações. Inicialmente, Seu Projeto de Lei para a Representação Se-
havia várias legislações afetando o indivíduo parada de Eleitores, de 1951, transferindo os
em sua capacidade privada. As relações se- eleitores coloured do registro comum para
xuais entre africanos e europeus eram con- um específico, foi declarado inconstitucio-
sideradas crime desde 1927. Em 1950, essa nal pelos tribunais porque retirava direitos
proibição foi estendida às relações entre eu- que haviam sido sacramentados pela Lei
ropeus e coloureds e, em 1949, a Lei de Proi- da África do Sul de 1909 e, portanto, não
bição de Casamentos Mistos (diferente de poderiam ser suspensos validamente sem
muitas outras leis) fez exatamente o que seu uma maioria de dois terços das duas casas
nome indicava, em parte como resposta ao do parlamento reunidas juntas. O governo,
casamento de Seretse Khama, dos baman- diante disso, apresentou o projeto de lei so-
gwatos, com uma moça inglesa. Também bre o Tribunal Superior, de 1952, para dar
em 1950, o governo promulgou a Lei de Re- a um comitê de membros do parlamento
gistro Popular, descrita por Malan como a poderes para cancelar uma decisão do Tri-
base do Apartheid, que prescrevia o registro bunal de Apelações, mas ela também foi
POLÍTICA MUNDIAL | 617

anulada pelos tribunais. Malan dissolveu vidades comunistas e o relativamente fraco


o parlamento, aumentou sua maioria, mas Partido Comunista, mas por sua definição
não conseguiu conquistar os dois terços de de comunistas e pelos poderes que dava ao
que precisava. Ele conquistou alguns mem- executivo para lidar com essas pessoas. Um
bros do Partido Unificado na câmara baixa comunista foi definido como qualquer pes-
e convocou uma sessão conjunta das duas soa a quem o ministro da justiça escolhesse
casas para examinar um projeto com vistas chamar de comunista e, assim determinan-
a emendar a Lei da África do Sul. Essa jo- do, o ministro deveria assumir a visão mais
gada fracassou, apesar de algum apoio do ampla possível, já que qualquer pessoa que
Partido Unificado, e Malan foi substituído estivesse tentando promover transforma-
por J. G. Strijdom, que abandonou as táti- ções políticas, industriais ou econômicas
cas legalistas de seu antecessor em favor de por meio de atos ilegais ou omissões, ou por
fazer do judiciário um cúmplice e alterar a meio da ameaça deles, deveria ser conside-
constituição do senado. Assim ele garantiu, rada comunista, assim como várias outras
primeiro, a aprovação, pela maioria neces- categorias de pessoas. A Lei era um instru-
sária de dois terços, da Lei de Emenda à Lei mento para eliminar todo o tipo de oposi-
da África do Sul de 1956 (que validava a Lei ção no parlamento, nos sindicatos, nas es-
de Representação Separada de eleitores de colas, universidades e em outros lugares, e,
1951) e, em segundo, endosso judicial da ao mesmo tempo, uma peça de propaganda
Lei do Senado de 1956. Essa longa contenda voltada a exagerar a ameaça comunista.
estimulou a oposição extraparlamentar não No campo do trabalho, os africanos fo-
violenta entre os brancos liberais e também ram proibidos de formar sindicatos desde
entre os africanos. O Torch Commando, o 1937. Uma proibição às greves imposta du-
movimento Black Sash e o boicote aos ôni- rante a guerra continuou em vigor depois
bus foram suas principais manifestações, dela, e a Lei (de Solução de Conflitos) da Mão
mas as consequências mais importantes fo- de Obra Nativa, de 1953, repetia essas proibi-
ram a extinção de partidos de oposição me- ções a sindicatos e greves, além de manter re-
nores (os partidos Liberal e Progressista), o lações trabalhistas sob o controle dos brancos.
recurso cada vez maior à prisão domiciliar Mais além, havia leis sobre a educação.
e à detenção sem julgamento, e uma vigo- A Lei de Educação Banto de 1953 mostra-
rosa utilização da ameaça do fantasma co- va a consciência do governo sobre o fato
munista para rotular todos os oponentes do crucial de que as crianças não se adaptam
Apartheid como agentes subversivos de uma naturalmente a antagonismos raciais (com
conspiração internacional. os amores e ódios juvenis tendo outras mo-
Depois de algumas divergências, o Par- tivações), e também sobre a necessidade
tido Comunista Sul-Africano assumiu a crucial de dar aos africanos uma educação
causa dos trabalhadores negros que o Par- qualitativamente diferente, caso eles fossem
tido Trabalhista se recusava a defender. formar uma comunidade separada e inferior
Mas os comunistas foram tão prejudicados permanentemente. A Lei criava uma nova
na África do Sul pelas reviravoltas de Mos- divisão do Departamento de Assuntos Na-
cou quanto em qualquer outro lugar e não tivos, que deveria orientar a educação banto
prosperaram muito. Em 1950, contudo, o e retirar as missões religiosas que dirigiam
governo Malan garantiu a aprovação da Lei a maioria das escolas para os africanos. Al-
de Supressão do Comunismo, que era im- gumas igrejas entregaram suas escolas sem
portante, não apenas porque proibia as ati- protestar, outras, protestando; os anglicanos
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preferiram fechar suas escolas no Transvaal que seriam agrupadas em regiões, por sua
e os católicos decidiram continuar e assu- vez, agrupadas em territórios, sobre os quais
mir os custos. Nas novas escolas nacionali- o Ministro de Assuntos Nativos teria o con-
zadas, a educação era moldada para o lugar trole final. Esse esquema foi levado a um es-
do africano na África do Sul: ou seja, um tágio superior pela Lei de Promoção do Au-
trabalhador não especializado na indústria togoverno Banto de 1959, que, além de tirar
ou um rústico dócil nos territórios especiais dos negros o direito de eleger brancos para
que lhe seriam designados. Um outro proje- representá-los no parlamento, consolidava
to para permitir a exclusão de africanos das as reservas africanas nos Bantustões (ver a
universidades teve de ser retirado em 1957, Nota C, nesta parte). Em 1955, a Comissão
mas dois anos depois a Universidade de Fort Tomlinson, nomeada pelo governo, relatou
Hare foi tomada pelo Estado e foram criadas que o custo de implementação da política
universidades separadas (mas bem equipa- dos bantustões seria de 104 milhões de li-
das) para os africanos. Eles mantiveram o bras em 10 anos, e que a população africana,
direito a se candidatar à admissão em uni- em 1960, provavelmente seria de 21,5 mi-
versidades brancas se pudessem demonstrar lhões. O governo prometeu 3,5 milhões para
que estavam qualificados para frequentar o desenvolvimento dos bantustões e estabe-
cursos não disponíveis em outro lugar, mas, leceu, em 1959, a empresa Bantu Investment
na prática, essas solicitações eram sempre Corporation, com um capital de 500 mil
consideradas improcedentes pelas autorida- libras para desenvolver as indústrias banto.
des e o liberalismo das próprias universida- As políticas raciais da África do Sul se
des era frustrado pela ação do executivo. tornaram determinantes centrais de suas re-
O núcleo do programa nacionalista era lações externas e levaram a algo próximo do
o separatismo territorial das raças. A Lei isolamento. Até mesmo com a Grã-Breta-
Agrária da África do Sul, de 1913, alocou nha, parceira próxima e aliada na Segunda
87% da terra para os brancos e deixou em Guerra Mundial, as relações ficaram difíceis
aberto a questão de o que fazer com os res- com relação, por exemplo, à conclusão de
tantes 13%, que eram considerados como uma nova aliança na qual um dos pontos
reserva de mão de obra. A Lei de Áreas principais eram as garantias especiais de
Coletivas de 1950 estabelecia a segregação tratamento dos empregados negros da base
racial em termos de residência, atividade naval britânica de Simonstown. Os acordos
e propriedade da terra. Um de seus efeitos de Simonstown, concluídos em 1955, foram
imediatos (completado pela Lei de Reassen- o desfecho de vários anos de discussão nos
tamento dos Nativos de 1954) foi a remoção quais nem Grã-Bretanha nem África do Sul
total dos africanos de áreas de Johannes- levaram o que queriam da outra. A primeira
burgo que fossem necessárias aos brancos. queria a cooperação sul-africana na defesa
Algumas dessas áreas eram favelas, outras de seus interesses no Oriente Médio; a se-
não; para os africanos, elas eram lugares gunda queria uma ampla aliança de países
onde eles conseguiram ter propriedade. (brancos), semelhante à OTAN, para a de-
Essa lei foi seguida, em 1951, pela Lei das fesa de seu país contra ataques e subversão
Autoridades Bantos, que procurava recriar comunistas e, em segundo, a transferência
a figura do chefe tribal como base para a de Simonstown para a soberania sul-africa-
administração da população africana. Os na. Ambos os países esperavam demais. Os
chefes, nomeados e pagos pelo governo, de- acordos de 1955, um dos quais – sobre re-
veriam exercer autoridade em áreas tribais, lações militares – era secreto, transferiram
POLÍTICA MUNDIAL | 619

Simonstown à África do Sul em troca de seu se expressar a Louw em particular. Louw foi
uso indefinido pela Grã-Bretanha na paz e forçado a apreciar a força dos sentimentos
na guerra, e seu uso pelos aliados da Grã- deles e aceitar um comunicado que indica-
-Bretanha na guerra, e também em troca da va que uma solicitação de permanência na
expansão e modernização da marinha sul- Commonwealth, sem uma reforma das po-
-africana com materiais a serem fornecidos líticas raciais, seria rejeitada. A Commonwe-
pelos estaleiros britânicos. Além dessas dis- alth abriu mão do desagradável e inédito
posições, tudo era vago: havia um acordo, passo de “expulsar” e deixou a iniciativa com
em tese, em relação ao desejo de uma Or- a África do Sul. Um ano depois, foi realizado
ganização de Defesa Africana (que nunca um referendo com o resultado republicano
chegou a existir) e um acordo por parte da esperado e a África do Sul deixou a Com-
África do Sul, também apenas em tese, em monwealth.
contribuir para a defesa da África e dosar Sharpeville também teve repercussões
acessos a ela no Oriente Médio (uma ex- na ONU. A Assembleia Geral já tinha trata-
pressão sem significado). do do Apartheid alguns anos antes. Uma co-
Se a Grã-Bretanha se sentia desconfor- missão indicada em 1953 tinha relatado que
tável, mas não mais do que isso, no trato a situação era prejudicial às relações inter-
com os governos de Malan e Strijdom, com nacionais pacíficas. Em sessões sucessivas,
Verwoerd (que sucedeu Strijdom em 1958) a Assembleia aprovou regularmente resolu-
e seu ministro do exterior Eric Louw, a dife- ções que pediam à África do Sul que revi-
rença era maior, e foi aumentada por even- sasse suas políticas à luz da Carta da ONU e
tos como Sharpeville e a exclusão da África criticava o fato de isso não acontecer. Depois
do Sul da Commonwealth. de Sharpeville, o Conselho de Segurança de-
A calamidade de Sharpeville aconteceu cidiu que a situação na África do Sul poderia
pouco antes de uma reunião de primeiros- pôr em risco a paz e a segurança internacio-
-ministros da Commonwealth, na qual a nais, conclamou o país a mudar de atitude
África do Sul pretendia buscar garantias de e instruiu o secretário-geral, em consulta
que permaneceria como membro caso se com o governo sul-africano, a tomar me-
tornasse uma república. Essas mudanças ti- didas para aplicar a Carta. Hammarskjöld
nham sido um item de destaque no progra- foi à África do Sul em 1961, mas sua visita
ma nacionalista e não se esperava que geras- foi tão infrutífera quanto as resoluções da
sem dificuldade, já que a Commonwealth já Assembleia. No ano seguinte, a Assembleia
tinha se adaptado à presença de repúblicas. pediu que os membros rompessem relações
Formalmente, contudo, a mudança exigia diplomáticas com a África do Sul, fechas-
aprovação, e a Commonwealth incluía mem- sem seus portos e aeroportos para os navios
bros aos quais as políticas raciais da África e aviões sul-americanos, impedissem que
do Sul eram tão repugnantes que poderiam seus próprios navios entrassem em portos
encontrar uma desculpa para negar seu con- sul-africanos, boicotassem todos os produ-
sentimento. Verwoerd não conseguiu parti- tos do país e suspendessem as exportações a
cipar da conferência devido a um atentado ele. Em 1963, o Conselho de Segurança re-
contra sua vida por parte de um fazendeiro comendou a suspensão de todas as vendas
branco, e o país foi representado por Louw. de equipamentos militares. Ao longo desse
A questão do Apartheid foi mantida fora processo, os membros africanos estavam
da agenda formal, sob a condição de que os pressionando por uma ação da ONU, por-
primeiros-ministros individuais pudessem que acreditavam verdadeiramente na ideia
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de ação coletiva internacional corporificada assuntos do Vietnã e da América Latina,


na Carta e, em parte, porque não tinham sem falar na Guerra Fria. A Grã-Bretanha
perspectiva de conseguir qualquer coisa efe- estava mais intimamente envolvida em
tiva por conta própria, contra a força militar função da antiga conexão da Commonwe-
e econômica amplamente superior da África alth e de sua relação muito mais antiga com
do Sul. Eles ficaram ressentidos pela recusa a África, mas em sua situação financeira,
da Grã-Bretanha e de outras potências que mesmo o lucro relativamente pequeno do
eram capazes de exercer pressões econômi- comércio com a África do Sul não poderia
cas, mas relutavam em fazê-lo. ser abandonado sem maiores problemas.
A campanha por sanções econômicas As exportações britânicas à África do Sul
se desenvolveu ao mesmo tempo em que a rendiam cerca de 150 milhões de libras por
onda de independência na África se depa- ano, 4% do total das exportações, enquanto
rou com seu obstáculo mais formidável no as importações custavam 100 milhões de li-
extremo sul da África. Aqui estava uma mi- bras – 2% da conta de exportações – resul-
noria branca fortificada por uma teologia tando em um balanço favorável de cerca de
autoritária e não igualitária, totalmente di- 50 milhões. Além disso, em torno de dois
ferente da doutrina libertária e do igualita- terços do ouro da África do Sul iam para
rismo seculares que, mesmo subconsciente- as reservas do Ocidente e grande parte era
mente, instruíam as políticas das principais tratada como lucro pelo mercado londrino.
potências coloniais. Essa minoria forte e Na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos,
rica não era filha do colonialismo, e sim um interesses privados e grupos de pressão
povo em sua casa, sem nenhuma disposição trabalhavam com assiduidade articulada
de ir para outro lugar. Os novos países afri- contra a intervenção. Os investimentos
canos, sem poder para fazer qualquer coisa britânicos na África do Sul estavam avalia-
contra o Apartheid, foram levados a recorrer dos em cerca de 1 bilhão de libras. A Grã-
àqueles que o tinham: a Grã-Bretanha e os -Bretanha também se conteve por medo
Estados Unidos. Eles esperavam que esses de represálias contra suas dependências na
países ficassem indignados pelas barbari- Bechuanalândia, na Basutolândia e na Sua-
dades cometidas pelo regime sul-africano e zilândia, por causa da importância residual
se convencessem de que o Apartheid era um do direito de uso da base naval de Simons-
perigo para a paz internacional. Queriam town e também por causa uma tendên-
sanções internacionais que forçassem os cia pós-guerra a sair de situações, em vez
nacionalistas a negociar com os africanos e de entrar nelas. A maior parte da opinião
lhes dessem uma participação no poder po- pública era indiferente e as minorias com-
lítico, ou causassem uma desintegração do prometidas eram pequenas demais para ter
regime e o surgimento de algo novo que, de importância eleitoral.
qualquer forma, não poderia ser pior. A variedade de outros compromissos
Os britânicos e os norte-americanos internacionais fazia com que Londres e
não estava dispostos a aceitar que as prá- Washington tivessem esperanças de que se
ticas do Apartheid fossem uma ameaça à pudesse adiar uma rebelião na África do Sul,
paz internacional no sentido do artigo 39 mas também eram notórias as dúvidas so-
da Carta da ONU. Suas razões eram mui- bre a eficácia das sanções e as consequências
tas. Ambos estavam preocupados com imediatas de sua aplicação. A economia sul-
problemas que pareciam mais urgentes. Os -africana vinha se expandindo rapidamente,
Estados Unidos davam prioridade clara aos mas se tornou mais autossuficiente, e o pe-
POLÍTICA MUNDIAL | 621

tróleo e outros materiais se acumularam. Os nicos protegidos da Bechuanalândia, Basu-


especialistas discordavam sobre o quanto o tolândia e Suazilândia (que estavam dentro
país suportaria na situação de estar pratica- ou ao lado de suas fronteiras – ver a Nota
mente sob cerco, e sobre a eficácia de um B, nesta parte). O governo da África do Sul
bloqueio naval que seria necessário por um queria preservar a supremacia branca por
tempo curto, mas, talvez, longo. meio do poder econômico e militar e não
No aspecto jurídico, argumentava-se duvidava de sua capacidade de fazê-lo. Ti-
que as precondições para essa ação defini- nha de avaliar se essa supremacia poderia
da no artigo 39 da Carta da ONU (a saber, ser preservada para além de suas próprias
ameaça à paz internacional) existiam e fo- fronteiras e, em segundo lugar, como deve-
ram reconhecidas pelo Conselho de Se- ria conduzir relações com Estados negros
gurança, o qual resolveu, em 1963, que as estabelecidos. A supremacia branca foi for-
políticas do governo sul-africano “perturba- talecida pela suavização da velha disputa
vam” a paz internacional. Mas a substituição entre as minorias africâner e anglófona e
da palavra “perturbar” por “ameaçar” era a sensação de que a vitória dos nacionalis-
uma medida precisa da temperatura polí- tas africâners, em 1948, tinha se tornado
tica, porque possibilitava aos membros do irreversível. O crescimento da economia
Conselho dizer uma coisa e ainda assim, sul-africana borrou a antiga linha divisória
evitar as consequências de suas palavras. A entre os grupos africâner rural e inglês ur-
Grã-Bretanha e os Estados Unidos não mais bano. Os africâners, embora continuassem
poderiam negar a substância das alegações a constituir um grupo do interior, estavam
feitas pelos países africanos, mas estavam também penetrando nas camadas supe-
determinados a não se enredarem com a riores da plutocracia industrial e financei-
África do Sul e, portanto, insistiam em usar ra e compartilhando seu padrão de vida.
uma palavra que não fizesse parte da lin- Essa mudança nos destinos dos africâners
guagem do artigo 39. Tampouco era simples criava um possível dilema para o futuro,
hipocrisia, embora possa ter sido pouco quando os membros afluentes do grupo
inteligente, já que adiava uma questão que poderiam ter de escolher entre o rigor de
estava ficando pior: quem tinha o poder não suas doutrinas raciais e a manutenção de
estava disposto a usá-lo enquanto enxergas- seu padrão de vida relaxando as reservas
se tão poucos efeitos prováveis. As sanções de empregos. Essa perspectiva dava algum
demandariam um bloqueio e um bloqueio conforto a liberais otimistas que tinham
levaria à guerra. Dentro da África do Sul, o esperanças de que as pressões econômicas
colapso do regime poderia gerar anarquia, gerassem um abandono gradual das práti-
derramamento de sangue e sofrimento. Eles cas do Apartheid. Externamente, o governo
deveriam assumir essa responsabilidade? parecia concluir que a dominação branca
Como não queriam, não era muito difícil na Rodésia e nos territórios portugueses
responder à pergunta. não poderia ser mantida indefinidamen-
Mesmo assim, a África do Sul não po- te e que os novos países negros poderiam
deria ignorar as questões externas. O país ser induzidos pela necessidade de respon-
fora diretamente afetado pela crise na Ro- der a uma demonstração de cordialidade
désia, pelo questionamento de sua renúncia e, assim, romper a unânime hostilidade da
a suas obrigações do mandato no Sudoeste África negra. A África do Sul apoiou o re-
da África e pela concessão de independên- gime ilegal de Smith na Rodésia, nem tanto
cia a regimes negros nos territórios britâ- por acreditar na permanência do governo
622 | PETER CALVOCORESSI

branco, mas por causa da simpatia da Áfri- ceu em evidência no arco que se estendia
ca do Sul branca em relação a ele, e para do Mar Vermelho a Cingapura, mas, depois
demonstrar que as sanções econômicas da saída de Aden em 1968, as dificuldades
não poderiam funcionar, mesmo contra a econômicas levaram o governo trabalhista a
muito mais frágil economia da Rodésia. anunciar que as forças britânicas no Golfo
Ao mesmo tempo, Verwoerd e Vorster Pérsico e a leste dele seriam retiradas já em
pressionavam Smith para que se entendesse 1971. Esses eventos coincidiram com o cres-
com a Grã-Bretanha, mas subestimaram a cimento do poder naval russo e com o pe-
obstinação dos brancos da Rodésia. Em um sadelo de que ele poderia tomar o lugar do
panorama mais amplo, a África do Sul, for- poder britânico em águas do Oriente e do
te, mas sitiada, estaria diante de um mundo Sul. Embora impedidos pelo fechamento do
hostil, em meio a uma quantidade de satéli- Canal de Suez na guerra de 1967, os russos
tes que um dia também incluiriam uma Ro- conseguiram estabelecer, no Oceano Índico,
désia, uma Angola e um Moçambique ne- uma força naval pequena, mas permanente,
gros. O modelo era o Malaui (ver a p. 603). sustentada por bases em Socotra, Maurício
Quando o Partido Nacional ficou forte e as Ilhas Andaman (na Baía de Bengala).
o suficiente para dar conta da disputa in- Essa extensão redobrava a oposição norte-
terna sem arriscar a perda do poder, o seg- -americana à retirada britânica e fazia com
mento linha dura ou verkrampte enfrentou que a própria Grã-Bretanha aumentasse
a ala ilustrada ou Verligte (um termo com- aquilo que já estava em decadência.
parativo), mas foi gravemente derrotado Durante a campanha eleitoral britâni-
nas votações. A maioria Verligte avançou ca de 1970, Sir Alec Douglas-Home, con-
para desenvolver suas relações econômicas siderado como ministro do exterior, disse
com países africanos, concluiu um acordo que um governo conservador reverteria a
econômico com a República Malgaxe em política trabalhista de não vender armas à
1970, e foi incentivada pela resposta de lí- África do Sul. Os conservadores não eram
deres africanos tão distintos quanto Hou- partidários do Apartheid, mas queriam ser
phouët-Boigny e Busia, Kenyatta e Bongo. amigos da África do Sul apesar dele, e tam-
Mais importante, a África do Sul esperava bém porque não viam nenhum país mais
garantir do novo governo Conservador na próximo ao Oceano Índico que fosse forte
Grã-Bretanha uma inversão da recusa dos e anticomunista ao mesmo tempo. Depois
Trabalhistas em vender suas armas. Vorster da vitória conservadora, sir Alec passou a
jogava com a visão em preto e branco dos implementar essa declaração, e teve apoio
Conservadores sobre as questões mundiais do novo primeiro-ministro Edward Heath
durante a Guerra Fria e sua relutância em (que resistiu a todos os argumentos con-
consumar a retirada britânica de seus pos- trários, em grande parte, por motivos emo-
tos avançados militares na Ásia e no Oceano cionais) as promessas eleitorais deveriam
Índico, os quais, na década de 1950, tinham ser cumpridas e as decisões sobre a política
sido chamados vagamente de porta de aces- da Grã-Bretanha deveriam estar em mãos
so ao Oriente Médio. A retirada britânica britânicas (o que ninguém havia negado).
do mundo além da Europa tinha vacilado Enquanto Heath encarava os argumentos
na década de 1960 (em parte, porque a Grã- dos líderes sul-africanos como tentativas de
-Bretanha estava preenchendo uma lacuna mandar na Grã-Bretanha, Douglas-Home
que os Estados Unidos não tinham pressa encarava a política africana como um de-
de ocupar) e o poder britânico permane- partamento da Guerra Fria.
POLÍTICA MUNDIAL | 623

No outro lado, afirmava-se que uma um Estado; racial, fortemente criticado por
ameaça naval russa, se evoluísse, não po- muitos dentro do próprio país, detestado no
deria, de forma alguma, ser enfrentada continente inteiro e odiado no mundo todo.
por uma pequena força naval britânico- Vorster tentou mudar as posições regionais e
-sul-africana; que o foco dessa ameaça, globais da África do Sul, mas não as melho-
essencialmente dirigida ao comércio de rou muito. Em termos de poder, essas duas
petróleo, não estaria nos oceanos do sul, posições eram diametralmente diferentes.
e sim ao redor e nas imediações da região Regionalmente, a África do Sul era uma po-
costeira no sul do Oriente Médio e que o tência dominante, mas globalmente, tinha,
alinhamento britânico com a África do na melhor das hipóteses, uma importância
Sul – uma demonstração política – criaria, secundária. Mesmo no pico da Guerra Fria,
para os russos, oportunidades políticas na o país não foi capaz de persuadir mais do que
África muito maiores do que qualquer be- um punhado de conservadores (a maioria na
nefício econômico que pudesse advir para Grã-Bretanha e nos Estados Unidos) de que
o lado antirrusso. Assim como o conflito a África do Sul era mais importante a eles do
no Oriente Médio e a corrida armamen- que eles a ela. O país era rico em recursos,
tista que se seguiu na região – e o vínculo mas dependente do mundo exterior para o
norte-americano com Israel – criaram uma capital com vistas a explorar esses recursos e,
frente russo-árabe, o mesmo aconteceria portanto, vulnerável a pressões financeiras ou
com uma aliança britânica com a África sanções, e geográfica e estrategicamente mais
do Sul, jogando os países africanos, mesmo marginal do que gostava de se considerar.
relutantes, nos braços da URSS, que pode- Como defender a África do Sul significava de-
ria vislumbrar uma tempestade política no fender o Apartheid, o país encontrava poucos
continente africano. Dentro da África do amigos, e os que encontrava (comerciantes de
Sul, esses argumentos mantinham viva a armas israelenses e taiwaneses, por exemplo)
ilusão de que a África do Sul seria bem-vin- eram meramente mercenários. Vorster perce-
da em um equivalente africano da OTAN, beu a inutilidade de tentar aliar a África do
dentro de uma estratégia anticomunista Sul branca às principais potências ocidentais
global. Mesmo assim, a África do Sul, prin- e se voltou à região, principalmente depois
cipalmente por razões tecnológicas, estava da abdicação de Portugal em Angola e Mo-
se tornando desnecessária para essa estra- çambique e do colapso da dominação branca
tégia e, principalmente por razões políticas, na Rodésia expor seus flancos no interior do
era um aliado inaceitável. Os britânicos continente. Em uma tentativa de entrar em
deixaram que o acordo anglo-sul-africano harmonia com a transição na Rodésia, ele
sobre o uso da base naval de Simonstown buscou a cooperação do presidente Kaunda
expirasse em 1975. para impedir uma vitória de guerrilheiros ar-
Em 1978, escândalos parcialmente mas- mados e ofereceu amizade e ajuda econômica
carados e uma enfermidade retiraram Vors- ao Moçambique independente. Mas em An-
ter da presidência da República Sul-Africana. gola, ele foi à guerra, e o fez de forma inepta.
Ele foi sucedido como primeiro-ministro por Sua invasão de Angola, em 1975, não ti-
P. W. Botha. Vorster governou por 12 anos, nha metas políticas nem militares claras e,
herdou um problema insolúvel e o passou se ele contava com o apoio do Ocidente por
adiante não resolvido, mas não inalterado. A causa da presença cubana, estava equivoca-
tarefa dos líderes sul-africanos não era defen- do, ou pelo menos facilmente enganado so-
der um Estado, e sim um sistema dentro de bre a amplitude e a firmeza da ajuda (prin-
624 | PETER CALVOCORESSI

cipalmente norte-americana). As baixas tinha, pelo menos, a capacidade de utilizar


da África do Sul, embora não tenham sido armas nucleares, mesmo que não tivesse
graves, chocaram os sul-africanos, a quem qualquer uso racional para elas. Contra seus
não foi dito que estavam se envolvendo em vizinhos, elas eram desnecessárias, contra
uma guerra. Esse revés foi aumentado em suas próprias cidades e inimigos internos,
1977, quando outras operações clandestinas impossíveis de usar.
vieram à luz. O Departamento de Informa- P. W. Botha herdou uma situação que
ções do governo foi autorizado a realizar era intrinsecamente assustadora e man-
fraudes e subornos para conquistar amigos chada por fracassos recentes dentro e fora
ou desarmar as críticas, e no decorrer dessas das fronteiras do país. Ele governou (1978-
campanhas, grande parte do dinheiro pro- 1989) quase por tanto tempo quanto Vors-
porcionado foi mal usada ou desviada por ter, conquistando a liderança por uma mar-
altos funcionários. gem estreita e apenas porque o sucessor
Por fim, nos anos Vorster, um evento óbvio deste, Connie Mulder, foi eliminado
especial simbolizou a atormentada situa- por escândalos e divisões que precipitaram
ção da África do Sul e piorou ainda mais as a retirada de Vorster. Botha era um polí-
relações com o Ocidente. O país se tornou tico do Cabo e não do caldeirão africâner
uma potência nuclear, mas essa força militar no Transvaal. Ele ocupou a pasta da defesa
maior era irrelevante a seus problemas es- por 11 anos e desfrutava do respeito e da
pecíficos e afastava seus amigos potenciais. confiança dos militares, embora dentro do
Em 1977, as preparações para um teste nu- partido nacionalista, não fosse forte o sufi-
clear no deserto de Kalahari, sobre o qual ciente para ofender os membros da linha-
os Estados Unidos foram informados pela -dura. Obstinado e cauteloso, mas cada vez
URSS, resultaram em fortes protestos por mais dominador, ele estava determinado a
parte das principais potências. A África do que a África do Sul conhecesse a ação fir-
Sul negou que a base de testes de Kalahari me do governo e dependesse de si mesma,
estivesse voltada à explosão nuclear, mas a em vez de ficar devedora de aliados cuja
negativa não recebeu muita credibilidade e a amizade vinha junto com sermões ofensi-
África do Sul continuava a recusar a adesão vos sobre suas questões internas. Rebeliões
ao Acordo de Não Proliferação. Os Estados graves em Soweto, em 1976, e o surgimento
Unidos, que vinham fornecendo o urânio do movimento Consciência Negra liderado
enriquecido ao país, adotaram uma lei, em por Steve Biko – até ele ser espancado até
1978, que proibia esse tipo de venda a qual- a morte pela polícia em 1977 – demons-
quer país que não permitisse inspeções da travam que a disposição de viver perigosa-
Agência Internacional de Energia Atômica mente e lutar contra as probabilidades não
(mais tarde, Reagan encontrou maneiras de tinham sido extintas.
burlar essa proibição). Em 1979, um fenô- Essas tendências iluminavam a recusa
meno inexplicável, a não ser como explosão de uma nova geração a entrar em acordo
nuclear, foi observado por um satélite de in- com os brancos, eram duas comunidades
teligência norte-americano sobre o Oceano desprovidas de qualquer meio para se co-
Índico, entre a África do Sul e a Antártica. municar e sem muita vontade de fazê-lo.
Em 1987, a África do Sul mudou subitamen- Não obstante, Botha acelerou a suavização
te de atitude em relação ao Tratado de Não de aspectos menores do Apartheid: times
Proliferação e aceitou aderir, sob ameaça de futebol e plateias, por exemplo. Ele via-
de expulsão da AIEA. Nessa época, o país jou pelas homelands ou bantustões. Espera-
POLÍTICA MUNDIAL | 625

va conciliar e afastar da maioria negra uma bos os grupos se encontravam. Também não
pequena burguesia negra com uma partici- estava claro até onde Buthelezi poderia falar
pação marginal na prosperidade do país e pela geração mais jovem de Zulus.
tentou impedir indianos e coloureds de se Nas eleições de 1981, Botha perdeu vo-
aliarem à causa dos negros em troca de uma tos, mas não cadeiras, e seus planos foram
autonomia interna limitada. Seriam criadas contidos, mas não abandonados. No ano se-
assembleias separadas de brancos, indianos guinte, a ala direita do Partido Nacionalista,
e coloureds; um colégio eleitoral misto com liderada pelo Dr. Andreas Treurnicht, não
uma maioria absoluta branca escolheria um tendo conseguido obter o controle do par-
presidente que nomearia três primeiros- tido, abandonou-o, deixando Botha mais
-ministros, os quais escolheriam seus pró- livre para continuar com suas mudanças
prios gabinetes, e haveria um Conselho de constitucionais. Estas foram aprovadas pelo
Ministros multirracial, com maioria branca. eleitorado branco por uma maioria de 2:1
Não havia lugar para os africanos negros em um referendo no final de 1983, e aceitas,
nesse esquema, já que sua preponderância depois de alguma hesitação, pelas comuni-
numérica teria destruído a posição domi- dades coloured e indiana, que assim foram
nante que, segundo princípios aritméticos, incluídas na nova legislatura tricameral
os brancos conseguiam usar contra indianos com 85 e 45 parlamentares, para 178 bran-
e coloureds. Esses gestos não traziam nenhu- cos. Os negros foram excluídos, mas rece-
ma mudança substancial. As homelands se beram a promessa de algum afrouxamento
tornaram algo visivelmente sem sentido e os nas pequenas indignidades do Apartheid e
remendos constitucionais foram rejeitados, alguma participação na administração local
inicialmente por indianos e coloureds, e de- de suas próprias comunidades. A reação ne-
pois aceitos com pouco entusiasmo. gra foi extremamente cínica, assim como a
Outras variedades de solução federativa do mundo exterior. O proscrito CNA inten-
e confederativa foram cogitadas, sendo mais sificou suas atividades dentro da África do
acadêmicas do que práticas. Ressurgiram Sul e em suas fronteiras.
as ideias de divisão em um Estado negro e Nos assuntos regionais, Botha era tão
um branco, mas não foi possível conceber ambivalente quanto Vorster. O acordo de
nenhuma linha de demarcação que fosse Nkomati com Moçambique foi ambíguo no
aceitável a ambos os lados; em termos de início e, depois, morreu; a política avança-
divisão igualitária de riqueza, não se po- da em Angola foi abandonada, retomada
deria obter justiça de qualquer forma que e abandonada de novo; nenhuma das mu-
tivesse probabilidade de garantir a paz en- danças de Pretória na Namíbia promoveu
tre eles. O chefe zulu Gatsha Buthelezi, que seus interesses.
tinha feito ressurgir o movimento Inkatha Botha ressuscitou o conceito de uma
(fundado em 1928) e queria transformá-lo associação de todos os países no sul da
em um veículo de negociação de um acordo África. Verwoerd cogitou a perspectiva de
não violento com os brancos e algum tipo uma Comunidade Africana que chegasse
de autonomia para os zulus, propôs uma até (e possivelmente incluísse) o Zaire, e
Convenção Nacional para discutir o avanço sob controle econômico da África do Sul.
não violento rumo a um governo da maioria A versão de Botha era chamada de “cons-
em um Estado unitário. Essa proposta pare- telação”, mas era muito nebulosa para atrair
cia oferecer poucas perspectivas de acordo atenção séria, e os países negros a consi-
entre brancos e negros no clima em que am- deravam não mais do que um projeto para
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aumentar sua dependência econômica da ção de 200 milhões de habitantes. A organi-


África do Sul. A força econômica sul-afri- zação estabeleceu um Consórcio de Energia
cana servia para assustar a região, em vez do Sul da África e um Fórum Parlamentar,
de uni-la. A desconfiança e a aversão à Áfri- comprometeu-se com o livre comércio in-
ca do Sul eram profundas e os países negros terno até 2005 e negociou um acordo com
estavam mais interessados em reduzir sua a união europeia que entraria em vigor ao
dependência de um vizinho superpoderoso expirar da última convenção de Lomé, em
do que estabelecer parcerias com ele, e por 2000. A expansão trouxe complicações. A
isso criaram uma contrapartida no Conse- SADC se sobrepunha à COMESA que tinha
lho Coordenador do Desenvolvimento da 24 membros e, no final do século, deparou-
África Austral (Southern African Develo- -se com conflitos, principalmente em rela-
pment Co-ordinating Council, SADCC) de ção ao Congo depois de 1998, onde Muga-
nove países negros que, em conferências em be queria que a SADC desse ajuda militar
Arusha, em 1979, e em Lusaka e Maputo, a Kabila, mas Mandela e outros queriam
em 1980. Além disso, desenvolveram pla- limitá-la a projetos de desenvolvimento.
nos ambiciosos para a cooperação econô- Em 1985, Botha anunciou o afrouxa-
mica regional e garantiram promessas de mento das regras do Apartheid que regula-
670 milhões de dólares em ajuda estrangei- vam o sexo e o casamento, mas não as res-
ra – dando prioridade à agropecuária e à trições impostas por elementos centrais do
comunicação. O SADCC foi um ensaio de sistema como as Leis de Áreas Coletivas ou
regionalismo por parte de países soberanos as Leis de Educação Banto. Ele vislumbra-
com uma população de 60 milhões, consi- va a concessão de alguma autoridade aos
deráveis recursos naturais, mas com capital, negros em nível local, mas se opunha ferre-
tecnologia e habilidades de gestão inade- nhamente a qualquer participação deles no
quados. Seus membros sofriam com secas poder central. Quando a violência levou a
esporádicas, ataques diretos da África do cenas que lembravam Sharpeville em 1960
Sul, gastos militares cada vez maiores e um e Soweto em 1976, os principais parceiros
declínio geral na produção de 20 a 15% na comerciais da África do Sul – incluindo,
primeira metade dos anos de 1980. Os pri- desta vez, os Estados Unidos – espantaram-
meiros passos foram modestos, mas a orga- -se e começaram, mais uma vez, a falar em
nização ganhou consideração internacional sanções econômicas obrigatórias. Os ca-
e em seu quinto congresso em Harare, em pitalistas ocidentais começaram a reduzir
1986, 37 países estavam representados. En- seus investimentos, o valor do rand desabou
tretanto, como a África do Sul não estava temporariamente e a comunidade branca na
incluída, o SADCC não podia gerar, por África do Sul expressou desânimo quando
conta própria, os recursos suficientes para a reação de Botha foi mais de cassetetes do
atrair o capital estrangeiro de que precisava. que ramos de oliveira.
Em 1994, a África do Sul aderiu e o SADCC O país parecia estar à beira de uma
mudou de nome para Comunidade de De- explosão, mas isso tinha acontecido tan-
senvolvimento da África Austral (Southern tas vezes no passado que os brancos e seus
Africa Development Community, SADC – amigos estrangeiros insistiam que o poder
que, com a adesão do Congo, das Seychelles branco poderia ser preservado pela força
e de Madagascar, passou para 15 membros superior, pela inteligência superior e por
e se expandiu para a África central e o Oce- mudanças que não incluiriam concessões
ano Índico, passando a incluir uma popula- sobre a Lei de Áreas Coletivas, a Lei de Re-
POLÍTICA MUNDIAL | 627

serva das Instalações Separadas, nem sobre ele. O caos parecia uma perspectiva nada
a predominância constitucional do voto impossível.
branco. Mesmo assim, havia um novo ele- Aos poucos e com dificuldade, as opi-
mento que estava além da acumulação per- niões iam mudando dentro da comunidade
manente de pressões e desconfortos: uma sul-africana. Falando em termos amplos, a
aceitação – embora vinda de um pequeno década de 1970 testemunhou um nível sur-
segmento dos brancos, de que deveria ha- preendente de confiança, que foi questiona-
ver negociação com o CNA. Os maiores da nos anos de 1980. Nos de 1970, os bran-
obstáculos a essa mudança de opinião ti- cos, que tinham se acostumado a enfrentar
nham sido, inicialmente, uma crença quase as críticas externas, consideravam que as
universal (branca) de que não havia neces- ameaças à sua posição estavam diminuindo.
sidade de conversar com o CNA nem qual- A facilidade com que as sanções econômi-
quer outra organização negra e, segundo, a cas contra a Rodésia foram derrotadas pelas
crença igualmente difundida de que o CNA corporações ocidentais com a conivência
era simplesmente um instrumento para os governamental reduziu à insignificância a
comunistas e o poder negro – um prelúdio ameaça de uma ação semelhante contra a
para a dominação por parte de Moscou. A África do Sul. No final dos anos de 1970, os
segunda crença, fortalecida pela presença sul-africanos também assistiram a uma re-
de uma minoria considerável de comunis- cuperação econômica que não seria possível
tas entre os líderes do CNA, continuava prever alguns anos antes. O crescimento ul-
forte, mas a primeira tinha começado a trapassou os diagnósticos, em parte lidera-
ser questionada. Durante 1985, os líderes do pelas exportações, mas também alimen-
brancos da indústria e do setor bancário tado pela demanda de consumo interna. O
realizaram uma reunião formal com líderes grande aumento no preço do ouro encheu
do CNA fora da África do Sul e, no final do os cofres do país e possibilitou que ele pa-
ano, a criação de um novo Congresso dos gasse suas dívidas externas; houve cortes de
Sindicatos Sul-Africanos enfatizou os pro- impostos e o balanço de pagamentos me-
blemas do governo para manter o controle lhorou. A África do Sul não estava apenas
dos trabalhadores organizados. O governo sobrevivendo, mas prosperando, apesar de
impôs censura à informação sobre rebeliões tensões internas e das críticas externas. O
negras e brutalidades policiais, mas embora país estava se tornando uma economia me-
tenham impedido jornalistas estrangeiros nos dependente de “tempestades” (embora a
de divulgar tais informações essas medidas explosão do ouro pertença a essa categoria),
não interromperam os distúrbios nem tor- e mais autossuficiente e independente. Suas
naram as principais comunidades negras principais fragilidades eram a dependência
menos ingovernáveis. Mesmo assim, a mu- de capital e combustível importados, a ca-
dança maior desses anos foi a chegada ao rência da especialização e as incertezas re-
topo da agenda política de questões sobre lacionadas à mão de obra negra. O capital
como, quando e em que limites tratar com continuava a entrar, apesar dos riscos políti-
os negros. À medida que o “Estado dentro cos. O desenvolvimento de óleo a partir do
do Estado” branco perdia autoridade moral carvão nacional avançou tão rapidamente
e dependia cada vez mais da força, os pró- que a interrupção do fornecimento funda-
prios brancos se dividiam nervosamente e mental de petróleo, depois da revolução ira-
os negros continuavam capazes apenas de niana de 1979, só representou restrições de
assediar o regime branco, sem acabar com menor porte ao consumo privado.
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Mas o mercado de trabalho, especiali- mento pesado e sua tecnologia avançada;


zado e não especializado, representava pro- suas forças crescentes careciam de oficiais
blemas mais graves. A escassez de forma- superiores, sargentos e instrutores, e seu pe-
ção impôs o abandono de muitos projetos rímetro era desconfortavelmente longo.
promissores e aumentou o desemprego. A Para manter a boa vontade ou negar
sindicalização dos trabalhadores negros era a má vontade do Ocidente, a África do Sul
uma fonte potencial de militância efetiva, ostentava valiosos minerais dos quais, o país
por meio de greves ou violência, não estava acreditava, o Ocidente não poderia prescin-
claro como os brancos poderiam manter o dir. Vários desses minerais só seriam substi-
controle dos trabalhadores negros. Desem- tuíveis recorrendo-se à URSS, o único outro
pregado ou em sindicatos organizados, o grande filão conhecido. Em termos de man-
proletariado urbano negro poderia se tornar ganês, essencial e insubstituível para fabricar
aliado do nacionalismo negro tradicional. aço, a África do Sul dominava a produção
Os anos de 1980 obscureceram esse e as reservas do mundo. Era também um
lado do quadro. O PIB decaiu; o investimen- grande produtor de vanádio e possuía re-
to estrangeiro praticamente cessou; a infla- servas enormes, assim como tinha reservas
ção subiu acima de 20% ao ano; a economia consideráveis de urânio e, embora outros
estava deixando de gerar lucros para finan- países também tivessem reservas, a maioria
ciar seu futuro, as reservas estavam aca- não tinha excedentes exportáveis, de forma
bando. O descontentamento se manifestou que a Europa ocidental e o Japão poderiam
em cinco eleições intermediárias em 1985, ser muito prejudicados por qualquer corte
quando o partido governante perdeu votos no fornecimento da África do Sul (e da Na-
para a extrema direita em distritos eleitorais míbia). Em relação à platina, cujos vários
muito diferentes. O CNA foi muito prejudi- usos incluíam as indústrias química, elétrica,
cado, sem ser arrasado, pois os ataques em de vidro e petróleo, os Estados Unidos de-
países vizinhos não conseguiram assustá- pendiam da África do Sul. Essa dependência
-los a ponto de expulsar a organização. As poderia ser reduzida fazendo estoques e bus-
tentativas de controlar as comunidades ne- cando substitutos, mas o caráter aleatório da
gras com dezenas de milhares de prisões e natureza ao dar a essas duas áreas – África
uma declaração de estado de emergência do Sul e a URSS – grandes parcelas das ja-
abalaram a confiança, principalmente da zidas mundiais de uma série de minerais
comunidade empresarial. Até mesmo a in- estratégicos era um fator importante para
questionada força militar da África do Sul a avaliação dos sul-africanos brancos sobre
dava menos confiança do que em anos ante- suas perspectivas.
riores. Embora não fosse uma potência mili- As sanções econômicas internacionais
tar nem uma superpotência, o país era uma tiveram efeitos contraditórios. Sua eficácia
potência totalmente modernizada, capaz de residia em conjuntos de cálculos interli-
gastar cerca de 2 milhões de rands (cerca de gados: por um lado, as consequências eco-
1 milhão de libras) por ano em despesas mi- nômicas e o impacto sobre a vontade po-
litares, e era vulnerável apenas a um ataque lítica das vítimas potenciais e, por outro, a
direto apoiado por uma superpotência ou solidariedade e as metas políticas dos que
a uma guerrilha prolongada auxiliada por impunham as sanções. Reagan e Thatcher
uma grande rebelião interna. Mesmo assim, aplicavam uma política do tipo “negócio
dependia de fontes externas para a manu- é negócio”, afirmando que a prosperidade
tenção e o desenvolvimento de seu equipa- suavizaria os conflitos raciais e possibili-
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taria que os brancos mantivessem controle ficaram ricos no processo. Mais grave foi a
de uma situação que, se estava se deterio- redução no fluxo de fundos estrangeiros. Em
rando sob o governo branco, o faria ainda comum com outros países, a África do Sul
mais rapidamente sem ele. Para Thatcher, vivenciou o período de meados dos anos de
o CNA era uma organização terrorista, en- 1980 como uma crise de pagamentos que ela
quanto Reagan esperava derrotá-lo ajudan- superou rolando suas dívidas, mas que mes-
do a UNITA e a Renamo, que considerava mo assim era um lembrete desconfortável de
como românticos defensores da liberdade. sua antiga dependência do capital estrangei-
Thatcher tentou frustrar seus parceiros na ro. Psicologicamente, o choque aguçou os
Commonwealth quando eles votaram a favor temores sobre o futuro, que tiveram reper-
de medidas econômicas mais duras, mas só cussões políticas: primeiro entre financistas
conseguiu desdenhá-los. Como meio-termo, e industriais e, depois, entre políticos força-
eles aprovaram o envio de um Grupo de Pes- dos a encarar o fato de que a comunidade
soas Eminentes à África do Sul. Ao mesmo empresarial branca precisava participar da
tempo, e talvez não por coincidência, os ata- economia mundial e temia o isolamento.
ques sul-africanos a Botsuana, Zimbábue e Enquanto os brancos mais pobres poderiam
Zâmbia anularam qualquer utilidade que ser levados pelas sanções a apoiar atitudes
o Grupo pudesse ter, e uma missão do mi- extremas e racistas, as classes empresariais
nistro do exterior britânico Geoffrey Howe eram levadas à direção oposta. Dentro de
no ano seguinte recebeu uma rejeição dura alguns meses, em 1989, a Commonwealth e
e ressentida: ambas as missões esperavam a ONU não apenas afirmaram a eficácia das
desencadear um processo diplomático ao sanções existentes, como as trataram – a elas
garantir a legalização do CNA e do PAC, e a e à promessa de suas respectivas suspensões
libertação de Mandela. Dentro da África do em troca de mudanças fundamentais na
Sul, as sanções agravaram os problemas de África do Sul – como um importante ins-
uma economia em crescimento e sofistica- trumento para as reformas sociais e consti-
da, dependente da economia internacional tucionais que, até aquela data, alguns líderes
em um período de dificuldades mundiais. nacionalistas defendiam, mas estavam intro-
Em termos comerciais, obrigaram as empre- duzindo com lentidão torturante.
sas da África do Sul a redirecionarem seus Nessas contracorrentes, dois fatos se des-
negócios, afastando-os da Grã-Bretanha e tacaram. As elites políticas e intelectuais afri-
dos Estados Unidos e os aproximando da câners estavam perdendo a fé no Apartheid
Alemanha Ocidental e do Japão, mas essa que as tinha sustentado desde que o Partido
busca de novos mercados era positiva e, com Nacional subiu ao poder em 1948. Mas, em-
a ajuda de evasões sutis e não sutis dos obs- bora estivessem abandonando sua ideologia,
táculos impostos pelas sanções, o comércio as elites não estavam dispostas a abandonar
da África do Sul não teve perdas líquidas o poder. Os negros, por outro lado, não se
graves. As perdas específicas foram mitiga- impressionavam com as mudanças de ati-
das, se não compensadas, e o país aprendeu tudes que não pareciam indicar qualquer
a viver com a perda marginal de curto prazo. mudança nas realidades da vida cotidiana.
Financeiramente, a retirada das empresas es- Os eventos falavam mais alto do que as con-
trangeiras deu às sul-africanas a chance de ferências onde uns poucos líderes de ambos
comprar, muitas vezes a preços bastante bai- os lados estavam começando a se conhecer.
xos, as plantas e operações que os estrangei- A morte de Steve Biko foi apenas o mais fla-
ros deixavam para trás. Alguns indivíduos grante de uma sequência de incidentes que
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estavam criando mártires para a causa negra ples e uma personalidade honesta. O CNA,
e tornando uma solução pacífica cada vez originalmente criado por uma elite negra
menos provável. Cada mártir era uma figura liberal, ampliou sua base popular a partir
com quem seus compatriotas sobreviventes dos anos de 1950, mas sua liderança conti-
tinham uma dívida que se achavam incapa- nuava urbana e de classe média. Buscou a
zes de desonrar. A geração de menos de 30 ajuda financeira da URSS e se aproximou
anos igualava o capitalismo sul-africano à ex- muito do Partido Comunista da África do
ploração, ao Apartheid e ao Estado policial, Sul (South African Communit Party, SACP)
e não tinha qualquer interesse em dialogar apesar de alguma desconfiança em relação
com os brancos, nem mesmo com os liberais. a essa organização branca. Preferia táticas
A situação foi modificada por F. W. de não violentas, mas endossava a violência
Klerk. Os fracassos políticos de Botha, sua quando a não violência não surtia efeito.
personalidade não atrativa e sua saúde frá- Diferentemente, por exemplo, da Cons-
gil combinaram-se para incentivar seus co- ciência Negra (um produto do desespero
legas a se livrar dele. Dos candidatos à sua dos anos de 1970), o CNA não desdenhava
sucessão, de Klerk era o mais conservador, o apoio branco e não era dogmaticamente
mas transformou a atmosfera política. Ele antibranco. Ao sair da prisão depois de 27
viu que a África do Sul estava isolada e que anos, Mandela revelou-se um homem de
o isolamento significava desastre político. extraordinária compostura e dignidade. Se
Assim deixou de tentar agradar a ala direita de Klerk criou uma nova situação, Mandela
e passou a tentar conter (mesmo que com era o homem sem o qual um novo ponto de
pouco sucesso) as forças de segurança e a partida seria inútil.
polícia, que estavam agindo como se fos- Os dois homens tinham a tarefa de en-
sem a lei. De Klerk abandonou a política de contrar terreno comum para construir uma
desestabilizar os países vizinhos, permitiu nova Constituição. Ambos sabiam que co-
protestos e manifestações ordeiras, iniciou meçar a conversar era um primeiro sinal e o
negociações secretas com Nelson Mandela mais simples prelúdio de um possível acordo
e libertou da cadeia Walter Sisulu e outros futuro. Ambos tinham o enorme problema
líderes negros. No início de 1990, libertou de garantir consentimento adequado de sua
inclusive o próprio Mandela. Essas medidas própria base, marginalizando os extremistas.
indicavam uma determinação de negociar O CNA insistia no princípio de “um homem,
com os sul-africanos negros, representados, um voto”. O governo tinha de encontrar uma
acima de tudo, pelo CNA, e também de dar forma de conciliar os direitos democráticos
ao país uma nova Constituição. da maioria com as salvaguardas para a mino-
Mandela era uma figura ainda mais im- ria branca apreensiva, já que uma parte dela
pressionante. Com Oliver Tambo e Walter era violentamente hostil a qualquer afrouxa-
Sisulu, ele formava um trio de líderes negros mento do domínio branco. O CNA aceitava
jovens. Em 1963, havia sido sentenciado no um sistema multipartidário e uma economia
julgamento de Rivonia a uma pena de prisão mista (assim como o Partido Comunista),
que parecia que duraria toda a sua vida. Ele mas queria mais controle do governo sobre
era vice-presidente do CNA, do qual o pre- a economia do que aprovavam os políticos
sidente era Tambo, que tinha escapado da ou empresários brancos. A ordem pública
prisão, mas, em 1990, estava muito doente era uma questão imediata. De Klerk tentou
na Suécia. Mandela era um homem comple- fazer com que Mandela e o CNA renuncias-
xo, mas que irradiava uma mensagem sim- sem previamente à violência, o que eles não
POLÍTICA MUNDIAL | 631

estavam dispostos a fazer enquanto as úni- A questão principal dos anos 1991-1994
cas mudanças reais no país fossem a liber- era elaborar e proclamar uma constituição
tação de Mandela (entre outros) e a visível não racial e democrática. Foi convocada
sinceridade e disposição para conversar do uma Convenção por uma África do Sul De-
presidente. Em 1990, o CNA concordou em mocrática (Convention for a Democratic
suspender a violência em troca da libertação South Africa, CODESA), que incluía mais
gradual de todos os prisioneiros políticos e de 20 partidos. O contexto era de paixões
o fim do estado de emergência que dava às do passado, violência persistente e medo de
autoridades mais poderes de prisão arbitrá- uma possível guerra civil, contrabalançado,
ria e detenção por tempo indeterminado. O contudo, por um compromisso superior de
governo limitou a suspensão do estado de parte da liderança do Partido Nacional e do
emergência fazendo uma exceção em Natal, CNA em continuar sua luta sem violência e
cenário de uma violência de tipo peculiar, a sem atrasos fatídicos. A essência dessa luta
violência entre negros. Enquanto o CNA ti- era a das salvaguardas pelas quais a minoria
nha dimensões nacionais e era o inegável re- (branca) poderia ter um poder de bloqueio
presentante da comunidade negra, em Natal que não significasse um veto.
essa posição era contestada pelo Inkatha e O princípio do governo da maioria, que
por Buthelezi. O Inkatha tinha apoio sólido significava governo dos negros, não era ne-
na zona rural de Natal, mas estava perdendo gociável, mas as condições limitantes de
terreno nas cidadezinhas para o CNA (ou, seu exercício o eram. As negociações foram
antes de este ser legalizado, para a Frente De- eclipsadas pela existência de diversos gru-
mocrática Unificada, que era o CNA disfar- pos além dos dois protagonistas: extremistas
çado). A disputa resultante assumiu a forma brancos de diferentes graus, o PAC e outros
de uma violência cruel entre zulus: milhares grupos negros (alguns deles dentro do CNA)
foram mortos. Tal violência se espalhou para que não confiavam na iniciativa de Mandela;
além de Natal, principalmente no Transvaal, e o Partido Inkatha, cujo poder era superes-
onde jogou zulus contra não zulus. O CNA timado por seu líder Mangosuthu Buthelezi,
reclamava com uma razoável plausibilidade que concebia um domínio zulu autônomo, e
que a polícia estava ajudando o Inkatha ao também por de Klerk, que tinha esperanças
não interferir em vez de manter ou restaurar de construir com o Inkatha uma aliança de
a ordem, e até incentivando a violência para direita no novo sistema político.
impedir as conversações entre o governo e o No que diz respeito aos negros, a posi-
CNA. As revelações da polícia (sob suspeita ção de Mandela nunca foi seriamente amea-
de terem sido inventadas) de uma conspi- çada. A primeira conferência nacional do
ração entre negros e comunistas visariam a CNA em 33 anos – em Durban, 1991, com
mesma destruição, mas de Klerk e Mandela a participação de 2.234 delegados – testou
se ativeram a seu propósito comum. De Klerk e confirmou sua autoridade. Seu domínio
declarou que o Partido Nacional deveria se pessoal preservou a unidade do CNA diante
abrir à participação de negros, criando, as- de diferenças em relação à condução das dis-
sim, a perspectiva de dois partidos de massas cussões, o tom da propaganda e o uso da vio-
– o PN e o CNA (já aberto a brancos) – como lência, que muitos no CNA acreditavam ser
os principais pilares políticos de uma África justificada pela divulgação de ajuda recebida
do Sul democrática e não racista, na qual a pelo Inkatha em dinheiro, armas, treina-
minoria branca não estaria confinada em um mento e mesmo incitamento à luta de negros
partido permanentemente minoritário. contra negros. No que diz respeito aos bran-
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cos, do lado oposto dos negros, a posição de grau possível de autonomia ou mesmo o
de Klerk foi fortalecida por um referendo direito de secessão, mas divididos em rela-
em que eles apoiaram com ênfase inespera- ção aos meios para isso – particularmente
da – 69% de uma participação de 89% – o quanto ao recurso à violência. Eles se com-
compartilhamento de poder sob uma nova binaram com dificuldade em uma Alian-
Constituição, como também pelo recurso ça pela Liberdade que incluía a Afrikaner
de seus oponentes à violência que, por ter Volksfront liderada pelo general Viljoen, o
fracassado, desacreditou-os, dissolveu sua Partido Conservador liderado por Ferdie
aliança e matou qualquer perspectiva de que Hertzenberg, a AWB de Eugene Terre-Blan-
os brancos tivessem direito de se separar da che, o Inkatha de Buthelezi, os presiden-
República Sul-Africana. De Klerk, contudo, tes das duas homelands – Bophutatsuana e
foi enfraquecido por uma recusa dos Esta- Ciskei – e outros 20 grupos menores.
dos Unidos em sair a favor das demandas Tendo exercido pouca influência no de-
brancas de um poder de bloqueio equiva- bate constitucional, esses grupos se depara-
lente a um veto, e também por evidências de ram com a questão de participar das eleições
que ele não tinha nem perto de um controle ou tentar inviabilizá-las. Os dois líderes mais
total de suas forças de segurança ou, alter- importantes – Viljoen e, na última hora, Bu-
nativamente, que tinha sido conivente com thelezi – decidiram participar. Viljoen estava
o desrespeito às leis e às instruções policiais. na companhia da AWB e outros extremistas,
O CNA respondeu às pressões sobre de depois de um tumulto em Bophutatsuana,
Klerk apresentando seus próprios calendá- no qual o chefe Lucas Mangope convidou a
rios precisos, que previam um governo inte- Afrikaner Volksfront para lhe ajudar a per-
rino até meados de 1992, eleições no primei- manecer no poder. A AWB aproveitou a
ro trimestre de 1993 para uma Assembleia oportunidade para causar desordens. Man-
Constituinte, um gabinete misto na metade gope foi derrubado e Viljoen deu as costas
daquele ano e uma nova Constituição em à violência e formou um novo partido com
operação um ano depois. Ao insistir em que os desertores do Partido Conservador. Em
os calendários eram tão importantes quanto Ciskei, o brigadeiro Oupo Gqoso renunciou
o conteúdo, o CNA forçou de Klerk a aban- depois de conflitos sobre salários e aposen-
donar suas esperanças de manter muitos tadorias dos policiais, de modo que ambas
dos brancos mais intransigentes no Partido as homelands foram, na prática, ocupadas
Nacional ou de formar uma aliança com o pelo exército sul-africano. Buthelezi, que
Inkatha para servir de contrapeso ou alter- possuía a maior capacidade para impedir as
nativa à aliança que este tinha com o CNA. eleições, estava em apuros; incapaz de con-
O CNA não recebeu tudo o que pedia, mas quistar muitos votos, mesmo nas áreas zulus,
desistiu menos aspirações do que o governo e igualmente incapaz de extrair de Mandela
e conseguiu vencê-lo. e De Klerk mais do que uma fração das de-
Isso aconteceu, em parte, porque ele mandas que vinha fazendo quanto aos ter-
estava em posição privilegiada desde que mos da Constituição ou ao calendário das
o governo se sentiu obrigado a libertar eleições. Uma semana antes das eleições, ele
Mandela da prisão e, em parte, porque a reverteu sua recusa em tomar parte de arti-
oposição às iniciativas da Codesa foi mais culações visando declarações para preser-
prejudicial ao governo do que ao CNA. Essa var o status de seu sobrinho, o rei zulu (que
oposição veio de brancos e negros, unidos tinha dado sinais de estar irritado com seu
por sua meta comum de garantir o maior tio) e promessas de Mandela e De Klerk de
POLÍTICA MUNDIAL | 633

mediação internacional em relação à auto- as vagas no gabinete, das quais o CNA ocu-
nomia de KwaZulu-Natal. Essas promessas pou 18, o Partido Nacional, 6, o Inkatha, 3.
continuaram sem cumprimento. Em sete Assembleias Provinciais, o
Em 1992, 19 dos participantes do Co- CNA tinha maioria, mas o Partido Nacio-
desa, concordaram com um programa que nal venceu em Western Cape (com a ajuda
dispunha sobre um Conselho Executivo do voto dos coloureds) e o Inkatha venceu
Transitório (o qual funcionaria junto ao ga- em KwaZulu-Natal. Essas eleições puse-
binete nacionalista existente), eleições por ram fim a uma era, mas não inauguraram
voto adulto em abril de 1994, um Estado outra. Os anos seguintes constituíram um
Federal com nove regiões, um presidente e período tradicional que assistiu à gradual
dois vice-presidentes (indicados por parti- dissolução da parceria que tinha orientado
dos que tivessem mais de 20% dos votos); o fim da dominação branca. Os processos
um executivo de não mais de 27 para o qual da Comissão de Verdade e Reconciliação,
os partidos poderiam indicar membros na estabelecida para curar as feridas aliviando
proporção de um para cada 5% dos votos as consciências, geraram revelações preju-
recebidos, uma legislatura que consistia em diciais sobre o regime do Apartheid, divi-
uma assembleia de 400 membros (metade diram o Partido Nacional e terminaram na
eleita em listas nacionais e metade, em listas renúncia de De Klerk em 1997. (Comissões
regionais) e um senado de 90 (sendo 10 de semelhantes estabelecidas no Chile depois
cada província), legislaturas regionais com do fim da ditadura de Pinochet, na Gua-
30 a 100 membros (dependendo da popu- temala e em El Salvador, depois do enfra-
lação), uma Carta de Direitos e um Tribunal quecimento das guerras civis, e no Brasil,
Constitucional. Líderes militares de alto ní- Argentina e Uruguai, experimentaram o
vel declararam sua lealdade a esse mecanis- mesmo conflito entre o desejo de um fu-
mo. O governo e o CNA concordaram que turo harmonioso e a retaliação por crimes
haveria um único exército, sem demissões passados.) O vitorioso CNA administrou
no serviço público nem confiscos de terras. a transição com mais sucesso do que os
A conclusão desses mecanismos se deveu nacionalistas. Mandela, com 80 anos em
à persistência de Mandela e de Klerk e ao 1998, foi sucedido por Thabo Mbeki na
fato de que um precisava do outro, porque presidência do partido e como presiden-
ambos temiam a anarquia. As eleições de te do país em 1999. As eleições de 1999
1994 ocorreram sem maiores incidentes de confirmaram a predominância do CNA.
violência, mas foram prejudicadas e prolon- O Partido Nacional foi quase eliminado,
gadas por confusões administrativas. Elas o Inkatha, de Buthelezi, perdeu terreno, o
foram declaradas substancialmente livres e novo Partido Democrático, liderado por
justas, e esse veredicto foi aceito pelos prin- Tony Leon (branco) se tornou a oposição
cipais partidos, apesar de suspeitas de graves oficial, com apenas 10% dos votos. Mas
delitos por parte do Inkatha em KwaZulu- não houve milagre econômico. Os serviços
-Natal. O CNA teve uma vitória arrasadora, públicos – água, eletricidade, moradia –
mas ficou pouco aquém de uma maioria de foram muito desenvolvidos, mas as neces-
dois terços – 62,6% dos votos, 252 cadeiras sidades e expectativas foram atendidas de
na Assembleia. O Partido Nacional conquis- forma limitada. A pobreza extrema e o ele-
tou 20,4% e 81 cadeiras, o Inkatha, 10,5% e vado desemprego persistiam com decep-
43 cadeiras. Três outros partidos conquista- ção, desordem e criminalidade inevitavel-
ram cadeiras, mas não se habilitaram para mente amplas. A África do Sul entrou para
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a associação Lomé e discutiu o livre comér- Mbeki na presidência, o CNA manteve sua
cio com a UE, mas os investimentos e as dominação, mas perdeu força. O estilo do
exportações definhavam à medida que sua novo presidente nas questões nacionais e
economia continuava dependente de uma interafricanas era de mediação, não osten-
economia mundial que lentamente saía da tação e, em alguns aspectos (principalmen-
recessão e, depois, foi abalada pelo tumulto te no diagnóstico da AIDS), equivocado.
econômico no leste da Ásia. O que ocorreu Em 2007, ele perdeu a presidência do CNA
foi uma revolução na qual uma sociedade para Jacob Zuma, que havia sido vice-
prevalecia sobre a outra, e eram sociedades -presidente, mas fora demitido por Mbeki
que tinha sido amargamente hostis, dividi- quatro anos antes. Esse resultado apontava
das pelo medo, ódio e desprezo – emoções para a eleição, em 2009, de um novo pre-
que não poderiam ser dissolvidas da noite sidente do país, mais extrovertido do que
para o dia, nem mesmo em uma única ge- Mbeki, mais sintonizado com o espírito do
ração. As divisões materiais profundas per- CNA como força militante de libertação,
sistiam e, ainda que menos óbvio, o lega- mas também gravemente envolvido em
do espiritual de uma história odiosa. Com alegações de corrupção e imoralidade.
Russos, cubanos,
chineses 26
Russos, cubanos, chineses foi fundada em Moscou a Universidade da
Amizade do Povo, mais tarde rebatizada de
O comunismo não teve muito impacto na Universidade Patrice Lumumba.
África, mas a Guerra Fria teve. Os Estados Sendo anticolonialistas, os líderes afri-
Unidos apoiaram alguns regimes espantosos canos eram antiocidentais. A maioria deles
porque eram anticomunistas. Os russos rea- se declarava socialista, o que era um terre-
giram com algumas intervenções, a maioria no promissor para Moscou, mas se revelou
incompetentes. menos frutífero do que o esperado: a luta
Os russos sabiam pouco sobre a África anticolonial foi surpreendentemente curta e
quando a Segunda Guerra Mundial acabou. pacífica, os líderes africanos, a começar por
Alguns viajantes do século XIX no vale do Nkrumah, adotaram o não alinhamento,
Nilo, uma invasão típica de ópera cômica os caminhos conhecidos para Paris e Lon-
na Somália e na Etiópia na década de 1880 dres continuaram sendo muito percorridos,
e alguma atividade marginal da Igreja Or- a ajuda soviética nunca esteve à altura da
todoxa eram tudo o que a Rússia czarista ocidental, e o socialismo africano derivava
tinha para comparar aos amplos conheci- tanto do socialismo ocidental quanto do
mentos dos comerciantes missionários e comunismo. Seu principal veículo foi o Par-
governadores coloniais ocidentais. Além do tido Comunista Francês e não o Soviético
que, como quase nenhuma parte da África e, embora o Agrupamento Democrata Afri-
era independente, o país não tinha missões cano (Rassemblement Démocrate Africain,
diplomáticas para observá-la e fazer rela- RDA), fundado em outubro de 1946, em
tórios. A Revolução Bolchevique deu um Bamako, tivesse em Gabriel d’Arboussier
impulso aos estudos africanos, mas eles um secretário próximo ao pensamento co-
também ficaram submersos sob a pressão munista, seu presidente Félix Houphouët-
de preocupações mais urgentes. Com o fim -Boigny era hostil a ele. Outro fundador
da Segunda Guerra, Stalin tentou obter uma do RDA, Sekou Touré, foi inútil à URSS em
parte das conquistas na Itália, mas não con- termos gerais. Expulso da Confederação
seguiu. Nos anos de 1950, os estudos africa- Geral do Trabalho francesa (Confédéra-
nos se ampliaram, foi fundado um instituto tion Générale du Travail, CGT), ele aderiu
africano em Moscou (1959) sob a direção a seu equivalente africano, a CGTA (pos-
de um eminente historiador, I. I. Potenkhin, teriormente Union Générale des Travail-
e a URSS começou a enviar representan- leurs d’Afrique Noire [UGTAN]), na qual
tes a conferências afro-asiáticas. Em 1960, os comunistas eram minoria, e se tornou o
636 | PETER CALVOCORESSI

primeiro de vários presidentes africanos a ocidental e – aos olhos dos soviéticos – um


expulsar os russos de seu país. típico produto do segmento equivocado da
A primeira incursão de Moscou na po- burguesia africana, que estava pronto para
lítica africana ao sul do Saara foi reativa a negociar com os britânicos. Mas Nkrumah
uma oportunidade. A Guiné, lançada à in- também foi o primeiro a estender a mão a
dependência em 1958, depois de se recusar a Sekou Touré, deu ajuda em seu país à re-
entrar para a communauté de de Gaulle, nas- volucionária União Popular de Camarões
ceu em situação de desespero. Apesar de ser (Union Populaire du Cameroun) e se tornou
um país pobre e de pouca população, tinha profundamente antiamericano depois do
uma posição estratégica no canto superior assassinato de seu amigo Lumumba. Ele era
do sudoeste da África, um porto mais próxi- um pêndulo que oscilava na direção correta
mo do que qualquer outro naquela posição para Moscou. Como Sekou Touré e Modibo
intermediária do Atlântico, cerca de um ter- Keita, receberia o Prêmio Lênin.
ço da bauxita do mundo e enormes queixas Mesmo assim, em poucos anos, nada
contra o Ocidente. Moscou concedeu rápi- tinha sobrado dessa constelação pró-russa
do reconhecimento diplomático, créditos na África ocidental. Com a queda de Nkru-
(140 milhões de rublos em 1959), ofertas de mah, em 1966, o general Ankrah expulsou
comércio e armas tchecas. Sekou Touré foi todos os especialistas soviéticos (cerca de
convidado a visitar Moscou, e Khruschev mil), grande parte das missões diplomáti-
prometeu visitar Conacri, o que foi feito por cas soviéticas, cubanas e chinesas e toda a
Brejnev. Daniel S. Solod, que tinha servido missão comercial da Alemanha Oriental; as
com méritos como embaixador na Síria e no relações com a URSS degeneraram para o
Egito, foi transferido à Guiné com o propó- confronto de baixo nível. Modibo Keita so-
sito de transformar Conacri em um centro breviveu até 1968 (quando foi deposto pelo
de influência soviética. Mali e Gana caí- exército e mantido na prisão até morrer),
ram dentro desse quadro por casualidade. mas a conexão russa foi fraca quase desde
O Mali (ou Sudão Francês, como ainda era o princípio, a ajuda parou completamente
chamado) era o parente pobre da união com e, embora tenha havido relatos de um gru-
Senegal, que teve curta duração e acabou em po russo fazendo prospecção em busca de
1960 sob o peso de suas incompatibilidades. minerais no norte e no leste de Mali, a vi-
Enorme, árido e sem saída para o mar, nada são comum era de que a URSS estava mais
tinha a oferecer a um aliado, mas Modibo interessada em lugares para a aterrissagem
Keita, um socialista do tipo de Sekou Touré, de aeronaves e paraquedistas militares. A
foi trazido pela Guiné para a esfera soviética associação inicial com a Guiné ficou difí-
por meio de uma amizade semelhante. Fo- cil de forma ainda mais rápida quando, em
ram oferecidos créditos de 40 milhões de ru- dezembro de 1961, Solod recebeu a ordem
blos e o aeroporto de Bamako foi disponibi- de arrumar suas coisas e partir, acusado de
lizado à Aeroflot. Gana, já independente três cumplicidade em uma conspiração contra
anos antes, recebeu a oferta de 160 milhões Sekou Touré. Moscou enviou ninguém me-
de rublos nessa época, embora Moscou ti- nos do que Anastas Mikoyan para tentar
vesse demonstrado, inicialmente, um inte- resolver as coisas, mas ele não conseguiu, e,
resse apenas superficial no país e não tivesse em 1962, Sekou Touré deu o primeiro pas-
enviado embaixador até 1959. Nkrumah era so em direção a uma posição mais neutra
um homem forte da Commonwealth, sin- ao aceitar 70 milhões de auxílio dos Esta-
cero em relação à sua necessidade de ajuda dos Unidos. Durante a crise dos mísseis de
POLÍTICA MUNDIAL | 637

Cuba, ele se recusou a permitir que aviões nente e, quando os preços mundiais caíram,
russos usassem o aeroporto de Conacri, as compras russas aguentaram a queda redu-
construído pelo menos, e o primeiro avião zindo o fornecimento a outros mercados. O
a jato a aterrissar nele foi francês. contrato russo mantinha os preços nos mer-
A principal consequência desses fracas- cados tradicionais de Gana melhores do que
sos foi o impulso a um novo pensamento de seriam sem ele. Na Guiné, por outro lado,
Moscou em relação à África. As aventuras o apetite russo pela bauxita estava muito à
russas na Guiné, em Gana e no Mali eram frente de qualquer coisa parecida com gene-
parcialmente casuais e parcialmente ideoló- rosidade ou tato. Depois que as jazidas em
gicas. Seu principal instrumento, contudo, Kindia foram prospectadas por especialistas
era econômico: dinheiro somado a assesso- russos, formou-se uma companhia que era
ria especializada. Os créditos russos (ofere- chamada de conjunta, mas de propriedade e
cidos em termos excepcionalmente fáceis) administração totalmente russas. Os lucros
deveriam ser usados para financiar projetos dessa empresa eram alocados inicialmente a
importantes com aprovação mútua, equili- uma conta transitória para pagar pela com-
brar o balanço nas contas públicas quando pras de armas e outros produtos russos pela
as importações russas não fossem pagas Guiné, mas se jogava com eles no pior estilo
em bauxita da Guiné ou cacau de Gana e neocolonial. Além disso, a URSS conseguia
contribuir para a formação de africanos pagar miseráveis 6 dólares por tonelada de
ocidentais na URSS. Dessa forma, Moscou bauxita até 1976, quando o preço foi au-
buscava afastar esses países da influência mentado para 16 – o que ainda não passa-
das economias ocidentais, garantir contro- va de dois terços do preço mundial. A má
le de suas exportações e inserir especialistas vontade que isso gerava foi aumentada pela
russos nelas. Mas os especialistas acabaram recusa dos russos em ajudar a Guiné a cons-
sendo mais numerosos do que a quantida- truir uma frota de pesca ou a compartilhar
de que seria bem-vinda – 3 mil somente na sua própria pesca nas águas do país – uma
Guiné, no auge. Eles tendiam a recomendar mesquinhez tola em profundo contraste
obras pomposas em vez de úteis – como um com os cubanos e alemães orientais, que
grande estádio e um teatro em Conacri – e estavam dispostos a dar parte da sua pesca
promoveram a coletivização da agricultura, (no caso cubano, toda). Em suma, Guiné,
impopular a ponto de levar a tumultos na Gana e Mali não cumpriram nenhum pro-
Guiné, que tiveram de ser reprimidos pelo pósito russo prático e fizeram menos ainda
governo. Quantidades excessivas de pro- pela imagem da URSS na África, mas foram
dutos russos foram importados e contas e um campo de testes, pois, depois da morte
ressentimento foram acumulados. E, se o de Stalin, Moscou desenvolveu um fermento
dinheiro deveria ser o principal instrumen- intelectual que o temperamento de Khrus-
to político, os Estados Unidos tinham mais. chev incentivou. As categorias dogmáticas
Pior do que tudo, do ponto de vista de do comunismo stalinista foram afrouxadas e
Moscou, era o sentimento crescente de que Khruschev, não intelectual e apressado, esta-
os russos só estavam interessados em obter va mais do que disposto a remexer nelas sem
barganhas grosseiramente egoístas, o que se preocupar muito com aonde esse espírito
não era totalmente verdadeiro. Nos anos de poderia levar. A África, sempre em último
1960, a URSS pagava muito mais do que o lugar na agenda russa, não foi uma causa ge-
preço mundial pelo cacau de Gana, repre- radora desse novo clima, cuja principal fonte
sentando um comprador garantido e perma- estrangeira, provavelmente, era a determina-
638 | PETER CALVOCORESSI

ção dos novos governantes a dar um fim na perfil de Moscou para o socialista africano
disputa com Tito. do tipo certo. Mas quando ele foi deposto e
Mas também havia implicações para as depois morto, Moscou atacou a forma como
políticas africanas. A busca de amigos no Hammarskjöld tratou a situação e ameaçou
continente não precisava se limitar aos líde- uma intervenção militar unilateral em apoio
res cujas credenciais passariam no teste da ao herdeiro de Lumumba, Antoine Gizenga,
ortodoxia stalinista – o que não aconteceria que, contudo, não tinha apoio adequado no
com nenhum dos líderes africanos. Os na- país nem em suas fronteiras (a hostilidade
cionalistas, desde que estivessem avançando sudanesa selou o destino de sua revolta na
na direção socialista, tornaram-se aliados província Orientale); sua rebelião criou uma
aceitáveis. O caminho do “não capitalis- aliança temporária entre Kasavubu e Tshom-
mo” – uma expressão utilmente vaga que be, que era prejudicial aos objetivos dos rus-
era uma favorita de Khruschev – tornou-se sos e o resultado final – o estabelecimento
respeitável. Nesse contexto, poderiam ser de Mobutu, a grande esperança dos Estados
estabelecidos vínculos com Sekou Touré, Unidos – foi acompanhado do fechamento
Nkrumah e Keita sem violentar os postula- forçado da embaixada russa em Kinshasa.
dos russos básicos e, embora esses vínculos A URSS saiu prejudicada por seus próprios
específicos só tenham levado à decepção, as erros de cálculo, e também tinha ofendido a
políticas por trás deles sobreviveram. Mos- grande maioria dos membros da OUA, que
cou ampliou sua margem de manobra di- foi criada em 1963, em grande parte como
plomática e também estava se informando consequência da guerra no Congo.
melhor. O Instituto para a África na Acade- Em contraste, Moscou fortaleceu sua
mia de Ciências estava se ampliando e, em posição na Nigéria durante a guerra civil
1965, o cargo de diretor foi para V. G. So- naquele país – uma vitória do pragmatis-
lodovnikov, economista (e a partir de 1965, mo sobre a ideologia. A URSS custou para
embaixador em Zâmbia). Solodovnikov prestar atenção à Nigéria. Embora um em-
também foi posto na chefia de um Conselho baixador nigeriano tenha ido a Moscou al-
Coordenador de Estudos Africanos, criado guns meses depois da independência em
pela academia em 1966. Em 1970, a URSS 1960, Moscou só retribuiu a gentileza em
já tinha 350 estudiosos trabalhando em et- 1964. Suas simpatias instintivas não estavam
nografia, direito, filologia, história e geo- no norte dominante nem com um general
grafia da África, e quando saiu do Instituto, como Johnson Ironsi, que era considerado
Solodovnikov foi sucedido pelo filho de A. membro de uma classe feudal, pró-britâni-
A. Gromyko. Houve ações semelhantes em ca. Mas a desilusão com os líderes civis na
Leningrado e em universidades de países da África Oriental levou Moscou a ver virtudes
Europa do leste. nos militares que poderiam proporcionar
Por essas ou por outras razões, hou- governos mais estáveis e se revelarem ami-
ve uma diferença marcada na forma como gos mais previsíveis. A teoria se ajustou às
Moscou lidou com as crises e oportunidades necessidades práticas mostrando os milita-
das duas grandes guerras civis dos anos de res como uma força popular e progressista,
1960, no Congo e na Nigéria. Na primeira, que varria as ressacas capitalistas burguesas.
a URSS começou apoiando a intervenção Gowon, sucessor de Ironsi, não era do
da ONU, em parte porque Lumumba – es- norte e dava sinais de fazer uma aliança com
colhido pela própria Bélgica para estar à Awolowo, que caiu nas graças de Moscou
frente do novo Estado – se enquadrava no quando se tornou o primeiro líder da opo-
POLÍTICA MUNDIAL | 639

sição no parlamento federal. Moscou espe- um ponto de acesso ao norte da África e a


rava, equivocadamente, que Gowon pudesse oportunidade veio de forma indireta. Nasser
transformá-lo em primeiro-ministro. Além queira armas que não poderia obter do Oci-
disso, à medida que Ojukwu se aproximava dente. Ele não conhecia os sucessores de Sta-
da secessão de Biafra, ficou claro que uma lin, mas, a caminho de Bandung, encontrou-
ampla maioria da OUA se opunha a ele. -se com Zhou Enlai no aeroporto de Rangun
Moscou não queria ofender essa maioria, e e explicou seu problema para ele. Zhou suge-
decidiu apoiar – e armar – Gowon. riu que ele tentasse Moscou, e prometeu fa-
As negociações foram conduzidas com zer uma recomendação em seu favor. Depois
muita facilidade porque a Nigéria já estava de discussões no Cairo e em Praga, os comu-
negociando com a URSS para obter ajuda nistas deram a entender a Nasser que ele po-
econômica. Os planos de desenvolvimen- deria fazer o que quisesse com os comunistas
to da Nigéria eram tão amplos que ela não egípcios: um negócio de armas não incluiria
poderia ter toda a ajuda que pedia do Oci- o benefício deles com o pacto. Quando, um
dente e, assim, superando seu profundo an- ano depois, os norte-americanos desistiram
ticomunismo, voltou-se à URSS e à Europa de ajudar no financiamento da Represa de
Oriental. Em 1967, uma pequena equipe Assuã, Nasser declarou que mesmo assim
de cinco especialistas russos passou cinco seguiria em frente. Ele contava com a ajuda
semanas na Nigéria, viajando por muitas russa, o que era uma chance para a URSS e,
partes do país e estudando as possibilidades depois de alguma hesitação, Moscou deu o
para uma indústria siderúrgica (para a qual, salto a ponto de oferecer financiamento para
junto com outros projetos, a URSS acabou a primeira etapa. Quando França e Grã-Bre-
adiantando 140 milhões de dólares no final tanha incentivaram Israel a invadir o Egito e
de 1968). Mas, com o início da guerra, os se juntaram em uma tentativa de depor Nas-
problemas de Gowon se reduziram a um: ser, a posição de Moscou se consolidou.
obter armas. A Grã-Bretanha e os Estados Esse casamento de conveniência trans-
Unidos se recusavam a dar o que ele queria e correu com tranquilidade enquanto era per-
ele recorreu ao embaixador russo Alexander sonificado por Nasser e Khruschev. A URSS
Romanov, um negociador hábil e sensível deu a Nasser o transporte para sua expedi-
que não tentou obter uma barganha mui- ção ao Iêmen em 1962, e, dois anos depois,
to rígida (de todas as formas, Lagos estava Khruschev participou das celebrações em
disposta a pagar em dinheiro) e entendeu Assuã.
que, embora não pudesse ser transformada Isso aconteceu alguns meses antes de
em comunista, a Nigéria poderia ser trans- sua queda. Seus colegas já o estavam acu-
formada em um país amigo. Poucas sema- sando de adular Nasser indevidamente, e as
nas depois do início das hostilidades, as ar- dúvidas foram fortalecidas quando este se
mas russas e tchecas começaram a chegar e recusou a apoiar a URSS contra a China na
o apoio russo a Gowon continuou firme e discussão sobre a primeira ser ou não uma
aberto. Essa política atingiu suas metas limi- potência asiática e, portanto, elegível para
tadas. Sucessivos governos nigerianos, todos participar de uma segunda Conferência de
fortemente anticomunistas, preservaram as Bandung. Durante o ataque israelense ao
boas relações com a URSS, estabelecidas du- Egito em 1967, o Cairo acusou o Kremlin
rante a guerra. de dar pouco apoio militar e diplomático.
Por 10 anos depois da Segunda Guerra Quando Nasser morreu, em 1970, a pre-
Mundial, a URSS foi incapaz de encontrar sença russa no Egito tinha se tornado tão
640 | PETER CALVOCORESSI

desconfortável quanto grande. Em 1972, 20 te, Nimeiry expulsou Mahgoub do Sudão


mil assessores e especialistas russos foram e, quando este voltou e estimulou uma re-
embora em sete dias, por exigência de Sa- volta, mandou executá-lo – um evento par-
dat, que se apropriou de suas instalações e ticularmente constrangedor para Moscou,
de seus equipamentos. que saudou o golpe acreditando que já era
Nasser e Khruschev eram chefes de Es- o vencedor.
tado de fala direta, capazes de superar as Mais importante do que o Sudão e tão
desconfianças inevitáveis entre dois países sedutora quanto o Egito era a Argélia. Mers
tão desconhecidos como a URSS e o Egito. el-Kebir era uma base naval quase tão atra-
Seus sucessores careciam dessa habilidade. tiva quanto Alexandria e, por sua posição
Sadat suspeitava de que o Kremlin estives- ocidental no Mediterrâneo, oferecia opor-
se fazendo intrigas com seus adversários tunidades de obter uma vantagem sobre a
internos e também de que Brejnev quisesse OTAN, como esta tinha feito com a URSS
fazer um acordo global com Nixon, o que na Grécia e na Turquia. Mas as relações
implicaria interromper a ajuda de ambas entre Rússia e Argélia nunca foram fáceis.
as superpotências aos árabes na luta contra Moscou não tinha muito entusiasmo em
Israel. Ele não gostou de ter de fazer duas relação à FLN, cujos líderes pareciam estar
viagens a Moscou para mendigar ajuda e no extremo errado do espectro socialista, e
pouco receber em troca. De sua parte, Brej- hesitava ofender o Partido Comunista Fran-
nev suspeitava de que Sadat, a quem consi- cês e seu rebento argelino, ambos hostis à
derava, com razão, muito menos radical do FLN. Os russos só reconheceram a FLN em
que Nasser, fizesse transações suspeitas com 1960 (a China a reconheceu em 1958), e seu
sauditas e norte-americanos ricos. Na guer- apoio permaneceu limitado até que o fracas-
ra de 1973, a URSS, engolindo seu orgulho so do golpe dos generais franceses, em 1961,
em uma tentativa de recuperar terreno per- seguido da segunda conferência de Evian,
dido, resgatou e rearmou o Egito, mas isso em 1962, selou o sucesso da FLN.
foi apenas um interlúdio no afastamento A seguir, Moscou deu apoio entusias-
progressivo de Sadat em relação à aliança de mado a Ben Bella até sua queda em 1965,
Nasser com os russos e rumo à reunião de quando, com uma pressa indecente, bus-
Camp David com Carter e Begin. Em 1976, cou a amizade de Boumédienne com igual
Sadat cancelou o tratado que tinha feito com dedicação.
a URSS em 1971. O Kremlin perdeu seu O problema da Argélia era conseguir o
grande tesouro na África. melhor de dois mundos, a URSS e a Fran-
A URSS também tropeçou no Sudão. ça, e chegar a bom termo com ambas. O
Moscou foi levada a reconhecer a indepen- país ampliou seus vínculos comerciais com
dência sudanesa, classificando Abboud, a URSS através de uma série de acordos co-
quando ele subiu ao poder, em 1960, como merciais, enviou centenas de jovens para
um militar progressista, e foi ainda mais in- estudar lá e aceitou cerca de 2 mil técnicos
centivada pelo golpe de Nimeiry de 1969. russos e muitos assessores militares. Mas
Nimeiry deu ao comunista Muhammad empregou um igual número de técnicos da
Ahmed Mahgoub um cargo no gabinete e França e de outros países, fez questão de ho-
a coincidência de golpes semelhantes na menagear líderes heterodoxos, como Tito e
Somália e na Líbia gerou a agradável ilusão Ceaucescu, e assumiu a linha de que as fro-
de um bloco de esquerda formado por esses tas russa e norte-americana deveriam sair do
três países com o Egito. Mas, no ano seguin- Mediterrâneo. A Argélia se tornou um bom
POLÍTICA MUNDIAL | 641

exemplo da principal dificuldade da URSS URSS no Egito e no Sudão estavam se tor-


na África: simpatias ideológicas levavam à nando duvidosas, o marechal A. Grechko,
ajuda militar, mas não a muito mais do que ministro da defesa soviético, fez uma vista à
isso. As economias russa e argelina não eram Somália e foi seguido, dois anos depois, pelo
complementares e suas várias necessidades presidente N. V. Podgorny, firmando um
e recursos não combinavam. O Marrocos tratado de amizade de 10 anos que, entre
poderia fornecer à URSS, mais abundante- outras coisas, cancelava a dívida da Somália
mente do que a Argélia, o fosfato de que ne- com a URSS – uma atitude incomum de ge-
cessitava para sua agricultura cronicamente nerosidade. Em 1977, a ajuda militar russa
doente, mas era ideologicamente oposto à chegou a 250 milhões de dólares, havia 2 mil
URSS e estava em conflito com a Argélia. técnicos militares russos no país e o valor
Na África oriental, a URSS teve dificul- das bases e equipamentos disponíveis para
dades. Na Tanzânia, Nyerere desconfiava de uso da Rússia era de cerca de 1 bilhão de
Moscou tanto quanto de Washington. No dólares. O interesse russo era considerável,
Quênia, a URSS cometeu um grave erro tá- e tudo isso tinha mais a ver com o Oceano
tico quando apoiou Oginga Odinga, que na Índico do que com o continente africano, já
independência, em 1963, parecia ser o nú- que, antes de 1917, o acesso russo à princi-
mero dois na lista de favoritos de Kenyatta, pal via marítima desse segmento do mundo
mas exagerou e caiu em desgraça em 1966. estava bloqueado pelo Império Otomano e
Embora o Quênia não tivesse acordo sobre pela Pérsia.
armamentos com a URSS, armas russas e Depois disso, vários países africanos e
tchecas chegaram ao país e foram encon- seus apoiadores ocidentais atrapalharam,
tradas na terra de Odinga. Kenyatta acusou até que, em 1955, o negócio de armas com o
Moscou de financiar uma conspiração con- Egito abriu uma porta para o Oriente Médio
tra ele, e Odinga de ser agente comunista. e, através do Mar Vermelho, para o Oceano
Diplomatas russos e outros foram expulsos. Índico. Em 1971, Aden, no extremo do Mar
O máximo que Moscou conseguiu fazer Vermelho, tornou-se parte do independente
foi manter relações melhores com Uganda, e esquerdista Estado do Iêmen do Sul – um
o que fez mesmo com o desumano Amin posto avançado estratégico de grande im-
(a cuja corte um vice-ministro do exterior portância, caso, sob tutela russa, pudesse ser
russo, Alexei Zakharov, foi enviado como enquadrado em um grupo mais abrangente
embaixador em 1972). Mas Uganda, sem li- de Estados-clientes. À medida que suas po-
toral, era o menos promissor dos países da sições no Egito e no Sudão degeneravam, a
África Oriental em termos geopolíticos. URSS ia ficando proporcionalmente preo-
A compensação foi encontrada mais ao cupada em se contrapor à dominação norte-
norte. Em 1963, a URSS fez um primeiro -americana na Etiópia que, desde a anexação
acordo com a Somália, oferecendo créditos da Eritreia na prática, em 1952, controlava
de até 35 milhões de dólares. A conexão foi 1.500 km de litoral do Mar Vermelho (sen-
fortalecida após o golpe de 1969, que levou do que o litoral oposto estava sob controle
Siad Barre ao poder. A recompensa foi o de- do amigo ainda mais leal de Washington, a
senvolvimento de uma base naval em Ber- Arábia Saudita).
bera, uma base aérea em Hargeisa, armaze- Durante a década de 1960, os Estados
nagem para mísseis e outros armamentos Unidos desenvolveram o míssil A3 Polaris,
e instalações para inteligência e telecomu- com um alcance de 4.000 km. Lançada de
nicações. Em 1972, quando as posições da navios no Oceano Índico, essa nova arma
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poderia atingir alvos na URSS. A primeira como internos – em particular contra a So-
reação de Moscou foi uma proposta de de- mália. Moscou recorreu a Fidel Castro para
clarar o Oceano Índico uma zona livre de convencer Siad Barre a abandonar a disputa
armas nucleares. Quando essa ideia fracas- com a Etiópia e unir-se a uma constelação
sou, o almirante S. G. Gorshkov, o pai da de esquerda a ser formada em torno da Etió-
moderna marinha russa, enviou uma força pia, da Somália e do Iêmen do Sul.
simbólica de Vladivostok ao Oceano Índico As simpatias de Fidel estavam com os
e estabeleceu, nos anos de 1970, uma patru- somalis (e com os eritreus) e não com os
lha permanente. Sendo assim, o desenvolvi- etíopes. Havia uma missão de treinamento
mento do poder naval russo aconteceu em cubana na Somália desde 1974. Mesmo as-
águas onde estava em jogo grande parte do sim, ele aceitou a incumbência de Moscou,
petróleo importado pelos Estados Unidos e mas não conseguiu convencer Barre a abrir
dois terços do da Europa ocidental. mão da oportunidade dourada de anexar
Em meados da década de 1970, os even- Ogaden, há muito disputada com a Etiópia.
tos deram a Moscou uma boa oportunida- Sendo assim, Fidel ajudou Moscou uma se-
de de ampliar sua esfera de influência nessa gunda vez, pondo seu exército a serviço da
parte do mundo. Em 1974, Haile Selassie Rússia e de Addis Abeba para derrotar seus
caiu. Os Estados Unidos, já se mudando de antigos amigos somalis.
sua base etíope em Kagnew para um novo Os primeiros contingentes vieram de
baluarte em Diego Garcia, no Oceano Índi- Cuba à URSS e dali à África. Unidades pos-
co, continuaram por um tempo a dar ajuda teriores seguiram por ar e por mar a partir
financeira, armas e formação à Etiópia. A de Angola. Elas salvaram Harar e Direda-
URSS era pressionada de duas maneiras: seu wa de ser capturadas pelos somalis, para-
aliado na Somália era hostil à Etiópia, mas ram o avanço somali e depois o repeliram.
a chance para Moscou suplantar os norte- A contribuição russa a essas operações foi
-americanos ali era tentadora. Moscou há uma ponte aérea gigante via Aden que, co-
muito estava ciente da importância da Eti- meçando em outubro de 1977, incluiu 550
ópia. Em 1959, quando o país estava firme- tanques T54 e T55, pelo menos 60 MiGs 17
mente no campo norte-americano, a URSS e 21 e 20 MiGs 23, mísseis terra-ar SAM 2 e
enviou o diretor do departamento africano 3, lançadores de foguetes BM 21, artilharia
do ministério do exterior, A. V. Budakov, de 152 mm e 180 mm, sistemas antiaéreos
como embaixador, para Addis Abeba, e elo- autopropulsados, blindados de transporte
giou o papel de Haile Selassie na criação da de tropas e muito mais. Para a URSS, essa
OUA; chamou seu regime antiquado de pro- não era apenas uma ação estratégica, mas
gressista e lhe deu uma generosa quantidade também uma demonstração de força, efi-
de ajuda financeira. Depois de sua queda, ciência e segurança. Ficava ainda mais im-
Moscou se encontrou de posse de uma arma pressionante considerando-se que nunca
que Washington não tinha, e poderia armar antes, mesmo para proteger suas posições
o novo regime, o que Washington não faria. no Egito, a URSS tinha recorrido ao uso di-
Armando a Etiópia, a aliança com a So- reto da força na África. Mas tendo salvado a
mália foi colocada em risco, mas Moscou es- Etiópia do ataque da Somália, não permitiu
perava poder levar a duas coisas. Em 1977, um contra-ataque etíope contra a própria
decidiu dar o salto. Mengistu surgiu como Somália – uma contenção comedida, pro-
o homem a ser apoiado, mas isso teria de vavelmente ditada por uma determinação
ser feito contra inimigos estrangeiros, bem de não provocar demais os Estados Unidos
POLÍTICA MUNDIAL | 643

e evitar confrontação aberta entre super- fre. O grupo de 11 incluía especialistas em


potências. Mas, mesmo com ajuda russa, planejamento, treinamento, suprimentos,
Mengistu não conseguiu mais do que con- transporte aéreo e em rádio, e inteligência
ter temporariamente seus inimigos e pedir eletrônica. As forças terrestres e as forças
mais ajuda. Quando Gorbachev chegou ao aéreas estavam representadas. Seus levanta-
poder, Mengistu custava mais do que valia mentos não levaram a operações, mas eram
e lhe foi dito que a ajuda russa e as tropas indicativos da consciência que o Kremlin
cubanas iam ser retiradas. tinha de que essas operações poderiam se
Com a queda do salazarismo em Lisboa, tornar desejáveis um dia.
em 1974, a URSS mandou V. G. Solodovni- Um ano antes, e um pouco mais fora do
kov, seu principal acadêmico africano, como mapa, uma prestigiosa delegação do Institu-
embaixador na Zâmbia. Ele teria recebido to Africano visitou Madagascar e Maurício
um alto cargo na KGB. Acessível, genial, (1976) para declarar o interesse russo na re-
mas visivelmente ausente do círculo dos gião. Em 1975, Madagascar deu uma brusca
coquetéis diplomáticos, ele tinha a tarefa de virada à esquerda com o advento de Didier
fazer de Lusaka um centro de influência e Ratsiraka ao poder, enquanto nas Ilhas Co-
inteligência russas, como o Cairo e Cona- moros, Ali Soilih (assassinado em 1978)
cri não tinham conseguido ser. Solodovni- também levava seu país à esquerda. O mes-
kov estava tão preocupado com a ZAPU na mo fez France-Albert René nas Seychelles
Rodésia e a Swapo na Namíbia quanto com em 1977.
os assuntos de Zâmbia. Na mesma data, a Porém, os eventos de mais peso no sul
URSS estabeleceu uma embaixada surpre- da África na década de 1970 foram as conse-
endentemente grande em Botsuana. quências do colapso do domínio português.
No restante da década, os soviéticos op- Em Moçambique, Samora Machel estabele-
taram por não correr riscos no sul da África, ceu, sem praticamente nenhuma oposição
em contraste com sua política afirmativa no inicial, um Estado de partido único que era
Chifre. Deram apoio mínimo a movimen- claramente de esquerda em suas questões
tos insurgentes na Rodésia e na Namíbia, domésticas, embora fosse não alinhado nas
o suficiente para mantê-los funcionando e relações externas. Em Angola, a luta pela
garantir sua cooperação, mas não mais. Em sucessão teve uma disputa mais acirrada e
Angola, conseguiram interferir apenas por produziu uma das mais estranhas intrusões
meio de representantes. Em 1976, o gene- na história do continente: a entrada em cena
ral (posteriormente marechal) S. L. Soko- dos cubanos. Essa ação impressionante foi
lov fez uma viagem pela África, chegando causada pelo temperamento pessoal de Fi-
até Moçambique, no sul. No ano seguinte, del Castro, mas teria sido impossível sem
um grupo de nada menos do que 11 gene- ajuda e aprovação dos russos, e deu a Mos-
rais russos foi visto no sul de Angola e, um cou um instrumento indireto em uma zona
ano mais tarde, o general V. I. Petrov visitou na qual a Rússia relutava em operar direta-
Angola e Moçambique. O calibre desses ex- mente e (como Washington) provavelmente
ploradores era impressionante. Sokolov era ainda era muito ignorante para operar efe-
membro do grupo mais elevado na hierar- tivamente. Também levou ao uso de forças
quia militar, um grupo de quatro. Petrov era cubanas no Chifre.
o número dois nas forças terrestres, serviu Como resultado das sanções econômi-
no Extremo Oriente e foi o cérebro por trás cas dos Estados Unidos contra Cuba, Fi-
das operações na Etiópia e na região do Chi- del Castro se tornou muito dependente da
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URSS, já que uma série de desastres eco- cana mais próxima do Caribe e um centro
nômicos no país o colocou à disposição de de treinamento de guerrilheiros para lutar
Moscou, mas Moscou provavelmente não contra os portugueses na Guiné-Bissau. Fi-
o teria chamado à África se a ideia de agir del também organizou uma força de segu-
lá não tivesse sido dele. A África sempre rança interna e guarda-costas para Sekou
atraiu Fidel. Cuba era muito pequena para Touré, e outras para os presidentes Al-
ele, suas tentativas de espalhar revolução na phonse Massemba-Debat, em Brazzaville,
América Latina fracassaram, e quando ele e Siaka Stevens, em Serra Leoa. (Nos anos
recordava que “o sangue africano corre em de 1970, ele estendeu sua ação ao Iêmen
nossas veias” e falava dos africanos como do Sul, na província de Dhofar, a Omã e às
seus irmãos e irmãs, expressava algo que Colinas de Golan.)
lhe era verdadeiro, bem como romântico. O cenário em Angola era desconcertan-
Ele queria ajuda. Dois anos depois de subir te. Dúzias de movimentos surgiram antes e
ao poder, enviou instrutores para ajudar a no momento da independência, mas se or-
treinar os guerrilheiros em Gana. Dois anos ganizaram em três grandes forças: o MPLA,
depois, em 1963, uma segunda missão de de Agostinho Neto, a FNLA, de Holden Ro-
treinamento foi à Argélia, mas, nesse caso, berto, e a Unita, de Jonas Savimbi. A FNLA
o treinamento avançou para outra coisa. parecia ser a mais eficiente, mas Roberto era
Quando a Argélia se envolveu em lutas de anticomunista e muito próximo de Mobu-
fronteira com o Marrocos, Fidel enviou a tu. Ele recebia ajuda de várias fontes: Zaire,
Ben Bella três navios e um avião cheios de China, Romênia, Líbia e Estados Unidos
equipamentos, acompanhados por cubanos (que ficou com Portugal até o último mi-
que sabiam operá-los. É quase certo que es- nuto, mas redirecionou grande parte de sua
ses cubanos teriam se envolvido na luta se ajuda à FNLA no início de 1975). A URSS
ela não tivesse parado pouco antes de eles apoiava Neto, mas apenas esporadicamente.
chegarem à linha de tiro. As tropas de com- No ano anterior à queda de Salazar, a ajuda
bate foram retiradas, mas a missão de trei- russa tinha murchado tanto que Neto recor-
namento permaneceu até a derrubada de reu, desesperado, à Escandinávia e a Cuba.
Ben Bella. Mas, seis meses depois do golpe em Lisboa,
Fidel também se envolveu no Congo. Moscou restabeleceu sua ajuda e, quando
Assessores e uma pequena força de com- a FNLA atacou o MPLA em 1975, salvou
bate de cerca de 200 homens, juntamente Neto fornecendo imediatamente supri-
com Che Guevara em pessoa, foram ajudar mentos e armamentos pelo ar, via Conacri
aos herdeiros de Lumumba, mas o golpe de e Brazzaville e, em poucos meses, por mar.
Mobutu, em 1965, deu fim à sua aventura. A China se retirou do jogo, incapaz de fazer
Alguns assessores cruzaram o rio Congo frente à ajuda russa ao MPLA, que, segundo
até Brazzaville, mas, no ano seguinte, a a CIA – tinha recebido armas da URSS e da
missão cubana em Gana foi retirada quan- Europa do leste no valor de 80 milhões de
do da queda de Nkrumah, e as expedições dólares. A Romênia também recuou, mas os
africanas de Fidel Castro pareciam ter se Estados Unidos, depois de hesitar um pou-
revelado tão inúteis quando as enviadas à co, persistiu e desperdiçou muito dinheiro.
América Latina. Esses sucessos do MPLA nada resolve-
No entanto, ele não perdeu o interesse. ram, porque quatro semanas antes da data
O posto avançado em Brazzaville tinha um estabelecida para a independência, a África
equivalente em Conacri – a capital Afri- do Sul invadiu o país. O MPLA se declarou
POLÍTICA MUNDIAL | 645

governo provisório, outros africanos corre- de que seus soldados retornassem em seis
ram para reconhecê-lo e para denunciar a meses e ainda alimentava essa expectativa
invasão sul-africana e seus patrocinadores em março de 1976, mas sua força no ultra-
norte-americanos, e a Nigéria deu a Neto 20 mar, que absorvia uma parte considerável
milhões de dólares. Mesmo assim, a posição de todo o exército cubano, de 160 mil mem-
dele era precária e, desta vez, ele foi salvo bros, foi obrigada e permanecer em Angola
por Fidel Castro. para sustentar Neto e (depois de sua morte,
Fidel e Neto se tornaram amigos pes- em 1979) José Eduardo dos Santos no poder.
soais. A ajuda cubana havia contribuído Mesmo que os russos pagassem as con-
para preencher a lacuna quando Moscou tas, a extravagância quixotesca de Fidel im-
deu as costas a Neto em 1973-1974. Cen- punha demandas e sacrifícios desgastantes
tenas de assessores cubanos chegaram aos a milhares de cubanos – lutando, morrendo
campos do MPLA ao longo de 1975, e quan- ou sendo destituídos. Ao contrário dos pie-
do Neto apelou a Fidel pedindo tropas de monteses enviados por Cavour para afundar
combate para lutar contra os sul-africanos, na lama da Tchernaya, eles não podiam se
esse apelo não foi em vão. A primeira uni- confortar com a ideia de que estavam pagan-
dade chegou por via aérea dois dias depois, do pela independência de seu próprio país.
consistindo em 82 homens em trajes civis, Ninguém foi generoso com a África, e os
os precursores do que viria a ser um exérci- russos foram dos menos generosos. Se a aju-
to de 20 mil a 30 mil membros. Chegaram da econômica é um instrumento diplomá-
reforços por mar, fazendo mais de 40 traves- tico importante, o uso que os russos faziam
sias do oceano de cerca de 10.000 km du- dela foi surpreendentemente fraco. No final
rante os seis meses seguintes de hostilidades dos anos de 1970, o total de ajuda russa para
ativas. Em um determinado momento, nada o desenvolvimento no exterior era equiva-
menos do que 15 navios estavam no mar lente a 0,02% do PIB estimado. Os doadores
simultaneamente em direção leste, a maior mais generosos eram a Suécia, a Holanda,
procissão de homens e material a cruzar o a Noruega e a França, com respectivamen-
Atlântico desde que os norte-americanos te 0,99, 0,85, 0,82 e 0,6%. A Grã-Bretanha
tinham navegado ao norte da África para a chegava a 0,38%, os Estados Unidos, 0,22%
guerra contra Hitler. O esforço marítimo foi e a Suíça, 0,19% (A Itália não chegava a 1%).
suplementado por uma ponte aérea na qual Do fluxo líquido de ajuda à África de todas
os antiquados Britannias de Cuba, depois de as fontes, nacionais e internacionais, a URSS
aterrissar em Barbados, voavam até Guiné- dava menos de 3%. Portanto, a ajuda econô-
-Bissau e Brazzaville. Quando a possibilida- mica era tratada pela URSS, não como um
de de escala em Barbados foi eliminada, por instrumento importante, mas como um in-
pressão dos Estados Unidos, através de uma vestimento político mínimo.
recusa a reabastecer o avião, foi improvisada Por outro lado, os efeitos da ajuda russa
uma alternativa nas ilhas de Cabo Verde. podem ter sido maiores do que essas cifras
A expedição cubana a Angola era uma sugerem, porque ela se concentrava em um
aposta. Seu fracasso teria encerrado a pre- número relativamente baixo de países. De-
sença cubana na África e talvez o próprio terminados beneficiários se destacavam:
governo de Fidel em Cuba, mas, por déca- Egito, Argélia, Marrocos, Guiné, Somália.
das, o MPLA não obteve uma vitória final Eles eram escolhidos por razões políticas e
sobre seus rivais, nem a expedição evoluiu estavam sujeitos a serem abandonados pe-
como Fidel pretendia. Ele tinha esperanças las mesmas razões. Dentro deles, a URSS
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– assim como outros doadores – demons- era, em média, de 300 a 350 milhões de dó-
trava uma preferência por grandes projetos lares por ano, e era bastante ampla: mais da
industriais em vez de desenvolvimento ru- metade das forças aéreas da África adquiri-
ral: no Egito, por exemplo, pela Represa de ram aviões russos. Em 1977, principalmente
Assuã, a siderúrgica de Helwan, a fábrica de em função de Angola, a ajuda militar che-
alumínio Nag Hammadi. Os técnicos russos gou a 1,5 bilhão, e, em 1978, outro bilhão
estavam igualmente concentrados: de cerca foi gasto só na Etiópia. Em termos russos,
de 34 mil na África em 1977, apenas 5 mil esses eram números elevados, um reflexo
estavam ao sul do Saara. da disposição de Moscou para dar o salto na
A proporção de empréstimos em ajuda África e pagar por ele.
russa era de cerca de 2:1. As taxas de juros Os convites e bolsas de estudos para es-
eram baixas (de 2,5%) ou mesmo nulas, tudantes eram outro tipo de ajuda, com ris-
mas os prazos de pagamento eram relati- cos bem conhecidos. Os estudantes muitas
vamente curtos, normalmente de 10 a 12 vezes ficavam decepcionados com seus anfi-
anos, quando um empréstimo ocidental po- triões, e os russos não tinham mais sucesso
dia ser pago em 30 ou 40 anos. A URSS se do que os ocidentais em evitar o desprezo
mostrava ainda mais relutante do que ou- causado pelo preconceito de cor. A URSS
tros credores em cancelar ou rolar dívidas, abriu seus braços aos estudantes estrangei-
embora a Somália tenha sido favorecida em ros desde 1922, quando os primeiros mon-
1974. O pagamento geralmente se dava em góis foram recebidos em Moscou, mas pro-
mercadorias a preços fixos, uma prática que gramas substanciais só foram desenvolvidos
levou a muitas reclamações por parte de depois da Segunda Guerra Mundial. Na
quem recebia os empréstimos, que não po- primeira década do pós-guerra, quase todos
dia aproveitar os benefícios dos aumentos eles vinham de satélites europeus, mas com
dos preços mundiais. a descolonização da Ásia e da África, além
A URSS estava realizando apenas 2% da concorrência na Guerra Fria pela boa
de seu comércio com a África, mas essa vontade do Terceiro Mundo, foram dados
proporção insignificante não deixava de passos para atrair estudantes desses países e
ter suas consequências, já que o país tinha também da América Latina.
um superávit em seu comércio com o con- Poucos sabiam alguma coisa de russo
tinente que era mais do que suficiente para e, portanto, passava-se um ano antes apren-
compensar o déficit em seu comércio com o dendo o idioma (para o ensino foram recru-
Ocidente. Para a África, a URSS tinha pou- tados 4.500 professores) e fazendo um cur-
ca importância comercial: apenas Egito e so sobre “socialismo científico”. A segunda
Guiné chegaram a ter mais de 10% de seu metade desse programa às vezes era mal re-
comércio com ela. cebida, mas talvez menos que os ocidentais
A ajuda militar era de dois tipos amplos. gostavam de imaginar. Quando estudantes
Havia a provisão de material e treinamen- quenianos entraram em greve em Baku, em
to como parte do negócio de fazer amigos 1965, e pediram para ser mandados de volta,
em fontes prováveis e havia esforços espe- suas queixas incluíam a doutrinação, mas o
ciais para ganhos estratégicos específicos, comunismo era parte do que a URSS tinha
de modo que as estatísticas de ajuda militar para oferecer e muitos alunos chegavam nes-
mostram saltos em pontos cruciais. se curso com, pelo menos, alguma curiosida-
No início da década de 1970, a ajuda de inicial. Dos cursos substanciais, os mais
militar russa e da Europa Oriental à África populares eram medicina e engenharia.
POLÍTICA MUNDIAL | 647

Aos estudantes estrangeiros na URSS normais quando queriam a atenção das mo-
eram oferecidos 100 rublos por mês – duas ças locais.
vezes a bolsa dada a um estudante soviéti- Em 1963, estudantes de Gana fizeram
co – mais alojamento barato, por cerca de 2 uma manifestação na Praça Vermelha, em
rublos por mês, assistência médica gratuita Moscou, depois da morte de um deles em
e uma bolsa de férias anual de 100 rublos, uma briga, e, em um incidente particular-
a serem gastos na URSS. Cerca de metade mente incômodo, 250 estudantes egípcios
de todos os estudantes do Terceiro Mundo foram levados de avião da URSS aos Estados
estava na Universidade Patrice Lumumba Unidos depois de queixas sobre suas condi-
e mais da metade vinha da África. Segun- ções de vida e seus cursos de doutrinação.
do fontes russas, nesses anos havia cerca de Havia um lado negativo nas contas.
50 mil estrangeiros estudando nas univer- Para o número imensamente maior de
sidades e faculdades técnicas, sem contar africanos que permaneciam em seus países,
outros que faziam cursos profissionalizantes a URSS foi aos poucos aumentando suas
em níveis inferiores ou trabalhos de pós- transmissões de rádio estrangeiras. No final
-graduação em níveis mais elevados. Esse da década de 1970, estava transmitindo aos
total era complementado por universidades rádios do mundo como um todo durante 2
e escolas especializadas da Europa do leste mil horas semanais, em 80 idiomas (a China
– por exemplo, escolas em Budapeste e em usava somente metade disso). Mas a África,
Berlim fundadas para formar africanos em com exceção do norte, que era atendido pelo
sindicalismo e jornalismo, respectivamente. diferenciado serviço do Oriente Médio, não
Em termos puramente numéricos, essa era era uma meta principal – em 1979, a região
uma contribuição útil e bem-vinda a uma teve alocadas 147 horas por semana, o mes-
das mais urgentes necessidades da África, mo de 1966. As principais línguas em uso
mas (mais uma vez, numericamente) era pelo serviço africano eram francês, suaíli e
apenas um acréscimo menor a rotas edu- hausa, que ocupavam 66 horas e meia, dei-
cacionais mais tradicionais. Nas décadas de xando 80 horas e meia para outros idiomas.
1960 e 1970, só a Grã-Bretanha tinha o do- Independentemente de seu serviço africano,
bro de estudantes de toda a URSS e de toda a URSS estava transmitindo em inglês 24
a Europa Oriental combinadas e, para citar horas por dia e muitos desses programas po-
um exemplo específico, ao final de anos de diam ser ouvidos na África. Entre os outros
independência, a Nigéria tinha cerca de 15 europeus que transmitiam para a África, os
mil estudando no exterior e quase metade alemães orientais eram os mais destacados.
deles na Grã-Bretanha. A substância dos programas era a mistura
Os estudantes estrangeiros na Europa conhecida de notícias e música, mas a mú-
Oriental, como seus colegas locais, tinham sica não era a mais recente, e provavelmente
muito menos liberdade do que no Ocidente; mais fazia com que os ouvintes desligassem
sua agenda diária era mais sem graça, em- os rádios. Os africanos pareciam gostar mais
bora a Alemanha Oriental proporcionasse da decadência ocidental do que os locutores
alguns pontos interessantes e um estilo de russos (ou chineses) conseguiam oferecer. A
vida mais despreocupado, que os jovens qualidade das notícias e dos programas prin-
buscam quando embarcam em uma aven- cipais melhorou consideravelmente depois
tura estrangeira. Eles eram mais supervisio- dos anos de 1950, quando o desconhecimen-
nados, até mesmo segregados, e os homens to das áreas-alvo e sua cultura gerava muitos
experimentavam mais do que os dissabores erros factuais e avaliações equivocadas, mas
648 | PETER CALVOCORESSI

– ao menos para o ouvido ocidental – essas em relação a cada parte do mapa era o que
transmissões permaneciam grosseiramente os soviéticos poderiam decidir conveniente-
tendenciosas e os locutores dedicavam uma mente fazer nesses lugares.
quantidade tediosa de tempo a agredir uns Gorbachev viu que o que estava sendo
aos outros. feito na África era caro e sem resultados. Na
Todos esses suplementos gerais da po- Etiópia, como no Vietnã e no Afeganistão, o
lítica exterior refletiam a marginalidade da comprometimento foi uma tolice destruti-
África na visão dos russos. Talvez, somen- va que custou muito e não trouxe nenhum
te na África do Sul a ajuda russa na entrega ganho político. Mesmo os subsídios relati-
de armas e dinheiro ao CNA e ao Partido vamente pequenos dados ao CNA depen-
Comunista tenha tido um impacto ao pos- diam da violência para destruir o Apartheid.
sibilitar que os negros mantivessem uma Gorbachev preferiu colocar o peso soviético
oposição consistente a seus adversários po- atrás dos países da Linha de Frente. Ele me-
derosamente armados. O restante da África lhorou as reações com o Zimbábue, onde
valia um pouco de estudo e alguns esforços seus antecessores tinham cometido o erro
e despesas, mas, na maior parte do tempo, de apoiar Nkomo contra Mugabe. Reduziu
não era nem um campo de ação secundá- a presença russa no político, retórico e clan-
rio. A atenção dedicada a ele indicava que destino e esperou que outros cometessem er-
Moscou tinha em mente que isso poderia ros em vez de cometê-los por conta própria.
acontecer um dia. Havia exceções – áreas e Durante essas décadas, os chineses
ocasiões onde o esforço assumia proporções cumpriram um papel esporádico em rela-
muito mais significativas (Egito, Etiópia) – ção às ações russas e cubanas na África. As
mas a motivação nesses casos poderia ser conquistas da China no continente foram
encontrada no Oriente Médio em vez de no prodigiosamente exageradas. A África esta-
próprio continente africano. Nesse meio- va ainda mais distante da China do que as
-tempo, Moscou acumulava conhecimentos URSS e, no final dos anos de 1970, a China
através de missões diplomáticas, dos servi- ainda não tinha ligação direta com a África
ços secretos, dos jornalistas da Tass e No- por ar nem por mar (a Aeroflot já voava a
vosti e dos orgãos acadêmicos em Moscou 29 aeroportos africanos). O comércio, tota-
e em outros lugares. Esse trabalho coincidiu lizando cerca de 400 milhões por ano, era
com o grande aumento nas capacidades rus- mutuamente desprezível.
sas que caracterizou os anos Brejnev. Nem Mesmo assim, a China chegou na Áfri-
com Stalin nem com Khruschev a URSS foi ca pós-guerra não muito atrás da URSS, e,
uma verdadeira potência mundial. Stalin a ao mesmo tempo, no Egito, onde foi aberta
transformou em uma potência nuclear su- uma embaixada chinesa depois da confe-
ficientemente ameaçadora para ser um con- rência de Bandung, em 1955. As principais
traponto aos Estados Unidos em um mundo motivações – reconhecimento internacio-
bipolar. Khruschev herdou essa posição e, nal, admissão na ONU e fazer amigos no
com o fracasso na crise dos mísseis de Cuba, Terceiro Mundo – eram externas à África.
demonstrou que o alcance de Moscou ainda Depois do rompimento com a URSS, veio
estava limitado. o desejo de criar dificuldades para Moscou,
Mas, nos anos de 1970, o crescimento principalmente superando seu fervor revo-
continuado do poder e da tecnologia russos lucionário em um momento em que a URSS
colocou a URSS no mapa em todos os luga- estava mudando para uma diplomacia mais
res e, desde então, a questão que se colocava pragmática. Mas a rápida disseminação da
POLÍTICA MUNDIAL | 649

independência prejudicou a ênfase de Pe- Ruanda estavam maquinando um retorno


quim na subversão e, embora Zhou Enlai a seu país. Os chineses apoiaram os tutsis,
tenha visitado 10 países africanos em 1963- mas a expedição foi um desastre e o Burun-
1964 (as revoltas no Quênia, em Tanganica di, desconfiado da interferência chinesa,
e em Uganda reduziram seu roteiro), a Re- expulsou sua recém-chegada missão diplo-
volução Cultural causou uma retirada qua- mática. Uma missão maior em Congo-Bra-
se completa: em 1966, os 18 embaixadores zzaville, estabelecida em 1964, também fra-
da China foram todos chamados de volta. cassou depois de um golpe militar em 1966.
Aos olhos dos africanos, os chineses pare- O amigo mais firme da China na Áfri-
ciam boa gente que vinha de muito longe e ca foi a Tanzânia. Os chineses chegaram ali
se comportava de maneira mais afável que pela porta dos fundos como resultado da re-
os russos e os norte-americanos, mas tinha volução em Zanzibar, em 1964. Um de seus
muito menos a oferecer. líderes, Muhammad Babu, tinha conexões
A China reconheceu o Sudão e Gana em boas o suficiente com a China para levantar
1956 e em 1957, mas teve de esperar três e um empréstimo de 14 milhões de dólares, e
dois anos, respectivamente, para ser reco- quando Zanzibar foi unificada com Tanga-
nhecida. Foi o primeiro país a reconhecer nica paradoxalmente, Babu se opôs à união,
a FLN como governo provisório da Argé- e os chineses conquistaram a boa vontade
lia, em 1958. Ofereceu prontamente ajuda de Nyerere. Zhou Enlai e Nyerere trocaram
a Sekou Touré: a Guiné era um dos poucos visitas em 1965 e o chefe do departamento
países na África com uma população chi- africano do ministério de relações exteriores
nesa considerável (4 mil – os outros eram da China foi enviado a Dar-es-Salaam como
Maurício, Madagascar e África do Sul). Mas embaixador. A seguir, veio a Ferrovia Tan-
os créditos chineses para a Guiné (26 mi- zam, a principal obra da China na África.
lhões de dólares), Gana e Mali (19,5 milhões No momento da independência, não
de dólares cada um) estavam muito aquém havia ligações ferroviárias entre Tanganica
das ofertas russas. Os termos, contudo, eram e Zâmbia. Kaunda estava ansioso para criar
extraordinariamente generosos: sem juros, uma passagem para minerais da Zâmbia
pagamento a longo prazo, e mesmo no caso evitando o território português, e tanto ele
do Quênia, em 1961, não pagamento. Mas quanto Nyerere consideravam a ferrovia
quando a Revolução Cultural reduziu a aju- como uma forma de desenvolver áreas ne-
da a quase nada, só cerca de 15% dos crédi- gligenciadas em seus países. A China, que
tos chineses tinham sido usados. em 1964 ofereceu ajuda para construir fer-
À face sorridente do comunismo foi rovias dentro da Tanzânia, no ano seguinte
acrescentado um fervor revolucionário. A ampliou a oferta para uma linha internacio-
partir de Conacri, a China apoiou um gru- nal. Os dois presidentes africanos estavam
po de exilados da Costa do Marfim e, até buscando ajuda ocidental e recorreram à
mesmo a especialmente selvagem União China só quando não a conseguiram. Um
das Populações de Camarões (Union des primeiro acordo foi assinado em 1967, de-
Populations du Cameroum), até o assassina- pois de uma visita de Kaunda a Pequim. O
to de seu líder, Félix Moumié, em 1960. A acordo final veio em 1970, e o trabalho co-
China deu a Lumumba um milhão de libras meçou naquele ano.
e apoiou Gizenga até ele aderir ao governo A ferrovia Tanzam era uma via única de
Adoula. Em 1963, interveio nas águas agita- quase 2.000 km com 91 estações de duas vias.
das do Burundi quando refugiados tutsis de Foi finalizada dois anos antes do previsto e
650 | PETER CALVOCORESSI

se tornou propriedade, com participações contudo, não foi muito mais insistente do
iguais dos governos da Tanzânia e de Zâm- que plantar uma bandeira na Antártica.
bia. Quinze mil chineses foram empregados (Para uma política mais determinada no
em sua construção, dando bom exemplo no século seguinte, ver a p. 144.)
trabalho e se comportando bem quando esta-
vam de folga. Houve um pouco de propagan-
da contrabandeada, mas depois de reclama- Notas
ções dos governos africanos, ela foi restrita
a distribuir as obras de Mao – uma versão A. A República Malgaxe e o
moderna da distribuição de bíblias por parte Oceano Índico
dos missionários cristãos. A construção da
ferrovia fez muito bem aos chineses por pou- A ilha de Madagascar, próxima ao litoral de
co tempo, mas a manutenção não era boa, os Moçambique, passou ao controle francês no
serviços degeneraram e o terminal de Dar- final do século XIX. Em 1947, uma revolta
-es-Salaam ficou congestionado. Os chineses contra a restauração desse controle no pós-
não eram responsáveis por esses problemas, -guerra foi violentamente reprimida, mas,
mas sua reputação foi prejudicada quando a mesmo assim, a independência não foi pos-
ferrovia deixou de ser uma das maravilhas da tergada por muito tempo. Dentro da ilha, a
África moderna. minoria dominante hova queria a indepen-
A penetração chinesa na África foi facili- dência o mais cedo possível, ao passo que
tada pelo reconhecimento francês do regime um grupo nacionalista maior preferia um
comunista de Pequim em 1964. A maior par- pequeno retardo para assegurar-se de que
te da África francófona fez o mesmo. Quando conquistaria o poder. Esse grupo, liderado
voltaram ao continente depois da Revolução por Philibert Tsirinana, conseguiu seus ob-
Cultural, os chineses assumiram as embaixa- jetivos. Madagascar se tornou a República
das anteriormente ocupadas pelo regime de Malgaxe em 1958, permanecendo na União
Taiwan, muitas vezes em países em que a en- Francesa. Tsirinana se tornou presiden-
trada poderia ter sido difícil se os taiwaneses te e a independência plena veio em 1960.
não tivessem entrado antes. As transmissões Ele assumiu uma postura pró-francesa e se
chinesas para a África, que começaram em tornou um destacado apoiador do diálogo
árabe na época da crise de Suez, em 1956, fo- negro com a África do Sul. Embora reeleito
ram ampliadas aos poucos, mas não estavam em 1972, foi forçado, naquele ano, a ceder
à altura das russas, nem em horas por sema- o poder real ao general Gabriel Ramanant-
na, nem em seu leque de idiomas. sava, o indicado do exército, em nome de
Nas décadas de 1960 e de 1970, os chi- quem renunciou à presidência depois de um
neses não instigaram nenhuma transfor- referendo que aprovou a ação dos militares.
mação revolucionária, em grande parte Ramanantsava foi deposto três anos mais
porque escolheram as pessoas erradas para tarde pelo coronel Richard Ratsimandrava,
apoiar ou as apoiaram com muita fragili- que foi assassinado uma semana depois e
dade. Um líder guerrilheiro em busca de sucedido pelo capitão Didier Ratsiraka. As
armas faria melhor pedindo-as a Moscou. tropas francesas deixaram a ilha em 1973.
Nos 20 anos posteriores à viagem conti- Ratsiraka nacionalizou os interesses france-
nental de Zhou, o novo primeiro-ministro ses sem indenização e disputou com a Fran-
Zhao Ziyang visitou 10 países africanos ça a propriedade das Ilhas Gloriosas, Juan
em um gesto de interesse continuado que, de Nova, Bassas da Índia e Europa, no Canal
POLÍTICA MUNDIAL | 651

de Moçambique. As rebeliões que derruba- escala no fornecimento de ajuda militar


ram Tsirinana, em 1972, se repetiram e fo- sul-africana e saudita aos guerrilheiros
ram derrotadas de forma selvagem em 1985. insurgentes da Renamo em Moçambi-
Os asiáticos foram atacados e muitos fugi- que, a menos de 300 km do outro lado da
ram. Fora da capital, as gangues estavam no água. Denard depôs o sucessor de Soilih,
controle. As eleições de 1988 foram adiadas o presidente Ahmed Abdallah, em 1975,
para o final de 1989, quando Ratsiraka man- recolocou-o no cargo, em 1978, e mandou
teve a presidência, mas sérias rebeliões es- matá-lo em 1989. Denard voltou ao ataque
touraram de novo e, depois de governar por em 1995, quando mais uma vez invadiu as
17 anos, ele foi substituído por Albert Zafy. ilhas, prendeu o presidente Said Djohar e
Uma nova Constituição, em 1992, reduziu transferiu Muhammad Taki Abdulkarim
os poderes presidenciais exercidos por Rat- da prisão para ser presidente junto com
siraka, mas resultou em uma Assembleia na ele próprio. Tropas francesas derrubaram
qual 25 partidos estavam representados. O Denard poucos dias depois (ele morreu em
partido do primeiro-ministro Francisque 2007). As Comores tiveram cerca de um
Ravony só obteve duas cadeiras. Um plano golpe por ano.
do Banco Mundial e do FMI para recupe- Ao nordeste das Comores estava a ilha
rar a economia, sobrecarregada com 5 bi- britânica de Aldabra, famosa por suas tar-
lhões de dólares de dívida externa, era tão tarugas gigantes, e, além dela, as Seychelles.
restritivo que foi rejeitado pela Assembleia e Esse grupo, a cerca de 1.500 km da costa
pelo presidente. Madagascar era um país em africana e duas vezes mais distante de Bom-
que a população crescia, mas poucas outras baim, era uma colônia britânica da qual a
coisas além disso. Ratsiraka, embora com a Grã-Bretanha separou os grupos Aldabra e
saúde cada vez mais frágil, manteve o cargo Chagos (na maior parte, desabitadas) para
em 1997 por uma margem mínima. formar, em 1965, por razões estratégicas,
No extremo norte do Canal de Mo- uma nova colônia chamada de British In-
çambique estavam as Comores. Maiote, a dian Ocean Territory (BIOT). O resto das
que estava situada mais ao sul e tradicio- Seychelles recebeu uma Constituição em
nalmente inclinada à independência em 1967, revisada em 1970, e, em 1976, se
relação ao grupo, escolheu continuar na tornou membro da Commonwealth. Em
União Francesa quando as Comores se troca das ilhas separadas para formar a
tornaram independentes em 1976. Seu pri- BIOT, a Grã-Bretanha construiu em Mahé,
meiro presidente, Ali Soilih, um homem de a ilha-capital, um aeroporto para ajudar as
esquerda, foi assassinado dois anos depois Seychelles a se tornarem uma área turís-
e as ilhas passaram a ser uma base para tica. O primeiro presidente, James Man-
mercenários de direita e seu comandante cham, foi derrubado em pouco tempo por
Bob Denard, chamado questionavelmente seu primeiro-ministro, Albert René, mais à
de coronel, o qual obteve controle desse esquerda. René sobreviveu a uma invasão
pequeno feudo depois de várias aventuras de mercenários que a África do Sul tolerou
na África e na Ásia, e manteve seu domí- em 1980, mas barrou uma segunda tenta-
nio por meio de contatos úteis com orgãos tiva desse tipo em 1983. Em 1986, René
clandestinos franceses e sul-africanos, pela impediu um golpe estimulado pela CIA
selvageria inescrupulosa de seu pequeno com ajuda britânica e sul-africana, e poste-
exército privado e pela adoção da fé mu- riormente, melhorou as relações com esses
çulmana. As Comores passaram a ser uma inimigos, principalmente para ampliar a
652 | PETER CALVOCORESSI

indústria turística das ilhas, mas uma déca- houve um atentado fracassado contra a vida
da depois, os gastos exagerados do governo do primeiro-ministro Aneerood Jugnauth,
derrubaram a economia. um hindu de casta inferior.
Mais adiante em direção nordeste, as Uma Comissão do Oceano Índico para
Maldivas – 1.200 pequenas ilhas, apenas a cooperação econômica na linha da ASE-
alguns metros acima da água e situadas a AN reuniu antigos adversários: Madagas-
cerca de 1.600 km do Sri Lanka – se tor- car, Mauricio e Seychelles. Maior tráfego
naram independentes da Grã-Bretanha em aéreo, investimento e comércio por parte da
1965, dando a esta um arrendamento de 21 África do Sul sugeriam que esta estava to-
anos sobre a ilha de Gan, onde os britâni- mando o lugar da CEE como principal im-
cos estavam construindo uma base aérea. A pulso externo da região. Foram apresenta-
Grã-Bretanha também comprou por 3 mi- das propostas de uma zona desmilitarizada
lhões de libras a ilha de Diego Garcia de sua com um olho na redução da atividade mili-
colônia de Maurício (leste de Madagascar) tar norte-americana em Diego Garcia, que
antes de dar a independência a ela em 1966. foi usada pelos Estados Unidos na Guerra
Em 1971, a Grã-Bretanha arrendou Diego do Golfo de 1991.
Garcia secretamente aos Estados Unidos
para que construíssem ali uma base naval. B. Botsuana, Lesoto, Ngwane
Seus habitantes foram retirados, a maioria
para as favelas de Maurício, e receberam Os três territórios de Bechuanalândia, Ba-
650 mil libras (depois aumentadas para 4 sutolândia e Suazilândia se tornaram prote-
milhões) em troca de promessas de nunca torados da coroa britânica em 1884, 1868 e
voltar. Alguns anos depois, Maurício reivin- 1890, respectivamente. Sua transferência à
dicou Diego Garcia, e essa reivindicação foi África do Sul, que tinha sido concebida na
mitigada mais tarde, mas não retirada. As Lei da África do Sul de 1909, foi cogitada
ilhas Maurício eram uma colônia britânica por Malan durante a Conferência da Com-
francófona com uma população racialmente monwealth de 1949, em uma visita à África
mista, na qual os indianos eram maioria. do Sul por parte do secretário de relações
Originalmente adquirido para se an- da organização, Patrick Gordon-Walker, em
tecipar à França, o território foi transfor- 1950, mais uma vez em 1951, 1954 e 1956.
mado em uma plantação de açúcar quan- Mas a política de Apartheid racial que estava
do sua importância estratégica evaporou e em andamento e a intensificação do domí-
utilizava mão de obra importada da Índia. nio policial na África do Sul eliminaram as
Os indianos chegaram a ter mais de me- possibilidades de aceitação britânica. O Re-
tade da terra e sofriam oposição política latório Tomlinson incluiu todos os três ter-
dos creoles francófonos que tinham apoio ritórios entre os bantustões da África do Sul,
da pequena minoria chinesa (cerca de 3% mas o próprio Tomlinson reconheceu, al-
da população). Maurício foi um sucesso guns anos mais tarde, que não havia proba-
econômico e esperava aumentar sua pros- bilidade de sua transferência. Em 1960, uma
peridade através de vínculos econômicos transferência nos termos da Lei da África
com as Seychelles e a República Malgaxe. do Sul se tornou uma impossibilidade cons-
Desconfiava de sua vizinha Reunião, ainda titucional, já que essa lei demandava uma
uma dependência francesa, e dos planos da ordem do monarca depois de receber ma-
França de uma associação francófila entre nifestação de ambas as casas do parlamento
Reunião, Maiote e as Comores. Em 1988, sul-africano – um procedimento impossí-
POLÍTICA MUNDIAL | 653

vel depois de a África do Sul se tornar uma ana permitiu que os guerrilheiros da Rodé-
república. Mais importante, o parlamento sia estabelecessem campos de treinamento e
britânico recebeu garantias, repetidas com se unissem ao grupo dos países da Linha de
frequência, de que não haveria transferên- Frente cujo objetivo era garantir o governo
cia sem debate em Westminster e consulta da maioria na Rodésia com a menor quanti-
quanto aos desejos dos habitantes. dade de violência possível. Seretse foi suce-
Contudo, a negligência da Grã-Bre- dido por Quetumile Masire, que continuou
tanha em relação aos territórios os deixou a fazer um governo tolerante e moderada-
economicamente dependentes da África mente democrático, embora essencialmente
do Sul, e a predileção tradicional britânica de partido único em um Estado pretensa-
por chefes conservadores atrasou o avanço mente multipartidário. Em 1997, ele anun-
do autogoverno sem conciliar os tradicio- ciou que se aposentaria, abrindo caminho
nalistas que, com receio do novo tipo de para que o vice-presidente Festus Mogae o
nacionalista, encontravam algumas vanta- sucedesse. Botsuana foi um dos poucos lu-
gens nos esquemas dos sul-africanos para gares na África onde as pessoas melhoraram
separar territórios africanos com base na sua situação de vida: um país grande, com
autoridade dos chefes. A fragilidade da recursos variados e bom governo, mas de-
Grã-Bretanha em relação à África do Sul vastado pela AIDS.
ficou demonstrada quando Seretse Khama, Na Basutolândia, um território sem
o chefe hereditário dos bamangwatos na saída para o mar, de 2 milhões de pessoas,
Bechuanalândia, casou-se com uma moça o chefe supremo, Constantine Bereng, pos-
inglesa em 1949. Sob pressão de sul-africa- teriormente Rei Moshoeshoe II, que chegou
nos indignados, os ingleses baniram Seret- ao cargo, em 1960, depois de receber forma-
se e seu tio, o talentoso e eficiente Tshekedi ção na Inglaterra, liderou um partido nacio-
Khama, alegando que a tribo se dividiu em nalista moderado (O Partido Maramotlou)
relação à aceitação de Seretse com uma mu- espremido entre os tradicionalistas no Parti-
lher branca como chefe. do Nacionalista Basuto, liderados pelo che-
Seretse permaneceu no exílio até 1956, fe Leabua Jonathan, e os nacionalistas mais
quando renunciou a seus títulos e aos de direitistas do Partido do Congresso Basuto,
seus descendentes. Posteriormente, ele for- liderados por Ntsu Mokhehle. Em 1965, os
mou o Partido Democrático da Bechua- Nacionalistas derrotaram o Congresso, mas
nalândia (Bechuanaland Democratic Party) depois perderam terreno. A oposição, des-
e depois de uma eleição geral em 1965, tor- confiada de seus vínculos com a África do
nou-se primeiro-ministro. A Bechuanalân- Sul, onde o chefe Jonathan era visto como
dia – enorme, subpovoada e em grande um mal menor, pressionaram a Grã-Breta-
parte, deserta – conquistou a independên- nha para que fortalecesse os poderes que o
cia sob o nome de Botsuana em 1966, mas chefe supremo teria como monarca depois
sua pobreza a tornou dependente de ajuda da independência e realizasse novas eleições
externa ou de seu vizinho maior, e o país antes da independência. O governo britâni-
parecia fadado por negligências passadas e co não cedeu a essas alegações e, em 1966,
dificuldades presentes a ser um satélite da a Basutolândia se tornou o independente
África do Sul com todas as ameaças ao go- Lesoto, com um equilíbrio estreito de forças
verno moderado e democrático que Seretse políticas nacionais e uma tensão na atmos-
e seu partido esperavam dar a ele. Sob Seret- fera política que era desconfortável para o
se, presidente até sua morte em 1980, Botsu- governo do chefe Jonathan, além de sugirir
654 | PETER CALVOCORESSI

que se ele se deparasse com dificuldades, mal preparada, desproporcionalmente des-


pediria ajuda à África do Sul. Rebeliões que trutiva e resgatou o regime sem fortalecê-lo.
ocorreram no final do ano deram a Jonathan Mokhehle renunciou subitamente ao Partido
a oportunidade de obter de Moshoeshoe um do Congresso, em 1997 para formar um novo
compromisso de se manter fora das hosti- Congresso para a Democracia no Lesoto
lidades e se limitar a seu palácio. Em 1968, (Lesotho Congress for Democracy), que ga-
alguns chefes que tinham ficado do lado de nhou as eleições seguintes por uma enorme
Jonathan pareciam estar redirecionando sua diferença e, tendo morrido Mokhehle, fez de
lealdade para o rei, e quando Jonathan pare- Bethuel Mosili o primeiro-ministro.
cia estar perdendo as eleições naquele ano, A Suazilândia, posteriormente Ngwame
ele cancelou os procedimentos e suspendeu e o menor dos três territórios, foi o último a
a Constituição. O rei foi para o exílio, mas adquirir a independência e tinha um chefe
retornou em 1970. Jonathan sobreviveu até supremo idoso, Sobhuza II, que era assesso-
1986, quando a África do Sul, concluindo rado por um único conselho conservador.
que ele não era mais a melhor aposta de seu Entre 1960 e 1973, ele fez uma experiên-
ponto de vista, aplicou pressões econômicas cia com um grau modesto de democracia.
e incentivou o exército a assumir. O general Nas eleições de 1964, seu Partido Mbokodo
Justine Lekhanya, que tinha sido demitido fez uma aliança com o Partido Suazilandês
por Jonathan em 1964, deu um fim aos 29 Unificado (United Swazi Party). O órgão da
anos de domínio do Partido Nacionalista. O comunidade de fazendeiros e empresários,
rei foi deposto pelos militares em 1990, foi de 10 mil membros, derrotou uma oposição
para o exílio mais uma vez e foi substituído variada e dividiu os mal preparados nacio-
por seu filho Letsie III, mas manteve parti- nalistas. Sob a Constituição preparada para
dários dentro e fora do exército. a independência, em 1968, o monarca re-
Em 1994, o relativamente esquerdista cebeu uma posição dominante: ele poderia
Partido do Congresso conquistou uma maio- indicar membros suficientes do parlamento
ria confortável na eleição geral, mas foi ataca- para bloquear medidas de que não gostasse;
do por um segmento do exército que exigia não era obrigado a agir a partir das orien-
a volta do ex-rei. A atividade diplomática da tações dos ministros em todas as questões
(nova) África do Sul, Botsuana e Zimbábue a que um monarca constitucional está obri-
resolveu esse conflito. Moshoeshoe foi reins- gado; recebeu controle sobre o principal
talado como monarca constitucional, tendo recurso da Suazilândia (seus minerais) su-
a Mokhehle como primeiro-ministro, mas jeito apenas a aconselhamento de seu con-
morreu em um acidente de carro um ano selho tradicional e não de seus ministros; e
depois e Letsie retomou seu reino – sem a seu partido foi sacramentado no poder por
confiança de Mokhehle e do Partido do Con- um sistema eleitoral no qual as cidades, e,
gresso, que o consideravam um instrumento portanto, os nacionalistas, estavam sub-
do Partido Nacionalista e do exército. Elei- mersos em distritos eleitorais rurais. Mas o
ções posteriores nas quais o partido do go- controle sobre os minerais lhe foi tomado
verno conquistou todas as cadeiras, menos às vésperas da independência. A morte de
uma, inflamaram a oposição e os oficiais de Sobhuza, em 1982, com cerca de 83 anos,
patente inferior. Desordens, que em alguns foi seguida de intrigas dentro da família real
casos chegavam a motim, foram enfrenta- e em torno dela, além da regência de uma
das por uma incursão de tropas sul-africanas rainha-mãe que foi rapidamente deposta em
sob a égide da SADC (ver a p. 636) que foi favor de outra rainha-mãe. Por pressão sul-
POLÍTICA MUNDIAL | 655

-africana, o CNA foi proscrito. Em 1986, aos milhão de vhavendas (aparentados aos sho-
18 anos, o novo rei Mswati II foi empossado, na); uma região de agricultura pobre, mas,
e se opunha aos partidários da democracia e a apenas 10 km do Zimbábue, de alguma
ao CNA, mas quando tentou reprimir seus importância estratégica. “Independente”
adversários com prisões generalizadas e jul- em 1979.
gamentos por traição, foi derrotado pela ab- Ciskei: uma área pobre e agitada de 5.500
solvição dos indiciados. km2 e 500 mil falantes de xhosa que atraves-
sava o Kei no século XIX; reivindicada pelo
C. As homelands ou bantustões Transkei; autogovernada a partir de 1972.
O Ciskei e o “corredor branco” que levava
Quatro homelands foram estabelecidas na a East London (onde estavam os empregos)
África do Sul, e seis outras foram projetadas: eram mutuamente dependentes – e hostis.
Transkei: uma aglomeração quase coe- As homelands demarcadas incluíam:
rente do ponto de vista geográfico, com 2,5 Kwazulu: uma homeland projetada para 4
milhões de falantes de xhosa, autogoverna- milhões dos 5,5 milhões de zulus e cobrindo
dos desde 1963 e “independentes” em 1976; 31.000 km2 em 10 segmentos (originalmen-
45.000 km2 de terra agrícola e rica em ma- te 48); cobrindo um terço de Natal, a qual os
deira (em grande parte negligenciada) – 1,7 zulus reivindicavam toda.
milhão de falantes de xhosa fora da home- Lebowa e Qwagwa: para sothos do norte
land perderam a cidadania sul-africana. e do sul; pequena e árida, a primeira autogo-
O Transkei rompeu relações com a Áfri- vernada desde 1972.
ca do Sul – não as tinha com qualquer outro Kangwane: norte de Ngwane; 3.700 km2
país – pela recusa desta a incorporar a Gri- em dois segmentos para 250 mil suazilande-
qualândia Oriental à homeland e por despe- ses (um terço do total).
jar nela falantes de xhosa indesejados. Em Gazankulu: 6.300 km2 em quatro seg-
1979, a África do Sul interrompeu a princi- mentos para 350 mil xichanganas; árida,
pal fonte de migração forçada – as obras em mas possivelmente contendo minerais.
Crossroads, na Província do Cabo. O pri- Ndebele do Sul: extraída de Bofutatsuana.
meiro presidente do Transkei, Kaiser Matan- Em 1990, todas as homelands estabele-
zima (preso posteriormente) foi perdendo cidas estavam demonstrando sua rejeição à
terreno para a esquerda personificada pelo política do governo e expressando apoio ao
general Bantu Holomisa e Chris Hani, che- CNA. Em Bophuthatswana, houve demons-
fe do estado-maior de Umkhonto na Swize trações contra o presidente Lucas Mangope.
e secretário-geral do Partido Comunista da Em Venda, o presidente Frank Ravele foi
África do Sul (assassinado em 1993). forçado a deixar o cargo. Em Ciskei, Lennox
Bophuthatswana: uma homeland para Sebe, presidente vitalício, foi deposto pelo
cerca de metade dos povos tsuana fora de exército local, que renunciou à indepen-
Botsuana que, desde as migrações às minas dência e se alinhou com o CNA. Na mais
de ouro no século XIX, tinha contido uma antiga das homelands, o Transkei, um golpe
minoria deles; “independente” em 1977; semelhante derrubou dois ministros-chefes
mais de 40.000 de km2 em sete segmentos em 1987. Todas as homelands deixaram de
diferentes sem uma capital, mas com as existir como tal depois da adoção da nova
maiores minas de platina do mundo. Constituição da África do Sul em 1994. Essa
Venda: uma homeland quase coerente foi uma experiência que visava dividir e con-
de 6.500 km2 incapaz de sustentar seus 1,3 quistar, mas fracassou.
656 | PETER CALVOCORESSI

Leituras relacionadas: Parte VI


Godwin, Peter: When a Crocodile Eats the Sun
(2007) [Zimbabwe]
Malan, Rian: My Traitor’s Heart (1990)
PARTE
VII
AMÉRICA LATINA
América do Sul
27
Geral dos pelo tempo até representarem um difí-
cil dilema: seria possível obter transforma-
A América do Sul estava isolada da políti- ções sociais e econômicas sem revolução?
ca mundial no século XIX, não pelo silen- Ou estabilidade política sem perpetuar a
ciador do imperialismo europeu – como a estagnação social e econômica? O conflito
África e grande parte da Ásia – mas pelo subjacente entre os poucos e os muitos não
legado do pós-colonialismo. As repúblicas era mediado por uma classe média como
sul-americanas também estavam bastante a que levou a Europa ocidental a superar a
isoladas. O século XX testemunhou uma oligarquia sem violência intolerável.
reversão acelerada desse padrão, acom- Os governos na América do Sul, depois
panhada de tentativas espasmódicas de do final do domínio português e espanhol,
assimilar as revoluções democrática e in- foram entregues a uma elite social de gran-
dustrial que marcaram as experiências e des proprietários de terra apoiados pela
sucessos da Europa ocidental e dos Esta- Igreja Católica e por uma casta militar que
dos Unidos da América, ou seja, tentativas aspirava ao mesmo status social. Em 1945, o
de implantar formas políticas democráti- poder tradicional das classes superiores não
cas e valores sociais em oligarquias estrei- tinha sido destruído em lugar algum abaixo
tas e desenvolver indústrias onde o comér- do istmo do Panamá e 10 anos mais tarde,
cio de produtos primários era, até então, somente na Bolívia (1952). Não obstante,
suficiente para as necessidades das classes os pilares da oligarquia estavam enfraque-
dominantes. cendo. Dentro dos establishments religioso
Durante mais de um século depois da e militar, havia dúvidas crescentes sobre a
independência, a América do Sul se tornou imutabilidade e a adequação do monopólio
sinônimo de instabilidade política e imo- de poder e lucro, e alguma preocupação, ex-
bilidade social. A região era conhecida por pressa com vários graus de sinceridade, so-
guerras civis, revoluções, golpes, assassina- bre a má situação dos pobres do campo, do
tos políticos e Constituições de curta dura- crescente proletariado urbano e dos índios
ção, além de injustiça social e econômica subjugados. Uma consciência das grandes
enraizada. Suas necessidades básicas eram desigualdades estava agitando as consciên-
o reverso de sua experiência, a saber, esta- cias e os temores e, assim, cooptando, a ser-
bilidade política e transformação social e viço dos mais fracos, essas duas forças polí-
econômica. Nesses aspectos, não era única, ticas poderosas: a indignação e a reavaliação
mas seus problemas foram sendo agrava- de conveniências.
660 | PETER CALVOCORESSI

As Igrejas começaram a redirecionar mum haver taxas de analfabetismo de 50% –


sua atenção e seu peso político um tanto à em alguns lugares, 90%. Se fossem índios, os
esquerda, e apareceram, nas forças arma- habitantes da zona rural que iam para as ci-
das, oficiais com algo do instinto populista dades atraíam a incompreensão e o escárnio
e uma tendência à demagogia. por sua fala e suas atitudes estranhas. Além
Em toda a América do Sul, grande par- do mais, se os camponeses tinham pouco a
te da população era extremamente pobre, oferecer, as cidades também tinham. A in-
analfabeta, improdutiva e praticamente fora dústria não tem como crescer onde metade
da ação do Estado. Muitos países não eram da população é pobre demais para comprar
simplesmente governados por uma oligar- seus produtos. As indústrias sul-americanas
quia, mas também sua propriedade, no sen- eram prejudicadas pela falta de um mercado
tido de que a terra e o que crescia nela ou interno, fazendo com que os países continu-
estava debaixo dela era propriedade privada assem a importar bens que poderiam estar
de um pequeno número de indivíduos: em produzindo por conta própria. Sendo as-
vários países, de 60 a 90% da terra agrícola sim, as cidades para as quais os camponeses
pertenciam a 10% da população. Indepen- migravam, longe de precisar de sua mão de
dentemente de noções abstratas sobre divi- obra, já tinham desemprego. Em algumas
sões justas ou injustas, essa distribuição era delas, havia possibilidade de um terço dos
a causa da ineficiência. Muitos proprietários habitantes estarem desabrigados. E esse de-
de terras, possuindo mais do que precisavam semprego estava crescendo, não apenas por
para cultivar, deixavam grande parte das razões econômicas, mas também porque a
terras sem ser plantada nem cuidada, mas explosão populacional era maior do que em
se opunham firmemente a qualquer distri- qualquer outro lugar no mundo: a popu-
buição a outros proprietários que pudessem lação estava em processo de dobrar a cada
estar mais dispostos a cultivá-la. A redistri- quarto de século.
buição forçada produzia o mal oposto, com Portanto, havia uma situação revolu-
uma enorme quantidade de pequenas pro- cionária na maioria das partes da América
priedades economicamente inviáveis: na Co- do Sul, que era acentuada pela consciência
lômbia, por exemplo, mais de dois terços da a seu respeito, já que a suposição de que
terra estava improdutiva enquanto grande um padrão não pode durar muito repre-
parte da área cultivável tinha sido desmem- senta um potente fator de transformação.
brada em terrenos de alguns acres. Com As forças a favor dessas mudanças, além
mão de obra barata abundante, os grandes dos proletariados rurais e urbanos relati-
proprietários não tinham necessidade de vamente passivos, eram ativistas que, em
investir os lucros em sua terra, modernizar função de sua insatisfação com o estado de
seus métodos nem aumentar a produção. coisas existente, poderiam unir-se às mas-
Os pobres rurais permaneceram pobres, sas em alguns aspectos, ou em todos, rumo
à beira da privação ou pior, tinham vidas à revolução.
curtas de sofrimento inútil e sem esperan- O crescimento da classe média sul-
ças, ou iam para as cidades onde não viviam -americana foi retardado pelo ritmo lento
muito melhor, já que não tinham condições do desenvolvimento industrial, assim como
para conseguir emprego. A educação pú- o desenvolvimento industrial foi retardado
blica na América do Sul era tão escassa que pela autossuficiência de uma classe domi-
menos de um décimo da população comple- nante capaz de manter seu padrão de vida
tava o ensino fundamental e não era inco- exportando produtos primários e usando
POLÍTICA MUNDIAL | 661

Caracas TRINIDAD
TOBAGO
GUIANA
VENEZUELA
SURINAME
GUIANA FRANCESA
Bogotá

COLÔMBIA
Equador

Quito nas
mazo
Rio A
EQUADOR

Co
rd
ilh
eir

BRASIL
a

PERU
do

Lima
s
An

e La Paz Brasília
d
s

BOLÍVIA
Arica
PA
RA
GU São Paulo
AI
E

Rio de Janeiro
Asunción
L

A
Cordilheira dos Andes
I

I N

Santiago
URUGUAI
H

N T

Buenos Montevidéu
Aires
C

G E

Viedma
A R

Ilhas Falkland

0 250 500 km

0 150 300 milhas Cabo Horn

Figura 27.1 A América do Sul.


662 | PETER CALVOCORESSI

os rendimentos para importar todas as ne- – assim como George Washington e seus
cessidades e luxos que queria do exterior. companheiros uma geração antes – os gover-
Esse padrão econômico tinha consequên- nantes que tinham rompido com os anciens
cias sociais e políticas, já que uma pequena régimes baseados na santidade e nos privilé-
classe média tem menos probabilidades de gios da propriedade (fundiária) que eles con-
adotar hábitos sociais distintivos e objetivos tinuaram a sustentar. Nesses novos países, a
políticos próprios do que uma classe mé- casta militar, ainda que em segundo lugar em
dia grande e, na América do Sul, a primei- termos de categoria e prestígio, vinha em pri-
ra, aprisionada no sistema oligárquico, era meiro em termos de poder. Mas depois das
seduzida de forma relativamente fácil para guerras de libertação, os exércitos sul-ame-
que gravitasse em torno das camadas supe- ricanos se envolveram em algumas guerras
riores de um sistema que ela não tinha po- entre si e não enfrentavam ameaças inimigas
der para subverter. Nesse aspecto, mais uma além do subcontinente. Por isso, seus oficiais
vez a América do Sul não estava sozinha, assumiram um papel interno em vez de uma
mas a posição da classe média foi alterada função de defesa nacional. Alguns optaram
quando a Segunda Guerra Mundial privou pela vida na elite social, outros, pela carrei-
o subcontinente de suas importações habi- ra política e outros, ainda – em épocas pos-
tuais e, assim, estimulou o desenvolvimento teriores – pelas facilidades dos negócios na
interno. Depois de uma pausa nos anos ime- indústria de armamentos ou turismo, ou no
diatamente posteriores à guerra, as deman- negócio de drogas. Muitos deles se conside-
das criadas pela Guerra da Coreia deram ravam como guardiões ou padrinhos do Es-
um novo impulso à expansão industrial. tado (o que eles muitas vezes igualavam ao
Esses eventos, externos às questões próprias status quo) e usavam seus poderes contra po-
do subcontinente, alteraram seus rumos líticos injustificadamente ineficientes ou cor-
econômicos, embora sem mudar muito sua ruptos a quem substituíam por outros ou por
hierarquia social. A classe média industrial si mesmos, mas, à medida que se expandiam,
prosperou em alguns centros, notoriamente os exércitos adquiriam oficiais de diferentes
no Brasil, mas em sua maioria, não chegou origens, de modo que uma consciência sobre
perto de suplantar a classe dominante tradi- as questões sociais e um leve apoio às refor-
cional no exercício do poder político. mas foi penetrando no establishment militar.
A ascensão da classe média costuma ser Os oficiais dessa tendência passaram a ser
associada ao crescimento da democracia, já chamados de nasseristas (em oposição aos
que esse segmento, anexando parte do po- “gorilas”). No final dos anos de 1950 e duran-
der exercido por uma aristocracia de terras, te os de 1960, eles difundiram a ideia de que
indica o caminho para uma expansão ainda a política nacional e os exércitos dos países
maior do sistema político. Mas a América deveriam se tornar mais profissionais e so-
do Sul foi libertada do domínio europeu de cialmente mais conscientes. Mas se o primei-
forma peculiar. A sujeição da Espanha por ro impacto foi a destruição de ditadores de
Napoleão fez evaporar o poder espanhol no velho estilo e alguma diminuição de oficiais
novo mundo, de forma que os Libertadores de estilo antigo, os governos civis não passa-
chegaram em meio a um vácuo, como her- ram a ser a nova regra, já que poderiam ficar
deiros da autoridade abandonada da coroa aquém, em eficiência e integridade, do que
espanhola, em vez de defensores dos prin- se queria deles, ou acelerar reformas sociais
cípios revolucionários europeus do Ilumi- mais rapidamente do que os oficiais progres-
nismo. Eles eram menos democratas do que sistas consideravam saudável.
POLÍTICA MUNDIAL | 663

Junto com esse reagrupamento de for- expansão econômica considerável. Os po-


ças internas, cujo resultado provavelmente bres eram pobres demais para poupar e os
seria distinto de um país para outro, houve ricos muitas vezes investiam ou guardavam
uma busca por formas políticas que levou seu dinheiro no exterior. As agências in-
as mentes mais questionadoras a considerar ternacionais insistiam em empreendimen-
dois modelos estrangeiros, cada um pare- tos onerosos: moedas estáveis, orçamentos
cendo ter algo a contribuir: a democracia equilibrados, limitações rigorosas às despe-
ocidental, com ênfase nas liberdades e nos sas do governo. A industrialização era fraca
direitos humanos, e o comunismo, com ou atrasada, por muitas razões: as elites go-
sua reputação de crescimento econômico e vernantes se opunham às tarifas ou quotas
afirmações de igualdade. O intelectual sul- de importação das quais as indústrias inci-
-americano que conseguisse descobrir como pientes necessitavam, mas os consumidores
obter o melhor desses dois mundos talvez ricos não gostavam, os vários mercados in-
tivesse encontrado o atalho sintético à pros- ternos eram pequenos demais e as tentativas
peridade e à justiça. Mas ele também estava de combiná-los, rudimentares. As indústrias
diante de um dilema: sabia que, por razões tendiam a ter capacidade em excesso, seus
econômicas, a América do Sul precisava de produtos, alto custo, a tecnologia era local e
fundos estrangeiros, sabia que, por razões atrasada ou estrangeira e, portanto, estranha
históricas, o subcontinente queria se afastar e cara. Os transportes e outros serviços pú-
da ajuda estrangeira, e tinha de encarar o blicos eram de má qualidade ou inexisten-
fato de que, se buscasse ajuda e inspiração tes, exceto nas grandes cidades. Metade da
em baluartes ocidentais e comunistas para população foi atraída para cidades de 20 mil
encontrar o atalho sintético, ele seria impo- habitantes ou mais, superpovoadas, sujas,
pular com ambos. violentas e alvo fácil de especuladores imo-
A abordagem sul-americana do mun- biliários. A lacuna econômica entre campo
do exterior foi condicionada por sua ne- e cidade se ampliava. A terra proporcionava
cessidade de capital estrangeiro contra um status, riqueza e um estilo de vida para pou-
pano de fundo de ajuda externa mal regu- cos; as cidades, em sua maioria, não conse-
lada em uma geração anterior. Próximo ao guiam se tornar motores da nova atividade
final do século XIX e no início do século econômica. A necessidade de reforma agrá-
XX, os principais países capitalistas tinham ria estava clara e vários países aprovaram
emprestado dinheiro à América do Sul em leis nesse sentido, mas, depois disso, houve
excesso e com altas taxas de juros, para insa- pouca ação prática, exceto na onda de revo-
tisfação mútua. Os sul-americanos achavam luções. Os trabalhadores rurais eram mal
que tinham sido explorados e os que em- pagos, subempregados e em número cres-
prestavam se ressentiam de muitos atrasos cente, apesar do fluxo para as cidades.
seguidos no pagamento e na expropriação Sem crédito nem comunicações ade-
de empresas que eles tinham construído. A quadas e, em muitas áreas, sem água, os pe-
Segunda Guerra Mundial eliminou merca- quenos proprietários não recebiam semen-
dos de exportação. Os mercados domésticos tes nem maquinário para terras que eram
eram pequenos porque eram empobrecidos, economicamente produtivas.
e o comércio intra-americano era escasso. As associações regionais eram uma for-
Os bancos e outras instituições financeiras ma de buscar melhoria econômica. Nove
careciam dos mecanismos e dos hábitos países sul-americanos e o México criaram,
necessários para oferecer crédito para uma em 1960, uma Área Latino-Americana de
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Livre Comércio (Latin American Free Trade hostis. A América do Sul era diferente da do
Area, Alalc) cuja primeira meta era formar Norte, não apenas por sua latinidade, mas
um mercado comum agrícola. Ela foi suce- também por sua fragmentação. Enquanto
dida, em 1980, por uma Associação Latino o sul se dividira em muitos países, o Nor-
Americana de Integração (Aladi) com ob- te não seguiu esse caminho. Desde os dias
jetivos econômicos mais amplos e os mes- dos libertadores, quando o subcontinente
mos membros, mais a Bolívia. Em 1969, um foi balcanizado por guerras e política pós-
Pacto Andino de quatro países – Peru, Chile -imperial, havia anseios de solidariedade
(que saiu em 1973)*, Bolívia e Equador – subcontinental dos grandes vice-reinados
formaram um empreendimento semelhan- espanhois. Uma comunidade cultural sobre-
te, mas mais compacto, para a cooperação vivente e um caráter geográfico compacto
agrícola e industrial. Em 1985-1989, Ar- acabaram promovendo um sistema intera-
gentina e Brasil concluíram uma série de mericano, mas o contraste entre sul e norte
acordos voltados a promover a cooperação não pode ser erradicado. No norte, os Esta-
econômica e resolver conflitos; o Uruguai se dos Unidos demonstraram uma capacidade
tornou observador e, depois, membro des- impressionante de acomodar uma mistura
se organismo. Mais importante, entre 1991 de raças e preservar sua unidade, apesar de
e 1993, esses três países, juntamente com o suas forças sociais e econômicas desagre-
Paraguai, pelo Tratado de Assunção e o Pro- gadoras que produziram a Guerra Civil, ao
tocolo de Ouro Preto, criaram o Mercado passo que o Canadá conseguiu manter as
Comum do Sul (Mercosul) para cobrir uma populações francesa e britânica sob o mes-
população de 200 milhões – uma associa- mo teto político. Esses dois países eram
ção mais populosa do que qualquer outra maiores e mais poderosos do que qualquer
do tipo, exceto a UE, o Nafta e a ASEAN. um da América do Sul. Os sul-americanos
A Bolívia e o Chile entraram como Estados ficaram com medo da preponderância dos
associados.** O impulso inicial do Mercosul Estados Unidos e seu imperialismo; o Cana-
era político: suavizar a hostilidade entre a dá, que poderia ter servido como contrape-
Argentina e seu vizinho grande, o Brasil, e so, mantinha-se fora dos conflitos entre os
também com o Chile, com o qual a Argenti- Estados Unidos e os países latinos.
na parecia estar à beira da guerra na década Os Estados Unidos alimentavam as sus-
de 1960. O orgão trouxe ganhos econômicos peitas latinas. Durante seus anos de expan-
importantes em termos de comércio e inves- são, não tinham certeza de suas atitudes em
timentos interfronteiras. Outro tipo de re- relação a seus vizinhos na América Central e
gionalismo – o pan-americano – mal entrou no Caribe, e, por haverem se tornado uma po-
em considerações práticas antes dos últimos tência mundial, muitas vezes agiam como se
anos do século. Os Estados Unidos eram a esses países fossem menos do que soberanos.
maior fonte potencial de capital para o de- Da mesma forma com que a Grã-Bre-
senvolvimento econômico, mas as relações tanha do século XX tinha dificuldades de
entre as duas metades do continente eram pensar nos países do Oriente Médio como
dominadas por correntes inquietas, às vezes independentes e merecedores da indepen-
dência, os Estados Unidos em um período
correspondente tinham sentimentos muito
* N. de R.T.: Mas depois incorporou Colômbia e Venezuela, a parecidos em relação a um grupo de países
qual, por sua vez, se retirou mais tarde.
que teriam um impacto especial sobre seus
** N. de R.T.: Seguidos por Peru, Equador e Colômbia como
associados e Venezuela como membro. interesses vitais. Quando o presidente Mon-
POLÍTICA MUNDIAL | 665

roe proibiu a expansão de domínios euro- Norte estivesse pontilhado de ilhas que as
peus no Novo Mundo, Espanha e Portugal duas potências competissem para ocupar.)
já tinham perdido os seus, e britânicos, Nesse caso, o fato de ambas possuírem idio-
franceses e holandeses tinham pouco in- ma e tradições comuns não era prejudicado
teresse em desafiar a declaração unilateral por disputas territoriais (exceto pelo Cana-
de Monroe. A única tentativa séria de fazê- dá que, sintomaticamente, não obteve mui-
-lo – por parte da França, de transformar to apoio de Londres) e quando, no final do
o México em um novo Império Habsburgo século, o poder dos Estados Unidos tinha
durante a guerra civil norte-americana – foi crescido a proporções significativas, a boa
um fracasso catastrófico. Nessa época, os disposição entre os dois países prevaleceu
Estados Unidos já tinham anexado metade sobre conflitos ocasionais e levou, no século
do México, tinham demonstrado interesse seguinte, a uma aliança que tirou a Grã-Bre-
em um canal ístmico e estavam por cogitar tanha da órbita europeia e a situou em uma
a ideia de adquirir as grandes ilhas de Cuba esfera norte-americana.
e Hispaniola. Em meados do século XIX, quando os
A Doutrina Monroe, enunciada em Estados Unidos começaram a pensar em
1823, foi a base de uma política voltada a um canal através da Nicarágua ligando o
transformar os Estados Unidos em uma Atlântico e o Pacífico, o consentimento e a
ilha através de compras (Louisiana, Flórida, cooperação da Grã-Bretanha pareciam es-
Cuba, Alasca) e a impedir todas as potências senciais. Ela tinha territórios e pretensões
europeias de recuperar suas possessões ou ao longo do litoral próximo (em Honduras
ampliar sua influência no continente. Tam- Britânica, a Costa do Mosquito e as Ilhas da
bém era inspirada por medo da Rússia no Baia); os Estados Unidos negociaram trata-
noroeste e de outros europeus no sudeste. dos favoráveis com a Nicarágua e Hondu-
Por mais de um século, a doutrina deman- ras. Segundo o Tratado de Clayton-Bulwer
dou pouca aplicação por parte dos Estados de 1850, os dois países concordavam em
Unidos e não foi evocada seriamente até que nenhum deles adquiriria controle ex-
que, na Segunda Guerra Mundial, as colô- clusivo nem privilégios especiais sobre
nias francesas e holandesas remanescentes qualquer canal e, ainda, que nenhum de-
passaram ao controle legal da Alemanha veria ocupar, fortificar, colonizar nem as-
nazista e, na Guerra Fria, os russos ousaram sumir ou exercer domínio sobre qualquer
estabelecer uma base em Cuba. Os britâni- parte da América Central.
cos não fizeram nenhuma tentativa de au- Esse tratado, concluído em um momen-
mentar seu império das Índias Ocidentais to em que os Estados Unidos eram a mais
e durante as décadas posteriores ao rompi- fraca das duas partes, tornou-se um obstá-
mento entre eles e os novos Estados Unidos, culo a planos posteriores de construir um
o poder naval britânico serviu para fortale- canal sem a colaboração britânica e obter
cer em vez de questionar a doutrina. Com o domínio sobre seu curso e suas margens,
a geografia não tendo colocado outras ilhas mas, no final do século, o interesse britâni-
entre as Ilhas Britânicas e o litoral dos Esta- co nessa parte do mundo era pequeno em
dos Unidos, o período imediatamente pós- comparação ao interesse no Oriente Mé-
-independência foi de estranhamento, mas dio e no sul da Ásia e, em 1901, o Tratado
não de conflito. (É difícil acreditar que pu- Clayton-Bulwer foi substituído pelo Tratado
desse ter sido evitado o conflito, principal- de Hay-Pauncefote, que confirmou os prin-
mente durante a Guerra Civil, se o Atlântico cípios de neutralidade e uso indiscrimina-
666 | PETER CALVOCORESSI

do, mas também suspendeu as limitações dos Estados Unidos e assim permaneceu
estabelecidas pelo tratado anterior. A seguir, até 1933. Em 1901, os norte-americanos
os Estados Unidos entraram em discus- asseguraram, pela emenda Platt (uma mo-
sões com a Colômbia para uma concessão dificação do Projeto de Apropriação pelo
de território no Panamá. Negociou-se um Exército – Army Appropriation Bill) que não
tratado, mas ele foi rejeitado pelo senado retirariam suas forças militares a menos que
colombiano, de forma que, em 1903, os Es- seu direito de intervir pela preservação do
tados Unidos promoveram uma revolta no bom governo fosse corporificado na Cons-
Panamá e uma secessão da área em relação tituição cubana. As forças norte-americanas
à Colômbia. Uma nova república paname- estiveram na ilha entre 1906 e 1909 e entre
nha foi criada e, por 10 milhões de dólares 1912 e 1913, em apoio a regimes militares
e um aluguel anual de 250.000 dólares, deu- corruptos, e foi construída uma base naval
-se aos Estados Unidos soberania perpétua em Guantanamo.
sobre a chamada zona do canal e o direito de Poucos anos depois da Guerra de Cuba,
intervir nos assuntos internos do Panamá. os Estados Unidos intervieram na Repúbli-
Os Estados Unidos fizeram uso desse direito ca Dominicana (1905). Com medo da inter-
enviando tropas em diversas ocasiões. venção europeia como consequência do não
Não menos importante para os Esta- pagamento das dívidas dominicanas por seu
dos Unidos era a grande ilha de Cuba, mais governo, o presidente Theodore Roosevelt
próxima de seu território do que qualquer formulou o Corolário Roosevelt à Doutrina
outro país latino-americano, com exceção Monroe, pelo qual os Estados Unidos se da-
do México. Os norte-americanos tentaram, vam o direito de intervir em países latino-
em várias ocasiões, comprar Cuba da Es- -americanos para sustentar governos. As
panha, sem sucesso. Em 1868, os cubanos forças norte-americanas reapareceram em
se rebelaram contra a Espanha e travaram 1916 e, pelos oito anos seguintes, o país es-
uma guerra de 10 anos, foram derrotados, teve sob domínio militar direto dos Estados
mas se rebelaram mais uma vez em 1895. Unidos, com um oficial norte-americano
Houve indignação nos Estados Unidos como presidente.
diante da crueldade que as autoridades es- Uma ocupação semelhante da vizinha
panholas usaram para derrotar a revolta e república do Haiti, também com vistas a
preocupação com os investimentos norte- antecipar-se a credores europeus, durou de
-americanos, mas o governo não agiu até 1915 a 1934. Na parte continental, os Esta-
que, em 1898, e em circunstâncias que per- dos Unidos intervieram abertamente na re-
manecem sem explicação, o navio de guerra volução mexicana e na guerra civil com um
dos Estados Unidos, USS Maine, foi afunda- bombardeio naval, em 1914, e uma expedi-
do na baía de Havana. Washington deu um ção do exército fracassada em 1916-1917; e
ultimato e, embora os termos tenham sido as forças norte-americanas enviadas à Nica-
aceitos em grande parte e a guerra tenha rágua, em 1911, para apoiar um presidente
praticamente terminado, declararam guerra de sua preferência, mantiveram a oposi-
contra a Espanha. Os combates, que se es- ção liberal quieta até 1933, quando, depois
tenderam ao Pacífico, duraram três meses de sua saída, foi inaugurada a ditadura de
e terminaram com a derrota da Espanha e Anastasio Somoza.
a cessão aos Estados Unidos das ilhas Fili- Essa política de direcionamento e con-
pinas, Guam e Porto Rico, em troca de 20 trole, sustentada por incursões militares es-
milhões de dólares. Cuba passou à tutela porádicas, foi abandonada pelo presidente
POLÍTICA MUNDIAL | 667

Franklin D. Roosevelt e seu secretário de Es- guerra, mas os suprimentos militares norte-
tado Cordell Hull. Em seu discurso de posse, -americanos afetaram a estrutura da política
Roosevelt promulgou uma política de boa dentro da América Latina muito mais do que
vizinhança baseada na não intervenção, e seu afetaram os rumos da guerra.
compromisso foi repetido na Conferência Depois de Pearl Harbor, México, Co-
Pan-Americana de 1936 em Buenos Aires. A lômbia e Venezuela romperam relações
Emenda Platt foi rejeitada, o direito de inter- com o Japão, a Alemanha e a Itália, e todas
vir nos assuntos internos do Panamá foi can- as repúblicas centro-americanas e caribe-
celado por tratado, a retirada dos fuzileiros nhas declararam guerra. Quando o final
navais norte-americanos do Haiti foi acele- do conflito se aproximava, os estados ame-
rada e o presidente aceitou o direito do go- ricanos, reunidos em Chapultepec, no Mé-
verno mexicano de nacionalizar as proprie- xico, em fevereiro de 1945, declararam-se
dades de petróleo dentro de seu território. As favoráveis à defesa coletiva contra ameaças
esperanças latino-americanas também foram internas e externas (esse arranjo se tornou
elevadas pela aprovação da Lei dos Acordos mais permanente com o Tratado Interame-
de Comércio Recíproco de 1934 (que dava ricano de Assistência Recíproca, concluído
poderes ao presidente para reduzir tarifas em no Rio de Janeiro em 1947), mas a preocu-
até 50%) e pelo estabelecimento, no mesmo pação de Washington de criar uma aliança
ano, do Export-Import Bank para emprestar anticomunista intercontinental encontrou
verbas públicas dos Estados Unidos a gover- pouca resposta entre países que estavam
nos estrangeiros. Antes do início da Segun- acostumados a pensar nos Estados Unidos
da Guerra Mundial, Hull, ciente da tentativa e não na URSS como o primeiro interven-
alemã na Primeira Guerra de fazer com que o tor em seus assuntos internos e estavam
Japão atacasse os Estados Unidos através do mais preocupados com os problemas eco-
México, tentou convencer a América Latina nômicos do pós-guerra do que com o co-
de que o nazismo e o fascismo eram peri- munismo. Essas classes militares, que eram
gos iminentes contra os quais todo o conti- as mais imediatamente afetadas pelos es-
nente americano deveria tomar precauções quemas conjuntos de defesa, estavam me-
conjuntas. Em Havana, em 1940, os Estados nos interessadas na cooperação do que em
americanos chegaram a um acordo segundo fortalecer suas próprias forças.
o qual nenhum Estado não americano de- Elas recorriam aos Estados Unidos para
veria ter permissão para assumir qualquer obter equipamentos mais modernos. Os Es-
parte do território da América, mas esse tados Unidos, por outro lado, foram ficando
novo enunciado da Doutrina Monroe deve- cada vez mais presos entre políticas de pre-
ria ser mantido por meio de ação americana venção ao comunismo por meio de ajuda
conjunta; os Estados Unidos não receberam econômica a seus vizinhos e a interferência
nenhum convite para intervir por conta pró- em seus assuntos para suprimir os comunis-
pria contra qualquer ameaça externa, e deve- tas ou qualquer um que Washington assim
riam fornecer a seus vizinhos as armas e os considerasse.
equipamentos para que o fizessem. Conse- Em 1951, a Lei de Segurança Mútua
quentemente, um resultado dos temores de foi ampliada para a América Latina e, a
Washington para a defesa do hemisfério era partir de 1952, os Estados Unidos conclu-
o fortalecimento da classe militar em toda a íram uma série de acordos bilaterais de
região. Pequenas forças brasileiras e mexi- defesa. Se os Estados Unidos (e os civis
canas foram enviadas ao exterior durante a latino-americanos) tinham receios sobre
668 | PETER CALVOCORESSI

esse maior fortalecimento da classe militar, cas – a derrubada do presidente Arbenz na


Washington se sentia limitada pela ameaça Guatemala (ver Capítulo 28) e, com menos
velada de que exércitos incapazes de satis- sucesso, de Fidel Castro em Cuba (ver Capí-
fazer suas necessidades nos Estados Unidos tulo 29). Embora Washington considerasse
pudessem ir fazer compras em outro lugar. que a guerra anticomunista na Coreia exigia
Foi estabelecida uma academia de polícia que todos os países se levantassem e partici-
interamericana em Fort Davis, na Zona do passem, somente a Colômbia enviou solda-
Canal, 1962, para estudar e praticar técnicas dos da América Latina.
de contrainsurgência, mas, fora isso, a coo- Em 1958, o vice-presidente Richard
peração militar interamericana não rendeu Nixon, em uma viagem por países latino-
frutos nem ganhou popularidade. -americanos, foi recebido com insultos e
As conferências de Chapultepec e do até mesmo com violência. No Peru e na Ve-
Rio foram a sétima e a oitava de uma série nezuela, onde ditadores (embora recente-
de conferências interamericanas inaugu- mente depostos) tinham recebido a Legião
radas em Washington, em 1889. O nono do Mérito de Eisenhower, Nixon se viu alvo
desses encontros foi realizado em Bogotá, da indignação popular contra a aprovação
em 1948, e criou novas instituições e mais norte-americana desses ditadores. Os Esta-
mecanismos para consultas e ação pan- dos Unidos concordaram com a criação de
-americanas (com o Canadá, por vontade um banco interamericano e um Fundo para
própria, excluído até 1989). Pretensamente o Desenvolvimento Social Interamericano e,
pan-americana, mas em algumas mentes em 1960, Eisenhower fez uma viagem pela
um contrapeso latino ao poder do norte, a América Latina como parte de uma tenta-
Organização de Estados Americanos (OEA) tiva de melhorar as relações. Embora a dé-
tinha como objetivos: a manutenção da paz cima-primeira conferência interamericana,
dentro da área de seus membros; a solução que deveria acontecer em Quito, em 1959,
pacífica de suas disputas; ação conjunta tenha sido adiada, os ministros de relações
contra a agressão; e desenvolvimento coo- exteriores dos países americanos se reuni-
perativo de interesses econômicos, sociais ram uma vez naquele ano, em Santiago, e
e culturais. Para a América Latina, essa as- duas no ano seguinte, em San José.
sociação com os Estados Unidos era bem- A primeira dessas reuniões foi dedicada
-vinda, principalmente em função da pers- principalmente a denunciar Rafael Trujillo,
pectiva de uma injeção de dinheiro como da República Dominicana e Fulgencio Ba-
o Plano Marshall para a Europa, mas essa tista, de Cuba, no que não foi difícil obter
perspectiva se revelou uma miragem, já que amplo consenso. Em 1960, uma alegação
Washington via a Europa e a América Lati- venezuelana de que Trujillo teria instigado
na por prismas muito diferentes: a primeira uma tentativa de assassinar o presidente Be-
tinha sido destruída pela guerra e era consi- tancourt gerou uma investigação, a conde-
derada sob risco de colapso iminente e vul- nação de Trujillo e a expulsão da República
nerável aos avanços russos. Esse argumento Dominicana da OEA, mas, quando os Esta-
pouco ou nada se aplicava à América Latina. dos Unidos propuseram sanções econômi-
O desencanto cresceu de ambos os lados. A cas e eleições com supervisão internacional
Guerra da Coreia aguçou o anticomunismo no país, seus parceiros recuaram, por medo
global de Washington e alterou suas priori- de estabelecer um precedente para a inter-
dades na América Latina, concentrando-se venção em seus próprios assuntos internos.
mais em questões econômicas do que políti- Também houve um conflito entre os Esta-
POLÍTICA MUNDIAL | 669

dos Unidos e o restante em função de Cuba: sua posse, com pouco tempo para se obter
em termos gerais, a conferência foi anticu- resultados. Mas, em segundo lugar, havia
bana, mas não se dispôs a expressar-se di- razões mais materiais. A soma prometida
retamente. Uma proposta para mediação era alta, mas é questionável se seria capaz de
internacional entre Estados Unidos e Cuba fazer mais do que conter uma situação em
não prosperou. Sobre o problema perene da deterioração. As verbas do governo norte-
cooperação econômica, o presidente Kubits- -americano deveriam atrair despesas pri-
chek, do Brasil, fez uma tentativa de obter vadas, mas o volume dessas despesas não
dos Estados Unidos ajuda para uma “Ope- atingiu as expectativas e parte das verbas go-
ração Pan-Americana”, que teve pouca res- vernamentais teve de ser desviada para pro-
posta de Washington. pósitos de curto-prazo imprevistos devido
No ano seguinte, contudo, o presiden- a uma queda nas receitas latino-americanas
te Kennedy assumiu uma nova postura. resultantes dos produtos primários. Tercei-
Falando à América Latina de uma forma ro, havia uma confusão entre os propósitos
que nenhum presidente norte-americano de prioridades da aliança do ponto de vista
tinha feito desde Franklin D. Roosevelt, de Washington: ela visava principalmente
Kennedy propôs uma Aliança para o Pro- alterar estruturas sociais, aliviar a pobreza
gresso, imensa cooperação de longo prazo imediata, promover o progresso econômico
entre os Estados Unidos e seus vizinhos la- de um país, facilitar a integração econômica
tinos para melhorar suas economias à custa entre os países, ou combater o comunismo?
dos Estados Unidos, sob a condição de que A menos que se estabelecessem priori-
introduzissem certas reformas fundamen- dades, era difícil saber por onde começar e o
tais. Os Estados Unidos dariam 20 bilhões que aprovar. Por fim, houve mal-entendidos
em 10 anos, para pagar, na prática, reformas e armadilhas: se as verbas estariam disponí-
multilaterais e sociais. Embora os governos veis imediatamente ou apenas sob a condi-
da América Latina preferissem a ajuda bi- ção de que fosse introduzida a democracia,
lateral à multilateral, e embora preferissem se elas seriam dadas a um regime reacioná-
ajuda sem condições do que a condiciona- rio ou inconstitucional. O corte da ajuda
da a reformas, a Aliança para o Progresso significava prejudicar as esperanças dos po-
era o tipo de intervenção que eles vinham bres que nenhuma culpa tinham; continuá-
buscando desde a implantação do Plano -la significava financiar regimes atrasados
Marshall na Europa, ao contrário da inter- em vez de estimular os progressistas.
venção que costumavam temer ou dizer que A característica essencial das relações
temiam. No mesmo ano, em Punta del Este, entre a América Latina e os Estados Unidos
no Uruguai, todos os membros da OEA, era o desequilíbrio. Considerando-se que
com exceção de Cuba, assinaram um docu- a Guerra Fria dava o contexto em que se
mento aprovando as propostas de Kennedy. deveria enfrentar a desigualdade, os norte-
A Aliança para o Progresso era um ato -americanos estavam em busca de amigos
psicológico forte, importante por seu im- anticomunistas confiáveis, privilegiando
pacto nos cidadãos dos Estados Unidos bem suas atitudes ideológicas em detrimento das
como em povos mais ao sul, mas foi mal qualidades menos admiráveis como ditadu-
planejada, e os resultados práticos decep- ra, tortura e assassinatos em massa. Com o
cionaram pela fragilidade. As razões para a fim da Guerra Fria, os Estados Unidos pas-
decepção foram várias. Em primeiro lugar, a saram a se preocupar mais em conter o cres-
morte de Kennedy, pouco tempo depois de cimento internacional do tráfico de drogas e
670 | PETER CALVOCORESSI

promover a democracia – ações cooperati- diferentes e menos românticas. O foco guer-


vas que, contudo, não estavam desprovidas rilheiro foi substituído por sequestradores
de uma atitude violenta de grande desgaste. urbanos – os tupamaros uruguaios e seus
As formas de governo na América La- equivalentes, que, na Argentina, no Brasil e
tina mudaram em ritmo desconcertante. em outros lugares se especializaram na cap-
Na década de 1950, houve uma onda de di- tura de diplomatas como reféns. Um dos fei-
tadores que caíram, começando com Juan tos mais notáveis dos tupamaros foi a captu-
Domingo Perón na Argentina, em 1955. Os ra do embaixador britânico em Montevidéu,
três anos seguintes assistiram à retirada de mas, embora o tenham mantido preso por
Manuel Odria, no Peru, e à deposição dos oito meses, eles nada ganharam com isso.
presidentes Gustavo Rojas Pinilla e Marcos As táticas urbanas não representaram
Perez Jimenez, da Colômbia e da Venezuela. melhorias sobre os focos e, nas eleições uru-
A tendência, nesses anos, foi de uma retira- guaias de 1971, a Frente Ampla ficou em ter-
da de cena dos militares, e o caudilho auto- ceiro em relação aos dois partidos tradicio-
crático, interessado em seu poder pessoal e nais, Blancos e Colorados. Juan Bordaberry,
desvinculado de ideologias, veio a ser repre- instalado na presidência, em 1972, depois
sentado, ao sul do istmo do Panamá, apenas de cálculos complexos e questionados, esta-
por Alfredo Stroessner no Paraguai, que va – como seus predecessores – mais preo-
sobreviveu até 1989. (Ele morreu no exílio cupado com a tarefa de encontrar para o
em 2006, seu partido manteve a presidência Uruguai, que no passado havia sido rico em
até 2008, quando Fernando Lugo, recrutado exportações de lã, um futuro econômico em
para o campo chavista (p. 697), pôs fim a um mundo que havia inventado o rayon. Ele
uma das mais longas sequências de exílio da foi deposto pelos militares, mas, em 1980,
América Latina. Em 1996, o General Lino os uruguaios, com temeridade inesperada,
Oviedo Silva deu um golpe que fracassou e rejeitaram uma nova Constituição proferida
ele acabou na prisão. Impedido de concorrer a eles pelo regime prevendo um voto mais
às eleições de 1998, ele apoiou com sucesso a obediente e, em 1985, o Uruguai voltou ao
Raul Cubas Grau contra Luis Argana Ferra- sistema civil pacífico pelo qual foi conheci-
ro. Argana foi assassinado, Cubas sofreu im- do por muito tempo.
peachment, renunciou e fugiu, Oviedo tam- Os otimistas esperavam que essa ten-
bém fugiu. O Paraguai foi atingido também dência se tornasse cada vez mais caracterís-
pela desvalorização da moeda brasileira e tica dos últimos anos do século, mas não se
criticado pelos Estados Unidos como um poderia contar com a persistência de ten-
instrumento do tráfico de drogas). Mas os dência alguma, nem era possível encontrar
militares obtiveram uma razão de ser – e no- generalizações facilmente aplicáveis ao sub-
vas armas – pela prevalência de movimentos continente como um todo. Dois elementos
guerrilheiros que avançavam de várias for- cruciais eram o crescimento econômico e
mas, apesar do golpe no moral ocasionado as reformas institucionais. No início dos
pela morte de Che Guevara na Bolívia em anos de 1990, o crescimento econômico era
1967. O desenvolvimento de técnicas anti- visível em muitos países, mas desigual. A
guerrilha sob a supervisão de oficiais dos maioria deles – o Brasil era a principal ex-
Estados Unidos possibilitou aos governos ceção – buscava lidar com seus problemas
derrotar movimentos que nunca haviam econômicos imediatos privatizando empre-
sido numericamente fortes e cuja unidade sas e propriedades estatais para levantar di-
era frágil. Os protestos encontraram formas nheiro e pagar o serviço da dívida externa,
POLÍTICA MUNDIAL | 671

dar aos orçamentos um perfil mais saudável ao poder pela força, pois estava insatisfeito
e evitar aumento de impostos – o plano da com a oligarquia conservadora tradicional,
Argentina de desnacionalizar sua empresa e deu início à modernização do Brasil.
estatal de petróleo foi a medida mais ampla Ele fortaleceu o governo central, in-
nesse sentido. No Chile e em outros luga- centivou a indústria e introduziu o plane-
res, foram realizadas transações semelhan- jamento econômico estatal. Tornou-se mais
tes, mas no Peru e na Venezuela, elas foram autocrático e mais popular. O exército foi
suspensas. Os obstáculos não eram apenas a perdendo a confiança nele por essas duas
disposição geniosa das classes dominantes, razões, temendo sua nova base de poder
mas também a fragilidade das instituições nas classes mais pobres, e, em 1945, ele foi
financeiras e administrativas necessárias deposto, mas retornou ao poder, em 1950,
para formular e implementar transforma- pelo voto popular e com o apoio de oficiais
ções econômicas complicadas. mais jovens. O exército, com esperanças de
Com a virada do século, um novo clima controlá-lo e relutando muito em desprezar
ganhava força. Seus principais ingredientes uma eleição justa, permitiu que ele assumis-
eram uma afirmação romântico-democrá- se o cargo, mas, em 1954, estava farto dele
tica de um passado pré-colombiano, a rejei- e em vias de derrubá-lo – por alegações de
ção ao militarismo e aos ditadores militares, corrupção – quando ele cometeu suicídio.
a incerteza sobre moldar uma sociedade de A década seguinte assistiu à decadência
nações sul-americana ou latino-americana, da era Vargas sob três presidentes. A elei-
a hostilidade mais consistente aos Estados ção de 1955 foi vencida por Juscelino Ku-
Unidos (que ia da desconfiança ao ódio) bitschek, com João Goulart como seu vice-
busca de associação econômica com orgãos -presidente. As forças armadas, divididas
que tivessem caráter e Constituição redefini- diante desse resultado, não fizeram objeção
dos para reduzir a dominação das potências e permitiram a posse da dupla vencedora.
mundiais (ver, especificamente, a Venezue- A partir daí, demonstraram a dependência
la). A satisfação dessa visão demandaria, em que o novo presidente tinha em relação a
primeiro lugar, estabilidade financeira. elas, e ele, em troca, reconheceu a relação
O Brasil tinha se tornado independente tacitamente elevando os soldos e dando
na forma de império, que durou de 1822 a verbas para equipamentos militares. Alguns
1889, quando o segundo imperador foi de- oficiais queriam mais do que isso e espera-
posto por uma revolução sem derramamen- vam um governo reformista, que atacasse a
to de sangue, liderada por um professor de corrupção, a incompetência e as expressões
matemática da escola militar. O país tinha mais graves de injustiça social, mas não es-
recursos naturais enormes e um vasto mer- tavam dispostos a apoiar qualquer medida
cado interno, ocupava metade da América mais radical, nem tiveram a satisfação de as-
do Sul e respondia, junto com México e Ar- sistir uma boa administração trabalhando,
gentina, por quase dois terços de seus pro- já que o presidente Kubitschek embarcou
dutos. Segundo o censo de 1970, sua popu- em empreendimentos extravagantes (como
lação cresceu um terço em 10 anos e chegou a construção da nova capital, Brasília) e no
a mais de 93 milhões de habitantes. Graças a decorrer de uma administração altamente
seus recursos amplos e variados, conseguiu equivocada, abriu amplas oportunidades
avançar economicamente durante e após a para a especulação privada e a malversação.
Primeira Guerra Mundial. Em 1930, Getulio Em 1961, Jânio Quadros foi eleito, com
Dornelles Vargas, levemente liberal, chegou Goulart ainda na vice-presidência, mas re-
672 | PETER CALVOCORESSI

nunciou depois de sete meses, deixando Diante de oposição crescente, o governo


Goulart para que assumisse seu lugar sob os recorreu a métodos duros, incluindo cruel-
olhos de um exército cada vez mais dividido dade ampla e pavorosa com prisioneiros po-
e uma marinha e uma força aérea solidamen- líticos que eram jogados na cadeia em nú-
te conservadoras. Nessas circunstâncias, os meros cada vez maiores.
poderes de Goulart eram limitados e ele ra- Por outro lado, o regime militar rei-
pidamente chegou ao limite. Onde Quadros vindicava crédito pelo tratamento que deu
tinha preferido renunciar, Goulart optou por à economia. Tendo herdado uma inflação
seguir adiante, e assumiu riscos: propôs uma galopante, não apenas reverteu a tendência
grande ampliação dos direitos civis, reforma dos pobres anos de 1960, mas conseguiu,
agrária e uma política externa neutralista, por um tempo, (1968-1974) uma taxa de
apelou ao povo contra as forças armadas e crescimento de 10% ao ano, muito acima de
o Congresso, aceitou o apoio comunista no qualquer coisa vista nos 20 anos anteriores.
país, estabeleceu relações com a URSS e se O principal instrumento eram as exporta-
opôs à expulsão da Cuba de Fidel Castro da ções, que foram quadruplicadas, ajudadas
OEA (mas participou do bloqueio naval dos por grandes empréstimos de estrangeiros
Estados Unidos ao país durante a crise dos impressionados com os recursos naturais do
mísseis). Essas medidas lhe renderam algu- Brasil e seu governo disciplinador. Mas 1974
ma popularidade, mas também evocaram foi um ano de ajuste de contas no país, assim
medo e ódio, possibilitaram que os comu- como no mundo todo. Os mercados mun-
nistas se infiltrassem nos governos federal e diais saudáveis que recebiam as exportações
estaduais e nos sindicatos e, à medida que di- do Brasil perderam a saúde, os empreendi-
ferentes países se alinhavam com lados dis- mentos internos financiados a partir do ex-
tintos, geraram uma ameaça de guerra civil, terior perderam ritmo e o país recorreu ao
quando, então, o exército interveio. controle das importações e sua substituição.
Tendo expulsado Goulart, os líderes do Os beneficiários da explosão de crescimen-
exército forçaram o Congresso, depois de to começaram a resmungar e, suas vítimas,
uma pausa em que se observou a regra cons- a se afirmar. Estas eram numerosas. Apesar
titucional ao reconhecer o presidente da desse crescimento, quase metade da popu-
câmara dos deputados como presidente, a lação estava em pior situação do que antes
instalar o general Humberto Castelo Branco – 40% estavam dividindo menos de 10%
como presidente pelo restante do mandato da renda nacional. As tensões regionais e
de João Goulart. O general foi sucedido pelo de classe foram agravadas, à medida que os
marechal Costa e Silva e pelos generais Gar- nordestinos desfavorecidos ficavam mais
rastazu Médici, Ernesto Geisel e João Bap- indignados em relação aos privilegiados do
tista de Oliveira Figueiredo. Os partidos po- sul. Com a chegada do presidente Figueire-
líticos foram proibidos, com exceção de dois do em 1979, o governo se deu a dupla tarefa
novos, que não tinham qualquer vitalidade de reestruturar a economia e humanizar o
independente. O regime passou a comba- regime. A censura foi afrouxada, a tortura
ter sindicatos, camponeses e estudantes, fez provavelmente reduzida e uma anistia am-
poucos avanços em termos de reforma agrá- pla, ainda que não total, decretada para os
ria e alterou os programas de alfabetização, prisioneiros políticos. Na esfera econômica,
o que parecia perigoso, pois o Brasil conti- fez-se um esforço especial para buscar alter-
nuava sendo um país de terras improdutivas nativas ao petróleo estrangeiro: prospecções
e talentos não aproveitados. de petróleo no mar (limitadas), a busca de
POLÍTICA MUNDIAL | 673

substitutos e um programa nuclear, que le- cia de suas origens africanas. O Brasil fazia
vantou as questões de costume a respeito parte do subcontinente ao mesmo tempo
das intenções do país de desenvolver capaci- em que lhe dava as costas. Também estava
dade nuclear militar, além de uma economia separado da América do Sul, determinado
movida a essa energia. a afirmar sua independência em relação aos
Nos anos de 1970, o Brasil não era líder Estados Unidos e não servir de auxiliar de
em desenvolvimento nuclear na América Washington, mesmo quando os dois países
do Sul. Seu antigo adversário, a Argentina, compartilhavam visões conservadoras. Bus-
estava à frente. O Brasil não tinha assina- cou vínculos mais próximos com as estrelas
do o Tratado de Não Proliferação Nuclear, em ascensão da África e da Ásia – a Nigéria
mas assinara, com reservas, seu equivalente e o Japão – e também com o Iraque, outro
regional, o Tratado de Tlatelolco (1967). A país com ambições plausíveis e fornecedor,
Argentina não assinou nenhum deles. (O naquele período, da maior parte dos com-
México, também presente na corrida nu- bustíveis importados pelo Brasil. Seus pon-
clear, assinou ambos.) Em 1975, depois de tos fracos estavam no crescimento excessivo
uma rejeição dos Estados Unidos, o Brasil de sua população, na pesada dívida externa
voltou-se à Alemanha Ocidental em busca e nos extremos de pobreza e riqueza do país.
de ajuda para acelerar seu programa nu- Com o fim dos sonhos dos anos de 1970, as
clear. Em troca de pagamento parcial em eleições legislativas e estaduais de 1982 de-
urânio brasileiro, Bonn aceitou fornecer ram ao governo reveses a que ele não estava
oito reatores, uma usina de processamento acostumado, o FMI insistiu, em 1983, em
de combustível e tecnologia de enriqueci- dolorosas medidas clássicas como condição
mento de urânio. O objetivo do Brasil era para sua ajuda e, em 1985, os militares con-
ter nada menos do que 73 reatores até o fi- sideraram prudente passar ao segundo plano
nal do século. Embora os propósitos prin- depois de 21 anos de poder político. Tancre-
cipais desse programa fossem industriais do Neves foi eleito presidente, mas imedia-
e civis, a usina de processamento e a tec- tamente ficou doente e morreu, deixando o
nologia alemã indicavam uma capacidade pouco conhecido vice e sucessor José Sar-
militar. As salvaguardas corporificadas no ney para enfrentar problemas econômicos
acordo eram rígidas, mas não completas. e sociais assustadores. Sarney abandonou as
Os programas brasileiro e argentino cria- receitas monetaristas para a reabilitação eco-
vam a possibilidade de uma corrida nuclear nômica, em parte porque elas fomentavam a
na América do Sul semelhante à que havia miséria e mesmo a revolução, em parte em
entre o Paquistão e a Índia ou entre Israel função de que os pontos fortes inerentes do
e Iraque, mas os dois países negavam essa Brasil lhe possibilitavam – ou assim parecia
insanidade em um momento de ampla me- – negociar com seus credores para obter me-
lhoria de suas relações políticas e econômi- lhores condições e com o FMI para receber
cas nas duas últimas décadas do século. fundos e apoiar um plano econômico mo-
O tamanho do Brasil fazia dele um gi- deradamente expansionista. Apesar de sua
gante entre os países da América Latina, sua imensa dívida, o Brasil conseguia pagar os
riqueza potencial o transformava em um gi- juros pontualmente e também conseguia su-
gante potencialmente poderoso. Sua origem gerir que, sem ajuda, o regime Sarney fracas-
portuguesa o diferenciava de seus vizinhos saria, deixando os credores sem esperanças
de fala espanhola e lhe dava um sabor cos- de receber juros ou pagamentos e colocando
mopolita, que era acentuado pela consciên- o mundo diante da possibilidade abominá-
674 | PETER CALVOCORESSI

vel de retorno ao domínio militar ou a um compensado pelo crescimento nas expor-


regime muito à esquerda do de Sarney. Mas tações de produtos agrícolas e industriais.
Sarney carecia de sustentação política. Seu Mas a moeda, vinculada ao dólar, ainda
governo era uma coalizão na qual o maior estava supervalorizada; déficits orçamentá-
membro, o Partido Movimento Democrático rios, dívida externa e taxas de juros internas
Brasileiro, só dava ao presidente apoio total continuaram a subir, junto com pobreza,
quando ele menos precisava dele. O Partido criminalidade e desordem inevitavelmente
do Movimento teve uma ampla vitória nas agravadas. A ocupação ilegal de terras che-
eleições federais e estaduais de 1986 e, com gava à beira da insurreição. Mesmo assim,
a introdução de medidas econômicas duras, ele avaliou que o balanço da recuperação
entrou em conflito com Sarney. Essas medi- econômica em relação ao sofrimento so-
das geraram oposição sem conter a inflação, cial estava suficientemente a seu favor para
que estava crescendo em proporções astro- justificar que tentasse, e conseguisse, uma
nômicas. As eleições de 1989 deram uma emenda constitucional que lhe possibilitou
maioria clara a Fernando Collor de Mello, concorrer a um segundo mandato em 1998,
que, aos 40 anos, teve quase duas vezes mais o que lhe foi dado. (Essa manipulação cons-
votos do que seu principal rival. Collor, go- titucional também foi adotada na Argentina
vernador de Alagoas, fez com que o regime e no Peru.) Mas a marcha do Brasil ao futu-
de Sarney parecesse tedioso, teve a sorte de ro econômico brilhante, tantas vezes previs-
concorrer no segundo turno com o candida- ta e constantemente adiada, e que seu tama-
to mais extremo da esquerda, e gastou muito nho e seus recursos econômicos pareciam
dinheiro em sua campanha. Ele introduziu prever, foi derrotada por uma combinação
medidas severas, que contiveram a inflação, de infortúnios internos e externos. Colap-
mas também contiveram todo o restante. sos entre seus clientes externos (sudeste
As contas bancárias foram congeladas por asiático, Rússia) e o fracasso de Fernando
18 meses, retirando 80 bilhões de dólares Henrique em limitar as despesas públicas e
da economia, a moeda foi desvalorizada, os empréstimos extravagantes (grande parte de
serviços públicos foram reduzidos em mui- curto prazo) resultou em déficits orçamen-
to, empresas faliram, as receitas de impostos tários em torno de 10% do PIB, recrudesci-
desapareceram e as classes mais fracas foram mento da inflação e uma corrida às reservas
levadas à penúria e ao desespero. de 10% ao mês, apesar de taxas de juros de
E Collor revelou-se acintosamente 50%. O FMI e o Banco Mundial, temendo
corrupto. Depois de ele e seus amigos rou- a disseminação da desordem econômica
barem cerca de 1 bilhão de dólares, ele foi em toda a América do Sul (um terço de seu
alvo de impeachment e substituído pelo vi- PIB provinha do Brasil), organizaram crédi-
ce-presidente Itamar Franco, com eleições tos de 41 bilhões de dólares para proteger a
a serem realizadas em 1994 e vencidas por moeda, que, entretanto, tendo sido desvin-
uma coalizão de direita liderada por Fer- culada do dólar, perdeu metade de seu valor
nando Henrique Cardoso, ex-ministro das nas primeiras semanas de 1999 na medida
finanças e rebelde de esquerda transforma- em que 60 bilhões saíam do país.
do em direitista defensor do livre mercado. Em 2002, a transformação aparecia no
Fernando Henrique reduziu a inflação de horizonte. Luiz Inácio Lula da Silva (Lula), a
1.000% a um dígito, impôs pesados aumen- eterna esperança da esquerda brasileira, foi
tos de impostos, cortou salários no serviço eleito presidente com 46% dos votos válidos
público, acelerou a privatização e foi re- e assumiu em uma crise (inflação alta, des-
POLÍTICA MUNDIAL | 675

pesas públicas excessivas e dívida interna e cio. O país foi atingido em cheio pela queda
externa temerária) e os crimes violentos em de 1929 e sofreu, em parte como consequên-
ascensão. O presidente foi forçado a mudar cia, uma revolta em 1930, na qual oficiais do
em direção ao centro. Um acordo comercial exército (incluindo Juan Domingo Perón, de
com a China ajudou a estabilizar a economia 35 anos) tiveram o apoio das classes de pos-
– talvez uma indicação das relações econô- ses e despossuídas. Esse evento foi seguido
micas da América do Sul com o restante do de um período de governo autocrático con-
mundo. Ele foi reeleito presidente em 2006, servador, sustentado pelo exército e por uma
mas a violenta desordem criminosa conti- prosperidade renovada. Ao mesmo tempo, a
nuava a caracterizar uma ou outra parte des- urbanização e a imigração estavam produ-
se imenso país, contrabalançada, talvez, por zindo uma classe trabalhadora politicamen-
uma taxa de crescimento estável, ainda que te mais consciente e socialista.
não espetacular, uma inflação de quatro dígi- Durante a Segunda Guerra Mundial, a
tos reduzida a um nível tolerável, a descober- presidência foi ocupada pelo ultraconserva-
ta de petróleo em escala capaz de levar o Bra- dor Ramón Castillo, presidente em exercí-
sil para o grupo dos principais exportadores, cio de 1940 a 1942 e presidente por mais um
além de outros produtos de exportação tão ano. Castillo se recusou a romper relações
distintos quanto o ferro, o etanol e o café, e com as potências do Eixo, em parte porque
melhores perspectivas de capital estrangeiro ele próprio tinha inclinações fascistas e, em
para a indústria e a infraestrutura – todos es- parte, como desafio aos Estados Unidos, em
ses fatores renderam ao Brasil (não pela pri- relação aos quais as classes governantes ar-
meira vez) o status de país aparentemente a gentinas eram tradicionalmente hostis. Em
caminho da saúde, felicidade e poder. 1943, o exército interveio, no que foi mais
A Argentina, o segundo em extensão do que uma transferência de poder. Seus lí-
entre os países da América do Sul, conquis- deres tinham um programa cujos objetivos
tou sua independência da Espanha à custa incluíam a Argentina para os argentinos:
de seus territórios que formaram os novos rejeição do papel dos estrangeiros na eco-
Estados do Uruguai, Paraguai e Bolívia. nomia do país, que promoviam empreendi-
Somente aos poucos, e com dificulda- mentos úteis, mas levavam embora todos os
des, o país se consolidou, mas desde a segun- lucros, e o voto de censura a uma classe do-
da parte do século XIX, ele prosperou com o minante que sustentava modas estrangeiras,
desenvolvimento de suas terras, em grande principalmente francesas, e passava metade
parte por imigrantes europeus. O governo de seu tempo em Paris. Outro objetivo era
estava nas mãos de políticos conservadores transformar a Argentina em uma potência
e moderadamente radicais de classe alta, que cuja voz pudesse ser ouvida em assuntos in-
competiam pelo poder e esporadicamente ternacionais. E, terceiro, os novos homens,
permitiam alguma medida de democracia, incluindo Perón, queriam justiça social no
principalmente entre 1916 e 1930. A popu- país, o que para ele significava melhor dis-
lação do país, sua agricultura e suas ferrovias tribuição de riqueza e menos concentração
se expandiram constantemente e, com a in- de poder na capital, à custa das províncias.
trodução da refrigeração, ele tornou-se um Vários generais ocuparam a presidência
dos maiores exportadores mundiais antes nos dois anos que se seguiram. Em 1944, a
da Primeira Guerra Mundial, mas carecia de Argentina rompeu relações com a Alema-
minerais e da capacidade de desenvolver a nha e o Japão, menos por mudança de ideia
indústria junto com a agricultura e o comér- do que por uma calculada necessidade de
676 | PETER CALVOCORESSI

ficar bem com Washington no momento em Perón demitiu alguns de seus ministros que
que a guerra na Europa se aproximava do eram mais detestados pelos conservadores e
fim. No ano seguinte, a Argentina declarou trabalhou para salvaguardar sua posição or-
guerra. (Todos os países independentes das ganizando e armando os descamisados. Essa
Américas do Sul e Central e do Caribe decla- última ação fez com que o exército se vol-
raram guerra à Alemanha e seus parceiros tasse contra ele e um golpe bem-sucedido
entre 1941 e 1945. A Argentina foi o último colocou um general em seu lugar.
a fazê-lo.) Durante esse período, Perón ocu- A oligarquia cerrou fileiras para dar um
pou uma série de cargos no governo, desen- fim às políticas econômicas que estavam pre-
volveu boas relações com líderes sindicais e judicando o país e a reformas sociais que es-
uma grande popularidade com os descami- tavam prejudicando a ela. Essa classe tinha o
sados, mas conquistou o ciúme de muitos de apoio de intelectuais que, embora pudessem
seus colegas oficiais. Demitido em 1945, ele aprovar as metas sociais de Perón, desapro-
criou um novo partido político, que venceu vavam seus métodos autoritários, principal-
as eleições em 1946. Perón se tornou presi- mente a censura, para Perón, a defesa das
dente, em parte através dessa expressão da reformas sociais não incluía a liberdade de
vontade popular, mas não menos pela onda expressão. Sua queda interrompeu o movi-
de entusiasmo extraparlamentar demons- mento de reformas e levantou a questão inso-
trado pelas multidões de descamisados que lúvel sobre o que fazer quando a necessidade
invadiram a arena política. Ao longo dessa de reformas é urgente, mas as forças em favor
disputa, Perón teve a oposição aberta e acin- dela ainda não estão prontas. Os apoiadores
tosa do embaixador dos Estados Unidos. de Perón – e da vivaz Eva Duarte, com quem
Perón governou por nove anos e meio, ele se casou pouco antes de seu triunfo, em
munido de medidas legislativas e outras 1942, mas que morreu em 1952 – não desa-
que visavam, principalmente por meios pareceram. Eles representavam uma força
autoritários, transformar a Argentina em que, se não podia ser desviada para algum
um país moderno e justo. Bancos e outras outro movimento, deveria ser enfraquecida
empresas foram nacionalizados, interesses ou poder retomar o rumo peronista.
estrangeiros foram comprados com lucros Nesse meio-tempo, o exército gover-
dos tempos de guerra, os serviços públicos nava. Aposs o general Eduardo Lonardi na
e a educação do povo foram ampliados, a presidência, sucedido mais tarde pelo gene-
industrialização foi acelerada, a compra e ral Pedro Aramburu até as eleições de 1958,
venda centralizada de produtos agrícolas quando Arturo Frondizi, um político repre-
foi introduzida para aliviar os efeitos da flu- sentativo de classe média e líder da União
tuação de preços. Mas o ritmo foi demais Cívica Radical, tornou-se presidente com o
para a economia e para as classes abastadas, consentimento do exército. Os seguidores de
e Perón ofendeu muito a Igreja. Embora o Perón continuaram numerosos e os Radicais
programa tenha sido limitado nos últimos se dividiram entre fazer ou não uma aliança
anos, Perón cometeu erros demais e fez política com eles, e Frondizi optou por uma
muitos inimigos e, em 1955, a marinha e a aliança através da qual esperava seduzir os
força aérea, com a Igreja em segundo plano, peronistas e atraí-los ao seu partido. Essa
tentaram bombardeá-lo para que deixasse aposta falhou. A persistência do sentimen-
a presidência. O exército permaneceu leal to peronista se manifestou nas eleições de
a ele durante o golpe fracassado e não se 1960 quando, com os peronistas impedidos
sentiu obrigado a substituí-lo depois disso. de apresentar candidatos próprios, um mi-
POLÍTICA MUNDIAL | 677

lhão de eleitores se abstiveram. Em 1962, os nos das províncias e o controle de ambas as


peronistas puderam votar de novo. Oficiais casas do parlamento. Mas Cámpora não foi
das três armas, irritados pelo erro de cálcu- capaz de controlar a violência e os seques-
lo de Frondizi, descartaram-no e chegaram tros. Perón reapareceu, Cámpora renunciou,
à conclusão, entre eles mesmos, de que a a Frente indicou Perón e sua terceira esposa
primeira questão de governo era continuar para a presidência e a vice-presidência e eles
a exclusão de Perón (exilado na Espanha) receberam 61,8% dos votos. Perón introdu-
e dos seus. A marinha, os opositores mais ziu pesados impostos, principalmente sobre
duros de Perón, insistiam em simplesmente os ricos, mas também – no caso do Imposto
não realizar eleições e tinham o apoio de um sobre Valor Agregado de 16% – sobre ou-
segmento de oficiais do exército conhecidos tras classes. Ele morreu em 1974, deixan-
como gorilas. Outros oficiais, apoiados pela do sua esposa para enfrentar os problemas
força aérea, preferiram o sistema de fazer as da inflação e da ordem pública, diante dos
eleições, como exigia a Constituição, mas quais ela não teve mais sucesso do que seu
limitando os direitos dos peronistas. Houve antecessor. Ela e seu governo foram derru-
conflitos e o segundo grupo venceu. bados, em 1976, pelo exército, que colocou
Foram realizadas novas eleições e o setor o general Jorge Rafael Videla em seu lugar,
moderado do exército fez de Arturo Illía pre- mas não conseguiu pensar em nada mais útil
sidente. As forças armadas, tendo se recusa- para fazer do que aprisionar e matar seus
do a aceitar o veredicto eleitoral de 1962 e críticos em nome do anticomunismo. Mui-
não encontrando uma forma constitucional tos oficiais do exército queriam alguma de-
de excluir Perón, recorreram a manobras in- mocracia, mas não o tipo de líder – ou seja,
constitucionais que expuseram ainda mais as Perón – que a democracia promovia. O re-
divisões em suas próprias fileiras. Em 1966, gime militar, que teve continuidade com as
depuseram Illía e o substituíram por Juan presidências dos generais Eduardo Viola e
Onganía; em 1970, depuseram Onganía e o Leopoldo Galtieri, durou até 1982, quando
substituíram por Roberto Levingston, que, acabou em função do humilhante resultado
por sua vez, foi deposto em 1971 para dar lu- da Guerra das Malvinas (Falklands). Sob sua
gar ao general Alejandro Lanusse. Nenhum égide e por ação de seus agentes, cerca de 30
desses governos conseguiu controlar a in- mil argentinos foram torturados e mortos,
flação nem manter a ordem. Cada vez mais, muitos deles ao serem jogados vivos de avi-
a desordem assumia a forma de sequestros ões ao mar. A inflação passou dos 250%, a
para publicidade e resgates – por exemplo, a dívida externa aumentou seis vezes, a produ-
captura e assassinato, por um grupo trotskis- ção e a indústria desabaram. Agarrando-se a
ta, do diretor-geral da Fiat na Argentina. suas últimas chances, Galtieri tentou redimir
Em 1972, Perón, agora com 77 anos, esse histórico capturando as Ilhas Falkland
voltou entre especulação e apreensão. Sua no 150º aniversários de sua ocupação pelos
chegada se deu sem maiores comoções e sua britânicos e assim começou uma guerra para
estada foi curta. Ele apoiou a candidatura a qual a Argentina estava despreparada mili-
de Hector Cámpora na eleição presidencial tar, econômica e psicologicamente.
que se aproximava e voltou à Espanha de- A propriedade das Falklands/Malvi-
pois de algumas semanas. Cámpora venceu nas há muito estava em disputa. As ilhas
a eleição em 1973, com 49,6% dos votos e foram descobertas por John Davis no final
seu partido, a Frente Justicialista, o nome do século XVIII. Os franceses colonizaram
do peronismo – conquistou 20 de 22 gover- a Falkland Oriental em 1764 e os ingleses, a
678 | PETER CALVOCORESSI

Ocidental em 1765. Os espanhóis compra- no mês seguinte, um grupo de comercian-


ram a primeira e tomaram a segunda alguns tes argentinos de ferro velho foi mandado
anos depois, mas a seguir a cederam aos bri- à Geórgia do Sul sob proteção naval para
tânicos, que prontamente a abandonaram. desmantelar uma estação britânica aban-
Posteriormente, os espanhóis abandonaram donada. Essa experiência não estava des-
Falkland Oriental. Em 1829, uma nova colô- vinculada da muito divulgada retirada no
nia foi estabelecida em nome das Províncias ano anterior, em função de custos e contra
Unidas do Rio da Prata, sucessoras em título o conselho do ministério do exterior, do na-
do Império Espanhol na América do Sul e vio de pesquisas Endurance – um símbolo
predecessoras da República Argentina. da presença britânica cuja remoção levou os
A Grã-Bretanha registrou um protes- argentinos a acreditar que a posição da Grã-
to verbal. Ela tinha estabelecido, em 1820, -Bretanha em todo o Pacífico SSul não era
uma presença simbólica que foi destruída, mais muito valorizada em Londres. Duas
em 1833, pelos Estados Unidos, quando os semanas depois da chegada dos comercian-
britânicos voltaram, expulsaram os poucos tes de ferro velho na Geórgia do Sul, a Ar-
argentinos que haviam sobrado e estabele- gentina tomou as Falklands, sem ser detida
ceram uma colônia incluindo as Falklands por tentativas de último minuto dos Esta-
Oriental e Ocidental. A Argentina conti- dos Unidos para impedir esse ato de agres-
nuou questionando o título britânico – que são claramente ilegal. O presidente Galtieri
a Grã-Bretanha muitas vezes propôs sub- conseguiu fazer uma visita triunfante a Port
meter ao Tribunal de Justiça Internacional, Stanley, a capital das ilhas.
uma oferta sempre rejeitada. A Argentina A incapacidade do governo britânico de
também reivindicava soberania sobre a avaliar as intenções argentinas até que fosse
Geórgia do Sul, as Orkneys do Sul e outros tarde demais o deixou com poucas opções: a
territórios no Pacífico Sul e na Antártida, o negociação a partir de uma posição de fra-
que entrava em conflito com reivindicações queza ou a guerra. Ostensivamente, dizia
chilenas e britânicas, sendo que as mais re- estar usando a força para garantir a negocia-
centes datavam do início do século XX. ção, mas quando foi montada e despachada
Em 1979, o ministério do exterior britâ- uma armada naval, eram poucas as pers-
nico, incômodo, mas não com urgência em pectivas de qualquer coisa além da guerra:
relação aos perigos, elaborou um plano para missões de paz lutaram contra uma limita-
abrir mão do poder sobre as Falklands e ção do tempo e contra teimosias nacionais
arrendá-las de novo. Esse plano foi apresen- muito enraizadas. O governo britânico pode
tado a um comitê do gabinete que lhe deu ter cogitado a ideia de uma negociação em
pouca atenção, embora o 150º aniversário que – desde que a força invasora argentina
da reocupação britânica fosse uma provável fosse retirada voluntariamente – a Grã-Bre-
fonte de problemas: não se cogitava uma in- tanha reintroduziria seu controle por um
vasão total, mesmo depois de a promoção de período curto e depois transferiria a sobe-
Galtieri à presidência, no final de 1981, ser rania à argentina. Mas a decisão predomi-
seguida de rumores e atos suspeitos. Depois nante na Grã-Bretanha não foi de negociar
de conversações ministeriais bilaterais em com o inimigo, mas vencê-lo e, nesse clima,
Nova York, em nível relativamente baixo, a negociação – e todos os negociadores de
em 1982, o governo argentino emitiu uma terceiros – eram simples obstáculos. A expe-
brusca declaração que as pálidas conclusões dição foi enviada à ação, mas com proteção
das conversações não pareciam justificar, e, precária – sua cobertura aérea era inferior
POLÍTICA MUNDIAL | 679

à dada a qualquer esquadrão britânico des- zões profissionais, mas também políticas (a
de que o Prince of Wales e o Repulse foram pressão econômica estava ameaçando mais
afundados pelos japoneses em 1941. a marinha do que a outras armas), os chefes
A Grã-Bretanha teve uma vitória re- navais queriam demonstrar seu valor espe-
tumbante, mas por pouco, e não sem muitas cial à nação. Com as propostas de um ataque
perdas. Recuperou as Falklands (Malvinas), à Geórgia do Sul rejeitadas, a marinha que-
causou a queda da odiada ditadura e obri- ria um troféu, na forma de um grande navio
gou a Grã-Bretanha a defender as ilhas por de guerra argentino, de preferência o porta-
um futuro indefinido e a um custo muito -aviões 25 de Mayo ou, como alternativa, o
maior. Belgrano. O fracasso da primeira etapa da
No transcorrer dessa vitória, um episó- diplomacia de Haig limpou o caminho e, em
dio se destacou: a afundamento do cruza- 2 de maio, o gabinete de guerra, em uma es-
dor argentino General Belgrano no dia 2 de tranha reunião realizada às pressas no retiro
maio. A perda de vidas (368 mortos), as cir- rural da primeira-ministra em Chequers,
cunstâncias em que a ação foi autorizada, a mudou as regras de engajamento defini-
suspeita, na Grã-Bretanha, de que o gabine- das antes e autorizou um ataque a qualquer
te de guerra constituído especialmente para navio. Segundo as regras predominantes, a
isso não exerceu o devido controle das ope- Grã-Bretanha avisou que atacaria e afunda-
rações navais, a alegação, mais uma vez, na ria qualquer navio argentino que estivesse a
Grã-Bretanha, de que o torpedeamento do 12 milhas das Falklands. No dia 2 de maio,
Belgrano fez parte da determinação de tor- essa regra foi alterada para permitir a ação
pedear as negociações de paz que estavam em qualquer lugar fora das águas territoriais
em curso – todos esses fatores causaram argentinas, embora, assim como a definição
muita agitação na Grã-Bretanha. As duas da zona de exclusão, a nova regra não tenha
últimas acusações pareciam incompatíveis e sido divulgada até 7 de maio.
a polêmica que se seguiu era de pouco inte- O afundamento de um barco inimigo
resse fora do país. em guerra não costuma ser um evento que
As tentativas de manter a paz enquan- cause surpresa, mas o afundamento do Bel-
to a força britânica navegava na direção grano foi polêmico por duas razões: primei-
sul consistiram, em primeiro lugar, em um ro, seria desnecessário e, segundo, destruiu
pouco de diplomacia frenética por parte do a segunda das duas tentativas de preservar a
secretário de Estado norte-americano Ale- paz, por parte da diplomacia peruana.
xander Haig, cujo objetivo era convencer Os argumentos em defesa do afunda-
Galtieri de que a força britânica não era um mento do Belgrano se baseavam no fato de
simples blefe e recuperaria as Falklands pela que ele representava uma ameaça só por
força se não se chegasse a um acordo antes estar no mar e independentemente de sua
que ela atingisse as ilhas. Essa tentativa fra- posição ou rumo. Os argumentos contrá-
cassou em 29 de abril, com duas principais rios diziam que se sabia que o Belgrano não
consequências: os Estados Unidos, que não estava se aproximando da frota britânica –
tinham condenado a agressão argentina como o secretário de defesa e o primeiro-
como exigia a carta da ONU, abandonaram -ministro disseram à Câmara dos Comuns e
a neutralidade em favor da Grã-Bretanha, e, este repetiu um ano depois – e tinha deixa-
segundo, o gabinete de guerra em Londres do de representar uma ameaça.
reduziu sua oposição às exigências da Mari- (Em uma estranha mudança de postura,
nha Real para uma ação mais hostil. Por ra- sete meses mais tarde, o chefe do Estado-
680 | PETER CALVOCORESSI

-Maior da defesa disse que a única ameaça foi restaurado após um curto intervalo. Na
vinha do 25 de Mayo.) Por uma sequência Argentina, governo civil significava po-
de declarações contraditórias e, por ve- pulismo, mas sem liberalismo e com uma
zes, falsas, os ministros britânicos cavavam dose de corrupção como instrumento acei-
arapucas para si mesmos, revelando uma tável de governo. As eleições foram venci-
ignorância desconcertante sobre detalhes das pela União Cívica Radical, cujo líder,
importantes e alguma lentidão na correção Raúl Alfonsín, tornou-se presidente com
de erros depois de os fatos verdadeiros se as tarefas de reparar a economia, investigar
tornarem disponíveis. A vitória os absolveu o desaparecimento de milhares de vítimas
de terem de pagar por esses pecados. do regime militar, manter os militares em
O segundo ponto de controvérsia foi a ordem e retomar as relações com a Grã-
conexão, se havia, entre o afundamento do -Bretanha sem abandonar a reivindicação
Belgrano e as propostas de paz que estavam do país em relação às Falklands.
sendo cogitadas pelo secretário-geral da A seu favor na política, Alfonsín tinha
ONU e o governo do Peru. Haig escreveu a decência, mas pouco mais. Não gozava da
posteriormente que tanto ele quanto o presi- confiança dos militares, cujo estilo ufanista
dente peruano Belaúnde receberam dos be- sobreviveu ao fiasco das Falklands, nem da
ligerantes aprovação geral a essas propostas Igreja, nem dos sindicatos e, com o tempo,
antes do afundamento do Belgrano e estavam nem da população, que o tinha aclamado,
trabalhando nos detalhes, todos conhecidos mas deu-lhe as costas quando os preços co-
dos membros do governo britânico, o qual meçaram a dobrar a cada mês. Ele sobrevi-
negou essa afirmação. O ministro do exte- veu a motins militares dispersos ao custo de
rior britânico Francis Pym foi a Washington ceder às demandas para que abandonasse
em 1º de maio e relatou a Londres o estado julgamentos de oficiais acusados de mons-
das negociações no final do dia 2, depois do truosidades contra civis durante o regime
afundamento. Que havia negociações em militar. Nas eleições intermediárias, um
andamento era do conhecimento de todos. Partido Justicialista peronista ressurgido
Que o afundamento do Belgrano pôs fim a conquistou 16 de 20 governos provinciais e
elas é claro o suficiente. Que o gabinete de na eleição presidencial de 1989, o candida-
guerra instigou o afundamento como forma to dos peronistas, Carlos Menem, que havia
de abortá-las é uma imputação que não se sido peronista no passado e era filho de um
sustenta em nenhuma evidência. Thatcher, imigrante muçulmano vindo da Síria, con-
determinada a conduzir batalhas em lugar de quistou com facilidade o voto popular. Du-
política, era hostil à iniciativa da ONU/Peru, rante sua campanha, Menem elogiou Fidel
mas optou por deixar que Galtieri a bloque- Castro e Stroessner, empregou o conhecido
asse, o que ele fez. Galtieri avaliou mal o de- estilo retórico peronista, fez promessas ex-
licado equilíbrio em Washington entre sim- travagantes aos pobres, mas parecia não ter
patizantes da Argentina e da Grã-Bretanha, nenhuma ideia de como cumpri-las, e era
e também subestimou a importância crucial firme em sua determinação de recuperar as
da inteligência naval que Thatcher recebeu de Falklands.
Reagan e de Pinochet no Chile (que já estava O estado econômico do país no dia se-
envolvido em hostilidades com a Argentina guinte à eleição era tão alarmente que Al-
em função do Canal de Beagle). fonsín foi convencido a renunciar para que
Três dias depois da vitória final britâ- Menem pudesse ser empossado em junho
nica, Galtieri foi deposto. O governo civil em vez de em novembro. Ele rapidamente
POLÍTICA MUNDIAL | 681

autorizou conversações exploratórias para área pela metade, e em outra, na proporção


a retomada de relações diplomáticas e co- de 3:1 em favor da Grã-Bretanha. Em rela-
merciais com a Grã-Bretanha (que acon- ção à soberania, ambos se expressaram de
teceram lentamente, em função da falta de forma decisiva, aberta e em sentidos dia-
entusiasmo britânico) e embarcou em um metralmente opostos.
programa econômico semelhante ao do Em 1997, Menem perdeu o contro-
presidente Collor no Brasil. Ele abando- le do Congresso. A retomada da indústria,
nou controles sobre preços e salários – os da agricultura e das exportações foi anu-
primeiros subiram muito e os segundos lada pelo desemprego em 20%, escândalos
foram cortados pela metade. As empresas financeiros, acusações de favorecimento e
e o emprego desabaram, e o mesmo acon- permanente obstrução de todas as tentati-
teceu com a moeda. Os varejistas passaram vas de investigar o desaparecimento de 30
a colocar preços em dólares em suas mer- mil pessoas durante os anos da ditadura
cadorias, cujo valor quintuplicou em dois militar. Menem não foi capaz de garantir
meses*. A hiperinflação foi reduzida a uma outra emenda à Constituição, que lhe per-
inflação de cerca de 60% ao ano, mas vol- mitiria concorrer a um terceiro mandato e,
tou em dois meses. Menem tentou vender em 1999, o partido peronista foi gravemente
empresas estatais, mas tinha dificuldades derrotado. O próprio Menem, nesta época,
de encontrar compradores. Seu governo já tinha passado do populismo peronista ao
não conseguia levantar dinheiro emitindo dogmatismo do livre mercado que, embo-
títulos, já que ninguém os comprava. Ele ra agradasse a alguns interesses especiais,
reduziu as forças armadas em um terço e reduziu metade da população à pobreza
perdoou oficiais superiores por seus cri- desesperada, começou a assustar a classe
mes contra os direitos humanos. Em 1993, média e deixou a Argentina com uma dívida
as eleições intermediárias para metade das externa de 70 bilhões nos primeiros anos do
cadeiras na câmara baixa deixaram os pe- novo século.
ronistas sem maioria, mas Menem garantiu Desde a virada do século, a Argentina
uma emenda à Constituição que lhe permi- esteve envolvida em uma disputa com o
tiria concorrer a um segundo mandato su- FMI sobre até onde deveria aceitar a crítica
cessivo em 1994, como o homem que tinha da organização a suas políticas para garan-
acabado com a inflação, tornado os ricos tir créditos internacionais. O país perdeu
mais ricos sem empobrecer mais os pobres, grande parte da capacidade de tomar em-
e demonstrado uma capacidade impertur- préstimos e foi obrigado a desvalorizar o
bável de alterar sua política para se ajustar peso em 40% e depois deixar que flutuasse**.
às circunstâncias no prazo mais curto. As O crescimento econômico se recuperou em
relações com a Grã-Bretanha deram uma 2003/2004 e passou dos 8%, mas isso não
virada para melhor com um acordo sobre era visível aos pobres. Em 2005, a Argentina
o petróleo, que se acreditava ser abundante aceitou pagar suas altas dívidas com a ONU
em torno das Falklands (embora tenha se até o final do ano, mas as medidas necessá-
revelado menos abundante do que as afir- rias inflamaram a opinião pública.
mações). Os dois governos concordaram Nestor Kirchner, uma vassoura nova e
em dividir os lucros da exploração em uma desconhecida, foi eleito presidente em 2003

* N. de R.T.: Menem prometeu a paridade entre o dólar e o peso. ** N. de R.T.: Em função do colapso financeiro de 2001.
682 | PETER CALVOCORESSI

e sucedido dois anos depois por sua espo- ção. Assim, ele dividiu a direita de forma
sa. Seu controle sobre o governo não era tão que, em 1970, seu partido chegou em último
certo, à medida que persistiam os protestos nas urnas e Allende derrotou por pouco o
contra a pobreza e a corrupção. conservador Alessandri.
A história do Chile no século XIX foi A coalizão de Allende tinha, em termos
de progresso material só interrompido amplos, um programa claro, mas não tinha
pela guerra civil em 1891, e se baseou em maioria popular nem parlamentar, e, em
ricos recursos minerais e em guerras bem- pouco tempo, os seis partidos que a forma-
-sucedidas contra o Peru e a Bolívia. No vam se tornaram uma equipe de difícil con-
século XX, o país teve sua parcela de insta- vivência que só contava com o apoio de algu-
bilidade política e inflação, com as dificul- mas das principais figuras militares do país.
dades sendo acentuadas pela concorrência A meta geral da coalizão era criar um Estado
dos nitratos artificiais. socialista sobre uma base democrática esta-
A oligarquia proprietária de terras per- belecida. Os meios seriam o controle estatal
deu o domínio do poder depois da revolta sobre centros de poder capitalista nacionais
de 1891, e o Chile avançou rumo a uma e estrangeiros, ampla nacionalização, refor-
ordem mais democrática. Em 1938, as elei- ma agrária que levasse a uma maior produti-
ções deram o poder a uma frente popular, vidade agrícola, redistribuição de renda por
que incluía comunistas e não foi impedi- meio de reformas fiscais, pleno emprego e
da de tomar posse pelas forças armadas. uma aceleração dos programas educacionais
Seguiu-se um período de governo civil e sociais de Frei. Essas reformas, principal-
ordeiro, mais conservador do que radical. mente a redistribuição de renda para criar
Em 1964, duas forças competiram pela novo poder de compra e a contenção do
sucessão do presidente Jorge Alessandri: fluxo de saída de lucros aos Estados Unidos
uma aliança de centro-esquerda liderada e outros países, geraria o financiamento ne-
por Salvador Allende e um partido demo- cessário – um cálculo otimista.
crata-cristão liderado por Eduardo Frei Entre os principais partidos do gover-
Montalvo, que obteve os votos da extrema no, o mais antigo era o Partido Radical, um
esquerda e o suficiente do centro para ter típico partido anticlerical e progressista do
maioria absoluta e implantar um progra- século XIX, que surgiu das classes abasta-
ma de anticomunismo misturado com re- das (proprietários de terra e de minas) e
formas. estava passando pelo difícil debate sobre se
No final do mandato, Frei tinha a seu era marxista ou não. O Partido Comunista
favor um considerável avanço na educa- Chileno era o maior e mais bem organiza-
ção, uma queda razoável no analfabetismo, do partido comunista na América do Sul e
algum desenvolvimento industrial, novas estava predisposto à cooperação com ou-
moradias e a introdução de impostos pro- tros partidos.
gressivos. Mas a inflação não foi controlada, O Partido Socialista de Allende come-
os salários permaneceram baixos, o núme- çou como um grupo distinto de intelectuais
ro de camponeses sem-terra, elevado – tão que atraía votos de pequenos empresários e
alto que eles começaram a ocupar terras, de professores, além de outros profissionais,
das quais muitos foram expulsos à força e mas estava dividido com relação à legitimi-
alguns, mortos – e Frei perdeu parte impor- dade do uso da força. Allende tinha alguns
tante de seu eleitorado por conta das refor- talentos de aglutinador, mas depois de um
mas agrárias, que ampliaram a expropria- começo promissor, ele lhe faltou. Em seu
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primeiro ano, o preço do cobre aumentou apavorante. Os religiosos ficaram descon-


temporariamente. Os salários subiram en- fortáveis com sua associação com um regi-
quanto os preços continuaram estáveis tem- me pavoroso; chefes de política civil e mili-
porariamente, a inflação foi contida, mais tar se sentiam incômodos de ter que manter
uma vez, temporariamente. A expropriação a ordem contra indignação e raiva crescen-
das minas de cobre norte-americanas e dos tes; os empresários começaram a se pergun-
bancos nacionais ganhou popularidade, as- tar se não estariam melhores sem Pinochet
sim como a reforma agrária, até atingir pro- do que com ele. A ameaça a Pinochet veio
prietários médios, além dos grandes. Em desses grupos, que queriam o Chile de Pi-
1972, contudo, as dificuldades econômicas nochet sem Pinochet.
causaram conflitos no governo entre os que Em 1988, Pinochet não conseguiu obter
queriam avançar mais rápido e os que pe- a renovação de seu mandato além do ano
diam um pé no freio. Allende tentou, mas seguinte. Cerca de 20 partidos entraram nas
não conseguiu, obter o apoio dos democra- listas nas eleições seguintes, mas a escolha
ta-cristãos. Ele convenceu representantes de fato estava entre voltar a Frei ou voltar
importantes a participarem de seu gabine- a Alessandri. O centro e a esquerda se uni-
te, mas sem harmonizá-los o suficiente. O ram em torno de Patricio Aylwin Azócar e
cardeal arcebispo de Santiago o apoiava, derrotaram uma direita dividida: terminara
mas não a maioria dos religiosos impor- o longo reinado de Pinochet, o mais longo
tantes. Em 1973, quando havia passado da na história chilena. (Ele permaneceu como
metade de seu mandato, suas dificuldades comandante na chefia das forças armadas
econômicas se tornaram graves, com uma até 1988, quando se tornou senador vitalí-
grande recaída da inflação e escassez de ali- cio com imunidade em relação a processos
mentos. Ele afastou muitos com seu estilo no Chile ligados a delitos durante sua pre-
de vida fora de sintonia, não apenas com o sidência. Sobre tentativas de processá-lo em
socialismo, mas também com um costume outros lugares). Aylwin herdou uma dívida
observado por Frei, Alessandri e outros pre- externa de 16 milhões, um declínio no pre-
sidentes que haviam seguido uma tradição ço do cobre que era responsável por metade
chilena de viver com a mesma simplicidade das receitas do Chile, e descontentamento
quando estavam no cargo e quando não es- entre a população, que assistiu a distância
tavam. O parlamento se recusou a aprovar entre pobres e ricos ampliar ao longo dos
aumento de impostos ou fundos para subsí- 16 anos de Pinochet no poder e os salários
dios ou assistência social, e a alternativa do perderem metade de seu valor. Mas Pino-
governo – imprimir dinheiro – piorava as chet, um ardente modernizador, diferente
coisas. Inquietações na marinha e no exér- do xá do Irã, também deixou a seu sucessor
cito culminaram em um golpe no qual o um legado econômico promissor e Aylwin
general Augusto Pinochet Ugarte tomou o conseguiu conter o desemprego em níveis
poder com ajuda dos Estados Unidos. Al- politicamente toleráveis, enquanto obtinha
lende cometeu suicídio. Pinochet consoli- uma taxa de crescimento anual em torno de
dou seu sucesso em um referendo de 1980, 5 a 7%.
que lhe deu a presidência por mais oito anos Entretanto, a atitude do exército conti-
a partir de 1981. Seu regime restaurou a or- nuou ambígua e o deslocamento em dire-
dem econômica revertendo as medidas de ção às cidades indicava a estabilidade con-
Allende, além de conquistar para o Chile tinuada. Nas eleições de 1993, o filho de
ignomínia internacional por sua crueldade Frei derrotou Alessandri pela sucessão de
684 | PETER CALVOCORESSI

Aylwin e formou uma coalizão de quatro Peru e Bolívia (anteriormente chamada de


partidos, a Concertación Democrática. Um Alto Peru) também possuíam considerável
pouco sem brilho, em 2000, e com conflitos riqueza mineral. A Bolívia perdeu suas re-
internos, perdeu eleitores descontentes para giões costeiras para o Chile no século XIX.
a oposição liderada por Joaquín Lavín, mas Na Venezuela, o establishment gover-
conseguiu colocar Ricardo Lagos na presi- nante foi destituído, em 1945, por um gol-
dência, o primeiro presidente socialista des- pe dentro de si mesmo: uma aliança de ofi-
de Allende. Em 2006, Michelle Bachelet Je- ciais do exército frustrados pela estagnação
ria, também socialista, tornou-se a primeira profissional de sua classe com a levemente
mulher a presidir o país. radical Acción Democrática, liderada por
Um elemento que Aylwin não herdou Rómulo Betancourt. Seus slogans eram
do regime de Pinochet foi a antiga disputa modernização e transformação. Durou três
do Chile com a Argentina no extremo sul anos e realizou alguma reforma agrária,
do continente americano, onde o Canal de mas suas políticas educacionais ofendiam
Beagle vai do Oceano Atlântico ao Pacífico. à Igreja, que considerava a educação como
A questão era onde termina um oceano e uma reserva eclesiástica e estava dividida
começa o outro. A disputa se dava em re- em relação à política econômica: seus mem-
lação às ilhas situadas no extremo leste, ou bros mais cautelosos preferiam modernizar
atlântico, do canal. Em 1977, uma sentença a agricultura em vez de incentivar indústrias
arbitral deu essas ilhas ao Chile, mas a Ar- que criariam um proletariado urbano poli-
gentina se recusou a aceitar e realizou de- ticamente significativo. Ele foi derrubado,
monstrações navais e aéreas, às quais o Chi- em 1948, por um contragolpe liderado pelo
le respondeu da mesma forma. Em 1979, os general Carlos Delgado Chalbaud, que deu
dois lados concordaram em não pressionar início a uma ditadura militar que durou 10
por suas reivindicações por meio da força e anos, proibiu a existência de partidos políti-
aceitar a mediação do Vaticano. Em 1980, o cos e sindicatos, suprimiu a imprensa livre e
Chile, mais uma vez, enviou forças armadas patrocinou programas de obras grandiosas
à área em disputa. O conflito foi resolvido enquanto deixava aumentar a distância en-
em 1984, em grande parte a favor do Chile. tre pobres e ricos. O mais eficaz dos ditado-
Os três principais países da América res desse período foi Marcos Perez Jimenez
do Sul, abrangendo mais da metade do sul (1952-1958), que se beneficiou de aumento
e do leste do subcontinente, deixavam espa- nas receitas decorrentes do petróleo, mas
ço para vários outros sucessores do Império não conseguiu enfrentar a recessão no final
Espanhol (aos quais se juntou, em 1966, o dos anos de 1950.
novo Estado da Guiana – ver a Nota no fi- Uma revolta militar fracassada foi se-
nal desta Parte*). No noroeste, onde Bolívar guida de greves, combates, a fuga do presi-
tivera esperanças de criar uma única grande dente, um regime provisório sob o comando
Colômbia, resultaram três países: a Colôm- do almirante Wolfgang Llarazabal e eleições
bia e suas duas ramificações, a Venezuela e que levaram de volta ao poder a Acción
Democrática e Betancourt. Seguiu-se um
o Equador. A Colômbia e a Venezuela pos-
período de governo civil com Betancourt e
suíam riqueza excepcional em duas formas
cinco sucessores, alternadamente da Acción
muito diferentes: cocaína e petróleo. Ao sul,
Democrática e seu principal rival, o Partido
Social-Cristão (Copei), o equivalente vene-
* N. de R.T.: E em 1975 o do Suriname. zuelano da Democracia Cristã. Todos esses
POLÍTICA MUNDIAL | 685

presidentes foram eleitos pacificamente e tivessem à sua disposição receitas considerá-


cumpriram mandatos de cinco anos. Esse veis do petróleo, ferro e outros recursos na-
regime equilibrado foi interrompido quan- turais, mantivessem a boa vontade do exér-
do Perez voltou ao poder, mas o governo cito e – ainda que por vezes de má vontade
autocrático retornou sob o manto da demo- – da comunidade empresarial, e chegassem
cracia, envolveu-se em corrupção, sofreu a um compromisso com a Igreja em relação
impeachment e foi forçado a renunciar em à educação. Entretanto, geraram transforma-
desgraça. Depois de duas presidências inte- ções sociais decepcionantemente pequenas,
rinas, o ex-presidente Rafael Caldera, que pouco fizeram pelos trabalhadores rurais,
tinha rompido com seu partido, o Copei, criaram novos empregos na indústria e no
e formado um novo, mudou a tradição ao setor de serviços que iam majoritariamen-
derrotar, em 1993, candidatos da Copei e te para estrangeiros com formação e foram
da Acción Democrática. Cinco anos depois, vítimas da tradicional sequência de cres-
esses partidos uniram forças para derrotar cimento e retração característica de países
o coronel Hugo Chávez Frias, que esteve na cujos destinos estavam vinculados ao preço
cadeia depois de um golpe malsucedido em internacional do petróleo. O petróleo foi na-
1992, lançou um segundo golpe fracassado a cionalizado – alguns anos antes do final das
partir da prisão em 1994, fez campanha, em concessões a empresas estrangeiras – mas
1998, com um misto de oratória populista e os economistas estavam divididos sobre
de direita e venceu. Os antigos partidos es- usar a riqueza petrolífera para diversificar a
tavam perdendo o crédito. Chávez era uma economia ou investir ainda mais no petró-
alternativa popular, mas cuja habilidade de leo e em petroquímicos. Apesar de taxas de
conter o desemprego, a inflação e a corrup- crescimento de 10-15%, criaram-se enormes
ção era desconhecida. Ele seguiu o exemplo dívidas externas e foram fundadas grandes
de Fujimori no Peru ao declarar princípios empresas que dependiam, em função de seu
liberais e democráticos, e convocou, em perfil, de algo sobre o qual a Venezuela não
nome deles, uma Assembleia Nacional para tinha nenhum controle. Quando o preço
revisar a Constituição. Ele venceu quase do petróleo caía, os preços dentro do país
todas as cadeiras, garantiu uma lei que lhe disparavam em meio a reclamações de in-
permitia ignorar o parlamento, obteve con- competência nas empresas nacionalizadas,
trole sobre o Tribunal Supremo demitindo desperdício e corrupção nas mais elevadas
alguns de seus juízes, fez ingerências de esferas, negligência em relação à educação e
controle sobre governos provinciais e optou na saúde e pobreza persistente.
por conflitos com a Colômbia (ao estabe- A década de 1990 trouxe grave desem-
lecer conversações com os insurgentes das prego, inflação beirando os 40%, insatis-
FARC – ver abaixo) e a Guiana (retomando fação popular que chegava quase a uma
reivindicações venezuelanas em relação a rebelião, uma onda de criminalidade e o
território de fronteiras disputado). Seu arro- populismo de Chávez, que, em muitos as-
jo natural dependia do preço do petróleo, o pectos, lembrava o de Perón na Argentina,
qual, quando alto, possibilitava que ele sub- meio século antes.
sidiasse políticos simpáticos em outros paí- Eleito presidente em 2002, Chávez foi
ses, mas, em queda, ameaçava a estabilidade derrubado pelo exército com incentivo dos
da própria Venezuela. Estados Unidos, mas recuperou sua posição
Os principais governos civis do país em alguns dias. Em 2003, expulsou os asses-
garantiram estabilidade política desde que sores militares norte-americanos que foram
686 | PETER CALVOCORESSI

trazidos à Venezuela por seus antecessores classes empresariais e a Igreja, mas também
e suspendeu discussões regulares com os os estudantes normalmente de esquerda, e
Estados Unidos, que vinham acontecendo era acusado de autoritarismo – um novo
há meio século. Seu principal problema era caudilho, embora diferente dos oficiais do
como driblar o establishment político sem exército e populistas de uma geração ante-
violar a Constituição nem causar enfrenta- rior. Em 2007, ele não conseguiu implantar
mentos civis violentos. Ele atingiu seu obje- as mudanças constitucionais por referendo,
tivo, pelo menos temporariamente, vencen- que teriam consolidado sua posição políti-
do a eleição à presidência como preliminar ca, mas sua aceitação imediata do resultado
à mudança da Constituição, o que seria feito anulou em muito as acusações de que ele vi-
conquistando a maioria parlamentar ou – se sava ter poderes ditatoriais. No entanto, ele
isso não fosse possível – convocando uma continuou a alarmar os inimigos que o acu-
Assembleia Constituinte para elaborar uma savam de incentivar a revolução na América
Constituição revisada a ser submetida a um Latina e desperdiçar a riqueza da Venezuela
referendo. Independentemente de quais fos- em empreendimentos políticos quixotescos.
sem os detalhes jurídicos, considerava-se Nas questões externas, sucessivos presiden-
que esse programa fazia sentido político, e tes tentaram em vão resolver as disputas
ele foi seguido na Bolívia por Evo Morales, de fronteira com a Colômbia e a Guiana e
eleito presidente em 2006, e no Equador, por depois as subestimaram. Betancourt e seus
Rafael Correa, depois de sua eleição para primeiros sucessores concentraram-se nas
presidente em 2007. Em todos esses casos, alianças com regimes democráticos contra
as principais motivações foram reformas ditaduras, mas nos expansionistas e ambi-
democráticas socialistas (incluindo a con- ciosos anos de 1970, Perez, que restaurou
cessão de direitos ou poderes aos povos in- relações diplomáticas com Cuba em 1974,
dígenas locais) e a hostilidade aos Estados deu à Venezuela um papel de liderança na
Unidos. Essa tendência, junto com um cli- região sul-americana e do Caribe, e no Ter-
ma semelhante, mas mais contido, no Brasil, ceiro Mundo.
indicava uma mudança no ambiente políti- O país foi um dos fundadores da OPEP
co da América Latina, mas era vulnerável se em 1960, e aderiu à ALALC seis anos de-
não conseguisse trazer prosperidade, além pois. Por outro lado, estava se envolvendo,
de poder ao povo. Chávez, em particular, nos anos de 1990, no mundo do tráfico in-
como presidente de um país potencialmente ternacional de drogas, cujo centro estava na
rico, não poderia se dar o luxo de por em vizinha Colômbia.
risco a riqueza trazida à Venezuela por sua Antes da Segunda Guerra Mundial, a
indústria petrolífera e dependia para sobre- Colômbia, um país rico, cobrindo 1 milhão
vier, não apenas da aclamação popular, mas de metros quadrados, desfrutava de uma
também do preço e da produção de petróleo reputação de estabilidade política e progres-
e sua venda aos Estados Unidos. A riqueza so econômico comedido, baseado no café,
da Venezuela funcionava a favor e contra no cacau, em uma série de indústrias e em
ele, pois, naquele país, como em qualquer uma dívida externa administrável. A classe
lugar do mundo, a riqueza tendia a ampliar dominante estava dividida em dois partidos,
a distância entre ricos e pobres e alimen- conservadores e liberais, e compartilhava o
tar a corrupção generalizada. Enquanto poder em um sistema de revezamento até
continuava extremamente popular entre ser ameaçada por insurgentes de esquerda e
os pobres, Chávez afastava, não apenas as pela ditadura de Rojas Pinilla (1953-1958).
POLÍTICA MUNDIAL | 687

Os anos de 1950 foram uma época de violên- formado em 1965, inspirado em parte no cas-
cia feroz, la violencia; em 1949, a província trismo e, em parte, na Teologia da Libertação;
de Marquetalia, não muitos quilômetros a liderado por padres. Essas forças, financiadas
sudeste de Bogotá, declarou-se indepen- em grande parte pelo tráfico de drogas, pela
dente e foi recuperada na década de 1960, extorsão criminosa e uma forma de taxação
apenas com a ajuda dos Estados Unidos. A regular, ganharam poder suficiente para for-
revolução cubana criou esperanças de ajuda mar um Estado dentro do Estado, mas não
aos revolucionários fragilizados, mas essas suficiente para derrubar o Estado legítimo. A
esperanças eram falsas e os revolucionários partir de meados dos anos de 1980, outra for-
colombianos tiveram resultados pouco me- ça surgiu: pequenos grupos antiguerrilheiros,
lhores do que seus camaradas venezuelanos. principalmente no norte, que 10 anos depois
Nas eleições de 1974, o candidato liberal, se uniram nas Autodefesas Unidas da Co-
Julio Cesar Turbay Ayala, venceu o conser- lômbia (AUC), aliadas ao governo de forma
vador e vários candidatos à esquerda. Ele foi pouco rígida, se é que estavam, e conhecidas
sucedido por Alfonso Lopez, o primeiro pre- por cometerem massacres cruéis. A desinte-
sidente da Frente Nacional, uma aliança de gração do Estado e sua autoridade contribu-
liberais e conservadores formada para derro- íram muito para a independência e a prospe-
tar a violência e a ditadura militar. Em 1978, ridade dos cartéis de drogas que se tornaram
o conservador Belisario Betancur venceu os empreendimentos mais bem-sucedidos da
uma oposição dividida, mas em outras elei- Colômbia. Seus chefes se estabeleceram, não
ções, em 1983, viu-se reduzido a governar apenas como homens de enorme riqueza, exi-
com um parlamento hostil. De frente para o bida com ostentação, mas também como ou-
Caribe e a América Central, bem como para tro Estado dentro do Estado, ou sobreposto a
o Pacífico e a América do Sul, a Colômbia ele, nas regiões do nordeste do país, incluindo
foi atraída à política da região ao norte de as cidades de Medellín e Cali (onde governa-
seu território e se envolveu em alguma crí- vam com a ajuda de mercenários israelenses,
tica das políticas de Reagan na Nicarágua e britânicos e outros), e davam mais empregos
arredores. Por meio de acordos formais com e melhor salário do que o governo em sua
forças rebeldes, Betancur tentou dar um fim própria esfera de competência.
a guerras civis que vinham se arrastando há O império econômico desses barões das
36 anos, mas suas políticas pacíficas não ti- drogas dependia principalmente de seus
veram aprovação universal.Um ataque espe- mercados nos Estados Unidos, onde, por um
tacular ao Tribunal Supremo, em que muitas tempo, as organizações locais estavam menos
pessoas foram mortas antes de os atacantes cientes dos riscos de encher o mercado com
serem forçados a se entregar ou se matar, foi drogas venenosas do que das oportunidades
interpretado, em vários sentidos, como um de participar dos lucros para financiar as po-
último ato de desespero do movimento in- líticas norte-americanas contra a Nicarágua:
surrecional M-19, ou o recrudescimento da muitos fingiram não ver, até que o assassi-
guerra civil em escala mais brutal. nato de Carlos Galán em 1989 – o provável
A guerra civil era travada principalmente próximo presidente da Colômbia – fez com
por duas forças: as Forças Armadas Revolu- que as atenções se voltassem ao desenvol-
cionária das Colômbia (FARC), formadas em vimento da situação, não rumo à anarquia,
1945, predominantemente comunistas e um mas à tomada do Estado pelo sinistro cartel
desafio interno à ordem política estabelecida, cujo único objetivo era o dinheiro. O presi-
e o Exército de Libertação Nacional (ELN), dente Virgilio Barco Vargas prometeu uma
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ação dura e o presidente Bush prometeu dar tava se tornando irrelevante em uma guerra
muita ajuda, mas o primeiro estava relutan- civil entre as FARC e as AUC. A eleição para
te em aceitar a oferta do segundo de apoio presidente, em 2002, do relativamente jovem
militar, que não era do agrado de muitos co- Álvaro Uribe Vélez, ex-prefeito de Medellín,
lombianos. Foram feitas cerca de 12 mil pri- e sua reeleição em 2006 pareciam o presságio
sões, mas com poucos resultados. Os Esta- de um retorno à lei e à ordem em um país
dos Unidos pressionavam pela extradição de que havia se dividido em dois.
criminosos importantes, mas os magnatas Ao sul da Colômbia, as repúblicas an-
das drogas responderam com uma ameaça dinas do Equador, do Peru e da Bolívia
de matar juízes, magistrados e crianças para apresentavam as complicadas oscilações
cada operador extraditado. Como mais de 50 entre governo civil e militar e os apenas um
juízes já tinham sido assassinados, a ameaça pouco menos complicados problemas das
era plausível. Em 1987, o Tribunal Supremo alianças civil-militares.
da Colômbia invalidou o Tratado de Extra- O Peru tinha uma classe governante ex-
dição de 1979 com os Estados Unidos. Ne- traparlamentar e um mundo parlamentar de
gociar ou não com os insurgentes se tornou partidos políticos, e também tinha um setor
uma questão dominante na política colom- econômico moderno ou modernizador so-
biana. Os principais antagonistas – o gover- mado à uma economia empobrecida, distinta
no e as FARC – avaliavam que nenhum deles desse setor. Esses mundos políticos e econô-
poderia ter uma vitória completa. As FARC micos estavam divididos. A classe governan-
e o ELN se tornaram mais do que guerrilhas, te, mantida unida por uma perspectiva con-
mas, embora estivessem vencendo batalhas, servadora comum e por matrimônios, incluía
ainda eram incapazes de capturar grandes oficiais do exército e grandes proprietários de
cidades e tinham poucas perspectivas de terras, assim como banqueiros e empresários
superar o governo. O presidente Cesar Gavi- mais destacados. O exército, contudo, conti-
ria Trujillo (1990-1994) prometeu não fazer nha uma ala radical que não apoiava todos os
negociações. O presidente Ernesto Samper valores do establishment conservador. O par-
(1994-1998) foi acusado pelos Estados Uni- tido político que se destacava era a Alianza
dos de estar a serviço deles e foi repreendido Popular Revolucionaria Americana (Apra),
por seu próprio chefe de estado-maior, o ge- fundado nos anos de 1920, com um progra-
neral Harold Bedoya, por acordos traiçoei- ma quase socialista, considerado altamente
ros com esses setores. Na eleição presidencial perigoso pelos conservadores e maculado
de 1998, Bedoya teve apenas 2% dos votos, por uma disposição de recorrer à violência.
e o vencedor, Andrés Pastrana Arango não Em 1945, renunciava à violência e se desloca-
perdeu tempo para buscar um acordo com va em direção ao centro, em parte porque sua
as FARC, aceitando suas pré-condições: reti- postura nos anos de 1920 e de 1930 o conde-
rada de todas as forças do governo e da polí- nou a ser quase permanente oposição e, em
tica de uma ampla região ao sul de Bogotá e parte, para competir por votos com o menos
operações ativas do governo contra as AUC. radical Acción Popular. Esses partidos mano-
Pastrana tinha apoio de Clinton, embora bravam pelo poder um contra o outro, e tam-
grande parte da opinião parlamentar e públi- bém, com maior distância, com os detentores
ca nos Estados Unidos continuasse a rotular do poder econômico e militar, que muitas
as FARC de comunistas e terroristas estereo- vezes estavam em posições indecisas sobre
tipados, envolvidos até o pescoço no tráfico usar o poder indiretamente, através de um
de drogas, enquanto o governo legítimo es- partido político, ou diretamente, ocupando a
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presidência e outros cargos públicos. Os su- e fora delas, alarme diante da persistência
portes principais da economia eram agríco- dos levantes guerrilheiros, deslocamento
las (algodão e açúcar), mas o petróleo estava dos destituídos rumo a Lima, e rebeliões na
se tornando cada vez mais importante. Seu capital, ocupações de terra no interior. As
desenvolvimento demandava capital estran- eleições de 1963 registraram, ainda que de
geiro; na prática, norte-americano, que não forma experimental, uma nova configuração
poderia ser mais impopular. Quase metade política: com uma parte do exército queren-
da população era de índios, desfavorecidos e do apoiar transformações significativas e Be-
desprezados e, um terço, de mestiços. laúnde disposto a conquistar o apoio militar
Em 1948, um golpe militar liderado pelo a um programa progressista.
general Manuel Odria derrubou o governo As rebeliões nos anos de 1950 foram
do APRA, de José Luis Bustamante (presi- dispersas e reprimidas com facilidade. Seus
dente a partir de 1946) e forçou o líder apris- líderes estavam divididos e, como na Vene-
ta Victor Raul Haya della Torre a se refugiar zuela, os comunistas entre eles eram aves-
na embaixada colombiana, onde passou vá- sos às operações de guerrilha – nesse caso,
rios anos antes de ir para o exílio na Itália. porque o chefe guerrilheiro mais conhecido,
Depois de se manter no poder por oito anos Hugo Blanco, era trotskista e, em parte, por-
marcados pela repressão, Odria permitiu que os comunistas estavam divididos entre
eleições que precederiam a transferência de as facções russa e chinesa. Mas na década
poder a Manuel Prado, membro de uma das de 1960 a insurreição ressurgiu, tanto que,
mais importantes famílias de banqueiros de em 1965, os Estados Unidos intervieram
Lima. No entanto, um número surpreen- com uma unidade militar especial, cau-
dente de votos foi dado a Fernando Belaúnde sando muito ressentimento nos militares
Terry, arquiteto e professor, líder da Acci- peruanos. O governo de Belaúnde não con-
ón Popular, que era apresentado como uma seguiu derrotar nem apaziguar os rebeldes.
nova força entre a velha esquerda da APRA Seu programa econômico, outro fracasso,
e o complexo oligárquico-militar. Quando forçou-o a desvalorizar a moeda em 40% em
chegaram as eleições presidenciais e parla- 1967. Mais visível e definitivamente fatal foi
mentares mais uma vez, em 1962, Belaúnde sua maneira incompetente de lidar com o
concorreu contra Odria e Haya della Torre. problema do petróleo.
Nenhum dos candidatos teve uma vitória A International Petroleum Company
clara; o exército entrou em cena para blo- (IPC) era o exemplo mais destacado da im-
quear Odria e Haya della Torre, e declarou portância do capital estrangeiro para o Peru,
que as eleições tinham sido fraudulentas, e igualmente ofensiva ao orgulho do país.
sem nenhuma razão visível. Depois de um Governos anteriores tentaram obter benefí-
intervalo de governo por parte de uma junta cios da empresa sem chegar a expropriá-la
militar, as eleições foram repetidas e Belaún- (e ter de dirigi-la). Sua presença era a ques-
de foi declarado vencedor em uma disputa tão sobre a qual a extrema direita, a extre-
apertada entre a Acción Popular e a APRA. ma esquerda e o governo poderiam falar
Belaúnde não era conservador, mas do ponto em uníssono, culpando os estrangeiros pelo
de vista do exército, era um homem seguro mau desempenho econômico. A empresa se
e a opinião política dentro do exército vinha estabeleceu no Peru pouco depois da Pri-
mudando por uma série de razões: despre- meira Guerra Mundial, sob um acordo que
zo pela corrupção na elite empresarial civil, provavelmente foi feito com a ruptura da lei
desejo de modernização nas forças armadas do país, mas, um acordo que era, ainda as-
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sim claramente, entre ela e o Estado peru- capitalista (do qual o capital estrangeiro ti-
ano. A confusão jurídica resultante deu lu- nha sido expulso) com ênfase na inovação
gar a uma série de disputas com os Estados tecnológica e gerencial a serviço da indús-
Unidos, bem como com a própria empresa. tria e das exportações.
Belaúnde fez um acordo com ela sobre dis- O próprio Velasco era um nacionalista
putas pendentes, mas de forma tão secreta e hostil à penetração dos Estados Unidos no
aberta a más interpretações que sua adoção Peru, um homem de direita moderada, mas
formal pela Lei de Talara foi recebida com nascido fora da oligarquia dominante. Vá-
indignação escandalizada e foi discutida por rios de seus apoiadores no exército e civis
um conclave de generais que decidiram que eram radicais tão hostis à oligarquia quanto
Belaúnde deveria sair. Mas, desta vez, ele foi aos Estados Unidos, de forma que o regime
forçado a buscar uma coalizão com o APRA tinha uma instabilidade inata que o atingiu
e, assim feito, dividiu seu próprio partido e quando suas primeiras conquistas deram
perdeu seu apoio militar. Ele fugiu do país. lugar à divisão ideológica e foram abaladas
Os regimes que vieram depois destruíram a por dificuldades econômicas. Apesar de um
economia peruana. acordo inicialmente amplo sobre um pro-
Desta vez, o exército não buscou um grama de nacionalização (que incluiu a IPC)
parceiro civil, e decidiu sustentar toda a res- e reforma agrária, Velasco perdeu o apoio
ponsabilidade de governar. O general Juan dos principais grupos que o ajudaram a subir
Velasco Alvarado, com apoio entusiasmado ao poder e se sentiu obrigado a buscar uma
de um grupo de coronéis radicais e o apoio base popular fora do establishment político.
mais comedido de conservadores desilu- Ao se deslocar para a esquerda, ele perdeu
didos, assumiu o poder com promessas de mais do que ganhou, principalmente por-
reformas econômicas e sociais e maior efi- que a reforma agrária, embora longe de ser
ciência e integridade. No entanto, seu go- insignificante, ficou aquém das expectativas
verno passou a sofrer pressão imediata pelo e, assim, o impediu de conquistar os votos
problema da IPC, que havia herdado e, op- dos camponeses e dos estudantes. Em 1973,
tando pela expropriação completa, perdeu esses dois grupos estavam unidos em rebeli-
seu componente menos radical. Entrou em ões contra o governo, que endureceram suas
conflito com os Estados Unidos ao declarar alas de direita. Os conservadores, encoraja-
um limite de pesca de 200 milhas e atirar dos pelo golpe de Pinochet no Chile, fica-
em um barco norte-americano para aplicá- ram mais alarmados com as consequências
-lo. As reformas sociais, que supostamente econômicas da recessão mundial que, em
incluiriam a ampliação do poder político 1974, atingiu o Peru em um momento no
e do bem-estar econômico às classes mais qual o presidente ficou gravemente doente.
pobres, foi outra fonte de inquietude entre O acúmulo de dívidas externas nos primei-
radicais e os outros. Também dependia do ros anos e uma súbita deterioração do ba-
crescimento econômico, especificamente lanço de pagamentos foram combatidos
das exportações de cobre e outros minerais, com medidas desagradáveis cuja responsa-
que não corresponderam às expectativas. bilidade era atribuída à incompetência da
Os rumos do Peru, a partir de 1968, esquerda. Um golpe conservador sem derra-
foram um experimento, sob forte direcio- mamento de sangue derrubou Velasco, em
namento centralizado e militar, para intro- 1975, e promoveu o primeiro-ministro, o
duzir planejamento econômico e um nível general Francisco Morales Bermudez, à pre-
de reformas sociais dentro de um quadro sidência. Mas os militares estavam cansados
POLÍTICA MUNDIAL | 691

de enfrentar as tarefas de governo e assumir estava quando ele foi eleito presidente. Com
a culpa por seus fracassos. A volta ao go- seu próprio partido, a APRA, desacredita-
verno civil parecia conveniente e, depois de do, e seu adversário mais eminente, Belaún-
uma eleição em 1980, Belaúnde voltou ao de, sem oferecer muito, o país ansiava por
palácio presidencial do qual tinha fugido 12 um novo homem. Nas eleições, havia duas
anos antes. Mas os anos de 1980 eram uma alternativas: Mario Vargas Llosa, o conhe-
época ruim para assumir responsabilidades cido letrado que passou da esquerda para a
públicas. A inflação em alta e outros proble- indignação de direita, e Alberto Fujimori,
mas econômicos estimularam a insatisfação um empresário politicamente ambíguo, de
entre a classe média e entre os camponeses origem japonesa. Vargas teve uma pequena
indígenas, e criaram o Sendero Luminoso (porém insuficiente) vitória no primeiro
– um pequeno exército de cerca de 5 mil turno, mas depois de um intervalo particu-
membros, recrutados principalmente entre larmente negativo, Fujimori disparou para
os pobres rurais e liderados por um rígi- uma vitória convincente. Vargas foi inca-
do marxista e visionário mestiço, Abimael paz de atrair o homem comum peruano e
Guzmán Reynoso, conhecido como presi- muitos apoiadores políticos se assustaram
dente Gonzalo. Em 1985, a APRA conquis- diante da austeridade que estava por vir. Fu-
tou a presidência e anunciou que limitaria jimori prometia soluções para os principais
o pagamento do serviço da dívida a uma problemas do Peru sem ser muito específico
porcentagem fixa do produto interno bru- com relação aos meios. Uma vez eleito, re-
to. O novo presidente, Alan Garcia, tomou verteu a recusa de Garcia a honrar a dívi-
um rumo de centro-esquerda temperado da externa, reverteu o declínio do Peru em
com gestos anti-Washington. Mas a guerra produtividade, reduziu a inflação de níveis
suja continuava, com múltiplos assassinatos, astronômicos aos meramente altos e colo-
tortura e incontáveis “desaparecimentos” de cou Gonzalo na prisão. Também suspendeu
pessoas de quem o exército ou a polícia não a Constituição, dispensou o parlamento, in-
gostava. Os problemas econômicos também terferiu no judiciário, prendeu adversários
seguiam: a inflação em níveis incalculáveis, políticos e suprimiu a imprensa. Em 1995,
um grande déficit orçamentário, e a suspen- foi reeleito, vencendo o ex-secretário-geral
são, por parte do Banco Mundial e do BIRD, da ONU Javier Pérez de Cuellar. Os êxitos
de suas linhas de crédito. Em pouco tempo, inesperados de Fujimori indicavam mudan-
Garcia estava em conflito com o exército. Ele ças na sociedade peruana, que tinham pas-
propôs dar um em vez de três cargos no seu sado despercebidas e estavam eclipsando o
gabinete, reformar a administração militar e sistema de partidos estabelecido. Os parti-
cortar a participação do exército (40%) nas dos desapareceram, assim como o Sendero
despesas de governo, e investigar o massacre Luminoso, mas não a revolta urbana. Em
de 300 pessoas em uma prisão de Lima, su- 1997, o Peru chamou a atenção do mundo
postamente pelo exército. As forças armadas quando o Tupac Amaru, um pequeno gru-
e a direita política, com apoio oculto dos Es- po guerrilheiro, invadiu uma festa na em-
tados Unidos, minaram o governo de Garcia baixada japonesa em Lima e fez milhares
e depois o derrubaram. Poucos lamentaram, de convidados reféns em uma tentativa de
pois ele afastou os pobres ao mesmo tempo obter a libertação da cadeia de 400 de seus
em que enfurecia e assustava os ricos. companheiros. Fujimori se recusou a aten-
Garcia (presidente de 1985 a 1990) dei- der suas exigências e foi convencido a não
xou o Peru em situação ainda pior do que invadir a embaixada, que ficou cercada por
692 | PETER CALVOCORESSI

dois meses, com um número decrescente de René Barrientos e, em 1969, alguns meses
cativos dentro, submetidos a considerável depois da morte deste, Ovando instalou
desconforto. Sua postura decidida lhe ren- um regime puramente militar e adotou po-
deu popularidade, que ele perdeu em fun- líticas emprestadas parcialmente do regime
ção de seu autoritarismo e corrupção, tor- populista de Velasco Alvarado no Peru. O
nando-se cada vez mais dependente da boa governo militar, nos 15 anos seguintes, foi
vontade do exército. Ele foi incentivado a marcado por conflitos entre os próprios
repetir sua reeleição (inconstitucional) mu- generais, seu envolvimento cada vez maior
dando as regras antes da eleição seguinte, no tráfico de drogas e golpes frequentes. So-
em 2000. A maioria dos juízes do Tribunal mente o general Hugo Banzer (1971-1978)
Superior concordou, e o restante foi demi- conseguiu alguma estabilidade, a um preço
tido. Mas Fujimori passou dos limites e foi alto (brutalidade e censura). Em 1978, ele
forçado a fugir. Uma Comissão de Inquérito permitiu eleições que marcaram o início
(2003) sobre os problemas do Peru criticou de um retorno ao governo civil. O vetera-
gravemente três presidentes e calculou o no Siles conquistou a presidência, mas não
número de mortes pelos conflitos civis nos lhe deixaram assumir. No ano seguinte, a
últimos anos em 69 mil. Bolívia teve sua primeira presidente, Lidia
A configuração social da Bolívia diferia Gueiler Tejido, que, por sua vez, foi derru-
de seus vizinhos porque Victor Paz Esten- bada por uma coalizão de oficiais de direita
soro liderou, já em 1952, uma revolta bem- e traficantes de drogas que, sob a égide de
-sucedida em que comunistas, trotskistas e outros dois presidentes militares, conduziu
não comunistas (incluindo oficiais do exér- um novo regime de terror e tortura. Em
cito de patente baixa), escandalizados pela 1982, Siles retornou, parcialmente aplau-
corrupção e pela ineficiência, pela injustiça dido pelos Estados Unidos. Mais uma vez,
e a pobreza, participaram. O regime nacio- foi seguido por Paz e depois pelo empresá-
nalizou as amplas minas de estanho do país, rio Sanchez de Lozada, que concorreu com
desmembrou grandes propriedades, deu o um parceiro índio na vice-presidência. A
direito de voto aos índios (60% da popula- hiperinflação foi controlada por métodos
ção) e tentou diversificar a economia para que geraram hiperdesemprego e, em 1997,
reduzir a dependência do país em relação Banzer – agora civil – tornou-se presiden-
à mineração, mas em pouco tempo enfren- te mais uma vez, depois de uma eleição na
tava problemas econômicos agravados por qual apenas 22% dos votos foram suficien-
uma queda no preço do zinco e a liderança tes para derrotar seus vários adversários. O
se dividiu. Paz foi sucedido, em 1956, por crescimento do tráfico de drogas durante os
seu antigo aliado Hernán Siles Zuazo, ele anos de 1980 fez com que os Estados Unidos
retornou ao cargo em 1960, mas foi exilado enviassem tropas e detetives para reprimi-
em 1964 depois de um golpe do general Al- -lo – uma intervenção que causou muito
fredo Ovando Candia. Em 1967, a existên- ressentimento, principalmente por parte
cia de atividades guerrilheiras ficou famosa dos plantadores de coca e de seus amigos no
no mundo todo pela prisão e julgamento do exército. Muito menos ressentimento havia
escritor francês Regis Debray (condenado a em relação à ajuda material e financeira dos
30 anos de prisão) e a morte, na Bolívia, de Estados Unidos, principalmente nessas mes-
Che Guevara. mas áreas. Na mudança mais significativa
O governo foi enfraquecido pelo confli- desde 1952, Evo Morales foi eleito presiden-
to entre Ovando e o presidente civil titular te em 2006, prometeu acabar com a pobreza
POLÍTICA MUNDIAL | 693

e o domínio dos ricos de origem hispânica; foi derrotado por problemas econômicos
um representante da nova onda de poder criados pela imprevidência de seus próprios
indígena local. Mas, em 2008, Morales se antecessores, quedas no preço do petróleo e
deparava com demandas de autonomia ou calamidades naturais.
independência por parte das províncias me- Depois de uma tentativa fútil de susten-
nos empobrecidas do país e uma campanha tar a moeda gastando 200 milhões de dólares
para revogar seu cargo de presidente. norte-americanos, a paridade entre as duas
No Equador, os militares tomaram o moedas foi abandonada por um tempo e o
poder em 1976, mas o mantiveram por valor da moeda equatoriana caiu pela meta-
pouco tempo, abrindo caminho, em 1979, de em uma semana. A inflação aproximava-
para uma coalizão liderada por Jaime Rol- -se dos 50%, mas as tentativas do presidente
dos Aquilera, que morreu em um acidente de obter ajuda no FMI foram frustradas à
aéreo dois anos depois. O poder político medida que o parlamento tentava insistir em
oscilava entre centro-esquerda e centro-di- um orçamento esbanjador e o país deixou
reita, já que nenhum partido tinha maioria de pagar sua dívida externa. Os resultados
parlamentar e a austeridade da economia desses problemas foram desordens caóticas,
de mercado causava insatisfação popular e aumento do poder político do exército e in-
rebeliões. O Equador disputava com o Peru centivo ao ativismo da metade índia (insa-
uma área em que se acreditava que houves- tisfeita) da população. A eleição de Rafael
se minerais valiosos e petróleo. Essa disputa Correa para a presidência alinhou o Equa-
foi resolvida por um tratado de 1942, que foi dor aos regimes reformistas da Venezuela e
criticado por Roldos em 1960. As regiões de da Bolívia e aumentou o atrito com os Esta-
fronteira continuavam desgovernadas. Em dos Unidos em função do uso de bases por
1992, o presidente peruano Fujimori, em forças norte-americanas. Como segundo ex-
uma visita a Quito, aceitou uma proposta de portador de petróleo (principalmente para
mediação pelo Vaticano, mas, em 1995, for- os Estados Unidos) o Equador de Correa
ças peruanas provocaram conflitos armados se inclinava ao ritmo mais enérgico e o tom
graves. No mesmo ano, escândalos financei- impetuoso do radicalismo interno e do con-
ros causaram a fuga do vice-presidente e te- fronto internacional, sujeito, contudo, aos
mores em relação à continuação do governo riscos que se aplicavam à Venezuela.
civil. As eleições de 1996 elegeram Abdalá A América do Sul, quase duas vezes o
Bucaram Ortiz para presidente. Suas raízes tamanho da Europa e dividida em apenas
eram frágeis (ele tinha origem libanesa) e 12 países, continuou a cumprir um papel
regionais (no litoral, mas não nas regiões secundário nas questões mundiais, enreda-
montanhosas indígenas) e suas excentri- da em problemas internos (sociais e econô-
cidades indignas possibilitaram que seus micos), mas ativa na ONU, onde a mudança
inimigos o rotulassem de louco: uma dessas nas preocupações lhe permitiu aventurar-se
excentricidades era chamar a si mesmo de com mais peso no campo global, como fez a
louco. Ele foi forçado a fugir depois de um América do Norte na era da protoglobaliza-
ano. Em 1998, o presidente Jamil Mahuad ção que se seguiu à guerra civil nos Estados
Witt resolveu a disputa com o Peru, mas Unidos.
28 América Central

O México, como o Canadá, pode estar des- conseguiu impor taxas aos ricos e reformar
tinado a ser incluído em uma zona econô- a agricultura notoriamente ineficiente, e se
mica da América do Norte dominada pe- tornou um veículo político dos abastados.
los Estados Unidos, mas os mexicanos têm Em 1938, o presidente Lázaro Cárdenas na-
com os norte-americanos um conflito his- cionalizou as reservas e a indústria do petró-
tórico que é esquecido com mais facilidade leo. Os presidentes se sucederam decorosa e
no segundo do que no primeiro. O México constitucionalmente e, no final da Segunda
perdeu o Texas para os Estados Unidos em Guerra Mundial, o México era estável sob
1836. Dez anos depois, tropas norte-ameri- governo civil. As relações com os Estados
canas ocuparam a Cidade do México. Um Unidos avançaram para uma cautela digna.
terço do que então era o México se tornou O México declarou guerra à Alemanha,
o sudoeste dos Estados Unidos. Em 1862, à Itália e ao Japão em 1942, e enviou um con-
uma expedição de cobrança de dívidas fran- tingente aéreo às Filipinas. Depois da guerra,
cesa (com incentivo britânico e espanhol) cumpriu um papel central no estabelecimen-
se transformou em uma aventura imperial to de um sistema de segurança interameri-
e criou um Império Mexicano de curta du- cano: pelo Tratado de Chapultepec (que fica
ração, com um arquiduque belga como im- no México), os Estados norte-americanos
perador. Esse regime foi seguido, depois de concordavam com consultas mútuas se as
um curto intervalo, pela ditadura de Porfi- fronteiras de qualquer um deles fossem des-
rio Díaz, que durou de 1876 a 1910, com um respeitadas, e cogitavam a ação conjunta que
interlúdio de apenas um ano. Seu governo poderia incluir o uso da força. O Tratado do
modernizador e sem remorsos terminou em Rio, em 1947, definiu com mais precisão a
revolução e sete anos de guerra civil, na qual solução pacífica sobre disputas e a defesa co-
os Estados Unidos intervieram para apoiar letiva, e esses acordos culminaram na cria-
a contrarrevolução e por pouco não houve ção, em 1948, da Organização dos Estados
uma guerra entre os dois países. A longa di- Americanos (OEA). Líderes estrangeiros
tadura de Díaz foi seguida pelo ainda mais prestavam atenção ao México. Todos os pre-
longo governo de um único partido, que sidentes dos Estados Unidos o visitaram, de
acabou sendo chamado de Partido Revolu- Franklin D. Roosevelt em diante, assim como
cionário Institucional (PRI), comprometido todos os presidentes franceses a partir de de
com a mobilidade social e as reformas eco- Gaulle. Nas questões regionais, o México pôs
nômicas. Mas o passar dos anos desgastou o Cuba no ostracismo em 1962, mas reverteu
fervor revolucionário do partido, que nunca sua atitude em 1975; juntou-se à Venezuela e
POLÍTICA MUNDIAL | 695

outros países na tentativa de devolver Cuba méstico, má formação ou recrutamento da


à respeitabilidade interamericana e resolver mão de obra especializada, grave declínio
a guerra na Nicarágua; condenou o Chile de na produção de alimentos, endividamen-
Pinochet e simpatizava – às vezes se aliava to externo elevado e resultado negativo no
– com movimentos de esquerda na Améri- comércio exterior, má distribuição da rique-
ca Central. Seus objetivos declarados eram za cada vez mais visível, principalmente no
a redução da influência dos Estados Unidos sul, onde a maioria da população indígena
e da Rússia ao sul do Rio Grande. Recusou- vivia sem ver os benefícios do crescimento
-se a aceitar uma missão militar dos Estados econômico, pois algo em torno de 90% da
Unidos (1951) e criticou abertamente suas riqueza do país era propriedade de menos
ações e avaliações na Guatemala, em Cuba de meio milhão de pessoas, em um total de
e na Nicarágua; foi patrocinador do Tratado 85 milhões.
de Tlatelolco em 1967, que ensaiou proibir Esses problemas eram mascarados par-
as armas nucleares no subcontinente e, prin- ticularmente pelo petróleo. Em 1980, o Mé-
cipalmente, como consequência de sua ri- xico produzia 2,5 milhões de barris por dia,
queza em petróleo, estabeleceu vínculos com exportava mais da metade (e metade dessas
outros produtores, principalmente a Nigéria, exportações iam para os Estados Unidos),
embora se recusasse a ser membro da OPEP. tinha reservas comprovadas de 60 bilhões
Desde meados do século, a economia de barris e reservas reais três ou quatro ve-
mexicana foi transformada por uma política zes maiores, e era o sexto entre os gigantes
de industrialização, urbanização e interna- mundiais do petróleo. Mas a isca petrolífera
cionalização ampliada, voltada a reduzir a atraiu os governos para uma busca extrava-
dependência de economias estrangeiras, ao gante de crescimento e, quando esse surto
mesmo tempo em que garantia os financia- petroleiro parou, para a divida. A inquietu-
mentos externos necessários para promo- de e a insatisfação, que explodiram de forma
ver e sustentar o crescimento industrial. O chocante com um massacre de jovens ma-
emprego na indústria ultrapassou o nível do nifestantes em Tlatelolco, em 1968, às vés-
emprego na agricultura. As receitas estran- peras das Olimpíadas da Cidade do México,
geiras cresceram com as exportações de pe- combinaram-se com as decepções econô-
tróleo, mas não respondiam por mais do que micas e a inquietação geral para estimular
um terço do total, do qual o algodão, o café uma revisão completa, causando, em 1982, a
e o açúcar representavam quantias substan- desvalorização da moeda em 70%, naciona-
ciais. O crescimento, já importante durante lização de bancos, redução dos salários reais
os anos de guerra, continuou e possibilitou em cerca de metade nos cinco anos seguin-
que o país, por um tempo, passasse sem tes, cortes em educação, saúde e outros ser-
dificuldades por uma explosão demográfi- viços públicos e uma cultura cada vez mais
ca sem precedentes. Foi acompanhado por voltada à especulação de curto prazo em
uma mudança de governos militares para ci- detrimento do crescimento de longo prazo.
vis, mas nenhum relaxamento do regime de Miguel de la Madrid Hurtado, um talentoso
partido único enraizado do PRI. Durante os político e economista formado em Harvard,
anos de 1970, contudo, o progresso sofreu foi eleito presidente, em 1982, aos 47 anos,
ameaças vindas de muitas direções: a reces- e se deparou com o Peso em queda, desem-
são mundial e a inflação doméstica, geração prego crescente, restrições aos gastos públi-
ou investimento inadequados do capital do- cos e corrupção alimentada pelo petróleo.
696 | PETER CALVOCORESSI

Merida

MÉXICO
MAR DO CARIBE
IZ E

Belize
BE L

GU ATEM AL A
Cidade da HONDURAS
Guatemala Tegucigalpa

San Salvador
EL
SALVADOR NICARÁGUA

Manágua

COSTA
OCEANO RICA
PA C Í F I C O San José
Zona do Canal

Panamá

PANAMÁ
0 100 200 km

0 75 150 milhas
COLÔMBIA

Figura 28.1 A América Central.

Ele conseguiu fazer um acordo com o de cerca de 6 bilhões pelo restante do século
FMI que garantia ao México um emprésti- para cobrir os interesses e ir pagando a outra
mo de 3,4 bilhões de dólares e a rolagem de metade – somas que teriam que vir, por acor-
metade da dívida externa de 96 bilhões de do ou força, de bancos credores, se as receitas
dólares, mas o país não conseguiu cumprir provenientes do petróleo não as fornecessem.
as condições, e o FMI estava por rescindir O socorro, avaliado em 3,6 bilhões de dólares
quando, em 1985, um terremoto de força por ano, durante 30 anos, foi proporcionado
impressionante atingiu a Cidade do México por um acordo com os credores em 1990, sob
e fez com que fosse temporariamente ino- o Plano Brady (ver o Capítulo 5). O presiden-
portuno apertar os parafusos. Mesmo com te de la Madrid foi sucedido por Carlos Sali-
metade de sua dívida rolada, o país precisaria nas de Gortari, outro graduado em Harvard,
POLÍTICA MUNDIAL | 697

que teve o azar de ver o partido situacionista vinha fermentando há muitos anos. No cen-
perder um governo provincial pela primeira tro dos problemas estavam a destituição e
vez em mais de meio século. o desespero de servos recém-emancipados
O domínio do PRI começou a ser ques- e camponeses sem-terra, em sua maioria,
tionado, mas, por um tempo, Salinas con- maias. A sensação de injustiça e isolamento
quistou um nível de popularidade negado foi acentuada pelo fato de falarem pouco ou
a seus antecessores. Embora a mecanização nada de espanhol e por sua pobreza em fun-
e a modernização da indústria, junto com ção da queda do preço do café em 1989. Essa
educação de baixa qualidade, mantivessem situação lhes rendeu o apoio do bispo de San
o desemprego alto e a privatização só enri- Cristóbal, Samuel Ruiz e deu origem, em
quecesse a oligarquia privilegiada, Salinas 1992, ao Exército Zapatista de Libertação
reduziu a dívida externa e o envolvimento Nacional (EZLN), que, liderado pelo sub-
excessivo do Estado em empresas inefi- comandante Marcos, exigia reforma agrária,
cientes, reduziu a inflação a menos de 10% direitos civis e a implementação da Consti-
e transformou o déficit orçamentário em tuição de 1917. Marcos era ambivalente em
um superávit sem precedentes. A projeta- relação ao uso da violência, mas os protestos
da Área de Livre Comércio da América do foram inflamados pelo crescimento evidente
Norte (North American Free Trade Area, da corrupção, do tráfico de drogas e da má
Nafta) oferecia aos mexicanos oportunida- administração das finanças públicas que, de-
des legítimas de trabalho ao norte do Rio pois do assassinato de Colosio, forçou o go-
Grande. O presidente Bush retardou a ação verno a fechar os mercados financeiros e os
a esse respeito durante sua campanha eleito- Estados Unidos, e a ampliar um crédito de 6
ral de 1992, para desgosto do governo mexi- bilhões de forma rápida e pública.
cano, cujo programa econômico, incluindo Poucos meses depois, o PRI manteve
um crescimento de 6% ao ano, dependia a presidência e a maioria no parlamento,
muito do investimento dos Estados Unidos embora com maioria pequena do voto po-
no país, mas Clinton conseguiu a aprovação pular e entre críticas abertas sobre o funcio-
do Congresso. Inicialmente, as exportações namento da democracia mexicana. O novo
mexicanas aos Estados Unidos cresceram presidente, Ernesto Zedillo Ponce de Leon,
mais rápido do que o comércio na direção embora considerado menos empolgante do
oposta, mas seus benefícios eram geografi- que seus antecessores, parecia uma escolha
camente mal distribuídos e pouco se faziam segura em uma época problemática. A eco-
sentir às empresas menores. nomia, contudo, estava mais conturbada do
Embora fosse reformista, Salinas tam- que segura e a confiança na forma como o
bém estava envolvido, ou era conivente, governo lidaria com ela, baixa. Zedillo, no
com alguns dos vícios que queria reformar fundo, era um reformista, mas a reforma
– corrupção, tortura, assassinatos políticos criou recessão e grave desemprego. As ins-
e o uso do México pelos traficantes de dro- tituições financeiras, incluindo os bancos,
gas colombianos – e quando seu mandato estavam abaladas.
terminou, em 1994, ele se transferiu para a Seu recurso ao FMI implicava promes-
Irlanda. Naquele ano, o regime mexicano sas de limitar aumento de salários e comba-
foi muito atingido por dois eventos: a re- ter o déficit orçamentário privatizando em-
volta aberta na província sulina de Chiapas presas públicas – promessas mais fáceis de
e o assassinato do candidato do PRI a pre- fazer do que de cumprir quando os sindica-
sidência, Luis Donaldo Colosio. Chiapas tos estavam bradando por melhores salários
698 | PETER CALVOCORESSI

e os compradores para indústrias estatais tema multipartidário e, em 1997, perdeu o


eram poucos e mesquinhos. Uma inunda- controle do Congresso (conquistando ape-
ção de importações estava devastando o ba- nas 38% dos votos) e a prefeitura da Cida-
lanço de pagamentos, uma desvalorização de do México, para Cuauhtémoc Cárdenas
súbita inesperada do Peso, no final de 1994, Solórzano, metade índio e descendente do
foi interpretada como pânico e a taxa de ju- famoso ex-presidente*. A insurreição se es-
ros subiu 40%. A desvalorização foi acom- palhou de Chiapas para outras províncias,
panhada da emissão de títulos vinculados os abusos dos direitos humanos ficaram
ao dólar (em troca de bônus do governo de mais frequentes e graves, o país estava par-
curto prazo), mas o total desses tesobonos ticipando do tráfico internacional de drogas
excedeu em pouco tempo as reservas es- e o poder político de um exército aumenta-
trangeiras do governo. Para impedir o co- do para 175 mil membros se tornou mais
lapso do Peso, dos bancos norte-americanos proeminente. A multiplicação de partidos
envolvidos no México e das exportações dos aumentou as oportunidades e as tentações
Estados Unidos a esse país, Clinton obteve para o exercício do poder militar na política
com o FMI e o Banco de Pagamentos In- e reduziu as probabilidades de uma vitória
ternacionais a garantia de um apoio de 50 clara do PRI nas eleições de 2000. Então, o
bilhões de dólares, à qual os Estados Unidos Partido de Ação Nacional (PAN) levou Vi-
prometeram 20 bilhões, garantida pelas re- cente Fox Quesada à presidência, e em 2005,
servas de petróleo do México. Mas a crise o candidato Andrés Obrador, ex-prefeito da
mexicana colocou em questão a capacidade Cidade do México pelo PRD, foi derrotado
do setor financeiro internacional de fazer por estreita margem de votos, e Felipe Cal-
frente a uma crise desse porte e a disposição derón, do Partido da Ação Nacional (PAN)
dos financistas em todo o mundo de apoiar tornou-se presidente, com consequências
governos latino-americanos que aplicassem ainda por vir**. A Constituição mexicana
políticas econômicas dependentes de em- impedia que os presidentes tentassem um
préstimos e investimentos estrangeiros. O segundo mandato.
colapso do peso mexicano desanimou todos Como o México foi se estreitando em
os países do subcontinente, onde o cresci- direção ao sul, quase todas as suas frontei-
mento econômico era desesperadamente ras são compartilhadas com a Guatemala.
necessário para suas próprias finalidades (Honduras Britânica, independizada como
econômicas e como pré-requisito para a Belize desde 1981, tem uma fronteira curta
estabilidade política. No México, a lacuna com o México, bem como uma mais longa,
entre ricos e pobres aumentava, a distância em disputa, com a Guatemala.) Por mais de
entre pobreza e fome se reduzia e a insur- 100 anos (1838-1944), a Guatemala foi go-
reição ficou mais difundida e mais bem ar- vernada por quarto ditadores militares com
mada. Essa dupla instabilidade ameaçava o curtos intervalos de governos civis.
futuro de um país cujos problemas, embora Em 1944, o exército estava dividido
enormes, também eram facilmente compre- e um grupo de oficiais de baixa patente
ensíveis; porque eram oriundos não da po-
breza interna, mas do mau gerenciamento
da riqueza potencial e da esclerose de quase * N. de R.T.: Ele liderava o partido dissidente de esquerda Par-
um século de governo de partido único. O tido da Revolução Democrática (PRD).
PRI bloqueava ações que apontassem para ** N. de R.T.: Além da legitimidade questionada por denúncias
de fraude, Calderón teve de enfrentar o narcotráfico, gerando
qualquer coisa além da aparência de um sis- uma quase guerra civil.
POLÍTICA MUNDIAL | 699

apoiou um candidato relativamente de es- cobriu que nenhum outro país aceitava a in-
querda, Juan José Arévalo, que foi presiden- terpretação de Washington sobre os eventos
te até 1950. A divisão constante no exército na Guatemala. A conferência aprovou uma
era representada pela rivalidade entre dois resolução geral condenando a dominação
majores, Francisco Xavier Arana e Jacobo comunista de qualquer Estado americano,
Arbenz Guzmán. O primeiro foi assassina- mas se recusou a individualizar a Guate-
do em 1949, e o segundo venceu as eleições mala, e Dulles, diante disso, deixou Cara-
de 1950, causando alarme nos Estados Uni- cas abruptamente e passou a conspirar com
dos, onde o novo regime era considerado guatemaltecos descontentes que estavam se
pró-comunista e uma ameaça ao Canal do preparando para invadir seu país a partir de
Panamá. Era inimigo dos capitalistas estran- Honduras e Nicarágua. Esses dois países,
geiros e, principalmente, da United Fruit tendo reclamado de incursões comunistas
Company que, na condição de dona de 10% vindas da Guatemala, receberam armas dos
das terras do país, exercia ainda mais poder Estados Unidos, enquanto Washington ten-
econômico na Guatemala do que a Anglo- tava impedir que a Guatemala também as
-Iranian Oil Company no Irã, e representava recebesse, apelando a seus aliados para que
um obstáculo à reforma agrária essencial. não as fornecessem e interceptando envios
Os guatemaltecos, 10 milhões de pes- comunistas da Europa. Três meses depois
soas, dos quais mais da metade era de as- da conferência de Caracas, a Guatemala foi
cendência indígena, sofriam extremos de invadida e Arbenz foi forçado a renunciar.
pobreza, enfermidades e falta de atenção so- O líder da invasão, o coronel Carlos Castillo
cial, que se tornavam mais intoleráveis pela Armas, o sucedeu e ficou no cargo até ser
prosperidade de uma pequena minoria e assassinado em 1957. A taxa de crescimen-
pela onipresença das empresas estrangeiras, to anual da economia guatemalteca caiu de
que eram donas, não apenas de uma grande 8,5% (entre 1944 e 1954) para 3% e, com os
quantidade de terras, mas também das fer- sucessores de Castillo, o país viveu em um
rovias, portos e serviços públicos. Arbenz estado de guerra civil reprimida.
acelerou o programa de reformas de seus Castillo foi sucedido pelo general Mi-
antecessores, nacionalizou a terra impro- guel Ydígoras Fuentes, que foi devidamente
dutiva e apoiou greves contra interesses es- instalado como presidente em 1958, depois
trangeiros. Essas ações foram interpretadas de duas eleições desorganizadas. Seu poder
em Washington como o início de uma polí- foi confirmado por uma eleição fraudulen-
tica comunista integral, além do fato de que ta em 1961, mas rebeliões, reprimidas pelo
os comunistas estavam em número muito exército, demonstraram uma dependência
maior do que os não comunistas no gover- que ele não teve a sabedoria de reconhecer.
no da Guatemala, no parlamento e no ser- A opinião militar se voltou contra ele por
viço público, e de que o poder estava com o gastar dinheiro demais consigo mesmo e
exército anticomunista. Enquanto Truman muito pouco com as forças armadas.
foi presidente, os Estados Unidos travaram Em 1962, o exército o defendeu contra
uma guerra econômica velada, mas se recu- uma tentativa de golpe da força aérea, mas
saram a ir além disso; Eisenhower e Dulles voltou-se contra ele quando este permitiu que
recorreram à força (indireta) das armas. Arévalo voltasse à Guatemala e concorresse à
Na décima conferência interamericana em presidência. Arévalo, que parecia ter garanti-
Caracas, em 1954, Dulles tentou obter uma da sua vitória em uma eleição justa, era con-
condenação do regime de Arbenz, mas des- siderado uma reencarnação de Arbenz, e, em
700 | PETER CALVOCORESSI

1963, o exército depôs Ydígoras e suspendeu no ano seguinte, com essas promessas sem
a Constituição. Os militares toleraram a elei- serem cumpridas. Ele foi seguido pelo ge-
ção, em 1965, do comparativamente liberal neral Oscar Mejia Victores, que se dedicou
Julio Cesar Mendez Montenegro, mas ele não a suprimir a esquerda em seu próprio país,
foi mais capaz de pacificar o país do que seus mas demonstrou menos interesse além de
antecessores opressores. Uma oposição hete- suas fronteiras, nas quais, de fato, a Guate-
rogênea e dividida, formada por comunistas, mala tinha poucos recursos para gastar. Um
trotskistas e guerrilheiros, que na verdade retorno formal ao governo civil, em 1985,
não eram nada disso, promoveram levantes deixou o exército livre e o presidente Vinicio
sem êxito e recorreram a assassinatos e se- Cerezo sendo pouco mais do que um testa
questros quando essas rebeliões fracassaram. de ferro que podia ser responsabilizado pelo
As forças dos Estados Unidos ajudaram o go- caos econômico. Ele se afastou das políticas
verno e um embaixador norte-americano foi antissandinistas de Washington na Nica-
um dos assassinados. rágua e colaborou com outros presidentes
Nos anos de 1970, o controle nominal centro-americanos na busca de paz para o
foi compartilhado pelo exército e os parti- regime nicaraguense, reconciliando os pre-
dos civis, com os partidos de esquerda proi- sidentes Duarte, de El Salvador e Ortega, da
bidos. Vários oficiais se tornaram empresá- Nicarágua, e pondo fim ao uso que os Con-
rios e ficaram ricos, provocando ciúme em tras faziam da Costa Rica como parte de um
outros oficiais e atraindo acusações de cor- cerco contra a Nicarágua. Nas eleições de
rupção. Nas eleições de 1974 concorreram 1990, uma dúzia de candidatos se apresen-
três candidatos, dos quais o mais jovem – o tou, desde a extrema direita à centro-direita.
coronel Efrain Ríos Montt, um protestante Rios Montt, declarado constitucionalmente
fervoroso – venceu, mas foi afastado pelos inelegível pelo Tribunal Supremo, apoiou
mais velhos. Os militares estavam dividi- Jorge Elias Sarrano, protestante e candi-
dos entre os linha-dura que só enxergavam dato dos empresários de classe média, que
guerrilheiros e, do outro lado, uma minoria venceu o segundo turno com pouco mais
mais esclarecida que também via a pobre- de metade dos votos válidos. Em 1993, ele
za e a injustiça generalizadas e, no centro entrou em conflito com o vice-presidente e
de tudo, a corrupção. O partidarismo foi os militares, fugindo para o Panamá. Rami-
acrescentado à violência, à corrupção e ao ro de Leon Carpio, líder dos direitos civis,
colapso econômico. Os abusos de poder se surgiu como próximo presidente, mas não
tornaram tão graves que, em 1977, Carter foi capaz de conter os excessos dos crimi-
interrompeu a ajuda norte-americana (que nosos comuns nem de altos funcionários
foi retomada, em 1981, por Reagan). As elei- ou oficiais psicopatas. Em 1995, Rios Montt
ções de 1978 deram a presidência a Romero foi desqualificado mais uma vez e seu prote-
Lucas Garcia, um general de direita de pe- gido Alfonso Portillo perdeu a eleição, mas
culiar brutalidade que erradicou as aldeias, venceria outra em 1999.
mas não os guerrilheiros. Sua brutalidade A guerra civil reduziu-se, mas não ter-
estava dirigida, com propósitos aparen- minou. Suas raízes tinham sido plantadas
temente genocidas, à metade indígena da em meados dos anos de 1950 por jovens
população. Ele foi derrubado, em 1982, por que, principalmente com lideranças cristãs,
Rios Montt, que prometeu dar um fim aos dispunham-se a estabelecer comunidades
assassinatos privados, à guerra civil e aos rurais em terras reabilitadas, mas foram con-
escândalos financeiros, mas foi derrubado vertidos, pela perseguição oficial, em um
POLÍTICA MUNDIAL | 701

movimento parcialmente missionário, par- A posse, em 1977, do presidente Carlos


cialmente militante. O movimento foi brutal- Humberto Rovero foi boicotada pelo cle-
mente atacado pelo exército, que mobilizou ro em protesto contra a violência e a tor-
40 mil soldados, destruiu entre 4 e 5 mil al- tura praticadas pelo próprio regime e, em
deias, matou dezenas de milhares de pessoas 1979, um golpe dado por oficiais de paten-
e deixou pelo menos meio milhão de desa- te inferior instalou um novo governo que
brigados. Depois dos ataques mais punitivos, prometia reforma agrária moderada e a
em 1980-1984, os militantes foram reduzidos nacionalização de determinados interesses
a cerca de 2 mil, os visionários perderam as financeiros e comerciais. Mas esse governo
ilusão de trazer paz à Guatemala e o país fi- levemente direitista não foi capaz de con-
cou dividido entre indignação amarga e re- trolar o terrorismo de extrema-direita. O
pressão brutal. Em 1996, o presidente Álvaro assassinato do arcebispo de San Salvador,
Arzú deu o passo crucial de conversar com em 1980, caracterizou a crescente anarquia
os líderes rebeldes e, assim, fez com que es- e uma polarização de extremos que deixou
sas guerras tivessem uma conclusão formal. o governo espremido no meio. Os Estados
Mas o ressentimento e a desconfiança con- Unidos, temendo que a extrema esquer-
tinuavam. Outro bispo, apoiador de grupos da pudesse prevalecer, apoiava o governo
que tentavam encontrar uma cura expondo como mal menor e tentava convencer a
as crueldades do passado, foi assassinado. Guatemala e Honduras a intervirem se o
Cerca de 200 mil pessoas foram mortas no governo desabasse e a extrema esquerda
que foi, mais do que uma guerra, uma série tomasse o poder, mas nenhum desses paí-
de ataques militares contra índios e civis de ses estava disposto a prejudicar sua posi-
classe média durante mais de 30 anos. ção interna enviando tropas ao exterior.
Na costa do pacífico, da América Cen- Com a eleição de Reagan, em 1980, El
tral ao sul da Guatemala, o pequeno e ou- Salvador se tornou parte da política norte-
trora rico El Salvador era devastado pelo -americana obsessiva de derrubar o gover-
conflito civil. Uma tradicional ditadura no da Nicarágua e ajudar qualquer governo
militar do general José Maria Lemus foi de direita na América Central. A FMLN foi
modificada, em 1961, pela instalação de estigmatizada como uma organização terro-
um governo centrista com o general Ju- rista e Reagan confirmou, diante de amplas
lio Rivera, que trouxe um programa de evidências do contrário, que o histórico de
reformas sociais e investimentos econô- direitos humanos do governo salvadorenho
micos que, mesmo inadequado aos olhos era satisfatório e que seu exército estava sob
da esquerda, afastava-se de forma subs- controle do governo. Mas, apesar da ajuda
tancial do estreito conservadorismo dos norte-americana cada vez maior, o presi-
governantes anteriores. Mas as modestas dente Napoleón Duarte não foi capaz de su-
esperanças geradas por essa mudança se primir a Frente nem se libertar da extrema
mostraram ilusórias e, durante os anos de direita que, em 1982, obteve mais cadeiras
1970, a violência estourou entre o gover- do que o partido do presidente, da direita
no e guerrilheiros de esquerda da Frente menos feroz.
Farabundo Martí de Libertação Nacional Roberto d’Aubuisson foi eleito presi-
(FMLN), o braço mais combativo de uma dente, mas foi convencido, sob pressão de
ampla esquerda política levada a ações ex- Washington, a abrir mão em nome do mais
tremas, em protesto contra um estilo oli- respeitável Álvaro Mangana. Outra eleição,
gárquico estreito e fracassos econômicos. dois anos depois, ficou igualmente indeci-
702 | PETER CALVOCORESSI

sa entre Duarte e d’Aubuisson. Os crescen- um cessar-fogo, desengajamento das forças


tes êxitos da guerrilha durante 1984 foram armadas e um acordo para a criação de uma
enfrentados com ajuda dos Estados Unidos nova força policial e absorção dos guerri-
em dinheiro, helicópteros e armamentos. lheiros em unidades regulares do exército.
Se, como parecia ser o caso, Duarte desejava A FMLN gradualmente desmobilizou-
verdadeiramente tratar com os insurgentes -se sob supervisão da ONU, que endossou
e introduzir algumas reformas, ele foi frus- uma vitória confortável da Arena nas elei-
trado pela continuidade da guerra civil com ções de 1994, mas, três anos depois, a FMLN
características especialmente cruéis, na qual ficou com apenas uma cadeira a menos do
a maior proporção das mortes era obra de que a Arena e conseguiu formar um gover-
esquadrões de direita que pertenciam ao no de centro-esquerda. Em 1999, o poder
exército ou tinham conexões mais distan- voltou à direita, mas a FMLN se fragmentou
tes com ele. Em 1985, Duarte prevaleceu e a Arena obteve uma vitória confortável em
sobre a extrema direita e conquistou espa- 2005*. Mais do que mudanças ideológicas,
ço para a paz com a esquerda, desde que os essa instabilidade refletia uma decepção
termos fossem aceitáveis aos detentores do econômica repetida.
poder final, o exército. Mas ele continuava Internacionalmente, as mais graves co-
desconfortavelmente espremido entre dois moções na América Central aconteceram na
extremos, sua autoridade, mais formal do Nicarágua, depois da queda, em 1979, da di-
que real – uma força esgotada (em termos tadura da dinastia Somoza, que durou quase
de saúde e política) e o árbitro ineficaz de 50 anos. Essa dinastia começou com o gene-
uma guerra que custou a esse pequeno país ral Anastasio Somoza Garcia, que tomou o
50 mil vidas em 12 anos. Os guerrilheiros, poder com a ajuda dos Estados Unidos em
apesar de manter a ameaça, não conse- 1930. Ele e seu filho, Luis, que o sucedeu em
guiam incitar uma ampla revolta popular e 1956, governaram com as prósperas clas-
foram reduzidos a alguns milhares contra ses proprietárias de terras e empresas, mas
um exército de 50 mil, com ajuda norte- depois da morte do segundo, em 1967, seu
-americana chegando a 1 milhão de dólares irmão Anastasio Somoza Debayle afastou e
por dia. As alas militar e política da esquer- até mesmo escandalizou esses aliados pela
da estavam divididas em relação a negociar brutalidade e corrupção de seu governo,
com Duarte. À direita, os militares e seus principalmente sua apropriação de grandes
auxiliares paramilitares ou esquadrões da somas de ajuda estrangeira, enviadas ao país
morte estavam fora de controle e realizavam depois de um terremoto em 1972.
massacres indiscriminados. Tentativas de A resistência armada começou em
promover um cessar-fogo a partir de 1986 1961, com os guerrilheiros chamando a si
deram em nada. As eleições de 1989 foram mesmos de Frente Sandinista, como refe-
vencidas pela Arena, de D’Aubuisson, que rência ao coronel Augusto Cesar Sandino,
instalou Alfredo Cristiani como presidente, assassinado em 1934, depois de liderar uma
mas perdeu a maioria parlamentar em 1991. revolta reprimida com ajuda de tropas dos
Os esquadrões da morte não se submetiam a Estados Unidos. Os Sandinistas continua-
Cristiani mais do que a Duarte. A ajuda dos ram pouco numerosos por muitos anos,
Estados Unidos aumentava, mas não con- já que não tinham conseguido conquistar
seguia garantir nenhum de seus objetivos
declarados – estabilidade e democracia. Em
1991-1992, a intervenção da ONU garantiu * N.do R.T.: Em 2010 a FMLN voltou ao poder.
POLÍTICA MUNDIAL | 703

apoio amplo nem entre o campesinato nem e multiplicaram por 10 a ajuda ao governo
na classe trabalhadora urbana, mas o des- local. Entretanto, esses esforços não foram
governo de Anastasio II lhes rendeu mais capazes de derrubar o governo nicaraguen-
simpatia entre as classes profissionais e o se, cheio de desculpas para manter e apertar
clero católico, e o assassinato, em 1978, do seu regime autoritário e adiar ainda mais as
editor do principal jornal de Manágua, La prometidas eleições. Eles afastaram elemen-
Prensa, foi o sinal para tentativas sérias de tos antissandinistas que reprovavam o apoio
dar um fim a uma das ditaduras mais ultra- de Reagan aos somozistas em Honduras e
jantes da América Latina. na Flórida e, aos poucos, foram converten-
O presidente Pérez, da Venezuela, to- do os vizinhos da Nicarágua, de auxiliares
mou a dianteira e tentou persuadir o presi- na guerra de Reagan a proponentes ativos
dente Carter a intervir. Carter estava dividi- da paz, que incluiria o reconhecimento do
do entre sua repugnância à tortura e outros governo sandinista.
abusos que predominavam na Nicarágua e O ataque à Nicarágua, embora dirigido
seus temores de que os excessos de Somoza principalmente a partir de Honduras, ao
levassem ao extremo oposto e a uma segun- norte, também tinha um braço complemen-
da Cuba na América Central, e, por outro tar na Costa Rica, ao sul. Esse país era um
lado, sua relutância em intervir nas ques- Estado comprometidamente pacifista que,
tões internas de um país soberano vizinho, depois de um século ou mais de turbulên-
principalmente pela força. Enquanto essas cia, chegou ao ponto de abolir seu exército
questões estavam sendo debatidas e se dis- para ter mais para gastar em infraestrutura
cutiam várias formas de pressão econômi- e serviços públicos. Mas continuou pobre e
ca, perdeu-se a chance de substituir Somoza dependente dos Estados Unidos e, depois da
por um regime moderado e democrático. A vitória sandinista na Nicarágua, em 1979,
indecisão de Washington aumentou a deter- respondeu ao apelo de Washington para
minação dos Sandinistas e de seus aliados, participar da contenção, e na erradicação,
domésticos e externos (Cuba fornecia armas do comunismo na América Central. Eden
através da Costa Rica), e, em 1979, Somoza Pastora, social-democrata nicaraguense que
foi forçado a fugir. tinha unido forças com a Frente Sandinista
A aliança vitoriosa imediatamente se desde início dos anos de 1970, rapidamente
desfez. As promessas de realizar eleições em mudou de ideia e rompeu com ela. Ele foi
breve e instalar um sistema multipartidário convencido a voltar em 1976 e tornar-se seu
foram arquivadas. Os aliados religiosos e comandante em chefe sob a alcunha de Co-
profissionais dos Sandinistas se afastaram. mandante Zero. Dois anos depois, rompeu
Reagan iniciou uma guerra oculta que aca- de novo, pouco depois da vitória de 1979,
bou por colocar cerca de 12 mil homens – os para liderar as forças antissandinistas na
Contras – em campo contra o novo gover- Costa Rica, e, finalmente, em 1988, abando-
no. Esses Contras, a quem Reagan chama- nou sua oposição ao governo sandinista por
va de “guerreiros da liberdade”, eram anti- desgosto com as táticas de Reagan.
gos adversários dos Sandinistas, reforçados Suas oscilações e mudanças simboli-
por bandidos mercenários sem visão po- zavam a confusão e a perplexidade entre
lítica fixa, exceto que eram qualquer coisa, os antissomozistas que estavam um pouco
menos democratas. Suas principais bases desencantados com os sandinistas, mas não
estavam em Honduras, onde os Estados menos com as políticas dos Estados Unidos.
Unidos construíram uma grande base aérea Os governos de outros países centro-ame-
704 | PETER CALVOCORESSI

ricanos oscilavam da mesma forma. Sendo provocadas e abastecidas pela Cuba comu-
tudo, menos esquerdistas, mesmo assim eles nista e pela URSS. A Nicarágua era consi-
passaram a preferir os sandinistas à guerra derada um satélite soviético em formação,
de Reagan. muito mais perigosa do que Cuba por estar
A profunda aversão de Washington a no continente. Portanto, Reagan foi facil-
qualquer governo de esquerda na América mente convencido de que deveria garantir
Central era aguçada no caso da Nicarágua a derrota dos guerrilheiros em El Salvador,
pelo fato de que, por mais que a propaganda suprimir qualquer outro movimento es-
dos Estados Unidos sobre os vínculos com querdista que pudesse surgir na região e,
Cuba e a URSS fosse exagerada, os sandinis- acima de tudo, derrubar o regime sandinis-
tas recebiam armas de Cuba. Esse aspecto ta da Nicarágua. Os meios eram militares,
da Guerra Fria, que estava presente nas re- clandestinos e abertos, e fracassaram. Além
beliões que vieram depois da queda de So- de organizar, treinar e pagar as forças antis-
moza, se tornou um elemento dominante, sandinistas em Honduras e na Costa Rica,
e, em certa medida, cegante, nos Estados a marinha dos Estados Unidos fez demons-
Unidos, depois do advento de Reagan. Seu trações no litoral da costa da Nicarágua em
governo assumiu decidido a dar alta priori- 1983, e, no ano seguinte, minou portos nica-
dade à América Central como zona crítica raguenses nos oceanos Pacífico e Atlântico.
no conflito global das superpotências. Seus A colocação dessas minas, em contravenção
problemas endêmicos, econômicos e po- ao direito internacional, foi censurada pelo
líticos tinham sido exacerbados na década Conselho de Segurança (mas os Estados
anterior. Seu crescimento econômico, que Unidos vetaram essa resolução) e condena-
tinha sido alimentado com base em uma da no Tribunal Internacional de Justiça.
classe média em expansão, foi interrompido Outras ações hostis foram impedidas
por uma recessão mundial, com o resultado pelo Congresso dos Estados Unidos, que se
de que essa classe ficou dividida em sua le- recusou a fornecer as verbas solicitadas pelo
aldade política e as classes mais pobres fica- presidente para os Contras – uma recusa su-
ram ainda mais pobres. A classe média era perada por uma série de subterfúgios, como
atraída, por um lado, para as velhas oligar- vender armas ao Irã e desviar os lucros ou
quias que representavam, mesmo quando parte deles aos Contras com – pouco se
não mais podiam comandar a ordem esta- pode duvidar – a conivência do presidente.
belecida tão cara à iniciativa de classe mé- Em 1983, quatro países – México, Ve-
dia, mas, por outro, essa classe era alienada nezuela, Colômbia, Panamá – formaram o
dos oligarcas por sua brutalidade egoísta e Grupo de Contadora, um grupo de países
pela desconfiança de que seus dias estavam mais distantes, preocupados com as múl-
contados. Os pobres foram fortalecidos por tiplas desordens na América Central. Seu
mostras de uma ordem mais justa e endu- propósito era gerar uma pacificação no
recidos por sucessivos períodos de dificul- subcontinente, com base no reconheci-
dades no final dos anos de 1970. Contudo, mento de todos os governos que estivessem
as rebeliões resultantes eram consideradas, instalados, a autodeterminação e a redução
em Washington, como algo mais sinistro e de armamentos, mas o grupo não recebeu
qualquer inclinação dos setores liberais dos a confiança de Washington por sua impar-
Estados Unidos pelas revoluções tardias da cialidade, que reconheceria, e provavel-
América Central era superada pela con- mente validaria a posição dos sandinistas
vicção de que elas eram majoritariamente na Nicarágua. Sob pressão de Washington,
POLÍTICA MUNDIAL | 705

Honduras, Guatemala e El Salvador se re- Washington e com otimismo prematuro em


cusaram a participar de uma conferência outros lugares. A Nicarágua agiu rápido, li-
que o grupo propôs em 1985, mas o grupo bertando prisioneiros, permitindo que o La
perseverou e produziu, em 1986, um pro- Prensa reaparecesse e anulando o estado de
grama detalhado para conversações entre emergência e a proibição dos partidos polí-
governos da América Central (a Declaração ticos – mas foi criticada por não fazer mais.
de Carabellada). Esse programa era irreme- Outros signatários discutiam se tinham
diavelmente oposto à insistência de Reagan feito ou não o que era exigindo deles em
de que se deveria obter a paz por meio de seus países. Não obstante, o plano Arias era
conversações entre os Sandinistas e os Con- um bom indicativo, ainda que somente por
tras, e de que os primeiros deveriam, antes, apontar em uma direção que condenava as
introduzir reformas políticas na Nicarágua. políticas de Reagan e forçava seu sucessor,
Visivelmente, Reagan colocava a remoção George Bush, a revisá-las e acabar se afas-
dos Sandinistas acima da paz, enquanto o tando delas. Em 1989, os cinco presidentes
Grupo de Contadora concebia uma pacifi- levaram adiante sua iniciativa exigindo a
cação que pudesse deixar os Sandinistas no desmobilização dos Contras e sua reinte-
poder. Washington descreveu as propostas gração à sociedade nicaraguense.
do grupo de Contadora como uma ameaça Em 1990, os nicaraguenses tiveram per-
à região e aos Estados Unidos. missão para fazer sua primeira eleição des-
Mas Reagan recuou da intervenção mi- de 1984. Naquela, eles deram a vitória aos
litar aberta que poderia, por si só, ter obti- Sandinistas, mas desta vez, não. Os Sandi-
do o que ele queria e seu apoio aos Contras nistas continuaram sendo o maior partido
foi prejudicado pela revelação, às vésperas individualmente, mas foram vencidos por
das eleições intermediárias de 1986, da uma coalizão liderada por Violeta Cha-
venda de armas ao Irã. Os Estados Unidos morro, viúva do editor assassinado do La
conseguiram manter os Contras em campo Prensa. Embora o ataque norte-americano,
em Honduras, mas, apesar de serem de 15 através dos Contras, tenham sido um fra-
a 20 mil soldados e com abundantes equi- casso com alto custo, as sanções dos Esta-
pamentos modernos, eles não tomaram dos Unidos destruíram a economia nicara-
nenhuma cidade de tamanho razoável na guense e o povo queria um novo governo,
Nicarágua. Honduras, que os acolhia e era que desse fim a elas e garantisse um padrão
bem paga para isso, não recebia apoio de de vida decente. Mais além, o bom históri-
nenhum outro governo da América Cen- co dos Sandinistas em questões como saúde
tral, enquanto, na frente sul, a Costa Rica e educação era compensado pela incom-
abandonou a guerra quando Oscar Arias petência econômica, corrupção e, em um
sucedeu Alberto Monge como presidente e sentido mais amplo, pelas consequências
apresentou um plano (pelo qual ele recebeu deploráveis de enfrentar os Estados Unidos
o Prêmio Nobel da Paz) que foi assinado em uma guerra que tinha custado dezenas
por cinco presidentes centro-americanos, de milhares de vidas. Embora metade das
incluindo o da Nicarágua. Propunham-se terras e mais de um terço das principais in-
eleições presidenciais, nacionais e locais na dústrias continuassem em mãos privadas,
Nicarágua em 1990, precedidas da suspen- o governo tinha nacionalizado os bancos
são da censura à imprensa e de obstáculos e assumido o controle de salários, preços e
à atividade política multipartidária. Esse importações, com resultados desastrosos. A
esquema era visto com desconfiança em ajuda estrangeira, na maioria da Alemanha
706 | PETER CALVOCORESSI

Oriental e da URSS, era considerável, mas Unidos concordavam em ceder o Canal do


desperdiçada. Os salários reais perderam Panamá em 1999, sob a condição de que fos-
90% de seu valor durante os anos de 1980, se permanentemente neutro e que os Estados
a produção industrial declinava um quinto Unidos tivessem direito permanente de de-
por ano e o PIB per capita afundou a 300 fendê-lo. O canal estava se tornando menos
dólares ao ano, o mais baixo na região. Vio- importante estrategicamente para os Estados
leta Chamorro formou um governo onde se Unidos, mas permanecia economicamente
encontrava espaço para alguns sandinistas, vital ao Panamá, cuja economia dependia
mas nenhum dos líderes Contra. Os confli- do aluguel pago pelos norte-americanos,
tos entre os bandos Sandinista e Contra se do comércio da zona de livre comércio, do
tornaram endêmicos, alimentados por for- tráfego em bandeiras de conveniência e das
tes subidas de preços e desemprego. A elei- atividades financeiras sem regulamentação
ção de Chamorro, que coincidiu com a saída fiscal na Zona do Canal. Em 1981, depois de
de Reagan da Casa Branca, possibilitou que sair do cargo, mas ainda como comandan-
a guerra tivesse fim. Mas não tiveram fim os te em chefe, Torrijos foi morto em um aci-
combates esporádicos, na medida em que os dente de avião. A partir de 1982, depois de
exércitos se dissolveram em bandos que não um golpe militar, uma sequência de generais
tinham alternativa à violência como modo sem maior destaque tomou posse no poder
de vida. As eleições de 1996 foram vencidas e o poder se acumulou nas mãos do general
por uma coalizão de direita liderada por Ar- Manuel Noriega Morena, o segundo na linha
noldo Alemán Lacajo, mas seu governo co- de comando do exército.
meçou a se dissolver no ano seguinte. Lacajo Noriega era um provável presidente,
foi condenado por fraude (2003) e entregou mas, em 1984, Arias foi reeleito contra a
a liderança de seu partido a sua esposa*. Em vontade do exército. Financiado pela CIA,
Honduras, a tentativa de retornar à norma- apesar de seu papel conhecido no tráfico de
lidade incluiu a indicação do arcebispo de drogas, aclamado nos Estados Unidos como
Tegucigalpa como chefe de polícia. Eleições democrata, Noriega continuou nos bastido-
caóticas, em 2005, criaram um interregno res organizando a tortura e o assassinato de
que terminou com a instalação de Manuel seus adversários, desfrutando de uma renda
Zelaya Rosales como presidente**. de 100 milhões por ano por tornar o Pana-
No Panamá, o presidente Arnulfo Arias má o principal canal para o tráfico de dro-
Madrid estabeleceu um recorde de três de- gas entre a Colômbia e os Estados Unidos,
posições do cargo (1941, 1951, 1968). Seu ajudando ambos a armar os Contras nica-
sucessor na terceira ocasião foi o coronel raguenses e ascendendo a chefe do exército.
Omar Torrijos Herrera, um popular mesti- Quando os escândalos ficaram muito explí-
ço que tinha apoio do exército e gerou uma citos, ele foi abandonado pelos norte-ame-
explosão econômica incentivando bancos ricanos e acusado publicamente de tráfico
estrangeiros a fazerem negócios no Panamá, de drogas, fraude eleitoral e assassinato. Em
e também o comércio estrangeiro a fazer o 1988, Washington exigiu que o presidente
maior uso de seu porto livre. Ele negociou Eric Delvalle demitisse Noriega de seu cargo
os tratados de 1977, pelos quais os Estados no exército, e foi quando Noriega demitiu
Delvalle da presidência. No ano seguinte,
ele cancelou a eleição que, certamente, ele-
* N. de R.T.: Os Sandistas retornaram ao poder em 2006.
geu Guillermo Endara Galimany para presi-
** N. de R.T.: Foi deposto em 2009, através de um golpe de
Estado. dente. Ele foi indiciado por tráfico de drogas
POLÍTICA MUNDIAL | 707

nos Estados Unidos, e Washington também estavam oficialmente terminadas e o manto


tentou suborná-lo para que deixasse o Pana- de paz se espalhava pela área. Isso era uma
má e morasse na Espanha, mas ele recusou. benção, mas gerava expectativas que não se
Tudo isso tendo falhado, Bush decidiu inva- cumpriam com facilidade. A recuperação
dir o país e prender Noriega, o que conse- econômica vinha em ritmo muito lento, os
guiu fazer em uma operação que – depen- vínculos comerciais entre os Estados eram
dendo do ponto de vista – foi hilariante ou mínimos, as esperanças de entrar para a
humilhante. Noriega foi levado à prisão na Nafta foram extintas pelos Estados Unidos
Flórida, onde permaneceu por 18 anos. e pelo México, e as tentativas de encontrar
Endara foi instalado em seu lugar, mas um modo de vida (fora da criminalidade)
perdeu a presidência, em 1994, para um com- para tropas desmobilizadas não tiveram
parsa de Noriega, Ernesto Pérez Balladares, muito sucesso. O final da Guerra Fria indu-
que propôs estender seu mandato até o milê- ziu os Estados Unidos a assumir uma visão
nio seguinte, se necessário mudando a Cons- mais relaxada da esquerda e olhar de forma
tituição, mas foi impedido pelo parlamento. menos indulgente aos excessos de seus par-
Em 1999, Mireya Moscoso de Gruber, viúva ceiros de extrema direita, e mesmo conside-
de Arnulfo Arias, que havia sido presidente rar o tráfico de drogas perigosas como uma
por muito tempo, tornou-se a primeira mu- ameaça maior aos Estados Unidos do que o
lher a presidir o Panamá ao derrotar Martin tráfico de ideias perigosas.
Torrijos Espinosa (filho de Omar Torrijos), O tráfico de drogas, no qual a América
embora, em eleições parlamentares, uma co- Central e o Caribe cumpriram um impor-
alizão liderada por este tivesse derrotado de tante papel entre o Sul e o Norte, cresceu
forma decisiva a liderada por Moscoso. nos anos de 1990 para ser um dos negócios
Na desordem posterior à Segunda Guer- de maior êxito, movimentando 400 bilhões
ra Mundial, a América Central estava no de dólares em todo o mundo, com usuários
rumo das transformações, tornando-se parte que chegavam aos 200 milhões e lucros tão
do mundo mais amplo, visando os mercados altos que poderia distribuir subornos a po-
mundiais e na mira das corporações inter- líticos e chefes militares sul-americanos e a
nacionais. Essa revolução teve consequên- organizações responsáveis por aplicar a lei,
cias para a propriedade da terra, a estrutura como também a funcionários de alfânde-
da política e a organização do trabalho que ga dos Estados Unidos. Ele deu à América
as elites dominantes não foram capazes de Latina uma importância maior do que ela
controlar, nem ao menos de perceber. Elas jamais tivera no mundo, pois o negócio
se viram diante da oposição de liberais e de das drogas não era apenas bem-sucedido,
radicais mais ativos que, entretanto, estavam mas também explicitamente fora do con-
divididos entre si, em parte por questões de trole do Estado e dos orgãos internacionais.
classe e em parte por visões opostas sobre Tentativas do Estado de reduzir o comércio
a moralidade e a conveniência do uso da criminalizando-o aumentaram seu poder de
violência. Em décadas de conflito, o poder lucro ao retirá-lo do sistema de taxas e ao
de fogo da autoridade tradicional das elites subornar e seduzir seus funcionários – uma
prevaleceu a ponto de frustrar insurreições, forma bizarra de concorrência de mercado.
de modo que os anos de 1990 assistiram ao Como no caso do álcool nos Estados Unidos
retorno de uma ordem mais pacífica, ba- depois de 1919, o uso do direito penal fra-
seada na exaustão e no final da Guerra Fria. cassou em seu propósito e isentou seus alvos
Em 1997, todas as guerras civis da região da atividade normal do sistema fiscal. Seus
708 | PETER CALVOCORESSI

principais praticantes eram importantes fi- do seu.) O produtores primários, principal-


guras nacionais e mesmo internacionais. mente em partes da América do Sul e su-
Na Colômbia, por exemplo, eles separaram deste da Ásia, eram ainda mais dependentes
grandes áreas do país da autoridade do Es- da indústria para sua sobrevivência do que
tado, criando o que era um Estado separado os empreendedores e exploradores que os
que enriquecia seus governantes e propor- controlavam. Drogas orgânicas baseadas na
cionava serviços públicos, incluindo edu- cocaína, na heroína ou na maconha estavam
cação e assistência social. (Em Mianmar, o sendo superadas por alternativas industria-
governo negociou com o principal barão lizadas que podiam ser produzidas com
das drogas uma aliança para a supressão de mais facilidade e menor custo, e em qual-
todos os negócios de drogas, com exceção quer parte do mundo.
Cuba e o Caribe
29
A ilha de Cuba, a maior das Antilhas, joga série de presidentes ocupou o cargo. Batista,
seu extremo ocidental dentro das mandí- que governou de 1940 e 1944, em princípio
bulas do Golfo do México, quase a meio não infringiu a Constituição que prescrevia
caminho entre as penínsulas da Flórida e mandatos de quatro anos, com proibição de
Yucatán, das quais está separada por canais reeleição imediata, mas, em 1952, fez de si
com cerca de 160 km de largura. Cuba, de mesmo ditador permanente e introduziu
todas as Índias Ocidentais, é a mais próxi- um reino de terror. Em 26 de julho do ano
ma das partes continentais das Américas seguinte, uma data que deu o nome a um
do Norte e Central. Seus assuntos tem sido movimento, Fidel Castro liderou um ata-
foco de preocupação especial dos Estados que ao Quartel Moncada em uma tentativa
Unidos desde metade do século XIX. Sua fracassada de derrubar Batista. Depois de
libertação da Espanha, no final do século, 18 meses na prisão, Fidel saiu para prepa-
revelou-se não mais do que uma troca de se- rar uma segunda tentativa no México e, em
nhores, e pôs fim a um período de governo 1956, liderou uma invasão por um grupo de
colonial sem os benefícios da administração 84 membros, que foi derrotado rapidamen-
colonial. Muito adiante de seus vizinhos te. Os sobreviventes, apenas 12, escaparam
caribenhos em termos de níveis educacio- para a Sierra Maestra, onde passaram de
nais e estrutura, e tão bem dotada de uma táticas de ataque direto para uma guerrilha,
classe média quanto o mais avançado país que travaram por dois anos. Em 1958, Batis-
da América Latina, mesmo assim Cuba su- ta atacou as forças cada vez maiores da re-
portou um histórico ininterrupto de maus belião, mas sua campanha foi um fracasso e
governos, desde sua libertação até o regime serviu apenas para acelerar a desintegração
de Fidel Castro, inclusive. O cancelamento, de seu regime. Em 1º de janeiro de 1959, o
em 1933, da Emenda Platt coincidiu com o regime caiu e Fidel Castro triunfou.
fim do odiado governo de Gerardo Macha- A vitória de Fidel foi um evento revo-
do, que tinha se baseado, em certa medida, lucionário diferente das revoluções comuns
em apoio norte-americano. Machado trans- na América Latina. O fervor reformador do
feriu a presidência a Manuel de Céspedes, novo governo era poderoso e ilimitado. Em
mas uma revolta de oficiais de patente mais segundo lugar, era para ser exportado. Ter-
baixa (incluindo o sargento Fulgencio Batis- ceiro, o castrismo se associou ao comunis-
ta) e estudantes derrubou o regime e inau- mo cubano, e quarto, Cuba entrou em uma
gurou um período de 20 anos em que uma aliança com a URSS.
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710
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PETER CALVOCORESSI

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RICA PANAMÁ
0 150 300 km VENEZUELA
0 75 150 milhas COLÔMBIA

Figura 29.1 O Caribe.


POLÍTICA MUNDIAL | 711

Esses eventos levaram ao envolvimento Unidos, que representava uma forma de


direto dos Estados Unidos na contrarrevo- servidão econômica e também estava politi-
lução e a uma invasão de Cuba, em 1961, e, camente carregado com memórias de domi-
um ano depois, ao confronto direto e aberto nação norte-americana por uma geração. Ao
entre os Estados Unidos e a URSS, descrito mesmo tempo, e com uma desconsideração
em uma parte anterior deste livro. igual pelos aspectos práticos imediatos, Fidel
Fidel Castro não assumiu o cargo ime- tentou estender os benefícios da revolução
diatamente. A presidência foi dada a Ma- e da reforma aos povos dos países vizinhos.
nuel Urrutia Lleó, que quase imediatamente Ele se envolveu em atividades subversivas na
tentou renunciar, e conseguiu fazê-lo alguns República Dominicana, no Haiti, na Nicará-
meses depois, sendo sucedido por Osvaldo gua, no Panamá e na Venezuela, e alarmou
Dorticós Torrado. Inicialmente, o cargo de todos aqueles cujos instintos liberais eram
primeiro-ministro foi para José Miró Car- menos ativos do que seu amor pela lei e pela
dona, que em princípio renunciou em ques- ordem (ou pela ordem de qualquer outro
tão de dias e, por fim renunciou depois de tipo), ao dar dinheiro a grupos de esquerda e
algumas semanas, e foi sucedido por Fidel transmitir à América Latina uma mensagem
Castro. Essas hesitações e indicações de falta castrista tão perturbadora quanto a voz de
de confiança por parte de reformadores mo- Nasser no Oriente Médio.
derados revelavam o desconforto com que Fidel Castro precisava de ajuda estran-
observavam a transferência de poder que geira, ou créditos e consumidores para
vinha acompanhada por julgamentos sumá- substituir os Estados Unidos, e tomou a
rios e vinganças sangrentas. Nos anos ante- atitude óbvia. Em 1960, Mikoyan visitou
riores à sua ascensão ao poder, Fidel tinha Havana e estabeleceu um acordo comercial
dado uma série de declarações de caráter com Cuba que, entre outras coisas, possibi-
moderado, mas ele e seu principal assessor, litava ao país comprar petróleo russo. No
Ernesto “Che” Guevara, filho de argentinos mesmo ano, Che Guevara fez uma viagem
abastados, estavam determinados a realizar por países da Europa Oriental, e Cuba esta-
reformas reais e não a trabalhar com elas da beleceu relações diplomáticas com Moscou,
forma morna de tantos latino-americanos. começando a comprar armas do bloco co-
Diferentemente deles, Fidel não se dava o munista. Fidel questionou os direitos norte-
trabalho de respeitar formalmente a Cons- -americanos sobre a base naval de Guantá-
tituição nem de realizar eleições sem senti- namo (ocupada pelos Estados Unidos por
do. Ele começou a trabalhar para mudar as um aluguel anual de 2.000 dólares) e seu
coisas. Além disso, Cuba, mais uma vez dife- domínio sobre as plantações de açúcar. Ele
rente de tantas repúblicas latino-americanas, propôs nacionalizar a terra, incluindo as de
era um país relativamente próspero com propriedade norte-americana, tomou posse
uma economia relativamente diversificada. de refinarias de petróleo dos Estados Uni-
A principal fragilidade era sua dependência dos e da Grã-Bretanha quando elas se re-
do açúcar e, portanto, dos Estados Unidos, cusaram a refinar petróleo russo, e parecia
para o intercâmbio no exterior. Sendo assim, ter intenção de difundir sua revolução por
Fidel e Che Guevara foram tentados, pelas toda a América Central e do Sul. Essas me-
circunstâncias e por seus temperamentos, a didas se combinaram para irritar e assustar
avançar rapidamente e, confiando em uma o governo Eisenhower que, ciente da impo-
certa força econômica, a atacar sem adia- pularidade de Batista, em princípio vira a
mentos o vínculo especial com os Estados vitória de Fidel Castro sem tanto receio. No
712 | PETER CALVOCORESSI

final de 1960, Eisenhower apoiou uma polí- de Estado, Dean Rusk, não era); Kennedy
tica que visava se livrar de Fidel em favor de não queria decepcionar várias centenas de
alguma alternativa que não fosse qualquer cubanos, com quem simpatizava, nem sa-
dessas duas (mas que não existia). bia o que fazer com eles se fossem desmo-
Os Estados Unidos tinham esperanças bilizados; a expectativa de que Fidel Castro
de fazer pressão pan-americana, mas uma em pouco tempo teria aviões a jato russos
conferência de ministros de relações ex- tornaria muito difícil, se não impossível,
teriores americanos em San José, embora apoiar uma invasão desse tipo em um mo-
condenasse a intervenção russa e chinesa mento posterior. Kennedy reafirmou a proi-
na América Latina, recusou-se a se referir a bição de envolvimento de forças dos Estados
Cuba pelo nome. Washington decidiu agir Unidos, mas ignorou a oposição do senador
por conta própria, parou de comprar açúcar William Fulbright e outros, que defendiam
cubano e, depois que Fidel retaliou naciona- a contenção de Cuba em vez de uma ação
lizando as propriedades norte-americanas, direta que seria contrária à Carta da OEA e
impôs um boicote comercial completo e aumentaria o repúdio a Washington por seu
cortou relações diplomáticas (1961). imperialismo e sua hipocrisia ao lidar com
Desde o princípio de 1960, os Estados seus vizinhos do sul.
Unidos ajudaram e incentivaram refugiados Na noite de 14 para 15 d abril de 1961,
cubanos em dois lugares, ambos sob a co- uma força de 1.400 homens – dos quais 90%
bertura da Agência Central de Inteligência. eram civis semitreinados – apoiados por
Na Flórida, foi constituído um comitê de bombardeiros B-26 que operavam a partir
políticos exilados que esperavam se tornar da Nicarágua com pilotos cubanos, desem-
o governo de Cuba, o qual incluía homens barcou na Baía dos Porcos para descobrir
com visões muito diferentes, que só se man- que, ao contrário das garantias recebidas da
tinham unidos por sua oposição comum CIA, o governo dos Estados Unidos não es-
a Fidel e por seus coordenadores norte- tava disposto a lhes dar cobertura e que as
-americanos. Na Guatemala, uma força foi esperadas rebeliões em Cuba não estavam
treinada às pressas para retornar a Cuba em se materializando. A reação do governo
pequenos bandos e começar uma guerrilha. cubano foi mais eficaz do que foi antecipa-
No início, não se cogitava a participação do e, em 48 horas, tudo estava acabado. Fi-
militar dos Estados Unidos na aventura, del prendeu milhares de seus concidadãos,
mas, com a passagem do tempo, as táticas aproveitando a oportunidade para silenciar,
originais foram transformadas de uma in- desmoralizar e, em alguns casos, extinguir
filtração em partes a uma invasão única os adversários. Seu prestígio para além de
com cobertura aérea norte-americana, e se Cuba aumentou muito.
deixou que os exilados pensassem que os Não obstante, sua posição em outros
Estados Unidos cobririam suas operações aspectos parecia infeliz. As medidas eco-
em terra em lugar de deixar que eles fra- nômicas tomadas por seu governo foram,
cassassem. Quando Kennedy foi informado segundo ele mesmo, mal concebidas. Uma
dessas atividades imediatamente após sua paixão pela industrialização, comum à épo-
bem-sucedida campanha para presidente, ca, levou à construção de fábricas para fa-
ele ficou incomodado, mas não as vetou. A zer, em Cuba, artigos que poderiam ser im-
operação estava em andamento, os chefes portados do exterior a preço menor do que
do Estado-Maior (seus assessores mais gra- o das matérias-primas para sua fabricação.
duados) eram favoráveis (mas seu secretário Na zona rural, os camponeses demonstra-
POLÍTICA MUNDIAL | 713

vam o descontentamento, comum em todo promovidos a cargos e ganharam influên-


o mundo, em relação à suas cooperativas, a cia, mas, em 1962, o mais destacado deles,
nacionalização da terra e ao cultivo obriga- Anibal Escalante, foi demitido e fugiu para
tório de produtos destinados à venda por a Tchecoslováquia pouco antes de Fidel
preços fixos baixos. A classe média, que sair para uma visita longa à URSS. Os dois
tinha sido um ingrediente mais ativo na partidos tinham entrado em conflito, os fi-
revolução do que os camponeses e a classe delistas prevaleceram e Moscou apoiou os
trabalhadora urbana, foi contrariada quan- vencedores.
do a estatização se estendeu a empresas na- O apoio de Moscou a Fidel se tornou um
cionais e quando o novo regime assumiu as fardo econômico com empolgantes possibi-
antigas e más práticas de seus antecessores lidades políticas e estratégicas. Mantê-lo de
ao colocar seus adversários em prisões fé- pé do ponto de vista econômico provavel-
tidas. Em 1962, houve crise econômica, mente estava custando à URSS mais do que
recusa geral dos camponeses a trabalhar, ela tinha negociado em termos financeiros;
racionamento de alimentos, e desilusão, in- mantê-lo politicamente diante da determina-
satisfação e pobreza generalizadas. ção dos Estados Unidos de destruí-lo pode-
No final de 1961, Fidel se declarou ria ter sido uma política ainda mais custosa
marxista. O Partido Comunista Cubano e arriscada, mas também era excepcional-
era uma entidade distinta que, inicialmen- mente tentadora, já que uma aliança efetiva
te, pouco ou nada tivera a ver com o Mo- entre a URSS e Cuba daria aos russos um
vimento 26 de Julho, de Fidel. Não era um posto avançado na América Latina, com to-
partido com apoio de massas e no período das as suas possibilidades revolucionárias, e
de Batista, preferia as manobras políticas uma base a 160 km dos Estados Unidos para
de bastidores que lhe garantiram um lu- compensar aquelas que cercavam a URSS de
gar humilde na periferia da constelação adversários. Segundo fontes cubanas – e chi-
governante. Antes da vitória de Fidel, em nesas – foi de Khruschev a ideia de enviar a
1959, tanto no campo fidelista quanto no Cuba os mísseis e os aviões a jato que foram
comunista, havia os que incentivavam observados inicialmente pelos serviços de
uma aproximação ou mesmo uma fusão, reconhecimento dos Estados Unidos em ou-
e outros que se opunham. Durante o ano tubro de 1962. Seja como for, Cuba, que Fidel
de 1961, os primeiros prevaleceram e os transformou em uma ala econômica e polí-
partidos realizaram um grau considerável tica da URSS, foi convertida por Khruschev
de integração. Cuba se tornou parte do em uma marionete armada.
mundo comunista em termos de políti- Enquanto Fidel queria equipar Cuba
ca internacional, mas Fidel não se tornou para se defender de um segundo ataque
comunista ortodoxo (ele parecia se preo- como o da Baía dos Porcos, Khruschev en-
cupar pouco com os ensinamentos comu- viou armas de uma importância totalmen-
nistas) nem cativo da máquina comunista. te diferente. No contexto latino-americano
Tão independente, à sua maneira, quanto mais restrito, os resultados foram que a
Mao ou Tito – e dentro dos limites impos- OEA (que havia expulsado Cuba de suas fi-
tos pela necessidade de Cuba de ter ami- leiras no início do ano) aprovou o emprego
gos estrangeiros – ele também continuava de força por parte dos Estados Unidos con-
líder de um governo e um movimento que tra os navios russos que se aproximavam.
eram comunistas apenas em parte. Líde- O fato de vários países latino-americanos
res do Partido Comunista Cubano foram contribuírem ao bloqueio de Cuba instituí-
714 | PETER CALVOCORESSI

do pelos Estados Unidos foi deixado de lado misfério americano não mais podia ser isola-
enquanto Kennedy e Khruschev avançavam da da política internacional como um todo.
para resolver a crise, mas Fidel teve uma re- Os Estados Unidos, há algum tempo, vinham
cepção esplêndida quando voltou a visitar fazendo um cavalo de batalha dos perigos do
Moscou, em 1963, e teve confirmação da comunismo internacional na América Lati-
continuidade da solidariedade e do apoio na, mas essa postura ideológica tinha per-
russos. dido de vista o principal aspecto, que era a
Para Fidel, a crise dos mísseis de 1962 abertura da América Latina aos processos
envolvia a ameaça de extinção, já que o revés da política internacional não-ideológica, da
à URSS poderia acarretar uma liberdade im- mesma forma que o Oriente Médio e o res-
plícita aos Estados Unidos para fazer o que tante da Ásia e, depois, a África, se tornaram
quisessem em Cuba e derrubar um governo campos magnéticos internacionais assim que
que tinha sido conivente com uma tentativa ambas as superpotências decidiram exercer
de alterar o equilíbrio de poder no hemisfé- ali seus poderes, o que ninguém poderia im-
rio americano mais radicalmente do que em pedir. Nas primeiras décadas do pós-guerra,
qualquer momento desde o século XVIII. supunha-se que as duas áreas do mundo
Mas o tempo pareceu mostrar que o triunfo fossem imunes a essa interação: a América
de Kennedy sobre Khruschev não deveria Latina, na penumbra dos Estados Unidos, e
ser interpretado assim. O próprio Fidel se o império satélite de Moscou na Europa. A
sentiu seguro o suficiente contra uma outra crise cubana mostrou que essa suposição era,
invasão por parte dos Estados Unidos a pon- no mínimo, um exagero. Khruschev, com Fi-
to de se envolver, próximo ao final de 1963, del para lhe abrir os olhos, farejou que havia
em uma trama contra o governo da Vene- chegado a hora de questionar o inquestioná-
zuela (pela qual a OEA o declarou agressor vel. Essa capacidade era um de seus pontos
e recomendou o rompimento de relações di- fortes como político.
plomáticas e conexões comerciais, um passo Como era sua característica, no entan-
que naquele momento, só o México se recu- to, ele seguiu seu instinto com mais entu-
sou a dar). O castrismo também foi um dos siasmo do que cautela e se expôs a uma der-
ingredientes de uma rebelião no Peru andi- rota aguda. A crise cubana demoliu a teoria
no, em 1965, na qual desfavorecidos em si- de que as superpotências têm quintais onde
tuação de desespero tentaram, ajudados por basta colocar placas proibindo a entrada.
suprimentos castristas e comunistas e apoio Embora a interferência nessas regiões te-
moral através do rádio, chamar a atenção do nha continuado de alto risco, elas não eram
governo para sua situação. Mas o ostracis- áreas fechadas, e sim lugares onde os vários
mo de Fidel, em 1964, era um lembrete de ventos da política internacional sopravam
que ele ainda estava lá para ser condenado com força variada.
ao ostracismo, e se ainda estava lá, parte da Para Cuba, a experiência foi amarga.
razão era que seu país estava sob proteção Durante o período de dominação dos Esta-
de uma grande potência. dos Unidos, até 1933, o país foi um territó-
Os russos foram expulsos fisicamente rio do tipo colonial, sem permissão para fa-
do Caribe, mas mantinham uma capacida- zer alianças com outros países nem acolher
de protetora, ou invasiva, de outra ordem. A bases estrangeiras. Fidel reverteu essa situa-
afirmação da Doutrina Monroe revelou suas ção ao ponto extremo de fazer uma aliança
limitações. Não haveria bases estrangeiras no com a URSS e transformar Cuba em uma
continente Americano, mas a política do he- base russa, e o fez a partir de um cálculo so-
POLÍTICA MUNDIAL | 715

bre os interesses cubanos que se revelou um rígidas contra pequenas empresas criaram
erro, já que a URSS demonstrou, ao recuar um subproletariado grande e em má situa-
diante do desafio de Washington, que os in- ção econômica. O nepotismo, desigualda-
teresses de Cuba tinham pouca importância des e controles sufocantes sem benefícios
no cálculo de Moscou sobre seus próprios proporcionais agravavam sua condição. Em
interesses no hemisfério ocidental. Embora 1979, um ciclone aumentou os problemas;
a URSS tivesse desafiado a Doutrina Mon- a colheita de açúcar foi um fracasso e a de
roe, ela não o tinha feito em apoio ao nacio- tabaco foi muito atingida por pragas. O peso
nalismo e as ambições cubanos. Fidel, que do bloqueio econômico de Washington se
tinha esperanças de ser o equivalente latino- fazia sentir cada vez mais. Em 1980, 10 mil
-americano de Tito, Sukarno e Nasser e, cubanos invadiram a embaixada peruana
ao mesmo tempo, a personificação de uma em Havana exigindo ir para o Peru e espe-
nova dignidade nacional e líder regional da rando chegar aos Estados Unidos. Alguns
revolução, viu-se, em vez disso, como gover- deles eram criminosos comuns ou candida-
nante de uma ilha que tinha se tornado uma tos a refugiados políticos, mas a maioria era
curiosidade internacional, em vez de um de cubanos que estavam cheios de viver em
núcleo internacional, e que estava come- Cuba. Fidel conseguiu fazer o pior diante da
çando a parecer um tanto desgastada, como situação ao lhes permitir sair, mas eles fo-
consequência da confusão econômica e ad- ram uma propaganda extremamente ruim
ministrativa. Para Che Guevara, o argentino da situação do país.
pan-americano segundo o qual a revolução Sua situação piorou alguns anos mais
em Cuba (e não no México nem na Bolívia) tarde, quando Gorbachev, que visitou Cuba
deveria ter sido o verdadeiro começo da re- em 1989, cortou a ajuda russa e cessou o
volução latino-americana, a reavaliação exi- comércio com a Europa Oriental comple-
gida pelo recuo russo foi ainda mais dura do tamente. Os serviços públicos entraram em
que para Fidel, e, ao longo dela, os dois en- colapso, as indústrias fecharam por falta de
traram em conflito e Che Guevara desapare- combustível, bem como de pedidos, os salá-
ceu, levando consigo grande parte do sabor rios não foram pagos, a emigração acelerou
internacional da revolução cubana que ten- (durante todo o período de Fidel Castro,
tara injetar na América do Sul, até encontrar Cuba perdeu cerca de 15% de sua popula-
a morte na Bolívia, em 1967. ção). O símbolo maior do lamentável estado
As aventuras de Fidel na África, que fo- do país foi a retirada de 11 mil soldados por
ram descritas no Capítulo 26 deste livro, au- Gorbachev, enquanto as forças dos Estados
mentaram e divulgaram sua independência Unidos continuavam em Guantánamo.
em relação à URSS, e coincidiram com a in- Porém, não houve revolta. Fidel con-
flação e a recessão globais no final dos anos seguiu inclusive transformar as misérias de
de 1970. Na primeira parte daquela década, seu próprio povo em vantagem pessoal, ao
a economia cubana cresceu ao ritmo de 10% permitir e até facilitar seu êxodo aos Esta-
ao ano, mas essa taxa caiu a 4% em 1980. dos Unidos. O governo Clinton herdou uma
Alimentos, moradia e transportes ficaram política de admissão de refugiados cuba-
escassos e caros, o preço do combustível se nos de braços abertos, mas diante de uma
tornou proibitivo para uma grande quanti- nova onda de 50 mil, decidiu interceptá-los
dade de pessoas, muitos trabalhadores ti- (os que não se afogaram no caminho) e os
nham de viajar quatro horas por dia para ir transportar à base de Guantánamo, que,
e voltar do trabalho. Regulamentações mais contudo, já estava sobrecarregada com 14
716 | PETER CALVOCORESSI

mil refugiados haitianos e com o custo de cubanos emigrassem anualmente. Quase to-
mantê-los indefinidamente. Depois de um dos eles se juntaram a seus conterrâneos na
ataque a um avião civil no espaço aéreo Flórida, que perfaziam um quinto do povo
cubano, os Estados Unidos impuseram san- cubano. A crítica ao déficit democrático de
ções econômicas às empresas estrangeiras Cuba por George W. Bush voltou a congelar
que fizessem comércio com Cuba (ou com as relações cubano-americanas. Em 2008,
o Irã e a Líbia), uma ação que gerou muita Fidel, mal de saúde, transferiu seu cargo e
indignação na Europa. Clinton, em um dile- seus poderes a seu irmão Raul.
ma, foi forçado a realizar conversações com A vizinha ilha de Hispaniola foi dividi-
um regime que não dava sinais de cair e cujo da entre o Haiti e a República Dominicana.
único propósito era a remoção das sanções O primeiro conquistou a independência por
– sua principal arma, antes de usar a força. meio de uma revolta de escravos contra a
Em um certo sentido, Fidel Castro era um França revolucionária e napoleônica, depois
líder revolucionário que fracassou porque de ser colônia francesa a partir de 1697. Os
sua revolução foi estrangulada pelos Estados governantes franceses deram um exemplo
Unidos, mas em um sentido mais profundo, de comportamento atroz, que não se perdeu
a revolução não deu certo porque transfor- em seus representantes e sucessores.
mou otimismo em pessimismo ou, na me- Até 1843, a ilha de Hispaniola compre-
lhor das hipóteses, em resignação. Antes endia um Estado único mas, naquele ano,
dele, Cuba era um país latino-americano re- foi dividida em Haiti e República Domini-
lativamente próspero, mas mal governado, cana. O primeiro foi ocupado pelos Estados
cujo negócio era vender açúcar aos Estados Unidos entre 1915 e 1934. A sociedade e a
Unidos. Também era um país relativamente política giravam em torno de uma maioria
novo, libertado da Espanha próximo ao final negra e uma elite mulata que, depois de se
do século XIX, mas governado por uma elite associar por um breve período para se livrar
estreita, ineficiente e cada vez mais corrupta, do domínio francês, trataram uma à outra
que pilhava os frutos do desenvolvimento e com selvageria. Os ditadores eram comuns,
não os potencializava. A revolução de Fidel mas nem sempre, ou totalmente cruéis. As
Castro parecia complementar a revolução principais características do regime do co-
contra a Espanha e gerou esperanças. Mas ronel Paul Magloire (1950-1956) eram a ex-
seus elementos cada vez mais dogmáticos travagância, a alegria e a corrupção. Seu lu-
desencadearam novas emoções e tiraram a gar foi tomado por François Duvalier (Papa
base econômica do país, e quando a revolu- Doc) que estava escondido durante a época
ção deixou de corresponder às esperanças, de Magloire, mas surgiu para vencer uma
ela fracassou. O que a URSS sustentou até eleição, em 1957, e sobreviveu, em primeiro
1989 não era mais uma revolução, mas um lugar, por tramar melhor do que seus rivais
país tristemente sem esperanças, que per- e, em segundo, por recrutar, vestir e equipar,
deu, a partir daquele ano, ajuda soviética no principalmente nas favelas, um contraexér-
valor de 10% de seu PIB e o mercado para cito, os temidos Tonton Macoute. Ele con-
90% de suas exportações. No ano seguin- quistou o apoio do exército e da Igreja, ex-
te, Clinton relaxou o estrangulamento que traindo do Vaticano uma concordata (1966)
os Estados Unidos exerciam, mas em nível que deixava em suas mãos a indicação de
apenas modesto, dada a importância políti- bispos. Teve o apoio dos Estados Unidos até
ca dos exilados cubanos na Flórida. A partir que Washington foi conivente com uma in-
da mesma data, Fidel permitiu que 20 mil vasão ridiculamente incompetente por par-
POLÍTICA MUNDIAL | 717

te de seus inimigos na Flórida. Depois desse intervieram, sem eficácia. Pelo Acordo de
fiasco, Washington voltou a apoiar Duvalier, Governor’s Island, em 1993, o novo governo
seu governo se tornou brutal, cruel e en- Clinton, apoiando fortemente as políticas
louquecido, e ele morreu em 1971, sendo de seu antecessor, tentou persuadir o triun-
sucedido por seu filho, Jean-Claude (Baby virato haitiano a permitir a volta de Aristide
Doc). Enquanto Papa Doc foi o líder de um sem conter seriamente o domínio militar.
círculo de classe média negra, que seques- Essa manobra fracassou, mas uma maré
trou o Estado e o tratou como propriedade crescente de refugiados aos Estados Unidos
privada, ao mesmo tempo em que louvava a aumentou a determinação de Clinton. Ele
condição negra, a religião vodu nacional e enviou o ex-presidente Carter, flanqueado
as mais cruas ideias e práticas do fascismo pelo senador Sam Nunn e o general Colin
europeu, Baby Doc tinha seus amigos entre Powell, seguidos de perto por 20 mil solda-
os mulatos ricos. Era menos inteligente do dos, para negociar o retorno de Aristide em
que seu pai e, talvez, menos cruel, mas foi troca de uma anistia para os membros da
derrubado em 1986, depois de exagerar na junta que, depois de alguma tergiversação,
indulgência da Igreja Católica, das classes deixaram o país.
profissionais e dos jovens (nesse caso, como Aristide foi recolocado no cargo pela
em muitos países, chamados habitualmente força militar norte-americana, mas com
de estudantes). O regime Duvalier foi se- muitas dúvidas em Washington, onde se
guido de instabilidade, duas eleições, em esperava que, quando seu mandato termi-
1987 e em 1990, manchadas pela violência nasse, em 1995, ele seria sucedido por uma
e a derrubada, em 1990, de outro homem- figura menos radical, mas seu sucessor,
-forte, Prosper Avril. Uma terceira eleição Réné Préval, era mais suspeito. Os haitianos
pós-Duvalier deu ao padre Jean-Bertrand tinham poucas oportunidades de atividades
Aristide uma vitória convincente depois de econômicas com exceção do contrabando, e
uma campanha em que ele prometeu tornar quando isso falhava, eles passavam fome. As
a vida melhor para as oprimidas e desnutri- forças norte-americanas foram retiradas em
das vítimas da injustiça social, e o eleitorado 1999, antes das eleições marcadas.
se permitiu ter esperanças de que ele fizesse O objetivo explícito de Clinton no Hai-
isso. Aristide era um destemido padre de es- ti era restaurar a democracia. Embora fos-
querda que criticava sua própria hierarquia se elogiável em si e com probabilidades de
eclesiástica, assim como os Duvaliers. Dos conter as atrocidades humanas, essa tentati-
Estados Unidos, ele recebia elogios e algu- va por parte de um país de mudar pela força
ma ajuda pela democracia, mas críticas por o governo de outro rompia com a Carta da
estar à esquerda. Dentro de um ano, ele foi ONU e isso não foi muito atenuado quando
derrubado, quase morto e fugiu. Os chefes Clinton conseguiu que outros 20 membros
do exército e da polícia assumiram o con- da organização dessem pequenas contribui-
trole – os generais Raoul Cédras e Philip ções a uma invasão pelos Estados Unidos.
Biamfy e o coronel Joseph François – e os Mesmo que a desumanidade fosse justi-
Tonton Macoute reapareceram sob o nome ficativa para intervenção internacional, esse
de attachés. Pelo Acordo de Washington, de direito seria muito questionável se a defesa
1992, os Estados Unidos aceitaram recolo- dos direitos humanos só pudesse ser imple-
car Aristide no cargo se ele aprovasse um mentada com a derrubada do governo de
bloqueio militar, com o qual ele concordou um país soberano. O propósito wilsoniano
relutantemente. A OEA e a ONU também de Clinton, situando a democracia no cen-
718 | PETER CALVOCORESSI

tro de sua política externa, era um propósito tiu animosidades entre as ilhas, e a culpa
moral não claramente sustentado pela lei. pelo atraso foi atribuída ao governo britâni-
Na outra metade da ilha de Hispanio- co que, considerando os líderes das Índias
la, a República Dominicana, governada por Ocidentais muito mais de esquerda do que
Rafael Trujillo por mais de 30 anos até seu eles de fato eram, reduziram o ritmo em di-
assassinato em 1961, foi dominada pelos reção à independência e à federação.
30 anos seguintes por seu herdeiro Joaquín Nesse aspecto, havia um desejo verda-
Balaguer, um político astuto e comparativa- deiro, entre o povo e os políticos, de cons-
mente discreto, que conseguiu, nos anos de truir a federação apesar das reconhecidas
1990, dominar a inflação e aumentar a pro- dificuldades, como grandes disparidades em
dução geral, mas não reduzir o desemprego tamanho e riqueza entre as diferentes ilhas
(que estava em cerca de um quarto da força e as longas distâncias entre elas. Por outro
de trabalho) nem tornar mais fácil a vida da lado, com exceção, talvez, das ilhas meno-
metade mais pobre da população ou alterar res, esse interesse não existia; a federação de
o balanço comercial do país. Balaguer tinha 1958 tinha uma base política estreita e líde-
a oposição persistente de Juan Bosch, que res sindicais vulneráveis a uma revolta popu-
venceu a primeira eleição pós-Trujillo, mas lar, no caso, impulsionada por outros líderes,
foi derrubado pelo exército depois de alguns que viam nela um caminho para assumir o
meses. O surto de guerra civil foi encerra- poder. Essa visão reforça a forma de pensar
do pela intervenção dos Estados Unidos e o nos povos do Caribe como ilhéus com um
início do primeiro dos seis mandatos de Ba- aguçado sentido de pertencimento a suas
laguer na presidência. Quando esses rivais ilhas específicas, mas pouco sentido de co-
estavam ambos com mais de 80 anos, um munidade com outros além do horizonte
terceiro homem entrou nas lutas políticas (um hábito acentuado pelo fato de que, sob
– José Francisco Gómez – que, apesar das domínio colonial, cada colônia tinha sido
desvantagens de ser negro e nascido no Hai- tratada pelo British Colonial Office como
ti, deixou Bosch em terceiro nas eleições de um objeto distinto em uma série de relacio-
1994 e também derrotou Balaguer, embora namentos bilaterais com a Grã-Bretanha).
quem contou os votos tenha entendido di- Pouco depois da federação, o primeiro-
ferente. O principal recurso do país eram as -ministro da Jamaica, Norman Manley, foi
plantações de açúcar, cuja mão de obra era desafiado por seu rival, Alexander Busta-
praticamente escrava. mante, a realizar um referendo para ver se os
Em 1945, o restante do Caribe era colo- jamaicanos queriam a continuidade da fede-
nial, a maioria território britânico, desde a ração. O resultado foi a derrota, por escassa
Jamaica, a maior dessa ilhas, até a sequên- margem, de Manley e da federação, da qual
cia de ilhas menores que traçavam uma li- a Jamaica saiu em 1962, seguida por Trini-
nha entre o mar do Caribe e o Atlântico. A dad e Tobago. Ambos os países se tornaram
descolonização era o principal tópico polí- membros independentes da Commonwe-
tico nas primeiras décadas do pós-guerra. alth e da OEA, assim como Barbados em
Uma federação das colônias britânicas, em 1966; as ilhas menores se tornaram mem-
discussão desde meados do século XIX, foi bros associados, autogovernados, com exce-
criada em 1958, mas se desfez em 1961, e ção das políticas externa e de defesa, na qual
tem havido visões divergentes sobre as cau- a Grã-Bretanha mantinha uma parcela de
sas desse fracasso. O atraso em sua criação responsabilidade. Havia seis desses associa-
depois da Segunda Guerra Mundial permi- dos: Antígua com Barbuda, que passou a ser
POLÍTICA MUNDIAL | 719

independente e membro da ONU em 1981; monwealth sobre o Açúcar (Commonwe-


Granada, que se tornou uma celebridade alth Sugar Agreement) e outros esquemas
internacional em 1983 (ver a p. 734); Do- semelhantes, um mercado garantido e pre-
minica; Santa Lucia; São Vicente e São Cris- ços estáveis para açúcar, frutas, rum e ou-
tóvão e Névis. Esta última se mostrou um tros produtos seus.
arranjo infeliz e Anguila se rebelou contra Com exceção do único produtor de
o governo em São Cristóvão, obtendo uma petróleo, Trinidad e Tobago, todos foram
separação de fato. A Grã-Bretanha, apesar atingidos em cheio pelo aumento dos pre-
de alguma simpatia com as reclamações da ços do petróleo na década de 1970, que
primeira, recusou-se, em princípio, a apoiar, agravaram o desemprego endêmico e o
mas aceitou em 1980, quando Anguila se sentimento antigoverno. Em 1973, Jamai-
tornou formalmente um Estado separado e ca, Trinidad e Tobago, Guiana e Barbados
assumiu a responsabilidade por sua defesa, criaram uma Comunidade Caribenha (Ca-
seus assuntos externos, e Santa Lucia e São ribbean Community, Caricom), cuja parti-
Vicente formaram uma assembleia regional cipação estava aberta a todos os membros
para debater a formação de uma federação da Commonwealth que escolhessem entrar
com as ilhas Barlavento. Quatro colônias dentro de um ano. Essa nova associação
britânicas continuaram nessa condição: tinha uma população pequena, mas era
Montserrat, as Ilhas Virgens Britânicas, as superpovoada economicamente: seus dois
ilhas Turcos e Caicos e as Caimã – algumas membros maiores, Jamaica e Trinidad, ti-
das quais passando a ser preferidas pelos nham apenas meio milhão de pessoas entre
banqueiros que não queriam pagar impos- os dois, mas um quarto da população em
tos e seus associados do Terceiro Mundo no idade de trabalhar estava desempregado e a
tráfico de drogas. No continente, Honduras renda média era menos de 500 dólares por
Britânica, que mudou seu nome para Belize, ano. A Caricom se arrastou até ressuscitar
em 1973, avançou lentamente em direção à no início dos anos de 1980.
independência sob a sombra da reivindica- A política da Jamaica gravitava em
ção da Guatemala em relação ao território torno de dois partidos: o Partido Nacional
como um todo. Em 1981, tornou-se inde- Popular (People’s National Party, PNP), de
pendente da Commonwealth, protegida por Norman Manley (que governou de 1957
uma pequena força britânica, até que, em a 1962) e o Partido Trabalhista da Jamai-
1991, a Guatemala renunciou formalmente ca, (Jamaica Labour Party, JLP), liderado
a sua demanda e a Grã-Bretanha encerrou por Alexander Bustamante e depois, por
seu compromisso com a defesa do país. Donald Sangster, Hugh Shearer e Edward
Em 1968, uma modesta associação Seaga. A base econômica foi ampliada, do
econômica, CARIFTA (Caribbean Free açúcar e bananas, para incluir o turismo,
Trade Association), foi formada por todos a bauxita e a indústria, mas a passagem
os Estados e territórios da Commonweal- da agricultura à indústria aumentou o de-
th, com exceção de Honduras Britânica e semprego a 20-30% da população econo-
das Bahamas, sendo que esta aderiu três micamente ativa em uma época em que a
anos depois. Os membros mais fracos afir- alternativa habitual da imigração à Grã-
mavam que a CARIFTA beneficiava mais -Bretanha tornou-se praticamente proibi-
os mais fortes. Todos estavam preocupados da. Sendo assim, criou-se conflito, prin-
com a entrada da Grã-Bretanha na CEE, já cipalmente na superpovoada Kingston, e
que tinham, segundo o Acordo da Com- insatisfação direcionada à pequena oligar-
720 | PETER CALVOCORESSI

quia, ao capital estrangeiro e às minorias estilo e seus destinos. Suas duas principais
libanesa, síria e chinesa. A insatisfação che- comunidades, uma de origem africana e a
gou a um nível de violência não muito lon- outra das Índias Orientais, coexistiam com
ge da guerra civil, e um governo impotente graves conflitos.
do JLP perdeu as eleições de 1972 para o O país aplicava políticas solidárias de
PLP, agora liderado pelo filho de Manley, emprestar dinheiro a seus vizinhos e ser
Michael, socialista radical que queria se avalista de empréstimos do Banco Mun-
afastar do controle econômico de Washing- dial, mas, depois dos anos de 1980, a que-
ton e, em rebelião contra os termos nos da nas receitas do petróleo e as altas taxas
quais o FMI tratava países sem dinheiro, de juros prejudicaram sua prosperidade e
receber ajuda da URSS e da Europa Orien- sua estabilidade. Nesse meio-tempo, per-
tal. Em 1980, em uma eleição que custou deu seu status de país em desenvolvimen-
pelo menos 500 vidas, o comparativamente to, enquanto suas tentativas de diversificar
direitista JLP triunfou com um programa a economia e reduzir sua dependência do
de recuperação baseado em soluções capi- petróleo e do açúcar se depararam com
talistas convencionais com a aprovação dos obstáculos protecionistas por parte dos
Estados Unidos. O novo primeiro-minis- Estados Unidos e da União Europeia. À
tro, Edward Seaga, fez uma rápida viagem medida que os preços internacionais de
por Washington e outras capitais ociden- seus produtos de exportação desabavam, o
tais e fechou a embaixada cubana, mas não desemprego aumentava, uma série de des-
foi capaz de conter a queda nas principais valorizações forçou aumento de preços, os
exportações da Jamaica nem de reduzir as salários foram congelados, a criminalida-
dívidas externas que estavam consumindo de e a desordem aumentavam e o governo
metade das receitas de exportação do país. do Movimento Nacional Popular chegou
Com a infraestrutura econômica em colap- ao fim. Em 1986, a Aliança Nacional pela
so e os pobres ficando mais pobres, Manley Reconstrução, liderada por Robbie Robin-
venceu as eleições de 1989 e garantiu novos son, de Tobago (de origem Africana), teve
empréstimos do FMI, mas teve de concor- uma vitória convincente e o novo governo
dar com o corte de subsídios, desvalorizar aceitou as soluções tradicionais do FMI.
a moeda e manter a inflação abaixo dos 9% Com exceção da Jamaica e de Trinidad,
ao ano. A disparada de preços causada pela os novos países do Caribe tinham eleito-
primeira parte desse programa levou a rei- rados de proporções do século XVIII para
vindicações salariais que colocavam em ris- Constituições com estruturas do século
co a luta contra a inflação e, portanto, o pa- XX. Consequentemente, as eleições eram
cote como um todo. Declínio econômico, realizadas com muita facilidade através
inflação subindo e aumento de impostos de ameaças e promessas – a de abolir im-
fragilizaram Manley, que foi forçado, por postos, por exemplo – circunstâncias essas
problemas de saúde, a renunciar, em 1992. que não ajudam o bom governo. Também
Seu sucessor, P. J. Patterson, venceu quatro reduziam muito a importância dos vere-
eleições seguidas e praticamente eliminou dictos eleitorais, de modo que as genera-
a oposição. lizações sobre uma tendência à esquerda
Durante uma geração depois da inde- ou à direita eram enganadoras, mas hou-
pendência, Trinidad e Tobago, além de estar ve, nos anos de 1970, uma virada visível
no outro extremo do Caribe, apresentava à direita em Antígua, onde o Partido Tra-
um contraste em relação à Jamaica em seu balhista, de BIRD, recuperou o poder que
POLÍTICA MUNDIAL | 721

tinha perdido para um rival mais radical; Bishop começou seu governo fazendo
em Trinidad e Tobago, onde o conservador aberturas aos Estados Unidos, mas foi esno-
Eric Williams conquistou outro manda- bado em Washington e viu seus planos de
to no cargo que ocupava desde 1956; em desenvolvimento bloqueados pelos votos
São Vicente e São Cristóvão e Névis; e em norte-americanos nas instituições financei-
Dominica, onde Patrick John foi forçado a ras internacionais.
renunciar em função de negociatas pecu- Mesmo assim, obteve menção favo-
liares com a África do Sul. Muitos desses rável do Banco Mundial, em 1982, por
pequenos países foram obrigados a buscar seus esquemas rurais e serviços públicos,
fontes não ortodoxas de receita, mas o es- e no mesmo ano libertou prisioneiros po-
quema de Patrick John para arrendar uma líticos que havia posto na cadeia depois
parte substancial de sua ilha ao governo de chegar ao poder. Seu partido, o Movi-
sul-africano era excêntrico demais para mento Nova Joia (New Jewel Movement),
vingar. Barbados, por outro lado, desfruta- era um amálgama de duas partes mais ou
va de bons ventos econômicos e o Partido menos iguais, a que era liderada por ele
Trabalhista de Barbados, à direita de seu mesmo e a outra, liderada por Bernard e
principal rival, o partido mais à esquerda Janet Coard, considerados mais próximos,
de Errol Barrow, colheu as recompensas em temperamento e ideologia, a Fidel (ou
eleitorais em sucessivas eleições. mesmo, aos olhos de seus inimigos, a Pol
Uma tendência contrária, à esquerda, Pot). Em 1983, esses dois grupos já eram
sustentada por dinheiro e inspiração cuba- abertamente hostis e estavam se matando.
nas, conquistou algum sucesso em Grana- Bishop era atacado de dois lados: por seus
da, onde o Partido Trabalhista Unificado, colegas mais à esquerda e pelos Estados
de Eric Gairy, reeleito em 1976, não con- Unidos, que tinham decidido derrubá-lo e
seguiu enfrentar os problemas econômicos começaram a usar propaganda visivelmen-
da ilha nem manter uma aparência de go- te exagerada contra ele. A facção Coard o
verno honesto e foi removido à força por assassinou. Uma força dos Estados Unidos
Maurice Bishop, admirador de Fidel Cas- desembarcou e destruiu os Coards e seus
tro. Outros partidos caribenhos simpáticos seguidores, usando várias desculpas para
a Fidel se mantiveram desconhecidos, com encobrir uma operação ensaiada: que o
seus destinos ainda latentes, mas de pre- aeroporto construído por empreiteiras bri-
sença importante o suficiente para induzir tânicas não era, como se alegava, voltado
Washington a quadruplicar a ajuda finan- a aumentar o turismo, e sim a servir aos
ceira à região entre 1975 e 1980. O susto, propósitos de Fidel e seus aliados; que as
em 1980, em função de uma suposta chega- vidas de um grupo de cidadãos norte-ame-
da em Cuba de uma brigada russa, reforçou ricanos que faziam pesquisa em Granada
essa beneficência e o sentimento de que o estavam em risco e que uma força militar
Caribe estava atraindo mais uma vez a po- cubana substancial já estava na ilha. A
lítica mundial, como tinha sido na época aventura dos Estados Unidos deu errado,
da crise dos mísseis de Cuba. A eleição de houve má informação, os invasores leva-
Reagan acrescentou um toque de diploma- ram 10 dias para conquistar uma pequena
cia das armas à sua diplomacia de dólares, e indefesa ilha e as baixas foram mais de
predominante, sendo que seu empreendi- cem, a maior parte entre eles mesmos. Não
mento mais importante foi a invasão de havia forças cubanas em Granada e as de-
Granada em 1983. clarações oficiais se mostraram constran-
722 | PETER CALVOCORESSI

gedoramente inverídicas, mas a operação mas foram, provavelmente, o único país do


teve popularidade. Washington garantiu mundo em que mais da metade dos mem-
apoio à sua ação de parte de governos vi- bros do parlamento era de milionários.
zinhos no Caribe, embora a maioria dos
governos da Commonwealth, incluindo o
britânico, tenham ficado ressentidos com Nota
o que consideravam um ato ilegal e poli-
ticamente desnecessário. Washington con- Guiana e Suriname
seguiu o que queria porque a operação foi
breve, bem recebida pelos habitantes de A Guiana, que já foi Guiana Britânica, é
Granada e sintonizada com os sentimentos um país birracial dividido praticamente ao
antiesquerdistas predominantes. Um novo meio, no qual os descendentes de indianos
partido político foi montado por Herbert importados pelos britânicos (depois da abo-
Blaize e conquistou, em 1984, todas as ca- lição da escravidão em 1838) superavam
deiras do parlamento, menos uma. Blaize levemente o número de africanos, enquan-
morreu em 1989 e, em eleições realizadas to uma pequena minoria católica com ori-
uns meses depois, faltou ao Congresso De- gens europeias têm possibilidades, nessas
mocrático Nacional, de situação, uma ca- circunstâncias, de ter importância eleitoral.
deira para garantir a maioria dos 15 mem- Os indianos têm sido predominantemen-
bros do parlamento. Resquícios do partido te rurais, os africanos, urbanos. Os líderes
de Bishop não conquistaram cadeiras e desses dois grupos no pós-guerra estavam
receberam apenas 2% dos votos. Nicholas inicialmente divididos mais por tempera-
Braithwaite se tornou primeiro-ministro mento do que pelas políticas que adotavam.
e tomou parte em conversações erráticas O líder indiano Cheddi Jagan, um liberal
sobre uma federação das Ilhas Barlavento. rooseveltiano com uma mulher socialista
Seu sucessor, Keith Mitchell, fez uma visita norte-americana, e fundador, em 1950, do
amigável a Fidel Castro e, em 1999, con- Partido Progressista Popular (People’s Pro-
quistou todas as cadeiras no parlamento. gressive Party, PPP), conquistou três quar-
No extremo norte do Caribe, a nordeste tos das cadeiras no conselho legislativo em
de Cuba e sudeste da Flórida, a Comunida- 1953, mas foi demitido depois de alguns
de das Bahamas, membro independente da meses pelo governador britânico. O PPP se
Commonwealth a partir de 1973, floresceu dividiu com base em linhas raciais e o ele-
como principal auxiliar do pior lado das fi- mento africano criou o Congresso Nacional
nanças internacionais e do tráfico de drogas. Popular (People’s National Congress, PNC),
Sir Lynden Pindling, ministro-chefe de 1967 liderado por James Burnham. Ambos os lí-
a 1973 e primeiro-ministro de 1973 a 1992, deres avançaram à esquerda, mas Jagan se
subiu ao poder como defensor da maioria deixou levar pelos conflitos a atitudes mais
negra contra a elite mercantil branca (Bay extremas; sua radicalidade, e principalmen-
Street Boys). Seu governo era abalado perio- te seu plano de sindicalizar os trabalhado-
dicamente por escândalos, mas ele sobrevi- res, alarmou os plantadores norte-america-
veu até 1992 contra o Movimento Nacional nos, enquanto interesses locais dos Estados
Livre (Free National Movement), que era Unidos o retratavam como um perigoso
acusado de ser igualmente corrupto, além comunista. Essa visão de seu impacto sobre
de elitista. Ele tinha o apoio cada vez menos a colônia foi aguçada por rebeliões que de-
entusiasmado dos Estados Unidos. As Baha- mandaram o envio de soldados britânicos e
POLÍTICA MUNDIAL | 723

pelas simpatias de Jagan pela Cuba de Fidel a acusações cada vez mais agudas de delitos
Castro, uma inclinação que era parcialmen- eleitorais e de um forte declínio na econo-
te temperamental, mas também econômica: mia. As receitas oriundas do açúcar e da
Cuba era um dos principais mercados que a bauxita caíram, a moeda foi desvalorizada,
British Guiana tinha para seu arroz. os alimentos e a eletricidade se tornaram
Com a independência à vista, os Esta- escassos, os salários sofreram cortes. Hoyte
dos Unidos e os britânicos estavam ansio- foi obrigado a adiar as eleições mais de uma
sos por garantir uma vitória de Burnham vez, pois era impossível garantir os procedi-
sobre Jagan. Burnham cultivou o pequeno mentos adequados. O PPP voltou ao poder
partido católico e os britânicos convenien- com Jagan e, depois de sua morte, Sam Hin-
temente alteraram a Constituição introdu- ds como presidente. A Sra. Jagan se tornou
zindo representação proporcional para as a primeira-ministra do segundo e, em 1997,
eleições em 1964, nas quais o PPP conquis- presidente, quando, com a ajuda do FMI a
tou o maior número de cadeiras, mas não a partir de 1991, a economia começou a se
maioria, e ficou fora dos cargos por quase recuperar. O novo século e uma nova gera-
30 anos. Depois da independência, em 1966, ção deram fim a 50 anos de conflito entre
a Guiana Britânica se tornou Guiana e ade- os dois partidos da Guiana: Bharrat Jagdeo e
riu à ONU, mas não à OEA, em função de Robin Corb, seus novos líderes, declararam-
uma disputa de fronteiras com a Venezuela. -no encerrado.
Burnham deslocou-se à esquerda, impeli- A leste da Guiana, o Suriname, indepen-
do principalmente pelas necessidades dos dente da Holanda em 1975, foi governado
desempregados urbanos africanos e pelos direta ou indiretamente pelo coronel Desi
imperativos contrários a norte-americanos Butrese e os militares durante a maior parte
e fazendeiros. O PPP sofreu uma série de do período posterior a 1980. O país cumpria
derrotas avassaladoras demais para se- um papel auxiliar no tráfico de cocaína. A
rem verossímeis e a oposição alternativa, a Guiana Francesa continuou sendo um de-
Aliança dos Trabalhadores, retirou-se das partamento da França. Mil milhas a oeste do
eleições, em 1980, depois que seu líder foi Suriname, as Antilhas Holandesas e Aruba
assassinado. Burnham morreu subitamen- tinham status especial sob a coroa holandesa
te em 1985. Seu sucessor, Desmond Hoyte, e eram vinculadas entre si em função de de-
manteve a dominação do PNC, mas sujeito terminados assuntos econômicos.
724 | PETER CALVOCORESSI

Leituras relacionadas: Parte VII Jonas, Suzanne: The Battle for Guatemala (1999)
Lewis, Oscar: The Children of Sanchez (1961)
Grandin, Grey: The Last Colonial Massacre – Latin Reid, Michael: Forgotten Continent (2008)
America in the Cold War (2004) Robb, Peter: A Death in Brazil (2004)
PARTE
VIII
ORDEM MUNDIAL
Ordem mundial
30
Prevenindo guerras pelos principais candidatos a vitoriosos.
Churchill e Roosevelt se inclinavam a um
Este capítulo apresenta dois aspectos princi- padrão regional, e o primeiro formulou um
pais: (a) guerras e outros conflitos armados esquema para uma série de federações lo-
e como reduzir sua quantidade e (b) quebras cais a serem agrupadas em três regiões sob
e outros distúrbios econômicos e como ad- um conselho global supremo. O poder se-
ministrá-los. ria concentrado nas três regiões – europeia,
Enquanto o Estado permanecesse sendo norte-americana, do Pacífico – e não acima
o elemento básico na sociedade internacio- nem abaixo. Esse padrão não era do agra-
nal, a prevenção de guerras só poderia ser do de Stalin, cujas suspeições em relação a
garantida pelos Estados e pela cooperação Churchill, baseadas em sua desconfiança
entre eles. Eles tinham opções metodológi- na classe governante britânica e em dispu-
cas. Cada grande potência poderia assumir tas sobre o momento de abertura de uma
responsabilidade básica ou exclusiva em segunda frente na Europa ocidental, foram
uma determinada região, ou todas as gran- aguçadas por propostas que incluíam a cria-
des potências poderiam supervisionar e po- ção de federações nos Bálcãs e no Danúbio,
liciar, juntas, o planeta como um todo, ou em uma área de interesse especial à URSS.
essas mesmas potências poderiam equipar Stalin queria soberania irrestrita e, desde
e financiar uma associação de países para que as duas não fossem incompatíveis, uma
fazer esse trabalho em seu nome. Depois associação continuada com seus aliados
da Segunda Guerra Mundial, a organiza- para evitar um retorno ao isolamento da
ção e a cooperação internacionais estavam URSS anterior à guerra. Também no lado
baseadas teoricamente no segundo desses ocidental, havia oposição ao regionalismo,
métodos, depois de o primeiro ser defendi- principalmente entre políticos profissio-
do sem sucesso em alguns espaços; mas as nais, como Cordell Hull e Anthony Eden,
circunstâncias necessárias para o sucesso que temiam que ela produzisse blocos au-
do segundo método não se materializaram, tônomos, cada um dominado por uma de-
de modo que a prática se aproximava mais terminada superpotência, e fizessem res-
de uma adaptação do terceiro, reconhecida surgir o isolacionismo norte-americano.
de modo imperfeito e aplicada de maneira Em Moscou, em outubro de 1943, os minis-
precária. tros do exterior dos três aliados adotaram
As formas da organização interna- o princípio da organização global baseada
cional foram discutidas durante a guerra na igualdade soberana de todos os países e
728 | PETER CALVOCORESSI

estabeleceram os alicerces para uma nova dava uma autoridade considerável ao Con-
organização mundial, que perpetuaria a selho de Segurança, que teria poderes para
aliança entre a democracia e o comunismo determinar se uma situação representava
contra o fascismo e manteria a paz através ameaça ou rompimento da paz internacio-
do exercício conjunto do poder aliado. nal, ou um ato de agressão e, caso isso fosse
Quanto à configuração, a Organização estabelecido, requerer que todos os mem-
das Nações Unidas era uma versão revisada bros da ONU agissem contra o delinquente
da Liga das Nações – os principais órgãos (com exceção do uso da força, sanção que
de ambas eram semelhantes. Os autores da continuava de caráter voluntário para cada
Carta da ONU visavam não a concepção de membro). Por outro lado, essa autorida-
um novo tipo de organização, mas a manu- de coletiva era prejudicada por obstáculos
tenção de uma estrutura conhecida, com a procedimentais na tomada de uma decisão
inserção de mecanismos mais eficazes para coletiva no Conselho, a saber, a maioria do
a prevenção da guerra. O Tratado de funda- órgão e o consentimento de todos os seus
ção da Liga não proibiu a guerra, e sim obri- membros permanentes. Na ausência dessa
gou seus signatários a fazerem uma pausa decisão, era ilícito que qualquer membro da
antes de recorrer a ela e tentar resolver suas ONU a tomasse por conta própria ou apli-
diferenças por meio de um dos três proces- casse medidas do tipo concebido na Carta;
sos recomendados. Se essa interposição fa- embora uma decisão afirmativa do Conse-
lhasse, não haveria proibição acordada de lho comprometesse automaticamente todos
se recorrer à guerra, e só seriam aplicáveis os membros, se ele não se chegasse a uma
sanções internacionais em um caso que de- decisão, qualquer ação baseada na Carta
safiasse as precondições estabelecidas pelo estaria impedida. Consequentemente, em-
Tratado. Em 1928, houve uma tentativa mais bora o Conselho fosse, nesse campo, sobe-
radical de prevenir a guerra por parte dos rano sobre todos os membros, cada um dos
signatários do Pacto Kellogg-Briand, que se membros permanentes era soberano sobre
dispunham a dispensar completamente esse o Conselho.
recurso, com exceção de alguns propósitos Assim como a Liga, a ONU fora conce-
limitados, como a defesa do próprio Pacto e bida como uma associação de Estados so-
do Tratado, assim como dos outros tratados beranos (ainda que sua proibição à interfe-
existentes, além do exercício do direito de rência nos assuntos internos de um membro
autodefesa (com a justificação para o exer- não se aplicasse a medidas coercitivas sob o
cício desse direito sendo deixada para o país Capítulo VII) e, assim como a Liga, tentava
que o reivindicasse): os Estados Unidos e a garantir um grau de julgamento coletivo e
Grã-Bretanha também associaram condi- um campo para a ação coletiva contra seus
ções relacionadas, respectivamente, à Dou- membros soberanos constituintes, em um
trina Monroe e à defesa do Império Britâ- período em que esses membros tinham sido
nico. A Carta da ONU chegava ao ponto de muito fortalecidos pelo crescimento da mo-
proibir a guerra, exceto para defender a pró- derna tecnologia e pelas formas modernas
pria Carta, aplicar as obrigações contidas de influenciar as pessoas.
nela ou para autodefesa, mas não proibia a O Estado colocou as revoluções indus-
guerra totalmente. Ela aprovava explicita- trial e democrática do século XIX a seu
mente o uso da força não apenas internacio- próprio favor ao anexar a seus propósitos
nal, mas também nacional, por parte de um os armamentos modernos e o chauvinismo
país ou aliança, em defesa própria. A Carta popular. Nem a Liga nem a ONU foram ca-
POLÍTICA MUNDIAL | 729

pazes de tomar o controle dos armamentos URSS, estando em minoria semipermanen-


dos Estados soberanos, nem de criar nos te no Conselho, fez tanto uso do veto que os
povos do mundo um vínculo a organizações outros membros reclamaram de um rompi-
internacionais maior do que o patriotismo mento do espírito da Carta, quando não de
nacional. Além desses impedimentos gerais, suas disposições. Os russos afirmavam, por
os mecanismos de manutenção da paz da sua vez, que a ONU tinha se tornado um
ONU se tornaram inoperantes já no início instrumento de políticas norte-americanas
de sua existência. A eficácia desses mecanis- e que essas políticas eram basicamente an-
mos dependia da unanimidade das grandes tirussas – como evidenciado pelo uso que
potências no Conselho de Segurança e do Truman fez de seu monopólio nuclear para
fornecimento, por parte de todos os mem- propósitos políticos, por discursos de des-
bros, de forças adequadas à execução de to- tacados líderes ocidentais, a começar por
das as decisões do Conselho. A unanimida- Churchill, em Fulton, e Byrnes, em Stut-
de das principais potências desapareceu ao tgart, em fevereiro e setembro de 1946. A
primeiro sinal de paz, de forma que o veto URSS, depois de uma tentativa de utilizar a
se tornou um instrumento tático comum, ONU para seus próprios propósitos políti-
em vez de uma arma de último recurso, e cos levantando ou apoiando queixas contra
a disposição da Carta sobre a montagem de os holandeses na Indonésia, os britânicos
forças internacionais – uma série de acordos e os franceses na Síria e no Líbano, os bri-
bilaterais entre o Conselho de Segurança e tânicos no Egito e na Grécia e a tolerância
seus membros – nunca foi implementada do Ocidente para com o fascismo de Franco
porque o orgão nomeado para negociar es- na Espanha, retornou ao recurso do veto e,
ses acordos, o Comitê Militar, jamais chegou em janeiro de 1950, deixou de participar das
a um acordo sequer sobre a natureza geral e reuniões do Conselho de Segurança. Con-
o tamanho das forças necessárias. tudo, essa retirada da ONU foi revertida,
O poder de veto dado aos membros em parte por possibilitar que o Conselho de
permanentes do Conselho de Segurança Segurança iniciasse a ação na Coreia, em ju-
era uma característica especial da ONU. nho de 1950, e, em parte, porque a expansão
No Conselho da Liga, todos os membros da ONU (principalmente em 1955 e 1960,
tinham esse poder. Os autores da Carta da os anos, respectivamente, de uma negocia-
ONU tinham de decidir até que ponto rom- ção em pacote, que admitia 16 candidatos
per com essa regra de unanimidade, e de- bloqueados e de grande afluxo africano)
cidiram introduzir o voto da maioria como alterou o caráter da organização e ofereceu
prática geral, mas sujeito a exceções limita- oportunidades políticas à URSS, que supe-
das: no Conselho de Segurança, mas não em ravam sua posição de minoria no Conse-
outros orgãos, quem tinha mais poder tinha lho de Segurança. (Foi nesse período que a
mais privilégios, fazendo com que as gran- URSS deixou de atacar os líderes dos novos
des potências conseguissem impedir a ação países como servos da burguesia e passou a
contra si ou seus amigos, embora não pu- fazer amizade com eles.)
dessem impedir a discussão nem as críticas. A hostilidade dos Estados Unidos ao
Nenhum membro permanente do Conselho uso frequente do veto pelos russos levou a
de Segurança se opôs a esse princípio, em- duas tentativas de desviar dele transferindo
bora alguns deles tenham se colocado con- à Assembleia Geral alguma parte da autori-
tra o uso do privilégio por parte de outros. dade do Conselho de Segurança. Em 1948,
No final da década de 1940 e na de 1950, a um comitê ad hoc da Assembleia, chamado
730 | PETER CALVOCORESSI

popularmente de Little Assembly, foi esta- de do Conselho de Segurança na manuten-


belecido como forma de mantê-la em ses- ção da paz era central, mas não exclusiva.
são permanente, mas seus poderes eram Sendo assim, disputas de natureza ju-
limitados e ela jamais adquiriu qualquer rídica, refletindo discordâncias políticas
importância. Os russos não eram os únicos fundamentais, ameaçavam frustrar as es-
a considerá-la uma violação da Carta e ela peranças daqueles que buscaram, em 1945,
foi desaparecendo. Mais importante foi a produzir um documento e uma organi-
adoção, em 1950, da resolução Unidos pela zação que garantissem a paz e a ordem. A
Paz, patrocinada pelos Estados Unidos, que desarmonia entre os membros permanentes
viram que as operações da ONU na Coreia transformou o nome do Conselho de Segu-
só foram possíveis pela ausência do membro rança em uma piada e o próprio órgão em
russo e seu veto no Conselho de Segurança, uma arena para a demonstração pública
e que buscava garantir que sua presença em de contendas e propaganda. A diplomacia
uma futura ocasião não obstruísse defini- aberta ficou tão desacreditada quanto a di-
tivamente uma ação semelhante. A resolu- plomacia secreta havia sido suspeita. Da
ção, que foi adotada pela Assembleia por 50 mesma forma, a Assembleia Geral ficou co-
votos a 5, com duas abstenções, introduziu nhecida pelo direcionamento de votos em
mecanismos para a convocação de uma ses- bloco e a negociação dos não vinculados,
são de emergência, de última hora; garantia principalmente depois que o afluxo de no-
o direito da Assembleia de julgar ameaças à vos membros aumentou o número dos que
paz, rompimento da paz e atos de agressão provavelmente não teriam interesse direto
quando o Conselho de Segurança fosse im- em uma determinada questão e, portanto,
pedido de fazê-lo, criava um Comitê de Ob- votariam por razões ulteriores ou nem vota-
servação da Paz de 14 membros, disponível riam. O recurso à ONU se tornou, na práti-
para missões de exploração e elucidação em ca, uma espécie de aposta, devido à imprevi-
locais problemáticos; também criou um (na- sibilidade das atitudes de muitos membros.
timorto) Comitê de Medidas Coletivas de 14 A decepção com o funcionamento dos
membros, para estudar os mecanismos in- órgãos centrais da ONU levou a um recru-
ternacionais de manutenção da paz e pediu descimento do interesse no regionalismo.
aos membros que destinassem forças para Embora tivessem optado pelo centralismo
servir a operações de paz da ONU a qual- em detrimento do regionalismo, os autores
quer momento. A Assembleia estigmatizou da Carta não tinham excluído totalmente
a China duas vezes como agressor na Coreia, este de seus desígnios. A Carta reconheceu
segundo esse procedimento, e o usou mais (Artigo 51) o direito da legítima defesa co-
uma vez, em 1956, para denunciar o ataque letiva e individual e (capítulo VIII) sancio-
anglo-franco-israelense ao Egito e montar nou alianças como a OTAN – cujo propó-
uma força de paz internacional para suplan- sito básico não era a manutenção da paz e
tar esses agressores. Mas a legalidade da re- da ordem dentro de sua própria área, e sim
solução Unidos pela Paz sempre esteve em sua defesa em relação a ameaças externas –
discussão. A URSS e outros membros a ata- e as organizações regionais voltadas a poli-
cavam e se recusavam a pagar por operações ciar a região e resolver disputas dentro dela.
desencadeadas pela Assembleia segundo os Porém, a Organização dos Estados Ameri-
termos da resolução. Em 1962, pediu-se o canos foi a única desse tipo a ter qualquer
parecer do Tribunal Internacional sobre essa eficácia nos primeiros 50 anos de existência
questão e ele declarou que a responsabilida- da ONU, com o resultado de que o regiona-
POLÍTICA MUNDIAL | 731

lismo, nesse período, não ofereceu alternati- órgão declinou de agir em relação a uma
va substancial aos órgãos centrais da ONU reclamação russa sobre a interferência britâ-
como meio de manter a paz na região. nica nas questões gregas por meio de tropas
Entretanto, embora o Conselho de Se- britânicas na Grécia, mas posteriormente
gurança tenha sido incapaz de funcionar investigou reclamações gregas de ajuda aos
como previram seus autores, a ONU pas- rebeldes do país por parte da Iugoslávia, da
sou a ser permanentemente ativa nas ope- Bulgária e da Albânia. Despachou equipes
rações de segurança, desenvolveu uma série de observadores que, depois de lhe ser nega-
de técnicas experimentais e se engajou – no do acesso aos lados não gregos das frontei-
Congo – em uma grande operação na qual ras em questão, emitiram um relatório con-
mobilizou um total de quase 100 mil ho- denando os inimigos da Grécia. O Conselho
mens por mais de quatro anos. A interven- não deu fim à luta que se desenvolvia (que
ção da ONU em situações de perigo ia desde só foi interrompida quando a ajuda norte-
missões comparativamente modestas para -americana reequipou o exército grego e
estabelecer fatos, reduzir tensões e ganhar restaurou seu moral, e quando a Iugoslávia,
tempo, até operações mediadoras mais com- depois de romper com a URSS e seus vizi-
plexas que envolviam unidades militares, nhos comunistas em 1948, parou de ajudar
mas não o uso da força militar, bem como os rebeldes), mas a ONU tinha estabelecido
expedições militares preparadas, não apenas um precedente para investigações localiza-
para se defender, mas também para atacar das e podia afirmar que tinha contribuído
outros. A linha entre um tipo de operação para elucidar e conter uma situação poten-
e outro não é clara. Sendo assim, a inter- cialmente perigosa até que ela fosse elimina-
venção da ONU na Caxemira, na Palestina da por outros meios.
e na Guerra de Suez seria classificada como Essa função foi também exemplificada
mediadora e na Coreia e no Congo, como na Indonésia e na Caxemira. Na primeira, o
militar, ao passo que a intervenção no Chi- Conselho conseguiu estabelecer um cessar-
pre poderia ser situada em ambas as catego- -fogo que interrompeu temporariamente a
rias, ou em uma delas no início e na outra primeira ação policial holandesa contra os
em uma etapa posterior. Mas a classificação nacionalistas indonésios e garantiu um acor-
não indica atividade e a atividade da ONU do temporário entre os dois lados por meio
na manutenção da paz não deve ser negada. de um comitê conciliador. Embora essas
Onde a Liga tinha sido criticada pela pas- conquistas tenham sido inicialmente transi-
sividade, a ONU passou a ser criticada por tórias, a transferência posterior de soberania
fazer demais. da Holanda à República da Indonésia, no
Na primeira fase dessa atividade pos- final de 1949, foi mediada pela intervenção
terior à Coreia, o Conselho de Segurança internacional. Na Caxemira, a ONU tam-
se deparou com situações que surgiram da bém negociou o cessar-fogo e conseguiu dar
Segunda Guerra Mundial: a permanência fim à luta, mesmo não tendo sido capaz de
dos russos no Irã além dos termos estabe- garantir a retirada das tropas paquistanesas
lecidos pelos acordos da guerra e a lentidão ou indianas nem de resolver a disputa polí-
das tropas britânicas e francesas para deixar tica subjacente entre o Paquistão e a Índia.
a Síria e o Líbano. Essas questões foram de- A Caxemira foi o primeiro exemplo claro
batidas no Conselho e decididas fora dele, de um paradoxo que mais tarde se tornaria
sem mais. Em pouco tempo, estabeleceram- explícito e provocador: o fato de que o ces-
-se precedentes de recurso ao Conselho. O sar-fogo e a imobilização das hostilidades
732 | PETER CALVOCORESSI

poderiam obstruir a solução de disputas bá- evoluiu para um teste de força entre Estados
sicas ao aliviar as partes em conflito quanto à Unidos e China, muitos membros da ONU
necessidade de chegar a um acordo para sal- começaram a sentir que as motivações da
var vidas e economizar dinheiro. Os obser- organização para ir à guerra tinham sido
vadores da ONU, enviados à Caxemira, em perdidas de vista e que nenhuma operação
1949, ainda estavam lá meio século depois. futura da Organização deveria ser realizada
Na Palestina, a ilustração final, pré-Co- daquela forma. Depois da Guerra da Coreia,
reia, das operações de segurança da ONU, houve, durante um tempo, uma regra geral
os emissários da organização negociaram segundo a qual grandes potências não de-
um cessar-fogo, retomaram-no quando ele veriam ser chamadas a dar uma contribui-
foi rompido e ajudaram a garantir acordos ção em combate a operações da ONU – um
de armistício. Os árabes e Israel, contudo, axioma só atenuado em Chipre pela óbvia
não estabeleceram a paz, e uma Organiza- vantagem de usar forças britânicas já pre-
ção para a Supervisão de Trégua da ONU sentes na ilha.
se estabeleceu no Oriente Médio por mais Portanto, a Coreia se tornou uma exce-
anos do que seus criadores tinham imagi- ção, embora reforçasse a imagem da ONU
nado, sujeitando ambos os lados aos riscos como orgão preparado para agir.
de terem suas infrações da trégua expostas A seguinte operação importante – a in-
por um corpo imparcial de observadores – tervenção da ONU no Suez em 1956 – foi
uma sanção a que eles, infelizmente, acos- uma operação combinada de potências
tumaram-se. intermediárias, desencadeada pela As-
A Guerra da Coreia, que, como outros sembleia Geral e colocada sob controle
eventos mencionados neste sumário de ati- executivo do secretário-geral. A força, que
vidades da ONU, é descrita em mais deta- foi recrutada e despachada com velocida-
lhes em outra parte deste livro, foi um teste de impressionante, estava equipada para a
de natureza diferente, já que surgiu de um autodefesa, mas não para atacar: 10 países
ato de agressão ao qual não poderia haver contribuíram com soldados. Sua chegada e
resposta eficaz que não fosse o uso da for- mobilização foram garantidas de antemão
ça. Invocou-se o Capítulo VII da Carta, e por acordo com o Egito (necessário, já que
o Conselho de Segurança, na ausência da a operação se enquadrava no capítulo VI da
URSS, na prática, endossou a ação norte- Carta, sobre a solução pacífica de disputas,
-americana e encarregou os Estados Unidos, e não era uma ação de garantia da lei, sob o
que tinham forças disponíveis no Japão e nas capítulo VII) e pelo conhecimento de que os
águas ao redor, para enfrentar a força com governos britânico e francês não usariam o
a força. A Guerra da Coreia se tornou, as- poder que tinham para se opor a ela. Com
sim, uma guerra conduzida por um general o ataque anglo-francês contra o Egito inter-
norte-americano subordinado ao presidente rompido pelos Estados Unidos, a ONU foi
dos Estados Unidos, atuando como agente usada para forçar a saída das forças anglo-
da ONU. Outros 15 países, a maioria alia- -francesas, para patrulhar as problemáti-
da dos Estados Unidos por outras razões, cas áreas ao longo do Canal de Suez e, pa-
enviaram unidades ao campo de batalha, ralelamente, liberá-lo, já que os egípcios o
mas metade das forças terrestres engajadas, bloquearam quando foram atacados. A paz
93% das forças aéreas e 86% das navais eram foi restaurada por meio da ação da ONU
norte-americanas e, quando os chineses in- depois que os Estados Unidos demonstra-
vadiram a Coreia e a guerra gradualmente ram a determinação de interromper a luta
POLÍTICA MUNDIAL | 733

que, nem a Grã-Bretanha, nem a França e Unidos. Portanto, a ONU esclareceu uma
nem Israel puderam contradizer. O papel da situação confusa, reduziu a tensão e, por
ONU nessa crise foi desempenhado dentro fim, abriu caminho para uma volta à nor-
do quadro da segurança coletiva, mas, na malidade. Essa foi uma adaptação de expe-
prática, era algo diferente. Os proponentes riências prévias, seguida, mais ou menos,
da segurança coletiva, seja na Liga, seja na no Laos, em 1959; em Irian Ocidental, em
ONU, conceberam a reunião, em condições 1962-1963, quando uma unidade da ONU
predeterminadas, de forças enormes para facilitou sua transferência da Holanda para
deter ou parar um transgressor. Em Suez, a Indonésia; em Bornéu do Norte e Sara-
em 1956, os transgressores não foram repri- wak, em 1963, quando os investigadores da
midos por tal demonstração de força, e sim ONU informaram que os habitantes desses
pelos Estados Unidos. A força coletiva en- territórios não se opunham, como afirma-
viada à região não poderia ter lutado contra va a Indonésia, à criação da Malásia; no Iê-
os agressores anglo-franceses ou israelenses, men, em 1963-1964, quando uma situação
nem deveria poder. Ela não visava expulsar tão obscura quanto contenciosa foi, em cer-
os invasores, e sim manter fora as grandes ta medida, esclarecida por observadores da
potências. O objetivo de Hammarskjöld era ONU, e na descoberta dos desejos dos habi-
impedir, por meio da presença da ONU, a tantes dos territórios sob tutela de Togolân-
incursão de norte-americanos e russos na dia e Camarões, quando as potências que os
zona de conflito, e as experiências em Suez administravam estavam por se retirar, entre
deram forma a suas políticas no Congo 1956 e 1960.
quatro anos mais tarde. Algumas das limi- O envolvimento da ONU no Congo
tações à ações desse tipo ficaram visíveis foi uma consequência da retirada preci-
quando, em 1967, a força da ONU foi remo- pitada da Bélgica e do motim, alguns dias
vida diante da exigência abrupta do Egito. depois, do exército congolês, com o qual os
Outras ficaram claras simultaneamente à belgas retornaram para proteger seus cida-
guerra de 1956, quando a URSS se recusou dãos, Katanga quis se separar e o governo
a permitir inclusive uma visita pessoal de congolês pediu ajuda à ONU para manter
Hammarskjöld a Budapeste. a ordem, garantir os serviços essenciais,
Entre o Suez e o Congo, um período expulsar as forças estrangeiras e manter o
de menos de quatro anos, a ONU foi mais novo Estado inteiro. Portanto, desde o prin-
uma vez invocada no Oriente Médio e teve cípio, esse envolvimento misturou aspectos
de usar suas técnicas de observadora e me- internacionais e internos. Era internacional
diadora. Em 1958, o governo libanês recla- porque visava remover os belgas e impedir
mou de interferência em seus assuntos in- ações dos Estados Unidos e da Rússia, mas
ternos por parte da República Árabe Unida também era interno porque as forças da
e chamou tropas norte-americanas. A ONU ONU que preencheram a lacuna criada pelo
despachou alguns grupos móveis de obser- motim ou inadequação das próprias forças
vadores para verificar e informar o que es- do governo congolês, além de garantir a lei
tava acontecendo ao longo da fronteira do e a ordem, envolveram-se na manutenção
Líbano e, posteriormente, aumentou essa da integridade do novo Estado ao impedir a
missão para possibilitar que ela substituísse secessão de parte dele. Hammarskjöld usou
as unidades norte-americanas, cuja presen- seu direito, segundo o Artigo 99 da Carta
ça tinha se tornado um constrangimento a da ONU, de levar a questão à atenção do
todos os envolvidos, inclusive aos Estados Conselho de Segurança. Nos quatro anos
734 | PETER CALVOCORESSI

em que a organização operou no Congo de- agir em defesa da segurança internacional,


pois disso, foi usada uma força que chegou teriam de assumir, elas próprias, o papel
a 20 mil membros e teve em média 15 mil de polícia, conjunta ou individualmente,
(a um custo total de mais de 400 milhões, ou permitir graus de desordem no mundo
dos quais 42% foram pagos pelos Estados além dos limites da prudência.
Unidos e nada pela URSS) para manter a Seu dilema era, por um lado, o receio de
ordem, impedir a guerra civil e, com mais tolerar desordem internacional e, por outro,
polêmica, forçar Katanga a reconhecer a a relutância em aprovar o crescimento da
autoridade do Estado congolês. Suas opera- autoridade internacional de manutenção da
ções se basearam no capítulo VI da Carta. paz, com competência própria independen-
O capítulo VII nunca foi invocado explici- te. A única saída desse dilema era usar os
tamente, embora mudanças nas circunstân- mecanismos da ONU, que eles próprios ti-
cias tenham produzido uma situação muito nham construído e que lhes permitiam agir
parecida com a ação coercitiva prevista no de forma indireta e conter qualquer opera-
capítulo VII. Essas operações foram inicia- ção específica. A solução era ter uma ONU
das pelo Conselho de Segurança, mas fo- capaz de agir de forma razoavelmente eficaz,
ram conduzidas pelo secretário-geral e por mas não muito, para manter a paz; ter uma
potências intermediárias. força policial competente, mas subordinada,
Mais uma vez, somente foi pedido a cujo desejo de se tornar mais competente
países de importância intermediária que não seria gratificado se implicasse um afas-
fornecessem unidades de combate e o secre- tamento mais sério da subordinação.
tário-geral recebeu o controle executivo. Ele As limitações foram demonstradas de
criou um comitê assessor ad hoc de repre- forma contundente em 1982, quando dois
sentantes dos países com tropas engajadas países, Argentina e Grã-Bretanha, foram à
para lhe ajudar a interpretar as diretrizes guerra para resolver suas reivindicações in-
gerais dadas pelo Conselho de Segurança conciliáveis em relação a ilhas que tinham
e as aplicar às circunstâncias do momento. valor mínimo a ambas (ver o Capítulo 27).
Agindo dessa forma, a ONU se tornou o A ação da Argentina era, com certeza, e a da
principal fator de preservação de unidade e Grã-Bretanha, poderia ser, um desrespeito à
integridade do novo Estado e de prevenção Carta. Embora tenha sido apenas uma entre
de intervenção estrangeira, e, talvez, de um cerca de 150 guerras com que o mundo foi
conflito entre grandes potências. Ela tam- assolado desde 1945, a Guerra das Malvinas
bém aliviou o sofrimento humano ao conter (Falklands) teve importância especial por ser
a guerra civil, minimizar o derramamento a única travada deliberadamente por uma
de sangue, ajudar os refugiados e prestar ação agressiva entre dois membros da ONU.
uma série de serviços médicos, adminis- Também foi a primeira guerra de um país eu-
trativos e outros, mas, no curto prazo, sub- ropeu (que não a URSS) desde que a França
meteu-se a muita pressão ao desencadear a abandonara suas pretensões imperialistas na
hostilidade das grandes potências que des- Argélia, uma geração antes. A tomada ar-
confiavam do crescimento da autoridade do gentina das Falklands era um rompimento
secretário-geral e às vezes, desaprovavam escancarado das obrigações aceitas por todos
seus objetivos e suas ações e zombavam os membros da organização. A Grã-Bretanha
do preço que se pedia que pagassem para afirmava que esse ato de agressão trazia à
manter a paz. Mas, se as grandes potências mesa o Artigo 51 da Carta que – como exce-
não permitissem nem ajudassem a ONU a ção ao Artigo 2 – aprovava um ato de guerra
POLÍTICA MUNDIAL | 735

por parte de um Estado-Membro como legí- Duas pessoas morreram. Os autores


tima defesa. Essa afirmação não é perfeita. A eram palestinos. Mensagens enviadas pela
legítima defesa não é definida na Carta nem Embaixada da Líbia na Alemanha Oriental
em qualquer outro lugar, de forma que exis- foram interceptadas e decifradas, e expuse-
te uma zona obscura entre ela e a retaliação. ram o envolvimento oficial do país. A natu-
O governo britânico declarou imediatamen- reza precisa desse envolvimento era incerta,
te sua intenção de recuperar as ilhas, se ne- já que versões publicadas em inglês dessas
cessário pela força, e não desperdiçou tempo mensagens não pareciam ser tanto tradu-
para juntar os meios necessários. Por outro ções, e sim paráfrases. Não obstante, o apoio
lado, interpretando-se a legítima defesa de líbio aos grupos palestinos preparados para
forma estrita, seria possível considerá-la usar a violência era incontestável. O gover-
como não mais do que um revide no momen- no dos Estados Unidos buscou acordo para
to do ataque com as forças disponíveis naque- o uso de aviões em bases na Inglaterra e seu
le local. A questão é polêmica, menos clara do direito de voar sobre a França, obtendo o
que a forma com que as declarações do lado primeiro, mas não o segundo. O ataque foi
britânico optaram por retratá-la. Mas seja descrito inicialmente como uma reação ou
qual for a verdadeira avaliação jurídica dessa retaliação, mas depois, como legítima defe-
questão, pode-se garantir, com mais seguran- sa, segundo o Artigo 51 da Carta da ONU.
ça, que as considerações políticas prevalece- Era um ato de guerra em clara violação das
ram e que, não importa a orientação de tantos obrigações aceitas por todos os signatários
advogados quantos fossem consultados (se é da Carta (o recurso ao Artigo 51 foi tão va-
que o foram), o governo britânico não teria zio que simplesmente acrescentava hipocri-
agido de forma diferente da que agiu. sia à ilegalidade) e também em contravenção
A guerra pelas Falklands (Malvinas) às leis da guerra que, por mil anos antes da
representou um revés para a ONU como Carta, prescreviam que a força usada em
organização e para as aspirações de ordem um empreendimento punitivo não deveria
mundial que ela corporificava. A maior ser desproporcional à ofensa que a causou.
parte da responsabilidade por esse revés A ação foi muito aplaudida pelo povo dos
está com os agressores iniciais, mas o go- Estados Unidos que, como seu presidente,
verno britânico não escapou completa- sentiu-se indignado e frustrado por crimes
mente do constrangimento de demonstrar como o atentado de Berlim, o sequestro do
que, em uma crise, um país poderoso não Achille Lauro e outros. Incapaz de chegar
vai acolher a diplomacia da ONU e subme- às pequenas gangues responsáveis por esses
terá o Estado de Direito e suas obrigações, crimes, o governo dos Estados Unidos deci-
segundo a Carta, a sua própria avaliação diu rotular determinados países (Líbia, Síria)
sobre as vantagens e o prestígio nacionais. como “organizações terroristas” e reivindi-
Isso já não surpreendia em 1982, mas não car o direito de atacá-los. O ataque era um
era o que a geração de 1945 esperava. ato político realizado em desafio às regras
Um golpe mais sério ao Estado de Direi- e obrigações internacionais, mas na crença,
to nas questões internacionais veio quando, ou na esperança, de que sua conveniência
em 1986, os Estados Unidos fizeram um pe- política abafaria sua ilegalidade. Porém, os
sado ataque naval e aéreo à Líbia. A ocasião cálculos para isso não foram bem feitos e ele
para o ataque foi a explosão, 10 dias antes, não teve efeito lógico nem visível sobre os
de uma bomba em uma casa noturna em grupos pequenos, mas fervorosos que, preci-
Berlim Ocidental. sando de poucas armas e de pouco dinheiro,
736 | PETER CALVOCORESSI

poderiam continuar atuando com ou sem o Como último recurso, a ação dos Esta-
bombardeio de algumas cidades Líbias. O dos Unidos foi um enorme erro de cálculo
próprio Kadafi não foi morto nem depos- político. Por um lado, havia um desejo gene-
to, tampouco pareceu intimidado. Os rivais ralizado, ao qual o governo respondeu, de se
domésticos que foram incentivados à intriga encontrar uma forma de policiar as questões
contra ele pelos problemas econômicos da internacionais e transnacionais – até mesmo
Líbia abandonaram sua oposição, pelo me- alguma disposição de colocar a ordem antes
nos por um tempo. Outros líderes árabes, da lei. Mas, ao assumir o papel de polícia,
inclusive os que não gostavam de Kadafi, Reagan desconsiderou o fato de que, não
julgando-o pretensioso e incômodo, colo- apenas o bloco comunista não estava dis-
caram-se ao seu lado; uma tentativa norte- posto a dar esse papel aos Estados Unidos,
-americana de cooptar o presidente Muba- como tampouco o estavam o mundo árabe,
rak para o ataque fragilizou gravemente sua a Ásia, a África, e – mais surpreendente-
posição; a opinião pública árabe desenvol- mente – a Europa Ocidental. Depois do ata-
veu alguma simpatia por Kadafi, como víti- que, não estavam nem um pouco dispostos.
ma da força bruta. Os aliados europeus, com Sendo assim, a ação carecia não apenas de
a notável exceção da primeira-ministra bri- legitimidade, mas também de apoio e defen-
tânica e de alguns de seus colegas, ficaram sores a posteriori. A ação norte-americana
chocados diante do que consideravam uma na Nicarágua e no Panamá (ver o Capítulo
insensatez política, mas calaram as críticas 28) reforçou a dificuldade de encontrar um
públicas a Reagan em função de sua própria policial disposto a fazer o trabalho duro e,
fragilidade, em resposta às interferências le- ao mesmo tempo, manter-se fiel à lei.
tais de Kadafi; eles relutaram em aplicar me- A revolução efetivada por Gorbachev
didas econômicas (alternativas e legítimas), na URSS mudou essa situação extinguindo
já que as sanções contra a Líbia prejudica- a Guerra Fria, induzindo as superpotências
riam sua recusa a usar essas sanções contra a a cooperar nos assuntos internacionais, em
África do Sul. Na Grã-Bretanha, a disposição vez de opor umas às outras como questão
da primeira-ministra em permitir o uso de de princípios, e introduzindo pela primeira
bases britânicas provocou questões sobre o vez, desde 1945, a perspectiva de fazer com
acordo secreto anglo-americano que gover- que a Carta funcionasse como era seu obje-
nava seu uso, principalmente para operações tivo, para manter a paz e aplicar a lei. O pri-
que ninguém cogitava quando o acordo foi meiro teste veio com a invasão e anexação
feito e que nada tinham a ver com a OTAN. do Kuwait pelo Iraque em 1990. Esse foi um
Embora tenha alterado pouca coisa, como é ato de agressão explícito e levantou a ques-
o caso de muitos atos de violência, o ataque tão que já tinha sido levantada várias vezes
americano acentuou algumas tendências, antes, inclusive na ocupação pela Argentina
das quais as mais importantes foram, pri- das Ilhas Falkland e o ataque do próprio Ira-
meiro, a de redução na capacidade dos Esta- que ao Irã 10 anos antes: se a contra-ação se-
dos Unidos de resolver em vez de agravar os ria realizada por meio da ONU ou fora dela.
tumultos do Oriente Médio e, segundo, a de O presidente Bush decidiu fazer as duas coi-
redução da capacidade da Grã-Bretanha de sas. Ele despachou forças armadas de gran-
postergar a opção por um papel menor – hu- de porte para a Arábia Saudita e recorreu à
milhante e, agora, impopular – na parceria ONU para impor sanções ao Iraque. Essas
anglo-americana e uma parceria mais inte- duas ações foram internacionais no senti-
gral com a Comunidade Europeia. do de que vários países participaram delas,
POLÍTICA MUNDIAL | 737

mas somente a segunda foi implementada para monitorá-las, mas não para qualquer
pela organização. A primeira foi iniciada e outro propósito. Outras resoluções defini-
liderada pelos Estados Unidos independen- ram e regularam as ações da ONU, culmi-
temente da Carta e não entrava em choque nando em uma 12ª resolução em 29 de no-
com seus termos, mas entraria se essas for- vembro que, ao autorizar o uso, depois de
ças fossem usadas para uma guerra que não 15 de janeiro de 1991, de todas as medidas
em apoio a resoluções da organização, por necessárias para atingir os objetivos estabe-
solicitação dela e sob um sistema de coman- lecidos em resoluções anteriores, aprovava o
do por ela estabelecido. recurso à guerra.
O Conselho de Segurança agiu segundo Os governos dos Estados Unidos e da
o capítulo VII da Carta, que entra em opera- Grã-Bretanha sustentavam que, indepen-
ção quando o próprio Conselho determina dentemente dessas resoluções, tinham direi-
a existência de uma ameaça à paz, um rom- to de usar a força contra o Iraque segundo o
pimento da paz ou um ato de agressão. Se o Artigo 51 da Carta, mas essa afirmação era
Conselho faz isso, ele pode prescrever ações provavelmente falsa. O Artigo 51 é um dos
de dois tipos: medidas que não envolvam o menos satisfatórios da Carta, salvaguardan-
uso da força armada (Artigo 41) e ação por do expressamente o direito do Estado de se
forças aéreas, marítimas e terrestres (Artigo defender, mas não fazendo nenhuma tenta-
42 – que especifica o bloqueio). Em caso de tiva de definir a linha entre legítima defesa
medidas relativas ao Artigo 41, o Conse- e retaliação e, ao usar a expressão “legítima
lho pode convocar os membros da ONU a defesa individual e coletiva”, promove uma
aplicá-las e (segundo o Artigo 25) eles serão ambiguidade. Há duas questões distintas a
obrigados a obedecer. Não existe essa obri- serem tratadas antes de se poder invocar le-
gação no caso de medidas sob o Artigo 42. gitimamente o Artigo 51: primeiramente, se
Em uma série de resoluções adotadas a ação proposta ou realizada corresponde a
no mês de agosto, o Conselho de Seguran- defesa ou retaliação (que foi a questão colo-
ça, por unanimidade, exigiu que o Iraque cada no caso das Falklands/Malvinas) e, em
se retirasse imediatamente do Kuwait, e segundo lugar, o sentido e o alcance do ter-
um acordo negociado impôs, por 13 votos mo “coletivo” no Artigo 51. A legítima defe-
a dois, um embargo comercial, financeiro e sa coletiva, além de ser uma contradição em
militar (com a exceção específica de produ- termos, sugere que um ataque a um mem-
tos médicos e regras que permitiam o for- bro da ONU pode enfrentar a resistência de
necimento de alimentos em base humani- forças que não as do país atacado. Presumi-
tária a serem formuladas por um comitê do velmente, elas são as forças dos aliados, mas
Conselho); declarou, por unanimidade, que é discutível se a aliança precisaria existir no
a anexação do Kuwait era nula e sem valor; momento do ataque ou pode ser estabeleci-
demandou, por unanimidade, que o Iraque da depois dele. Ao se examinar esse enigma,
permitisse e facilitasse a saída, do Kuwait é necessário voltar às circunstâncias nas
e do próprio Iraque, de cidadãos de outros quais o Artigo 51 foi formulado e adotado
países e autorizou, por 13 votos a dois, o uso em São Francisco, em 1945. Foi um adendo
da força para fazer com que o embargo fos- tardio à proposta da Carta e visava atender
se eficaz, se necessário, parando e inspecio- às preocupações dos membros de alian-
nando navios mercantes. ças regionais existentes (a Organização dos
Essas primeiras resoluções estabelece- Estados Americanos ou a Liga Árabe) que
ram sanções contra o Iraque e o uso da força temiam que, ao assinar a Carta, estivessem
738 | PETER CALVOCORESSI

invalidando os esquemas em suas regiões de uma expressão de desconfiança na eficácia


ajuda mútua contra a agressão. É evidente dos mecanismos e procedimentos da ONU.
que um ataque a um membro da ONU pode A tentativa da ONU, em 1945, de trans-
receber a oposição dos parceiros regionais ferir a guerra das mãos inseguras do Esta-
da vítima segundo as disposições da alian- do-Nação para as mãos mais seguras da
ça regional, mas não está claro – nem é fácil comunidade de nações, foi obstruída por
defender – que países de fora da parceria dois elementos: a Guerra Fria e a natureza
relevante na época possam intervir pela for- evolutiva da guerra. A Guerra Fria solapou
ça. A interpretação mais ampla permitiria a a existência de uma comunidade global de
qualquer Estado jogar-se em uma disputa nações e negou as disposições da Carta para
simplesmente se declarando aliado da ví- a reunião e uso de forças internacionais. O
tima da agressão, com o resultado de que desenvolvimento de armas nucleares, quí-
qualquer ameaça ou rompimento da paz se micas e outras armas novas se sobrepôs à
tornaria um convite à ação militar por auto- questão de quem deveria ter autorização
proclamados cavaleiros brancos – ou cava- para usar a força armada em relação a pro-
leiros vermelhos, ou negros – com a condi- pósitos políticos ou militares específicos.
ção única de que a vítima da agressão esteja A crise do Kuwait foi prolongada de forma
preparada para aceitar essa ação. Em termos pouco imaginável no século anterior, pela
de ordem mundial e da utilidade da ONU, perplexidade em relação ao uso da força
o ataque do Iraque ao Kuwait serviu para armada e uma opinião não expressa, mas
reanimar os mecanismos da ONU, testando cada vez maior, contrária a recorrer àquilo
seus pontos fortes e expondo os fracos. que a guerra se tornou. Havia, como sempre
O uso da Carta pelos Estados Unidos houve, três principais maneiras de derrotar
foi possibilitado por um amplo acordo en- um inimigo: deixá-lo à míngua, assustá-lo
tre os membros permanentes do Conselho ou vencê-lo. O capítulo VII da Carta é a ver-
de Segurança e, particularmente, entre os são moderna desse cerco, usando a privação
Estados Unidos e a URSS, mas pouca gen- para garantir a rendição, mas mantendo em
te em Washington acreditava que simples- reserva, como faziam os sitiadores, a força
mente por agir segundo o capítulo VII, seria direta, para fazer o inimigo recuar e pegá-lo.
restaurada a independência do Kuwait ou No entanto, um embargo segundo o capítu-
se impediria outras possíveis agressões por lo VII, como a guerra de sítio, provavelmen-
parte do Iraque – contra, por exemplo, a te seria lento e, em última análise, ineficaz:
Arábia Saudita. Os Estados Unidos estabele- os sitiadores, às vezes, retiravam-se. A estru-
ceram na Arábia Saudita uma força podero- tura norte-americana montada na Arábia
sa que, embora pudesse, por sua presença na Saudita era uma alternativa, uma segunda
área, reforçar a coerção aplicada pela ONU, linha. Ele visava assustar Saddam Hussein
era evidentemente capaz de atacar o Iraque ou, se ele não se assustasse, vencê-lo. Repre-
e não era improvável que fosse usada para sentava a visão de que, se as medidas do ca-
derrubar o regime iraquiano assim como pítulo VII falhassem ou não funcionassem
restaurar o kuwaitiano. Essa demonstração com rapidez suficiente, os Estados Unidos e
de intenção e poder por parte dos Estados os que os seguiam recorreriam à força em
Unidos foi um ato unilateral que recebeu vez de aceitar o revés.
apoio internacional ao garantir a partici- À medida que a crise evoluía mês a mês,
pação do país anfitrião e de muitos outros o mesmo acontecia com o dilema entre os
no Oriente Médio e além dele. Também foi dois objetivos de punir quem desrespeitou
POLÍTICA MUNDIAL | 739

a lei e resolver a crise – entre o recurso da vitória proporcionalmente inequívoca. Ou


guerra e o recurso da diplomacia. A viola- seja, Bush adotou medidas que eram econô-
ção de Saddam Hussein à Carta deu origem mica e politicamente insustentáveis.
à crise. A primeira das resoluções do Conse- Era adequado e desejável que os Estados
lho de Segurança exigira que ele resolvesse Unidos cumprissem o papel de liderança nas
sua violação ao se retirar do Kuwait e de- ações da ONU, mas Bush realizou mais ou
mandava discussões das questões em dispu- menos as duas coisas. Ele conduziu, simul-
ta entre o Iraque e o Kuwait, mas nada dizia taneamente, uma operação norte-americana
sobre o calendário relativo dessas duas exi- que fazia sombra à ação da ONU quase a
gências. Saddam proclamou repetidamente ponto de suprimi-la e, na operação norte-
que não sairia do Kuwait, embora expres- -americana, ele usava a força e a ameaça da
sasse disposição de participar de uma confe- força, com a exclusão da diplomacia, mes-
rência geral sobre questões do Oriente Mé- mo insistindo em que as conversações bila-
dio, com uma agenda da qual o Kuwait, não terais em Washington e Bagdá, que ele pro-
seria excluído. Os Estados Unidos, e alguns pôs em dezembro, não deveriam resultar em
de seus parceiros, se recusaram a examinar nenhuma coisa que pudesse ser chamada
qualquer questão antes de uma retirada ira- de negociação. Sendo assim, assumiu uma
quiana total e incondicional. posição na qual demandava observação
Isso equivalia à rejeição da diplomacia, incondicional de resoluções da ONU que
junto com um recuo. Era uma política de não exigiam isso nem mesmo elas próprias.
alto risco que dava à rendição uma proprie- Durante a Guerra Fria, o papel da ONU na
dade absoluta em detrimento da negocia- manutenção da ordem mundial e na apli-
ção, arriscando uma guerra que – embora cação do direito internacional foi apagado,
desencadeada inicialmente pela invasão do mas a Guerra Fria deu à organização um
Iraque – seria causada, em segundo plano, álibi para sua ineficácia. A crise do Kuwait,
pela igual teimosia dos protagonistas. Nesse a primeira grave desde o final da Segunda
contexto, Bush tinha uma dupla desvanta- Guerra, reanimou a ONU – e os Estados
gem. Como chefe de uma democracia e che- Unidos estavam entre os primeiros a saudar
fe de uma aliança ad hoc, estava muito mais essa mudança – mas também mostrou que
limitado do que seu adversário autocrático, a nova liberdade que a organização tinha
que poderia prestar menos atenção à opi- para cumprir seu papel, central nas questões
nião pública ou aos receios dos parceiros, ou mundiais, ainda poderia ser restringida por
nem levá-los em conta. O poder avassalador seus membros mais poderosos e teria de ser
dos Estados Unidos tornava seu uso detestá- implementada sem o benefício das descul-
vel à grande parte da opinião pública e pra- pas para o fracasso, proporcionadas pela
ticamente irreconciliável com o Estado de Guerra Fria. A liberdade de ação da ONU
Direito estabelecido, que, por bem mais de poderia se revelar inútil, ou pior, catastrófi-
mil anos, decretou que o uso da força deve ca, se valesse apenas para exigir rendição in-
ser proporcional ao objetivo a ser atingido. condicional. Ao pressionar pelas resoluções,
A inclinação em direção à guerra foi acentu- além dos objetivos explicitamente expressos
ada pelas táticas norte-americanas de refor- nelas e ao conduzir operações supostamente
çar uma política de sanções com a mobiliza- da organização sem tê-la como referência,
ção de enormes forças armadas, cujo custo os Estados Unidos abusaram dela e a fragili-
era insustentável em um prazo longo e que zaram ao mesmo tempo em que cumpriam
não poderiam ser trazidas de volta sem uma alguns de seus objetivos. Os objetivos dos
740 | PETER CALVOCORESSI

Estados Unidos – uma derrubada do cruel vista do Iraque, pelo menos, era possível.
regime que tinha, entre outras coisas, viola- Mas o exemplo iraquiano funcionava em
do a Carta e as leis das nações – eram am- dois sentidos. Além de demonstrar a deter-
plamente aprovados, mas os métodos usa- minação dos Estados Unidos, o bombar-
dos demonstravam algo diferente: o poder e deio do Iraque nada conseguiu e Milosevic
a vontade de um único governo nacional no podia ver que os membros europeus do
contexto de uma ameaça a seus interesses Grupo de Contato (mais uma vez, com a
nacionais ou sua própria percepção sobre o Grã-Bretanha excluída) estavam pelo me-
que a situação internacional requeria. nos reticentes em relação a ataques aéreos
Havia um dilema entre agir estritamen- contra a Sérvia, não por qualquer melindre
te de acordo com o Estado de Direito nas em relação a descumprir a lei, mas porque
questões internacionais, fortalecendo-o, avaliavam que o bombardeio de Belgrado
ou agir da forma que parecesse ditar as cir- não atingiria seu propósito. No Iraque e
cunstâncias de um determinado caso. Esse no Kosovo, os Estados Unidos agiram para
dilema era acentuado pelos eventos no Ira- impor sua vontade e um novo tipo de or-
que depois do final da guerra, em 1991 (ver dem, pelo menos durante um tempo curto.
o Capítulo 14), e pelo desmembramento da Demonstraram que teriam, e, em circuns-
Iugoslávia, que levou à guerra em função tâncias de sua própria escolha, tiveram,
da divisão da Bósnia e à guerra civil na pro- objetivos imediatos por meios que consi-
víncia sérvia do Kosovo (ver o Capítulo 7). derassem adequados ou imperativos; que
A persistente obstrução do Iraque à Uns- o direito não é tudo na política nem, em
com e a determinação dos Estados Unidos alguns momentos, o principal ingrediente.
de derrubar Saddam Hussein levaram, A Guerra do Golfo teve uma segunda
através de uma série de crises, à retomada consequência, não menos abrangente. Pela
da guerra por parte de norte-americanos e resolução 688, de 1991, o Conselho de Se-
britânicos sozinhos, sem autorização explí- gurança afirmava que a situação no Iraque
cita do Conselho de Segurança – alegando era uma ameaça à paz internacional e de-
que essa autorização já tinha sido dada, mandava que as organizações humanitá-
mas, na realidade, se tivesse sido buscada, rias tivessem acesso a partes do país onde
não teria sido concedida. No caso do Ko- as minorias estavam sofrendo violência.
sovo, os mesmos dois países estavam se Também exigia o direito de patrulhar e mo-
preparando para remover o domínio sérvio nitorar essas áreas. Como a guerra, nesse
sobre o território através da guerra aérea, momento, estava terminada, no sentido de
uma clara violação da Carta da ONU. Um que o Iraque havia sido derrotado, o Conse-
elemento crucial no duelo entre os Esta- lho estava levantando, implicitamente, uma
dos Unidos e a Sérvia era o conhecimento questão semioculta: o conflito entre as obri-
de Slobodan Milosevic de que os Estados gações da ONU em relação aos padrões de
Unidos tinham recorrido à guerra contra comportamento e a proibição, pelo Artigo
o Iraque independentemente das regras 2(7), da intervenção nas questões essencial-
do direito internacional e também da von- mente domésticas de um país, com exceção
tade ou aprovação da maioria dos aliados de circunstâncias definidas no capítulo VII
europeus. Era óbvio que as forças norte- da Carta. Aplicando a resolução 688, uma
-americanas eram amplamente superiores força internacional fornecida por Estados
às sérvias. Não estava garantido que os Es- Unidos, Grã-Bretanha e França mantinha a
tados Unidos usariam essa força, mas em pressão sobre o Iraque, definindo áreas cur-
POLÍTICA MUNDIAL | 741

das e xiitas no norte e no sul do país, respec- aprovou suas disposições, mas eles temiam
tivamente, como áreas proibidas para aviões sua aplicação a eles próprios ou a seus ami-
iraquianos e usando bases aéreas turcas para gos em um futuro incerto.
suas operações no norte. (Os turcos estavam As demandas sobre a ONU aumentaram
ansiosos por impedir que refugiados curdos muito desde o final dos anos de 1980. Nos
entrassem em seu país e que grupos arma- cinco anos desde 1988, as operações de paz
dos reforçassem os curdos na Turquia. A e de supervisão da organização quadrupli-
Turquia chegou a invadir o norte do Iraque caram em volume e seu custo disparou. No
sob a alegação de que ali havia caos e uma pico do envolvimento nos conflitos na Iu-
ameaça a sudeste de seu território.) goslávia, onde 32 países estavam contribuin-
A Resolução 688 teve uma passagem do com 25 mil soldados em lugar da média
mais polêmica no Conselho de Segurança de 10 mil em décadas anteriores, seus custos
do que resoluções anteriores para a guer- eram de cerca de 3 bilhões de dólares. A or-
ra contra a invasão do Kuwait pelo Iraque. ganização sofria muitas pressões para recru-
Três membros do Conselho de Segurança se tar as quantidades necessárias, e seus mem-
opuseram a ela e dois se abstiveram. Mesmo bros não estavam dispostos a assumir a parte
assim, ela levantava uma questão que não que lhes cabia dos custos. Esse aumento na
havia sido formalmente cogitada durante a demanda por ordem mundial foi ocasiona-
Guerra Fria e que só foi definida durante a do, não apenas pela fim oportuno da Guerra
Guerra do Golfo. Fria, mas também pela redefinição de que
As circunstâncias relevantes incluíam tipo de ordem deveria ser garantida e como a
três aspectos além dos fatos de qualquer ONU deveria implementar a tarefa. A ordem
caso específico: o desenvolvimento do di- mundial agora significava mais do que dar
reito internacional e sua interpretação, o fim a guerras entre países, incluindo respon-
volume de demandas simultâneas sobre a sabilidade pela ordem nacional em algum
ONU e as práticas da organização em re- nível indefinido, onde a desordem ameaças-
lação à intervenção para manter a paz, dar se a paz internacional ou ofendesse muito as
ajuda humanitária e aplicar padrões huma- normas humanitárias estabelecidas pelo di-
nitários. A lei sobre ao conflito armado foi reito e pelas convenções internacionais.
revisada e recodificada depois da Segunda No período posterior à guerra do Golfo,
Guerra Mundial pelas quatro Convenções a situação dos curdos no norte do Iraque e
de Genebra de 1949 e os dois Protocolos dos xiitas no sul demandava a intervenção
de Genebra de 1972. A expressão “confli- internacional, em parte em função do his-
to armado”, em si, implicava uma extensão tórico atroz de Saddam Hussein contra eles
da lei para além do estado de guerra. Essas e, em parte, porque eles foram incentivados
convenções e protocolos atualizaram de- pelos Estados Unidos a se rebelar sem suces-
talhadamente a lei e prescreveram sanções so, contra seu governo: 2 milhões de curdos
penais para “rompimentos graves”, mas não estavam em fuga em terreno difícil e clima
estabeleceram mecanismos eficazes para ruim, e tinham asilo recusado na fronteira
sua aplicação. Dos dois protocolos, respec- turco-iraquiana. A situação levantou a ques-
tivamente sobre conflito armado interna- tão sobre o direito da ONU de intervir pela
cional e interno, o segundo foi muito mu- força em um Estado-Membro por propósi-
tilado antes de ser adotado, e a ratificação tos humanitários, em um momento em que
de ambos pelos países mais poderosos do outros desastres, notadamente na Somália e
mundo foi irregular. A maioria dos países na Iugoslávia, estavam exigindo atenção da
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organização e de seu novo secretário-geral, mas da guerra no mundo eram civis e refu-
Boutros Boutros-Ghali. giados, que estes atingiam 17 milhões, dos
A Resolução 688 do Conselho de Se- quais 7 milhões eram crianças, e que metade
gurança, tomada sem que se invocasse o das vítimas de guerra graves tinham menos
capítulo VII da Carta, de usar armas aéreas de 18 anos. Por outro lado, qualquer pronti-
e (no norte) tropas terrestres para proteger dão para mais intervenção era contraposta
minorias ameaçadas dentro do Iraque, foi pelos fracassos na Somália e na Iugoslávia.
uma quebra do Artigo 2(7), a menos que Na Somália, havia anarquia depois da
nenhuma das situações se enquadrasse no derrubada de Siad Barre, nenhum gover-
capítulo VII – caso em que o Artigo 2(7) no com o qual negociar as preliminares de
não se aplicaria, por sua própria formula- praxe para despachar uma missão de paz e
ção – ou as circunstâncias que provocaram um conflito entre objetivos humanitários e
a intervenção pudessem ser classificadas policiais – já que aliviar a fome é diferente
fora da “jurisdição essencialmente domés- de interromper a luta e restaurar a integri-
tica” do Iraque. Para esta última proposi- dade do país. O primeiro exigia não apenas
ção, uma série de argumentos (todos fortes, o fornecimento de comida e medicamentos,
mas inconclusivos) poderia ser levantada. mas também uma força para proteger quem
O primeiro era de que o Artigo 2(7) esta- fizesse isso; o segundo demandava a nego-
va em contradição com outras disposições ciação com facções em guerra e seu desar-
da Carta – por exemplo, os artigos 1(3) e mamento. Os Estados Unidos endossaram e
55 – que impunham à ONU um compro- tomaram parte em operações da ONU, mas
misso de sustentar princípios humanitários. também despacharam forças próprias e bus-
O segundo era que a palavra “doméstico” cavam objetivos próprios: não era fácil saber
deveria ser interpretada segundo a impor- se essas eram operações da ONU ou dos Es-
tância e não a localização das crueldades a tados Unidos, ou um pouco de ambas. Na
serem combatidas, por exemplo, atos que Iugoslávia, a confusão era pior. Embora a
beirassem o genocídio não poderiam ser desintegração daquele Estado tenha come-
chamados propriamente de domésticos. çado com conflitos entre sérvios e croatas, o
Um terceiro era de que atos que violassem cerne do problema internacional era a tenta-
diretamente as convenções internacionais tiva dos sérvios de anexar partes da Bósnia.
assinadas pelo país transgressor criavam A preocupação internacional era dupla: im-
um direito de intervenção internacional. pedir que a luta se espalhasse pela Iugoslávia
A intervenção internacional era uma e para além dela, e socorrer vítimas civis e
reação às circunstâncias, oportunidade e refugiados das consequências habituais de
emoções (incluindo compaixão e vergo- todas as guerras e das atrocidades terríveis
nha). Não era claramente legítima. Proteger destas. Esses objetivos estavam em confli-
curdos e xiitas parecia relativamente fácil, to, já que a intervenção humanitária exigia
tendo em vista que a ONU já estava em algum grau de colaboração por parte dos
guerra com o Iraque e o havia derrotado, combatentes, que ao mesmo tempo não gos-
e os custos não eram impossíveis de serem tavam das tentativas externas de interrup-
sustentados. Só com o tempo seria possível ção da guerra.
determinar se a tarefa curda poderia vir a As missões da ONU podiam ser dividi-
ser aceita como parte da lei da Carta. Por das em duas categorias amplas que se mes-
um lado, a Cruz Vermelha Internacional clavam: missões de observação, cujo princi-
relatava, nesse momento, que 90% das víti- pal propósito era preparar, observar e fazer
POLÍTICA MUNDIAL | 743

relatórios sobre eleições, e missões de paz graves violações do direito humanitário in-
enviadas a um cenário de violência para que ternacional, na Iugoslávia a partir de 1991.
ele fosse interrompido por uma trégua com A ONU era prejudicada por diferenças
o propósito de manter essa trégua e ajudar de opinião genuínas entre seus principais
as vítimas da violência. O segundo tipo ge- membros. Clinton, que sucedeu Bush no
ralmente tinha poder para se defender, mas meio da crise, estava ansioso para manter
não para usar a força com outro propósito, distância ou – se isso não se mostrasse reco-
e eles pressupunham uma interrupção da mendável – intervir com a força aérea. Ele
violência. Na Iugoslávia, contudo, o envio estava revoltado pelas crueldades perpetra-
de missões da ONU precedeu qualquer tré- das pelos sérvios (ainda que não exclusiva-
gua efetiva ou confiável. Em segundo lugar, mente) contra os muçulmanos, preocupado
a ONU se envolveu diretamente (setembro com as repercussões no mundo muçulma-
de 1991) no movimento da intervenção por no e atraído pelo cálculo de que os ataques
parte da CEE, em parte porque o presidente aéreos poderiam ser usados para forçar o
Bush incentivou a liderança da CEE em lu- cessar-fogo e a paz negociada sem a perda
gar da ação da organização que, inevitável e de vidas norte-americanas e sem envolvi-
profundamente, envolveria os Estados Uni- mento irreversível. Os europeus, por outro
dos e, em parte porque, alguns líderes euro- lado, opunham-se ao uso da força aérea
peus viram uma oportunidade para a CEE porque isso poderia abortar sua diploma-
de cumprir um papel importante. A primei- cia, poderia não ser um substituto eficaz
ra medida da ONU foi um embargo à en- para operações terrestres em uma guerra
trega de armas a todas as partes em guerra, acirrada (em uma zona rural montanhosa e
uma medida que favorecia os sérvios, mais coberta de mato) e encerraria abruptamen-
bem armados do que os outros. A ONU te todo o trabalho de ajuda. Todas as partes
também indicou Cyrus Vance, ex-secretário relutavam em aceitar que a paz negociada
de Estado norte-americano, para cooperar não poderia ser uma paz justa, que não se
com a CEE em suas tentativas diplomáticas poderia chegar à justiça para os muçulma-
de dar um fim à luta pela negociação. Em nos, e talvez tampouco para os croatas, sem
1992, a ONU formou e enviou uma Força aumentar a guerra contra os sérvios, que a
de Proteção (UNPROFOR) para socorrer haviam vencido. Daí a oferta de uma série
as vítimas da luta e proteger os funcionários de planos de divisão que nem todos que-
das agências de assistência, primeiro na Cro- riam aceitar e as ameaças de ação militar
ácia, depois na Bósnia-Herzegovina. Depois, que nem todos queriam realizar.
para estabelecer sua presença na Macedônia, Boutros-Ghali, apresentando, em
impôs sanções econômicas que foram bur- 1992, uma Agenda para a Paz, expôs a con-
ladas por uma década (com a ajuda da Gré- clusão de que, fossem quais fossem suas
cia e do Chipre), mas prejudicaram muito a regras, limitações ou práticas, nenhuma
economia sérvia e inflamaram as emoções organização internacional poderia corres-
populares e a retórica nacionalista irreden- ponder às expectativas corporificadas na
tista. A ONU também montou um comitê de Carta da ONU se não fosse apoiada inte-
especialistas para coletar evidências de rom- gralmente por seus membros, se estivesse
pimento da Convenção e dos Protocolos de subfinanciada, pouco equipada, fosse in-
Genebra. O Conselho de Segurança decidiu, formada tardiamente dos prováveis pro-
em 1993, pelo Capítulo VII da Carta, criar blemas a serem enfrentados e não estivesse
um tribunal ad hoc para ouvir acusações de certa de suas capacidades e propósitos.
744 | PETER CALVOCORESSI

Na época em que ele escreveu esse re- de três tipos: gerais, regionais e específicos.
latório, a ONU tinha 17 missões separadas, A primeira categoria incluía a Declaração
com custos muito diferentes, mas o custo Universal dos Direitos Humanos (1948) e os
total anual para os quase 200 membros da Tratados sobre Direitos Civis e sobre Direi-
organização era de não mais de 1% das des- tos Econômicos, Sociais e Culturais (1966).
pesas com defesa dos Estados Unidos, 10% Os orgãos regionais adotaram instrumentos
dos britânicos. Esse era o lado negativo da semelhantes – por exemplo, a Convenção
situação; o positivo era o simples fato de que Europeia sobre Direitos Humanos (1953),
as guerras não são possíveis sem armas, mas a Carta de Banjul da OUA (1981). Na ter-
estas estavam sendo fabricadas e comercia- ceira categoria, entravam as convenções so-
lizadas em abundância. A maior parte do bre violações específicas, como a Conven-
comércio de armas estava sendo realizado ção sobre o Genocídio, de 1948. Para essa
por governos ansiosos por reduzir suas pe- estrutura de orgãos não oficiais – Anistia
sadas despesas militares vendendo a outros Internacional, a Comissão Internacional de
países, e em concorrência entre si, um su- Juristas, os Quakers – contribuíram com
perávit na produção atual de um estoque pressões, ideias e versões dos documentos,
obsoleto. Também havia um mercado negro mas a implementação estava muito atrasa-
de armas, estimado em bilhões de dólares da. Em 1992, a ONU criou o cargo de Alto
por ano. Em 1991, a ONU decidiu estabe- Comissário para os Direitos Humanos, um
lecer um registro de transferência de armas, reconhecimento do Zeitgeist e o crescente
mas isso não avançou por causa de disputas impacto das atividades desumanas sobre as
sobre quais armas incluir e foi interrompido questões internacionais e a agenda interna-
quando a China, em protesto contra a ven- cional. Mesmo assim, a ação internacional
da de armas norte-americanas e francesas a na causa da justiça não necessariamente
Taiwan, boicotou o processo. melhorou a ordem mundial, pois, como
Havia um outro dilema. Não havia dú- nas questões nacionais, as reivindicações
vidas de que a ONU era uma organização de justiça não eram sinônimo de busca de
voltada a manter a paz entre os países. Mas estabilidade. Havia uma outra fonte de con-
havia muitas dúvidas sobre seu papel de fusão. Se é que as políticas externas dos Es-
manter a paz dentro de países, ou intervir tados Unidos se baseavam em um princípio
em guerras civis, ou garantir determinados geral, esse princípio não era tanto a afirma-
padrões de comportamento dentro de países ção do direito e da ordem internacionais, e
– com exceção dos casos em que uma dada sim a promoção da democracia, pela força,
situação pudesse ser claramente classifica- se fosse possível – uma cruzada wilsoniana
da como uma ameaça à paz internacional. que poderia colidir com o direito contido
Mesmo assim, as guerras civis, a anarquia e na Carta da ONU (ver o caso do Haiti, no
a tirania domésticas já não estavam, na dé- Capítulo 29), apesar de promover a demo-
cada de 1990, fora da agenda internacional, cracia à custa da estabilidade.
como alvos de preocupação e, possivelmen- Na esfera judicial, foram estabelecidos
te, de ação. Partes da Carta da ONU pelo tribunais ad hoc para julgar pessoas acusa-
menos sugeriam que a organização estava das de crimes de guerra e crimes contra a
comprometida com a proteção dos direitos humanidade na Bósnia e em Ruanda. Eles
humanos, e ela criou e patrocinou um arca- funcionavam sob desvantagens considerá-
bouço formal por meio de uma série de ins- veis, algumas delas inerentes a circunstân-
trumentos (majoritariamente declaratórios) cias de confusão impressionante e outras
POLÍTICA MUNDIAL | 745

devido à relutância de forças locais a fazer quando o general Augusto Pinochet Ugarte,
prisões. Uma conferência em Roma, em ex-ditador do Chile, foi preso na Grã-Bre-
1998, convocada pela ONU, debateu a cria- tanha em 1998, em função de um mandato
ção de um tribunal permanente, desde que que pedia sua extradição para a Espanha,
não impusesse a pena de morte, não reali- para enfrentar acusações de assassinato e
zasse julgamentos à revelia e sua jurisdi- tortura. Pinochet tinha recebido imunida-
ção se limitasse a crimes de guerra, crimes de de acusações no Chile, mas a Câmara
contra a humanidade e genocídio (crimes dos Lordes, derrubando uma decisão de
de jurisdição universal) – descartando, as- um tribunal inferior, decidiu que, segundo
sim, entre outras acusações, o terrorismo o direito inglês (com referência específica
internacional e o tráfico de drogas. Os de- à adoção, em 1998, da Convenção Inter-
bates foram postergados, principalmente nacional sobre Tortura) e pela legislação
em função de esforços extenuantes para consuetudinária internacional, os tribunais
atender a objeções dos Estados Unidos, que ingleses tinham poder para aceitar proces-
queriam um tribunal com poderes muito sos relacionados a determinados crimes,
limitados, e mais ainda quando se tratasse independentemente de onde eles fossem co-
de cidadãos norte-americanos. Esses esfor- metidos ou da nacionalidade das vítimas. A
ços não foram capazes de garantir a adesão Câmara rejeitou a contestação de Pinochet
dos Estados Unidos ao resultado final que, com base em sua imunidade como ex-chefe
contudo, foi muito diluído no processo. Por de Estado. Essa decisão, contudo, afetou a
120 votos a sete (Estados Unidos, China, Irã, imunidade geralmente estendida a chefes e
Iraque, Sudão, Líbia, Argélia), a conferência outros dignitários de Estado enquanto es-
concordou com a criação de um Tribunal tiverem executando suas funções oficiais.
Penal Internacional (TPI) que passaria a Nesse momento, começou a confusão. A de-
existir em Haia depois da ratificação de 60 cisão da Câmara dos Lordes foi colocada de
países. O TPI teria jurisdição sobre indiví- lado com base no fato de que um dos Lordes
duos acusados dos crimes enumerados nas do Tribunal de Apelações, que havia votado
propostas da ONU, com 18 juizes e um pro- por 3 a 2 contra Pinochet, tinha uma cone-
motor indicados por uma maioria de países xão com a Anistia Internacional, que defen-
participantes. Os processos poderiam ser dera sua extradição. Uma nova audiência
iniciados pelo Conselho de Segurança, por com sete desses Lordes produziu sete deci-
um país que tivesse ratificado o tratado, ou sões diferentes e incompatíveis, mas sobre a
pelo promotor, mas estariam sujeitos ao di- questão central a Câmara declarou, por 6 a
reito de um painel de três juízes interromper 1, que Pinochet não tinha imunidade.
a tramitação. Uma acusação também pode Porém, essa decisão se limitava a acu-
ser barrada pelo Conselho de Segurança sações relacionadas a eventos que tivessem
em nome de uma maioria, sem imposição ocorrido antes de 1998, e a Câmara acres-
de veto. Em caso de crimes de guerra, um centou um outro efeito segundo o qual,
país pode reivindicar o direito, por sete anos como a maioria das acusações estava rela-
depois de sua ratificação, de excluir seus cionada a esse eventos, o ministro do inte-
próprios cidadãos da acusação. O tratado rior deveria reconsiderar sua decisão de não
negou expressamente a imunidade de chefes negar a solicitação espanhola. Tendo feito
de Estado em relação a serem processados. isso, ele decidiu não impedir que o caso fos-
A noção de crimes de jurisdição uni- se adiante em relação às outras acusações.
versal recebeu atenção judicial (e pública) No Chile, as pesquisas de opinião sugeriam
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que os chilenos estavam divididos igual- tasse os sustentáculos do poder, mas tam-
mente sobre se Pinochet deveria ser julga- bém pleno emprego e o bem-estar social
do fora de seu país ou não. Um elemento em uma escala nunca atingida nem tenta-
importante na decisão final da Câmara dos da e, quando essas aspirações começassem
Lordes foi a decisão de que a imunidade a se realizar, o crescimento sustentado em
concedida pelo Chile a Pinochet, como níveis suficientes para consolidar e ampliar
parte da restauração da democracia, não essas metas sociais. Os objetivos sociais pas-
tinha efeito em processos judiciais fora de saram ao topo da agenda política. Por duas
seu país, mesmo que o regime democrático décadas, os destinos do chamado mundo
assim o solicitasse. Isso pareceria estabele- desenvolvido foram definidos pela força
cer que os fatores políticos não poderiam básica da invulnerabilidade da economia
influenciar as decisões judiciais no direito norte-americana dos tempos de guerra e
internacional. Nesse meio-tempo, Pinochet pelo direcionamento externo das políticas
continuou na Inglaterra por mais de um pós-guerra dos Estados Unidos; pelas reser-
ano. Quando suas condições de ir a julga- vas de habilidades da Europa ocidental e sua
mento foram questionadas em função da mão de obra não utilizada; pelo consequen-
saúde, o ministro do interior buscou a as- te estímulo da demanda de consumo; pelo
sessoria de um grupo de médicos, que re- surgimento de mercados globais e pelo de-
latou que ele não estava em condições, e o senvolvimento de novas tecnologias, muitas
ministro decretou sua libertação para que delas generosamente financiadas durante a
retornasse ao Chile. (Esses conflitos entre o guerra; Entretanto, esses eram fatores desfa-
direito e a conveniência/imperativos políti- voráveis. A globalização do que havia sido
cos, agravados pela determinação dos Esta- uma economia internacional limitada au-
dos Unidos de usar a força para derrubar o mentou mercados, mas também aumentou
regime no Iraque sem atenção adequada a a oportunidade para negligências e equívo-
ambos, são examinados mais integralmente cos econômicos. O crescimento e a estabi-
no Capítulo 14). lidade incentivaram políticas monetárias
frouxas, financiamento de déficits (muitos
empréstimos) e demandas salariais impossí-
Prevenindo os desastres veis. As conhecidas armadilhas da inflação e
econômicos dos ciclos comerciais não foram eliminadas
e, em meados dos anos de 1960, a estagna-
Uma economia forte é o elemento bási- ção e a recessão começavam a aparecer. No
co no poder político e no ânimo público. começo dos anos de 1970, desintegrava-se o
A fragilidade econômica e a desigualdade sistema monetário internacional concebido
promovem desordens. A Segunda Guerra em Bretton Woods, em 1944.
Mundial foi uma calamidade econômica e Antes do fim da guerra, os Estados Uni-
psicológica, que ampliou ainda mais a mor- dos, a Grã-Bretanha e seus aliados ocidentais
te e a destruição do que qualquer outra na trataram, em uma conferência em Bretton
história. Mas a recuperação não foi menos Woods, dos problemas da gestão econômica
extraordinária, impulsionada pelos Estados internacional, estabelecendo certos princí-
Unidos e também alimentada pela Europa pios e organizações. Os princípios eram: o
ocidental e pelo Japão, o que é ainda mais livre comércio a não discriminação e taxas
impressionante, já que o clima pós-guerra de câmbio estáveis (fixas, dentro de faixas
exigia que a economia não apenas conser- estabelecidas em relação ao dólar). As orga-
POLÍTICA MUNDIAL | 747

nizações eram: o Banco Internacional para eram financiados principalmente por go-
Reconstrução e Desenvolvimento (Banco vernos ocidentais, usados majoritariamente
Mundial), o Fundo Monetário Internacional em infraestrutura econômica, e se esperava
(FMI), e o Acordo Geral sobre Tarifas e Co- que produzissem um retorno razoável, ainda
mércio, (General Agreement on Tariffs and que tardio. Em termos de desenvolvimento,
Trade, GATT). Essas organizações estavam portanto, a principal função do Banco era de
subordinadas aos Estados que as criaram e mediador e de provedor. Até os anos de 1970,
dominavam, e o próprio sistema dependia suas atividades eram limitadas, mas, naquela
fundamentalmente da força e da disciplina década, a escala de suas operações foi am-
do dólar norte-americano. pliada em 10 ou mais vezes, e essa expansão
O Banco Mundial foi fundado para foi acompanhada de uma nova doutrina, que,
ajudar na reconstrução da Europa no pós- para justificar os empréstimos a beneficiários
-guerra. Quando essa tarefa foi assumida em sem tanto crédito em termos convencionais,
grande parte pelo Plano Marshall, o Banco enfatizava o valor econômico potencial das
foi aos poucos voltando sua atenção ao de- sociedades pobres, uma vez que se desen-
senvolvimento e ao restante do mundo. As- volvessem ou estivessem em desenvolvimen-
sim como o FMI, do qual era aliado por sua to. Não obstante, e apesar dessa expansão, a
localização comum em Washington e pelo contribuição material do Banco ao desen-
requisito de que deveria ser membro do Fun- volvimento era pequena. Nos últimos anos
do, o Banco era governado por uma direção do século, menos de um 1% das somas em-
profissional onde os grandes contribuintes prestadas por países em desenvolvimento
de seus fundos de capital tinham peso pro- fora de suas fronteiras vinham diretamente
porcional. Além desses fundos, o Banco le- do Banco Mundial, e ele era limitado a em-
vantava dinheiro lançando seus próprios prestar apenas (ou não muito mais do que)
títulos em bolsas de valores internacionais. ele próprio pudesse tomar emprestado, por
A instituição dava empréstimos para países receio de ser acusado de espoliar os contri-
com crédito a taxas de juros comerciais, por buintes de países ricos para ajudar os pobres
períodos limitados (no final dos quais os distantes.
fundos poderiam ser emprestados a outros) As funções paralelas do FMI eram es-
e principalmente para infraestrutura econô- tabilizar as moedas nacionais entre si e,
mica. Suas políticas estritamente conserva- como consequência, promover o comércio
doras eram necessárias para que ele tomasse ao garantir taxas previsíveis de câmbio e
empréstimos em mercados de dinheiro nas evitando a anarquia financeira dos anos de
melhores taxas disponíveis, mas restringiam 1930, quando desvalorizações competitivas
suas atividades iniciais para melhorar a si- engendraram a recessão mundial ao parar
tuação dos ricos em vez de ajudar os pobres. o comércio. Os britânicos, mais ambiciosos
Para o segundo propósito, foi estabelecida a do que os norte-americanos, defenderam –
Corporação Financeira Internacional, com em vão – uma moeda internacional, volu-
vistas a ajudar países mais pobres a obterem mes de créditos variáveis ajustados à expan-
financiamento do setor bancário privado e, são do comércio e reservas iniciais muito
em 1960, a Associação Internacional de De- maiores do que os 25 bilhões de dólares com
senvolvimento (International Development os quais o Fundo começou. O direito de re-
Association, IDA), que fazia empréstimos tirada, pelos membros, do Fundo, e o peso
sem juros a países mais pobres, a serem pa- do seu voto nos conselhos eram regulados
gos em 50 anos. Esses empréstimos da IDA por suas respectivas contribuições. Em seus
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primeiros anos, ele realizou principalmente em termos de menos empregos e salários e


empréstimos de curto prazo (para suavizar lucros menores, de forma que o FMI se tor-
dificuldades do balanço de pagamentos) e a nou impopular entre governos e governa-
Estados desenvolvidos, e prestava um servi- dos, e mais ainda onde sua ajuda era mais
ço de monitoramento e previsão em ques- necessária. Suas tentativas de fortalecer o
tões econômicas nacionais e internacionais. bom governo passaram a ser identificadas
Sua base foi questionada pela anulação qua- aos olhos dos emprestadores com a demo-
se que simultânea, em 1971, da convertibi- cracia que, ainda que desejável, nem sem-
lidade do dólar em ouro e da vinculação de pre era reforçada pela imposição de política
outras moedas ao dólar. O contexto no qual multipartidária a partir de fora. A começar
ele operava foi transformado pelos gran- pela crise mexicana de 1994 (ver o Capítulo
de aumento no preço do petróleo de 1973 28) e se intensificando com a crise na ASE-
e 1979, o que criou imensos desequilíbrios AN, na Coreia do Sul e no Brasil (Capítulos
(particularmente para países importadores 18, 4 e 27), dois novos dilemas se apresen-
de petróleo e relativamente subdesenvolvi- taram. Para impedir o colapso nessas eco-
dos), enquanto o fluxo resultante de petro- nomias nacionais, com prejuízos imprevi-
-dólares fez com que as moedas flutuantes síveis além de suas fronteiras nacionais, o
oscilassem de forma mais desordenada. O FMI montou pacotes de salvamento muito
Fundo ficou totalmente sobrecarregado, grandes, cobrindo alguns anos. Esses paco-
perdeu prestígio e influência; e foi forçado tes pressionaram os recursos do Fundo até o
a reconsiderar seu âmbito e seus métodos. ponto em que cada crise ameaçava se tornar
Supostamente mundial em seus propósitos, grande, e questionava a adequação de se for-
o Fundo – assim como o Banco – funcionou necer, a países com problemas, altas somas
como auxiliar de um sistema econômico que eram usadas para resgatar bancos no
criado pelo mundo capitalista desenvolvido, mundo desenvolvido, cuja falta de cautela
e, em grande medida, para ele, mas a partir ao fornecer empréstimos agravou as crises.
dos anos de 1970, foi forçado a assumir uma O FMI corria o risco de se tornar fia-
visão mais ampla à medida que o Terceiro dor de emprestadores ricos, em vez de aju-
Mundo em desenvolvimento exigia ser tra- dar países em situação difícil que estivessem
tado como parte dos problemas econômicos passando por problemas temporários. Esse
do mundo e os países ricos começaram a se não era o papel prescrito para o Fundo e
dar conta do grau de seu envolvimento eco- provavelmente não seria atrativo aos con-
nômico com os mais pobres. O FMI se tor- tribuintes de países ricos, onde, em última
nou uma espécie de médico financeiro, até análise, estavam as fontes de suas verbas.
mesmo cirurgião, chamado para assessorar Tanto o FMI quanto o Banco Mundial
e socorrer economias nacionais que estavam ampliaram sua abrangência em um mo-
com problemas ou desesperadas em função mento no qual governos e parlamentos
de pobreza, desregramento ou má gestão. nacionais, principalmente os dos Estados
Suas soluções tradicionais incluíam orça- Unidos, estavam ficando sem disposição de
mentos equilibrados, impostos mais altos e aprovar essas mudanças ou de contribuir
cobrados com mais eficiência, taxas de juros com mais do que uma proporção mínima de
mais elevadas e – nos últimos anos – melhor seu próprio PIB a esses orgãos. O FMI esta-
governo. Essas soluções se adequavam a al- va direcionando seus esforços e fundos para
gumas situações melhor do que a outras, e combater a pobreza, além de seu objetivo
necessariamente cobravam um preço alto principal de estabilização de moedas, ao
POLÍTICA MUNDIAL | 749

passo que o Banco estava emprestando além grandes exportadores de alimentos denomi-
de seu propósito original de apoio a empre- nados coletivamente de Grupo de Cairns.
endimentos que não eram capazes de atrair Como condição para apoiar qualquer em
sustentação comercial privada. dos volumosos pacotes de disposições da
Como terceiro braço do sistema, a con- Rodada, os Estados Unidos começaram
ferência de Bretton Woods cogitou, mas exigindo que a Comunidade reduzisse, em
rejeitou, a criação de uma organização co- 10 anos, seus subsídios às exportações de
mercial internacional. O que surgiu foi o cereais em 90% dos valores de então. A Co-
GATT – um processo, e não uma organiza- munidade ofereceu cortes de 30% a partir
ção – que buscava a libertação do comércio de níveis vigentes em 1986. As tentativas de
por meio de uma rede de negociações quin- reduzir a lacuna considerável (criada pela
quenais para reduzir tarifas, abolir quotas, postura inicial fora da realidade assumida
descartar novas e ampliadas preferências e por cada um dos lados) foram complicadas
garantir a qualquer um todas as preferências pelo impacto do debate no GATT sobre a
disponíveis a todos; a começar pela redução Política Agrícola Comum da Comunidade
dos obstáculos ao comércio de bens manu- (PAC), que os membros da Comunidade
faturados. A tarifa industrial média quan- estavam desenvolvendo com dificuldade
do o GATT entrou em vigor era de mais de e lentidão, diante da oposição por parte de
40%, mas, em 1980, essa média foi reduzida seus agricultores.
a não muito mais de 4%, e o volume de co- A Comunidade chegou a um acordo
mércio mundial quintuplicou em 25 anos. sobre a redução de subsídios que, afirma,
Era da natureza do processo do GATT que teria de ser renegociado – uma perspecti-
cada rodada de negociações fosse mais difí- va terrível – se fossem aceitas as exigências
cil de concluir do que a anterior, e a rodada norte-americanas no GATT. Os Estados
do Uruguai, aberta em 1986 – a oitava em Unidos tinham pouca simpatia por esse ar-
uma sequência que teve início em 1947 – só gumento, principalmente ao se aproxima-
chegou a um acordo depois de sete anos. rem as eleições presidenciais de 1992, e res-
Além do número sempre crescente de par- ponderam com ameaças de impor tarifas
ticipantes, as negociações foram compli- de até 200% (na prática, proibição total) a
cadas pela mudança de produtos agrícolas determinados produtos europeus, a come-
a industriais, serviços financeiros, as cha- çar pelos vinhos franceses.
madas propriedades intelectuais (patentes, Uma outra fonte de exasperação mútua
royalties) e os que mais rendiam exporta- foi uma disputa, fora da Rodada do GATT,
ções para os países mais ricos (aviões civis, sobre o volume de exportações e a produ-
filmes, produtos em fita-cassete e televisão). ção de sementes oleaginosas, embora esta
De tratamento mais difícil, por razões polí- questão tenha sido sintetizada em um ponto
ticas bem como econômicas, eram os subsí- polêmico de um milhão de toneladas de se-
dios sobre os quais só se chegou a um acor- mentes da comunidade, avaliadas em meros
do à custa de abandonar parte do ambicioso 100 milhões de dólares. Chegou-se a um
programa da Rodada. acordo entre a CEE e os Estados Unidos, o
Os principais contendores eram a Co- Acordo de Blair House, de 1992, segundo o
munidade Europeia, funcionando como qual os subsídios da CEE para as exporta-
unidade (sujeita, contudo, à aprovação do ções de cereais deveriam ser reduzidos em
Conselho de Ministros e de cada membro) 21%, dentro de seis anos. Mas os agriculto-
e os Estados Unidos, com apoio de 15 outros res europeus continuavam descontentes, e
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os franceses, em particular, pressionavam te nos Estados Unidos e na França, de im-


seu governo para que rejeitasse o acordo e, portar critérios sociais e ambientais para a
assim, toda a Rodada (apesar de esses agri- ordem comercial e econômica do mundo –
cultores não serem, em seu conjunto, pro- uma iniciativa que não se podia criticar, já
dutores de cereais; um setor que foi assu- que estava restrito a questões como prisão
mido, em grande parte, pelo agronegócio). ou trabalho infantil, mas gerava suspeitas
Até às vésperas da data estabelecida pelo nos países em desenvolvimento, que te-
Congresso dos Estados Unidos, foi man- miam que os mais ricos, ao aplicar padrões
tida uma competição de obstinação para inaceitáveis a países onde os salários eram
permitir ao presidente aprovar o Relatório mais baixos, poderiam introduzir um novo
Final da Rodada sem endosso do Congresso tipo de protecionismo sob o manto da jus-
a seus detalhes: o Congresso poderia apro- tiça social. A conclusão da Rodada, depois
var ou rejeitar, mas não fazer emendas a de sete cansativos anos, era um alívio, mas
qualquer coisa aceita pelo presidente antes também um sintoma, pois devido às pres-
da data. As etapas finais da Rodada ficaram sões políticas nas etapas finais, havia mais
mais dramáticas em função de um conflito medo da falta de acordo do que disposição
entre os Estados Unidos e a CEE – princi- de se chegar a ele.
palmente a França, com graus variados de A posição dos Estados Unidos na Roda-
simpatia por parte de outros membros da da Uruguai só foi suavizada depois que Clin-
CEE. As principais metas da França eram: ton conquistou o apoio do Congresso para
proteger um setor de sua agricultura, repelir que o México fizesse parte de um acordo re-
ataques dos Estados Unidos a seus subsídios gional, a North American Free Trade Area
a exportações e tentar conquistar a proteção (Nafta – ver o Capítulo 28) e fosse pessoal-
para cineastas europeus contra os norte- mente a uma conferência em Seattle para
-americanos (uma indústria em expansão) aplaudir o Fórum de Cooperação Econômi-
e fabricantes de aviões. Essas metas foram ca da Ásia-Pacífico (Asian Pacific Economic
garantidas em grande parte por concessões Co-operation Fórum, APEC) criado em
ou adiamentos para uma outra Rodada. 1989, por iniciativa da Austrália, com vistas
Quando o Relatório Final da Rodada a estimular um grande bloco regional que
foi adotado em 1994 (sujeito às ratificações incluísse o Pacífico Sul, o sudeste asiático, o
necessárias), muito havia sido conquistado, norte da Ásia e a América do Norte. Atingi-
mesmo que com algum custo de adiamento dos e desgastados por complexidades e reve-
das questões de tratamento mais difícil. O ses da Rodada Uruguai, os Estados Unidos
acordo prometia enormes ganhos em ter- fizeram um tratado comercial com o Cana-
mos de comércio e emprego. Medidos em dá, cujos principais objetivos eram se con-
dinheiro, os benefícios em todo o mundo trapor à penetração japonesa no mercado do
eram, em nível bastante especulativo, situ- país através do Canadá e cortar os subsídios
ados em 5 trilhões de dólares depois de 10 deste a suas exportações (por exemplo, ma-
anos, mas com impacto imediato relativa- deira) para os Estados Unidos. A extensão
mente pequeno, e mais para os países ricos desse acordo ao México criou uma área de
do que para os pobres. A Rodada do Uru- livre comércio com uma população de 370
guai marcou um afastamento de tarifas e milhões. Mas a opinião pública e do Con-
quotas para serviços financeiros e outros, gresso, nos Estados Unidos, estava descon-
e direitos sobre propriedades intelectuais. fortável com a Nafta (e sua possível extensão
Houve algumas tentativas, principalmen- a outras partes da América do Sul) porque
POLÍTICA MUNDIAL | 751

ela faria com que as indústrias se transferis- dade entre os principais blocos comerciais
sem para o sul e mexicanos fossem em mas- – os Estados Unidos, a UE e o Japão. A
sa para o norte em busca de trabalho. Bush conferência geral em Seattle, em 1999, foi
adiou a ação enquanto se aproximavam as interrompida por várias manifestações de
eleições e Clinton garantiu a ratificação do protesto de tipos diferentes e terminou sem
Congresso com dificuldades. Não obstan- acordo sobre qualquer dos principais assun-
te, em 1993, o governo Clinton levantou a tos em sua agenda: uma proposta da UE,
ideia de uma Área de Livre Comércio das aparentemente apoiada por Estados Unidos
Américas (Free Trade Area of the Améri- e Japão, de isentar de taxas alfandegárias
cas, FTAA) e tentou construí-la por meio de todos os produtos dos países em desenvol-
duas conferências com 34 presidentes (Cuba vimento (ou muitos deles); uma possível
ficou de fora) em 1994 e 1998. conclusão da longa disputa sobre os subsí-
O Japão tinha visões semelhantes de dios domésticos e para exportações entre a
uma esfera japonesa de influência econô- UE e os Estados Unidos/Grupo Cairns de
mica nos três continentes que formavam a exportadores; vínculo entre condições de
Costa do Pacífico. Em uma segunda reu- comércio e trabalho, que eram comuns nos
nião da APEC no país, em 1994, 17 dos 18 países em desenvolvimento, mas altamente
países que participaram concordaram em repugnantes em termos humanos; e uma
abolir todas as barreiras às exportações de proposta dos Estados Unidos de garantir re-
seus parceiros até 2010, no caso dos cinco gras internacionais que governassem o co-
principais países, e até 2020, no caso do res- mércio de produtos modificados pela bio-
tante: apenas a Malásia se recusava a aceitar tecnologia (como sementes geneticamente
ambas as datas. Embora Clinton tenha ido modificadas e gado criado com hormônios)
pessoalmente mais uma vez, havia dúvidas que a UE desejava banir como sendo possi-
não expressas sobre se os Estados Unidos velmente nocivos à saúde, mas os Estados
eram um membro natural de um grupo da Unidos consideravam que as objeções só se
Ásia-Australásia ou um ávido invasor em davam porque os europeus tinham pouca
uma organização cujos membros poderiam formação científica.
responder por metade do comércio interna- Por detrás dessas questões específicas,
cional até 2010. estão os fatos importantes de que os orgãos
Com o final da Rodada Uruguai, o governantes da OMC não foram capazes
GATT foi transformado na Organização de produzir uma agenda bem acabada e,
Mundial do Comércio (OMC – 1995), segundo, que os Estados Unidos chegaram
que recebeu amplos poderes para resol- à conferência indecisos sobre como ou em
ver disputas e processar quebras de suas que direções propunham exercer sua reco-
regras, mas começou a trabalhar em um nhecida dominação do comércio mundial.
clima inóspito. Sua maior autoridade não Determinadas características das ques-
era bem-vinda àqueles que viam nela uma tões econômicas mundiais, na segunda me-
tendência a se afastar de um simples fórum tade do século, eram sinistras e ilustravam a
rumo a uma federação política, e aos que incerteza e a fragilidade do sistema econô-
estavam se afastando do livre comércio e se mico inaugurado em Bretton Woods, e sua
aproximando do protecionismo. Em seus incapacidade de funcionar em emergências.
primeiros anos, ela tratou de centenas de Em 1944, o livre comércio mundial tinha
disputas específicas, mas pouco pôde fazer status de virtude inquestionável. Mesmo as-
para mitigar a cada vez mais dura hostili- sim, o compromisso norte-americano com
752 | PETER CALVOCORESSI

ele não chegava a ser total. Durante grande 1972-1973, e o regime de câmbio de Bretton
parte desse período, presidentes e seus ga- Woods deixou de existir. Todas as tentativas
binetes estiveram mais ligados ao livre co- de conceber um substituto fracassaram. Não
mércio do que o Congresso, cujos membros havia uma ordem mundial nem mecanismos
representavam áreas e interesses domésticos eficientes para a prevenção da desordem.
específicos, ressentiam-se das práticas pro- A ordem mundial geralmente é medida
tecionistas de outros países (principalmen- pela soma de guerras internacionais e civis,
te o Japão e outros países da Ásia), suspei- mas a agitação financeira, se aparentemente
tavam de que a CEE alimentava ambições menos calamitosa, pode colocar a ordem em
egoístas semelhantes e, assim, aprovava re- risco, não menos do que o conflito armado.
petidamente leis que limitavam os poderes E assim como o sistema político internacio-
do presidente nas negociações econômicas nal estava se mostrando muito fraco para
internacionais. Houve uma reação contra o dar conta da crescente onda de conflitos
ideal do livre comércio e a abordagem glo- armados, a ordem econômica internacional
bal das relações econômicas internacionais. – como provedora e reguladora – estava fi-
Associações regionais ou zonais pareciam cando atrás do ritmo da mudança. Em 1944,
mais administráveis, com mais probabili- essa ordem econômica internacional signifi-
dades de funcionar, já que mais de acordo cava coordenação das economias nacionais
com interesses de países que se conheciam; para determinados propósitos limitados,
elas davam aos países a sensação, verdadeira mas, 50 anos mais tarde, surgiu uma econo-
ou não, de que eles ainda estavam coman- mia universal desconectada dos países, em
dando seus próprios assuntos. Os países vez de coordenada por eles.
do Terceiro Mundo questionavam aberta- A revolução na tecnologia das comuni-
mente o princípio do livre comércio, ale- cações criou mercados financeiros capazes
gando que ele criava um sistema feito para de dar conta de imensas quantidades de
atender às necessidades dos países ricos, transações que nunca fechavam: não ha-
em desenvolvimento. Desde sua rejeição ao via hora do dia ou da noite em que não se
Plano Marshall, a URSS se ausentou delibe- encontrasse algum lugar para comprar ou
radamente com seus satélites de um sistema vender moedas ou commodities, ou especu-
mundial, e, quando desabou, as tentativas de lar em mercados futuros. Uma parte impor-
associar a Rússia à economia internacional tante desse negócio era feita por operadores
foram pouco mais do que superficiais, pois que usavam dinheiro emprestado ou fantas-
o custo era assustadoramente alto e a vonta- ma. As tentativas de bancos centrais pode-
de política, na melhor das hipóteses, incerta. rosos de impor controles e regulamentações
No campo monetário, o fracasso dos planos eram burladas com muita facilidade pela in-
de Bretton Woods foi ainda mais ruidoso do tervenção nos mercados, não de governos,
que no comercial. A política externa dos Es- mas de especuladores, cujos interesses eram
tados Unidos nas primeiras etapas da Guerra diametralmente opostos, já que cresciam na
Fria precipitou uma grande saída de dólares instabilidade, em vez de na estabilidade que
do país, e, principalmente na Europa, um ex- desejavam os governos, a indústria e o mun-
cesso de dólares em que o FMI se afundou. do do comércio.
Em 1971, Nixon cancelou a convertibilidade Nos mesmos anos, o volume de capi-
do dólar em ouro e, na prática, desvalorizou tal que alimentava a especulação e torna-
o dólar. Todas as principais moedas foram va esse movimento perigoso também se
desacopladas do dólar ou flutuaram em tornou uma necessidade para países ricos
POLÍTICA MUNDIAL | 753

e pobres. Todos enfrentavam necessidades cionais responsáveis, em vez de predadores


inegáveis que poderiam, se não enfrenta- incentivando os problemas.
das, produzir desastres – um colapso do No fim do século XX, a ordem mundial
investimento em pesquisa e produção e, as- não era uma alternativa a várias e separáveis
sim, no emprego, ou um colapso no apoio ordens regionais: a alternativa era a desor-
aos pobres (que se multiplicavam). Os dem mundial. Mas o papel das organizações
países ricos, cujos padrões de vida depen- mundiais era limitado. A Guerra Fria contra
diam das exportações, concluíram que o a URSS marginalizou a ONU, assim como
comércio entre eles estava crescendo mais o ressurgimento da Alemanha nos anos de
lentamente do que o comércio deles com os 1930 e o fracasso das potências europeias
países pobres. Mas a capacidade destes de em combatê-la marginalizaram a Liga das
continuar comprando os produtos e servi- Nações.
ços daqueles era visivelmente limitada, pois A Carta da ONU pressupunha uma
não estavam criando o capital doméstico, congruência cultural que se baseava mais
a poupança, ou as instituições financeiras na esperança do que na observação. Em-
necessários para atrair capital estrangeiro bora a segunda metade do século tenha
e alicerçar seu próprio desenvolvimento e, testemunhado o colapso das ideologias co-
assim, sustentar o crescimento das partes munistas intransigentes, também assistiu
ricas do mundo. a uma intensificação do fundamentalismo
A magnitude do problema foi ilustrada religioso intolerante no Oriente Médio is-
pelo custo, só para a Alemanha, de resga- lâmico, entre os cristãos nos Estados Uni-
tar e reabilitar seus Länder orientais depois dos, no judaísmo e no hinduismo, e teste-
da reunificação: 100 bilhões de dólares por munhou o florescimento mais vigoroso do
ano para um território comparativamente internacionalismo, na forma de comércio
pequeno, com uma população de menos ilegal e até criminoso.
de 20 milhões. Os planos de resgate para A derrota do comunismo soviético –o
os outros satélites soviéticos, sem contar que pode acontecer com o comunismo chi-
a própria Rússia e a Ucrânia, foram muito nês – foi um triunfo da democracia parla-
subestimados e, portanto, não foram cum- mentar e do capitalismo, mas esse triunfo
pridos, e a Europa era apenas uma parte de tem reservas. Os avanços formais da demo-
um mundo onde a Índia, a China, a África cracia durante o século e em todos os con-
do Sul e muitos outros estavam embarcan- tinentes receberam uma aclamação pública
do em uma expansão ambiciosamente one- nem tão entusiasmada. Os políticos como
rosa, sem o capital necessário ou formas classe não inspiravam muito respeito, pare-
prováveis de atraí-lo. Se, no final do sécu- cendo dedicar muitos esforços para marcar
lo, era necessário reconsiderar e redefinir pontos bobos uns contra os outros em um
o papel da ONU na manutenção da paz, mundo próprio. A democracia derrotou as
havia uma necessidade não menos urgente ideologias rivais, mas sem ganhar crédi-
de revisar e reforçar as operações do Ban- to em novos Estados ou em bastiões mais
co Mundial e do FMI. A ordem mundial antigos. O capitalismo demonstrara que o
era uma expressão vazia sem o capital para comunismo não oferecia um sistema econô-
sustentá-la, as condições para que esse ca- mico alternativo, mas o próprio capitalismo
pital frutificasse e a regulamentação para era incapaz de dar conta da inflação e do de-
manter um sistema econômico global sob semprego, questões que eram mais impor-
controle de governos nacionais e interna- tantes do que quase tudo para a maioria das
754 | PETER CALVOCORESSI

pessoas. Os governos democráticos não en- ráveis a um ou a outro. Esse Terceiro Mundo
contraram maneira de limitar as demandas temia o poder das superpotências, exempli-
salariais inflacionárias e não cuidaram da ficado e potencializado pelas armas nuclea-
inflação gerada pelas guerras que forçavam res. Desconfiava de suas intenções, invejava
o aumento dos preços de matérias-primas e (principalmente no caso norte-americano)
era financiada pela impressão e empréstimo sua riqueza superior e rejeitava sua insis-
de dinheiro. tência de que – em um caso, no capitalismo
democrático e, no outro, no comunismo –
elas tivessem descoberto um modo de vida
Neutralismo e realinhamento que os demais países não precisavam mais
do que copiar.
Uma das maiores mudanças que pode Os líderes nacionalistas, embora fossem
ocorrer em um mundo dividido em Esta- antieuropeus, tinham, pelo menos, uma ca-
dos soberanos é a sua multiplicação. Isso racterística em comum com seus senhores
aconteceu na Europa com a dissolução dos em retirada: o temperamento pragmático.
Impérios Otomano e Habsburgo e, uma O dogmatismo comunista rígido de Mos-
geração mais tarde, o mesmo aconteceu no cou e o anticomunismo cada vez mais rígi-
mundo todo com a dissolução dos impé- do de Washington os ofendiam. Acima de
rios europeus fora da Europa. Esse processo tudo, não se sentiam devedores dos Estados
foi postergado, mas a maior parte dele foi Unidos nem da URSS por sua independên-
consumada durante os 25 anos posteriores cia do domínio europeu, que conquistaram
à Segunda Guerra Mundial. O período foi com velocidade e facilidade inesperadas.
dominado pela Guerra Fria e esse conflito A decisão dos novos países da Ásia
deu aos novos Estados uma de suas caracte- e da África, com poucas exceções, de não
rísticas iniciais básicas. se aliar a nenhuma das superpotências, foi
Ambos os protagonistas da Guerra Fria muito influenciada por um homem: Ja-
foram inibidos em sua hostilidade ao colo- waharlal Nehru. Nehru era uma figura de
nialismo europeu, mas a Guerra Fria criou importância mundial antes de se tornar, em
a aliança euro-americana, corporificada na 1947, primeiro-ministro do mais populo-
OTAN, e a hostilidade norte-americana à so dos novos países, cargo que ocupou de
presença de britânicos, franceses e outros na forma ininterrupta por 17 anos. Era um pa-
Ásia e na África foi transformada. Enquan- trício pragmático e eclético que absorvera
to, em termos comerciais, ela era frequen- valores liberais e democráticos ocidentais,
temente intensificada pela concorrência em e também era atraído pelo histórico da au-
áreas até então dominadas pelos colonialis- toindustrialização da URSS. Causavam-lhe
tas, em termos de governo, foi calada pela aversão a tirania e o governo policial de
necessidade dos Estados Unidos de ter alia- Stalin, mas também as cruezas do macar-
dos e bases na Europa. thismo nos Estados Unidos e a arrogante e
A expressão “Terceiro Mundo” foi usa- moralista divisão do mundo em comunis-
da por Dag Hammarskjöld para designar tas e anticomunistas. (A propósito, olhan-
os países pobres da Ásia e América Latina. do agora, vale a pena enfatizar o impacto
Era um Terceiro Mundo porque rejeitava a mundial do macarthismo, um levante do-
noção de um mundo dividido em dois, em méstico nos Estados Unidos que parecia
que os Estados Unidos e a URSS contavam e indicar uma virada brusca à direita na polí-
todos os demais tinham de se declarar favo- tica norte-americana, acoplada a uma visão
POLÍTICA MUNDIAL | 755

míope e simplificadora da política mundial. guir o exemplo da Grã-Bretanha ao se aliar


As acusações indiscriminadas de McCarthy com os Estados Unidos na Guerra Fria.
de traição e conspiração floresceram nos Esse foi o começo do neutralismo ou não
choques da Guerra da Coreia. Nos Estados alinhamento do Terceiro Mundo, ao qual as
Unidos, o clima e os métodos induzidos por antigas colônias francesas também aderiram
esse choques foram controlados quando na década de 1960. Na Europa Ocidental,
passou o pico da guerra, mas os prejuízos no final da Segunda Guerra Mundial, an-
para a imagem do país no exterior conti- siava-se por uma postura igualmente inde-
nuaram por muito tempo.) pendente – e mediadora – entre os Estados
Nehru foi o principal criador da Com- Unidos e a URSS (uma chamada Terceira
monwealth pós-imperial e uma associação Força, defendida, por exemplo, por Georges
de monarquias e repúblicas de todas as ra- Bidault), mas isso se contraiu sob o impacto
ças, cujos vínculos não eram ideológicos, de medidas russas duras, como o golpe em
mas históricos e acidentais. Quando ele Praga em 1948. A Europa se tornou o lugar
decidiu que a Índia deveria permanecer da Guerra Fria e o restante do mundo gosta-
na Comunidade Britânica (como ainda era va de pensar que estava fora disso.
conhecida naquela época), ele o fez sob a Suas atitudes passaram por várias fases,
condição de que a Índia se tornasse uma enraizadas no conceito de neutralidade. A
república e que tivesse o direito de con- neutralidade consistia em uma declaração
duzir, sem objeções, uma política externa geral da intenção de permanecer fora de
distinta da britânica e de seus parceiros qualquer guerra que pudesse ocorrer, mas
na Comunidade, e mesmo potencialmen- que não se mostrou muito útil a seus vários
te contraditória em relação a ela. Sendo adeptos durante a Segunda Guerra Mundial.
assim, ele enfatizava a independência po- De qualquer forma, os novos países não es-
lítica que os novos países precisavam afir- tavam pensando em uma guerra aberta e
mar, enquanto mantinha os vínculos que como ficar fora dela, e sim na Guerra Fria e
tinham valor econômico, cultural e sen- em como se comportar em relação a ela. O
timental. Seu exemplo foi muito seguido. neutralismo e o não alinhamento, portanto,
Embora a Birmânia tenha cortado esses la- diferentemente da neutralidade, eram a ex-
ços com a Grã-Bretanha em 1948, nenhu- pressão de uma atitude diante de um deter-
ma outra possessão britânica o fez e, até o minado conflito presente: implicavam, em
final do século, a Commonwealth tinha 53 primeiro lugar, relações equivalentes com
membros, incluindo o Paquistão, que tinha ambos os lados e, em segundo – na fase cha-
renunciado em 1973, voltou em 1989 e foi mada de neutralismo positivo – tentativas
suspenso – barrado em reuniões, mas não de mediar e mitigar os perigosos conflitos
excluído da liderança – em 1999. A organi- dos grandes. Em sua fase mais negativa, o
zação tinha membros em todas as partes do não alinhamento significava reprovação da
mundo. (Seu equivalente francês, La Fran- Guerra Fria, afirmação de que havia ques-
cophonie, criado nos anos de 1990, tinha 49 tões mais importantes no mundo, reconhe-
membros.) cimento da importância dos novos países e
A insistência de Nehru de que cada recusa a fazer julgamentos entre as duas po-
membro da Commonwealth fosse livre para tências gigantes. A fase positiva representou
ter sua própria política externa significava o desejo dos novos países de evadir a Guerra
que nem a Commonwealth como um todo Fria, mas não ficar de fora da política mun-
nem seus vários membros precisavam se- dial. Se, à primeira vista, o mundo bipolar do
756 | PETER CALVOCORESSI

pós-guerra parecia deixar tão pouco espaço Os efeitos do anticolonialismo, da Guer-


para as potências pequenas como nos dias ra Fria e do neutralismo não podem ser cal-
das grandes lutas entre os Impérios Roma- culados com precisão, mas fica evidente que
no e Persa, por outro lado, parecia que os os neutralistas tiveram alguns impactos nos
neutralistas poderiam, mesmo assim, cum- países fora de suas fileiras. Nos primeiros
prir um papel honradamente gratificante. anos depois da Segunda Guerra Mundial, as
Quando a África e a Ásia se tornaram inde- atitudes dos Estados Unidos em relação aos
pendentes, o número de neutralistas e o es- asiáticos foram afetadas pela necessidade de
paço que ocupavam no mundo passaram a resgatar a Europa Ocidental e pelo chama-
ser consideráveis. No mínimo, eles poderiam do a lutar contra um agressor na Coreia. O
impedir que a Guerra Fria se espalhasse para Programa de Recuperação Europeu, engen-
essas regiões, simplesmente estabelecendo drado pelo Plano Marshall, absorveu uma
limites ao compromisso bipolar, reduzindo grande quantidade de mão de obra e aten-
as ocasiões e as áreas de conflito. Eles tam- ção dos norte-americanos, bem como di-
bém tinham condições, em função de sua nheiro, e fez com que eles fossem menos crí-
importância combinada, de fazer com que as ticos em relação ao colonialismo europeu,
grandes potências os cortejassem, tornando- que tinham criticado de forma inequívoca
-se, assim, uma espécie de farol condutor da no passado. Aos asiáticos, a voz dos Esta-
política mundial. Além disso, eles poderiam dos Unidos parecia ter sido emudecida pela
exercer influência com o método, consagra- necessidade de encontrar aliados certos e
do pelo tempo, de realizar conferências para fortes contra a ameaça comunista russa: em
divulgar suas visões, ou por métodos mais outras palavras, a Guerra Fria estava per-
novos de defender e votar na Assembleia Ge- vertendo a atitude dos Estados Unidos em
ral da ONU. Neste último aspecto, a voz da relação ao colonialismo e mesmo levando
Índia foi, mais uma vez, decisiva. Os novos o país, em termos materiais e físicos, para
países hesitaram inicialmente em suas atitu- o campo imperialista. Para eles, a guerra na
des diante da ONU, sem saber se ela poderia Coreia foi um grande evento na guerra entre
acabar sendo dominada por seus membros comunismo e anticomunismo, na qual pou-
europeus, como foi o caso da Liga das Na- cas pessoas deram muito pouca ajuda (não
ções, ou pelo Ocidente, ou pelas grandes po- mais do que 10% do esforço de combate) e
tências. Eles temiam que a nova organização algumas, notadamente os asiáticos, deram-
pudesse ser usada para fortalecer o colonia- -se ao luxo de fazer críticas fora de hora. A
lismo ou para servir aos propósitos da Guer- atitude dos Estados Unidos em relação ao
ra Fria, casos em que ela seria de pouca uti- neutralismo asiático era de indignação justi-
lidade para eles. Mas depois de um pouco de ficada, de modo que os eventos desses anos
experiência, decidiram o contrário. A Índia, fizeram com que os asiáticos os chamassem
em particular, destacou-se nas discussões e de imperialistas e fossem chamados por eles
comissões de campo da organização e forne- de traidores ou, pelo menos, hipócritas.
ceu unidades para operações de emergência, Anti-imperialistas professos, os russos
sem as quais essas operações dificilmente eram ambíguos, apoiando alguns movimen-
poderiam ser cogitadas (principalmente tos comunistas, mas tendo uma postura dú-
depois que Hammarskjöld desenvolveu o bia em relação a outros. O que os incomo-
princípio de que as principais potências não dava em relação aos líderes dos novos países
deveriam contribuir com unidades militares era o caráter burguês, e eles os atacaram
em operações da ONU). como tal, acusando-os de serem marionetes
POLÍTICA MUNDIAL | 757

do Ocidente. Inicialmente, homens como superficial em favor da ligação a um pro-


Nehru e Nasser não pareciam melhores do tetor forte, também se podia notar que as
que qualquer político da Europa Ocidental grandes potências queriam ficar de fora do
que entrou para a OTAN. Mas a chegada tipo de disputas locais nas quais os novos
desses líderes na ONU, em número cada vez países queriam ajuda – diferentemente dos
maior, converteu os russos à ideia de que aspectos locais do conflito global, em que os
eles constituíam um grupo separado, a meio novos países não queriam se envolver.
caminho entre o bloco comunista e os inimi- A busca de solidariedade precedia a
gos da URSS, e assim deveriam ser tratados. independência entre asiáticos e africanos.
Para ser eficaz, o não alinhamento, ne- A primeira conferência importante do pós-
gativo ou positivo, pressupunha solidarieda- -guerra – a Conferência de Relações Asiá-
de entre os não alinhados. Os novos países ticas, realizada em Nova Delhi, em março
eram fracos e cientes de sua fraqueza, o que de 1947 – reuniu 28 delegações, das quais
– não menos do que seu repúdio à Guerra apenas oito vinham de Estados soberanos.
Fria – era sua marca. Sua fraqueza os tor- Sua motivação era o desejo de garantir que
nava desconfiados de uma associação muito a ONU não se tornasse uma organização
próxima com uma única grande potência dominada por pontos de vista europeus ou
e, portanto, obrigava-os a buscar a força de países brancos, mas o tom das discussões
entre eles mesmos. Muitos deles estavam não era muito anticolonial. A conferência
longe de ser nações, e a unidade política que era uma reunião de asiáticos para discutir
possuíam era resultado da xenofobia. Seus problemas da Ásia, incluindo reforma agrá-
governos eram movimentos de libertação ria, industrialização, socialismo asiático e a
metamorfoseados, que tinha de criar o con- aplicação da não violência nas questões in-
senso mais amplo possível para impedir que ternacionais. A conferência estabeleceu uma
o novo Estado se desintegrasse ou se tornas- organização permanente que existiu por oito
se ingovernável. Como influenciava a políti- anos, mas não fez muito mais do que isso.
ca externa, esse problema sugeria ser reco- Pouco depois, Índia, Paquistão, Birmânia e
mendável à mais ampla gama de contatos e Ceilão se tornaram independentes, em um
amizades com outros países e à necessidade mundo que tinha a expectativa da paz, mas
de evitar qualquer alinhamento preciso e não a obteve; havia guerrilhas e insurreições
discriminatório. As necessidades econômi- na Birmânia, Malásia e Filipinas, e luta aber-
cas apontavam na mesma direção: nenhum ta na Indonésia, Indochina e Palestina. Na
país novo era tão importante às potências política doméstica, a violência fez vítimas fa-
ricas do mundo para conseguir receber de mosas na Birmânia, em junho de 1947, com
uma delas toda a ajuda de que necessitava, o assassinato de Aung San e seis colegas, e
de modo que era melhor não estabelecer uma vítima ainda mais famosa em janeiro de
uma aliança com uma potência que des- 1948, quando o Mahatma Gandhi foi morto.
cartaria a possibilidade de receber ajuda de Em janeiro de 1949, outra conferência
outras. (Esse argumento não era conclusivo. asiática se reuniu em Nova Delhi. Desta
Muitos países pequenos que surgiram do vez, as Repúblicas Soviéticas da Ásia, que
domínio francês na África eram tão frágeis tinham participado da reunião de 1947, não
que não tinham alternativa a aceitar o que foram convidadas e a Turquia recusou o
pudessem da França.) convite. Fora isso, a Ásia, incluindo o Orien-
Igualmente no campo da defesa, ao te Médio, estava plenamente representada,
mesmo tempo em que havia um argumento e a Austrália e a Nova Zelândia mandaram
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representantes. A motivação imediata para corporificava o Panch Shila, mas, no mes-


a conferência foi a Indonésia, onde um mo- mo ano, o Paquistão, a Tailândia e as Fili-
vimento asiático de libertação estava sendo pinas concluíram acordos militares com os
ameaçado de extinção pelos holandeses e Estados Unidos, enquanto o Afeganistão
onde, aos olhos dos asiáticos, a ONU pare- se tornou o primeiro país não comunis-
cia inclinada a facilitar a volta do domínio ta a receber ajuda russa, e a URSS, que já
colonial branco. No mês de dezembro ante- tinha um acordo comercial com a Índia e
rior, os holandeses recorreram à sua segun- estava por concluir outro com a Birmânia,
da ação policial e capturaram e prenderam intensificou a persuasão diplomática e eco-
uma série de líderes indonésios. A conferên- nômica com a Indonésia, que levaria Sukar-
cia exigiu sua libertação, o estabelecimento no a visitar Moscou em 1956. As grandes
de um governo interino e a independência potências estavam assumindo um interesse
para a Indonésia até 1950. Como sua ante- calculista nas questões da Ásia, mas uma
cessora, esta conferência criou uma organi- consequência viria a dificultar para os asiá-
zação permanente que se mostrou ineficaz, ticos a manutenção de uma atitude comum
em parte porque alguns países asiáticos esta- diante dessas potências ou de uma distância
vam ficando com ciúmes da predominância exigida pelo neutralismo puro.
da Índia e não queriam vê-la instituciona- Outra conferência, sugerida original-
lizada. A questão da Indonésia deu à con- mente pelo Ceilão e aceita por Sukarno e
ferência uma clara conotação anticolonial, Nehru, ocorreu em Bandung, em abril de
mas se dividiu entre amigos do Ocidente e 1955. O pano de fundo incluía o tratado
neutralistas. Essa divisão se aprofundou nos entre os Estados Unidos e Taiwan, o Pacto
meses que se seguiram, quando líderes asiá- de Manila que criava a SEATO, e o Pacto de
ticos assumiram diferentes posturas diante Bagdá. A URSS e a China apoiaram o que,
de dois eventos asiáticos de suma impor- à primeira vista, parecia uma conferên-
tância naquele ano: a vitória de Mao Tse- cia antiocidental, enquanto os amigos de
-Tung e do comunismo na China e a guerra Washington – Tailândia e Filipinas – esta-
na Coreia. A solidariedade asiática estava vam indecisos em relação à sua participa-
se mostrando difícil de obter, mesmo com ção. Israel foi excluído em função da opinião
base em um programa anticolonialista; as árabe. Os 29 participantes incluíam seis da
campanhas britânica e francesa na Malásia África (Egito, Líbia, Sudão, Etiópia, Libéria,
e na Indochina não evocaram os mesmos Gana), de forma que Bandung se tornou o
protestos unificados causados pelas atitudes protótipo da solidariedade afroasiática, em
dos holandeses na Indonésia, em parte em vez da puramente asiática. Era uma junção
função do tom comunista dos movimentos dos necessitados com os indignados, e não
anticolonialistas malasio e vietnamita. uma concentração de poder. Seus membros
Nos anos de 1950, a solidariedade e o estavam divididos mesmo na questão do
neutralismo asiáticos cresceram e foram se não alinhamento, mas o momento era pro-
desgastando. Alguns países do continente, pício. A Guerra Fria na Europa, desde o blo-
colocando suas necessidades econômicas queio de Berlim em 1948-1949, e o cresci-
e estratégicas antes de seu neutralismo, as- mento do poder nuclear russo até equivaler
sinaram tratados comerciais, e até mesmo ao norte americano, entrou em um período
de defesa, com os Estados Unidos ou com de impasse, mas não de degelo. Ambos os
a URSS. A Índia mantinha seus princípios, lados estavam com os olhos em outro lado
por seu tratado de 1954 com a China, que e competiam pela lealdade de países de ou-
POLÍTICA MUNDIAL | 759

tros continentes, com a vaga intenção de tado sua segurança, seu status e seu peso di-
construir uma nova preponderância por plomático no mundo; terem atraído homens
meio de mais alianças, ou de virar o flanco como Nasser e ampliado o grupo; terem fei-
do inimigo ao levar a influência e as bases to com que as potências gigantes os levas-
para novo terreno. Os russos e os chineses sem a sério e tratassem suas políticas como
tinham esperanças de promover o comu- respeitáveis (uma tendência reforçada com
nismo explorando nacionalismos antioci- a admissão de 16 novos membros na ONU
dentais, enquanto os norte-americanos es- com o acordo de 1955 e ainda mais com o
peravam explorar os medos do comunismo grande aumento na participação africana
e da China, criando novos grupos militares em 1960); e, por fim, terem visto um dos lí-
(se necessário, altamente subsidiados): a po- deres da nova e formidável China, não o te-
lítica dos Estados Unidos, recém-ilustrada rem considerado nem um pouco assustador
pela assinatura do Pacto de Manila, ia de e, talvez, terem induzido a China a entrar
encontro ao espírito de Bandung. Zhou En- em seu círculo pacífico. No verão de 1956,
lai, por outro lado, tendo ido pessoalmente Nehru e Nasser visitaram Tito em Brioni, na
a Bandung, fez algum esforço para demons- Iugoslávia. Com um asiático, um africano
trar que o comunismo chinês era conciliável e um europeu na liderança, os neutralistas
com outros nacionalismos asiáticos, e pelo se tornaram mais ambiciosos nos assuntos
menos outro líder chinês era mais sensível e internacionais e esperavam conseguir pres-
acessível do que sugeriam algumas imagens sionar as potências gigantes em questões re-
da nova China. Por acidente ou esperteza, os lacionadas à Guerra Fria, mas essa associa-
russos já tinham dado uma série de passos ção já estava passando do ponto alto de sua
que os aproximavam do clima na Ásia. A influência, em parte por causa das ativida-
proposta de neutralizar a Áustria foi bem- des dos que queriam transformá-la em uma
-recebida pelos neutralistas asiáticos, e ges- aliança dos comunistas e negros contra os
tos como a devolução de Port Arthur à Chi- brancos não comunistas, enfatizando o an-
na e de Porkkala à Finlândia sensibilizaram ticolonialismo em lugar do neutralismo. Na
àqueles que esperavam que a morte de Stalin prática, o não alinhamento se tornou não
tivesse mudado a face da política mundial. alinhamento antiocidental, principalmente
Em 1955, Bulganin e Khruschev visita- com o Movimento de Solidariedade do Povo
ram a Ásia sob enorme aclamação (Khrus- Afro-Asiático, que patrocinou uma série de
chev fez uma segunda visita no início de conferências no final dos anos de 1950.
1960) e a campanha dos russos para con- Em setembro de 1961, foi realizada uma
quistar outros neutralistas foi tão bem lan- conferência dos não alinhados, em Belgra-
çada que nem a repressão à revolta húnga- do. Enquanto Bandung foi uma conferência
ra de 1956 causou muitos prejuízos (como exploratória, Belgrado tinha uma atmosfera
o ataque anglo-francês ao Suez cumprindo de crise. O pano de fundo incluía os testes
papel valioso para salvar a reputação deles nucleares franceses no Saara e a retoma-
nessa conjuntura). Para os próprios neutra- da dos testes russos, a Baía dos Porcos e o
listas, as principais conquistas da Conferên- Muro de Berlim, o conflito franco-tunisia-
cia de Bandung foram eles terem se conhe- no por causa de Bizerta e a crise destrutiva
cido e se familiarizado (a maioria deles era no Congo. Um novo conflito entre Índia e
nova na política mundial); terem estabe- China parecia estar surgindo; entre a URSS
lecido os alicerces para a ação conjunta na e a China, com certeza estava. Os 29 parti-
ONU e, por meio da solidariedade, aumen- cipantes de Bandung eram, em sua grande
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maioria, asiáticos, e não majoritariamente alinhados em suas políticas e em suas sim-


antiocidentais. O único conflito sério com patias, a afluência muito mais ampla dos
relação à admissibilidade era o veto árabe à anos de 1970 continha uma série de países
Israel. Em Belgrado, a representação africa- que, embora não alinhados em sua política,
na refletia a divisão dos países do continente tinham simpatias definidas pró-Ocidente e
entre radicais e moderados. Participantes pró-comunismo.
latino-americanos foram selecionados com A solidariedade e o não alinhamen-
viés antiocidental e os europeus incluíam a to africanos, que começaram a unir forças
Iugoslávia e Chipre, mas não os tradicionais com a corrente asiática em Bandung, em
neutros, Suécia e Suíça. Uma tentativa de 1955, tinham suas próprias origens remo-
Nehru de se concentrar na paz em vez de no tas. O pan-africanismo começou como uma
anticolonialismo e patrocinar conversações afirmação do caráter distinto e do valor de
russo-americanas teve pouco sucesso, e vá- uma cultura explicitamente africana ou (por
rias delegações demonstravam uma indife- extensão àquelas terras às quais os escravos
rença facciosa em relação à explosão nuclear tinham sido enviados) negra. Como tal, era
que os russos realizaram às vésperas da con- basicamente do Caribe e da África ocidental,
ferência. Uma proposta de estabelecer uma mas também se tornou parte do movimento
data final para o domínio colonial em todo mais amplo pela emancipação colonial, no
o mundo em um prazo de dois a seis anos qual nacionalistas de todas as partes da Áfri-
foi ampliada durante os debates para uma ca poderiam conviver e buscar força uns dos
demanda por sua abolição imediata e total. outros. Em terceiro, houve quem (Nkrumah,
Depois de uma pausa, planos de uma por exemplo) entendesse que a liberdade po-
nova conferência levaram a uma reunião no lítica não representava o todo da liberdade,
Cairo em outubro de 1964, mais africana do que a dependência econômica persistiria de-
que asiática, e a um projeto de conferência pois da conquista da condição de Estado so-
em Argel, em 1965. Esse plano foi prejudi- berano, e que a África só poderia seguir em
cado pela queda de Ben Bella alguns dias frente com seus próprios meios se desenvol-
antes de uma reunião preliminar em junho vesse seus recursos continentais em comum.
e pelo crescente constrangimento entre os Esse terceiro aspecto do pan-africanismo
prováveis participantes diante da perspec- apontava logicamente para uma união polí-
tiva do conflito sino-soviético. Os chineses tica ou, pelo menos, para uma federação, e,
desejavam excluir a URSS e assumir a li- portanto, estava em conflito com a criação
derança dos desfavorecidos, mas em uma de novos Estados soberanos comprometidos
segunda reunião preliminar em outubro, o com a preservação de sua integridade, bem
convite à URSS foi aprovado e os chineses como de sua independência.
ameaçaram ficar de fora. Nessas circuns- Entre 1900 e 1945, foram realizadas seis
tâncias, a maioria considerou melhor não conferências pan-africanas. A primeira de-
realizar conferência alguma. O movimento las e as quatro que se seguiram nos anos de
parecia estar perdendo força, mas ganhou 1920 foram predominantemente caribenhas
novo ânimo durante o ano de 1967, com e norte-americanas, mas a última foi domi-
visitas de Tito a países asiáticos e africanos nada por líderes africanos e pela própria
e, em 1969, uma conferência em Belgrado África. Todas elas foram reuniões de perso-
lhe deu novo ímpeto. Em Havana, 10 anos nalidades. Com o início da independência,
depois, 92 membros plenos participaram. vieram as reuniões dos partidos e governos
Enquanto os membros originais eram não africanos. Os primeiros criaram a Organi-
POLÍTICA MUNDIAL | 761

zação do Povo de toda a África, que, nas Em 1960, quando a segunda conferên-
conferências em Acra, em 1958; em Tunis, cia de países africanos independentes se
em 1960; e no Cairo, em 1961, discutiram reuniu em Addis Abeba, seu número tinha
esquemas para a unidade da África ou uma quase dobrado e sua unidade estava por ser
comunidade africana com base na ideia de testada pelas pressões especiais do Congo,
que a cooperação entre governos não bas- bem como por disputas de fronteira herda-
tava. Mas a terceira reunião foi a última. À das. Estavam representados 15 Estados. Ha-
medida que o número de Estados indepen- via disputas de fronteira ativas entre Etiópia
dentes crescia, o sistema de Estados se esta- e Somália, Gana, Togo, Guiné e Camarões.
beleceu. Nkrumah continuou a soar o gon- A primeira dessas levou a conflitos, mas as
go por um governo de união até sua queda, outras não. Mais grave para a perspectiva
em 1966, mas o tema, embora fosse um item da unidade africana foi uma competição
padrão nas conferências da Organização de entre Gana e Nigéria na qual a primeira de-
Unidade Africana durante alguns anos, ia fendia passos imediatos em direção à uni-
perdendo apoio, tanto por ser considerado dade e a segunda argumentava em favor de
pouco prático quanto por se tornar cada vez uma aproximação lenta de algum tipo de
mais identificado com uma minoria radical federação sem contornos mais rígidos. Essa
de esquerda. disputa foi temperada com alguma amargu-
Na data da primeira reunião dos paí- ra porque os nigerianos se ressentiam por
ses africanos independentes, realizada em Nkrumah dar como certa sua liderança,
Acra, em 1958, havia nove países indepen- e não acreditavam em suas metas, ao pas-
dentes no continente. Um deles, a África do so que ele temia que a Nigéria pretendesse
Sul, declinou do convite para ir a Acra. Os jogar a influência de seu imenso tamanho
outros eram a Etiópia, a Libéria, o Egito, o para o lado do conservadorismo versus o
Marrocos, a Tunísia, Gana e Guiné. Eles es- socialismo e do nacionalismo nigeriano ver-
tavam preocupados principalmente com o sus o pan-africanismo. No Congo, os países
anticolonialismo, com as lutas raciais e na- africanos independentes tentaram, tanto na
cionalistas na África do Sul e na Argélia, e ONU quanto em uma conferência em Le-
com a dificuldade de se obter algum tipo de opoldville, em agosto de 1960, apresentar
unidade africana ao mesmo tempo em que uma frente unida e cumprir um papel cons-
respeitavam a independência e a integridade trutivo pacificador, mas não tiveram êxito.
dos países do continente. Essa conferência A partir desse momento, esses países
foi seguida, em 1959, pela Declaração de começaram a formar grupos separados, que
Conacri, onde Gana e Guiné formaram uma mais tarde eles voltaram a reunir ao fundar a
união que foi vista como o ponto de parti- Organização de Unidade Africana. O maior
da de uma união africana mais ampla. Esse desses foi o grupo de Brazzaville, que con-
passo foi uma resposta não premeditada sistia em todas as ex-colônias francesas com
ao ostracismo da Guiné pela França, uma exceção da Guiné, além da Mauritânia (cuja
demonstração prática dos princípios pan- reivindicação de independência, sem per-
-africanos de Nkrumah e uma injeção de tencer ao Marrocos, era aceita pelo grupo).
oxigênio para a Guiné. Ele foi seguido, no O grupo de Brazzaville começou como uma
mesmo ano, pela Declaração de Saniquellie reunião ad hoc em Abidjan, em outubro de
que, basicamente por insistência liberiana, 1960, quando o principal tópico de discussão
que enfatizava a independência e a integri- era a Argélia, mas em Brazzaville, em dezem-
dade dos países existentes. bro, e em outras reuniões no ano de 1961, em
762 | PETER CALVOCORESSI

Dakar, Yaoundé e Tananarive, evoluiu para inaceitável ou impraticável, poderia se ten-


uma associação permanente, discutiu for- tar uniões de menor porte. A união Gana-
mas de perpetuar a cooperação e os serviços -Guiné, com ou sem o Mali, revelou pouca
comuns que existiram no período colonial, consequência prática, mas foi uma demons-
estabeleceu uma organização para a coope- tração política. No noroeste, o Marrocos, a
ração econômica e examinou a possibilidade Tunísia e a Argélia defendiam uma federa-
de instituições e sistemas de defesa conjun- ção em uma reunião em Tânger, em 1958.
tos. Esse grupo não era pan-africano nem re- Na África Oriental e Central, falava-se em
gional, e sim uma expressão das necessidades uma federação entre Quênia, Uganda, Tan-
comuns e de uma perspectiva comum. ganica, Zanzibar. Malaui, Zâmbia e Rodésia
Um segundo grupo assumiu a forma de – com possíveis extensões em algum futuro
uma conferência em Casablanca, em 1961, pouco visível a Ruanda, Burundi, Moçam-
e era constituído por seis países africanos bique e até mesmo África do Sul. O Movi-
independentes, mais os revolucionários mento Pan-Africano de Liberdade da África
argelinos e o Ceilão. Os seis países eram Oriental e Central (Pan-African Freedom
Marrocos, Egito e Líbia (que pouco tempo Movement of East and Central Africa, Paf-
depois se transferiu para o grupo de Brazza- meca) surgiu em 1958, foi ampliado quatro
ville) e Gana, Guiné e Mali (que tinha aderi- anos depois com o acréscimo de um ‘s’ (de
do à união Gana-Guiné no ano anterior). O sul), como penúltima letra e foi dissolvido
grupo de Casablanca se opunha à indepen- em 1963; essas eram associações para auto-
dência da Mauritânia e era pró-lumumba ajuda na luta pela libertação.
no Congo, embora em sua segunda confe- A conexão francesa estava na base de
rência em maio, no Cairo, Nkrumah tenha uma série de organizações entre países: o
conseguido se opor a propostas de retirada Conselho da Entente (Costa do Marfim, Ní-
de tropas da força da ONU e transferi-las ger, Alto Volta, Togo e Daomé; ver o Capítu-
ao herdeiro político de Lumumba, Antoine lo 22); a Associação do Rio Senegal (Sene-
Gizenga. Esse grupo também estabeleceu gal, Mali, Guiné, Mauritânia; Capítulo 22); a
comitês políticos, econômicos e culturais União Alfandegária da África Ocidental e a
permanentes, um comando supremo e um União Alfandegária da África Central. Mais
quartel-general em Bamako, no Mali. importante foi a União Africana e Malgaxe
Naquele mesmo ano, 20 países se reu- de Cooperação Econômica (Uamce), fun-
niram em uma conferência em Monróvia, dada em 1965 por 13 ex-territórios belgas
incluindo todo o grupo de Brazzaville, a e franceses e convertida na Organização
Líbia e uma maioria de antigos territórios Comum Africana e Malgaxe (OCAM), cuja
britânicos. O grupo de Monróvia, assim, Carta, assinada em Tananarive, em 1966,
subsumiu o grupo de Brazzaville e, devido declarava-a aberta a todos os países da Áfri-
ao destaque da Nigéria, adquiriu um tom ca – desde que todos os membros existentes
especificamente anti-Gana e anti-Nkrumah. aceitassem cada novo candidato. A OCAM
O movimento pela unidade africana parecia criou uma série de agências úteis que, por
ter sido bloqueado por problemas do mo- vezes, eram mais eficazes do que as da OUA,
mento (o Congo e, em menor grau, a Mau- mas seus membros estavam divididos poli-
ritânia) e por personalidades. Não obstante, ticamente. Nos anos de 1960, ela era vista
a ideia permanecia viva. Mesmo se a visão como uma arma de Houphouët-Boigny, da
de Nkrumah de uma união que se esten- Costa do Marfim contra Nkrumah, e em
desse a todas as partes do continente fosse apoio a Tshombe; na guerra civil nigeria-
POLÍTICA MUNDIAL | 763

na, na qual tentou atuar como mediadora, damento por uma geração ou mais e que
(em vão), Costa do Marfim e Gabão reco- ganharam força nos 20 anos posteriores
nheceram Biafra, enquanto o restante era à Segunda Guerra Mundial. Os africanos
antisseparatista; alguns membros tinham deixaram de estar isolados uns dos outros
relações diplomáticas com a China, outros e dos assuntos mundiais. Sua emancipação
com Taiwan. tinha causas variadas: o liberalismo essen-
Quando o período colonial chegou ao cial (reforçado pelo desgaste) das principais
fim, a herança comum francesa passou a ser potências coloniais, o crescimento do mo-
um vínculo mais frágil. Havia vários ausen- vimento pelos direitos humanos, os ataques
tes nos oito congressos realizados em Lomé, norte-americanos e russos ao colonialismo,
em 1972, e o Zaire, achando que não esta- o exemplo de Gandhi, o desenvolvimento de
vam recebendo o suficiente por sua partici- estradas e rotas aéreas internacionais. En-
pação, renunciou à organização. quanto esse processo acontecia, uma nova
Embora tivesse demonstrado a dificul- classe de africanos, o político, o advogado, o
dade de preservar a unidade entre Estados intelectual, o évolué, estava tomando o lugar
africanos independentes, o Congo também do chefe tribal (desde que este não entras-
tinha demonstrado as vantagens de fazê-lo se para a nova classe) e, ao mesmo tempo,
e, em uma conferência em Lagos, em 1962, rejeitando os modelos preparados para seu
produziu uma proposta de Carta para uma país pelos franceses e pelos britânicos. Os
organização dos países africanos. Em outra franceses tinham pressuposto que suas colô-
conferência em Addis Abeba, em 1963, a nias evoluiriam para se tornar partes valio-
Organização de Unidade Africana nasceu sas da França, mas mal tinham notado que
com 32 membros iniciais. A OUA não era sua doutrina não funcionava nem em ter-
uma organização de unidade coletiva, como mos de governo, paternalista e branco, nem
previsto no Artigo 51 da ONU, e sim uma em termos da sociedade, onde os baixos sa-
organização para a promoção da unidade e lários e até mesmo o trabalho forçado eram
colaboração africanas e da erradicação do tolerados há muito tempo, e os poucos be-
colonialismo. Consistia em uma assembleia neficiados não se mostraram aptos a se tor-
anual de chefes de Estado, um conselho de nar líderes em sua sociedade, e sim a serem
ministros e um secretariado. Uma comissão expulsos dela. Os britânicos, que tinham se
de mediação, conciliação e arbitragem foi baseado originalmente no paternalismo e
projetada, mas não se concretizou, embora nos chefes, entenderam as limitações desse
essas funções tenham sido exercidas nas dis- modelo, mas planejaram substituí-lo por
putas de fronteira entre Marrocos e Argélia, um sistema parlamentarista britânico ina-
Somália e Etiópia, Somália e Quênia, Gana e plicável, que seria administrado por uma
Alto Volta (atual Burkina Faso). No último elite. Consequentemente, os novos Estados
caso, que surgiu da construção, por Gana, descobriram que tinham de inovar em teo-
de uma escola em território reivindicado ria, bem como na prática, ainda que muitos
pelo Alto Volta, Gana cedeu à reivindicação de seus primeiros líderes, com formação
em uma reunião do Conselho de Ministros ocidental e membros de uma elite relativa-
da OUA. Nos outros casos, a organização mente afluente, insistissem originalmente
forneceu mediadores e comissões de inqué- em instituições democráticas ocidentais
rito que ajudaram a suavizar as disputas. como sendo as melhores disponíveis e tives-
A fundação dessa organização sinte- sem expectativas de que elas funcionassem
tizou dois processos que estavam em an- sem modificações essenciais.
764 | PETER CALVOCORESSI

Eles tinham de encontrar administra- Indonésia, na companhia de Egito e Gana,


dores, servidores públicos, economistas, tentaram servir de intermediários para uma
professores, médicos, contabilistas e líderes reconciliação sino-indiana, mas seus esfor-
sindicais e, ao mesmo tempo, construir ins- ços tiveram pouco efeito e não foram bem
tituições e desenvolver convenções que re- recebidos em Nova Delhi nem em Pequim.
conciliariam as tradições africanas com sua
sede de modernidade e lhes possibilitariam
aproveitar os frutos da eficiência, da liber- Pobreza
dade e da justiça. Eles olhavam para o mun-
do exterior com uma mistura de admiração Mesmo assim, continuava existindo um vín-
e desconfiança, prontos para fazer o melhor culo poderoso – a pobreza e a descoberta de
daquilo que se poderia aprender, mas con- que a independência política e a soberania
vencidos de que, por mais que assimilassem, não acabavam com a dependência econô-
desenvolveriam uma forma africana distinta mica. No mesmo ano da invasão chinesa da
de fazer as coisas. Essa comunidade de obje- Índia e a meio-caminho da crise do Congo,
tivos deu aos novos países da África pontos que ameaçava dividir a opinião africana,
de contato entre si, mas a OUA era uma as- realizou-se, em Genebra, a primeira Confe-
sociação de Estados soberanos em um con- rência da ONU sobre Comércio e Desenvol-
tinente que, na onda da descolonização, es- vimento (Unctad). Não era um evento afro-
tava se fragmentando mais do que no tempo -asiático, mas algo maior. Era um ponto de
do domínio estrangeiro. junção entre os afro-asiáticos, de um lado,
A criação da OUA representava não e um grupo de outros Estados, do outro; a
apenas a negação das ideias federais, mas maioria latino-americana, que não apenas
também uma ênfase em questões especifi- era pobre em comparação com o mundo
camente africanas. A Carta da OUA e sua industrial desenvolvido, mas também se via
conferência de fundação enfatizavam o ca- obrigada a viver em um sistema econômico
ráter sacrossanto das fronteiras existentes concebido pelos ricos.
e o papel da nova organização na solução O sistema comercial elaborado em Bret-
pacífica das disputas entre países da África. ton Woods pressupunha uma comunidade
Em certa medida, afastava-se do conceito de de interesses entre todas as nações que rea-
solidariedade afro-asiática. Cada continen- lizavam comércio e também partia da ideia
te estava mais e mais preocupado com seus de que tarifas e quotas eram as principais
próprios assuntos; algumas de suas preo- barreiras ao comércio entre países, mas ne-
cupações comuns desapareceram quando nhum desses pressupostos se aplicava aos
a luta anticolonial entrou para a história. países economicamente mais fracos. Embo-
Mesmo dentro de cada continente, a solida- ra precisassem entrar na economia interna-
riedade entrou em crise. Na Ásia, o ataque cional, eles também tinham necessidades de
da China à Índia destruiu o que sobrou dos proteção; a liberdade funcionava contra eles.
Panch Shila, enquanto a falta de preparação Além disso, seus principais problemas
da Índia levou-a a uma aproximação com não eram tarifas nem quotas, mas a insta-
as potências gigantes, das quais, como lí- bilidade dos preços internacionais para seus
der dos não alinhados, o país tentou man- produtos e a dificuldade de entrar nos mer-
ter distância. A Índia perdeu algum grau de cados estrangeiros para vendê-los. Em sua
seu distanciamento. Depois da invasão chi- maioria, eles eram não apenas muito pobres
nesa de 1962, Ceilão, Birmânia, Camboja e – com uma renda per capita anual de um
POLÍTICA MUNDIAL | 765

décimo da média dos países da Otan, mes- matérias-primas para as necessidades de


mo incluídas a Grécia e a Turquia –, mas seus proprietários; porque a ajuda dificulta-
também despreparados para a concorrência va a tarefa essencial de diversificar a econo-
econômica internacional. Muitos tinham mia pós-colonial e iniciar a industrialização
economias sem elasticidade, baseadas em para possibilitar que o novo país criasse ca-
um único produto agrícola. Seus produtos pital. Por todas essas razões, os países mais
eram primários, cuja demanda (exceto no fracos rapidamente concluíram que a ajuda
caso do petróleo) aumentava menos do que não era substituto para o que eles realmente
a renda mundial. Seus clientes estavam fa- queriam, ou seja, uma mudança das regras
zendo produtos sintéticos ou substitutos que governam a economia internacional
e, principalmente no caso da agricultura, e, particularmente, preços garantidos para
eram suscetíveis a lobbies domésticos prote- seus produtos e facilidade de acesso aos mer-
cionistas, ansiosos por fechar o mercado às cados mais ricos do mundo, onde esses pro-
importações. Embora as guerras da Coreia dutos deveriam necessariamente ser vendi-
e do Vietnã tenham gerado saltos nos pre- dos. A ONU, que reservou fundos especiais
ços das commodities, dos quais vários des- para desenvolver países do Terceiro Mundo
ses países poderiam se beneficiar, eles só o (Special United Nations Fund for Economic
fizeram temporariamente. Outro paliativo Development, SUNFED) pela primeira vez,
era a ajuda; ou seja, crédito, dinheiro, bens em 1960, pediu que os países mais ricos con-
ou especialização fornecidos de graça ou tribuíssem com 0,7% de seu PIB para ajudar
transmitidos por preços abaixo do mercado. aos pobres a crescer a uma taxa de 5% ao
Benefícios consideráveis foram transferidos ano, e convocou uma conferência especial,
dessa forma e os doadores, somando os sa- planejada em 1962 e realizada em Genebra,
crifícios anuais, congratulavam-se por sua em 1964. Esta conferência deu origem a uma
generosidade. instituição permanente cuja principal moti-
Quem recebia, contudo, tinha outra opi- vação era promover preços mais altos e mais
nião. Esses países chegaram à conclusão de estáveis para as mercadorias. Em 1964, os
que a ajuda financeira era a resposta equi- países mais pobres da Ásia, África e América
vocada a seus problemas. Além de ser muito Latina estabeleceram o grupo dos 77 (G77),
pouca e da conclusão de que grande parte que escolheu Raul Prebisch, da Argentina,
era dada por razões políticas na Guerra Fria, como seu diretor e transformou o cenário
essa ajuda estava condenada por uma série internacional ao exigir que as relações eco-
de razões: porque o fardo do pagamento dos nômicas entre os países recebessem tanta
juros e das dívidas se tornou um peso con- atenção quanto suas relações políticas. O
siderável na receita das exportações; porque grupo dos 77 dava ênfase ao caráter injus-
a ajuda frequentemente estava condiciona- to de uma ordem econômica dominada por
da, de forma que o beneficiário, em vez de compradores e consumidores de matérias-
usá-la para comprar o que quisesse onde o -primas e pela volatilidade dos preços mun-
preço fosse mais baixo, era obrigado a acei- diais, e defendeu preferências comerciais (ao
tar esquemas que não estavam dentro de sua contrário das regras do GATT, de tratamen-
lista de prioridades ou comprar produtos do to igual para os que fossem economicamente
doador em vez de comprá-los mais barato fortes ou fracos), transferências de tecnolo-
em outro lugar; porque a ajuda perpetuava gia a preços baixos e empréstimos baratos.
um padrão criado na época colonial, onde Embora tenha mudado a forma como
as colônias estavam restritas à produção de as pessoas pensavam nas questões interna-
766 | PETER CALVOCORESSI

cionais, o grupo dos 77 teve muito menos 18 antigas colônias francesas aproveitaram
sucesso na modificação da forma como elas essas disposições e, em 1969, três ex-territó-
se comportavam. Ele se dividiu entre os rios britânicos – Quênia, Uganda e Tanzânia
chamados moderados e radicais, e se divi- – receberam os mesmos privilégios por um
diu mais ainda quando o aumento dos pre- ano (ou seja, até a entrada em vigor de uma
ços do petróleo nos anos de 1970 serviram Convenção de Yaoundé revisada, em 1971).
aos membros do grupo que o produziam, A Nigéria também negociou um acordo
mas empobreceram os que o importavam. com a Comunidade. Embora desconfiasse,
O surgimento da OPEP (Organização dos a princípio, que esses acordos eram formas
Países Exportadores de Petróleo) como de neocolonialismo, a Nigéria não podia
grupo distinto ilustrou essa ruptura. A or- deixar que seus vizinhos fizessem comércio
ganização mantinha uma postura geral de em melhores termos com a Comunidade, à
Terceiro Mundo ao mesmo tempo em que qual despachava dois terços de suas exporta-
gravitava em torno da ordem econômica ções. Em 1975, uma nova convenção de cin-
ocidental como operador, e não como re- co anos foi assinada em Lomé, entre a CEE
belde. Quando, em 1974, a ONU proclamou e 46 países da África do Caribe, e do Pacífi-
a necessidade de uma Nova Ordem Econô- co (ACP). Ela previa redução de tarifas não
mica Internacional, a declaração evidenciou recíprocas, criava um fundo de ajuda de 1,6
o número de votos que o Terceiro Mundo bilhões, um sistema para estabilizar preços
tinha na Assembleia Geral, mas a sequência de exportações, e ainda prometia aos produ-
mostrou a limitada eficácia dos votos na- tores de açúcar da comunidade acesso à CEE
cionais em questões econômicas. Com seu para toda a sua produção a preços garanti-
poder econômico avassalador, o Ocidente dos pelo acordo da Commonwealth sobre o
conseguiu neutralizar as reclamações e as açucar (Commonwealth Sugar Agreement).
campanhas do Terceiro Mundo e manter a Segundo Lomé II (1979), a CE aceitava re-
assistência econômica em níveis de caridade ceber exportações dos países da CAP até o
a serem definidos pelo próprio Ocidente. valor de 15 bilhões de dólares por ano e for-
A Comunidade Europeia reconheceu necer ajuda anual, que aumentaria a partir
esses problemas com intenção benevolente, de uma base de 859 milhões, em sua maio-
mas comedida. Quando o Tratado de Roma ria destinada a estradas, educação, hospitais,
estava sendo negociado, a França insistiu na água e eletricidade.
criação de um status de associado, tendo em Lomé III e IV se seguiram em interva-
mente seus territórios africanos, todos ainda los quinquenais, mas em 1990, a ajuda que
colônias. A Parte IV do tratado dava poderes fluía das Convenções, embora útil, equiva-
à Comunidade para conceder a países não lia a não mais de metade da soma dada por
europeus reduções de tarifas e extensões de membros da Comunidade separadamente e
quota, e permitir que eles impusessem tarifas bilateralmente. Os receptores estavam inco-
próprias para proteger indústrias iniciantes modados com a dependência concomitan-
(desde que essas tarifas não fizessem discri- te e também com os custos e formalidades
minação entre membros da Comunidade). burocráticas de operar as convenções e, em
A Comunidade estabeleceu um Fundo de 1995, quando Lomé V foi concluída depois
Desenvolvimento, que desembolsou 581 mi- de negociações postergadas, os beneficiá-
lhões de dólares nos primeiros cinco anos rios eram 70. As Convenções pouco fizeram
e 730 milhões no quinquênio seguinte. Em para resolver as desigualdades entre os paí-
1964, pela primeira Convenção de Yaoundé, ses ou dentro deles, ou para estimular a de-
POLÍTICA MUNDIAL | 767

mocracia, ou transformar o dinheiro em um o conceito de um Terceiro Mundo estava


substituo moderno dos navios de guerra nas obsoleto. Tinha surgido um novo grupo de
relações entre países fortes e fracos. Lomé V países cuja saúde os distinguia em muito
foi obscurecida pelas dívidas externas cada dos pobres do mundo e cuja solidariedade
vez mais pesadas dos países que haviam re- possibilitava que cumprissem um papel for-
cebido empréstimos e a redução na capaci- te nos assuntos internacionais. Era o Quarto
dade da UE de atender a suas expectativas, Mundo da OPEP, cujos membros deviam
na medida em que seus próprios membros sua riqueza ao petróleo e sua força política
faziam uso dos fundos disponíveis (ver, e econômica ao fato de que, embora muito
também, SADC). diferentes em extensão geográfica e popula-
Enquanto o dinheiro e outros benefí- ção, eram poucos e unidos o suficiente para
cios fluíam aos países mais pobres de uma subordinar suas diferenças à ação comum.
série de fontes, o custo dos empréstimos Nos anos de 1970, eles aumentaram tanto
aumentava e o serviço da dívida se tornava o preço do petróleo que fizeram com que
uma carga importante sobre os orçamentos seus clientes, ricos e pobres, tremessem, e
nacionais. Os países devedores tentavam puderam fazer isso porque o produto tinha
resgatar as dívidas rolando os pagamentos sido subvalorizado em relação à demanda e
dos juros e do principal. Na UNCTAD IV, porque sua posse – e, portanto, o poder de
em Nairobi, em 1976, o Terceiro Mundo estabelecer preços em um mercado de ven-
apresentou um plano amplo para a renego- dedores – tinha passado de companhias oci-
ciação das dívidas, ajuda técnica, promoção dentais para governos produtores. Os países
das indústrias e diversificação das econo- da OPEP eram peculiares porque, em um
mias baseadas em monoculturas. Os países mundo acostumado a considerar todos os
mais ricos – principalmente as ex-potências países em desenvolvimento como pobres,
coloniais – mutilaram em muito o plano ao eles eram países ricos em desenvolvimento,
escutar que não eram tanto credores comer- mas eram ricos de uma maneira especial,
ciais, e sim devedores morais. Em grande em função da venda de um recurso finito e
parte em vão, eles apontaram o fato de que não por meio do processo infinitamente re-
a expansão do mercado mundial nos anos petível da indústria e da agricultura.
de 1950 e de 1960 tinha sido interrompida Eles previam uma duração fixa para
e revertida. Os efeitos da recessão mundial seus anos de afluência. As motivações para
nas atitudes e capacidades dos ricos ficaram forçar a subida do preço de sua mercadoria
ainda mais em evidência na quinta confe- eram econômicas (cunhar dinheiro para o
rência da UNCTAD, em Manila, em 1979. desenvolvimento, afluência e ostentação),
A pobreza desesperada, em algumas áreas, estratégicas (acumular armamentos) e po-
a fome no Terceiro Mundo, a perspectiva de líticas (fazer pressão sobre os clientes con-
uma população mundial duas vezes maior tra Israel, pois a maioria dos 13 membros
até o final do século, com cidades sob cerco da OPEP era árabe). Esses aumentos de
e guerras deflagradas por matérias-primas, preços eram mais perturbadores ainda por
a dívida externa do Terceiro Mundo em 300 coincidir com outros fatores econômicos
bilhões e a ajuda ocidental em declínio en- incômodos: uma redução no valor do dólar
quanto o seu protecionismo aumentava – (já sob pressão por despesas excessivas no
todos esses elementos produziram uma sen- exterior, culminando na Guerra do Vietnã),
sação de desespero que a Conferência não o colapso do sistema de Bretton Woods e a
encontrou maneira de aliviar. Nessa data, inflação internacional.
768 | PETER CALVOCORESSI

Canadá 3,1

Estados Unidos
da América
(7,6)

OCEANO
AT L Â N T I C O
NORTE
México (3,4)

Venezuela (3,1)

Colômbia (0,5)

Equador (0,5)

OCEANO PACÍFICO Brasil (1,6)

Argentina (0,7)
OCEANO
AT L Â N T I C O
SUL

Legenda:
membro da OPEP
Números entre parênteses representam a
produção de petróleo em 2007, em
milhões de barris por dia.

Figura 30.1 Os maiores produtores de petróleo do mundo (Fonte: CIA World Factbook 2007).
POLÍTICA MUNDIAL | 769

OCEANO
ÁRTICO

Noruega
(3.2)

Rússia (9.4)
UK (2.1)

Arzeibajão (0.5) Kazaquistão (1.3)

China (3.6)
Kuwait (2.4)
Iraque (2.1)
Omãn (0.7)
Irã
(4)
Algéria Líbia
(1.4) (1.7) Egito
Arábia Índia
(0.7) Saudita (0.8)
(9.5)

Emirados
Nigéria (2.5) Árabes Malásia
(2.5) (0.8)
Qatar Indonésia (1.1)
(0.8)

OCEANO ÍNDICO

Angola
(1.6)
Austrália (0.5)

0 1500 3000 milhas

0 2000 4000 km
770 | PETER CALVOCORESSI

Muitos membros da OPEP ganhavam não foram atingidas por membro algum da
mais dinheiro do que sabiam utilizar em organização, com exceção de Noruega, Sué-
seus países relativamente subdesenvolvidos cia, Dinamarca e Holanda). Por outro lado,
e subpovoados. Ao investir seus imensos o total da OPEP foi atingido, em parte, des-
superávits (mais de 100 bilhões de dólares viando contribuições de seus membros ao
por ano no final da década de 1970) em Banco Mundial (sob argumentos políticos)
um mundo industrializado instável, eles se e uma grande parte disso era dada aos países
encontravam adquirindo propriedade que, árabes mais pobres no Oriente Médio e no
em parte como resultado de suas próprias norte da África.
ações, estava sendo continuamente desva- Do ponto de vista do Terceiro Mundo,
lorizada, enquanto seus aumentos de preços a generosidade da OPEP tinha suas limita-
estavam espremendo seus clientes até estes ções. Em termos de proporção do PIB, a aju-
precisarem reduzir as compras. Mais além, da da organização era generosa, mas seu PIB
a grande transferência de capital dos países era muito menor do que o da OCDE (cerca
que poderiam utilizá-lo produtivamente a de 16 vezes menor), de forma que o volu-
países que não poderiam – do mundo in- me de ajuda que esta dava continuava muito
dustrial aos membros da OPEP – imobili- maior do que o da primeira. Mais além, o
zava os recursos, causando encolhimento na programa de ajuda da OPEP não passava de
economia mundial. mais um paliativo, e a esmola, na escala que
O Terceiro Mundo foi atingido du- fosse, não substituía a reforma de um siste-
plamente. Não podia mais pagar por uma ma econômico mundial fundamentalmente
mercadoria essencial nem esperar a assis- desequilibrado que estava se contraindo.
tência financeira que vinha recebendo dos Doadores e beneficiários – OPEP, CEE
governos e dos bancos privados dos países ou OCDE por um lado, e a maioria da Unc-
industrializados. Os países em desenvolvi- tad, por outro – assumiram uma contenda,
mento importadores de petróleo contraíram um ajuste de interesses contraditórios e des-
dívidas externas em um total de 300 bilhões tinos divergentes. Os teóricos têm falado
de dólares; o déficit combinado do balanço por décadas sobre a interdependência e os
de pagamentos estava chegando aos 100 bi- interesses mútuos dos ricos e dos pobres,
lhões por ano e aumentando em 25 bilhões sem serem muito escutados, mas, em 1980,
a cada ano, só em função do petróleo. Nes- um grupo extraoficial de personalidades pú-
se ritmo, não apenas eles corriam o risco de blicas, presidido por Willy Brandt, produziu
bancarrota, mas também seu credores. Suas um relatório que tentava colocar o problema
exportações estavam em queda em função em outros termos e convencer seus leitores
do arrocho sobre a produção e porque seus de que o conflito Norte-Sul entre ricos e po-
principais mercados (os países desenvolvi- bres era tão perigoso para o mundo como
dos) também estavam sendo arrochados. um todo quanto o conflito Ocidente-Orien-
Os países da OPEP aceitaram alguma res- te entre os campos armados das superpo-
ponsabilidade por aliviar esses fardos, e o tências. Considerando-se as proporções ca-
fizeram com a prática estabelecida de dar tastróficas das armas nucleares, esse era um
ajuda aos pobres. No final dos anos de 1970, argumento difícil de sustentar. Era de co-
a ajuda fluía em um ritmo entre 1 e 3% do nhecimento público que milhões de pobres
PIB e três membros da OPEP chegavam a estavam morrendo por causa do extremo
10%. Essas taxas eram melhores do que as desequilíbrio econômico do mundo (cerca
metas da OCDE, de 0,7% (que, na prática, de 800 milhões estavam vivendo abaixo da
POLÍTICA MUNDIAL | 771

mais dura linha de pobreza), mas não era de executiva para tomar decisões, decretar
evidente que isso constituía um perigo, além ações ou aplicar taxações. O Relatório Bran-
de uma desgraça. O Relatório Brandt se dis- dt requeria que um mundo politicamente
punha a assustar, constranger e argumentar fragmentado enfrentasse problemas econô-
que os interesses comuns de ricos e pobres micos universais, para os quais ele não dis-
eram mais potentes do que aquilo que os punha das instituições necessárias. Era um
dividia, abandonando a postura essencial- exercício de persuasão, sem a sustentação da
mente conflituosa da Unctad, não falando autoridade ou do poder.
pelos pobres (contra os ricos), e sim por Mesmo assim, o problema persistia em
todo o mundo, partindo da premissa de que termos muito semelhantes aos da análise
todos estavam no mesmo barco. feita no Relatório Brandt, e cada melhoria
O relatório estabelecia um programa na economia do mundo atraía os pobres a
abrangente de reformas: que os plutocra- posições mais desesperadas. Sendo assim,
tas da OPEP emprestassem seus superávits um breve surto de crescimento no mundo
aos pobres, que esses e outros fundos fos- rico no início dos anos de 1970 estimulou,
sem usados para dar fim à fome no Tercei- como o tinha feito a Guerra da Coreia, a de-
ro Mundo e desenvolver a agricultura e a manda por produtos primários, mas quan-
indústria, que ajudasse o Terceiro Mundo, do essa demanda refluiu com o surto, os
resgatado da estagnação, que comprasse a produtores desses bens viram que tinham
produção manufatureira do mundo indus- sido seduzidos para colocar mais ovos em
trializado, que deixassem os ricos expan- cestas furadas.
direm seus negócios no Terceiro Mundo Os aumentos do preço do petróleo nos
(a fonte de grande parte de seus lucros em anos de 1970, que agravaram o fim do sur-
épocas coloniais) e assim, encontrassem to, forçaram os pobres a tomar emprésti-
o dinheiro para pagar a OPEP pelo petró- mos, não para investir, mas simplesmente
leo. No centro dessas propostas, estava uma para não afundar. Os ricos emprestavam
transferência massiva de recursos aos países dinheiro de mão aberta na medida em que
mais pobres por parte dos novos e antigos os bancos, cheios de dinheiro dos produto-
ricos, da ordem de 50 bilhões de dólares por res de petróleo e incentivados a emprestar, e
ano em 1985 (a preços de 1980) – um au- assim estimular o setor capitalista privado,
mento da ajuda oficial de 8 bilhões por ano, procuravam tomadores de empréstimos a
de forma que essa ajuda seria equivalente a quem pudessem emprestar a juros mais al-
0,7% do PIB dos países contribuintes, em tos do que estavam pagando a seus deposi-
1985, e de 1% até o final do século. Havia tantes. Enquanto esse padrão se manteve, os
dois principais obstáculos à aceitação dessa bancos ricos e outras instituições financei-
receita estatisticamente modesta. Como sus- ras ficavam mais ricos ainda no papel, mas
tentava que ajudar os pobres compensaria nos anos de 1980, as dívidas dos pobres para
os ricos, ela parecia afrontar o bom senso. com os ricos fica tão nitidamente impagável
Em segundo lugar, pressupunha algo como que alguns estadistas disseram isso aberta-
um governo mundial, do qual não havia o mente: o presidente Nyerere, literalmente, e
mais remoto sinal, já que era praticamente o presidente Garcia, do Peru, ao limitar uni-
inconcebível que um programa dessa natu- lateralmente o pagamento da dívida peruana
reza pudesse ser iniciado e implementado a uma porcentagem da renda nacional. Essa
por uma conferência de representantes de rolagem de dívidas se tornou um pretexto,
países soberanos que careciam da autorida- escondendo o fato de que elas eram impagá-
772 | PETER CALVOCORESSI

veis a ponto de o risco de insolvência amea- todo, apesar de receber 50 bilhões de dólares
çar os credores, assim como os devedores. A (líquidos) por ano do Banco Mundial, esta-
insolvência – principalmente dos países que va acumulando 30 bilhões em novas dívidas
estavam a meio caminho entre a pobreza e por ano, com o total passando dos 1,3 tri-
a riqueza, muito endividados e apostando lhões. As economias cresciam 1% e as po-
que seriam capazes de financiar suas dívidas pulações, 2%.
a partir das receitas de petróleo em função Em 1985, o secretário do tesouro dos
de seus preços – demandou novas medidas. Estados Unidos, James Baker, propôs que
Em 1982, o México deixou de pagar os ju- os bancos credores adiantassem mais 20 bi-
ros. Essa inadimplência ameaçou causar um lhões de dólares e que as instituições inter-
desastre para muitos bancos importantes. nacionais fizessem novos empréstimos se-
O FMI assumiu a dianteira, coordenando melhantes – ou seja, emprestassem dinheiro
uma operação de socorro com fundos for- para possibilitar que os devedores pagassem
necidos pelos bancos ameaçados, e passou a os juros de empréstimos antigos. Essa ideia
negociar com dúzias de outros países endi- foi aprofundada por seu sucessor, Nicholas
vidados, canalizando novas verbas a partir Brady, que formulou um esquema em que
de bancos comerciais, em troca da adoção os bancos credores poderiam escolher entre
de reformas econômicas rigorosas. Sendo três formas de aliviar o devedor: trocando
assim, o FMI controlou uma crise. Além de títulos existentes por novos a 65% de seu
emprestar dinheiro próprio, extraiu cinco valor de face, resgatáveis depois de 30 anos
ou seis vezes mais dinheiro de bancos. Mas e pagando a taxa de juros original; trocan-
os devedores, que descobriram que países do os títulos existentes por novos títulos de
forçados a implorar não têm escolha, foram 30 anos com valor de face inalterado, mas
obrigados a impor programas econômicos com os juros reduzidos e fixados em 6,25%
domésticos que, ao elevar preços e restrin- durante 30 anos; e fazendo novos emprésti-
gir serviços sociais, tinham consequências mos, pagáveis em parcelas anuais ao longo
pesadas sobre seus cidadãos mais pobres e de três anos.
seu poder de compra, em vez de representar Um protótipo de acordo segundo o
um alívio duradouro. Durante a década de plano Brady foi assinado com o México em
1980, a dívida africana (excluindo-se a Áfri- 1990. Essa medida, juntamente com outras
ca do Sul e uma faixa ao norte) aumentou semelhantes na América Latina, foi concebi-
em mais de 7 bilhões por ano e passou a 200 da principalmente para resgatar bancos em
bilhões; em alguns anos, os pagamentos ao países ricos que tinham dívidas em países
FMI excederam as receitas. Um plano para pobres, mas o problema do endividamento
converter a dívida em títulos de longo pra- internacional era mais amplo, tanto geo-
zo foi aprovado pelos credores, que estavam graficamente quanto no leque de devedores
desesperados para um dia receber de volta que incluía, além dos bancos, governos e
seu dinheiro, e preferiam adiar o pagamento instituições internacionais. As medidas da
em vez de apagar as dívidas de seus balan- década de 1980 fizeram mais para resgatar
cetes. A dívida latino-americana era duas os credores do que os devedores, e muitos
vezes maior do que a africana, com Brasil e dos países mais pobres do mundo continua-
México devendo, cada um (em números re- ram a remeter aos ricos, na forma de juros,
dondos), 100 bilhões de dólares, e a Argenti- mais do que recebiam em empréstimos. Em
na, 70 bilhões. O Terceiro Mundo como um 1996, reconheceu-se uma nova categoria
POLÍTICA MUNDIAL | 773

de “Países Pobres Altamente Endividados”, que eram politicamente invisíveis há um sé-


cujas dívidas eram reconhecidas, mas não culo. Por meio da presença diária de seus
eram recuperáveis. No entanto, as condi- representantes na sede da ONU em Nova
ções que os definiam eram rigorosas demais York e da participação deles no encontro
para permitir um alívio radical, e eles con- anual da Assembleia Geral, elas descobrem
tinuaram incapazes não apenas de pagar as como funciona o mundo e como, em maior
dívidas, mas também de melhorar a infra- ou menor grau, pode-se fazer com que ele
estrutura econômica, a educação ou outros funcione em seu benefício. Isso pode levar a
serviços sociais. No final do século, os Es- negociatas de votos e outras práticas pouco
tados Unidos e o Canadá deram o exemplo recomendáveis, mas essa busca de interes-
de cancelar as dívidas entre seus governos e ses particulares faz parte da vida em termos
os de países mais empobrecidos e, em 1999, internacionais, nacionais e no mundo dos
a Grã-Bretanha declarou a intenção de can- negócios, e é aceitável pagar o preço daqui-
celar (em etapas) a totalidade da dívida de lo que corresponde a uma democratização
todos os 41 países mais endividados do da política mundial – não a democracia em
mundo para com ela, em troca de garantias termos de contar cabeças individuais, mas
de que o dinheiro economizado seria usado de associações corporativas, e um lembrete
apenas para reduzir a pobreza e melhorar de que ela é, na famosa expressão, a forma
serviços sociais relacionados. menos pior de governo.
Costuma-se dizer que a Liga das Nações Esse aspecto da ONU foi desenvolvido
foi um fracasso, e muitos diriam o mesmo por algo que provavelmente não estava pre-
da ONU. A Liga não foi capaz de impedir visto por seus fundadores: o surgimento e
os ataques do Japão à Manchúria e à China, a proliferação de ONGs (organizações não
nem a conquista da Etiópia pela Itália, e a governamentais), que se agrupam em torno
ONU não conseguiu impedir as guerras no dela, têm direitos de participação em seus
Vietnã, nas Falklands (Malvinas) e no Ira- fóruns, descobrem e divulgam informações
que, incontáveis atrocidades em várias par- que, caso contrário, poderiam permanecer
tes do mundo, mas as acusações são muito ocultas e, assim, acrescentam ao debate pú-
superficiais. Em primeiro lugar, nenhuma blico vozes que até então não eram levadas
dessas organizações pode agir ou deixar em conta. Algumas dessas organizações têm
de agir nesse tipo de questão a menos que uma história venerável (a Sociedade Anti-
isso seja determinado por seus membros. -Escravagista, por exemplo), mas a maioria
Os membros são os culpados, caso exis- é nova e faz tanto quanto qualquer outro
tam culpados. Em segundo lugar, a Liga e componente nas questões mundiais para
– muito mais – a ONU, fizeram coisas va- afetar, não apenas o conteúdo dessas ques-
liosas, muitas vezes de forma rotineira. Mas tões, mas também a forma como se lida com
a contabilidade de prós e contras não deve elas. Atualmente, elas são muito numero-
ser avaliada pelo que se fez ou deixou de fa- sas, e, muitas vezes, sensíveis demais, para
zer. A ONU mudou o mundo por sua pró- serem ignoradas. A ONU é a cobertura de
pria existência. Em um mundo com quase que elas dispõem, e é a partir dela que essas
200 países independentes, a maioria com organizações fazem com que se dê atenção
poder econômico e militar modesto ou des- a questões até então ignoradas ou confusas,
prezível, a organização incluiu na política insistem em sua importância e, assim, cum-
mundial um número incontável de pessoas prem um papel positivo.
774 | PETER CALVOCORESSI

Notas nadenses resistiam à demonização simplista


da Guerra Fria. Alguns líderes cogitavam o
A. Canadá não alinhamento e questionavam a utilida-
de de haver soldados canadenses na Europa:
O Canadá, o segundo ou terceiro maior país em um determinado momento, o governo
do mundo, tem cumprido um papel benig- reduziu unilateralmente pela metade o seu
no e, principalmente através de sua parti- número (depois de observar a retirada to-
cipação em orgãos internacionais como a tal das forças francesas dos comandos da
Otan e o G7, destacado nas questões inter- OTAN). A condução da Guerra do Vietnã
nacionais. Lutou em duas guerras mundiais, pelos Estados Unidos foi amplamente con-
não por si, mas por outros. Estava isolado denada e os canadenses se sentiram imedia-
de forma desigual em termos geográfi- tamente atingidos quando os norte-ameri-
cos e políticos, com, para todos os efeitos, canos desconsideraram – por exemplo, na
apenas um vizinho e sem qualquer disputa crise dos mísseis de Cuba – a necessidade de
externa séria. Tinha recursos consideráveis informar a seus aliados continentais o que
e uma população relativamente pequena. estava acontecendo.
Depois da Grã-Bretanha, era o principal O Canadá foi um forte apoiador das
membro da Comunidade Britânica e, na disposições ineficazes contidas na Carta da
Commonwealth multirracial do pós-guerra, ONU para uma força internacional e um
tornou-se o membro antigo (branco) mais comitê de Estados-Maiores militares, e foi a
atento às necessidades e suscetibilidades principal voz a insistir em que a OTAN se
dos novos. Ao vínculo histórico, político e comprometesse, pelo Artigo 2 do Tratado do
sentimental do Canadá com a Inglaterra se Atlântico Norte, com propósitos econômi-
justapôs seu vínculo econômico, estratégico cos, bem como militares. Mais efetivamente,
e geográfico com os Estados Unidos. A mu- o país trabalhou para mitigar as arestas cria-
dança em importância da Inglaterra para os das pelo ataque britânico ao Egito, em 1956,
Estados Unidos foi acelerada pela Segunda e as tensões causadas pelo Apartheid na
Guerra Mundial e pela Guerra Fria, e reco- África do Sul (quando estas se mostraram
nhecida pela Declaração de Ogdensburg so- insolúveis, o Canadá se alinhou com aqueles
bre a responsabilidade conjunta de Canadá membros que avaliaram que a Commonwe-
e Estados Unidos pela segurança da Améri- alth estaria melhor sem a África do Sul).
ca do Norte, pelos compromissos mais am- Se, como se supunha, o presidente
plos acarretados pela condição de membro William H. Taft tivesse cunhado, em 1911,
da Otan, pela participação no Sistema de a expressão “relacionamento especial” para
Alerta Precoce (Early Warning System) para descrever as relações entre Canadá e Esta-
neutralizar ataques surpresa de mísseis sovi- dos Unidos, ele não estaria muito equivoca-
éticos à América do Norte e pela criação, em do, principalmente em termos econômicos.
1958, do Comando de Defesa do Espaço Aé- Os vínculos econômicos cresceram no de-
reo da América do Norte (North American correr do século à medida que a economia
Aerospace Defense Command, NORAD). canadense se expandia de maneiras antigas e
Ao enviar tropas à Guerra de Coreia, o Ca- novas: em empreendimentos relacionados a
nadá se associou à visão de que a questão grãos, madeira e minerais (principalmente o
fundamental nos assuntos mundiais era a níquel) e, além disso, na indústria química e
luta contra a URSS e o comunismo interna- eletrônica, pesquisa e extração de petróleo, e
cional. Mas o fez com reservas. Muitos ca- exploração de depósitos de rádio que forta-
POLÍTICA MUNDIAL | 775

leceram um programa nuclear iniciado du- país, prejudicou as empresas canadenses e


rante a guerra. Essas atividades aconteciam enraiveceu seus políticos. Esse choque foi
em uma escala tal que o capital canadense seguido rapidamente por aumentos bruscos
não era suficiente e era complementado com no preço do petróleo importado, causados
dinheiro dos Estados Unidos, a ponto de o por uma guerra no Oriente Médio, na qual
controle de metade da indústria, mineração o Canadá não tomou parte, mas os Estados
e de carvão combustível do Canadá passar Unidos, tomou, ao prometer rearmar Israel
às mãos dos Estados Unidos. Para estes, o depois de seus reveses iniciais. As províncias
Canadá era um vizinho com vasto espaço do leste do Canadá, sendo importadoras de
e recursos cujos limites não eram conhe- petróleo, foram atingidas fortemente, e em-
cidos, estavam inexplorados, e poderiam bora tenham se beneficiado do aumento dos
substituir os seus em termos de alimentos preços, as províncias produtoras do oeste se
e matérias-primas, que estavam ameaçando meteram em disputas em relação ao trans-
se tornar inadequados por exaustão natural porte do petróleo do Alasca aos Estados
ou aumento populacional. Os Estados Uni- Unidos por mar ou por oleodutos que pas-
dos poderiam concentrar com mais facili- savam pelo Canadá.
dade seus esforços na indústria se tivessem Nesse segmento dos assuntos econômi-
garantia de suprimentos de produtos primá- cos, as considerações nacionalistas tendiam,
rios dos canadenses. Para estes, por outro em ambos os lados, a prevalecer sobre o valor
lado, o fluxo de capital dos Estados Unidos e a virtude potenciais do internacionalismo.
era bem e mal recebido ao mesmo tempo. A política canadense, nas primeiras dé-
Economicamente, não só era bem recebido, cadas do pós-guerra, foi dominada por dois
como essencial, mas também era uma fonte líderes liberais. Lester Pearson, como minis-
de ressentimento e apreensão para aqueles tros de assuntos exteriores e depois como
canadenses que reclamavam de uma perda primeiro-ministro por 20 anos (1948-1968)
de controle sobre seus próprios bens e até e Pierre Trudeau como primeiro-ministro
mesmo farejavam uma perda de identida- por 16, com um curto intervalo (1968-
de nacional. Esse desequilíbrio começou a 1984). Ambos eram fortes defensores de um
ser reduzido nos anos de 1970 e de 1980, papel internacional a ser cumprido pelo Ca-
quando o Canadá se tornou o quarto maior nadá, em vez de um papel regional na Amé-
investidor nos Estados Unidos – depois do rica; ambos foram notáveis e mais eficazes
Japão, da Grã-Bretanha e da Holanda. Cada pelo que disseram do que pelo que realiza-
um dos dois países era o maior parceiro co- ram: os recursos do Canadá eram modestos
mercial do outro, e os dois juntos constitu- em um contexto mundial, mas esses líderes
íam a maior parceira comercial bilateral do tornaram a voz do país significativa. Pear-
mundo. Um acordo de livre comércio, que son, que passou toda a vida na atividade pú-
entrou em vigor no início de 1989, instituía blica, conformava-se com mais facilidade ao
a eliminação de todas as tarifas e obstácu- consenso da Guerra Fria e com as priorida-
los ao comércio nos 10 anos seguintes. Não des de Washington na era de Truman, Eise-
obstante, essa mescla não acabou com todas nhower, Kennedy e Johnson. Trudeau, quase
as dificuldades. A dissociação repentina um recém-chegado aos altos cargos quando
realizada por Nixon do dólar dos Estados se tornou primeiro-ministro pela primeira
Unidos em relação a seu preço fixo em ouro, vez, deparou-se com presidentes de menor
em 1971, acompanhada por uma sobretaxa estatura e era, por natureza, mais cínico e
de 10% sobre os impostos de importação no desdenhoso. Ele havia viajado muito por
776 | PETER CALVOCORESSI

quatro continentes. Em 1970, pouco depois fona internacional, em sua maioria africana,
de suceder Pearson, reconheceu o governo e ao finalizar um discurso público em Mon-
comunista da China e abriu caminho para treal com o antigo e emotivo slogan “Vive le
que outros países fizessem o mesmo. A esta- Québec libre”, dramatizou as ruidosas diver-
bilidade de Trudeau no poder era menos se- gências domésticas do Canadá e forçou seus
gura do que a de Pearson e ele quase perdeu anfitriões afrontados a emitir uma réplica
a eleição de 1972, recuperou a maioria em de protesto. Ele voltou para casa sem visitar
1974, perdeu o cargo em 1979 e o recuperou Ottawa. Muita má vontade se gerou nos anos
em 1980, mas como escolha apenas das pro- seguintes sobre quem deveria ser convidado
víncias do leste – os liberais conquistaram a reuniões francófonas na África: a província
poucas cadeiras no oeste. Ele também tinha de Quebec ou o governo do Canadá.
uma posição desconfortável no maior dra- Em 1968 – o ano em que Trudeau se tor-
ma doméstico do Canadá, o status do Que- nou primeiro-ministro – um novo partido, o
bec, já que era um federalista determinado, Partido Quebequense (Parti Québecois, PQ),
além de ser, ele próprio, quebequense. foi formado para fazer campanha pelo Que-
O rápido aumento na prosperidade ca- bec independente. Mais extrema do que o
nadense apresentava um problema especial PQ, a Frente de Libertação do Quebec (Front
em Quebec, lugar da herança e da cultura de Libération de Québec, FLQ) defendia e
francesas no Canadá. Quatro quintos dos praticava a violência para conquistar a inde-
habitantes da província eram francófonos, na pendência que o PQ visava de forma pacífica.
maioria, conservadores rurais. Apesar de sua A FLQ consistia em um minúsculo punhado
quantidade, eles possuíam apenas um quinto de homens e mulheres que, invocando Che
de sua economia produtiva e sua renda mé- Guevara e Mao Tse-Tung, cometeu uma série
dia estava substancialmente abaixo da dos de assaltos a bancos e outros atos de violência
anglófonos. Entre 1944 e 1959, a província foi sem atrair nem amplo apoio nem muita aten-
dominada por Maurice Duplessis (primeiro- ção, até 1970. Nas eleições daquele ano, o PQ
-ministro também entre 1936 e 1939), que se teve um quarto dos votos, mas apenas sete
apresentava como quebequense ao mesmo cadeiras de 108: os vencedores foram os li-
tempo em que se associava, e nem sempre berais, sob a liderança de Robert Bourassa. A
abertamente, aos capitalistas anglófonos do FLQ recorreu à violência mais grave, seques-
Canadá e dos Estados Unidos, que estavam trando o encarregado de assuntos comerciais
contribuindo para a transformação econômi- britânico James Cross e o ministro do tra-
ca de Quebec. Ele foi sucedido no cargo pelo balho da província, Pierre Laporte, a quem
liberal Jean Lesage, que defendia a moder- seus membros estrangularam. O governo
nização de Quebec com uma política mais central aplicou a Lei de Medidas da Guerra
determinada a garantir benefícios para a e colocou a FLQ na ilegalidade, mas deu aos
maioria francófona, mas, em 1966, os liberais sequestradores uma saída segura para Cuba,
foram derrotados inesperadamente, perden- em troca da libertação de Cross depois de
do os votos da classe trabalhadora que tinha dois meses de cativeiro. As forças de seguran-
chegado à conclusão de que a modernização ça, cuja inteligência ineficaz permitiu à FLQ
estava beneficiando apenas a classe média. uma sobrevida surpreendentemente longa,
Uma visita de de Gaulle, em 1967, estimu- conseguiram extingui-la em 1972, e a causa
lou os separatistas. É pouco provável que ele dos separatistas se tornou limitada à rota não
quisesse desagregar o Canadá; o que fez foi violenta que, contudo, não os levou a parte
recrutar Quebec para a comunidade francó- alguma.
POLÍTICA MUNDIAL | 777

OCEANO
ÁRTICO
ALASCA
Anchorage

GR
OE
NL
ÂN
DI
A
CANADÁ

Vancouver Edmonton

Calgary
Seattle
Portland

Winnipeg
São Francisco
Salt Lake City EUA
Quebec
Montreal
Denver Omaha Toronto Ottawa
Los Angeles
Chicago
San Diego Detroit Boston
Cleveland
Kansas City
Saint Louis Nova York
Cincinnati
Pitisburgo
Baltimore
Dallas Birmngham
Atlanta Washington
Houston
Mobile
Monterrey OCEANO
Nova Orleans
Tampa AT L Â N T I C O
MÉXICO
Miami
Guadalajara
Cidade do México
Puebla

G U AT E M A L A

OCEANO
PA C Í F I C O

0 400 800 km

0 200 500 milhas

Figura 30.2 América do Norte.


778 | PETER CALVOCORESSI

O problema passou ao debate constitu- pbell, que levou seu partido a uma derrota
cional. Uma conferência, em 1971, entre o beirando o extermínio.
governo federal e as 10 províncias do Cana- Seu partido conquistou duas cadeiras
dá, produziu a Carta de Victoria, um com- e os liberais voltaram ao poder com Jean
promisso que foi rejeitado pelo Quebec, e, Chrétien como primeiro-ministro e os co-
em 1976, o PQ venceu as eleições na pro- nhecidos problemas das relações com os
víncia. Seu líder, René Lévesque, tornou- Estados Unidos (na forma da Nafta – ver o
-se primeiro-ministro provincial, visitou a Capítulo 28): equilibrar as contas públicas,
França e introduziu uma série de medidas, principalmente o financiamento de servi-
dando à língua francesa um status especial ços sociais generosos com uma base fiscal
(a federação como um todo foi declarada relativamente restrita; e, ainda, o Quebec
oficialmente bilíngue, por lei, em 1969), onde, todavia, o PQ venceu, em 1994, as
mas a causa separatista sofreu um revés eleições provinciais com uma margem tão
quando um referendo em Quebec propon- estreita do voto popular que sua promes-
do negociações pela “associação soberana” sa de realizar um referendo sobre a inde-
foi derrotado em 1980. pendência parecia precipitada, ainda mais
O nacionalismo de Quebec influenciou quando os inuits e outros povos indígenas
as posições federais quando o sucessor con- começaram a sugerir que o direito da pro-
servador de Trudeau, Brian Mulroney, tentou víncia se separar da federação implicava um
conquistar os eleitores liberais de Quebec, direito semelhante de eles se separarem da
em 1984, apoiando mudanças constitucio- província. Um referendo, em 1995, deu a
nais (a Emenda do Lago Meech) destinadas vitória aos federalistas por 1%, um resulta-
a aumentar a influência dos governos pro- do dúbio. As asperezas se inflamaram. Em
vinciais nas nomeações judiciais e senatoriais 1998, a secessão unilateral foi declarada in-
importantes e em questões de imigração e constitucional pela Suprema Corte e as elei-
finanças. A emenda não tinha popularida- ções provinciais em Quebec deram ao PQ a
de nas outras províncias, e não conseguiu o maioria das cadeiras, mas apenas o segundo
apoio necessário delas em 1990. Esse revés lugar no voto popular.
para os quebequenses produziu, pela primei- O último vínculo constitucional do
ra, vez, uma pesquisa de opinião que mostra- Canadá com a Grã-Bretanha, derivado da
va uma maioria na província a favor da inde- Lei britânica sobre a América do Norte
pendência soberana. A tentativa seguinte de de 1867, foi destruído em 1982, quando,
Mulroney de solucionar o problema dando por solicitação do Canadá, o Parlamento
para Quebec um status especial na federação, Britânico aprovou uma Carta de direitos
embora apoiada por todos os 10 primeiros- estabelecidos e, ao mesmo tempo, extin-
-ministros provinciais (o Acordo de Charlot- guiu os poderes que ainda tinha de legis-
tetown), foi rejeitada em plebiscitos em cinco lar para o país. Essa contenda vinha sendo
províncias, bem como em Quebec. Esses re- postergada anacronicamente por disputas
veses constitucionais, combinados com re- dentro do Canadá em relação à alocação,
cessão econômica, impostos mais altos e um entre o centro e as províncias, dos direitos
ar de inconsequência no centro, destruíram dos quais a Grã-Bretanha abriria mão; por
a imagem de Mulroney de tal forma que ele decisões judiciais contraditórias sobre se o
foi forçado a renunciar, e foi sucedido, em governo central poderia recorrer ao par-
1993, pela primeira mulher a ocupar o cargo lamento britânico sem o consentimento
de primeira-ministra do Canadá, Kim Cam- de todas as províncias (que Trudeau não
POLÍTICA MUNDIAL | 779

conseguiu em duas conferências constitu- ou por algum recurso explorável – a beleza


cionais) e pela determinação de Trudeau que atrai operadores turísticos ou o distan-
de garantir a aprovação na Grã-Bretanha ciamento que atrai trapaceiros. Em termos
daquilo que equivalia a uma Carta Cana- práticos, eles poderiam ser comprados
dense de Direitos. Em Quebec, Lévesque por máfias estrangeiras mancomunadas
se opunha à aprovação desses direitos, com políticos locais, já que um pouco de
fosse pelo parlamento britânico, fosse pelo dinheiro é suficiente para comprar os pou-
canadense, e eles continuaram sem efeito cos votos necessários para vencer eleições.
na província, não ser que já estivessem, ou Contra Estados maiores, eles não têm ne-
que pudessem vir a ser, aprovados pelo le- nhuma defesa, como mostrou a invasão de
gislativo provincial. Granada pelos Estados Unidos em 1983.
Em 1949, a Terranova se tornou parte Na década de 1960, foram levantadas pro-
do Canadá depois de um referendo em que postas para a invenção de um novo status
uma estreita maioria escolheu a federação para territórios muito pequenos que esta-
com o Canadá em detrimento de um auto- vam por serem liberados do domínio co-
governo pobre. Mais importante, o Canadá lonial, configurando uma independência
estava se tornando um país dividido. Nas que eles não tinham recursos, humanos
eleições de 1997, os liberais mantiveram e materiais, para defender. Mas essas dis-
uma maioria parlamentar absoluta, mas cussões deram em nada, em grande parte
seus adversários mais próximos – o Bloco por medo de ofender os países nascentes.
Quebequense e o Partido Reformista – eram A associação com uma grande potência,
estritamente regionais. O segundo superou ou associações regionais, oferecia alguma
o primeiro no parlamento federal, mas não proteção ou esperança de melhoria. Várias
conseguiu atrair apoio significativo fora de ilhas, a maioria no pacífico, fizeram acor-
Columbia Britânica e Alberta. Os Conserva- dos de associação com os Estados Unidos
dores foram o quinto dos cinco partidos no ou com a França (como Territórios Ultra-
parlamento. marinos), outras se tornaram associadas
da Commonwealth. O Fórum do Pacífico
B. Países muito pequenos Sul, criado em 1971, incluía, em 1990, 11
Estados independentes e territórios não
No final do século XX, o mundo tinha mais independentes, mas autogovernados; es-
de 40 países independentes com uma po- tabeleceu ligações com outras associações
pulação abaixo de 2 milhões e outros 30 internacionais, como a ASEAN e a CEE;
territórios de dimensões semelhantes, geo- com as Agências Especializadas da ONU; e
graficamente diferentes, mas não totalmen- se combinava com países maiores na muito
te independentes. Praticamente todos os mais antiga (1947) Comissão do Pacífico
membros do segundo grupo eram ilhas ou Sul, que incluía Estados Unidos, Austrália,
grupos de ilhas, bem como os do primeiro Nova Zelândia, Grã-Bretanha e França. Por
grupo, que incluía nove países no Caribe e um tratado de 1985, 10 Estados-ilha do Pa-
oito na Oceania. cífico, junto com Austrália, Nova Zelândia
Os Estados e territórios autogoverna- e Papua Nova Guiné, proclamaram a Zona
dos diferiam muito em extensão, popula- Livre de Energia Nuclear do Pacífico Sul;
ção e riqueza, mas, com poucas exceções, outros protocolos foram assinados pela
eram fracos para se defender contra pre- URSS e pela China, rejeitados pela França
dadores atraídos por seu valor estratégico e “não aceitos” pelos Estados Unidos e pela
780 | PETER CALVOCORESSI

Grã-Bretanha. O tratado impunha a proi- Fiji tinha um problema racial semelhan-


bição de fabricação, testagem e mobiliza- te. Sendo uma extensão de terra do tamanho
ção de armas nucleares na zona, conclama- do País de Gales, dividido em mais de 600
va as cinco principais potências nucleares ilhas que cobriam 160.000 m2 de água e uma
a não testar nem instalar armas nucleares população de 750 mil, tinha feito aborda-
nela, mas não impedia navios de guerra e gens sem êxito, no século XIX, à Alemanha
aviões de usar as águas ou o espaço aéreo e aos Estados Unidos, em busca de proteção,
internacional. antes de finalmente entregar-se à Grã-Bre-
Os principais Estados-ilha que con- tanha em 1874. Sob domínio britânico, os
quistaram a independência no Pacífico Sul indianos foram incentivados a migrar para
foram: Samoa Ocidental, independente em Fiji, onde se tornaram o esteio da indústria
1962, depois de domínio alemão e neoze- do açúcar e, quando veio a independência,
landês; Tonga ou as Ilhas Amigáveis, uma em 1970, a maioria da população. As tensões
monarquia do século XIX que ganhou entre as raças foram complementadas pelas
independência total em 1970 (e não assi- tensões entre as ilhas ocidentais e orientais e
nou o tratado de 1985); Fiji, independen- entre gerações. Nas eleições de 1987, o situ-
te em 1970 (ver abaixo); as ilhas Gilbert e acionista partido Fiji, que se baseava prin-
Ellice, que foram separadas em 1975 e se cipalmente no paternalismo, foi derrotado
tornaram independentes em 1979 e 1978, por uma coalizão liderada por Sir Timothy
como Kiribati e Tuvalu; as Ilhas Salomão, Bavadra, que montou um gabinete com uma
independentes em 1978, e o condomínio leve maioria indiana. Com uma parte con-
anglo-francês das Novas Hébridas, inde- siderável de seu pequeno exército afastada,
pendente em 1980 como Vanuatu, depois a serviço da ONU no Oriente Médio, o co-
de dissensão e lutas internas. Vanuatu levou ronel Sitiveni Rabuka, líder do movimento
os conceitos de Estado e nação aos limites: anti-indiano Tsakei, que defendia “Fiji para
continha 150 mil pessoas que falavam 100 os fijianos”, conseguiu dar um golpe com
línguas diferentes no que era uma entidade um punhado de homens que invadiram o
geográfica, mas não política nem cultural. parlamento e prenderam o novo primeiro-
Em Nova Caledônia, o terceiro maior for- -ministro. Fiji se tornou uma república e
necedor de níquel do mundo e Território saiu da Commonwealth. Bavadra apelou,
Ultramarino francês desde 1958, o confli- sem sucesso, ao governo e à coroa britâni-
to entre os nativos kanaks e os imigrantes cos, mas Rabuka tinha apoio clandestino da
brancos, que tinham se tornado maioria, CIA, que não via o neutralista Bavadra com
foi resolvido, pelo menos temporariamen- bons olhos (ele morreu em 1989). Rabuka
te, pelo acordo de Matignon, de 1988, que foi perdendo terreno aos poucos, particular-
estabelecia o domínio francês por um ano, mente nas ilhas orientais, e a emigração dos
a divisão do território em três regiões (duas indianos mostrou os riscos de assustá-los e
delas com maioria kanak), ajuda econômica fazer com que deixassem a indústria do açú-
considerável da França e um referendo so- car, que era o principal recurso econômico
bre a independência em 1998. de Fiji. Não obstante, as eleições de 1994 o
Por aceitar esses acordos, o líder kanak confirmaram no poder e três anos depois ele
Jean-Marie Tjibaou foi assassinado por seus buscou a readmissão na Commonwealth.
compatriotas mais combativos. Em 1998, Fiji era membro do Fórum do Pacífico Sul.
todos os partidos concordaram em adiar o O arquipélago de Bismarck, anexado pela
referendo por mais 15 anos. Alemanha, em 1874, e administrado pela
POLÍTICA MUNDIAL | 781

Austrália, inicialmente sob mandato da liga C. Polos


das nações e, depois de 1947, como o ter-
ritório da Nova Guiné sob tutela da ONU, O continente Antártico é rico em peixes e
tornou-se parte, em 1975, do novo Estado minerais, incluindo petróleo. A tecnologia
de Papua Nova Guiné. moderna lhe deu uma possível importân-
Mais ao norte, nas águas equatoriais, os cia militar e chamou a atenção aos prejuí-
grupos de ilhas Carolinas, Marshall e Ma- zos que podem ser causados ao ambiente
rianas, adquiridos pela Alemanha no século global. Sete Estados têm reivindicações
XIX, ocupados pelo Japão na Primeira Guer- territoriais que se sobrepõem. Incentiva-
ra Mundial e retidos sob mandato depois dos pela cooperação durante o Ano Inter-
dela, foram ocupados pelos Estados Unidos nacional Geofísico de 1957-1958, 12 países
na Segunda Guerra Mundial e depois reu- assinaram, em 1959, um Tratado Atlântico
nidos no território sob tutela das Ilhas do cujos objetivos eram a paz, a cooperação
Pacífico, de 1947 a 1986. As Ilhas Marshall, e a liberdade para a pesquisa científica. O
incluindo os atóis de Biquíni e Enewetok, Tratado criou uma organização permanen-
foram usadas para testes nucleares até 1958, te que se ampliou para 39 membros plenos
tornaram-se a República das Ilhas Marshall ou associados. As partes se comprometiam
com um tratado ou “compacto” de Livre As- a não buscar a expansão de seus direitos
sociação com os Estados Unidos (1982). As soberanos na região. Uma pioneira, ainda
Carolinas se tornaram os Estados Federados que modesta, Convenção sobre Recursos
da Micronésia com um tratado semelhante. Marinhos Vivos, foi concluída em 1980, e
O propósito desses “compactos” era permitir uma Convenção sobre Regulamentação de
aos Estados Unidos adquirirem direitos es- Atividades de Mineração (por 50 anos) foi
peciais depois do fim do período de tutela. formulada em 1988, mas esta gerou polê-
Esse dispositivo causou problemas no distri- mica. A Austrália e a França lideraram a
to mais a oeste da Micronésia – o arquipéla- oposição a ela do ponto de vista conser-
go de Pelau. Em 1979, os pelauanos votaram vacionista, contra norte-americanos, bri-
massiçamente pela proibição de armas nu- tânicos e outros que queriam apenas uma
cleares em suas ilhas. moratória (uma moratória voluntária esta-
Quando as tentativas de reverter essa va em vigor desde 1972), a ser seguida por
decisão (que incluíram tentativas de mudar atividades de mineração com aprovação
a Constituição) falharam, os Estados Unidos e supervisão internacional. A Convenção
propuseram um “compacto” onde um terço entrou em vigor em 1998, depois da rati-
do arquipélago de Pelau ficaria disponível a ficação de seus 26 signatários. Em 2007, a
eles para exercícios e experimentos militares. Grã-Bretanha reivindicou uma extensão
O compacto foi rejeitado repetidas vezes pe- considerável de sua parcela da Antártica,
los pelauanos, em campanhas que incluíram movida por sérias dúvidas sobre o supri-
suborno e assassinatos. Por fim, as Marianas mento de petróleo e gás e pela esperança
– original e pejorativamente chamadas por de que a evolução da tecnologia encontras-
Magellan de Ilhas dos Ladrões – compreen- se uma forma de extrair esses e outros mi-
diam Guam e as Marianas do Norte. Guam nerais que estavam debaixo do gelo e dos
foi tomada pelos Estados Unidos da Espanha mares excepcionalmente profundos.
em 1989, e continua parte deles. As Maria- O Ártico, oceano congelado em vez de
nas do Norte se tornaram, em 1986, uma co- terra firme, foi transformado pela mudança
munidade dentro dos Estados Unidos. climática. A Passagem Noroeste, procurada
782

CHINA M A R D A C H I N A O R I E N TA L
|

Ilhas do Havaí (EUA)


TA I WA N Honolulu
Havaí
H ON G
KO NG FILIPINAS Ilhas Marshall
Manila TERRITÓRIOS DAS ILHAS
DO PACÍFICO, SOB TUTELA O C E A N O PA C Í F I C O
DOS ESTADOS UNIDOS
M
M IC
EL Ilhas Carolina RO
AN NÉ
SI
PETER CALVOCORESSI

ÉS A
IA Kiribati

PAPUA-NOVA
GUINÉ Tuvalu Ilhas Fênix

Ilhas Salomão Ilhas Marquesas


A Samoa
R Ocidental
A FU
AR Ilhas Cook
DE Ilhas da Sociedade
R Vanuatu

M
MA

AR
DE
POLINÉSIA FRANCESA

CO
Fiji

RA
Nova

L
Tonga
Caledônia Ilhas
Pitcairn (GB)
AUSTRÁLIA

Brisbaine

Sidney

Melbourne Wellington

Tasmânia N O VA Z E L Â N D I A

Figura 30.3 O Pacífico Sul.


POLÍTICA MUNDIAL | 783

em vão durante séculos, tornou-se um curso mais amplos e uma participação nos lucros.
d’água navegável pelo menos durante algu- Anos de negociações geraram, em 1982, uma
ma parte do ano, e seu status legal, portanto, Convenção que, em 1994, tinha sido assina-
sujeito às leis do mar. O Canadá apresentou da pelo número de países (60) necessário
rapidamente uma reivindicação, na medida para que entrasse em vigor. A ratificação,
em que a natureza apresentou oportunida- contudo, foi recusada pelos Estados Unidos,
des para comércio e ganhos nunca vistos que eram de suma importância e cujo sena-
desde que os engenheiros humanos tinham do votou contra em 1999. Os principais itens
feito a mesma coisa no Suez e no Panamá. da Convenção eram: a extensão da soberania
para 12 milhas, sujeitas apenas ao direito de
D. A lei do mar passagem inocente para cargas; outros di-
reitos de soberania até 22 milhas para pes-
O mar entrou na política, na economia e ca e outras atividades econômicas sujeitas a
nas estratégias internacionais no século XX, liberdade de passagem para navios e aviões
em função das invenções técnicas. Além da dentro dessa zona e sobre ela; o reconheci-
invenção de armas militares com alcance mento de uma plataforma continental de,
maior do que o tradicional limite soberano pelo menos, 200 milhas a partir da margem
de três milhas, o século assistiu à chegada do e sujeita a direitos soberanos de exploração;
submarino, da capacidade de extrair petró- um direito da comunidade internacional de
leo e outros minerais do leito do oceano e da compartilhar as receitas derivadas da calota
sobrepesca, que estava destruindo os peixes. continental além das 200 milhas; a criação
As tentativas de criar uma autoridade in- de uma Autoridade Internacional sobre o
ternacional com regras de aceitação geral fo- Leito do Mar e um Tribunal Internacional
ram obstruídas por muitas coisas, incluindo para os Direitos Marítimos.
uma divisão entre Estados com e sem a tec- No início do século seguinte, uma nova
nologia e o dinheiro para explorar as rique- Convenção estava em discussão para es-
zas e oportunidades do mar. Os primeiros tabelecer uma extensão ainda mais ampla
queriam liberdade para fazer o que podiam (talvez a 250 milhas) da calota continental,
fazer, enquanto o restante queria controles para entrar em vigor em 2009.
784 | PETER CALVOCORESSI


Tristão da
Cunha (GB)
ÁFRICA DO SUL
I. Gough (AS)

Ilha Príncipe
Edward (AS)
Ilha Bouvet (NOR.)
Ilha Sandwich do Sul (GB)
6
NOR 0S
Georgia do UEG
Ilhas A
Falkland Sul (GB) Ilhas
(GB) O Crozet (FR.)
IC
ÂN

AS R
IN
IT

Ilhas Kerguelen (FR.)


BR

ARGENTINA AL
A BR NZ C GB R
P R EU Halley Ilha Heard (Aus.)
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IA Ilhas Maquarie (Aus.)

40 Campbell (NZ)
S
0ºW
15

NOVA ZELÂNDIA
AUSTRÁLIA
180º

Reivindicações setoriais Bases na Antártida


A Argentina IN Índia
Reivindicação setorial argentina AUS Austrália J Japão
GB Grã-Bretanha NZ Nova Zelândia
Reivindicação setorial chilena C Chile P Polônia
BR Brasil R Rússia
FR França AS África do Sul
AL Alemanha EUA Estados Unidos

Figura 30.4 Antártica (Fonte: An Atlas of World Affairs, Andrew Boyd).


POLÍTICA MUNDIAL | 785

Leituras relacionadas: Parte VIII Price, Don K.: The Scientific Estate (1963)
Reynolds, David: Summits – Six Meetings that
Babbitt, Philip: The Shield of Achilles – War, Peace Shaped the Twentieth Century (2008)
and the Course of History (2002) Taylor, Telford: Nuremberg and Vietnam – An
Best, Geoffrey: War and Law since 1945 (1994) American Tragedy (1970)
Milward, A. S.: War, Economics and Society 1939- Wight, Martin: Power Politics, 2nd edition, revi-
1943 (1977) sed Brian Porter (1986)
Pearton, Maurice: The Knowledgeable State – Di-
plomacy, War and Technology since 1830 (1982)
ANEXO
O Estado soberano

O sistema político internacional é, em gran- Papa seriam parceiros iguais – a doutrina


de parte, o sistema dos Estados europeus das duas espadas. Esse conceito serviu por
ampliado. Nesse sistema, todos os Estados cerca de mil anos (digamos, de 330 a 1250
têm soberania, ou seja, todos têm, uns em d.C.). O mundo europeu ocidental já esta-
relação aos outros, o direito de fazer o que va subdividido, pois consistia na metade
bem entenderem, sujeitos apenas (a) a com- ocidental do antigo império, junto com as
promissos assumidos por tratados ou outra terras a leste do Reno, que nunca tinham
forma, dos quais eles próprios sejam parte, e sido parte dele, ou tinham sido apenas
(b) o direito internacional. Poucos Estados por pouco tempo. Quando, no quarto sé-
têm o poder de exercer sua soberania contra culo d.C., Roma (na pessoa do Imperador
os desejos de Estados mais poderosos. Não Constantino) uniu forças com a cristanda-
obstante, o Estado é a unidade básica no sis- de (em grande parte através do impacto de
tema político mundial. Em essência, é um Santo Agostinho), essa união continha as
construto europeu que, surpreendentemen- sementes da dissolução. O imperador que
te, foi endossado pelo restante do mundo. acabou sucedendo seus antecessores roma-
Para os gregos antigos, o mundo se di- nos morava ao norte dos Alpes e o Papa, ao
vidia em Cidades-Estado. Gregos e romanos sul. O imperador passou a ser chamado de
sabiam da existência de mundos além dos Sacro Imperador Romano, mas seu título
deles e até os exploravam, mas não tinham, em alemão não incluía a palavra romano,
nem precisavam de uma teoria para acomo- e sim o termo Nação Alemã: Heilges Rei-
dar um mundo global. ch der deutschen Nation. O que aconteceu
Quando o mundo romano se desfez em entre a coroação de Carlos Magno por um
pedaços, tanto a metade oriental quanto papa (800 d.C.) e a destruição da dinastia
a ocidental permaneceu, em teoria, sen- Hohenstauffen por outro (1250 a.C.) reve-
do uma unidade política. Cada uma de- lou-se uma ficção inútil cujo fracasso des-
las, contudo, teve de enfrentar uma nova truiu a noção de que a cristandade poderia
questão política sobre a relação, em seu constituir uma unidade política. (Hoje em
mundo, entre a autoridade secular e a es- dia, alguns muçulmanos afirmam que o
piritual (cristã). O Império Bizantino resol- Islã deveria ser o que alguns cristãos foram
veu esse problema dando ao imperador um incapazes de fazer com a cristandade.).
status que o situava acima do Patriarca de Desse desencantamento, surgiu o Esta-
Constantinopla. O Império do Ocidente, do secular, capitaneado pela França e pela
entretanto, adotou uma solução diferen- Inglaterra, cuja crescente identidade como
te: um duopólio no qual o imperador e o Estado era estimulada por sua distância do
POLÍTICA MUNDIAL | 787

núcleo do experimento ítalo-alemão das tentativas foram derrotadas, e Hitler foi,


duas espadas e por sua própria hostilidade é quase certo, a última, mas a questão não
mútua (notadamente na Guerra dos Cem estava encerrada, e sim transferida para um
Anos). A doutrina da soberania do Estado palco maior, onde os Estados apenas cedem
se desenvolveu para sustentar e justificar a relutantemente a autoridade às organizações
afirmação do Estado secular como compo- internacionais, particularmente globais.
nente primeiro em um sistema de múltiplos O Estado soberano moderno é, em um
Estados e lhe dar uma estrutura jurídica. aspecto, mais fraco do que seus ancestrais
Essa fase se tornou o viveiro para mui- ou, de qualquer forma, muito diferente. Ori-
tas reflexões e escritos (mas pouca ação prá- ginalmente, o soberano era uma realidade
tica) por parte de juristas e estadistas como visível e tangível – um monarca. Quando
Hugo Grócio e o Duque de Sully, passando Luis XIV disse “L’etat, c’est moi”, estava enun-
por filósofos como Immanuel Kant, até os ciando um truísmo. Mas o Estado moderno
progenitores da Liga das Nações e da ONU, é um conceito, às vezes, pouco mais do que
cujos principais empreendimentos foram e fictício; não se pode colocar um Estado em
continuam sendo: encontrar uma maneira um pedestal. Suas características definidoras
na qual um Estado e seus direitos possam – territorial, histórica, nacional – são mutá-
coexistir com orgãos internacionais e, assim, veis e discutíveis, mesmo quando aparente-
formular restrições aceitáveis aos direitos mente fundamentais. Sendo assim, gover-
dos Estados – particularmente nas guerras nar um Estado se tornou assustadoramente
e sua conduta nelas – e, mais recentemente, complexo. O Estado, além disso, perdeu seus
a definição e a aplicação dos direitos huma- sustentáculos morais. Platão acreditava que
nos e a regulação de interesses comerciais os estadistas tinham uma função moral, e as
e financeiros competitivos. Esses empreen- Igrejas medievais tinham crenças semelhan-
dimentos, estendendo-se além da própria tes, as quais, contudo, também traíam com
ONU e suas Agências Especiais e equivalen- frequência. Nenhum dos dois estabeleceu a
tes regionais, correspondem a uma busca de moralidade como ingrediente dominante do
um novo universalismo do tipo que a Idade governo de um Estado, deixando para o ateu
Média europeia foi incapaz de gerar, mas Thomas Hobbes a busca de uma nova base
sem as implicações autocráticas das palavras de argumentação para dar conta do mundo
imperador e papa. Os principais impulsos moderno. A moralidade continua a entrar
vieram dos defeitos e desastres do sistema nos debates sobre as questões internacionais,
de Estados e do fato novo e inescapável de mas fica mais visível na indignação retórica
que o planeta se tornou uma singularidade. do que na ação prática, não sendo um impe-
Esse é um ato de equilíbrio. Mas, como rativo, mas ao menos uma inquietação.
insistiu Maquiavel, no final da Idade Média, Nesse contexto, este livro pode concluir
o equilíbrio é a essência da política. No fi- com algumas reflexões experimentais sobre
nal da Segunda Guerra Mundial, o historia- um futuro nem tão distante, visto do pre-
dor alemão Ludwig Dehio escreveu sobre sente e do passado recente. A política mun-
as tentativas de um Estado europeu após o dial é uma sequência histórica, com uma
outro, de dominar a Europa.* Todas essas parte ainda não revelada e com sua direção
futura parcialmente suscetível à intervenção
humana. Portanto, alguma especulação ba-
* N. de R.T.: Gleichgewicht oder Hegemonie. Tradução ao in-
glês: The Precarious Balance, The Politics of Power in Europe seada no que ocorreu até aqui é um fecha-
1494-1945. mento adequado.
788 | PETER CALVOCORESSI

Sete questões fundamentais (a) nenhum – Hayek, Friedman, defensores


do livre mercado;
Um. A evolução de associações permanentes (b) beneficiário passivo do capitalismo vi-
de Estados em diferentes partes do mundo. goroso, mas de alto risco, que leva a de-
Dois. O Estado de Direito e um mundo glo- sastres – Schumpeter;
balizado, formado por Estados territoriais (c) Ator marginal, com função de corre-
soberanos. ção social, parceiras público-privada
Três. O conflito entre soberania doméstica – Keynes.
e o direito/obrigação de intervir em defesa
dos direitos humanos em qualquer lugar. Sete. Exceto pelo fato de estar 200 anos
Quatro. Democracia versus estabilidade. fora de seu tempo, Malthus tinha razão em
Cinco. Como impedir que a lacuna cres- afirmar que a população do mundo estava
cente entre ricos e pobres produzida na Eu- crescendo mais do que a capacidade de seus
ropa em função da Revolução Industrial se recursos vitais?
espalhe para o restante do mundo.
Seis. Se o mundo globalizado subordina o
Estado a forças/entidades econômicas, qual
será o papel do Estado?
9ª EDIÇÃO

POLÍTICA MUNDIAL
A PARTIR DE 1945
P E T E R C A LV O CO R E S S I

Publicado pela primeira vez em 1968, Política Mundial a partir


de 1945 é um clássico e esclarecedor estudo sobre a história da
política contemporânea.

Escrito por Peter Calvocoressi, uma figura de destaque mundial


no campo das relações internacionais, participante do Julga-
mento de Nuremberg e professor de Relações Internacionais na
Universidade de Sussex, Grã-Bretanha, este livro é essencial
para a formação de historiadores, cientistas políticos, sociólo-
gos, jornalistas e leitores em geral.

DESTAQUES: Aclamado pelo The Sunday Times pelo seu rigor


e pela riqueza magistral do seu conteúdo.

Apresenta um panorama geral e detalhado da


situação da política a partir da Segunda Guerra
Mundial.

Abordagem atualizada, incluindo desde


as perigosas incursões do terrorismo global;
a guerra no Iraque, no Afeganistão e no Sudão;
o surgimento da Índia e da China como grandes
potências; o considerável desenvolvimento
político da América Latina; a marcha da
globalização; a expansão da União Europeia
até a instabilidade do Oriente Médio
e a polêmica questão do abastecimento
de petróleo e energia.

www.grupoa.com.br

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