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ESTADO, REFORMAS E DESENVOLVIMENTO

O desenvolvimento como expansão de capacidades*

Amartya Sen

Professor de Economia e Filosofia da Universidade de Harvard

Em sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes1 Immanuel Kant sustentou a


necessidade de considerar os seres humanos como fins em si mesmos, e não como
meios para outros fins: "age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na sua
pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e
nunca simplesmente como meio". Esse princípio é importante em muitos contextos
— mesmo na análise da pobreza, do progresso e do planejamento. Os seres
humanos são os agentes, beneficiários e juízes do progresso, mas também são,
direta ou indiretamente, os meios primários de toda produção. Esse duplo papel
dos seres humanos dá origem à confusão entre fins e meios no planejamento e na
elaboração de políticas. De fato, essa confusão pode tomar — e frequentemente
toma — a forma de uma noção da produção e da prosperidade como a essência do
progresso, considerando-se as pessoas como os meios pelos quais tal progresso na
produção é obtido (ao invés de considerar a vida das pessoas como a finalidade
última e tratar a produção e a prosperidade como meios, tão somente, para atingi-
la).

Com efeito, a ampla prevalência do aumento da renda real e do crescimento


econômico como critérios do desenvolvimento exitoso pode ser, precisamente, um
aspecto do erro contra o qual Kant nos chamou a atenção. Esse problema é
particularmente importante na avaliação e no planejamento do desenvolvimento
econômico. O problema não está, é claro, no fato de a busca da prosperidade
econômica ser tipicamente considerada um objetivo central do planejamento e do
processo de formulação de políticas. Isso não é, por si só, irrazoável. O problema
refere-se ao nível no qual esse objetivo deve ser fixado. Trata-se de um objetivo
intermediário, cuja importância subordina-se ao que favorece em última instância a
vida humana? Ou se trata do objetivo último daquele exercício? É na aceitação,
usualmente implícita, dessa última proposição que a confusão entre fins e meios se
torna significativa e, mais que isso, flagrante.

O problema talvez carecesse de interesse prático se a prosperidade econômica se


relacionasse estreitamente — numa correspondência aproximada de um para um —
ao enriquecimento da vida das pessoas. Se tal fosse o caso, a busca da
prosperidade econômica como um fim em si, embora errada no plano dos
princípios, seria inseparável da busca de prosperidade como meio para o
enriquecimento da vida das pessoas. Mas aquela correspondência estreita não se
verifica. Países com altos PIBs per capita podem apresentar índices
espantosamente baixos de qualidade de vida, como mortalidade prematura para a
maioria da população, alta morbidade evitável, alta taxa de analfabetismo e assim
por diante.
Apenas para ilustrar um aspecto do problema, o quadro 1 apresenta o PIB per
capita de seis países e as respectivas esperanças de vida no momento do
nascimento.

Um país pode ser muito rico em termos econômicos convencionais (isto é, em


termos do valor das mercadorias produzidas per capita) e, mesmo assim, ser muito
pobre na qualidade de vida dos seus habitantes. A África do Sul, que dispõe de um
PIB per capita cinco ou seis vezes maior que os do Sri Lanka ou da China, tem uma
esperança de vida muito menor, e a mesma observação aplica-se, de maneiras
diversas, ao Brasil, México, Oman e a vários outros países não incluídos na tabela.

Há, portanto, duas questões diferentes aqui. Primeira: a prosperidade econômica é


apenas um dos meios para enriquecer a vida das pessoas. É uma confusão no plano
dos princípios atribuir a ela o estatuto de objetivo a alcançar. Segunda: mesmo
como um meio, o mero aumento da riqueza econômica pode ser ineficaz na
consecução de fins realmente valiosos. Para evitar que o planejamento do
desenvolvimento e o processo de formulação de políticas em geral sejam afetados
por custosas confusões de fins e meios, teremos de enfrentar a questão da
identificação dos fins, nos termos dos quais a eficácia dos meios possa ser
sistematicamente avaliada.

Este trabalho discute a natureza e as implicações dessa tarefa geral.

RAÍZES CONCEITUAIS

A linha de raciocínio desenvolvida aqui baseia-se na avaliação da mudança social


em termos do enriquecimento da vida humana dela resultante. A qualidade da vida
humana, contudo, é em si mesma uma questão muito complexa. O enfoque
utilizado aqui, às vezes denominado "enfoque da capacidade", concebe a vida
humana como um conjunto de "atividades" e de "modos de ser" que poderemos
denominar "efetivações" (functionings) — e relaciona o julgamento sobre a
qualidade da vida à avaliação da capacidade de funcionar ou de desempenhar
funções. Tentei, em outro trabalho, explorar esse enfoque em maior detalhe, tanto
conceitualmente como em termos de suas implicações empíricas 2. As raízes desse
enfoque estão em Adam Smith e Karl Marx, remontando mesmo a Aristóteles.

Referindo-se ao problema da "distribuição política", Aristóteles utilizou


extensivamente sua análise do "bem dos seres humanos", na qual esse bem é
ligado ao exame que faz das "funções do homem" e da "vida no sentido de
atividade"3. Certamente a teoria aristotélica é muito ambiciosa e envolve elementos
que ultrapassam essa questão particular (por exemplo: ela adota uma posição
específica com respeito à natureza humana e a ela associa uma noção de bem —
um bem objetivo). Mas o argumento no sentido de se conceber a qualidade da vida
em termos de atividades valorizadas e da capacidade de desempenhar essas
atividades tem relevância e aplicação muito mais amplas.
Entre os autores clássicos da economia política, tanto Adam Smith quanto Karl
Marx discutem explicitamente a importância da efetivação e a capacidade para
tanto como determinantes do bem-estar4. O enfoque de Marx relaciona-se
estreitamente à análise aristotélica (e ao que parece foi diretamente influenciado
por ela)5. Com efeito, uma parte importante do programa marxista de reformulação
dos fundamentos da economia política claramente diz respeito à concepção do
sucesso da vida humana em termos de cumprimento das atividades humanas
necessárias. Nos termos do próprio Marx: "em lugar da riqueza e da pobreza da
economia política, veremos surgir o rico ser humano e a rica necessidade humana.
O rico ser humano é simultaneamente o ser humano que necessita de uma
totalidade de atividades vitais — o ser humano em quem a auto realização existe
como necessidade interior"6.

MERCADORIAS E CAPACIDADE

Se se concebe a vida como um conjunto de "atividades e modos de ser" que são


valiosos, a avaliação da qualidade da vida toma a forma de uma avaliação dessas
efetivações e da capacidade de efetuá-las. Essa avaliação não pode ser feita
levando-se em conta apenas as mercadorias ou rendimentos que auxiliam no
desempenho daquelas atividades e na aquisição daquelas capacidades, como ocorre
na aferição da qualidade de vida baseada em mercadorias (envolvendo uma
confusão de meios e fins). "A vida dedicada a ganhar dinheiro", disse Aristóteles, "é
vivida sob compulsão, e a riqueza não é evidentemente o que buscamos, pois, a
riqueza é meramente útil na consecução de outros bens" 7. A tarefa consiste em
avaliar as várias efetivações na vida humana, superando o que, num contexto
diferente, embora relacionado, Marx denominou "fetichismo da mercadoria" 8. As
efetivações terão, elas próprias, de ser examinadas e a capacidade da pessoa de
realizá-las terá de ser apropriadamente avaliada.

No argumento aqui desenvolvido, os elementos constitutivos da vida são vistos


como combinações de várias diferentes efetivações. Isso equivale a conceber a
pessoa como ativa, por assim dizer, e não passiva (embora nem os vários estados
do ser e nem mesmo as atividades devam necessariamente ser "atléticas"). Pode-
se listar desde efetivações elementares como evitar a morbidade ou a mortalidade
precoce, alimentar-se adequadamente, realizar os movimentos usuais, etc., até
muitas efetivações complexas tais como desenvolver o autor espeito, tomar parte
da vida da comunidade e apresentar-se em público sem se envergonhar (essa
última efetivação foi discutida de maneira esclarecedora por Adam Smith 9 como
uma conquista valorizada em todas as sociedades, embora as mercadorias
necessárias para a sua consecução variassem de uma sociedade a outra). O que se
sustenta aqui é que as efetivações são constitutivas do ser de uma pessoa, e que
uma avaliação do bem-estar de uma pessoa tem de tomar a forma de uma
avaliação daqueles elementos constitutivos.

A noção básica nesse enfoque é a de efetivações, concebidas como elementos


constitutivos da vida. Uma efetivação é uma conquista de uma pessoa: é o que ela
consegue fazer ou ser e qualquer dessas efetivações reflete, por assim dizer, uma
parte do estado dessa pessoa. A capacidade de uma pessoa é uma noção derivada.
Ela reflete as várias combinações de efetivações (atividades e modos de ser) que
uma pessoa pode alcançar10. Isso envolve uma certa concepção da vida como uma
combinação de várias "atividades e modos de ser". A capacidade reflete a liberdade
pessoal de escolher entre vários modos de viver. A motivação subjacente — o foco
na liberdade — é bem apreendida no argumento marxista de que o que
necessitamos é "substituir o domínio das circunstâncias e do acaso sobre os
indivíduos pelo domínio dos indivíduos sobre o acaso e as circunstâncias"11.

CÁLCULO VERSUS PRIVAÇÃO

O enfoque da capacidade pode ser contrastado não somente com sistemas de


avaliação baseadas em mercadorias, mas também com avaliações baseadas num
critério de utilidade. A noção utilitarista de valor, que é invocado explícita ou
implicitamente na economia do bem-estar, percebe o valor, em última análise,
somente na utilidade individual que é definida em termos de uma condição mental
tal como o prazer, a felicidade, a satisfação dos desejos. Essa perspectiva subjetiva
tem sido extensivamente utilizada, mas pode ser enganosa, pois pode ser incapaz
de refletir a real privação de uma pessoa.

Uma pessoa indigente, levando uma vida muito pobre, poderia não estar mal em
termos de utilidade medida pelo seu estado mental, caso se verificasse que essa
pessoa aceita sua situação com silenciosa resignação. Em situações de privação por
longos períodos, as vítimas não persistem em queixas contínuas, com frequência
fazem grandes esforços para tirar prazer das mínimas coisas e reduzem seus
desejos pessoais a proporções muito modestas, "realistas". A privação da pessoa
pode não ser captada por escalas de prazer, auto realização, etc., mesmo que ela
não consiga alimentar-se adequadamente, vestir-se decentemente, ser
minimamente educada e assim por diante12.

Ademais de sua relevância no plano dos princípios, essa questão pode ter um
impacto imediato na prática das políticas públicas. A acomodação resignada à
privação continuada e à vulnerabilidade é frequentemente apresentada como
justificável com base na ausência de uma forte demanda pública e de um desejo
intensamente manifestado de modificar essa situação13.

AMBIGÜIDADES, PRECISÃO E RELEVÂNCIA

Há muitas ambiguidades no quadro conceituai do enfoque da capacidade. A


natureza da vida humana e o conteúdo da liberdade humana são conceitos
problemáticos. Não pretendo varrer essas dificuldades para debaixo do tapete. Na
medida em que há genuínas ambiguidades nos objetos fundamentais de valor, elas
se refletirão em ambiguidades correspondentes na caracterização da capacidade. A
necessidade disso relaciona-se a um ponto metodológico, que eu tentei defender
em outro trabalho: o de que se uma ideia básica apresenta uma ambiguidade
essencial, uma formulação precisa dessa ideia deve tentar captar essa ambiguidade
e não tentar desfazer-se dela14. Mesmo que a expressão precisa de uma
ambiguidade revele-se difícil, isso não pode justificar o esquecimento da natureza
complexa do conceito nem servir de argumento para se buscar em troca uma
exatidão espuriamente estreita. Na pesquisa e mensuração sociais, sem dúvida é
mais importante ser vagamente correto do que precisamente errado 15.

Convém notar também que há sempre um elemento de escolha real na descrição


das efetivações, uma vez que o formato das "atividades" e dos "modos de ser"
permite que se definam e incluam "conquistas" adicionais. Frequentemente as
mesmas atividades e modos de ser podem ser vistos de diferentes perspectivas,
com variadas ênfases. Da mesma forma, algumas efetivações são fáceis de
descrever, mas sem grande interesse no contexto relevante (por exemplo, usar um
certo sabão em pó na lavagem de roupas) 16. Não se pode escapar do problema da
avaliação quando se define uma classe de efetivações como importantes e outras
como não tão importantes. A avaliação não pode ser plenamente realizada sem que
se enfrentem explicitamente questões sobre quais sejam as conquistas e liberdades
valiosas e quais não o sejam. O foco escolhido tem de ter relação com as
preocupações e valores sociais subjacentes em termos dos quais algumas
efetivações e capacidades podem ser importantes e outras triviais e
negligenciáveis. A necessidade de selecionar e discriminar não é um estorvo nem
uma dificuldade peculiar para a conceituação da efetivação e capacidade17.

No contexto de alguns tipos de análise do bem-estar, por exemplo, ao tratar da


pobreza extrema em economias em desenvolvimento, é possível restringir-se, em
boa parte da análise, a um número relativamente pequeno de efetivações
centralmente importantes e das capacidades correspondentes, tais como a
capacidade de se alimentar e morar bem, a capacidade de não sofrer de morbidade
evitável e de morbidade prematura e assim por diante18. Em outros contextos, que
incluem problemas mais gerais de avaliação do desenvolvimento econômico e
social, a lista será bem mais longa e mais variada19. Tal especificação de
efetivações e capacidades de realização deve ser relacionada à sua motivação
básica, bem como levar em conta os valores sociais envolvidos.

QUALIDADE DE VIDA E NECESSIDADES

Há uma ampla literatura sobre o desenvolvimento econômico que trata da avaliação


da qualidade de vida, do atendimento das necessidades básicas e de temas
correlatos20. Essa literatura foi muito influente nos últimos anos ao chamar a
atenção para aspectos descurados do desenvolvimento econômico e social. É justo
dizer, no entanto, que tais escritos têm sido, típica e amplamente, ignorados na
teoria econômica do bem-estar, que tende a considerar aquelas contribuições como
sugestões ad hoc. Em parte, esse tratamento reflete a preocupação, por parte dos
teóricos do bem-estar, de que as propostas não se baseiem tão somente na
intuição, mas que sejam estruturadas e fundamentadas. Ele reflete também o
prestígio intelectual que enfoques tradicionais como a avaliação utilitarista gozam
na teoria do bem-estar, e que bloqueia a aceitação de enfoques alternativos mesmo
quando sejam atraentes. A incapacidade de avaliações baseadas na utilidade de
lidar com a privação persistente foi discutida anteriormente, mas na literatura da
economia do bem-estar o predomínio dessa tradição tem-se revelado muito
resistente à mudança.

A crítica dirigida à literatura sobre o desenvolvimento, segundo a qual ela trata de


situações pontuais, relaciona-se às diversas modalidades de argumento utilizadas
pela teoria do bem-estar por um lado, e pela teoria do desenvolvimento, por outro.
Do ponto de vista da estrutura normativa, essa última tende a ser imediata,
valendo-se de fortes intuições que parecem bastante óbvias. A teoria do bem-estar,
de sua parte, tende a tomar uma via mais indireta, com maior elaboração e
sustentação dos fundamentos das suas proposições. Para fazer a ponte entre elas,
temos de comparar e contrastar as características fundacionais da preocupação
com a qualidade de vida, com as necessidades básicas, etc. com os fundamentos
dos enfoques mais tradicionais próprios da economia do bem-estar e da filosofia
moral, entre os quais o utilitarismo. É precisamente nesse contexto que as
vantagens do enfoque da capacidade tornaram-se mais claras. A concepção da vida
humana, como combinação de várias efetivações e capacidades de realização, e a
análise da liberdade humana, como característica central da vida, proporcionam
uma via básica diversamente fundamentada para o exercício da avaliação. Essa
fundamentação contrasta com as bases de avaliação incorporadas aos fundamentos
mais tradicionais utilizados na economia do bem-estar21.

A literatura das "necessidades básicas" tem padecido um pouco das incertezas a


respeito de como se deve especificar essas necessidades. As formulações originais
frequentemente tomaram a forma de uma definição das necessidades básicas em
termos das necessidades de certas quantidades mínimas de mercadorias essenciais
como alimentos, roupas e moradias. Se a literatura utiliza esse tipo de formulação,
então ela permanece prisioneira da avaliação centrada em mercadorias, e pode, de
fato, ser acusada de adotar uma forma de "fetichismo da mercadoria". Os objetos
dotados de valor dificilmente podem ser reduzidos à disponibilidade de
mercadorias. Mesmo considerada sob um ponto de vista meramente instrumental,
a utilidade da perspectiva das mercadorias é severamente comprometida pela
variabilidade da conversão de mercadorias em capacidade. Por exemplo, os
requisitos de alimentação e nutrientes para a capacidade de bem alimentar-se varia
muito de pessoa a pessoa, dependendo de características de metabolismo,
tamanho do corpo, gênero, gravidez, idade, condições climáticas, parasitoses e
assim por diante22. A avaliação da posse de mercadorias ou de rendimentos (com
os quais se pode adquirir mercadorias) pode, no máximo, ser um substituto das
coisas que realmente importam; desafortunadamente, porém, na maioria dos casos
não é um substituto particularmente adequado23.

RAWLS, BENS PRIMÁRIOS E LIBERDADES

O foco nas mercadorias e nos meios de realização pessoal neste trabalho


contrastado ao enfoque da capacidade é também influente na moderna filosofia
moral. Na notável obra de John Rawls sobre a justiça — que pode ser considerada a
mais importante contribuição à filosofia moral nas últimas décadas — a atenção, no
que concerne às comparações interpessoais, recai nos "bens primários" à
disposição de cada pessoa. Sua teoria da justiça, e em particular o "princípio da
diferença", depende desse procedimento para comparações interpessoais. Em
parte, esse procedimento é baseado em mercadorias, pois a lista dos "bens
primários" inclui "rendimentos e riqueza", ademais das "liberdades básicas",
"poderes e prerrogativas de cargos e posições de responsabilidade", as "bases
sociais do autor espeito" e assim por diante24.

Na verdade, a lista completa dos "bens primários", segundo Rawls, refere-se a


meios e não a fins; ela diz respeito a coisas que ajudam a realizar o que queremos,
e não à realização enquanto tal ou a liberdade de realização. Alimentar-se não
consta da lista, mas dispor de rendimentos para comprar alimentos consta. Da
mesma forma, a lista inclui as bases sociais do autor espeito, mas não o autor
espeito enquanto tal.

O fato de que diferentes pessoas têm objetivos diferentes e que as pessoas devem
ser livres para persegui-los não deve ser esquecido, segundo Rawls, no processo de
avaliação. Esse cuidado é realmente importante, e o enfoque da capacidade
também valoriza a liberdade nesse sentido. Na verdade, pode-se argumentar que o
enfoque da capacidade descreve melhor as liberdades realmente desfrutadas pelas
pessoas que o enfoque da disponibilidade de bens primários. Os bens primários são
meios para as liberdades, ao passo que as capacidades de realização são
expressões das próprias liberdades.
As motivações subjacentes à teoria de Rawls e ao enfoque da capacidade são
similares, mas o tratamento da questão é diferente. O problema com respeito ao
argumento rawlsiano está em que, mesmo tendo-se em vista os mesmos fins, a
capacidade que as pessoas têm de converter bens primários em realizações é
diferente, de tal maneira que uma comparação interpessoal baseada na
disponibilidade de bens primários em geral não tem como refletir também as
liberdades reais de cada pessoa para perseguir um dado objetivo, ou objetivos
variáveis. A variabilidade das taxas de conversão segundo as pessoas, para fins
dados, é um problema inscrito no problema mais geral da variabilidade dos bens
primários requeridos por pessoas diferentes buscando seus respectivos fins 25.
Segue-se disso que se pode aplicar ao argumento rawlsiano uma crítica similar à
que se faz à pane da literatura sobre as necessidades básicas, pela ênfase nos
meios (tais como mercadorias) por oposição à ênfase na realização ou na liberdade
de realização.

LIBERDADE, CAPACIDADE E INFORMAÇÕES

O conjunto de capacidades representa a liberdade pessoal de realizar várias


combinações de efetivações. Se a liberdade é intrinsecamente importante, as
combinações disponíveis para a escolha são todas relevantes para se avaliar o que
é vantajoso para uma pessoa, mesmo que ele ou ela escolha apenas uma
alternativa. Nessa perspectiva, a escolha é, em si mesma, uma característica
valiosa da vida de uma pessoa.

Por outro lado, se entendermos que a liberdade é apenas instrumentalmente


importante, o interesse no conjunto de capacidades resume-se ao fato de que
oferece à pessoa oportunidades para alcançar várias situações desejáveis. Apenas
as situações alcançadas são valiosas em si mesmas, e não as oportunidades, que
são valorizadas apenas como meios com respeito ao fim de alcançar situações
desejáveis.

O contraste entre as concepções que atribuem um valor intrínseco ou instrumental


à liberdade é bastante profundo. Discuti a importância dessa distinção em outro
trabalho26. Ambas as perspectivas podem ser acomodadas no enfoque da
capacidade. Na concepção instrumental, o conjunto de capacidade de realização é
valorizado apenas pela melhor alternativa disponível para escolha (ou pela
alternativa efetivamente escolhida). Essa maneira de avaliar um conjunto de
capacidades pelo valor de um elemento particularmente importante nele contido
pode ser denominado "avaliação elementar"27. Se, de outra parte, a liberdade é
valorizada em si mesma, a avaliação elementar será inadequada, pois a
oportunidade de escolher outras alternativas é em si mesma significativa. Para
expressar claramente a distinção, pode-se notar que se todas as alternativas que
não a escolhida não estivessem disponíveis, haveria uma perda real na perspectiva
de liberdade como valor intrínseco, mas não na perspectiva instrumental, pois a
alternativa escolhida permaneceria disponível.

É muito mais difícil aplicar praticamente a perspectiva do valor intrínseco que a do


valor instrumental, pois nossas observações diretas dizem respeito ao que foi
escolhido e realizado. A consideração do que poderia ter sido escolhido, por sua
própria natureza, é mais problemática (envolvendo, em particular, suposições sobre
as restrições reais com as quais a pessoa se defronta). Os limites de cálculos
práticos desse tipo são postos pela limitação de informações, e isso torna
particularmente difícil a representação dos conjuntos completos de capacidades,
por oposição à representação dos conjuntos de capacidades a partir da realização
observada de efetivações.

Não há perda real na utilização do enfoque da capacidade nessa forma reduzida no


caso de se adotar a perspectiva instrumental da liberdade, mas há perda se se
adota a perspectiva do valor intrínseco. Para esta última, uma representação do
conjunto das capacidades enquanto tal é importante.

Na verdade, nem a perspectiva instrumental nem a intrínseca são plenamente


adequadas. Certamente a liberdade é um meio para a realização pessoal, seja ou
não também intrinsecamente importante, de tal maneira que a perspectiva
instrumental tem de estar presente, inter alia, em qualquer uso do enfoque da
capacidade. Da mesma forma, mesmo que, de modo geral, se considere a
perspectiva instrumental bastante adequada, haverá casos em que ela é
extremamente limitada. Por exemplo, a pessoa que jejua, isto é, passa fome por
sua própria vontade, não pode ser considerada carente como uma pessoa cuja
única opção é passar fome devido à pobreza extrema. Ainda que as efetivações
observadas sejam as mesmas, pelo menos em representações grosseiras delas, as
dificuldades em que se encontram não são as mesmas.

Na prática, mesmo que em geral o enfoque da capacidade seja utilizada no forma


reduzida de concentração determinada de efetivações, uma complementação
sistemática seria necessária para levar em conta os casos em que a liberdade
usufruída pela pessoa é de um interesse claro e imediato. Em muitos casos pode
não haver grande dificuldade em tal suplementação, desde que o problema seja
posto claramente e que a coleta de informações seja bem dirigida e precisa.
Algumas vezes pode ser útil redefinir as efetivações de maneira "refinada", para
captar algumas das alternativas disponíveis obviamente relevantes, embora não
escolhidas. Jejuar é um exemplo de uma efetivação "refinada", em oposição à
pouco refinada de "passar fome", que não especifica se houve ou não uma
escolha28. O problema importante aqui não diz respeito à existência ou não de uma
palavra (como jejum) que expresse a efetivação refinada, pois isso é matéria de
invenção linguística, mas à avaliação de se tal refinamento seria central ao
exercício em questão e, se for central, trata-se de decidir como isso poderia ser
feito.

Na verdade, a base ¡informacional das efetivações é não obstante uma base de


avaliação muito mais fina da qualidade de vida e do progresso econômico que
várias alternativas mais comumentes recomendadas, tais como as utilidades
individuais ou a posse de mercadorias. O fetichismo da mercadoria, neste último
caso, e a métrica subjetivista, no primeiro, fazem dessas alternativas algo
profundamente problemático. Assim, o foco nas efetivações desempenhadas tem
méritos vis-à-vis aos critérios rivais factíveis (mesmo que possa não se basear em
tantas informações quantas seriam necessárias para atribuir importância intrínseca
à liberdade). E em termos de disponibilidade de dados, manter o registro das
efetivações (incluindo as vitais, como alimentar-se bem e evitar a morbidade
evitável ou a morte prematura) tipicamente não é mais difícil — pelo contrário, é
muitas vezes mais fácil — do que obter informações a divisões no âmbito da
família, para não mencionar as informações sobre utilidades.

O enfoque da capacidade dessa maneira pode ser utilizado em vários níveis de


sofisticação, e o nível adotado dependerá em grande pane de considerações
práticas sobre que informações se pode ou não obter. Na medida em que a
liberdade é tida como intrinsecamente importante, a observação do feixe escolhido
de efetivações não pode ser em si mesma um guia adequado para o exército de
avaliação, a despeito da liberdade de escolher um feixe melhor, ao invés de um
pior, poder ser considerado, em certa medida, uma vantagem mesmo na
perspectiva da liberdade29.

Esse ponto pode ser ilustrado por meio de um exemplo. Um aumento da


longevidade é tido, por comum acordo, como uma melhoria da qualidade de vida
(embora, em termos estritos, possamos considerá-lo como um aumento da
quantidade de vida). Em parte, isso ocorre porque viver mais tempo é uma
realização valorizada. Em parte, isso ocorre também porque outras realizações, tais
como evitar as doenças, tendem a acompanhar a longevidade (de modo que esta
ainda serve como substituto para realizações que também são intrinsecamente
valorizadas). Mas uma longevidade maior também pode ser vista como um
aumento da liberdade de viver mais tempo. Frequentemente damos isso por aceito
como base no raciocínio sólido de que, havendo opção, as pessoas valorizam viver
mais tempo; assim, a realização observada de uma vida prolongada reflete uma
liberdade maior do que a que se desfrutou.

A questão interpretativa surge precisamente aqui. Por que o fato de uma pessoa
viver bastante, e não pouco, constitui a evidência de uma liberdade maior? Por que
não constitui simplesmente uma realização preferida, sem que nisso se envolva
uma diferença em termos de liberdade? Uma resposta consiste em dizer que uma
pessoa tem sempre a opção de suicidar-se, de modo que aumentar a longevidade
aumenta as opções à disposição da pessoa. Mas há uma outra questão aqui.
Consideremos a hipótese em que, por alguma razão (legal, psicológica ou outra),
uma pessoa não pode suicidar-se (a despeito da presença no mundo de venenos,
facas, edifícios altos e outros objetos úteis). Diríamos então que essa pessoa não
tem mais liberdade em virtude de ser livre de viver mais, mas não menos? Pode-se
argumentar que se uma pessoa valoriza, prefere e deseja viver mais tempo, então
a mudança em questão constitui de fato um aumento da sua liberdade, dado que a
avaliação da liberdade não pode ser dissociada da consideração das opções reais
em termos dos julgamentos avaliativos da pessoa30.

A idéia de liberdade leva-nos para além das realizações, mas isso não implica que a
avaliação da liberdade deva ser independente da avaliação das realizações. A
liberdade de viver o tipo de vida desejado tem uma importância que a liberdade de
viver o tipo de vida odiado não tem. Assim, a tentação de ver mais liberdade em
maior longevidade justifica-se de vários pontos de vista, incluindo-se a
consideração da opção do suicídio e a sensibilidade à estrutura avaliativa das
realizações que afetam diretamente a métrica da liberdade.

Isso tudo leva ao reconhecimento de que a utilização do enfoque da capacidade,


mesmo reduzido à concentração nas efetivações realizadas (longevidade, ausência
de morbidade, boa alimentação, etc), pode atribuir um papel mais importante ao
valor da liberdade do que de início poderia parecer.

DESIGUALDADE, CLASSE E GÊNERO

A escolha de um enfoque para a avaliação do bem-estar e da melhoria afeta muitos


exercícios, entre os quais a avaliação da eficiência e da desigualdade. A eficiência,
tal como normalmente definida, diz respeito "ao registro de melhorias globais; na
teoria econômica corrente, isso toma a forma de uma apreciação sobre se a posição
de alguém melhorou sem que a posição de outros tenha piorado". Uma situação é
eficiente se e somente se não há alternativa factível na qual a posição de alguém é
melhor e a de ninguém é pior. Obviamente, o conteúdo desse critério depende
crucialmente da definição que adotamos de vantagem, ou melhoria, individual. Se a
definirmos em termos de utilidade, o critério da eficiência torna-se imediatamente o
critério da "otimalidade de Pareto" (ou "eficiência paretiana", tal como é
denominada às vezes com mais acuidade). Por outro lado, a eficiência também
pode ser definida em termos de outras métricas, incluída a da qualidade de vida
baseada na avaliação das funções e capacidades de realização.

Similarmente, também a avaliação da desigualdade depende da escolha do


indicador de melhoria individual. As medidas usuais encontráveis nos trabalhos
empíricos tendem a se concentrar nas desigualdades de renda e de riqueza31. Essas
contribuições são valiosas. Por outro lado, na medida em que renda e riqueza não
expressam adequadamente a qualidade de vida, temos boas razões para basear a
avaliação da desigualdade em informações relacionadas mais de perto aos padrões
de vida.

Na verdade, as duas bases de informação não são excludentes. A desigualdade de


riqueza pode dizer-nos algo sobre a geração e a persistência de desigualdades de
outros tipos, mesmo se a nossa preocupação última disser respeito a desigualdades
de padrões e de qualidade de vida. Num contexto de permanência e rigidez de
divisões sociais, as informações sobre desigualdades entre classes em termos de
riqueza e prosperidade são especialmente importantes. Mas reconhecer isso não
reduz a importância de levar em conta indicadores de qualidade de vida para a
avaliação de desigualdades entre classes em termos de bem-estar e liberdade.

Um campo no qual as desigualdades são particularmente difíceis de avaliar é o das


diferenças de gênero. Dispomos de muitas evidências gerais de que
frequentemente as mulheres estão em muito pior situação que os homens, e que as
meninas sofrem de muito mais privação do que os meninos. Essas diferenças
aparecem de várias maneiras, algumas sutis, outras grosseiras, e em várias de
suas formas podem ser observadas em diversas partes do mundo, tanto em países
ricos como pobres. Não é fácil, contudo, decidir qual é o melhor indicador de
melhorias em termos das quais essas diferenças de gênero devem ser examinadas.
Certamente não há necessidade de utilizar apenas uma métrica; a necessidade de
uma pluralidade de indicadores é tão forte aqui quanto em outros campos. Mesmo
assim, permanece a questão de escolher um enfoque do bem-estar e da melhoria
na avaliação das desigualdades entre os homens e as mulheres.

O enfoque da avaliação baseada na utilidade é particularmente limitador nesse


contexto, pois as desigualdades, em especial na família, são muitas vezes tornadas
"aceitáveis" por certas noções sociais a respeito de arranjos "normais", e isso pode
afetar a percepção tanto de homens quanto de mulheres com respeito aos níveis
comparativos de bem-estar de que desfrutam. No contexto de alguns países em
desenvolvimento, como a Índia, por exemplo, observou-se que mulheres do meio
rural podem não ter uma percepção clara de estarem desprovidas de bens de que
os homens dispõem, e podem não ser mais infelizes que os homens. Isso pode ou
não ser verdade, mas mesmo que for verdade pode-se argumentar que a métrica
mental da utilidade pode ser particularmente inadequada para a avaliação da
desigualdade nesse contexto. A presença de carências objetivas, sob a forma de
maior desnutrição, enfermidades mais frequentes, maior analfabetismo, etc, não
podem ser tidos por irrelevantes com base na aceitação silenciosa e resignada, por
parte das mulheres, da sua situação de carência32.

Ao rejeitar avaliações baseadas na utilidade, podemos ser tentados a levar em


conta os bens reais (de que usufruem mulheres e homens, respectivamente) para
avaliar as desigualdades entre eles. Deparamo-nos aqui com o problema, já
discutido, da inadequação das avaliações baseadas em mercadorias, porque estas
são apenas meios para a obtenção de bem-estar e liberdade, e não refletem a
natureza das vidas que as pessoas envolvidas podem levar. Ademais, temos o
problema das dificuldades — às vezes intransponíveis — para obter informações
sobre como os bens pertencentes à família são divididos entre homens e mulheres,
e entre meninos e meninas.

Estudos sobre a divisão da comida na família, por exemplo, tendem a ser muito
problemáticos, porquanto a observação requerida para detectar quem está
comendo que quantidade é difícil de realizar com grau mínimo de precisão. Por
outro lado, é possível comparar os sintomas de desnutrição em meninos e meninas,
determinar as taxas respectivas de morbidade, etc; essas diferenças de funções são
mais fáceis de observar e, ao mesmo tempo, têm maior relevância intrínseca 33.

De fato, há desigualdades entre homens e mulheres em termos de efetivações, e


no contexto de países em desenvolvimento o contraste pode ser agudo mesmo em
questões básicas de vida e morte, saúde e doença, educação e analfabetismo. Por
exemplo: a despeito do fato de que, quando homens e mulheres têm um
tratamento razoavelmente igual em termos de alimentação e cuidados de saúde
(tal como tende a ocorrer em países ricos, onde podem permanecer, não obstante,
diferenças de gênero em esferas menos elementares), as mulheres parecem exibir
maior capacidade de sobrevivência que os homens, na maioria dos países em
desenvolvimento os homens são muito mais numerosos que as mulheres. Ao passo
que a relação do número de mulheres para o de homens na Europa e na América
do Norte é de 1,06, essa mesma relação é inferior a 0,95 no Oriente Médio
(incluídos países da Ásia Ocidental e África do Norte) na Ásia do Sul (incluídos índia,
Paquistão e Bangladesh) e na China34. Esse número bruto da relação entre homens
e mulheres sobreviventes conta uma história de considerável valor informativo para
a avaliação das desigualdades de gênero. Às vezes há fortes contrastes mesmo no
interior de um país (na índia, por exemplo, a taxa cai de 1,03 no Kerala para 0,87
ou 0,88 no Punjab e Haryana). Tanto do ponto de vista do estudo da situação real
como do estudo das influências causais que geram desigualdades de gênero, esses
contrastes regionais podem ser particularmente importantes.

Certamente, ser capaz de sobreviver é apenas uma capacidade entre outras


(embora sem dúvida uma capacitação básica), outras comparações podem ser
feitas com base em informações sobre saúde, morbidade, etc. A capacidade de ler e
escrever também é muito importante, e as taxas de analfabetismo são muitas
vezes escandalosamente mais altas entre as mulheres em diversas partes do
mundo. O efeito combinado de uma alta taxa de analfabetismo em geral (a
carência de uma capacidade básica nos dois gêneros) e de uma desigualdade de
gênero nessa taxa (carência maior das mulheres com respeito a essa capacidade
básica) tende a ser desastroso para as mulheres. Aparentemente, mesmo deixando
de lado muitos países sobre os quais não dispomos de informações confiáveis, em
muitos outros a taxa de analfabetismo das mulheres é superior a 50%. Na verdade,
é superior mesmo a 70% em 26 países, a 80% em 16 e a 90% em pelo menos 5 35.

De modo geral, a perspectiva das efetivações e capacidade proporciona um enfoque


plausível para o exame das desigualdades de gênero. Ele não sofre do subjetivismo
que torna a avaliação baseada na utilidade particularmente obtusa no tratamento
de desigualdades consolidadas. Tampouco sofre da superconcentração nos meios,
tal como na avaliação baseada em bens; na verdade, suas fontes informativas no
campo dos estudos sobre desigualdades na família são melhores que as
proporcionadas pelo trabalho de adivinhação com respeito à distribuição de bens
(por exemplo, informações sobre quem come quanto). O caso das desigualdades de
genero é apenas uma ilustração, por certo, das vantagens do enfoque da
capacidade. Essa ilustração, porém, tem em si mesma uma particular relevância,
dada a onipresença e renitente natureza das diferenças entre homens e mulheres
em várias partes do mundo.
CONCLUSÃO

A avaliação da realização e da melhoria dos membros da sociedade é parte


essencial da análise do desenvolvimento. Neste artigo, procurei discutir a maneira
pela qual o enfoque da capacidade pode ser utilizado para fundamentar os esforços
de avaliação do desenvolvimento humano. O foco na realização humana e na
liberdade, bem como na necessidade de uma avaliação reflexiva — e não mecânica
—, constitui uma adaptação de uma velha tradição que pode ser utilizada utilmente
na formulação de uma base conceituai para a análise das tarefas do
desenvolvimento no mundo contemporâneo. A importância fundacional das
capacidades humanas proporciona uma sólida base para a avaliação dos padrões e
da qualidade de vida, e sugere também um formato geral em termos do qual
problemas de eficiência e igualdade podem ser discutidos.

O foco em distintas capacidades implica, por sua própria natureza, um enfoque


pluralista. De fato, ele aponta para a necessidade de conceber o desenvolvimento
como uma combinação de distintos processos, ao invés de concebê-lo como a
expansão de uma magnitude aparentemente homogênea, tal como a renda real ou
a utilidade. As coisas que as pessoas consideram valioso fazer ou ser podem ser
muito diversas, e as capacidades valiosas variam desde a liberdade elementar, tais
como livrar-se da fome e da desnutrição, até capacidades complexas, tais como a
obtenção do autor espeito e a participação social. O desafio do desenvolvimento
humano requer atenção a uma variedade de questões setoriais e a uma
combinação de processos sociais e econômicos.

Na distinção entre efetivações e capacidades, a ênfase recai na importância de se


dispor de liberdade de escolher um tipo de vida e não outro. Essa ênfase distingue
o enfoque da capacidade das avaliações baseadas apenas em realizações. Contudo,
a capacidade de exercer a liberdade pode depender diretamente, em grande
medida, da educação recebida, e assim sendo o desenvolvimento do setor da
educação pode ter uma conexão fundacional com o enfoque da capacidade.

De fato, a expansão educacional tem vários papéis que devem ser cuidadosamente
diferenciados. Em primeiro lugar, melhor educação pode aumentar a produtividade.
Segundo, uma distribuição ampla do benefício educacional pode contribuir para
uma melhor distribuição de renda nacional agregada entre as pessoas. Terceiro,
melhor educação pode ajudar na conversão de rendas e recursos em funções e
modos de vida diversos. Por último (o que de modo algum significa o menos
importante) a educação também auxilia na escolha inteligente entre diferentes
tipos de vida que uma pessoa pode levar. Todas essas distintas influências podem
afetar importantemente o desenvolvimento de capacidades valiosas e, por isso
mesmo, o processo de desenvolvimento humano.

Há também outras conexões entre as diferentes áreas cobertas pela coleção. A boa
saúde, por exemplo, é uma realização em si mesma, ao mesmo tempo em que
contribui tanto para o aumento da produtividade como para a capacidade de
converter rendas e recursos em qualidade de vida. Ao enfocar as capacidades
humanas como o padrão de medida em termos do qual os êxitos e fracassos do
desenvolvimento humano devem ser avaliados, a atenção recai nessas conexões
sociais. Se se dispõe de clareza quanto aos fins (evitando-se, em particular, a
armadilha de tratar os seres humanos como meios), as instrumentabilidades sociais
e econômicas envolvidas nas relações entre meios e fins podem ser exploradas
amplamente.
Uma das mais importantes tarefas de um sistema de avaliação é levar em conta
nossos valores humanos mais prezados. Q desafio do desenvolvimento humano não
pode ser plenamente compreendido sem que nós enfrentemos conscientemente
essa questão e prestemos atenção deliberada ao aumento das liberdades e
capacidades de realização que são mais importantes nas vidas que podemos viver.
Ampliar as vidas limitadas das quais, queiram ou não, a maioria dos seres humanos
são prisioneiros por força das circunstâncias, é o maior desafio do desenvolvimento
humano no mundo contemporâneo. Uma avaliação informada e inteligente tanto
das vidas a que somos forçados como das vidas que poderíamos escolher mediante
reformas sociais é o primeiro passo para o enfrentamento daquele desafio. É uma
tarefa que temos de enfrentar.

* Sen, Amartya. "Development as Capability Expansion", Jounal of Development


Planning, nº 19, 1989 (encarte especial sobre "Desenvolvimento humano a partir
dos anos oitenta") Traduç [ Links ]ão Regis Castro Andrade.
1 Grundlegung (1785), seção II. Tradução inglesa Fundamental Principles of the
Metaphysics of Morals, in Kant 's Critique of Practical Reason and Other Works on
the Theory of Ethics, 6ª edição de T. K. Abbot, Longmans, Londres: 1909, p.
47. [ Links ]
2 Sen, Amartya. "Equality of what?" in Tanner Lectures on Human Values, edição
de S. M. McMurring, vol.1, Cambridge: Cambridge University Press,
1980, [ Links ]reimpresso em Choice, Welfare and Measurement, Oxford:
Blackwell, e Cambridge: MIT Press, 1982. [ Links ] Resources, Values and
Development, Oxford: Blackwell, e Cambridge: Harvard University
Press, 1984. [ Links ] Commodities and Capabilities, Amsterdam: North-
Holland, 1985. [ Links ] "Well Being, Agency and Freedom: the Dewey
Lectures 1984", in Journal of Philosophy, 82, abril de 1985, [ Links ] e
"Capability and Weil-Being, WIDER paper, 1988.
3 Aristóteles, The Nicomachean Ethics, livro I, seção 7, tradução de David
Ross, World's classics, Oxford University Press, 1980, pp. 12-
14. [ Links ] Note que o termo aristotélico "eudaimonia", mal traduzido
freqüentemente por "felicidade", expressa a plena realização da vida, que
ultrapassa de muito a perspectiva utilitarista. Ainda que o prazer possa resultar da
realização, isso é considerado urna conseqüência, e não a causa, da valorização da
realização. Para um exame do enfoque aristotélico e sua relação com trabalhos
recentes sobre funções e capacidades, ver Nussbaum: Martha. "Nature, Function
and Capability: Aristotle on Political Distribution", Oxford Studies in Ancient Greek
Philosophy, vol. suplementar, 1988. [ Links ]
4 Ver Smith, Adam, An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of
Nations, vol. I, livro V, seção II, republicado, com edição de R.H.Campbell e A.S.
Skinner, Oxford: Clarendon Press, 1976, pp. 869-872 e
Marx, [ Links ] K., Economic and Philosophic Manuscripts of 1844, tradução
inglesa Moscou Progressive Publishers, 1977. [ Links ]
5 Ver de Sainte Croix, G.E.M., The Class Struggle in the Ancient Greek World,
Londres: Duckworth, 1981, [ Links ] e Nussbaum, Martha, "Nature, Function
and Capability", op.cit.
6 Marx, K., "Economic and Philosophic Manuscripts of 1844" op.cit.
7 Aristóteles, op.cit., livro I, seção 5, na tradução de David Ross, p. 7.
8 Marx, K, Capital, vol. I, tradução inglesa de S. Moore e E. Aveling, Londres:
Sonnenschein, 1887, cap. I, seção 4, pp. 41-45. [ Links ] Ver também Marx,
K., Economic and Philosophic Manuscripts of 1844, op.cit.
9 Smith, A. op.cit., vol. II, livro V, cap.II, seção entitulada "Taxes upon
Consumable Commodities", republicado na op.cit., pp. 469-471.
10 Neste artigo, não me preocuparei com questões formais, para cujo tratamento
envio a Commodities and Capabilities, op.cit., especialmente caps. 2,4 e 7.
11 Marx, K, e Engels, F., The German Ideology, 1846. [ Links ] 0 trecho
citado foi tirado da tradução de David Mclellan, Karl Marx: Selected Writings,
Oxford: Oxford University Press, p. 190. [ Links ]
12 Ver Sen, Amartya, "Well Being, Agency and Freedom", op.cit., e Commodities
and Capabilities, op.cit.
13 Presume-se às vezes que ir além dos desejos e prazeres reais de uma pessoa
como padrão de avaliação seria introduzir o paternalismo no exercício avaliativo.
Essa posição negligencia o importante fato de que ter prazer e desejar não são em
si mesmas atividades valorativas, mesmo que o desejo muitas vezes resulte da
valorização de algo e o prazer resulte freqüentemente na obtenção de algo
valorizado. A utilidade de uma pessoa não deve ser confundida com a valorização
que ela mesma faz; assim, vincular o exercício de avaliação à utilidade da própria
pessoa é muito diferente de julgar o sucesso de uma pessoa em termos da
valorização que ela mesma faz. A distinção importante a fazer nesse contexto é a
seguinte: uma pessoa pode não ter coragem de desejar uma grande mudança
social, presa às circunstâncias em que vive, desde que tenha a oportunidade de
avaliar a situação; contudo — o que caracteriza essencialmente um exercício
político nesse contexto —, a pessoa pode valorizar uma mudança. Uma vantagem
da valorização, por oposição ao sentimento, é a de que uma avaliação tem de ser
um exercício reflexivo — aberto ao exame crítico —, coisa que o sentimento não
necessita ser (o requisito do exame crítico não se aplica aos sentimentos da mesma
forma como se aplica à avaliações reflexivas). Essas questões, e outras
relacionadas a elas, são discutidas em "Well Being, Agency and Freedom", op.cit.
14 Em muitos contextos, as representações formais assumirão a forma de
ordenamentos parciais, ou de hierarquias sobredeterminadas, ou de relações
aproximadas. Este não é, por ceno, um problema próprio do enfoque da
capacidade; ele pertence, de modo geral, aos marcos conceituais de teoria social.
Ver, a respeito, Sen, Amartya, Collective Choice and Social Welfare, São Francisco:
Holden Day, 1970, [ Links ] republicado por Amsterdam: North-Holland,
1979, e On Ethics and Economics, Oxford: Backwell, 1987. [ Links ] Ver
também "Social Choice Theory", in Handbook of Mathematical Economics, editado
por K.J.Arrow e M. Intriligator, Amsterdam: North-Holland, 1985. [ Links ] Os
problemas formais podem ser tratados em diferentes níveis de precisão (ou seja,
com representação maior ou menor das ambigüidades).
15 Ver Sen, Amartya, Choice, Welfare and Measurement, op.cit., ensaios 17-20.
16 Bernard Williams levanta essa questão nos seus comentários às Tanner Lectures
sobre os padrões de vida. Ver The Standard of Living, Tanner Lectures of Amartya
Sen, com discussões de John Muellebaner, Rawi Kanbur, Keith Hart e Bernard
Williams, edição de Geoffrey Hawthorn, Cambridge: Cambridge: University Press,
1987, pp. 98-101 e 108-109. [ Links ]
17 Tentei discutir algumas das questões metodológicas envolvidas na descrição em
"Description as Choice", Oxford Economic Press, 32, 1980, [ Links ] reeditado
em Choice, Welfare and Measurement, op.cit..
18 Ver Sen, Amartya, Resources, Values and Development, cap. 15, 19 e
20, [ Links ] e "The Conception of Development", in Handbook of
Development Economics, editado por H. Chenery e T. N. Seimivasan, Amsterdam:
North-Holland. [ Links ]
19 O número de funções e capacidades que podem ser de interesse para a
avaliação do bem-estar de uma pessoa pode ser muito grande. Ver Sen, Amartya,
"Well Being, Agency and Freedom", op.cit.
20 Ver, entre outras contribuições, Lipton, Michael, Assessing Economic
Performance, Londres: Staples Press, 1968; [ Links ] Streeten, Paul, The
Frontiers of Development Studies, Londres: Macmillan,
1972; [ Links ] Adelman, Irma, e Tuft Morris, Cynthia, Economic Growth and
Social Equity in Developing Coutries, Stanford: Stanford University Press,
1973; [ Links ] Sen, Amartya, "On the Development of Basic Income
Indicators to Supplement GNP Measures", Economic Bulletin for Asia and the Far
East, publicação das Nações Unidas, nº E. 74, II, F. 4; [ Links ] Chenery H. e
outros Redistribution With Growth, Londres: Oxford University Press,
1974; [ Links ] Adelman, Irma, "Development Economics: a Reassessment of
Goals", American Economic Review, Papers and Proceedings, 66,
1975; [ Links ] Grant, James P., Disparity Reduction Rates in Social
Indicators, Overseas Development Council, Washington D.C.,
1978; [ Links ] Griffin, Keith, e Hhan,Azizur Rahman, "Poverty in the Third
World: Ugly Facts and Fancy Models", World Development, 6,
1978; [ Links ] Streeten, Paul, e Burbi, S.J., "Basic Needs: Some
Issues", World Development, 6, 1978; [ Links ] Morris, D.Morris, Measuring
the Conditions of the World's Poor: the Physical Quality of Life Index, Oxford:
Pergamon, 1979; [ Links ] Streeten, Paul, Development Perspectives,
Londres: Macmillan, 1981; [ Links ] Streeten, Paul e outros, First Things First:
Meeting Basic Needs in Developing Contries, Nova York: Oxford University Press,
1981; [ Links ] Osmani, S.R., Economic inequality and Group Welfare, Oxford:
Claredon Press, 1982; [ Links ] e Stewart, Frances, Planning to Meet Basic
Needs, Londres: Macmillan, 1985. [ Links ]
21 A questão geral dos fundamentos e das bases informacionais á discutida em
Amartya Sen "Informational Analysis of Moral Principles", in Rational Action, editado
por Ross Harrison, Cambridge: Cambridge University Press, 1979; [ Links ] e
"Well-Being, Agency and Freedon, op.cit.. Nesta última análise, foram feitas
algumas distinções (especialmente entre função (agency) e bem-estar, e entre
realização e liberdade) que vale a pena desenvolver um tratamento mais elaborado
dessa matéria; mas resistirei à tentação de trabalhar esses pontos aqui.
22 Sobre essa questão e sobre a relação entre bens, características e funções, ver
Sen, Amartya, Commodities and Capabilities, op.cit., cap. 2.
23 Sobre esse ponto, ver Sen, Amartya, Resources» Values and Development,
op.cit., ensaios 19 c 20; e Streeten, Paul, "Basic Needs: Some Unsettled
Questions", World Development, 17, 1984. [ Links ]
24 Rawls, John, A Theory of Justice, Oxford: Clarendon Press, c Cambridge:
Harvard University Press, 1971, pp. 60-65. [ Links ]
25 Ver Sen, Amartya, "Equality of What? op.cit., e Resources, Values and
Development, op.cit..
26 Ver Sen, Amartya, "Freedom of Choice: Concept and Content", Alfred Marshall
Secture na Associação Econômica Européia, European Economic Review,
1988. [ Links ]
27 Ver Sen, Amartya, Commodities and Capabilities, pp. 60-67. [ Links ]
28 Ver Sen, Amartya, "Well-Being, Agency and Freedom", op.cit., e "Freedom of
Choice, Concept and Content"» op.cit.
29 Sobre a questão da relação entre estados alcançados e a extensão de
liberdade(freedom and liberty), ver Sen, Amartya, "Liberty and Social
Choice"', Journal of Phibsophy, 80, 1983. [ Links ]
30 De fato, não levar em conta a avaliação da própria pessoa com respeito ao
estado de coisas para o estabelecimento de uma medida da liberdade pode gerar
uma concepção muito peculiar da liberdade, contraditória com a tradição de
valorização da liberdade. Sobre isso, ver Sen, Amartya, "Liberty as Control: an
Appraisal", Midwest Studies in Philosophy, 7, 1982, [ Links ] e "liberty and
Social Choice" op.dt.
31 Ver, por exemplo, Atkinson, A.B., Unequal Shares: Wealth in Britain, Penguin,
Londres, 1972, [ Links ] e The Economics of Inequality, Oxford: Clarendon
Press, 1975. [ Links ]
32 Discuti essa questão em Commodities and Capabilities, op.cit., apêndice B, e
também em Resources, Values and Development, ensaios 15 e 16. A importância
dos vieses de percepção na permanência das desigualdades de gênero é discutida
em "Gender and Cooperative Conflicts", documento de trabalho WIDER,
in Persistent Inequalities, editado por Irene Tinker.
33 Para uma tentativa de fazer tais comparações baseadas em funções entre
homens e mulheres, ver Kynch, Jocelyn, e Sen, Amartya, "Indian Women: Weil-
Being and Survival", Cambridge Journal of Economic, 7, 1983. [ Links ]
34 Ver Kynch, Jocelyn, "How Many Women Are Euronch: Sex Ratios and the Right
to Life", Third World Affairs, 1985, [ Links ] Third World Foundation for Social
and Economic Studies Londres, 1985. A esperança de vida parece ter evoluído em
favor das mulheres segundo as estatísticas da maioria dos países; ver The State of
the World's Children 1988, United Nations Children's Fund, Nova York: Oxford
University Press, 1988, [ Links ]tabela 7; a reversão de vieses passados
contra as mulheres no que diz respeito à composição da população, contudo, é um
processo de longa duração.
35 The State of the World's Children 1988, United Nations Children's
Fund, [ Links ] tabela 4.

Electronic Document Format(ABNT)


AMARTYA, Sen. O desenvolvimento como expansão de capacidades. Lua Nova, São Paulo , n. 28-29, p.
313-334, Apr. 1993 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
64451993000100016&lng=en&nrm=iso>. access on 28 Jan. 2019. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-
64451993000100016.

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