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Amartya Sen
RAÍZES CONCEITUAIS
MERCADORIAS E CAPACIDADE
Uma pessoa indigente, levando uma vida muito pobre, poderia não estar mal em
termos de utilidade medida pelo seu estado mental, caso se verificasse que essa
pessoa aceita sua situação com silenciosa resignação. Em situações de privação por
longos períodos, as vítimas não persistem em queixas contínuas, com frequência
fazem grandes esforços para tirar prazer das mínimas coisas e reduzem seus
desejos pessoais a proporções muito modestas, "realistas". A privação da pessoa
pode não ser captada por escalas de prazer, auto realização, etc., mesmo que ela
não consiga alimentar-se adequadamente, vestir-se decentemente, ser
minimamente educada e assim por diante12.
Ademais de sua relevância no plano dos princípios, essa questão pode ter um
impacto imediato na prática das políticas públicas. A acomodação resignada à
privação continuada e à vulnerabilidade é frequentemente apresentada como
justificável com base na ausência de uma forte demanda pública e de um desejo
intensamente manifestado de modificar essa situação13.
O fato de que diferentes pessoas têm objetivos diferentes e que as pessoas devem
ser livres para persegui-los não deve ser esquecido, segundo Rawls, no processo de
avaliação. Esse cuidado é realmente importante, e o enfoque da capacidade
também valoriza a liberdade nesse sentido. Na verdade, pode-se argumentar que o
enfoque da capacidade descreve melhor as liberdades realmente desfrutadas pelas
pessoas que o enfoque da disponibilidade de bens primários. Os bens primários são
meios para as liberdades, ao passo que as capacidades de realização são
expressões das próprias liberdades.
As motivações subjacentes à teoria de Rawls e ao enfoque da capacidade são
similares, mas o tratamento da questão é diferente. O problema com respeito ao
argumento rawlsiano está em que, mesmo tendo-se em vista os mesmos fins, a
capacidade que as pessoas têm de converter bens primários em realizações é
diferente, de tal maneira que uma comparação interpessoal baseada na
disponibilidade de bens primários em geral não tem como refletir também as
liberdades reais de cada pessoa para perseguir um dado objetivo, ou objetivos
variáveis. A variabilidade das taxas de conversão segundo as pessoas, para fins
dados, é um problema inscrito no problema mais geral da variabilidade dos bens
primários requeridos por pessoas diferentes buscando seus respectivos fins 25.
Segue-se disso que se pode aplicar ao argumento rawlsiano uma crítica similar à
que se faz à pane da literatura sobre as necessidades básicas, pela ênfase nos
meios (tais como mercadorias) por oposição à ênfase na realização ou na liberdade
de realização.
A questão interpretativa surge precisamente aqui. Por que o fato de uma pessoa
viver bastante, e não pouco, constitui a evidência de uma liberdade maior? Por que
não constitui simplesmente uma realização preferida, sem que nisso se envolva
uma diferença em termos de liberdade? Uma resposta consiste em dizer que uma
pessoa tem sempre a opção de suicidar-se, de modo que aumentar a longevidade
aumenta as opções à disposição da pessoa. Mas há uma outra questão aqui.
Consideremos a hipótese em que, por alguma razão (legal, psicológica ou outra),
uma pessoa não pode suicidar-se (a despeito da presença no mundo de venenos,
facas, edifícios altos e outros objetos úteis). Diríamos então que essa pessoa não
tem mais liberdade em virtude de ser livre de viver mais, mas não menos? Pode-se
argumentar que se uma pessoa valoriza, prefere e deseja viver mais tempo, então
a mudança em questão constitui de fato um aumento da sua liberdade, dado que a
avaliação da liberdade não pode ser dissociada da consideração das opções reais
em termos dos julgamentos avaliativos da pessoa30.
A idéia de liberdade leva-nos para além das realizações, mas isso não implica que a
avaliação da liberdade deva ser independente da avaliação das realizações. A
liberdade de viver o tipo de vida desejado tem uma importância que a liberdade de
viver o tipo de vida odiado não tem. Assim, a tentação de ver mais liberdade em
maior longevidade justifica-se de vários pontos de vista, incluindo-se a
consideração da opção do suicídio e a sensibilidade à estrutura avaliativa das
realizações que afetam diretamente a métrica da liberdade.
Estudos sobre a divisão da comida na família, por exemplo, tendem a ser muito
problemáticos, porquanto a observação requerida para detectar quem está
comendo que quantidade é difícil de realizar com grau mínimo de precisão. Por
outro lado, é possível comparar os sintomas de desnutrição em meninos e meninas,
determinar as taxas respectivas de morbidade, etc; essas diferenças de funções são
mais fáceis de observar e, ao mesmo tempo, têm maior relevância intrínseca 33.
De fato, a expansão educacional tem vários papéis que devem ser cuidadosamente
diferenciados. Em primeiro lugar, melhor educação pode aumentar a produtividade.
Segundo, uma distribuição ampla do benefício educacional pode contribuir para
uma melhor distribuição de renda nacional agregada entre as pessoas. Terceiro,
melhor educação pode ajudar na conversão de rendas e recursos em funções e
modos de vida diversos. Por último (o que de modo algum significa o menos
importante) a educação também auxilia na escolha inteligente entre diferentes
tipos de vida que uma pessoa pode levar. Todas essas distintas influências podem
afetar importantemente o desenvolvimento de capacidades valiosas e, por isso
mesmo, o processo de desenvolvimento humano.
Há também outras conexões entre as diferentes áreas cobertas pela coleção. A boa
saúde, por exemplo, é uma realização em si mesma, ao mesmo tempo em que
contribui tanto para o aumento da produtividade como para a capacidade de
converter rendas e recursos em qualidade de vida. Ao enfocar as capacidades
humanas como o padrão de medida em termos do qual os êxitos e fracassos do
desenvolvimento humano devem ser avaliados, a atenção recai nessas conexões
sociais. Se se dispõe de clareza quanto aos fins (evitando-se, em particular, a
armadilha de tratar os seres humanos como meios), as instrumentabilidades sociais
e econômicas envolvidas nas relações entre meios e fins podem ser exploradas
amplamente.
Uma das mais importantes tarefas de um sistema de avaliação é levar em conta
nossos valores humanos mais prezados. Q desafio do desenvolvimento humano não
pode ser plenamente compreendido sem que nós enfrentemos conscientemente
essa questão e prestemos atenção deliberada ao aumento das liberdades e
capacidades de realização que são mais importantes nas vidas que podemos viver.
Ampliar as vidas limitadas das quais, queiram ou não, a maioria dos seres humanos
são prisioneiros por força das circunstâncias, é o maior desafio do desenvolvimento
humano no mundo contemporâneo. Uma avaliação informada e inteligente tanto
das vidas a que somos forçados como das vidas que poderíamos escolher mediante
reformas sociais é o primeiro passo para o enfrentamento daquele desafio. É uma
tarefa que temos de enfrentar.