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A pesquisa como dádiva: inspirações

cearenses

José Machado Pais


Universidade de Lisboa, Portugal
machado.pais@ics.ulisboa.pt

1. Nos braços de Iracema

A primeira vez que aterrei em Fortaleza foi em setembro de 2001,


para participar no X Congresso Brasileiro de Sociologia, organizado
pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Lembro-me de ter ficado
alojado no Praiano Hotel, na avenida Beira Mar, aonde cheguei a meio
de uma tarde soalheira. Tomei um duche rápido e logo deixei o hotel
para um passeio no calçadão. Olhei o mar, suspirei fundo e, guiado
pelo instinto, virei à esquerda sem destino certo. Calcorreadas umas
três centenas de metros, começo a ouvir uns acordes de chorinho. O
escutar é uma forma de perscrutar a realidade. Sigo atrás de quem me
chama. Um cavaquinho, uma flauta, uma guitarra e um pandeiro. Foi
assim que se deu o meu primeiro encontro com a Praia de Iracema. O
delicioso chorinho viria a encontrá-lo nas cercanias da Ponte Metálica,
na esplanada de um charmoso barzinho, o Cais Bar.

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Em novembro de 2004 retornaria a Fortaleza, para participar num


colóquio organizado pela UFC, em colaboração com a Université
Lumière-Lyon 2, sobre Oralidade, Textualidade e Transformação do
Imaginário Social. No final de uma tarde liberta de compromissos
rumei ao Cais Bar para me reencontrar com o pôr-do-sol do chori-
nho. Perdi-me no meio de destroços e construções abandonadas. Em
vez do Cais Bar só encontrei o Pirata Bar. Vim depois a saber que
o bar do chorinho, lendário ponto de encontro da boémia alencarina,
havia encerrado. Porém, só viria a tomar conhecimento do processo
de transformações ocorridas na Praia de Iracema quando tive oportu-
nidade de integrar o júri da tese de doutorado de Roselane Bezerra – O
Bairro Praia de Iracema entre o “adeus” e a “boémia” – defendida
na UFC, em abril de 2008 e publicada no ano seguinte (BEZERRA,
2009). A discussão de boas teses é uma fonte de aprendizagem para
quem as lê. Aprendi muito sobre o bairro de Iracema com a leitura
da tese de Roselane: a forma como os habitantes consignavam signi-
ficados aos lugares que eram palco do transcurso das suas vidas; as
apropriações simbólico-expressivas desses lugares, sinalizadas pela
renomeação do bairro, de Praia do Peixe para Praia de Iracema; as
estratégias de gestão de conflitos quando proprietários de discotecas
que acolhiam prostitutas organizavam forró para idosos, depois de
uma reunião com os moradores que termina com um pai-nosso; os pro-
testos dos residentes contra as casas de show, embora reivindicassem
descontos para nelas entrar... Em trânsito me senti quando comecei
a cruzar descobertas naturalísticas do que ia observando com aquelas
outras do que ia lendo. Em trânsito me achei num bairro olhado como
espaço de trânsitos e junções, como outrora acontecia com as conquis-
tas amorosas das Coca-Colas, meninas embeiçadas pelo refrigerante
norte-americano, mais recentemente viradas para as pizzas italianas.

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Sem o chorinho do Cais Bar, profundamente tocado por um senti-


mento de perda, refugiei-me na obra de José de Alencar, revisitando
Iracema e outros livros do ilustre escritor cearense, em Fortaleza nas-
cido. Ao reler O Guarani, ganho Alencar como aliado de uma ideia
que há tempos persigo sobre a possível influência dos ciganos na disse-
minação do fado pelo Brasil (PAIS, 2012). A hipótese, pioneiramente
sustentada por Pinto (1931), de o fado descender do lundum é fran-
camente provável. Porém, tanto Rugendas, Andrew Grant, Gilberto
Freyre ou Mário Andrade convergem em uma evidência: sem perder
as suas raízes africanas, o lundum brasileiro distanciou-se do lundum
africano pela convivência dos batuques com as violas. Em que braços
terão chegado as violas ao Brasil? De portugueses, certamente, mas
não só. De ciganos também, a avaliar pela narração de José de Alen-
car quando, no romance O Guarani, nos abre a porta de jacarandá de
um casarão colonial, edificado em finais do século XVI. O proprie-
tário do casarão era um fidalgo português, D. António de Mariz, um
dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro. Quando Alencar nos guia
aos aposentos do casarão, descobrimos que, numa alcova, sobre uma
cómoda, jaz “uma dessas guitarras espanholas que os ciganos intro-
duziram no Brasil quando expulsos de Portugal” (ALENCAR, 1994
[1857], p. 34). Numa nota de rodapé informa-nos ainda que os capi-
tães daquele tempo tinham o costume de “manterem uma banda de
aventureiros às suas ordens” (ALENCAR, 1994, p. 34). Esses aven-
tureiros acomodavam-se em círculo, em cabanas à volta da casa colo-
nial. Eram “pobres, desejosos de fazer fortuna rápida, e […viviam]
em parcerias de dez e vinte, para mais facilmente praticarem o contra-
bando de ouro e pedras preciosas, que iam vender na costa” (ALEN-
CAR, 1994, p. 34). Alencar não afirma que entre esses aventureiros
encontrássemos ciganos, apenas nos diz que eram “homens ousados,

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destemidos, reunindo ao mesmo tempo aos recursos do homem civi-


lizado a astúcia e agilidade do índio” (ALENCAR, 1994, p. 35). Po-
rém, em uma das mais pormenorizadas descrições da dança do fado
oitocentista por terras brasileiras, pela mão de um outro romancista
(Almeida, 1990 [1854]), não será por acaso que por lá vemos ciganos
e com eles violas, estalos de dedos, sapateado, viravoltas e batimentos
de palmas.
Nos braços de Iracema, fiquei enamorado de outros mitos e len-
das cearenses, como a lenda da cidade encantada de Jericoacoara, a
lenda dos Dragões do Ipu, a lenda da Cabra Cabriola, a lenda da Mula
sem Cabeça e muitas mais retratadas na literatura de cordel nordes-
tina. As “guitarras espanholas” que os ciganos introduziram no Bra-
sil, ideia sustentada por José de Alencar, levaram-me a revisitar as
concepções míticas do fado, entre as quais surgem as “dez mil guitar-
ras” (RIBEIRO, 1936) encontradas nos despojos da batalha africana
de Alcácer-Quibir, corria o ano de 1578, de onde desapareceu El-rei
Dom Sebastião, com a promessa de um dia voltar em uma manhã de
nevoeiro. No Ceará reencontrei-me com o mito de Dom Sebastião.
Diz-se que terá fugido para o Brasil, por onde ainda hoje vagueia nos
Lençóis Maranhenses (CASCUDO, 1999 [1954], 168) e nos areais
de Cumbe, no Ceará. Vejam-se, a propósito, os relatos de Francisco
Freire Alemão de Cisneiros, coligidos a partir da expedição que reali-
zou ao Nordeste do Brasil, a meados do século XIX, com o apoio do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (ALEMÃO, 1964 [1859-
1861], 25-27 e 273-278). Porém, enquanto que em Portugal se recor-
dam os gemidos das “dez mil guitarras” da batalha de Alcácer-Quibir,
em Cumbe recordam-se os sons misteriosos dos tambores de guerra
de Dom Sebastião. Na sua expedição, o botânico Freire Alemão quis
ver e ouvir esses tambores que rufavam como “uma caixa de guerra”.

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O que não viu não deixou de ouvir e o que ouviu “assemelhava-se


ao som do tambor dos pretos no seu candombe” (ALEMÃO, 1964,
p. 277).
Os batuques sempre estiveram presentes em folguedos africanos.
Depois, nos tempos coloniais, acabariam por ser reprimidos ou bani-
dos. A sua sobrevivência poderá ter contado com o apoio das imagi-
nadas tropas de Dom Sebastião. Quando recentemente me desloquei
a Quissamã, a norte do Estado do Rio de Janeiro, para ver e ouvir um
fado dançado vindo do tempo dos escravos, também fiquei intrigado
com a ausência de batuques. O fado que vi era apenas dançado com
sapateado. Outrora, disseram-me alguns fadistas mais velhos, tam-
bém se usavam tamancos para intensificar a sonoridade do sapateado.
Em conversa com Ismael Pordéus, em um dos nossos encontros de
Lisboa em companhia de um bacalhau com batatas ao murro, o antro-
pólogo da UFC avançou com uma suspeita. Os tamancos poderiam
ter substituído as sonoridades dos batuques. Embarquei na ideia do
meu querido amigo cearense e em mais um copo de vinho. Vim de-
pois a comprovar que, como no caso de outras danças fandangadas
de má fama, tão perseguidas no Brasil imperial, o fado só poderia so-
breviver caso se libertasse dos batuques (PAIS, 2018). Este cenário
de trânsitos culturais é apenas um acorde introdutório ao meu “fado
acadêmico tropical”, expressão que pilhei da apresentação de Irlys
Alencar F. Barreira (2010) a um número temático da Revista de Ciên-
cias Sociais da UFC (Vol. 41, n.º 2) sobre pesquisas cruzadas entre
Brasil e Portugal.

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2. Tecendo ideias, aprendizagens e amizades

Num balanço de experiências de ensino e pesquisa com alunos


e professores do curso de Ciências Sociais da UFC, eu poderia enfa-
tizar o que de mim supostamente mais terei dado, ao participar em
projetos de pesquisa, missões de trabalho e seminários de investiga-
ção; ao realizar palestras e reuniões com estudantes; ao integrar ban-
cas examinadoras de teses; ao acolher doutorandos e pós-doutorados
da UFC no Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de
Lisboa (ULisboa), numa vantajosa cooperação para a internacionali-
zação de ambas as instituições. Não desvalorizarei esses contributos.
No entanto se, como dizia Jorge Luís Borges, a memória é o nome que
damos às grutas do esquecimento obstinado, não posso deixar fugir o
que intransigentemente não poderei esquecer. A ideia da pesquisa
como dádiva. A riqueza dos saberes compartilhados. Em minha rela-
ção com colegas, alunos e participantes de encontros etnográficos, o
que mais valorizo é a experiência da pesquisa como dádiva. Por isso
mesmo, sigo uma conduta que outros que muito admiro já seguem:
ir ensinando o que sei, aprendendo o que não sei, promovendo um
saber compartilhado, ”um relacionamento de duas mãos, de troca, e
não, como é norma, um relacionamento de mão única (MARTINS,
1997, p. 20). Nesse saber compartilhado, no balanço entre o que dei
e ganhei, serei bem mais preciso e objetivo ao descrever o que dessa
cooperação granjeei ao longo de quase duas décadas. Dei-me no que
dei mas o que verdadeiramente dei só pode ser avaliado por quem se
deu no que me deu.
No ICS-ULisboa tive o grato prazer de acolher vários professo-
res da UFC, na condição de visitantes, com os quais os labores da
pesquisa se entrelaçaram com relações de amizade: César Barreira

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(com o projeto Banditismo social: O Zé do Telhado); Ismael Pordéus


Júnior (As religiões Afro-Americanas em Portugal); Irlys Barreira
(Cidades e património numa perspectiva comparada); Maria Auxi-
liadora Lemenhe (Sindicatos e empresários); Jawdat Abu-El-Haj (Os
dilemas do capitalismo periférico na era da globalização); Júlia Mi-
randa (Religião e espaço público); Sulamita Vieira (Música popular
portuguesa); Celecina Sales (Juventude e género: as trilhas dos jo-
vens no campo político cultural); Maria Sylvia Porto Alegre (O arte-
são colonial: percursos luso-brasileiros) e Glória Diógenes (Ciber-
afectos em redes: intervenções juvenis na cidade).
O elo entre criação intelectual e amical esteve também presente
no acompanhamento de doutorandos da UFC que contaram com a mi-
nha orientação no período de acolhimento institucional no Instituto
de Ciências Sociais: Isaurora Martins (com a tese Os filhos da arte.
Trajetórias de jovens de uma Ong que trabalha com arte-educação);
Sávio Cordeiro (Vivência de velhos, práticas de sociabilidade em gru-
pos de convivência); Maria Paula Jacinto Cordeiro (Entre chegadas
e partidas: dinâmicas das romarias em Juazeiro do Norte); Camila
Holanda Marinho (Afetos de rua: narrativas amorosas e trajetórias
afetivas de jovens que vivem nas ruas); Igor Monteiro Silva (O mundo
não é tão grande: uma etnografia entre viajantes independentes de
longa duração). O acompanhamento destas teses deu-me ensejo de
enriquecer o conhecimento sobre a realidade cearense, acrescido pela
leitura e avaliação de outras teses em cujas bancas de doutorado par-
ticipei: de Roselane Bezerra (com a já citada tese O Bairro Praia de
Iracema entre o “adeus” e a “boémia”); Irapuan Peixoto Lima Fi-
lho; (”Em tudo o que eu faço, eu procuro ser muito rock and roll”:
Rock, estilo de vida e rebeldia em Fortaleza); e Simone de Oliveira
de Castro (Memórias da cantoria: palavra, performance e público).

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Aos poucos fui sentindo uma crescente identificação com a cultura


popular cearense. Solicitações de orientação de tese que tivessem por
objeto de estudo o Ceará, mesmo vindas de outros Estados brasileiros,
criavam-me dificuldades de recusa. Quando Maria Spósito, da USP,
me contatou para receber no ICS a doutoranda Flávia Alves de Sousa
e logo que soube que o seu projeto de tese (Juventude e sociabilidade:
a experiência dos jovens em uma localidade litorânea) se centrava
em Flexeiras – uma das mais encantadoras praias cearenses que co-
nheci – não pude recusar. O mesmo aconteceu com Alexandre Vieira
(Trajetórias formativas profissionais em música: um estudo de caso
com estudantes do Curso Técnico em Instrumento Musical do Insti-
tuto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará – Campus
Fortaleza), orientado por Jussara Souza, do Instituto de Artes da Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul; ou ainda Ana Amélia Neri
Oliveira, com uma tese sobre quilombolas cearenses (Práticas Cor-
porais, Cotidiano e Comunidades Quilombolas), orientada por Dulce
Filgueiras, da Universidade de Brasília.
A cooperação entre o Departamento de Ciências Sociais da UFC
e o ICS-ULisboa tem contemplado riquíssimas experiências de pes-
quisa. Não posso deixar de referir o projeto Globalização, identidades
culturais e conflitos sociais, apoiado entre 2005 e 2007 pelo Programa
CAPES-ICCTI/GRICIS/FCT (Cooperação Brasil-Portugal), coorde-
nado por Irlys Barreira e, em Portugal, por mim próprio, com uma
ampla equipa de pesquisadores de ambas as instituições. Em 2010,
a Revista de Ciências Sociais da UFC publicou um número temático
(Brasil/ Portugal: Pesquisas Cruzadas, Vol. 41, nº 2) dando conta
de alguns resultados de pesquisa desse projeto. Como bem salientou
Irlys Barreira (2010, p. 05) em sugestiva nota de apresentação da re-
vista, o consórcio possibilitou “resultados expressos em publicações,

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participação em bancas examinadoras de teses, missões de trabalho


e de pós-doutorado”. A materialização desta cooperação haveria de
ter continuidade com a realização, em 2013, do Simpósio “Ciências
Sociais Cruzadas”, no ICS-ULisboa, cujas comunicações foram reu-
nidas no volume Ciências Sociais Cruzadas entre Portugal e o Brasil,
livro publicado pela Imprensa de Ciências Sociais (SILVA et al, 2005)
– editora que já havia dado acolhimento à publicação de livros de Is-
mael Pordéus (2009) e Irlys Barreira (2013). A Análise Social, revista
do ICS-ULisboa, associar-se-ia ao mote das Ciências Sociais Cruza-
das que, aliás, acabaria por dar nome a um dossiê da revista (nº 222,
2017).
Na UFC participei em vários seminários e congressos, com pales-
tras e comunicações sobre jovens, cultura e vida cotidiana, violência
e conflitos, imaginários e representações sociais, metodologias e teo-
rias do cotidiano. As missões de trabalho incluíam reuniões com os
estudantes. Recordo um desses encontros, promovido pela Professora
Irlys Barreira. Foi em Abril de 2008, numa manhã bonita pra chover
– e choveu mesmo! Incentivara-me a reunir com alunos do Programa
de Pós-Graduação em Sociologia. Aceitei o repto com agrado. E
mais agradado fiquei quando os ouvi falar com entusiasmo dos seus
projetos de pesquisa: das problematizações sociológicas que funda-
mentavam os objetos de estudo, dos dilemas enfrentados, dos avanços
conseguidos, das metodologias usadas, dos questionamentos teóricos
e conceptuais que os acompanhavam no decurso das suas pesquisas.
Num intervalo para café, no aroma de cuja informalidade seguimos
até ao fim da reunião, convidaram-me a escrever o prólogo de um
livro que acolheria os trabalhos em discussão.
A leitura do manuscrito foi gratificante ao dar-me ensejo de tomar
conhecimento de diferentes cenários de vida de jovens cearenses. As

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suas vozes ecoavam nas páginas do livro expressões de uma realidade


somente ao alcance de uma sensibilidade analítica que, na realidade,
os autores do livro partilhavam. Essas expressões davam conta de in-
serções culturais (“Nós gostamos do que é sub”); estratégias de sobre-
vivência (“Comecei a trabalhar aos oito anos de idade vendendo me-
renda e picolé”; “Engraxei sapato, peguei carrego”); aprendizagens
de vida (“Esta vida me ensinou e continua ensinando”; “Eu sempre to-
mei meu erro como lição de vida”); impasses (“Um cachorro que nem
eu vai fazer o quê?”); desilusões (“Vi muita cena difícil”); expectati-
vas (“As pessoas olham para a gente como um homem e não como um
menino velho”); sentimentos de perda (“Fiquei olhando pra ele den-
tro do caixão, esperando que ele piscasse o olho”); bloqueamentos
emotivos (“A pior coisa que acho é que não consegui chorar”); uto-
pias irrealizáveis (“Os sonhos são impossíveis quando o sofrimento
de luta pela vida torna-se realidade”)… Relatos de vida que ajudam
à compreensão sociológica de trajetórias de vida, estruturas de opor-
tunidades (ausentes, sonhadas ou esbanjadas), futuros prováveis e im-
prováveis, sentimentos de afeto e desafeto. O livro, era o resultado
valioso de uma estratégia colaboracionista, envolvendo estudantes da
pós-graduação da UFC (BARREIRA e BARREIRA, 2009). Por ca-
minhos diferentes, eles tinham conseguido mostrar que os rumos de
vida dos jovens pesquisados não eram determinados, rigidamente, por
suas pertenças sociais, mas estas projetavam-se inevitavelmente nes-
ses rumos, ainda que de forma mais ou menos esquiva, como num
jogo de gato e rato.
Para além do muito que aprendi no acompanhamento das disser-
tações da Pós-Graduação de Ciências Sociais da UFC, outro regozijo
foi seguir o percurso de sucesso de muitos desses orientandos, agora
reconhecidos professores e pesquisadores, com obra publicada. Que

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alegria saber que algumas das suas teses acabaram por ser publicadas.
Recordo, por exemplo, o livro de Paula Cordeiro (2011a), Entre Che-
gadas e Partidas: Dinâmicas das Romarias em Juazeiro do Norte.
Num trilho de caminhadas, foi aliciante ver como as jornadas dos ro-
meiros se entrecruzam com os percursos da pesquisa. Não sei como
surgiu o objeto de pesquisa, se este foi ao encontro de Paula ou se
esta o encontrou por acaso. O certo é que a cidade que a viu nascer
e crescer deixou de ser apenas um lugar vivido, passou também a ser
um campo concebido. À sua maneira, ela foi uma peregrina, uma
viajante de descobertas, uma artesã na arte de potenciar tensões e po-
larizações, em bem trabalhadas tecelagens analíticas. Tensões entre
continuidade e mudança; devoção e diversão; peregrinação e romaria;
sagrado e profano; oração e consumo; recolhimento e sociabilidade;
devoção e festa; tensões entre nós, os moradores, e eles os forasteiros;
tensões entre distintos tipos de romeiros, turistas e residentes; tensões
entre sentidos pejorativos e valorativos da imagem do romeiro; ten-
sões entre o culto oficial e a religiosidade popular; tensões entre o
olhar de fora e o olhar de dentro, entre o estranho e o familiar, entre
componentes indissociáveis de uma realidade compósita de lugares,
eventos, pessoas; tensões entre várias formas de apropriação do Padre
Cícero, umas religiosas, outras políticas (NETO, 2009); tensões entre
o que Hertz (1970 [1909]) definiu como um sacré droit e um sacré
gauche, um polo de unificação religiosa, outro de segregação; tensões
entre as apropriações analíticas das romarias que a tomam como um
fenómeno massivo e aquelas outras que procuram recuperar a centrali-
dade do romeiro. Paula Cordeiro usou com mestria essa arte de gerar
tensões entre a realidade que se dá a observação e os modos como,
sociológica e antropologicamente, ela pode ser captada. Tensões que
também se problematizaram em intenções de interpretação suscitadas

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pela interrogação. Por exemplo, há romarias sem romeiros? A in-


terrogação é um pretexto para a indagação, um ponto de partida que
anuncia uma hipótese de investigação cujo ponto de chegada pode
ser a sua negação. Não, não há romarias sem romeiros. E é assim que
Paula Cordeiro recupera o romeiro enquanto figura central da romaria,
em contracorrente das análises centradas nos processos de turistifica-
ção que acabam por desconsiderar os verdadeiros protagonistas das
romarias – os romeiros, eles mesmos: de carne e osso, com distintas
crenças e devoções, uns chegando a Juazeiro com a cruz da fé, outros
com a garrafa de cachaça.
Quando, como bolseira da Capes, Paula Cordeiro chegou a Lis-
boa com três pequenos filhos pela mão, não deixei de me interrogar,
apreensivo: como é que ela vai ter tempo no meio de tantas responsa-
bilidades familiares? Será mesmo capaz de terminar a tese em prazos
aceitáveis? Como o conseguiu não sei. Provavelmente soube transfor-
mar os contratempos em estímulos emocionais. Ou então contou com
a proteção do Padre Cícero ou o companheirismo de São Sávio. Do-
mingos Sávio Cordeiro, companheiro de Paula Cordeiro, é outro que-
rido amigo cuja trajetória académica tenho acompanhado. Recordo
como uma grata dádiva a visita à Universidade Regional do Cariri,
a palestra dada, a reunião com alunos de Ciências Sociais, a ida ao
santuário do Padre Cícero, a visita às oficinas de muitos artesãos de
Juazeiro do Norte, incluindo tipografias de literatura de cordel. Vi-
sitas memoráveis, sem esquecer a que realizámos à casa de Patativa
do Assaré, um ícone da poesia popular cearense. Sávio Cordeiro tam-
bém escreveu um livro sobre o Padre Cícero e o mito que à volta dele
surgiu. O mito, como nos ensinou G. Durand ao analisar as estruturas
antropológicas do imaginário, não é uma realidade facilmente traduzí-
vel ou decifrável. Ao ser pousada de imaginários sociais dominados

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por crenças que habitam o desejo de entender o mundo ou justificá-lo,


não podemos correr o risco de enterrar a razão do mito no mito da ra-
zão. Há que saber ouvir os narradores dos mitos, como Sávio tão bem
os soube ouvir em seu livro Os Narradores de Padre Cícero (Cordeiro,
2011b). Só desse modo é possível descobrir que a realidade do mito
se expressa em ritos e narrativas, sinalizações semânticas e símbolos
que dão guarida aos seus próprios sentidos. O simbolismo estabiliza
a virtualidade do imaginário através da linguagem e da narração. Por
isso, o imaginário dos crentes não é uma mera imagem refletida de
uma qualquer realidade. É uma criação incessante de imagens que
criam e recriam a sua própria realidade.
Depois da visita pedestre ao santuário do Padre Cícero, o livro de
Sávio permitiu-me viajar à terra chã das narrativas dos crentes, dos
seus sentimentos, das suas trajetórias de vida. Não é fácil passar para
o papel a expressão dos sentimentos que enchem de sentido a vida dos
crentes. Aliás, quando alguém escreve sobre sentimentos fica sempre
aquém do que pretende dizer. Não por acaso, Jean-Paul Sartre (em
Les Carnets de la Drôle de Guerre) defendia que logo que um escritor
decide escrever sobre o que sente, tudo o que sente já só o sente pela
metade, ocupado que está em definir e pensar o que sente. Por isso
Sartre confessava não ser autêntico, já que não passava de um mero
transmissor de sentimentos. Estava a ser autêntico quando afirmava
não o ser. Sávio ultrapassou esse dilema quando em seu livro decidiu
dar guarida aos sentimentos dos crentes em viva voz, concedendo-
lhes a possibilidade de falarem livremente do que sentiam, sem deixar
escapar corruptelas, termos regionais e expressões locais à sombra de
cujos significados me fui socializando. Num breve prefácio ao livro,
deixava a Sávio o meu prognóstico: Móia de gente vai ler seu livro e
dele tomar gosto. E dirigindo-me aos potenciais leitores: num precisa

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mais de meu falar, meus conseio pode deixar que eu vou eguar, tomar
um café ou aluar.
Voltando a Paula Cordeiro, sei que é descendente de romeiros e
que antes de enveredar pela vida académica se dedicava ao artesanato.
De certo modo cumpriu o destino traçado por Padre Cícero que nos
versos sábios de Zé Mutuca nos mostra como a cidade de Juazeiro se
foi construindo: “O tempo que padim ciço/ Viveu aqui em Juazeiro/
Dizia sempre aos romeiros/ Aprendam qualquer ofício/ […] Façam
boneca de pano/ Alguns sejam sapateiro/ Na arte de espingardeiro/
Um faz feixo outro faz cano/ Ensine também ao mano/ Pra que nin-
guém se cative/ Homem trabalha de ourive/ Mulher borda e costura/
Quem souber faça escutura/ Trabalhando é que se vive”. Não sei se
Paula Cordeiro ainda se dá às artes de fazer bonecas de pano, mas te-
nho a certeza que não deixou de ser artesã. Ela abraçou as artes de um
outro ofício: o da pesquisa sociológica. Por tudo isso e muito mais,
aqui fica a minha singela homenagem a uma digna representante de
todas essas valiosas mulheres cearenses que, apesar de suas responsa-
bilidades familiares, abraçaram, com sucesso, o desafio da produção
artesanal. A sua orientadora, é sabido, foi a Professora Irlys Barreira,
notável cultora da prática artesanal de pesquisa, socióloga com uma
enorme criatividade e sensibilidade analítica. Não foi certamente por
acaso que, na qualidade de presidenta da Sociedade Brasileira de So-
ciologia, quando lançou a Revista Brasileira de Sociologia escolheu
para os seus dois primeiros volumes a temática da sociologia como
artesanato intelectual.

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3. Repentes e cantorias

No ano em que pela primeira vez aterrei em Fortaleza (2001), re-


cebia uma aliciante proposta do Chapitô, instituição cultural sediada
em Lisboa, liderada por uma mulher-palhaço, Teresa Ricou. O desa-
fio era o de realizar no ICS-ULisboa, um colóquio sobre sonoridades
afro-luso-brasileiras. Por falta de tempo e de verbas, hesitei em assu-
mir tamanha responsabilidade, mas lá acabei por aceitar o repto, com
posteriores assomos de arrependimento. Já em Fortaleza, tomando
uma água de coco e ensimesmado pelo desânimo de um possível de-
saire do colóquio, fui abordado por Françuá1 , um repentista cearense
que terá herdado o nome de um sacerdote francês, não sei se por dele
ter recebido o baptismo ou dele ser descendente. Começámos a falar
e logo Françuá profetizou: “Tu leva para Lisboa/ o verso do Françuá/
Porque Jesus continua/ Sempre a ti a abençoá”. Por proteção de Je-
sus ou devoção do Françuá, o certo é que quando retornei a Lisboa
todos os entraves à organização do Congresso se haviam dissipado,
tendo o mesmo terminado com uma inesquecível jam session no Cha-
pitô, com a participação de violas caipiras, djambés, instrumentos de
sopro e a inconfundível voz da fadista Marisa (PAIS et al., 2004).
Sei que a morte nos levou Françuá, ao ser recentemente colhido
por uma motocicleta quando se dirigia à praia do Cumbuco, com a
sua sacola de cordéis. Em meu diário de campo guardo ainda alguns
versos do Françuá: “Eu vou pedir a Jesus/ O autor da criação/ Para
proteger o Português/ Aqui no nosso torrão/ Tou vendo que ele tem/
Na vida uma missão/ Eu já vi que tu carrega/ O amor no coração”.
Com tamanha responsabilidade não posso desiludir Françuá... Dário
Cotrim, colunista de O Norte de Minas, dizia que há duas maneiras de
1. Do francês, François. Vivendo perto de Cumbuco, Françua Gonçalves Cruz
assina alguns cordéis com o nome Françuar.

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32 A pesquisa como dádiva

conhecer o Nordeste brasileiro: fazendo turismo ou lendo literatura de


cordel dos poetas da região. Com os repentistas do Nordeste brasileiro
não aprendi apenas a conhecer melhor o Brasil. Aprendi a olhar o
mundo de uma maneira diferente, aprendi a olhá-lo com os olhos de
quem o vive. Olhar a realidade através do olhar dos outros permite-
nos alargar os horizontes de interpretação. Porquê? Porque deixamos
de questionar o que apenas pressupomos.
Françuá foi para mim um sábio professor de uma disciplina que po-
deríamos exaltar dando-lhe um nome presunçoso. Por exemplo, Epis-
temologia da Criatividade. Com toda a sua simpatia e simplicidade,
ele explicou-me como o improviso, o instantâneo, o detalhe e o cons-
ciente são notas compósitas de uma criatividade melódica, o repente:
“O repente é instantâneo/ É o que se faz avexado2 / No meio do povo
estranho/ Veja o meu detalhado/ Uso o meu consciente/ Saiba que o re-
pente/ Ele é improvisado”. As experiências cotidianas, tão vivamente
relatadas na literatura de cordel, constituem uma fonte de aprendiza-
gem do mundo da vida. Enquanto cientistas sociais, temos de saber
enfrentar esse desafio, o de explorarmos as minudências da vida so-
cial, as potencialidades interpretativas de aspetos aparentemente anó-
dinos da vida cotidiana que nos podem dar pistas sobre dinâmicas e
processos sociais. Como sustentou Edward Gibbon (1906) em The
Decline and Fall of the Roman Empire, obra publicada no terceiro
quartel do século XVIII, o patético quase sempre está no pormenor
das circunstâncias miúdas, nos detalhes a que Françuá se referia.

2. No meu bloco de notas anotei avessado, termo que me seduziu por o ver associ-
ado a uma boa estratégia metodológica, olhar o avesso das realidades para melhor as
compreendermos. Tenho usado com proveito esta estratégia quando miro e remiro
achados exóticos (comportamentais) para lhes achar os avessos endóticos (sociais).
No entanto, penso que Françuá se referia a avexado, termo corrente no nordeste
brasileiro. Neste outro sentido, o termo significa: rápido, apressado, inquieto, ins-
tantâneo, significados que remetem para a criatividade repentista.

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José Machado Pais 33

Tenho uma dívida de gratidão para com os repentistas cearenses,


pelas aprendizagens que me proporcionaram através dos seus canta-
res, provérbios e ditos chistosos. No Ceará descobri que o desprezo
em relação à literatura oral e de cordel não é de mera ordem literá-
ria (SARAIVA, 1980)3 . É uma desatenção à criatividade da cultura
popular. Pena que a tradição das cantorias e histórias do romanceiro
português se tenha perdido no torrão luso. Felizmente que a encontrei
no Nordeste brasileiro. A literatura de cordel tem sido uma preciosa
fonte documental de minhas pesquisas.4 Tomando de empréstimo a
terminologia das memórias da xilogravura que me chegaram pela mão
amiga de Gilmar de Carvalho (2010, p. 9), diria que as ideias grava-
das nos textos que vou escrevendo resultam também de “tipos móveis”
que, num jogo de “cata-cata”, vou tentando articular. Ideias embru-
lhadas em palavras. Palavras enfileiradas em frases. Frases flutuadas
por ideias. Eis-me habitado por essa inspiradora lira nordestina, casa
de palavras cantadas, de palavras recitadas, de palavras que acenam
às imagens para melhor poderem ser imaginadas.
Em minha produção académica existem significativas inspirações
cearenses, fruto da admiração que tenho pelas manifestações criativas
de cultura popular do Nordeste brasileiro, também nas artes de musi-
car e improvisar (PAIS, 2009). Sempre que no ICS-ULisboa recebo

3. Arnaldo Saraiva, Literatura Marginalizada. Novos Ensaios. Lisboa, Editorial


Presença, 1980.
4. Veja-se, por exemplo, as achegas cordelistas em meu livro Enredos Sexu-
ais, tradição e mudança: as mães, os zecas e as sedutoras de além-mar (PAIS,
2016). Nas referências bibliográficas encontramos contributos de José Ribamar Al-
ves (Quebra de Silêncio); Abraão Batista (Ana Paula, a jovem que se rifou para ir
morar em São Paulo; A Portuguesa que Cozinhou os Peitos da Escrava Negra e os
Deu para o Marido Comer); José Francisco Borges (A Chegada da Prostituta no
Céu); João Bandeira de Caldas (Nos Caminhos do Sertão); José Furtado Carvalho
de (O Monstro do Lago Ness e o Burro do Português); Franklin Machado (O Japo-
nês que Ficou Roxo pela Mulata); António Alves da Silva (A Moda do Silicone na
Mulher Brasileira) e Davi Teixeira Silva (A Bunda Vendedora).

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34 A pesquisa como dádiva

pesquisadores visitantes com dotes artísticos, não perco a oportuni-


dade de agilizar a difusão e fruição da cultura brasileira. Recordo um
extraordinário concerto dado por Ivan Vilela, um dos mais consagra-
dos violeiros de música caipira do Brasil; ou o seminário musicado
de Pedro Abib – o Pedrão – com os seus cativantes sambas de bote-
quim; ou o concerto Café com Pão, de Marilda Santanna, dando-nos
a saborear melodias com as quais se cruzou no seu percurso de pes-
quisa, como o fado sidonim da revista Bola de Sabão, ou um lundum
baiano cantado por Pepa Ruiz na revista Tim Tim por Tim Tim; ou os
encantadores monólogos cantantes de Numa Ciro, trazendo-nos uma
realidade bem viva do Nordeste brasileiro, reavivada em reminiscên-
cias de um passado compartilhado, onde se entrecruzam influências
africanas, indígenas, jesuíticas e arábico-ibéricas, matriz em que se
filiavam, em Portugal, os jograis e madrigais, as músicas ambulantes
de cegos e os fados de rua.
Em junho de 2014 convidei um cordelista nordestino, Franklin
Maxado, a animar no ICS um seminário sobre o Repente, dando-lhe
também ensejo para falar do seu livro “O que é cordel na Literatura
Popular” (MAXADO, 2012). Como estávamos em vésperas do mun-
dial de futebol que se realizou no Brasil, Maxado apresentou-nos o
seu folheto “Portugal nas mãos de Deus, nos pés de Cristiano e pa-
res e nos braços do Zé Povinho”. Antes tinha-me pedido para prefa-
ciar o folheto, ao que correspondi com uma sextilha de pé-quebrado:
“Nosso Franklin Maxado/ De coração nordestino/ É cordelista afa-
mado/ Chuta palpites com tino/ O samba vai virar fado/ Fadado pelo
destino”. Nada correu bem para a canarinha e os verde-rubros, mas a
sessão do ICS, consagrada ao repente nordestino, acabaria por fechar
com uma animada oficina de aprendizagem de forró, tendo por moni-
tores os bolseiros brasileiros visitantes. Igor Monteiro, então douto-

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José Machado Pais 35

rando “sanduíche” do ICS, presentemente professor da Universidade


da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB),
selecionou os forrós, dando-me ainda uma preciosa mão na prepara-
ção da caipirinha, chamada também à animação do convívio.
Infelizmente, nem mesmo com a oficina de forró consegui acer-
tar com o compasso da dança. Não esqueço os risos que provoquei
quando, em uma gafieira do Rio de Janeiro, ensaiei os meus primeiros
passos de forró. Na verdade, como pé-de-elefante que sou, limitei-me
a reproduzir os passos elementares que esquematicamente me haviam
ensinado: dois para a esquerda, dois para a direita. Mas toda a mi-
nha boa vontade não impediu que me cobrassem a forma quadrada
como dançava. Só muito depois descobri que o forró entrecruza mo-
vimentos fixos (dois para a esquerda, dois para a direita) com movi-
mentos variáveis que não se circunscrevem ao chamado arrasta-pé.
Foi quando me incitaram: solta os quadris! Apercebi-me então que
a alma do forró não está apenas nos pés, mas no jeito de mover o
corpo, ou melhor, na harmonia dos corpos dançantes, nos seus movi-
mentos melódicos e rítmicos que tipificam diferentes géneros: ”bate-
cocha“,”rala-bucho“,”pela-ovo” …
No entanto, a primeira vez que assisti à dança de forró não foi
no Rio, nem sequer no Pirata de Fortaleza, mas em São Paulo, mais
precisamente no restaurante Andrade, especializado em gastronomia
nordestina. Foi a convite de um grupo de professores da PUC-SP e
do editor José Cortez, um nordestino de gema, assíduo frequentador
do forró do Andrade. Foi aí que comecei a apreciar a harmonia dos
passos de dança. Vim depois a descobrir que a paixão de José Cor-
tez pelo forró e pela literatura de cordel – que a sua própria editora
divulga com apreço – é apenas um exemplo da ressonância que a cul-
tura nordestina tem nas regiões de destino dos seus imigrantes. No

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36 A pesquisa como dádiva

terceiro quartel do século XIX, muitos deles chegavam a São Paulo,


acompanhados de suas violas, em busca de melhores condições de
vida (WEFFORT, 1988). Era vê-los nos bares e botequins que ladea-
vam a estação rodoviária lançando os seus repentes em troca de alguns
cruzeiros ou comida. No entanto, a viola de origens rurais era fre-
quentemente olhada com preconceito, vista como um instrumento de
gente da roça. Tomados ora como sacerdotes ora como vagabundos
(BRANDÃO, 1981), os violeiros eram frequentemente perseguidos
pela polícia, embora fossem protegidos pelos proprietários dos bote-
quins. Quando as rusgas policiais se aproximavam, escondiam-se as
violas enquanto os violeiros se agarravam às vassouras para varrer o
chão como se fossem serventes (NOVAIS, 1988, p. 62).

4. Atando tramas: trânsitos e dádivas

Ana Amélia Neri, presentemente a desenvolver uma tese de dou-


torado sobre quilombolas cearenses, ofertou-me recentemente uma
família de nêgas de pano da Comunidade Quilombola de Alto Alegre,
na região metropolitana de Fortaleza. As nêgas de pano e um negão
que as acompanha passaram a morar em minha casa, são minha famí-
lia de adoção. Admiro as mãos das artesãs que dão vida àquelas nêgas
de pano reciclado, todas elas muito mais belas do que as sofisticadas
barbies, inexpressivas em sua artificialidade. A forma como trapos
velhos dão vida a novos seres decorre de uma lógica criativa que se
encontra em grande parte da produção artesanal. As composições e
harmonias nas cores e pedaços de tecido reciclado incorporam elabo-
rações estéticas que seguem uma metodologia de collage semelhante
às tramas da criatividade na produção artesanal da sociologia (PAIS,
2014).

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José Machado Pais 37

Não espanta o entusiasmo com que recebi o convite de Irlys Bar-


reira para dar um contributo ao número temático da Revista Brasileira
de Sociologia sobre “Modos de pensar: a Sociologia como artesanato
intelectual.” Logo me ocorreu estabelecer um paralelo entre a prática
artesanal de pesquisa sociológica e os segredos de almofada das ren-
deiras de bilros (PAIS, 2013). Em ambos os casos, as experiências
da vida cotidiana suscitam tramas de criatividade. Entre as rendeiras
os padrões trabalhados expressam realidades da natureza observada
(renda pé de coelho, bico da baratinha, renda de coentro, rabo de
pavão, entremeios de jiboia, renda céu estrelado) e de sentimentos de
vida (renda do amor despedaçado, do coração desencontrado, renda
da esposa ou lembre-se de mim). As rendas não são apenas entrança-
mentos de fios de algodão ou de linho, são também junções de fios de
vida tecidos na urdidura da experiência. Também na prática artesanal
de pesquisa se reivindica uma sensibilidade sociológica que valorize
as experiências mundanas da vida cotidiana. No Nordeste brasileiro,
enchidas com estopa ou palha de bananeira, as almofadas têm os cha-
mados ouvidos, onde quase tudo se arrecada: bilros excedentes, li-
nhas, tesoura etc. Na Sociologia como produção artesanal, os ouvidos
das nossas almofadas de trabalho são baús onde se guardam todas as
informações pertinentes para a decifração do que se pretende interpre-
tar: registos de rumores, fofocas, entrevistas, observações, para além
de documentos pessoais, fotografias etc.
Uma das boas experiências que retenho da colaboração com cole-
gas e estudantes das Ciências Sociais da UFC é a prática de dar ou-
vidos ao que os ouvidos de outros vão guardando em suas almofadas
de pesquisa. Estou a falar de experiências gratificantes pelo espírito
de interajuda que materializam. Por um exemplo, uma vez tinha em
curso uma pesquisa sobre o significado simbólico dos apelidos que

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38 A pesquisa como dádiva

circulam entre jovens portugueses do ensino secundário. A dado mo-


mento pensei que poderia ser interessante replicar o estudo no Brasil,
de modo a poder contrastar resultados, na base de possíveis diferenças
culturais. Falei do assunto a Isaurora Martins, professora da Univer-
sidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), que com muito gosto recebi
no ICS-ULisboa quando preparava o seu doutorado e, posteriormente,
já como doutorada. Logo me sugeriu o nome de Pedrita Viana, então
finalista do curso de Ciências Sociais da UFC. Pedrita fez um exce-
lente trabalho na inventariação dos apelidos que recolheu em escolas
de Fortaleza e periferia. A ela lhe devo preciosos ensinamentos so-
bre a gíria cearense que eu não conseguia descodificar em alguns dos
apelidos recenseados. Aliás, os apelidos físicos ou anatómicos que
circulavam entre os jovens brasileiros arrastavam um traço de distin-
tividade em relação aos dos jovens portugueses. Eram apelidos inspi-
rados por realidades ambientais, principalmente da fauna e da flora,
que eu nem sempre reconhecia. Uns eram bem aceites pelos jovens
que os portavam: Cabelo de Cuia (por a cabeça parecer uma cabaça de
chimarrão); Mulher Quiabo (por ser magra demais); Chagas (por ter
contraído a doença de Chagas); Mané Mago (por ser muito magro);
Cara de Morcego (por ter orelhas grandes); Boneco de Olinda (por
ser muito alto). Outros provocam rejeição ou desconforto: Sapo-Boi
(largo que nem boi e baixo que nem um sapo); Esqueleto do Amazo-
nas (muito magra); Cuscuzeira (gorda com pernas finas); Panelada de
Babalu (por ser gorda) (PAIS, 2018).
Um outro vibrante exemplo de pesquisa colaborativa surgiu com
a passagem de Glória Diógenes pelo ICS-ULisboa. Para além de ter
lançado a Rede de Pesquisa Luso-brasileira em Artes e Intervenções
Urbanas, criou um blog (Antropologizando: Arte Urbana e Graffiti
em Lisboa) onde, como a própria sustenta, o terreno de pesquisa “mo-

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biliza em torno de si e para mais além, reflexões, encontros, experi-


mentações e valiosos pontos de intercessão”. Recupero, aqui, uma
mensagem de incentivo que lhe deixei:

Olá, Glória. Acho que está seguindo um trilho original. A sua


ideia de construir conhecimento a partir de “diálogos em rede” é um
desafio apaixonante. Em boa verdade, quando usamos diários de
campo, o que vem a público são passagens selecionadas que (criteri-
osamente!) fazemos saltar do bloco de notas para algum texto a pu-
blicar. O que se publica é o que se seleciona e o que se seleciona é o
se pensa ser mais relevante (quase nunca se explicitando os critérios
de seleção…). Enfim, perde-se esse riquíssimo acervo de informa-
ção constituído por encontros inusitados, pensamentos soltos e rebel-
des, dúvidas e perplexidades, interrogações das quais se desprendem
múltiplas hipóteses de investigação que ora nos acompanham na ca-
minhada de pesquisa ora vão ficando pelo caminho. Neste sentido,
a sua ideia do blog (Antropologizzzando), constituindo uma inova-
dora proposta metodológica, tem também implicações pedagógicas.
Sua metodologia mostra que a pesquisa é feita de encontros e desen-
contros, avanços e recuos; que um passo atrás pode significar dois
em frente; que o impasse é frequentemente uma liminaridade origi-
nada por fugas ao que se pressupõe e que, na realidade, acabam por
entreabrir portas a uma passagem (para novos conhecimentos) feita
de descobertas (novos saberes).
Que sorte ter encontrado essa figura tão original que é o Tinta Crua
[graffiter]! Mas em boa verdade, em contextos de pesquisa a sorte
não acontece por acaso, mesmo quando tropeçamos casualmente
com ela. Os achados serendipity, como Merton gostava de os de-
signar, acontecem quando o achador revela uma apetência de busca,
uma capacidade para se surpreender com o que vai encontrando de
forma inesperada. A forma como Tinta Crua se refere à sua arte –
“as minhas figuras” – é reveladora de como o artista se projeta na sua
obra, principalmente ao reconhecer que ideias e sentimentos seus
aparecem camuflados em seus desenhos como “desabafos” dos “fan-
tasmas” que o “assombram”. Bem me apetecia levar o Tinta Crua a
Salvador, para o Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia.
O tema do mesmo, como sabe, é “A Sociologia como forma de Ar-
tesanato Intelectual”. Tenho relido Wright Mills e Richard Sennett

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40 A pesquisa como dádiva

sobre o sentido do trabalho artesanal e também tenho acompanhado,


recentemente, o trabalho de alguns artesãos. O que tenho descoberto
é que o trabalho de um artesão é um diálogo constante com as suas
experiências e trajetória de vida. Aliás, a vida é um gerúndio, muito
mais que um particípio: um faciendum muito mais que um factum,
uma existência profundamente ancorada a experiências sensíveis ou
assimiladas. É isso mesmo que encontro em Tinta Crua. Desde logo
ao rejeitar a produção em série, reivindicando procedimentos de tra-
balho que são próprios da produção artesanal. Espero que esta sua
aventura nos regale muitas descobertas! Não tenho dúvidas que é o
que vai acontecer. Um abraço.5

A imaginação sociológica é frequentemente suscitada por um co-


nhecimento informal e partilhado, onde a dimensão sociabilística não
está ausente. Lembro as incursões etnográficas que realizei por Trás-
os-Montes, norte de Portugal, em companhia de Ismael Pordéus e Ro-
selane Bezerra. Por lá andava a pesquisar o movimento das mães de
Bragança que se haviam organizado para expulsar da cidade as traba-
lhadoras de sexo brasileiras, acusadas de encantarem os seus maridos
com macumbas, feitiços e um misterioso chá de amarração (PAIS,
2010). Quando os convidei para me acompanharem no trabalho de
campo, aceitaram com agrado. Viagem atribulada, pois tivemos de
abandonar estradas cortadas ao trânsito por um intenso nevão. Por vá-
rias vezes corremos o risco de atolar o carro numa imensidão e neve
cuja espessura não nos deixava enxergar as bermas da estrada. Sem-
pre recordarei a companhia amiga e o enorme apoio me deram no
trabalho de campo que, para além de Bragança, se estendeu a Miran-
dela, Macedo de Cavaleiros, Podence e Vinhais, onde confraternizá-
mos com caretos e outros diabos à solta. Roselane, chegou a colaborar
na realização de algumas entrevistas a trabalhadoras de sexo. Ismael
5. Post datado de 8 de abril de 2013, inserido no blog de Glória Diógenes “An-
tropologizzzando”. Disponível em: http://antropologizzzando.blogspot.
com. Acesso em 17 agosto 2018.

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José Machado Pais 41

Pordéus, de máquina fotográfica a tiracolo, não deixava escapar frag-


mentos da realidade cujos registos a sua sensibilidade antropológica
exigia.
Um dia, quando tinha acabado de entrevistar o proprietário de uma
das mais afamadas casas de striptease de Bragança, fiquei eufórico
com uma descoberta. O meu entrevistado, um entendido da noite que
no entanto se encontrava em prisão domiciliária, acabara de me reve-
lar o nome do misterioso chá de amarração. Queria de imediato parti-
lhar o achado com os meus companheiros de viagem e logo acelerei
o passo para o ponto de encontro combinado. Quando lhes revelei o
nome do chá arregalaram os olhos e, levando ambos a mão à boca,
sustiveram uma gargalhada. Roselane, assomada de pânico, advertiu-
me: “Oi, Machado! Você não vai falar disso, não! Viu?! Por favor,
Machado!”. Ismael, buscando argumentos mais convincentes de dis-
suasão, advertiu-me que numa universidade brasileira, um estudante
que fizera uso do termo numa tese de mestrado tinha sido convidado
a eliminá-lo, sob pena de ele próprio poder vir a ser reprovado por
ofensa à dignidade dos membros do júri. Liberta do termo incómodo,
a tese saiu incólume do embaraço, supostamente aprovada com distin-
ção e louvor. Apesar de em Casa-Grande & Senzala Gilberto Freyre
(1995 [1933], p. 251) sustentar que “a maior delícia do brasileiro é
conversar safadeza”, tudo tem os seus limites. Acontece que a pala-
vra que lavra mistério, de uso tão problemático no Brasil, é em Portu-
gal uma palavra desusada e inócua, tendo o mesmo significado com
que Machado de Assis a usou em Dom Casmurro, o de uma simples
caixa. Fiquei, no entanto, com um dilema ético em relação ao desve-
lamento do nome do chá, o que me obrigou a uma profunda reflexão
sobre a circulação dos palavrões (PAIS; 2015). Não fossem as garga-
lhadas sustidas de Roselane e Ismael Pordéus e nunca me passariam

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42 A pesquisa como dádiva

pela cabeça tão oportunas derivações. Ainda pelo norte de Portugal,


não esqueço as expedições sociológicas realizadas em companhia de
Irlys e César Barreira, oportunidade para, em ambiente descontraído,
fazermos fluir ideias sobre os projetos em andamento, entre os quais
o do banditismo social que em Portugal teve O Zé do Telhado como
alvo de pesquisa, um bom malandro, “herói popular” cuja trajetória
de vida foi meticulosamente seguida por César Barreira (2010), pari
passu, de Penafiel a Malange (Angola). Um estudo de caso que pode-
ria ser tomado como um caso de estudo nas artes de bem pesquisar.
Os processos criativos germinam com mais facilidade em espaços
abertos e colaborativos, onde se trocam experiências, conhecimen-
tos, dúvidas e modos de as enfrentar. O desenvolvimento de estra-
tégias cooperantes, onde se joga a criatividade numa base comunica-
tiva de ideias e saberes, tem implicações. Se somos o que fazemos
para mudar o que somos, quando o fazer é uma produção comparti-
lhada a mudança resultante é de natureza sociocêntrica. Esta dádiva
coletiva é o que mais reconhecidamente guardo das experiências de
ensino e pesquisa que tenho tido com professores e doutorandos da
Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFC, sem esquecer as ricas
aprendizagens com artesãos, poetas e repentistas cearenses, fonte de
inspiração de muitas das minhas pesquisas. Quando recentemente fui
convidado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia do Ministério
da Educação e Ciência de Portugal a integrar o grupo de peritos da
Agenda de Investigação e Inovação (I&I) na área da Cultura e Patri-
mónio Cultural não pude deixar de pensar nas ricas experiências de
intercâmbio científico e cultural que tenho tido no Brasil, desde logo
com a UFC. Baseado nessas experiências, e embora reconhecendo a
pertinência das pesquisas em torno das identidades e memórias cultu-
rais, propus o tópico dos trânsitos culturais como um dos que deve-

Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v. 50, n. 1, mar./jun., 2019, p. 17–48.


José Machado Pais 43

riam ser privilegiados em futuras agendas de pesquisa, proposta que


acabou por reunir consenso. Penso que futuramente se assistirá a uma
crescente problematização teórica dos trânsitos culturais, com um pos-
sível reagendamento das pesquisas em direção a estruturações étnicas
e conexões transnacionais; processos de produção, mobilização e cir-
culação da cultura; património alimentar e trajetos geográfico-sociais;
ou migrações, transnacionalismo e cosmopolitismo.
Por outro lado, do ponto de vista teórico e metodológico, as arma-
dilhas metodológicas do presentismo, reconhecidas pelos próprios de-
fensores dos live methods, lançam o desafio de nos livrarmos do aprisi-
onamento ao tempo curto, daquele tempo que tende a reificar e a essen-
cializar a cultura, imobilizando-a no aqui e agora. Nessa medida há
que desenvolver e consolidar paradigmas de conhecimento que permi-
tam analisar a cultura nas engrenagens do tempo histórico. Neste do-
mínio, há questões inda não suficientemente pesquisadas. Por exem-
plo, de que forma os trânsitos culturais reconstroem as identidades
quando supostas unidades identitárias são permeáveis e sobrelevadas
pela diferença e disjunção? Como se reinventam as memórias cultu-
rais em processos de transculturação? Que outras configurações assu-
mirão os trânsitos culturais e como é que nelas se jogarão memórias
e identidades mutáveis, fragmentadas, eletivas e plurais, como é pró-
prio da contemporaneidade? Não se podendo subvalorizar o jogo me-
morial e identitário, os trânsitos culturais não devem ser desconsidera-
dos em futuras agendas de pesquisa. A esta conclusão cheguei depois
das ricas experiências de intercâmbio científico que tenho tido com
professores e estudantes de Ciências Sociais da Universidade Federal
do Ceará, experiências de pesquisa que as tomo como uma dádiva.

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44 A pesquisa como dádiva

Referências

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48 A pesquisa como dádiva

Resumo:
Experiências de ensino e pesquisa, no domínio das ciências
sociais, são convocadas para um balanço de intercâmbio inte-
runiversitário luso-brasileiro, no transcurso de cerca de duas
décadas. A pesquisa como dádiva, baseada em estratégias co-
laborativas de reciprocidade, surge como corolário desse inter-
câmbio. O autor do artigo aponta como exemplos de dádiva as
aprendizagens resultantes de teses que acompanhou, de proje-
tos que realizou e da criatividade que encontrou entre artesãos,
cordelistas e repentistas cearenses, fonte de inspiração de al-
gumas de suas pesquisas de pendor artesanal. Na conclusão
entreabrem-se horizontes para uma mais vasta problematiza-
ção sociológica dos trânsitos culturais.

Palavras-chave: trânsitos culturais; cultura popular; criativi-


dade; artesanato intelectual; redes de pesquisa.

Abstract:
Experiences of teaching and research in the social sciences are
called for a balance of Portuguese-Brazilian interuniversity ex-
change, in the course of about two decades. Research as a
gift, based on collaborative reciprocity strategies, emerges as
a corollary of this exchange. The author of the article points
out as examples of donations the learning resulting from the
thesis he followed, the projects he carried out and the creativ-
ity that he found among craftsmen, cordelistas and repentistas
from Ceará, source of inspiration for some of his researches.
In the conclusion, there are horizons for a wider sociological
problematization of cultural transits.

Keywords: cultural transits; popular culture; creativity; intel-


lectual craftsmanship; research network.

Recebido para publicação em 08/01/2019.


Aceito em 19/02/2019.

Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v. 50, n. 1, mar./jun., 2019, p. 17–48.

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