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cearenses
alegria saber que algumas das suas teses acabaram por ser publicadas.
Recordo, por exemplo, o livro de Paula Cordeiro (2011a), Entre Che-
gadas e Partidas: Dinâmicas das Romarias em Juazeiro do Norte.
Num trilho de caminhadas, foi aliciante ver como as jornadas dos ro-
meiros se entrecruzam com os percursos da pesquisa. Não sei como
surgiu o objeto de pesquisa, se este foi ao encontro de Paula ou se
esta o encontrou por acaso. O certo é que a cidade que a viu nascer
e crescer deixou de ser apenas um lugar vivido, passou também a ser
um campo concebido. À sua maneira, ela foi uma peregrina, uma
viajante de descobertas, uma artesã na arte de potenciar tensões e po-
larizações, em bem trabalhadas tecelagens analíticas. Tensões entre
continuidade e mudança; devoção e diversão; peregrinação e romaria;
sagrado e profano; oração e consumo; recolhimento e sociabilidade;
devoção e festa; tensões entre nós, os moradores, e eles os forasteiros;
tensões entre distintos tipos de romeiros, turistas e residentes; tensões
entre sentidos pejorativos e valorativos da imagem do romeiro; ten-
sões entre o culto oficial e a religiosidade popular; tensões entre o
olhar de fora e o olhar de dentro, entre o estranho e o familiar, entre
componentes indissociáveis de uma realidade compósita de lugares,
eventos, pessoas; tensões entre várias formas de apropriação do Padre
Cícero, umas religiosas, outras políticas (NETO, 2009); tensões entre
o que Hertz (1970 [1909]) definiu como um sacré droit e um sacré
gauche, um polo de unificação religiosa, outro de segregação; tensões
entre as apropriações analíticas das romarias que a tomam como um
fenómeno massivo e aquelas outras que procuram recuperar a centrali-
dade do romeiro. Paula Cordeiro usou com mestria essa arte de gerar
tensões entre a realidade que se dá a observação e os modos como,
sociológica e antropologicamente, ela pode ser captada. Tensões que
também se problematizaram em intenções de interpretação suscitadas
mais de meu falar, meus conseio pode deixar que eu vou eguar, tomar
um café ou aluar.
Voltando a Paula Cordeiro, sei que é descendente de romeiros e
que antes de enveredar pela vida académica se dedicava ao artesanato.
De certo modo cumpriu o destino traçado por Padre Cícero que nos
versos sábios de Zé Mutuca nos mostra como a cidade de Juazeiro se
foi construindo: “O tempo que padim ciço/ Viveu aqui em Juazeiro/
Dizia sempre aos romeiros/ Aprendam qualquer ofício/ […] Façam
boneca de pano/ Alguns sejam sapateiro/ Na arte de espingardeiro/
Um faz feixo outro faz cano/ Ensine também ao mano/ Pra que nin-
guém se cative/ Homem trabalha de ourive/ Mulher borda e costura/
Quem souber faça escutura/ Trabalhando é que se vive”. Não sei se
Paula Cordeiro ainda se dá às artes de fazer bonecas de pano, mas te-
nho a certeza que não deixou de ser artesã. Ela abraçou as artes de um
outro ofício: o da pesquisa sociológica. Por tudo isso e muito mais,
aqui fica a minha singela homenagem a uma digna representante de
todas essas valiosas mulheres cearenses que, apesar de suas responsa-
bilidades familiares, abraçaram, com sucesso, o desafio da produção
artesanal. A sua orientadora, é sabido, foi a Professora Irlys Barreira,
notável cultora da prática artesanal de pesquisa, socióloga com uma
enorme criatividade e sensibilidade analítica. Não foi certamente por
acaso que, na qualidade de presidenta da Sociedade Brasileira de So-
ciologia, quando lançou a Revista Brasileira de Sociologia escolheu
para os seus dois primeiros volumes a temática da sociologia como
artesanato intelectual.
3. Repentes e cantorias
2. No meu bloco de notas anotei avessado, termo que me seduziu por o ver associ-
ado a uma boa estratégia metodológica, olhar o avesso das realidades para melhor as
compreendermos. Tenho usado com proveito esta estratégia quando miro e remiro
achados exóticos (comportamentais) para lhes achar os avessos endóticos (sociais).
No entanto, penso que Françuá se referia a avexado, termo corrente no nordeste
brasileiro. Neste outro sentido, o termo significa: rápido, apressado, inquieto, ins-
tantâneo, significados que remetem para a criatividade repentista.
Referências
Resumo:
Experiências de ensino e pesquisa, no domínio das ciências
sociais, são convocadas para um balanço de intercâmbio inte-
runiversitário luso-brasileiro, no transcurso de cerca de duas
décadas. A pesquisa como dádiva, baseada em estratégias co-
laborativas de reciprocidade, surge como corolário desse inter-
câmbio. O autor do artigo aponta como exemplos de dádiva as
aprendizagens resultantes de teses que acompanhou, de proje-
tos que realizou e da criatividade que encontrou entre artesãos,
cordelistas e repentistas cearenses, fonte de inspiração de al-
gumas de suas pesquisas de pendor artesanal. Na conclusão
entreabrem-se horizontes para uma mais vasta problematiza-
ção sociológica dos trânsitos culturais.
Abstract:
Experiences of teaching and research in the social sciences are
called for a balance of Portuguese-Brazilian interuniversity ex-
change, in the course of about two decades. Research as a
gift, based on collaborative reciprocity strategies, emerges as
a corollary of this exchange. The author of the article points
out as examples of donations the learning resulting from the
thesis he followed, the projects he carried out and the creativ-
ity that he found among craftsmen, cordelistas and repentistas
from Ceará, source of inspiration for some of his researches.
In the conclusion, there are horizons for a wider sociological
problematization of cultural transits.