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Contribuições para a atualização da noção de


corpo na teoria de Wilhelm Reich
pela ótica foucaultiana

*
MARCUS VINICIUS CÂMARA

Resumo

Este artigo visa a problematização da noção de corpo na teoria de


Wilhelm Reich, através de uma perspectiva foucaultiana. A configuração do
saber e da ação psicanalítica, que engloba questões como a cisão corpo/mente e a
pretensa neutralidade do terapeuta, constitui um território que produziu o lugar
de crítica exercido por Reich. Além disso, a vinculação do corpo às redes
sociais deve ser também uma preocupação no cenário terapêutico. Michel
Foucault assinala como o corpo nos fornece condições de questionamento e
transformação sociais.
Estes temas e suas respectivas complexidades representam o foco
de nossa abordagem que - seguindo um movimento espiralado entre Reich e
Foucault - pretende contribuir não só para o aprofundamento do estudo do corpo
sujeitado ao controle social, assim como, propor linhas de fuga a este
enquadrinhamento.

Abstract

This paper focuses problems regarding the concept of body in


Wilhelm Reich’s theory, from the perspective of Michel Foucault. The
configuration of psychoanalytic knowledge and action, which involves issues
such as the body/mind splitting and the presumed therapist’s neutrality,
constitutes a territory that has produced the place of criticism occupied by Reich.
Furthermore, the link between the body and social networks must also be a
concern in the therapeutic scene. Foucault points out how the body provides
conditions for social questioning and change.
These themes and their complexities represent the aim of our
approach which - following a spiral movement between Reich and Foucault -
intends to contribute to the development of the conception of body subjected to
social control, as well as to propose alternatives to this process.

“Somos muitos Severinos


iguais em tudo na vida:

*
Doutorando do Curso de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ. Este trabalho está vinculado à
pesquisa institucional intitulada “A Questão da Interação na Psicologia Clínica Contemporânea”
coordenada pela profa doutora Élida Sigelmann e foi apresentado no Congresso Encontro
Comemorativo do Centenário de Wilhelm Reich, promovido pela PUC/SP, em agosto de 1997.
2
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o
sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia.”

(João Cabral de Melo


Neto,
Morte e Vida Severina)

I - Introdução

A noção de corpo a ser discutida neste trabalho, embora

fundamental, é somente um dos elementos que fazem parte da cena terapêutica.

Há todo um amálgama de temas, signos, forças que percorrem a teoria e a

técnica clínica. Portanto, o objeto de nosso estudo - o corpo - não pode ser

isolado dos demais componentes deste enquadre. Esta é uma das razões pelas

quais iniciaremos esta discussão assinalando a fragmentação tanto do paciente,

quanto do terapeuta, a cisão corpo/mente na Psicanálise.

A questão da suposta neutralidade no setting e no saber

psicanalítico também será por nós abordada. A escuta psicanalítica e a negação

do corpo têm lugar preponderante na configuração psicanalítica. É o tempo de

Freud. Este saber constituído de noções de reconhecido valor e, ao mesmo

tempo, de temas polêmicos é que produzirá o espaço que será ocupado por

Reich.

O comprometimento inicial de Reich 1 era com a continuidade da

teoria da libido e com um enfoque materialista na psicanálise. A perspectiva

materialista o levava a procurar o que era tangível no espaço terapêutico: o

corpo. Se Freud valorizava a escuta da fala, Reich passava a dar grande

1
Materialismo Dialético e Psicanálise, 1929/1983. *
*Nas obras citadas, a primeira data refere-se ao escrito ou à publicação originais, a segunda à
edição referida.
3
importância ao olhar o corpo e suas manifestações, o olhar para ver, o olhar

para saber do paciente. Reich instaurava o olhar. Em uma outra direção,

podemos também afirmar que a “escuta freudiana” e o “olhar reichiano” estão

atrelados à malha de construção de saber que possibilitou o aparecimento de

ambos. Aqui a ótica que nos instrumentaliza é foucaultiana.

Foucault 2 nos auxilia a compreender melhor o binômio ver/olhar,

quando o situa dentro de um processo histórico de abordagem da loucura.

Parafraseando o autor, podemos dizer que enquanto Freud não olhava para ver,

Reich somente via porque olhava. No entanto, é exatamente neste ponto que

surge o questionamento sob o prisma foucaultiano: ao resgatar a importância da

expressão corporal, não estaria Reich, por outro lado, atrelando a subjetividade

humana a este corpo, limitando-a, restringindo-a? O texto “O Nascimento da

Clínica” 3 é um excelente referencial teórico como fonte de problematização

desta questão.

As marcas no corpo, percebidas por Reich, foram reconhecidas

por ele como tendo um equivalente psíquico. Desse modo, ao mesmo tempo que

Reich integrava psique e soma, derivava estruturas dos traços de caráter que

eram percebidos no paciente. Na nossa concepção, este ponto de vista

estruturalista sedimenta a concepção de ser e suprime uma compreensão de

homem baseada na noção de devir.

Se as obras iniciais de Reich retratam uma grande preocupação

com a questão social, é bem verdade que se pode notar, a partir do seu trabalho

de vegetoterapia 4 , um privilégio do biológico sobre o psicológico e o social.

Dessa forma, a sua visão de corpo igualmente torna-se reduzida a esta

perspectiva. Assim, embora Reich nunca tenha abandonado a importância dos

aspectos sociais e psíquicos no ser humano, quer nos parecer que, sem dúvida,

elevou o corpo biológico a uma condição de preponderância sobre os demais

2
História da Loucura, 1961/1995.
4
enfoques. Entretanto, como nos diz Foucault 5 , o corpo é também político e é

produzido por redes de saber/poder.

São menos as redes de produção (Marx) e mais as redes de

poder/saber (Foucault 6 ) que nos auxiliam a investigar as diferentes condições

sociais que constituem a malha social. Ironicamente, Reich 7 contribuiu para

velar as distinções sociais quando caminhou na direção do resgate da “natureza”

no homem. No entanto, compartilhamos com Foucault 8 , o pensamento de que é

justamente a procura da verdade no/do corpo que faz desvelar as diferenças

sociais existentes, instrumentalizando possibilidades de transformações sociais.

Quando Reich 9 elaborou a crença de que há uma energia universal

primordial (orgone) que nos circunda e nos constitui, ele inseriu o princípio

energético como motivador principal no movimento das pessoas e das coisas,

lançando as bases de um novo paradigma e, ao mesmo tempo, produzindo os

fundamentos de uma nova ciência: a Orgonomia. O contraste entre o psicanalista

com grandes preocupações sociais e o orgonoterapeuta que lida com um oceano

de energia orgônica a nos envolver, é visível. Tornou-se inevitável a diminuição

do peso das questões sociais no seu pensamento em função da ótica energética.

Uma de nossas intenções com este trabalho é, portanto, contribuir

para o questionamento sobre as redes sociais que, com suas estratégias de

saber/poder, incidem na formação dos corpos. Outro objetivo é o de colaborar na

análise do esquadrinhamento dos corpos e dos mecanismos de controle e

sujeição, por exemplo, a nível da sexualidade. Finalmente, a partir do lugar que

ocupamos - terapeuta reichiano - desejamos cooperar para a atualização da noção

de corpo e, a partir dela, apontar direções para uma abordagem clínica que não

destitua a relevância dos fluxos sociais que a constituem.

3
Foucault, M. 1963/1994.
4
A Função do Orgasmo, 1942/1984.
5
Vigiar e Punir, 1975/1996.
6
Idem.
7
Op. cit., 1942/1984.
8
Microfísica do Poder, 1979/1990.
5

II - O Corpo: dialógica entre Reich e Foucault

No princípio a fala batia à porta, o psicanalista recebia o paciente

e indicava-lhe o caminho do divã. Neste, o paciente deitava-se e deixava a fala

fluir. O psicanalista, atento ao que era reportado, estava então sentado numa

confortável poltrona que ficava atrás do divã. Eventualmente, havia uma

transgressão no setting psicanalítico, mas o quadro estava lá a mostrar o modelo.

Neste enquadre, a fala era o paciente e o paciente era a fala. Ao corpo, só restava

deitar-se e deixar a psique manifestar-se através daquela. Eram assim mesmo,

corpo e fala, entidades cindidas. O corpo não se apropriava da fala e esta não era

apropriada pelo corpo. E deveria sê-lo? Discutiremos isto mais adiante.

Mas, e o lugar do psicanalista? Lá, onde o paciente não poderia

vê-lo - ou somente, quem sabe, de soslaio - encontrava-se alguém que

interpretava os conteúdos da fala, o “o quê” da fala. A manifestação desta

ocultava a verdade inconsciente. A decifração dos signos, a passagem do

significante ao significado marcava o rumo ao inconsciente. Este teria que ser

desvelado. Era o inconsciente “em si”, pois já existia, haveria de ser descoberto.

Tal era a tarefa do psicanalista. Além disso, este igualmente era a fala sem corpo.

Fala que interpretava, que não podia ser abalada por sensações corporais, afetos

abafados, valores morais e idéias sócio-políticas. O psicanalista era ícone de um

tempo em que o sujeito do conhecimento e o objeto a ser conhecido não se

imbricavam. A Psicanálise, assim, foi configurada para ganhar o aval científico,

respaldado na objetividade e no positivismo das ciências exatas e empíricas.

O quadro, desse modo, foi formatado. Paciente e psicanalista eram

falas e silêncios intervalares. Fala/Não-fala era o binômio advindo do paciente

sob o foco do psicanalista, mas também, era o instrumento de trabalho do último.

Havia a priorização da fala e da escuta em detrimento do olhar e de outras

9
La Biopatia del Cáncer, 1948/1985.
6
expressões corporais. O corpo, então, não existia. Não havia olhar para ele,

portanto, não existia. Contemplávamos o reinado da fala. Dessa forma,

psicanalista e paciente encontravam-se em um jogo de espelhos viabilizados pela

fala e escuta. Espelhos em que para se ver era preciso não olhar. Se

anteriormente, como observa Foucault 10 , era necessário o olhar sobre o louco

para compreendê-lo, agora esta atitude fora substituída pelo ver sem olhar. No

entanto, a separação sujeito-objeto continuava a existir. Era o tempo de Freud e

foi neste quadro que Reich se inseriu, assim como, foi esta conjunção de forças

que produziu o lugar que Reich passou a ocupar.

Esta configuração psicanalítica era formada por vozes que, se por

um lado eram progressistas - uma nova visão da sexualidade, mais

especificamente da sexualidade infantil -, por outro - politicamente -

continuavam a ser tradicionais e conservadoras. Reich 11 veio a integrar um

grupo minoritário de psicanalistas que eram marxistas. Dessa forma, ele

compartilhava de uma perspectiva na qual se tentava conciliar o materialismo

histórico-dialético com o método psicanalítico 12 . Alguns anos depois, Reich

deixará de ser marxista, mas a herança materialista terá longa duração no

decorrer de sua obra.

A ótica materialista de Reich o fazia comprometido com a busca

do que era tangível em ciência. Este passou a ser um marco diferencial

importante em relação aos outros psicanalistas. Embora Freud tenha mencionado

a importância da investigação das bases biológicas da psicanálise, foi Reich

quem rumou nesta direção. Foi exatamente esta ancoragem teórica que o fez

olhar para o corpo do paciente com outros olhos e produzir novos saberes a partir

do que era possível de ser tocado: o corpo.

10
Op. cit., 1961/1995.
11
A Revolução Sexual, 1945/1976.
12
Op. cit., 1929/1983.
7
Reich 13 passa então a perceber o corpo do paciente: sua forma de

agir, não só o que dizia, mas sobretudo, como dizia. Deslocava, desse modo, o

centro de interesse que passava a ser, em um primeiro momento, a forma e não o

conteúdo. Ele observava as tensões musculares do paciente, as dobras do corpo,

os detalhes, o riso, o choro, as contrações, as sutilezas dos gestos e as grandes

expressões. Não demorou muito para ele formular um princípio de

funcionamento holístico em relação ao corpo/mente. Por exemplo, a angústia

possuía uma manifestação psíquica que emergia como medo, assim como,

propiciava uma expressão somática de contração no peito. No entanto, o que era

importante é que tanto o medo quanto a dor no peito eram, no fundo, o mesmo

processo - a angústia. O olhar de Reich via este corpo como um todo, como um

organismo. Neste sentido, sua intervenção torna-se atenta não só à fala, mas

também ao corpo. Assim corpo e fala, antes separados, tornam-se um; e o ver

sem olhar é substituído, no trabalho reichiano, pelo olhar para ver.

Uma questão que se coloca a partir desse momento é: até que

ponto tal pensamento reichiano não estaria circunscrevendo a subjetividade

humana à materialidade corpórea? O texto “O Nascimento da Clínica” 14 , traz

algumas pistas que nos auxiliam no aprofundamento desta questão. Esta obra

retrata a transformação de uma medicina clássica - onde o olhar do médico era

para a doença - em uma medicina moderna ou anátomo-clínica - na qual o olhar

do médico é dirigido para o corpo do paciente. Um olhar mais desatento poderia

supor que a guinada de Reich na direção do corpo estaria em conformidade com

a medicina moderna. No entanto, a base do pensamento da medicina moderna é o

mecanicismo - o corpo e suas partes (órgãos) representados como uma máquina -

enquanto que o pensamento reichiano é funcional - o corpo como um todo em

constante movimento. No entanto, mesmo levando em consideração a

funcionalidade organísmica - soma e psique integrados - Reich não restringiria a

13
Análise do Caráter, 1933/s/d.
8
mente aos limites do corpo? Ao perceber a fala como integrada ao corpo, não

estaria ele aprisionando-a e conseqüentemente empobrecendo a psique humana?

Ou ainda, para ampliarmos o questionamento: este enfoque não privilegiaria a

estrutura em detrimento do devir?

Quando Reich propunha, para o início de toda a terapia, um

trabalho denominado análise do caráter, que focaria os traços de caráter, em

contraposição à associação livre de idéias formulada por Freud, fortalecia a idéia

de estrutura de caráter. Este recorte estrutural, que associa estruturas de

personalidade a fixações libidinais infantis, embora preservando um certo

pensamento funcional, é de uma base mecanicista e determinista facilmente

constatável. Assim, naquele momento, parecia que o olhar para o corpo trazia a

inevitável constituição de estruturas de um Mesmo 15 e a conseqüente destruição

de devir, do tornar-se diferente a cada momento, da pluralidade, do inesperado,

do acontecimento, do imprevisível.

As tensões que se evidenciam no corpo do paciente seriam

“trabalhadas” por Reich. Através da respiração, de actings (exercícios

expressivos) e manipulação direta das tensões musculares, ele tentava fazer com

que o paciente desbloqueasse as couraças, resgatando com isto o reflexo do

orgasmo, que ajudaria a regular a bioenergia. Reich 16 associava a análise do

caráter à restauração da funcionalidade organísmica ou à pulsação (carga-

descarga de energia) do sistema nervoso autônomo ou vegetativo. Desse modo,

este trabalho foi denominado análise caractero-vegetativa. No entanto, como

assinala Foucault, o corpo não é só biológico ou histórico, ele é também político:

“... as relações de poder têm alcance imediato

sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem,

14
Foucault, M. Op. cit., 1963/1994.
15
Esta noção é empregada no texto: Foucault, M. Op. cit., 1961/1995.
16
Op. cit., 1942/1984.
9
o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no

a cerimônias, exigem-lhe sinais.” 17

Cabe então aqui a indagação: como Reich abarcava o campo

político no seu trabalho? Se é um fato que Reich atuava diretamente com os

trabalhadores nas portas das fábricas; em palestras sobre socialismo, psicanálise

e sexualidade; na criação de clínicas sociais de psicanálise 18 ; assim como,

percebia a repressão e o autoritarismo do sistema sócio-político constituir um

sujeito susceptível aos apelos fascistas 19 ; por outro lado, mais tarde, no seu

trabalho clínico, de vegetoterapia, a busca de uma naturalidade corpórea reduzia

a relevância das redes de saber/poder - produtoras de subjetividades - à

biologização do corpo.

O discurso clínico reichiano de enaltecimento da funcionalidade e

de uma energia vital (bioenergia), naturalizava atravessamentos que, na verdade,

têm uma profunda relação com os múltiplos significados da palavra corpo. Esta,

por exemplo, se refere não somente ao corpo material, mas a inúmeros fluxos de

signos sociais, políticos, históricos que atravessam o corpo material 20 . Assim

sendo, o discurso clínico reichiano equalizava as diferenças, objetivava desvelar

o homem-animal que existe por trás das fachadas referentes a distintas posições

sociais hierárquicas. Esta cisão entre o seu, digamos assim, trabalho social -

visando a transformação social - e o seu trabalho clínico - redução a um “a

priori” natural - muitas vezes não é percebida em virtude de uma aparente

integração dos aspectos biopsicossociais na sua teoria.

Quando Reich propunha trabalhar o corpo objetivando o resgate

da funcionalidade do organismo humano, reprimida pelo autoritarismo e

conservadorismo sociais, ao mesmo tempo, por uma irônica contradição, ajudava

a ocultar as diferenças das condições sociais entre os homens, que são os

17
Op. cit., 1975/1996, p. 28.
18
Op. cit., 1945/1976.
19
Psicologia de Massas do Fascismo, 1934/1988.
20
Foucault, M. As Palavras e as Coisas, 1966/1995.
10
melhores instrumentos de questionamento e transformação sociais. Reich

acabava por privilegiar, na clínica, uma perspectiva reduzida às funções

energética (carga-descarga) e biológica (tensões musculares) com prejuízo de um

olhar sobre o corpo que, produto e produtor de uma rede de saberes/poderes, é:

sujeitado a horários, ao silêncio, à aplicação, à obediência, às ordens, às regras;

corrigido nas posturas, nos hábitos; disciplinado; moldado para ser dócil e útil;

caracterizado, escondendo sua singularidade; exercitado de forma repetitiva;

enfim, esquadrinhado.

Reich 21 viria a descobrir uma energia que não se restringiria aos

seres vivos (bioenergia), mas que acreditava ser a energia primordial do

universo, que permearia tudo e todos. Denominou-a energia orgone, daí

derivando o termo orgonoterapia para o seu trabalho clínico desse momento em

diante. A auto-regulação seria o objetivo fundamental da orgonoterapia. Reich

imaginava que para o homem ser basicamente feliz, a auto-regulação

organísmica deveria estar associada a uma sociedade democrática e auto-

regulada, onde o sistema sócio-político fosse a auto-gestão social 22 . Assim

surgia uma equivalência entre a auto-regulação do corpo e a auto-gestão social.

Quando Reich centrou mais a sua preocupação na circulação ou

fluidez da energia orgônica, fortaleceu uma continuidade e, ao mesmo tempo,

provocou uma ruptura. A primeira foi clarificada pelo desdobramento das noções

de libido em bioenergia e finalmente em orgone; a segunda fez-se presente numa

linha de fuga que, fazendo um corte com a Psicologia, a Biologia e a Sociologia,

constituiu uma nova ciência: a Orgonomia. Como estamos todos envoltos em um

oceano de energia orgônica e na medida em que esta energia primordial

constituiu a própria matéria 23 , o orgone passar a ser o interesse de fundo de toda

a investigação reichiana sobre o corpo material. Neste sentido, a Orgonomia

21
Op. cit., 1948/1985.
22
Op. cit., 1934/1988.
23
Reich, W. Ether, God and Devil and Cosmic Superimposition, 1951/1979.
11
torna possível outra leitura, além daquelas constituídas pelas ciências

supracitadas, no que se refere à compreensão do homem e sua relação com o

universo.

Em Foucault 24 poderíamos buscar material para fundamentarmos

uma outra abordagem sobre a noção de corpo. O autor investiga as construções

de saberes científicos. Neste sentido, apontaríamos na direção de um contraponto

às argumentações científica e orgonômica sobre o corpo, focando a rede de

saberes que atravessa o corpo material. Desse modo, estaríamos investigando

menos o campo energético, a psique, o soma e mais instâncias provocadoras

como as redes sociais, formuladoras de saberes. Na verdade, diante de tal

percurso, emergem questões como: Do que são constituídas estas redes sociais

que promovem os saberes sobre os corpos? Estes, por sua vez, também, não

constituem saberes? E, já avançando, como e com que intensidades os poderes

associados a estes saberes cruzam os corpos e são formulados por eles?

Somente a partir de Vigiar e Punir, Foucault disseca a questão do

poder. No entanto, a análise sobre esta matéria e sua relação com o corpo

evidenciam para nós a necessidade de uma discussão precedente sobre outro

tema correlato: a sexualidade. Esta é incitada nos corpos que são estimulados;

intensificam-se os prazeres, porém os mesmos estão à mercê das estratégias de

saber e poder. Para Foucault 25 , a exaltação dos corpos não deixa de ser um

mecanismo de controle, na medida em que o corpo produz e consome

sexualidade em conformidade às relações de poder/saber. A partir desse ponto,

surge uma diferença fundamental entre Reich e Foucault. De acordo com o

último, o trabalho sobre o corpo, em função da instauração do capitalismo, longe

de se configurar como uma repressão sexual (ponto de vista reichiano), é

marcado como uma forma de produção de sexualidades diversificadas.

24
Arqueologia do Saber, 1969/1995.
25
História da Sexualidade I: a vontade de saber, 1976/1988.
12
Entretanto, o esquadrinhamento dos corpos vem de longa data.

Na Grécia antiga, por exemplo, segundo Foucault 26 , havia uma preocupação com

a dietética, com o regime do corpo, ou seja, na evitação dos exageros, para

manter a harmonia corpo-alma. Este binômio, no entanto, guardava uma cisão: o

amor do corpo era geralmente desqualificado em relação ao amor da alma, mais

valorizado e tido como o amor verdadeiro. Tal forma utilitária de lidar com o

corpo era associada com o cuidado de si. O cuidado de si era o cuidado com a

alma.

De acordo com Foucault 27 , para os antigos gregos, a alma poderia

fazer com que o corpo fosse além de suas necessidades. Eram os efeitos das

imaginações, paixões, amores. Estes ultrapassavam a Fisiologia. Assim, a alma

deveria dominar os desejos que faziam desconhecer a sóbria lei do corpo. A alma

deveria corrigir-se para poder bem conduzir o corpo. Daí, propunham-se

“regimes” da alma e não proibições. Desse modo, havia o regime da atividade

sexual, como também, o da comida e o da bebida. Tentava-se controlar o desejo,

as imagens e o prazer. Mais tarde, ainda segundo Foucault, o cristianismo dará

continuidade direta ou indireta a estes regimes, mas com a ênfase na proibição,

ou seja, no cristianismo haverá a interdição do corpo pelo Estado.

A interdição aberta do corpo continuou até a ascensão do

capitalismo. Na verdade, este passou a utilizar mais mecanismos de controle

sobre o corpo do que propriamente proibições. Além disso, como já foi

mencionado anteriormente, o corpo tornou-se mais disciplinado e menos punido.

Da mesma forma, podemos compreender que houve menos supressão da

sexualidade e mais produção de sexualidades que interessavam às redes sociais.

Hoje, não importa ao capitalismo o corpo mutilado, mas o corpo docilizado,

sujeitado. Neste momento, chegamos à atualidade e é a partir da nossa

26
História da Sexualidade II: o uso dos prazeres, 1984/1994.
27
História da Sexualidade III: o cuidado de si, 1984/1985.
13
contemporaneidade que alguns pontos, até aqui referidos, devem merecer mais

atenção de nossa parte.

Uma das questões a serem levantadas é a de que Foucault

compreende que a partir do século XIX começa um sistema de controle e

vigilância sobre o corpo (“... ginástica, exercícios, desenvolvimento muscular,

nudez, exaltação do belo corpo...”) 28 porque na história da repressão, há um

momento em que se percebe ser mais eficaz e menos dispendioso vigiar e

disciplinar que punir. Entretanto há, em contrapartida, uma revolta do corpo,

uma ofensiva em busca do prazer, da intensificação dos desejos. Neste sentido,

nós podemos indagar se deve ser a fluidez da energia orgônica, contida nos

corpos, a resposta efetiva ao controle e à disciplina sobre os corpos - como na

proposta reichiana - ou se a libertação dos corpos, para fazer frente à

normatização, é proporcionada pela maior democratização do saberes/poderes,

como sugere Foucault, e a procura dos desejos inconscientes, como propõe a

psicanálise.

Um outro ponto a ser focado é que no entender de Foucault 29 , a

disciplina produz individualidades: o doente mental no hospício, a solitária na

prisão e o corpo sujeitado. Portanto, antes da questão ideológica (Marx) ou da

questão da repressão (Reich), é necessário questionar-se o corpo (materialidade

onde o poder é exercido) e a partir dele perceber as táticas e estratégias de poder

que o produzem. Neste caso o objeto primordial de estudo não constitui a psique,

o corpo, a produção econômica, a ideologia, porém a rede de relações sociais que

produz e é produzida por tais atravessamentos. Desse modo importa menos a

dominação ideológica do Estado e mais os aparelhos de saber - representantes

dos limites, das bordas do sistema e que guardam certa autonomia do Estado -

onde a materialidade privilegiada é o corpo.

28
Op. cit., 1979/1990, p. 146.
29
Op. cit., 1979/1990.
14
III - Conclusão

Se com Freud, fala e corpo eram separados; se com Reich, fala e

corpo reencontram-se em um corpo uno; com Foucault, é a partir desse corpo

que podemos questionar os seus atravessamentos, a malha de saber/poder, as

redes sociais que o constituem. Assim sendo, torna-se importante um trabalho

clínico/social que, a começar pela verbalização e pela expressão corporal do

sujeito - aqui visto como ator/autor cujo lugar e enunciação não foram

determinados basicamente por ele, mas por uma imbricação de forças sociais,

políticas, do imaginário popular e etc. - quer contribuir para a democratização

das relações de saber/poder, das redes sociais, enfim, das forças institucionais.

O terapeuta que ocupar este lugar estará implicado profundamente

não só com o seu objeto de trabalho imediato - o paciente - como, também, em

interrogar as redes sociais que criam o lugar deste paciente. Desse modo, não

será mais o inconsciente a ser desvelado, mas, como assinala Foucault 30 , o

segredo; não mais uma entidade concebida aprioristicamente, mas forças em

fluxo constante. Para vermos estes atravessamentos, haveremos de ultrapassar o

que o olho humano nos permite, mas ao mesmo tempo, partir do que ele nos

concede ver, ou seja, os diversos substratos materiais, e entre estes o corpo.

Uma das questões de fundo que emergem com uma abordagem

tipicamente reichiana é que, ao conceber o funcionamento organísmico

(vegetoterapia), Reich estaria privilegiando o corpo tangível e a estrutura, com

prejuízo para a liberdade que a concepção de devir possui. Por outro lado, a

Psicanálise, ao formular estruturas universais em relação ao inconsciente (por

exemplo, o Complexo de Édipo) naturaliza esta instância como um dado em si já

existente e com estruturas apriorísticas. Desse modo, ressaltamos a importância

30
Idem.
15
de um approach reichiano revigorado por questionamentos sócio-institucionais

como os que se seguem.

A noção de devir é básica como crítica a um inconsciente

cristalizado, apegado a estruturas universais, como o formulado por Freud. Aqui

a compreensão de inconsciente é aquela adotada por Guattari 31 : inconsciente

maquínico. Este não só está ligado à subjetividade humana, mas aos fluxos de

signos, materiais e sociais. É um inconsciente transversalizado por estas forças e

que está em constante processo de transformação. Por outro lado, possuímos, da

mesma forma, uma ótica crítica em relação à ortodoxia reichiana e à concepção

de ser humano aprisionada à estrutura organísmica ou à pré-determinação de

uma perspectiva energética que naturaliza o ser humano, reduzindo-o a uma

essência, a um núcleo, ao “eu-verdadeiro”, ao self; e desta forma, maquiando as

diferenças sociais e institucionais que devem ser, também, preocupação do

terapeuta.

A concepção essencialista (a busca da conexão com o cerne, o

núcleo do organismo) do trabalho clínico denominado orgonoterapia, a procura

de um equilíbrio dinâmico (auto-regulação) em decorrência dessa intervenção

terapêutica e o seu equivalente social (auto-gestão) tornam-se um campo fértil

para a problematização destas idéias. A formulação de uma energia universal

(orgone) que se constituiria na força determinante de movimentos básicos como

auto-regulação do organismo e fusão de campos orgonóticos, desloca o eixo da

preocupação da teoria reichiana. O cerne biológico e energético passam a ocupar

a primazia da transformação social. No entanto, Reich tenta recuperar este

último aspecto, formulando um princípio de equivalência entre a auto-regulação

organísmica e a autogestão social, estabelecendo que a autogestão seria uma

“decorrência natural” da auto-regulação.

31
Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo, 1977/1987.
16
A asseveração precedente é revestida de uma ingenuidade

impressionante. Parece-nos que há uma naturalização de processos sociais e uma

incompreensão de que a auto-gestão social é fruto, entre outras forças, de ações e

questionamentos sociais, políticos e institucionais mais amplos. Da mesma

forma, é reducionista o ponto de vista energético que elege o orgone como força

primordial constituinte dos corpos. Uma intervenção clínico-social que a partir

dos corpos - e aqui as investigações de Reich tornam-se fundamentais - leve em

consideração os desejos (recuperando um aspecto da abordagem psicanalítica) e

a rede de saberes/poderes (Foucault 32 ) que atravessam estes mesmos corpos

pode ser o elo que reconhecerá que a subjetividade é sempre coletiva. Assim,

reconduziremos as redes sociais a ocuparem um dos eixos fundamentais na

abordagem clínica.

São as redes sociais que esquadrinham os corpos, através, entre

outros instrumentos, do controle da sexualidade. Não mais repressões abertas são

utilizadas pelo Estado para combater a libertação sexual, porém os mecanismos

sutis de controle sobre o corpo. Agora ele é menos punido e mais disciplinado,

docilizado e sujeitado pelos diversos micro-poderes existentes. São, portanto, as

redes sociais que produzem saberes/poderes. Devem ser elas merecedoras de

nossa atenção enquanto terapeutas conscientes do lugar que ocupamos. E se

indagarmos de que ponto partiremos para investigá-las, a resposta vem

prontamente: do corpo.

Em lugar de buscar a Verdade, como na ciência objetiva e

positivista ou na ideologia, devemos procurar a(s) verdade(s) no/do corpo. Tal

não deve ser visto como um objeto ou sujeito em si, mas como ocupante de um

lugar aberto pela rede de poder/saber. Esta sim torna-se o principal objeto de

estudo. O saber eleva a importância da compreensão das relações de poder tão

bem analisadas por Foucault, que deu continuidade às preocupações de

32
Op. cit., 1975/1996.
17
Nietzsche, em contraposição aos interesses de Marx pelas relações de

produção. As relações de poder, segundo Foucault 33 não só reprimem (castigos),

mas constróem (adestramentos). Dessa forma o caminho, mais do que a luta

contra a repressão (rumo reichiano) é a guerra permanente focando as táticas e

técnicas de dominação, fora do edifício jurídico do Estado. É estudar o poder nos

extremos, nos canais do dia-a-dia, nas micro-relações, nas brechas e espaços

onde se pode tentar novas práticas, maior democratização das relações de poder

e auto-gestão.

Finalmente, quer nos parecer ser fundamental uma alternativa ao

trabalho clínico reichiano individual que diminui e fragmenta a organização

coletiva. Neste sentido, um trabalho reichiano em grupo respaldado em noções

reformuladas, revigoradas e referenciado por filósofos como Foucault e Deleuze,

pela escola francesa de Análise Institucional (Lourau, Lapassade e Guattari) e a

corrente brasileira de Análise Institucional (Conde, Benevides, Saidon,

Baremblitt, etc), permitirão inovações tanto na teoria quanto na técnica

desenvolvida por Wilhelm Reich. Em que pese sabermos que muitas questões

assinaladas neste trabalho necessitam ser aprofundadas, esperamos ter

contribuído para a problematização de temas como: materialismo e energia,

estrutura e devir, inconsciente e self, repressão e desejo, reducionismo e holismo,

natural e social, sexualidade liberta e ascetismo, psique e, principalmente, para

uma definição da noção de corpo, que constituído de devires e desejos está

sempre aberto a atravessamentos das redes sociais. É esta configuração que deve

merecer o foco de atenção por parte do terapeuta reichiano.

IV - Referências Bibliográficas

33
Op. cit., 1979/1990.
18
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro:

Forense Universitária, 1995.

__________________. As Palavras e as Coisas. São Paulo:Martins Fontes,1995.

__________________. História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 1995.

__________________. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de

Janeiro: Graal, 1988.

__________________. História da Sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de

Janeiro: Graal, 1994.

__________________. História da Sexualidade III: o cuidado de si. Rio de

Janeiro: Graal, 1985.

__________________. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1990.

__________________. O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 1994.

__________________. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1996.

GUATTARI, Felix. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. São

Paulo: Brasiliense, 1987.

REICH, Wilhelm. A Função do Orgasmo. São Paulo: Brasiliense, 1984.

______________. Análise do Caráter. Viseu: Tipografia Guerra, s/d.

______________. A Revolução Sexual. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.

______________. Ether, God and Devil and Cosmic Superimposition. New

York: Farrar, Strauss and Giroux, 1979.

______________. La Biopatia del Cáncer. Buenos Aires: Nueva Vision, 1985.

______________. Materialismo Dialético e Psicanálise. Lisboa: Presença, 1983.

______________. Psicologia de Massas do Fascismo. São Paulo: Martins

Fontes, 1988.

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