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Novo Código de Processo Penal

O problema dos sincretismos de sistemas (inquisitorial e


acusatório)

Lenio Luiz Streck

Sumário
1. Considerações propedêuticas. 2. O siste-
ma acusatório – uma necessidade. 2.1. Alguns
aspectos tópicos. 2.2. De como, na linha do que
acima foi exposto, até mesmo no plano formal o
Anteprojeto adotou apenas em parte o modelo
(sistema) acusatório. 3. À guisa de considerações
finais.

1. Considerações propedêuticas
Historicamente, confundimos a função
do direito penal com a função do processo
penal. Não raras vezes vemos brasileiros
das mais variadas classes – e estamentos1
sociais – bradarem contra a impunidade,
1
Refiro-me a estamentos a partir de Os Donos do
Poder, de Raimundo Faoro, que bem nos mostra que, em
determinadas circunstâncias, o Brasil é ainda pré-mo-
derno. Temos uma sociedade de estamentos, que “ficam
de fora” da classificação tradicional de classes sociais.
Nas palavras de Faoro (1995, p. 824): “sobre a socieda-
de, acima das classes, o aparelhamento político – uma
camada social, comunitária embora nem sempre articu-
lada, amorfa muitas vezes – impera, rege e governa, em
nome próprio, num círculo impermeável de comando.
Esta camada muda e se renova, mas não representa a
nação, senão que, forçada pela lei do tempo, substitui
moços por velhos, aptos por inaptos, num processo
que cunha e nobilita os recém-vindos, imprimindo-lhes
os seus valores”. Há, assim, brasileiros “diferentes”
de outros brasileiros, circunstância reconhecida pela
Lenio Luiz Streck é Doutor em Direito mais alta autoridade da nação recentemente, ao sugerir
(UFSC); Pós-Doutor em Direito (Universidade que o Ministério Público, antes de denunciar alguém,
de Lisboa); Professor do Programa de Pós-Gra- examine antes o seu curriculum. Veja-se essa questão
duação em Direito da UNISINOS; Procurador “estamental” na previsão, no Anteprojeto do CPP, da
de Justiça-RS. figura do “assistente de acusação”.

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colocando a culpa no “excesso de garan- passa os cem dias, em países como a Itália,
tias” proporcionado pelo Código de Pro- Portugal, Espanha e Alemanha esse prazo
cesso Penal, que, para quem não sabe, é da pode se estender até três anos). Claro que
década de 40 do século XX. há diferenças, como as condições da prisão
Pois bem: o problema da impunidade e a desigualdade no tratamento dos pobres.
estaria aonde? Na verdade, nem no Código Mas é inexorável que isso ocorra em uma
Penal, nem no Código de Processo Penal. sociedade ainda “estamental”.
A crise do sistema de combate à crimi- Mas, apesar dos avanços, o Código de
nalidade possui dimensões estruturais, Processo Penal sofre de um vício estrutu-
funcionais e individuais. Uma sociedade ral, que lhe acarreta um grave prejuízo na
complexa, na qual nem mesmo os direi- sua função: o de estar visceralmente refém do
tos formais-burgueses – provenientes da sistema inquisitivo. Isso se pode perceber no
primeira dimensão de direitos fundamen- modo como a denúncia é recebida – embora
tais – são respeitados, não pode colocar as as recentes alterações – e a produção/gestão
suas apostas na “boa” legislação. Como se da prova (o que inclui a apreciação do
sabe, as tentativas de “aprisionar” o direito “produto final”, por intermédio do “livre
no interior de conceitos – como se a razão convencimento do juiz”), para falar apenas
teórica pudesse ter uma vida autônoma, nestes dois aspectos.
separada de modo como lidamos com o No que tange especificamente ao proble-
mundo, nossas escolhas, etc. (razão prá- ma da gestão da prova é de se consignar que
tica) – fracassaram de forma retumbante. boa parte da doutrina brasileira se perde
Autoritarismos, duas grandes guerras e na definição dos modelos de apreciação da
ditaduras: esses foram o resultado da “pureza prova (quais sejam: o modelo da intima con-
do direito”. Conceitos sem mundo prático: vicção; o modelo da prova legal; e o modelo da
definitivamente, o positivismo fracassou. livre apreciação da prova), como se o problema
O direito não é um dicionário recheado estive apenas em optar por um deles, mas
de conceitos. Na verdade, pensá-lo como não em superá-los. Há certo consenso no
uma “lexicografia” é vê-lo tropeçar no pri- sentido de que o modelo da livre apreciação
meiro vendedor de picolés (vejamos: se um da prova seria “mais democrático” (sic) que
contrato exige objeto lícito, partes maiores e o modelo da prova legal, uma vez que, nes-
capazes, livre vontade, o que dizer da venda se último, o juiz e as partes ficariam reféns
de um picolé para uma criança de oito anos?; de uma hierarquia valorativa das prova
e o que dizer do direito penal, nas coisas estipulada pela própria lei – pelo legislador,
mais comezinhas ainda não resolvidas pelos portanto – enquanto que, no sistema do
juristas, como o furto de bagatela?). livre convencimento, há uma maior liber-
Peculiaridades e curiosidades à par- dade de conformação por parte do juiz que
te, construímos, especialmente a partir pode “adequar” (sic) a avaliação da prova
da CF/88, um conjunto de garantias às circunstâncias concretas do caso. Desse
processuais-penais que colocam o Brasil modo, vem à tona a conclusão – precipitada
na vanguarda da preservação dos direitos – de que o modelo da livre apreciação da
fundamentais. Com efeito, os prazos para prova seria aquele que se amoldaria melhor
o exercício da ação penal e da prisão caute- ao processo penal acusatório. Todavia, não
lar, a publicidade das decisões, a garantia deixa de ser instigante o fato de que seja
da não-culpabilidade – para falar apenas exatamente a livre apreciação da prova o
de alguns dos aspectos importantes – não argumento utilizado por inúmeras deci-
encontram similar em muitos países de sões para justificar a condenação com base
primeiro mundo (p.ex., enquanto no Brasil em provas colhidas durante o inquérito
o prazo para a prisão preventiva não ultra- policial. Ora, no contexto de um processo

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regido pelo sistema acusatório, é comezinho filosófico da palavra), um direito processual
que o conjunto probatório produzido na penal ainda autoritário. E, ao que parece, é
fase inquisitorial não tem força para gerar para isso que queremos reformá-lo. Vamos,
a condenação do acusado, visto que, nesta pois, a isso!
fase, não há nem efetivo contraditório e nem
uma efetiva fiscalização da produção das 2. O sistema acusatório
provas por parte do Estado-juiz. E isso não – uma necessidade
é assim simplesmente porque exista uma
determinação da legal que obrigue a isso, Discutir o “sistema acusatório” é discu-
mas sim porque a tradição que se estabelece tir paradigmas. Mais do que isso, é tratar de
em torno do sistema acusatório aponta para rupturas paradigmáticas. É preciso entender
esse sentido. Portanto, o problema da ges- que o “sistema inquisitório” está ligado
tão da prova deve ir além de uma simples umbilicalmente ao paradigma da subjetivi-
opção por um dos modelos citados acima. dade, isto é, do esquema sujeito-objeto.2 No
Aliás, ele deve ser pensado no contexto de sistema inquisitório, o sujeito é “senhor dos
um processo democraticamente gerido, o sentidos”. Ele “assujeita” as “coisas” (se, se
que implica pensar os limites daquele que figura quiser, “as provas”, o “andar do processo”,
como o titular o impulso oficial: o juiz. Pois não etc.). Isso exsurge, como já referido, da pro-
há democracia onde haja poder ilimitado. E dução da prova ex ofício e da prevalência de
isso é assim desde o primeiro constitucio- princípios (sic) como o do “livre convenci-
nalismo. Portanto, o problema da gestão da mento do juiz” e ou “livre apreciação da
prova é, também, um problema de teoria da 2
O esquema sujeito-objeto está relacionado ao pa-
decisão, problemática que será analisada/ radigma da filosofia da consciência. É esse “esquema”
ressaltada na sequência destas reflexões. que sustenta o sujeito de qualquer relação cognitiva.
Esse problema estrutural decorre de ou- É improvável ou extremamente difícil que o jurista/pesqui-
sador/operador possa vir a entender o imbróglio decorrente
tro problema paradigmático: o atrelamento do debate” “sistema inquisitivo-sistema acusatório” sem
da concepção de direito (ainda dominante) compreender esse “problema filosófico.” A cultura estan-
aos paradigmas aristotélico-tomista e da filo- dartizada que permeia o direito, embora já tenhamos
sofia da consciência. Assim, se, de um lado, avançado nesse campo, continua a olhar a filosofia
de soslaio, como se esta fosse um mero adereço ou
os juízes ainda acreditam na possibilidade adorno da ciência jurídica. Daí a minha insistência em
da busca da verdade real (sic) – como se exis- ancorar a presente discussão na evolução dos paradigmas
tissem essências (sim, existe ainda parcela filosóficos e a superação da filosofia da consciência pelo
considerável de juízes – doutrinadores, é giro linguístico-ontológico. Quem melhor explicou essa
problemática foi Heidegger, para quem, de Descartes
claro – que acredita nisso!); ao mesmo tem- à Husserl, o sujeito da subjetividade “imanente” é o
po, tomam para si a condução da prova no ponto comum que atravessa a metafísica moderna.
processo, como se a produção da prova pu- Esse sujeito é o Selbstsüchtiger (“solipsista”, que quer
desse ser gerida a partir de sua consciência dizer egoísta, que se basta, encapsulado). É ele que se
“encarrega” de fazer a “inquisição”. E a verdade será a
(atenção: consciência entendida no sentido que ele, o “sujeito”, estabelecerá a partir de sua consciência.
do paradigma da filosofia da consciência). Essa consciência é a “consciência de si”. O “eu mesmo”
Ora, por detrás desse “vício de origem” está é dado de modo imediato. É como se o sujeito (desse
a velha discricionariedade, que, não por “esquema” S-O) possuísse “representações exatas” da
realidade. O “inquisidor”, com o seu “estar certo” (ter
acaso, é o que sustenta outro inimigo do direito a representação “exata”) dispensa a pergunta pelo sentido.
democrático: o positivismo jurídico. Daí a pergunta: por que é tão difícil relacionar o que
Adicione-se ao sistema inquisitório uma foi dito com as mazelas que decorrem do inquisito-
boa dose de discricionariedade – fruto do rialismo? Antes de mais nada, sugiro, para começar
a discussão, que desconfiemos da frase “eu julgo
sujeito solipsista da modernidade – e tere- conforme a minha consciência”. Não há democracia e
mos, apesar da Constituição democrática e igualdade no âmbito de qualquer inquisição. Trata-se
dos avanços ad hoc (“regionais”, no sentido de uma impossibilidade filosófica-paradigmática.

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prova”. Daí a pergunta: por que, depois de mos o “livre convencimento”, retornaremos
uma intensa luta pela democracia e pelos ao inquisitorialismo.
direitos fundamentais, enfim, pela inclusão Portanto, trata-se de delinear qual é
nos textos legais-constitucionais das con- o papel do juiz. De se notar: a questão
quistas civilizatórias, continuamos a delegar paradigmática à qual me refiro aparece a
ao juiz a apreciação discricionária nos casos todo momento e, para isso, trago à colação
de regras (textos legais) que contenham decisão do Supremo Tribunal Federal –
vaguezas e ambiguidades e nas hipóteses veja-se o aspecto simbólico de uma decisão
dos assim denominados hard cases?3 Volta- desse jaez – que, por uma de suas Turmas,
se, sempre, ao lugar do começo: o problema por maioria de votos, indeferiu habeas
da democracia e da (necessária) limitação do corpus (no. 93.157, de 23.09.2008) em que
poder. Discricionariedades, arbitrariedades, se alegava falta de demonstração da ur-
inquisitorialidades, positivismo jurídico: gência na produção antecipada de prova
tudo está entrelaçado. testemunhal de acusação, decretada nos
Consequentemente, é possível afirmar termos do art. 366 do Código de Processo
que o sistema acusatório é o modo pelo Penal, ante a revelia do paciente/réu. O
qual a aplicação igualitária do direito penal STF deixou assentado que a determinação de
penetra no direito processual-penal. É a porta produção antecipada de prova está ao alvedrio
de entrada da democracia. É o modo pelo do juiz, que pode ordenar a sua realização se
qual se garante que não existe um “dono considerar existentes condições urgentes para
da prova”; é o modo pelo qual se tem a que isso ocorra. Observe-se a imbricação
garantia de que o Estado cuida de modo entre o sistema inquisitório e a filosofia da
igualitário da aplicação da lei; enfim, é o consciência (questão paradigmática, pois):
locus onde o poder persecutório do Estado a determinação de produção antecipada
é exercido de um modo, democraticamente, de prova fica a critério (discricionariedade,
limitado e equalizado. No fundo, é possível livre apreciação, para dizer o menos) do
dizer que o sistema acusatório é a recepção juiz. O Min. Lewandowski votou vencido,
do paradigma que proporcionou a grande concedendo a ordem, porque vislumbrou
revolução no campo da filosofia: o giro ofensa ao dever de fundamentar as decisões
linguístico-ontológico, pelo qual os sentidos judiciais e às garantias do contraditório e
não mais se dão pela consciência do sujeito da ampla defesa, uma vez que a decisão
e, sim, pela intersubjetividade, que ocorre que determinou a produção de prova
na linguagem. Sendo mais simples: trata-se esteve “fundamentada” tão-somente no
do fenômeno da invasão da filosofia pela fato de o paciente não ter sido localizado
linguagem. Em outras palavras: o sistema (nas palavras do Ministro, “a decisão fora
acusatório somente assume relevância pa- determinada de modo automático”).
radigmática nesse contexto. Se nele colocar- Apenas o voto vencido está fundado no
sistema acusatório. Os votos vencedores
3
Aqui me permito remeter o leitor ao meu Verdade apenas fortalecem o protagonismo judicial,
e Consenso, em especial a 3a Edição (Lúmen Júris, 2009), apostando na “boa escolha” – discricionária
em que deixo claro que a cisão entre casos fáceis (easy
– do magistrado. Como contraponto, penso
cases) e casos difíceis (hard cases) é uma arrematada
ficção! Do mesmo modo, não existem regras “claras”. que, quando a lei estabelece que o juiz pode
Uma regra só é clara quando nos colocamos de acordo determinar a produção antecipada das provas
com o seu sentido. Quando alguém discorda, já não consideradas urgentes,4 sua decisão deverá
é mais “tão clara assim”. Também deixo delineadas
minhas críticas à distinção estrutural entre regras e 4
Registre-se, aliás, que o Anteprojeto pratica-
princípios. Princípios não “abrem” a interpretação, ao mente reproduz o atual art. 366 (provas consideradas
contrário do que se diz no senso comum. Na verdade, urgentes). Portanto, de nada adiantará um novo CPP se o
princípios “fecham” a interpretação. juízo sobre a “urgência” fica ao “alvedrio do juiz”. Veja-se,

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estar fundamentada/justificada com todos to com base nas provas submetidas ao con-
os detalhes, além de passar pelo crivo do traditório. Ou seja, o projeto passou longe
contraditório e da ampla defesa, como bem das mudanças paradigmáticas no campo da
frisou o voto vencido. Além disso, a urgên- filosofia, já de certo modo abordadas anterior-
cia deve ser considerada levando em conta mente. Explicando um pouco mais: quando
toda a história institucional das decisões an- se fala da formação do convencimento do
teriores que tratam dessa temática, respei- juiz, está-se a tratar de uma questão filosófica,
tando a coerência e a integridade. “Provas representada pela discussão acerca das condições
consideradas urgentes” não é um enunciado de possibilidade que o juiz/intérprete possui para
assertórico. A “proposição jurídica” só terá decidir. Trata-se da questão fulcral no campo
sentido em cada caso concreto. A aplicação da teoria do direito: a teoria da validade e
automática do dispositivo (tabula rasa) abre de como se decide. Em outras palavras: livre
espaço para a decisão que o juiz julgar mais convencimento quer dizer o quê?
conveniente. E isso é reforçar o “subjetivis- Validade foi, sem dúvida nenhuma, a
mo/discricionarismo” dos juízes.5 expressão de ordem das teorias do direito
Fica claro que um processo penal demo- surgidas na primeira metade do século
crático depende de uma ampla intersubjeti- XX. Através deste termo se queria apontar
vidade; depende da perspectiva acusatória para as possibilidades de determinação da
e não inquisitória; depende do respeito verdade de uma proposição produzida no
ao contraditório, tudo a partir de uma âmbito do direito. Ou seja, no contexto das
fundamentação/justificação detalhada ao teorias do direito que emergiram nesta épo-
nível daquilo que venho denominando de ca, a preocupação estava em determinar as
accountability processual. condições de possibilidade para a formação
de uma ciência jurídica. Assim, entendo que,
2.1. Alguns aspectos tópicos para se pensar em uma ciência jurídica,
Nessa linha, é relevante que se examine primeiro é preciso estar de posse de um
alguns pontos do Anteprojeto de Reforma contexto de significados que nos permitam
do Código de Processo Penal que tramita no dizer a conexão interna que existe entre
Congresso Nacional, fruto de intenso traba- verdade e validade.
lho da Comissão nomeada para esse fim: Para o positivismo de matriz kelsenia-
na, o vínculo entre verdade e validade se
2.1.1. A formação da prova e o “livre dava da seguinte maneira: a validade é
convencimento” – um claro resquício (ou atributo das normas jurídicas, enquanto
aposta) na discricionariedade positivista. prescrições objetivas da conduta; ao passo
que a verdade é uma qualidade própria das
O art. 165 do anteprojeto estabelece que o
proposições jurídicas que, na sistemática da
juiz formará livremente o seu convencimen-
Teoria Pura do Direito, descrevem – a partir
aqui, a relação entre o “novo” texto e o “velho” texto
de um discurso lógico – as normas jurídi-
e de como o novo poderá se tornar velho a partir de cas. Ou seja, novamente estamos diante da
uma interpretação que coloque o solipsismo judicial principal operação epistemológica operada
no topo da condição de sentido. por Kelsen, que é a cisão entre Direito e
5
Lembremos, por relevante, que a fundamenta-
ção/justificação/motivação das decisões é um direito
Ciência Jurídica. O Direito é um conjunto
fundamental do cidadão (aliás, assim considerado pelo sistemático de normas jurídicas válidas;
TEDH; Sentenças de 9.12.1994 TEDH 1994, 4, Ruiz To- enquanto a Ciência Jurídica é um sistema de
rija e Hiro Balani-ES, parágrafos 27 e 29; de 19.02.1998 proposições verdadeiras (KELSEN, 1985, p.
TEDH 1998,3, Higgins e outros - Fr, parágrafo 42; e de
21.01.99 TEDH 1999,1, Garcia Ruiz-ES. No mesmo sen-
78 e ss.). Disso decorre o óbvio: normas jurí-
tido, ressalte-se a posição do Tribunal Constitucional da dicas ou são válidas ou inválidas; proposições
Espanha (sentença 20/2003, de 10 de fevereiro) jurídicas são verdadeiras ou falsas.

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A aferição da validade é feita a partir verdadeira, por consequência, determinará
da estrutura supra-infra-ordenada que dá qual norma será igualmente válida.
suporte para o escalonamento das normas Já no chamado “positivismo moderado”
jurídicas. Desse modo, uma norma jurídica de Herbert Hart, algumas diferenças são
só será válida se puder ser subsumida a notadas. No que tange ao predomínio da
outra – de nível superior – que lhe ofereça determinação da validade com critério ab-
um fundamento de validade. Assim, a soluto para determinação de fundamento
sentença do juiz é valida quando pode ser do direito, não há grandes dessemelhanças.
subsumida a uma lei – em sentido lato –; e Porém, é na forma como Hart formula o
a lei é válida porque pode ser subsumida à fundamento do ordenamento jurídico que
Constituição. Já a validade da Constituição as divergências entre o seu modelo teórico
advém da chamada norma hipotética funda- e aquele fornecido por Kelsen aparecem
mental que, por sua vez, deve ter sua vali- com maior evidência. Com efeito, vimos
dade pressuposta. Assim, Kelsen oferece a que Kelsen resolve o problema do regresso
tautologia como forma de rompimento com ao infinito de seu procedimento dedutivista
esta cadeia de fundamentação: a norma para determinação da validade com uma
fundamental hipotética é porque é, por isso tautológica norma hipotética fundamental.
se diz que sua validade é pressuposta.6 Ou seja, ele se mantém no nível puramente
Ocorre que a relação de validade – que abstrato da cadeia de validade de seu sis-
autoriza a aplicação da norma, fundamen- tema e resolve o problema do fundamento
tando-a – não comporta uma análise lógica neste mesmo nível, a partir de uma opera-
na qual a pergunta seria por sua verdade ou ção lógica.
falsidade. Como afirma Kelsen (1985, p. 83 e Já Hart usará outro expediente para
ss.): “as normas jurídicas como prescrições, resolver o problema do fundamento. Na
isto é, enquanto comandos, permissões, sua descrição do ordenamento jurídico,
atribuições de competência, não podem ser identificará a existência de dois tipos dis-
verdadeiras nem falsas” porque elas são váli- tintos de regras (normas): as primárias e as
das ou invalidas – acrescentei. Desse modo, secundárias. As chamadas regras primárias
indaga: como é que princípios lógicos como são aquelas que determinam direitos e
a da não-contradição e as regras de conclu- obrigações para uma determinada comu-
dência do raciocínio, podem ser aplicados à nidade política. Tais regras seriam aquelas
relação entre normas? A resposta de Kelsen que estabelecem o direito de propriedade,
(1985, p. 82) é a seguinte: “os princípios lógi- de liberdade, etc. Já as regras secundárias
cos podem ser, se não direta, indiretamente são aquelas que autorizam a criação de
aplicados às normas jurídicas, na medida regras primárias. Neste caso, uma regra
em que podem ser aplicados às proposições que estipule como deverão ser feitos os
jurídicas que descrevem estas normas e testamentos é um exemplo de uma regra
que, por sua vez, podem ser verdadeiras secundária e todas as regras que criem ór-
ou falsas”. É dessa maneira que Kelsen gãos, estabeleçam competências ou fixem
liga verdade e validade, pois, no momento determinados conteúdos que deverão ser
em que as proposições que descrevem as regulados concretamente pelas autoridades
normas jurídicas se mostrarem contraditó- jurídicas também são consideradas regras
rias, também as normas descritas o serão secundárias. Portanto, o que determina a
e a determinação de qual proposição é a validade do direito em Hart é a compatibi-
lização – dedutivista, evidentemente – das
6
Para uma crítica pormenorizada ao problema
regras que determinam obrigações (pri-
do fundamento e a Grundnorm kelseniana, consultar
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Herme- márias) com as regras secundárias (HART,
nêutica. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. 1996, p. 89 e ss.).

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Hart afirma que em sociedades menos recorte na totalidade do ente que tais teo-
complexas – sendo que por sociedades me- rias efetuam para caracterizar o estudo do
nos complexas devem ser entendidas todas fenômeno jurídico. Dito de outro modo, o
aquelas que antecedem a modernidade –, modelo excessivamente teórico (predomí-
não existiam regras secundárias desenvol- nio da “razão teórica”) de abordagem gera
vidas com a sofisticação que encontramos uma espécie de asfixia da realidade, do mun-
em nosso contexto atual. Neste caso, estas do prático. Ou seja, o contexto prático das
sociedades primitivas baseavam suas re- relações humanas concretas, de onde brota
gras de obrigação apenas em critérios de o direito, não aparece no campo de análise das
aceitação. Como afirma Dworkin (2002, p. teorias positivistas. Isso gera problema de di-
32, grifo nosso), “uma prática contém a acei- versos matizes. O fato de que nenhuma das
tação de uma regra somente quando os que duas teorias consegue resolver o problema
seguem essa prática reconhecem a regra da eficácia do sistema pode ser elencado
como sendo obrigatória e como uma razão com um destes problemas.
para criticar o comportamento daqueles que Para mim, entretanto, o principal pro-
não a obedecem”. Nos modernos sistemas blema aparece quando se procura determi-
jurídicos, toda fundamentação do direito nar como ocorre e dentro de quais limites deve
depende da articulação do conceito de vali- ocorrer a decisão judicial. O juiz decide por
dade. No entanto, há uma única regra – que “livre convencimento”? Mas, o que é isto
Dworkin chama de “regra secundária fun- “o livre convencimento”? A decisão não
damental” – que rompe com a necessidade pode ser, como critica Taruffo no campo
de demonstração da validade e se baseia em processual, “o produto de um conjunto de
critérios de aceitação para determinação imperscrutáveis valorações subjetivas, sub-
de seu fundamento: trata-se da chamada traídas de qualquer critério reconhecível
regra de reconhecimento. Em síntese: a regra ou controle intersubjetivo” (COMOGLIO,
de reconhecimento está para Hart assim FERRI; TARUFFO, 1995, p. 623). Daí a
como a norma hipotética fundamental está minha indagação: de que adianta afirmar
para Kelsen. Só que, ao contrário de Kelsen, um novo modo de “gestão da prova” se
para Hart (1996, p. 121), “sua existência (da o sentido a ser definido sobre o “produto
regra de reconhecimento – acrescentei) é final” dessa “gestão probatória” permanece
uma questão de facto”. a cargo de um “inquisidor de segundo grau”
Mas o que há de errado com os projetos que possui “livre convencimento”?
positivistas de ciência jurídica? Com Hei- Ora, é por essas razões que não creio
degger, podemos dizer que esse conceito que o velho (e atual) CPP e o Anteprojeto
corrente de ciência (como um universo do que deverá ser o “novo” CPP tenham
teórico de proposições válidas-verdadei- passado perto dessa discussão filosófica. Ao
ras) esconde um modo mais originário fazermos uma análise do problema “de
do fenômeno da verdade. Isso porque a como decidir” à luz da filosofia da lingua-
verdade deve ser percebida já em meio à gem, ficará evidente que as teorias que
lida com o mundo prático e não reduzida apostam na vontade do intérprete (e esse é,
ao universo teorético das ciências. Afinal, efetivamente, “o problema” do “livre con-
a própria verdade “teórica” das ciências é vencimento”) acabam gerando/possibilitando
produto da interpretação projetada pela discricionariedades e arbitrariedades.
compreensão. Dito de outro modo: qualquer teoria
Portanto, há algo anterior à verdade da que aponte para essa “delegação” em favor
ciência que, de certa forma, lhe é condição de do intérprete (no caso, o julgador) sofre de
possibilidade. No caso do direito, o equívoco um letal déficit democrático. E aí não adianta
dos projetos positivistas está no próprio “estar” no sistema inquisitivo ou no acu-

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satório. Neste caso, tanto faz, porque, com se cinde conhecimento, interpretação e
essa “delegação”, qualquer distinção entre aplicação). Se interpretar é explicitar o que
os dois modelos desaparece. Veja-se, pois, compreendemos, a pergunta que se faz é:
a gravidade disso. É por isso que a questão essa explicitação seria o locus da validade?
é paradigmática. Ademais, pergunto: como Fosse verdadeira essa assertiva, estaríamos
justificar, legitimamente, uma decisão to- diante de outro problema: o que fazer com
mada pelo poder judiciário? Com métodos? a quaestio facti?
Com fórmulas? Fazendo “ponderações”?7 Numa palavra: a questão da validade
Isso as teorias positivistas (em especial, as reside na circunstância de que não pode-
analítico-semânticas) não respondem. E mos simplesmente confundir essa validade
nem poderiam responder, uma vez que essa com uma espécie de imposição ontológica
dimensão dos acontecimentos fica fora de (no sentido clássico) nas questões com que
seu campo de análises. se ocupam determinados campos do conhe-
Dizendo de outro modo – e venho insis- cimento cientifico. Também não podemos
tindo nesse ponto – essa problemática da mais pensar a validade como uma cadeia
“validade da explicitação da compreensão” causal sucessiva que tornaria verdadeiro
(portanto, da validade da interpretação e, um determinado conjunto de proposições
portanto, da decisão) deve ser analisada jurídicas. A validade é o resultado de deter-
a partir da destruição do método que é minados processos de argumentação em que se
proporcionada por Gadamer. Com efeito, confrontam razões e se reconhece a autoridade
não há nisso um déficit de metodologia ou de um argumento.
de racionalidade. Essa ruptura não signifi- E que fique bem claro que o reconhe-
cou um ingresso na irracionalidade ou no cimento da autoridade de um argumento
relativismo filosófico. Muito pelo contrário! não está ligado a uma imposição arbitrária
Assim como a integridade está para a teoria (lembremos novamente do “livre conven-
dworkiniana, a hermenêutica está fundada cimento”). Pelo contrário, a hermenêutica
na autoridade da tradição, que pode ser au- é incompatível com qualquer tipo de arbi-
têntica e inautêntica, além da importância trariedade (ou relativismo). Como afirma
do texto (que, em Gadamer, é um evento, Gadamer (1999, p. 420) – ao proceder a
como já demonstrei em Verdade e Consen- reabilitação da autoridade da tradição: “o
so). Gadamer deixa claro que a ausência reconhecimento da autoridade está sempre
do método não significa que se possa atribuir ligado à ideia de que o que a autoridade
sentidos arbitrários aos textos. Na medida diz não é uma arbitrariedade irracional,
em que a interpretação sempre se dá em mas algo que pode ser inspecionado prin-
um caso concreto, não apenas fica nítida a cipalmente. É nisso que consiste a essência
impossibilidade de cisão entre quaestio facti da autoridade que exige o educador, o
e quaestio juris. A hermenêutica não trata superior, o especialista”. Em consequência,
apenas da faticidade; ela não apenas explica devemos primeiro compreender o proble-
como se dá o sentido ou as condições pelas ma da validade como uma questão que
quais compreendemos. Na verdade, por pode ser amplamente desenvolvida pela
ela estar calcada na circularidade herme- ciência e pela lógica. Mas não há duvida de
nêutica, fato e direito se conjuminam em uma que aqui também reaparece um certo tipo
síntese, que somente ocorre, concretamente, de pressuposto que está sempre presente
na applicatio (lembremos sempre que não para produzir o campo comum de interação
próprio para troca de argumentos.
Despiciendo lembrar e isso já venho fazendo
7

de há muito, em especial em Verdade e Consenso


É preciso entender que a herme-
a umbilical ligação da ponderação alexyana com a nêutica (filosófica) – e Dworkin segue essa
discricionariedade. mesma reflexão – (re)valoriza a dimensão

124 Revista de Informação Legislativa


prática da retórica oferecendo a possibilida- dagem” contra discricionarismos é uma
de de instauração de um ambiente no qual defesa candente da democracia, uma vez
os problemas da realidade são resolvidos que Dworkin está firmemente convencido
concretamente, no interior desta mesma – e acertadamente – que não tem sentido,
realidade, e não numa instância superior, em um Estado Democrático, que os juízes
de cunho ideal que, posteriormente, passa tenham discricionariedade para decidir os
a ser aplicada por mimetismo à realidade. “hard cases”.
Note-se, por exemplo, que as críticas de que Mas isso é assim – filosoficamente8
existe um excesso de abstração na teoria – porque Dworkin compreendeu devida-
de Dworkin apresentam um equívoco de mente o problema do esquema sujeito-
base: a orientação filosófica de Dworkin objeto, questão que, entretanto, não está
vai em direção a uma análise pragmática devidamente esclarecida e compreendida
da realidade. Tal acusação poderia ser pela teoria do direito. Exatamente por
feita às teorias argumentativas e epistemo- superar o esquema sujeito-objeto é que
procedurais, mas não a Dworkin ou à her- Dworkin não transforma o seu “juiz Hércu-
menêutica filosófica. les” em um juiz solipsista e tampouco em
Em defesa de Dworkin – circunstância alguém preocupado apenas em elaborar
que pode ser estendida à hermenêutica filo- discursos prévios, despreocupados com a
sófica – é preciso lembrar que, enquanto um aplicação (decisão). Hércules é uma metá-
procedimentalista como Habermas deso- fora, demonstrando as possibilidades de
nera os juízes da elaboração dos discursos se controlar o sujeito da relação de objeto,
de fundamentação (Begründungsdiskurs) – isto é, com Hércules se quer dizer que não é
porque desacredita na possibilidade de os necessário, para superar o sujeito solipsista
juízes poderem se livrar da razão prática da modernidade, substituí-lo por um siste-
(eivada de solipsismo) – ele (Dworkin) ma ou por uma estrutura (v.g., como fazem
ataca esse problema a partir da responsabili- Luhmann e Habermas). Insista-se: a teoria
dade política de cada juiz/intérprete/aplicador, dworkiniana, assim como a hermenêutica,
obrigando-o (has a duty to) a obedecer à por serem teorias preocupadas fundamen-
integridade do direito, evitando que as talmente com a applicatio, não desoneram
decisões se baseiem em raciocínios ad hoc o aplicador (juiz) dos Begründungsdiskurs
(teleológicos, morais ou de política). Já aí se
está diante de uma verdadeira blindagem 8
Permito-me insistir na tese de que o direito é um
fenômeno complexo e que não pode ficar blindado/
contra “livres convencimentos”.
imune às transformações ocorridas no campo da filoso-
Insista-se: quando Dworkin diz que o fia. Lamentavelmente, há setores da dogmática jurídica
juiz deve decidir lançando mão de argu- que teimam em “simplificar” o fenômeno jurídico,
mentos de princípio e não de política, não é buscando transformar a doutrina em um conjunto
porque esses princípios sejam ou estejam de prêt-à-porters e frases com pretensões assertóricas
(pergunte-se a um filósofo se é possível escrever sobre
elaborados previamente, à disposição da Aristóteles, Kant ou Heidegger de “forma descompli-
“comunidade jurídica” como enunciados cada” ou “simplificada”...; pergunte-se a um cirurgião
assertóricos ou categorias (significantes se é possível fazer um manual “descomplicado” acerca
primordiais-fundantes). Na verdade, de como se faz uma operação cardíaca ou de transplan-
te...; mas parece que o direito se transformou no locus
quando sustenta essa necessidade, apenas privilegiado das simplificações, como se o jurista não
aponta para os limites que devem haver no estivesse inserido em um “modo de ser-no-mundo”,
ato de aplicação judicial (por isso, ao direito enfim, em um mundo que existe a partir de paradigmas
não importa as convicções pessoais/morais de conhecimento). Entendo até mesmo que devemos
superar a tese da existência da “filosofia do direito”; na
do juiz acerca da política, sociedade, espor- verdade, a filosofia não é lógica e tampouco uma capa
tes, etc.; ele deve decidir por princípios). de sentido: é condição de possibilidade e, por isso, a
É preciso compreender que essa “blin- necessidade de se pensar a “filosofia no direito”.

Brasília a. 46 n. 183 julho./set. 2009 125


(discursos de fundamentação). E isso faz terem conhecimento das razões pelas quais
a diferença. o Tribunal mudou seu entendimento acerca
Portanto, o projeto do novo CPP deveria de determinado texto jurídico. Eis a co-
se preocupar sobremodo com a teoria da decisão, originariedade/complementariedade entre
exigindo explicitamente o respeito à coerência a noção de princípio e a concreta realização
e à integridade das decisões, para evitar que o da normatividade jurídica. Transporte-se
“livre convencimento” se transforme em “alve- essa questão para os casos de apreciação/
drio do juiz”, como, aliás, equivocadamente julgamento/definição das provas apre-
entendeu o STF quando da decisão do HC sentadas em uma ação penal e veremos as
no. 93.157, antes delineado. consequências...!
Permito-me insistir: enquanto (na Dito de outro modo: é impossível falar
qualidade de) princípios garantidores da em “sistema acusatório” se o próprio Có-
igualdade e da equanimidade da applica- digo estabelece o “livre convencimento”.
tio, a coerência e a integridade (que, não Ou isso, ou devemos esquecer a filosofia
esqueçamos, aplicam-se também à legis- como condição de nossa própria possibili-
lação) estabelecem um padrão do que devamos dade de existir e agir no mundo. Mas, com
entender por decisão adequada, a partir da isso, estaríamos “matando” os grandes
doutrina e da jurisprudência. Caso jurídico, pensadores que construíram as condições
caso concreto, decisão, validade: tudo isso de compreensão do mundo: De Platão à
está umbilicalmente ligado e dependente da Wittgenstein. E não parece que o direito e
integridade e da coerência, que se constituem os juristas queiram ser acusados também
na condição de possibilidade do significado da desse delito.
jurisprudência e da doutrina em um Estado De-
mocrático. Decidir adequadamente é tarefa 2.1.2. A indevida previsão e a falta de
da jurisdictio; apontar o modo adequado de delimitação dos “embargos declaratórios”
decidir é tarefa da doutrina. Não há juris- Esse problema é antigo e não poderia
prudência sem doutrina e a doutrina tem a voltar acobertado pelo manto do novo
tarefa de censura significativa das decisões Código de Processo Penal, nem em ple-
(podemos chamar a essa tarefa também de no Estado Democrático de Direito e do
“constrangimento epistemológico”). comando constitucional da igualdade, do
Jurisprudência não significa simples- contraditório e da fundamentação (este
mente um conjunto de casos julgados. compreendido como direito fundamental).
Um caso isolado, que tenha “quebrado” Efetivamente, os embargos declaratórios
a sequência de decisões e que não tenha não se coadunam com a Constituição. Com
sido seguido provavelmente terá sido fruto efeito, a Constituição estabelece que todas
de decisão arbitrária; do mesmo modo, a as decisões devem ser fundamentadas/
quebra sequencial, sem fundamentação, justificadas. Há, portanto, um dever fun-
apenas com o dizer “neste caso não sigo a damental de motivar/explicitar a decisão.
jurisprudência” tem validade hermenêutica O órgão decisor deve, pois, amplas expli-
“zero”. Somente uma apurada justificação/ cações à sociedade. É o que se pode chamar
fundamentação permite que se rompa a cadeia de accountability processual-argumentativa.
que forma a integridade do direito. A sanção Consequentemente, uma sentença ou acór-
para tal tipo de decisão é a nulidade, forte dão omisso, dúbio, incompleto, obscuro ou
no art. 93, IX, da CF. E, na hipótese de contraditório é, antes de tudo, nulo, írrito,
aquele julgado ser seguido por outros, nenhum.
estes devem estar igualmente fundamen- Transporte-se essa problemática para
tados à saciedade, uma vez que é direito a previsão do projeto do CPP – seguindo
fundamental dos participantes do processo o que o “velho” já diz – dos embargos de-

126 Revista de Informação Legislativa


claratórios. Veja-se o art. 482, I, pelo qual de embargos, tudo em face de um senso
“cabem embargos declaratórios quando comum que se forjou no âmbito da dogmá-
houver, na decisão, obscuridade ou contradi- tica jurídica. Observe-se que uma decisão
ção”. Ora, se uma sentença deve sempre pode estar aparentemente fundamentada
ser detalhadamente fundamentada/jus- com um verbete; entretanto, se o verbete
tificada/motivada (art. 93, IX da CF), de jurisprudencial não estiver contextualiza-
que forma podemos admitir que contenha do, a decisão sofre(rá) da mácula consti-
obscuridades ou contradições (para ficar ape- tucional. Os embargos declaratórios são
nas nestes defeitos) sem ser declarada nula? O transformados, desse modo, em um álibi
projeto implicitamente continua a admitir – para salvar decisões nulas. Além disso, ferem
por certo em face do “livre convencimento” o princípio do contraditório e da igualdade,
– que possam existir decisões desse jaez. circunstância que assume maior gravidade
Os embargos de declaração represen- se examinarmos a previsão do parágrafo
tam, assim, no plano simbólico, a admissão primeiro do aludido art. 482, que admite
de que (um)a decisão possa ser até mesmo “efeitos modificativos” aos embargos...!
contraditória. Na prática cotidiana da Portanto, afigura-se-me inconstitucional
operacionalidade do direito se sabe mui- a previsão dos embargos declaratórios stric-
to bem que as decisões que são “salvas” to sensu e os embargos declaratórios com
pelos embargos não são apenas obscuras efeito modificativo (sic), por afronta ao art.
ou contraditórias. São, efetivamente, defi- 93, IX e art. 5o, LV, da CF. Sua expunsão do
cientemente fundamentadas, naquilo que anteprojeto fará com que as decisões judi-
se deve compreender a partir do comando ciais sejam como devem ser: sem obscuridades
constitucional. Para se admitir os embargos e sem contradições. Simples, pois!
declaratórios, é necessário um detalhado
controle acerca do seu manejo. E não parece 2.2. De como, na linha do que acima foi
que o anteprojeto tenha se preocupado com exposto, até mesmo no plano formal o
esse detalhe. Anteprojeto adotou apenas em parte o
Numa palavra: há que se entender que modelo (sistema) acusatório
um dos fatores que desencadeou o caos Se, de um lado, o projeto busca ho-
do sistema jurídico foi a fragmentação das menagear o sistema acusatório, de outro,
decisões judiciais. As súmulas vinculantes mantém o poder do juiz de decretar
e os demais mecanismos de “amarração medidas, no âmbito cautelar, de ofício.
hermenêutica” nada mais são do que uma Nesse sentido, não convence o argumento
espécie de “adaptação darwiniana” do sistema da exposição de motivos da Comissão,
jurídico. Se cada um decide como quer e no sentido de que, afinal, compete, “em
se se permite que a fundamentação possa última análise, zelar pela efetividade da
até mesmo ser obscura ou contraditória, o jurisdição”. Ainda: também poderá o juiz,
resultado é a multiplicação de demandas, de ofício, substituir a medida anteriormente
enfim, o caos. Consequência: um “leviatã imposta. A justificativa – e é claro que não
hermenêutico” (lembremos, evidentemen- expressa a unanimidade dos membros da
te, para entender a metáfora, do precursor Comissão – foi a de que se deve “evitar
do Estado Moderno – Thomas Hobbes). leituras radicais da extensão do princípio
Ora, decisões judiciais fundadas em meros acusatório adotado” (grifei). Permito-me
enunciados (ementas jurisprudenciais) insistir em um ponto que está presente em
sem a necessária justificação já são, per se, toda a minha argumentação: a discussão
nulas. A isso devemos agregar que parcela tem um fundamento paradigmático, isto é,
considerável das decisões já são nulas por assumir “radicalmente ou não” o modelo
esse aspecto e que nem sequer são objeto acusatório somente terá sentido se essa

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questão for albergada em uma teoria da res estão perdendo, em meio a uma disputa
decisão. Mais: se o princípio é adotado, ele política (e às soluções conciliatórias que lhe
“principia tudo”. Princípios são padrões são próprias) mais uma boa oportunidade
que devem ser seguidos. São, pois, deonto- de levar o processo jurisdicional ao patamar
lógicos. Princípios não são “mandados de mais alto da democracia. Dito de outra
otimização” ou “capas de sentido”. Ou seja, forma, várias das discussões que hoje se
ou se adota um princípio ou não se adota. travam a respeito do anteprojeto (o juiz não
Por isso, um modelo processual é como pode se substituir ao réu na iniciativa pro-
uma matriz teórica: sua adoção não admite batória – art. 4o; o juiz não pode requisitar
sincretismos, mormente no caso em que a instauração de inquérito policial – art. 20;
se contrapõem dois modelos antitéticos: o o juiz pode julgar de acordo com seu “livre
inquisitismo, que coloca o locus de sentido convencimento” – art. 165, para citar apenas
na “cognição” de um sujeito (S-O), e o sis- estas; também o juiz de garantias é – na
tema acusatório, que desloca esse pólo de maior parte das previsões do anteprojeto
tensão para uma intersubjetividade, em que – incompatível com o sistema acusatório,
os sujeitos processuais são os protagonistas eis que, de ofício ele pode determinar a
da produção da prova. De todo modo, essa condução do preso à sua presença (traga-
“não radicalização” (sic) propalada na ex- me o corpo...!); prorrogar a prisão provi-
posição de motivos assume relevância em sória ou a revogar; prorrogar o prazo de
outros pontos,9 como será demonstrado na duração do inquérito; e, ainda determinar,
sequência. de ofício, o trancamento do inquérito, além
de requisitar documentos, laudos e infor-
2.2.1. De como o Projeto coloca o Ministério mações). É o que se depreende do texto do
Público como parte, mas não lhe dá a anteprojeto. Se assim não for, urge que o
prerrogativa de “parte” stricto sensu: texto seja emendado, para evitar interpre-
recolocando a discussão – qual é o lugar tações despistadoras. Perderiam sua razão
do Ministério Público (em um processo de existir se estivéssemos dispostos a fazer
jurisdicional penal democrático)? atuar, com o cuidado devido, a proposição
A par das discussões já estabelecidas que abre o art. 2o, onde se lê o óbvio: que
anteriormente (sobre a necessidade de um “todo processo penal realizar-se-á sob o
sistema acusatório, e sobre os prejuízos de contraditório e a ampla defesa”. Esse é o
um sincretismo de sistemas – acusatório e ponto de estofo da discussão.
inquisitorial), penso que nossos legislado- Penso que as cláusulas constitucionais
em jogo neste artigo (especialmente a do
9
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, um dos contraditório), tomadas seriamente, já
membros da Comissão encarregada do Anteprojeto, forneceriam as condições de possibilidade
deixa claro sua posição de que o processo penal de- para que (finalmente) percebêssemos o
veria adotar o sistema acusatório na sua radicalidade,
alertando, nesse ponto, para o fato de que “Centrado
processo jurisdicional democrático como
na gestão da prova, o processo penal será acusatório um instituto fomentador do jogo demo-
se ela não couber (sua busca), nunca, ao juiz. Neste crático, baliza e garantia na tomada dos
aspecto, decidiu a referida Comissão, por maioria, por uma provimentos jurisdicionais, viabilizador da
fórmula tanto mitigada quanto perigosa, certamente apos-
tando na democracia processual: “O processo penal
participação e, fundamentalmente, do con-
terá estrutura acusatória, nos limites definidos neste trole (NUNES, 2008, p. 351). Falo em com-
Código, vedada a iniciativa do juiz na fase de investi- preender o contraditório como uma garantia
gação e a substituição da atuação probatória do órgão de comparticipação e debate, assegurando a
de acusação”. (art. 4o). Texto publicado pelo CONJUR.
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2009-
influência dos argumentos suscitados por
abr-06/revisao-codigo-processo-penal-demanda- todos os sujeitos processuais e garantindo
sistema-acusatorio>. Acesso em: 14 jun. 2009 que, nas decisões, não apareçam fundamentos

128 Revista de Informação Legislativa


que não tenham sido submetidos ao espaço pú- provimento dos interessados, juntamente
blico processual (NUNES, 2008, p. 258). com o autor do próprio provimento”; e, no
Chamo a atenção para este ponto por- caso específico do processo jurisdicional
que, se realmente quisermos avançar contra – que é o que nos interessa mais imediata-
os males que advém de um sistema inqui- mente –, “essa participação se dá de uma
sitório, antes de investirmos em tentativas forma específica, dá-se em contraditório”
legislativas pontuais de demarcar a separa- (OLIVEIRA, 2004, p. 448). E a “essência”
ção do Ministério Público da Magistratura desse “contraditório” está – segue Cattoni –
(que, não me entendam mal, também vem “na simétrica paridade de participação, nos
em boa hora), devemos enfrentar a questão atos que preparam o provimento, daqueles
da necessidade de reforço técnico-institu- que nele são interessados porque, como
cional do processo, e do aprimoramento da seus destinatários, sofrerão seus efeitos”
qualidade das decisões que são produzidas a (OLIVEIRA, 2004, p. 450).
partir deste. Tenho, por exemplo, que, mais Mais do que isso (bilateralidade de au-
importante do que saber quem tomou a diência), o contraditório será concretizado
iniciativa de produzir a prova (se o réu ou com a efetiva garantia de influência da argu-
o agente do Ministério Público ou, ainda, mentação das partes na formação do conteúdo
indevidamente, o próprio juiz), é interditar das decisões judiciais, o que deverá ser cum-
a possibilidade de que o juiz a examine sem prido através de um “dever de consulta” do
que a tenha apresentado aos demais sujeitos juiz aos demais atores processuais, de modo
processuais, e sem que leve em consideração, a evitar que a resolução judicial possa, de
demorada e fundamentadamente, todos os ar- alguma forma, caracterizar para estes uma
gumentos relevantes por aqueles apresentados “surpresa” (THEODORO JUNIOR, 2009).
e que, ao final, não possa decidir “por livre Faço estas considerações de caráter mais
convencimento” (para usar as palavras do geral para demonstrar que, a partir do mo-
art. 165, do Anteprojeto).10 Ou seja, não mento em que o processo for reconhecido
somente as provas devem ser examinadas como um procedimento na qual partici-
à luz do amplo e denso contraditório, como pam, em contraditório, os interessados na
também os argumentos (teses) esgrimidos, atividade de preparação do provimento ju-
tanto em primeiro como no segundo graus risdicional, e em que os juízes assumirem a
de jurisdição. exigência considerar todos – mas efetivamente
Neste sentido, é possível acompanhar todos – os argumentos veiculados no espaço
Marcelo Cattoni na visão, a partir do “pri- público processual na formação das suas
meiro” Fazzalari, de que o procedimento decisões, interessará (bem) menos saber se
“é a atividade de preparação de provi- quem verbalizou o tal argumento era parte,
mentos estatais”, caracterizado por uma fiscal, parte imparcial (sic), ou qualquer outra
“interconexão normativa entre os atos que coisa. Em resumo: a questão mais séria a
o compõem”, pela qual “o cumprimento de ser enfrentada (e que foi deixada de lado
uma norma da sequência é pressuposto da pelo anteprojeto) é sobre a teoria da decisão
incidência de outra norma e da validade do judicial.
ato nela previsto”; já o processo “caracteriza- Apesar disso, não me vou furtar à abor-
se como uma espécie de procedimento pela dagem do tema que é, afinal, a ordem do
participação na atividade de preparação do dia: qual o lugar ocupado pelo Ministério
Público num legítimo processo penal de um
10
Sobre o assunto, consultar a excelente dis- Estado Democrático de Direito?
sertação de mestrado Francisco José Borges Motta,
intitulada Levando o direito a sério: uma exploração
Voltando os olhos ao anteprojeto do
hermenêutica do protagonismo judicial no processo Código de Processo Penal, percebe-se
jurisdicional brasileiro (Unisinos, 2009). que, à anunciada “estrutura acusatória”,

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seguem-se reiteradas referências ao Minis- da soberania do Estado) não tem o condão
tério Público como parte. A ideia, simpli- de lhe desvestir da roupagem que o exis-
ficadamente, é a de que ao devido processo tencializa, que é a de defesa da integridade (no
legal corresponda um processo de partes. No sentido dworkiniano da palavra) da ordem
fundo, o Anteprojeto parece incorrer em jurídica (defensor da correta/adequada12
uma velha dicotomia: enquanto no Proces- aplicação do Direito). Assim, sustento que,
so Civil teríamos uma Sache der Parteien, no qualquer que seja a natureza da demanda
Processo Penal teríamos uma Parteienkampf (desde um vulgar processo de usucapião
(luta entre as partes). Só que essa é uma até um processo de júri), o papel a ser
perspectiva do liberalismo processual e já desempenhado pelo Ministério Público
suplantada de há muito. Ou seja, é como é o da defesa da integridade do Direito
se fosse suficiente dizer que o “processo é (Dworkin). Essa é a contribuição que se
um processo de partes” e isso encerrasse espera de uma instituição encarregada, no
a discussão. No limite, isso implica(ria) limite, da guarda da Constituição. E isso
uma espécie de radicalização do princípio tem consequências importantes.
dispositivo (gestão da demanda e da prova De resto, percebe-se que perplexidades
nas mãos da parte autora), então elevado à como esta acabam nos remetendo para
condição de categoria fundante do sistema distinções de perfil dogmático (parte for-
processual penal. mal versus parte material, etc.), que bem
Contudo, essa concepção do Ministé- podem servir para gerar mais confusão do
rio Público como parte (para a doutrina que esclarecimento. Afinal, se o que digo
tradicional, aquele que pede algo em juízo, estiver correto, então, ontologicamente
ou aquele contra quem se pede algo) já tro- (não no sentido clássico, evidentemente),
peça de início, quando nos damos conta não há nenhuma distinção que se possa
do dever de que a atuação desta parte autenticamente fazer entre a atuação do
seja imparcial. Claro, o próprio art. 58 do (sujeito processual) Ministério Público como
anteprojeto esclarece, com razão, que ao parte ou como custos legis.
Ministério Público incumbe a missão de Portanto, permito-me insistir neste
“zelar, em qualquer instância e em todas as ponto: tão importante quanto atribuir a
fases da persecução penal, pela defesa da órgãos diferentes as tarefas de acusação e
ordem jurídica e pela correta aplicação da julgamento, e até mais importante do que
lei”. E a correta (adequada a Constituição) evitar que o juiz atue também na fase de
aplicação do Direito, sabemos todos, não investigação, é trabalhar o grau de legitimi-
se confunde com a defesa intransigente de dade do provimento jurisdicional (resultado
uma acusação inaugural, eventualmente do processo). E este se mede (pelo menos)
enfraquecida (ou derrubada) no contradi- de duas formas:
tório. Qualquer um sabe que o Ministério Primeiro, pela exigência de que o provi-
Público não é simplesmente um órgão de mento seja efetivamente influenciado pela
acusação,11 mas, sim, um órgão estatal que, argumentação dos interessados (cláusula
constitucionalmente, recebe a incumbência do contraditório como garantia de influên-
– portanto, legitimidade – para fazer essa cia);
acusação. Segundo, pela necessidade de que a de-
Com isso tudo quero dizer que o fato de cisão seja compatível, de modo substancial,
o Ministério Público ser o titular da ação com a Constituição (a decisão deverá ser e
penal (e, portanto, de exercer uma parcela estar integrada, validamente, na história
institucional do Direito).
11
Nesse sentido, por todos, veja-se OLIVEIRA,
Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 11ª ed. Rio 12
Sobre o assunto, remeto o leitor ao meu Verdade
de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 400. e Consenso, em especial, o posfácio.

130 Revista de Informação Legislativa


A questão central passa, pois, pela ine- construir as condições de possibilidade para
xorável exigência de que a motivação do um efetivo controle das decisões judiciais.
ato jurisdicional seja “ampla”, abrangendo Retorna-se, sempre, ao problema da neces-
não só a versão “aceita” pelo julgador, mas sidade de uma teoria da decisão.
também as razões pelas quais ele recusara De mais a mais, não tenho receio em
a versão oposta.13 A fundamentação deve afirmar que a almejada imparcialidade judi-
ser assim “completa”, compreensiva de cial é mais bem garantida com contraditório
todos os aspectos relevantes da causa. Os efetivo e com fundamentação exaustiva
interessados no provimento jurisdicional do que com um afastamento (na verdade,
têm o direito (fundamental) – que decorre indiferença) processual do juiz em relação à
textualmente do art. 93, IX, da Constituição conduta dos demais sujeitos processuais.
do Brasil – de obter “respostas” para suas Em resumo, estou convencido de que
alegações e provas, o que o obrigará ao é a partir do fiel cumprimento deste dever
compartilhamento decisório. O descumpri- fundamental de fundamentar decisões (produ-
mento deste dever tem como consequência, zidas em contraditório) que deve ser equa-
independentemente de qualquer alteração legis- cionada a questão da democracia que subjaz
lativa, a pena da nulidade (de resto, igual e ao processo penal. Aliás, muito embora tra-
textualmente prevista no citado dispositivo te de processo administrativo, parece que o
constitucional). voto do Min. Gilmar Mendes, proferido no
Aponto para esta direção não porque MS 24.268/04, pode vir a se constituir em
seja contrário à efetiva implementação de um fio de esperança se o transportarmos para
um sistema acusatório (é óbvio que não!), o direito processual penal. Explico: penso que
mas porque temo, sinceramente, que algo se seria um avanço considerável – arrisco em
perca na disputa entre as “funções” e “estru- dizer, uma verdadeira revolução copernica-
turas” do sistema processual penal, que é, na no direito processual de terrae brasilis – se
justamente, a tarefa jurisdicional de fornecer o direito brasileiro tomasse a sério o princípio
boas respostas (constitucionalmente/herme- do contraditório (nos moldes da jurispru-
neuticamente adequadas) aos casos que dência do Tribunal Constitucional alemão
chegam ao tribunal (aqui compreendido citado pelo Min. Gilmar), através do qual a
como o “fórum do princípio”, para conti- pretensão à tutela jurídica corresponde à garan-
nuarmos fiéis a Dworkin). Para tanto, não tia consagrada no art. 5o, LV, da CF, contendo
espero que o réu coopere com o Ministério a garantia de os sujeitos processuais verem
Público, e nem que o Judiciário saia à caça de a) seus argumentos considerados (Recht auf
prova acusatória, ou coisa do gênero. Repito: Berücksichtigung), b) o que exige do julgador
a divisão entre as funções de acusar e julgar capacidade, apreensão e isenção de ânimo
é salutar e pressuposta pela Constituição, (Aufnahmefähigkeit und Aufnahmebereits-
além do que, o processo (enquanto direito chaft) para contemplar as razões apresenta-
constitucional aplicado) é garantia para o das; c) agregue-se que o dever de conferir
réu de que, de fato, ele é inocente até prova atenção ao direito das partes não envolve
em contrário. Mas tenho dificuldades em apenas a obrigação de tomar conhecimento
enxergar, no juiz, um outsider deste processo (Kenntnisnahmeplicht), mas também a de
(principalmente num Estado Democrático considerar, séria e detidamente, as razões
de Direito, no qual, mesmo em sede penal, apresentadas (Erwägungsplicht).
não se divisa uma relação de oposição entre Se o processo penal contiver/respeitar
Estado e cidadão). O que devemos fazer é esses princípios (no sentido de padrões e
virtudes soberanas), colocaremos o princí-
13
Neste sentido, sempre é bom consultar os escri- pio acusatório em sua plenitude, não sem
tos do insuperável Ovídio Baptista da Silva. reconhecer que, fossem os direitos acima

Brasília a. 46 n. 183 julho./set. 2009 131


elencados pelo Tribunal Constitucional Na mesma linha, torna-se despiciendo
alemão, ora reproduzidos pelo nosso Su- referir que o artigo 165 deve ser alterado,
premo Tribunal Federal, reconhecidos desde com a retirada da expressão “livremente”.
já, e – não tenho medo de dizer – talvez nem Implantada efetivamente esta dinâmica,
precisássemos reformar o “velho” CPP...! Do ou seja, a de levar o processo a sério (no
mesmo modo, fosse obedecido estritamente sentido de “levar o direito a sério” de que
o dever fundamental de justificar as deci- fala Dworkin), não veria com embaraço a
sões e se já tivéssemos superado o problema atitude de um juiz que conden(ass)e o réu,
positivista da discussão da “livre apreciação mesmo contrariamente ao pedido final de
das provas” (e outros assuntos do mesmo absolvição por parte do Ministério Público,
quilate), talvez nem precisaríamos discutir muito embora isso possa parecer estranho
a dicotomia “sistema inquisitório-sistema e/ou esdrúxulo.15 Isto será assim, na exata
inquisitivo”. De todo modo, para reforçar medida em que os argumentos trazidos
a tese e fazer com que o texto legal possa pelo Ministério Público (e, naturalmente,
vir a ser levado a sério, sugiro a seguinte pela defesa) sejam demoradamente enfren-
redação para o art. 406 do Projeto de Lei n. tados e respondidos pela decisão judicial
156/09 (anteprojeto do novo CPP): que se exporá, naturalmente, ao recurso
“Art. 406. A sentença conterá: do Ministério Público e da defesa. Teimo
I – .... em repetir: respeitado o contraditório nos
II – a exposição da acusação e da defesa moldes da alteração que estou propondo
[retirar a palavra suscinta]; e recolocado o Anteprojeto no contexto
III – a indicação detalhada dos motivos de pós-positivista (portanto, sem a admissão
fato e de direito em que se fundar a decisão, aí da discricionariedade institucionalizada no
incluídas, expressamente, respostas a todas as art. 165), torna-se irrelevante a discussão
alegações relevantes dos sujeitos processuais, sobre “se o juiz pode ou não pode absolver
vedada a utilização de fundamentos que não
tenham sido submetidos ao espaço público 15
Não desconheço a chamada “doctrina Tarifeño”
processual.14 que, apesar de algumas oscilações, vem sendo afir-
mada na Suprema Corte Argentina (vide precedentes
IV – a indicação dos artigos dos disposi-
“Mostaccio” e “Aguero”, este último datado de 19 de
tivos normativos aplicados [substituir “arti- agosto de 2004, nos quais se reconhece a ilegitimidade
gos de lei” por “dispositivos normativos”] da condenação judicial criminal frente ao pedido final
V – .... de absolvição do Ministério Público, ante o argumen-
to – aqui resumido – de que “sin acusación no puede
VI – ...
existir sentencia de condena.”). Mas é que penso que
Nessa mesma linha, sugiro o acréscimo a sua aplicação , no direito brasileiro, contrasta com a
de um parágrafo único ao art. 504 do ante- formatação constitucional do Ministério Público, inde-
projeto, levando também para o segundo pendente como a Magistratura, deixando “a descober-
grau os elementos conformadores de um to” (ou seja, à revelia de controle judicial) o exercício de
uma (importantíssima, diga-se) prerrogativa do poder
processo penal assentado no contraditório: público, coisa que não se admite à luz da Constituição
Art. 504. (...) do Brasil (art; 5o, XXXV). No Brasil, vale destacar a
Parágrafo único. O acórdão conterá os posição de Américo Bedê Júnior e Gustavo Senna, para
requisitos da sentença. quem “admitir a condenação significa dizer que o ma-
gistrado está julgando e acusando ao mesmo tempo”.
Para Bedê e Senna (2009, p. 32 e ss.), a possibilidade
14
O que estou sugerindo aqui é um reforço de o juiz condenar na hipótese de o Ministério Público
normativo, exsurgente do previsto nos arts. 5o, LV “pedir” a absolvição é incompatível com o sistema
(garantia do contraditório) e 93, IX, da Constituição acusatório. Essa igualmente é a posição de Aury Lopes
do Brasil. Esse “reforço” tem o escopo de tornar ex- Junior (2007, p. 109), em seu livro Direito Processual
plícita a cláusula do contraditório como garantia de Penal e sua conformidade constitucional. Também Alberto
influência e participação na construção do provimento Binder (2003), em Introdução ao direito processual penal e
jurisdicional. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. (op,.cit).

132 Revista de Informação Legislativa


o réu em caso de pedido de absolvição por Anteprojeto) deve ser enquadrada nos mar-
parte do Ministério Público”, até porque cos de uma teoria da decisão, conforme es-
erros e irresponsabilidades há nos dois pecificado anteriormente. Com efeito, o tão
“lados”. Esse “nó” da discussão perde(rá) propalado e homenageado “princípio/mo-
relevância se for seguido o caminho pro- delo acusatório” não deve ser confundido,
cessual já especificado, pelo qual a) os su- nesse contexto, com um direito processual
jeitos processuais têm o direito de ver seus de partes, como que a repristinar a teoria
argumentos considerados; b) esse direito processual do liberalismo (ou da “escravi-
exige do julgador capacidade, apreensão zação” das partes, incluido o juiz, à taxativi-
e isenção de ânimo para contemplar as ra- dade do texto), e tampouco com o processo
zões apresentadas, e c) o dever de conferir instrumental(ista) que veio a predominar
atenção ao direito das partes não envolve na concepção do Estado Social-burocrático,
apenas a obrigação de tomar conhecimento, que, ao revés do anterior sistema, coloca(va)
mas também a de considerar, séria e deti- o juiz no comando da “busca da verdade”
damente, as razões apresentadas. e da “justiça” (no Brasil, por todos, veja-se
Consequentemente, a correlação (con- a Escola Instrumentalista do Processo).17
gruência, adstrição) – que se exige entre a Do mesmo modo, não se pode pensar que
narrativa fática da denúncia e a sentença – a adoção do princípio do contraditório
deve tomar por parâmetro a acusação aceita seja a tábua de salvação das insuficiências
e o pedido realizado16 ao início do processo decorrentes dos dois modelos citados, uma
(até porque justa; do contrário, não seria vez que este – o contraditório – deixado a
sequer recebida). Dali em diante, a compre- cargo de um juiz solipsista/discricionário,
ensão do julgador a respeito da causa pode proporciona(rá) um retorno ao subjetivis-
ser divergente daquela formada, ao longo mo do modelo social-inquisitório. Ou seja,
do contraditório pelo (igualmente impar- um sistema não será mais democrático ou
cial e independente) agente do Ministério legítimo pelo fato de vir a adotar determi-
Público, mas com submissão constante ao nado modelo de processo e tampouco será
contraditório dinâmico. Sendo assim, não suficiente esgrimir o contraditório como áli-
haveria necessidade de tornar vinculante o bi retórico. Parece não restar dúvida de que,
pedido de absolvição por parte do MP. tanto o modelo liberal de partes (de cariz
Ademais – e essa questão subjaz à toda objetivista), como o modelo social-inquisi-
controvérsia acerca da ação penal, gestão tivo (de cariz subjetivista), são caudatários
da prova e as condições para o julgamen- do grande problema paradigmático que
to do produto dessa coleta de provas – a atravessa o direito: o positivismo, isto é, os
problemática envolvendo os institutos da dois modelos processuais são faces da mes-
emendatio e mutatio libelli (arts. 407 e 408 do ma moeda (é como olhar para a teoria do
direito e ver, de um lado, o normativismo
16
Perceba-se que, no direito comparado, existe kelseniano e, de outro, o positivismo fático
uma tendência de reformulação da aplicação da assentado no realismo jurídico – ambos
congruência, não só englobando a narrativa fática da
denúncia, mas, também o pedido (capitulação jurídica)
apostam na discricionariedade, para dizer
eis que somente assim será permitido um exercício o menos). O que, afinal, foi deixado de
pleno do contraditório e do debate processual. Cf. lado por esses dois modelos? A resposta é
PENALE, Corte di Cassazione. Contro la violazione simples: a questão de como se dá o processo
del contraddittorio in sede di legittimità il rimedio è il
ricorso straordinario Sentenza da revocare se nel giu-
decisório, ou seja, ambos passaram longe do
dizio di cassazione si è provveduto “ex officio” alla riqua- enfrentamento do elemento hermenêutico
lificazione giuridica del fatto, senza aver dato all’imputato
la possibilità di essere informato. ITÁLIA, Corte de Cas- 17
Para uma crítica aos “modelos processuais”, ver
sação, Sezione sesta, sentenza n. 45807/08; depositata também BARROS, Flaviane de Magalhães. (Re)forma
l’ 11 dezembro de 2008 (grifei). do Processo Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.

Brasília a. 46 n. 183 julho./set. 2009 133


essencial à experiência jurídica. Um sistema os argumentos da defesa e do Ministério
será, (as)sim, democrático e legítimo – e aí Público são tergiversados e/ou ignorados,
independerá de quem toma a iniciativa pro- como se o Poder Judiciário conseguisse atingir a
batória nos marcos do modelo processual resposta final “atalhando” a argumentação que
(claro que sempre ajudará se o texto legal se firmou na esfera pública do processo. Aliás,
consagrar elementos mínimos que, desde esfera pública do processo só existe na ple-
logo, deixem os papéis bem delineados) – se nitude do sistema acusatório.
contiver os ingredientes já explicitados, isto Por isso, é possível afirmar que um
é, um contraditório devidamente equaliza- processo democrático somente se faz acu-
do, exigindo a apreciação dos argumentos satoriamente, mas dentro dos marcos de
dos sujeitos processuais à saciedade, e a de- uma teoria da decisão antirrelativista. Se o
cisão controlada a partir do dever de funda- velho sistema inquisitivo morreu, foram-se
mentar (accountability), aliado a obediência também os modelos operacionais/interpre-
da integridade e da coerência, vale dizer, tativos/cognitivos utilizados pelo juiz.
uma decisão somente se legitima na medida
em que consiga se situar numa cadeia de 2.2.2. A (in)compatibilidade dos
decisões (DNA do direito – STRECK:2009, embargos infringentes com o anunciado
pp. 415 e segs), vedados – e permito-me a modelo acusatório de processo penal: das
insistência – ativismos, protagonismos e Ordenações (manuelinas) à eternidade?
discricionariedades. Essa é uma questão que parece intocá-
Por tudo isso, aqui novamente fica clara vel, mas sobre a qual é necessário refletir,
a desnecessidade de se discutir a serôdia ainda que minimamente. Um projeto para
“distinção” sobre se o Ministério Público é um novo Código de Processo Penal pode
parte ou não. Basta examinar a Constituição, propiciar reflexões importantes. Olhado
que estabelece um leque de atribuições, que perfunctoriamente, parece não haver
transcendem a tradicional dicotomia “parte- dúvidas de que os embargos infringentes
custos legis”. Observe-se: pelo anteprojeto, o se constituem em uma espécie de “nova
Ministério Público promove, no seu âmbito, chance” ou “reexame do processo” toda
a plenitude do exame acerca da viabilidade vez que existir um voto a favor do acusado
da ação penal, seguindo os marcos do art. em segundo grau. Uma espécie de favor
129, I, da CF. O anteprojeto deixa claro que o rei, construído em tempos não garantistas,
Ministério Público detêm parcela da sobera- o que se pode ver pela origem do institu-
nia estatal. Nesse sentido, a Instituição deve to. Com efeito, os embargos nascem nas
se impor no tocante a essa composition entre Ordenações Afonsinas, confirmados nas
parte e fiscal, um mix que o transformou, Ordenações Manuelinas, recepcionados
nas corretas palavras do Min. Carlos Ayres pelas Ordenações Filipinas (eram “pedidos
Brito, em custos juris. Ora, quem é custus juris de reconsideração”), abolidos em 1832 (pelo
é fiscal do próprio regime democrático e do fato de “causarem morosidade processu-
cumprimento das leis e da Constituição. al”), ressurgidos em 1850, explicitados na
Então ele não é parte; é mais do que isso! Lei Unitária n. 319 em 1936, não previstos,
Sendo mais explícito: fica sem sentido que entretanto, no CPP atual (1941), tendo sido
um juiz decida uma ação penal sem levar em (re)introduzidos no ordenamento brasileiro
conta, detalhadamente – e assim responder em 1952 por intermédio da Lei 1720/B.
as teses uma a uma – os argumentos daquele O artigo 478 do Anteprojeto mantém
que detém o monopólio da ação penal pú- os referidos Embargos, em linha similar
blica. O mesmo vale para o segundo grau, ao CPP em vigor. A questão é saber: qual
quando se vê, cotidianamente, acórdãos in- é a razão de sua manutenção? Como sus-
suficientemente fundamentados, nos quais tentar uma “terceira instância” dentro da

134 Revista de Informação Legislativa


segunda instância? Em tempos de sistema mente correto”, do qual discordarei. Com
acusatório, como se sustentariam os Embar- efeito, o Anteprojeto regula, nos arts. 75 a
gos Infringentes? Com paridade de armas 78, a figura do assistente de acusação. Trata-
entre acusação e defesa e com o Anteprojeto se da insistência em prever uma figura
deixando explícito um conjunto de garan- incompatível com o sistema acusatório e
tias processuais, de que modo podemos com a própria Constituição, especialmente
continuar dizendo que “somente se erra se entendermos a extensão da previsão de
a favor do acusado”? Veja-se: em plena que o Ministério Público é o titular da ação
predominância do sistema acusatório, o penal pública, recebendo, para tanto, as
Anteprojeto insiste na tese da hipossufi- garantias da magistratura. O assistente de
ciência do acusado, colocando o processo acusação nada mais é do que a ratificação
sob desconfiança somente para um lado. de uma realidade dos anos 40 do século
Parece evidente que a previsão dos Embar- XX: um país marcado por contradições e
gos Infringentes tinha sustentáculo em um um Ministério Público visto apenas como
sistema inquisitivo, assim como já o era o órgão de acusação a serviço dos interesses
Protesto por Novo Júri (já abolido em nome das camadas dominantes da sociedade.
do princípio acusatório). O mesmo não se Ora, não tem sentido prever o assistente de
pode dizer neste momento histórico. O Bra- acusação em uma sociedade díspar como a
sil é o único país do mundo com esse tipo nossa, uma vez que apenas determinadas
de recurso. Portugal o revogou em 1939. pessoas, dotadas de recursos, poderão se
De todo modo, trata-se de um tema que habilitar como “assistentes do Ministério
exige reflexão, mormente a partir daquilo Público”, eufemismo criado para o velho
que coloca o modelo acusatório no topo do e vetusto “assistente de acusação” (sic).
processo. Ou seja, o modelo acusatório vem Trata-se de confessar que o nosso direito
para superar a própria desconfiança para penal é um direito de “classes sociais”, em
com o Estado. Este – o Estado – já não pode que os mais aquinhoados podem “auxiliar”
mais ser visto como “inimigo dos direitos o Ministério Público, que, provavelmente,
fundamentais”, como o era no século XIX não tem “competência” para “atender os
(aliás, é por intermédio e graças a esse Estado reclamos” de uma acusação mais sofistica-
– Democrático de Direito – que existe o modelo da, quando a vítima for de uma classe que
acusatório). Não há mais como se contrapor pode pagar essa “assessoria” (sic).
“Estado e Indivíduo”. Visto por um outro Vingando a tese, não faltará quem
âmbito essa questão, poder-se-ia indagar: sustente que, para aqueles que não tem
como reagiríamos diante da previsão de posses, isto é, para aqueles que não pu-
que também ao Ministério Público seria derem custear um advogado, dar-se-á um
possível intentar os Embargos Infringentes, defensor público para funcionar como
quando em face de voto vencido, devida- assistente do Ministério Público. Com isso,
mente fundamentado, dando pela conde- estabelecer-se-á o surrealismo jurídico e
nação de um acusado? Tema controvertido, novamente o Brasil dará “lições ao mundo”:
é verdade, mas que deve ser enfrentado na o Estado paga alguém para acusar e alguém
votação do novo CPP. para ajudar a acusar; se o réu for pobre,
pagará também o advogado deste. Teremos
2.2.3. A indevida e equivocada insistência assim, o quadro completo: Juiz, o Ministério
do anteprojeto na figura do assistente de Público, o defensor-assistente e o defensor-
acusação (batizado, eufemisticamente, de defensor...! Talvez a isso se chame “a efetiva
assistente do Ministério Público) publicização do processo penal”. Em um
Aqui se está diante de outro tema que país em que falta remédio até mesmo para
navega nas águas do “política/juridica- a dengue, por que não fornecer assistentes

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ao Ministério Público? Ironias à parte, se anteprojeto. Daí a pergunta: o que esse juiz
quisermos preservar a isonomia e impedir faz – a não ser algumas medidas que ele
que as classes mais abastadas tenham esse pode tomar de ofício (o que, refira-se, vai
privilégio de colocar assistentes, a melhor na contramão do modelo acusatório pre-
solução é impedir que todos o tenham. Por tensamente adotado no anteprojeto) – que
isso, minha sugestão da total expunsão da o juiz “comum” não pode fazer?
seção I do capítulo IV (artigos 75 a 78). Ressalte-se, ainda, que quando faço
o alerta para o patológico déficit demo-
3. À guisa de considerações finais crático que acomete o sistema processual
edificado sob o sujeito solipsista (a aposta
Olhado em seu conjunto, não resta na discricionariedade, eufemisticamente
dúvida de que o Anteprojeto para o novo batizada de “livre convencimento”), não
CPP representa considerável avanço. As estou pugnando pela configuração de um
alterações no tocante ao inquérito policial, simplório processo de partes à moda do libe-
mormente no que diz respeito à retirada ralismo clássico. Longe disso! Aliás, como
do juiz do controle dos arquivamentos, já foi ressaltado inúmeras vezes, a parti-
a homenagem ao princípio da presunção cipação do juiz na condução do processo
da inocência (não-culpabilidade) no que – que inclusive se desenrola por impulso
toca à prisão e suas modalidades e possi- oficial – é admitida, desde que legitimada
bilidades e, fundamentalmente, as diversas por um espectro hermenêutico que dê voz ao
limitações a produção/gestão da prova contraditório e que seja capaz de se posicionar,
em face da adoção – embora sem a neces- coerentemente, na cadeia da integridade
sária radicalidade – do sistema acusatório, do direito. Quero dizer: o juiz pratica atos
inegavelmente são inovações e conquistas de ofício para levar adiante o processo,
que, por si só, já garantem o sucesso da difícil mas tais atos também precisam estar en-
empreitada da Comissão encarregada de elaborar quadrados no âmbito da integridade das
o projeto. decisões. Parece-me evidente, portanto, que
Entretanto, o anteprojeto merece altera- há uma incompatibilidade entre o princípio
ções, de dois níveis: filosófico, enquanto ma- acusatório e a subjetividade assujeitadora
triz de compreensão do direito, e dogmático, do juiz (esse é o modo como me refiro à
enquanto instrumentalização do texto legal predominância a-paradigmática do sujeito
a ser produzido pelo Congresso Nacional. do esquema S-O) por este singelo motivo: de
Assim, no plano filosófico, a adoção/ma- nada adianta colocar o processo penal nos trilhos
nutenção do “livre convencimento”, peca do sistema acusatório se, ao fim e ao cabo, o juiz
pela permanência do anteprojeto no supe- toma decisões ao alvedrio do contraditório; ou
rado paradigma da filosofia da consciência, exare uma decisão que se apresente isola-
com o que se corre o risco de, embora as damente no contexto das demais decisões
inúmeras previsões de caráter acusatório, existentes sobre a matéria (integridade). E
a cotidianidade das práticas dos tribunais pro- isso é paradigmático!
mover, exatamente em face dessa institucio- Note-se que, há teses que colocam um
nalização da discricionariedade, o retorno ao papel estratégico no contraditório, mas não
sistema que se quer derrubar: o inquisitório. conseguem superar o sujeito solipsista da
Isso também está presente na previsão de filosofia da consciência. Ou seja, não basta
medidas de ofício que podem ser tomadas “apostar todas as fichas” no contraditório
pelo juiz, colocando-se, nesse contexto, (ou no modelo acusatório), se, ao final, a
uma série de contradições e ambiguidades decisão acerca do sentido da prova fica “ao
na figura do “juiz de garantias”, que não alvedrio do juiz”. Esse é o caso das teorias
se apresenta devidamente justificado no instrumentais do processo no interior das

136 Revista de Informação Legislativa


quais as partes se apresentam, apenas, a sentença contém obscuridades ou con-
como destinatários do poder do estado tradições, esta não é nula e, sim, corrigível
que se manifesta através da jurisdição (juiz via embargos declaratórios (sem esquecer
tem a tarefa de “realizar a justiça social”).18 os embargos com efeito modificativo, sem
Ora, mais do que isso, o contraditório é um previsão de contraditório). Parece ai haver
locus no qual as partes não apenas tem o uma clara colisão com o art. 93, IX, da CF.
direito de serem ouvidas, mas também têm Penso que o Anteprojeto poderia deixar
a garantia de que seus argumentos serão mais explícito a obediência ao princípio
considerados pelo judiciário, ainda que seja do contraditório, obrigando os juízes e
para afastá-los. tribunais a enfrentarem, um a um, os ar-
Há um equivoco no interior da teo- gumentos dos sujeitos processuais, razão
ria processual que precisa ser debelado pela qual faço uma sugestão de alteração
quando se fala de contraditório e do papel dos arts. 406 e 504.
da jurisdição: não é possível – depois do No plano, por assim dizer, mais dog-
giro linguístico-ontológico – continuar a mático, o anteprojeto contém medidas que
professar a ideia de que a jurisdição deve podem ser tomadas de ofício pelos juízes
garantir aquilo que as teses instrumenta- “comuns” e o de garantias, que ofendem
listas chamam de “escopos meta-jurídicos o princípio homenageado (acusatório).
do processo”. Isso acarreta um excesso de Também será de bom alvitre que o ante-
judicialização porque dá voz ao solipsismo projeto retire a previsão do assistente do
do sujeito, e isso não pode ser admitido na Ministério Público, figura incompatível
atual quadra da história em que a filosofia com o Estado Democrático de Direito, uma
(no caso, na perspectiva hermenêutica) vez que institucionaliza uma espécie de
resolveu o problema da intersubjetividade direito de “classe social” e a possibilidade
no nível do conhecimento. de “perseguição privada” ou até mesmo
Em suma, quando critico a subjetivida- de “vingança privada”. Do mesmo modo
de do juiz – e o faço no contexto tanto do que o velho CPP era justificável a previsão
sistema inquisitivo como no acusatório – da figura do assistente de acusação (pelo
não estou dizendo que o sujeito processual menos até a vigência da CF/88), também
estado-juiz esteja aniquilado ou reduzido se pode dizer que a previsão dos Embargos
em sua posição institucional. O que estou Infringentes em favor do acusado continha
dizendo é que, no que tange ao aspecto certa lógica, em face das condições em que
volitivo das suas decisões (discricionarie- foi gestado o Código processual nos anos
dade), ele se encontra hermenêuticamente 40 do século passado (os Embargos Infrin-
limitado pela história institucional do direi- gentes, aliás, nem foram previstos no CPP
to e pela integridade. É por isso que há res- originalmente). Entretanto, com o volume
postas adequadas; é por isso que o cidadão de garantias concedidas ao acusado e o
tem o direito fundamental a uma resposta modelo acusatório praticamente adotado
adequada a Constituição. E o Estado-juiz em sua totalidade, nenhum dos dois ins-
tem o dever (have a duty) de dá-la. titutos se justifica em tempos de modelo
Ainda no plano filosófico, pode-se aler- acusatório.
tar para a estranha previsão de que, quando Subjacente à discussão proposta nestas
reflexões está a questão do papel dos sujei-
18
Para uma crítica pormenorizada Cf. OLIVEIRA, tos processuais, o que engloba, à evidência,
Rafael Tomaz de; ABBOUD, Georges. O Dito e o Não- a emendatio e a mutatio libelli. Deixo claro
dito sobre a instrumentalidade do processo: críticas
e projeções a partir de uma exploração hermenêutica
que essa temática “toda ela” deve ser feita
da teoria processual . In: Revista de Processo. n. 166, sob os auspícios de uma teoria da decisão,
ano 33. dez. 2008, p. 27-70. isto porque a simples adoção do modelo

Brasília a. 46 n. 183 julho./set. 2009 137


acusatório e a homenagem ao contraditó- corriqueiro “sopesamento”.19 A proporcio-
rio – não – são suficientes para proteger o nalidade somente tem sentido se entendida
processo contra o velho inimigo já presente como “garantia de equanimidade”. Ou
tanto no modelo liberal como no modelo seja, proporcionalidade admitindo-se-a
“social” do processo: o positivismo e seus ad argumetandum tantum não é sinônimo
efeitos colaterais (em especial, o “livre de equidade. Aliás, o “princípio” da pro-
convencimento”, eufemismo do modelo de porcionalidade e o “princípio” do livre
discricionariedade forte – lembrando aqui convencimento são irmãos gêmeos, fruto
do debate Hart-Dworkin). A legitimidade do casamento do positivismo jurídico com
do processo penal não dependerá apenas a filosofia da consciência. Por isso, a ne-
da circunstância formal de quem toma a cessária pré-ocupação com essas questões
iniciativa probatória nos marcos do mo- filosóficas que podem nos pregar peças.
delo processual. O processo deverá conter Pré-juízos não filtrados poderão vir a nos
os ingredientes já explicitados, isto é, um causar enormes prejuízos.
contraditório devidamente equalizado,
exigindo a apreciação dos argumentos dos
sujeitos processuais à saciedade, e a decisão Referências
controlada a partir do dever de fundamen-
tar (accountability), aliado a obediência da BARROS, Flaviane de Magalhães. (Re)forma do Processo
integridade e da coerência, vale dizer, uma Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
decisão somente se legitima na medida BEDÊ JÚNIOR, Américo; SENNA, Gustavo. Princípios
em que consiga se situar numa cadeia de do Processo Penal: entre o garantismo e a efetividade
decisões (o direito tem DNA, sim), vedados da sanção. São Paulo: RT, 2009.
– e permito-me a insistência – ativismos, BINDER, Alberto. Introdução ao direito processual penal.
protagonismos e discricionariedades. Rio de Janeiro: Lume Júris, 2003.
Numa palavra final, também deve COMOGLIO, Luigi P; FERRI, Corrado; TARUFFO,
merecer cuidado a alusão ao princípio da Michele. Lezioni sul processo civile. Bologna: Giuffrè,
proporcionalidade, para que este não venha 1995.
a ser utilizado como um instrumento para DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Tra-
o cometimento de discricionariedades/ dução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes,
arbitrariedades e/ou voluntarismos (ati- 2002.
vismos judiciais). Como se sabe, em nome
da proporcionalidade e do “sopesamento 19
Para além de minhas críticas à teoria da argu-
mentação e, em especial, à ponderação e sua depen-
entre fins e meios” (a assim denominada dência da discricionariedade (STRECK: 2009), entendo
“ponderação”) é possível chegar às mais necessário advertir para o fato de que, na maior parte
diversas respostas, ou seja, casos idênticos das vezes, os adeptos da ponderação não levam em
acabam recebendo decisões diferentes, tudo conta que é impossível fazer uma ponderação que
resolva diretamente o caso. A ponderação – nos termos
sob o manto da ponderação e da propor- propalados por seu criador, Robert Alexy – não é uma
cionalidade (ou da razoabilidade). Veja-se, operação em que se colocam os dois princípios em
por exemplo, que em nome de princípios uma balança e se aponta para aquele que “pesa mais”
ad-hoc (e todos os dias são inventados no- (sic), algo do tipo “entre dois princípios que colidem,
o intérprete escolhe um” (sic). Na verdade, a pon-
vos standards que se pretendem princípios) deração é um procedimento que serve para resolver
como o da confiança no juiz da causa (sic) uma colisão em abstrato de princípios constitucionais.
e em nome de supostos “sopesamentos” Dessa operação resulta uma – regra regra de direito
(ponderações), um acusado é posto em fundamental adscripta – essa sim apta a resolução da
demanda da qual se originou o conflito de princípios.
liberdade no RS e outro é mantido preso E um registro: essa aplicação da regra de ponderação
em SC. Há que se ter cuidado com o ma- se fará por subsunção (por mais paradoxal que isso
nejo dos princípios e mormente com esse possa ser).

138 Revista de Informação Legislativa


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