BARROS, José D’ Assunção. ‘A teoria e a formação do historiador’. In.
Teoria da História. 1 – Princípios e conceitos fundamentais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
1. Uma “disciplina” – Entendendo como funcionam os diversos campos de
saber
Barros trata da constituição de um campo disciplinar e, consequentemente, em um
conjunto de práticas, concepções e objetos de estudo como um campo específico ou disciplina. Todo campo disciplinar é histórico, no sentido que surge em dado momento, se atualiza a partir daí com novos desdobramentos e possibilidades e possui regras redefinidas por debates internos. Práticas e objetos são redefinidas no tempo. Constituição de um campo disciplinar:
1. Campo de interesses. Objeto / temática do mais amplo ao mais
específico. (ciências humanas – estudo do homem – estudo do homem medieval) 2. Singularidades. O que a define ou delimita a disciplina, um parâmetro em oposição ou contraste a outras. Surge por desdobramento, transformação, oposição ou combinação. Na história, objetos historicizados ou temporalizados: o estudo do homem no tempo. 3. Campos intradisciplinares. No sentido de especializações e desdobramentos internos, espécie de divisão do trabalho. Ex: Antiga, Egípcia, Clássica, etc. 4. Aspectos expressivos. Modo de comunicar, linguagem comum, à qual se utilizar, por exemplo, para apresentar seus resultados, escrita. 5. Aspectos metodológicos. Modo de fazer. 6. Aspectos teóricos. Modo de ver e conceber a realidade a partir de seus limites de estudo, com conceitos e representações, tendências argumentativas, etc. 7. Oposições e diálogos interdisciplinares. História + Antropologia = História Cultural; História + Psicologia = História das Mentalidades. 8. Interditos. O lado externo que é proibido aos praticantes, como o discurso possível, as escolas interdisciplinares, etc. 9. Rede humana. Visão de obra coletiva (também uma rede de textos e realizações), todos que a concebem podem mudá-la em maior ou menor grau. 10. Olhar sobre si. Redefinições e histórias do campo. Ex: historiografia.
Uma definição do que diz respeito à disciplina é também histórica, passível de se
modificar. Dessa forma, a história para Heródoto ou Tucídides já não é a mesma de hoje. Antigamente, história pressupunha o interesse no “homem” no sentido de investigação da vida concreta do homem. Mais tarde, temos o sentido de estudo do passado, como um período que se distingue ou se afasta do presente. Já no século XIX e XX, a história recebe a definição do estudo do homem na temporalidade, com a necessidade imprescindível de se apoiar em fontes. Pode haver uma confluências de interesses que agregam mais de uma disciplina, em caráter híbrido, interconectadas, como é o caso da astrofísica. Há disciplinas construídas ou reconstruídas por diálogos interdisciplinares, em meio a verdadeiras arenas científicas e disputas territoriais. Dessa forma, novas disciplinas devem se posicionar frente a antigos e novos problemas, demonstrando capacidade com seus próprios aportes teóricos, confrontando o já institucionalizado ou consolidado. Ex: história x ciências sociais / antropologia. Um novo campo de saber pode surgir de desdobramentos de outro já existente, se desprender deste ou agrupar elementos dispersos de vários outros campos diferentes. Dinâmica de transformações. A partir de um campo “A” e “B” surgir um “C” (três disciplinas) ou “AB” (resta uma única). Eterno movimento: novas surgem enquanto outras desaparecem ou se modificam, se refundam. Ex: história da História (estatuto da disciplina). O hiperespecialismo de algumas disciplinas podem se compensar com movimentos interdisciplinares ou transdisciplinares, uma religação. Não existe disciplina que não combine Teoria / Método / Discurso. Toda disciplina possui um repertório teórico – metodológico com adesões ou críticas de seus participantes, além de uma linguagem comum, dialetos internos como os conceitos. Novos paradigmas podem redefinir as ciências, o que antes era especulação torna- se objeto consolidado e vice-versa. A rede humana acarreta em uma rede institucional (universidades, institutos de pesquisa, circuitos editoriais de revistas científicas), ou seja, uma comunidade científica. Por conseguinte, de acordo com a recepção nesse meio, os praticantes de determinado campo ocupam “lugares concretos” (teorias aceitas) ou “lugares simbólicos” (teorias discutidas). Sendo assim, há um verdadeiro sistema de poder que confere prestígio e delimita os ditos e interditos dentro da disciplina, de forma hierarquizada. Cada resultado individual se inscreve numa rede cujos elementos dependem estritamente uns dos outros, e cuja combinação dinâmica forma a história num momento dado. (CERTEAU, 1982: 72) Cada campo disciplinar se constitui em patrimônio de todos os que podem ou pretendem praticá-lo. Tanto no interior quanto no exterior da rede humana que modifica uma disciplina, há verdadeiros jogos de poder, ou seja, uma disciplina pode sofre contestações e negações da comunidade de dentro e também fora dela. (quem é membro pode se aventurar em tentar alterá-la de alguma forma, com alguma metodologia válida, mas quem está fora só pode contestar ou negar, recusando-se a aceitar) Como um lugar de saber em que o poder se exerce, há jogos de poder internos e externos, bem como de campo de estudos e objetos. Foucault concebe o campo disciplinar como um sistema anônimo, uma vez que está aberto a permanentes mutações e expansões, dependo delas para existir. 2. Teoria: o que é isso?
Relação entre Teoria e campo, Teoria e História.
Teoria, desde a Antiguidade, é definida como uma “visão” de mundo, à qual permite enxergar a realidade a partir de objetos específicos de estudo. (a realidade como um todo é formada por múltiplos campos, portanto não concordo em considerar os limites do mundo como os limites da minha linguagem, como diria certo filósofo, mas pelo contrário, perceber o outro e o que este tem a oferecer) Níveis de discussão da Teoria: 1. Um “campo de estudos”. Território, constituído por realizações teóricas dos integrantes; nesses espaços que encontramos as linguagens conceituais específicas, modos de enxergar a realidade, os paradigmas, as perguntas possíveis, uma “área” específica. 2. Cada um dos “modelos” ou “sistemas explicativos criados para compreender um determinado fenômeno, aspecto da realidade ou objeto de estudos. 3. Um “modo de apreender o mundo”. Uma forma racional e científica, que se estabelece processualmente, por oposição ao intuitivo.
Teoria se contrapõe ao agir intuitivo, ao comportamento emotivo, ao impulso
instintivo, recepção mística da “palavra revelada”, entre outros. Não é uma forma melhor nem pior, mas específica de se compreender o mundo com o contraste entre “teórico” e o “intuitivo”. Teoria é um modo de ver que se estabelece processualmente através da razão discursiva. A intuição é um conhecimento sem mediações entre o sujeito e seu objeto. Ao contrário da “Teoria”, a “Intuição” não precisa de método. Da mesma maneira, a intuição é instantânea, bem diferente da Teoria que é feita em etapas, com mediadores. Teoria (modo de conhecer racionalizado e verbalizado) x Intuição (modo de conhecer que envolve muito mais as emoções e sensações do que a razão e o método). Sistematização: coleta de material empírico; organização lógica, destacando contradições a partir das relações; rigorosa análise e ponderações várias; Teoria. Quando escolhemos um modo teórico, começamos a nos servir de mediadores. De um lado, municiamo-nos de informações empíricas e tentamos desenvolver nossos pensamentos, passo a passo (processualmente), através dessa base de informação. De outro lado,, a todo instante estaremos criando “conceitos” e formulando “hipóteses”. A recolha de materiais e evidências, com a concomitante análise desses materiais através de certos mediadores teóricos e metodológicos constitui uma necessidade da Teoria. Além da base empírica e da racionalização a partir de conceitos e hipóteses, existirá sempre uma dimensão lógico-verbal envolvida na construção de uma teoria. Teoria se desenvolve por um padrão discursivo, argumentativo, no qual vamos a cada novo momento encaixando uma coisa na outra ou interconectando pensamentos, ao mesmo tempo que procuramos demonstrá-los. Demonstrar cria uma interconexão entre Teoria e o Método. Esse processo de elaboração teórica é contínuo e circular, sempre reaparecendo estes diversos mediadores – conceitos e linguagem de observação – que darão uma leitura capaz de formular hipóteses, procedimentos argumentativos e comprovações empíricas, as análises encaminhadas através da demonstração e a verbalização dos resultados através de uma forma específica de discurso. Através da teoria, pode ser estabelecido um veículo de mediação entre “saber” e “poder”. Mediadores: Linguagem de observação; Conceitos; Hipóteses; Procedimentos argumentativos; Comprovações empíricas; Demonstrações; Verbalização dos resultados. A “Teoria” nos obriga a uma aproximação paulatina do objeto e do seu problema, estabelecendo uma visão de fora, ainda que sistemática e, de toda maneira, capaz de posteriormente permitir que se atinja ainda assim o âmago examinado. Na Antiguidade, theoria significava “contemplação”, a ideia de conhecimento estava muito associada à noção de “percepção” de uma realidade subjacente a ser desvelada pelo filósofo ou pesquisados, abarcando simultaneamente a percepção, o conhecimento, e a aceitação da ordem das coisas. Uma mudança progressiva nessa relação entre “teoria” e o “ver” ocorre à medida que o conhecimento passa a ser mais como uma “construção” do que uma “percepção”. É a nossa Teoria que decide o que podemos observar, ou como observar. Popper vale-se da metáfora de que “as teorias são redes, lançadas para capturar aquilo que denominados “o mundo”: para racionalizá-lo, explica-lo e dominá-lo. Devemos ter então a consciência de que, rigorosamente falando, a teoria transforma a realidade observada, ou ao menos revela certos aspectos de uma realidade observada e não outros, conforme essa teoria seja construída de uma maneira ou de outra, ou a partir de certos pontos de vista e parâmetros. Consciência de que o que se pode perceber da realidade acha-se francamente interferido pelo ponto de vista do sujeito que produz o conhecimento. Wittgentein: o limite da minha linguagem é o limite do meu mundo. É uma determinada teoria e seus instrumentos fundamentais, os conceitos, o que nos possibilita formular uma determinada leitura da realidade histórica e social, enxergar alguns aspectos e não outros, estabelecer conexões que não poderiam ser estabelecidas sem os mesmo instrumentos teóricos de que nos valemos. O inventário das diferenças (1976), Paul Veyne: todo historiador é implicitamente um filósofo, já que decide o que reterá como antropologicamente interessante. Paul Veyne: materialmente, a História é escrita com fatos; formalmente com uma problemática e conceitos; a teoria que nos permite escrever uma história não meramente factual. (revisar citação) Falar em maneiras diversificadas de ver que se abrem no interior de certo campo disciplinar é falar em “correntes teóricas”. A teoria remete à maneira como se concebe certo objeto de conhecimento ou uma determinada realidade examinada, a partir de dispositivos específicos que são os conceitos e fundamentos teóricos de diversos tipos, como também se refere ao modo como o pesquisador ou cientista enxerga sua própria disciplina ou seu próprio ofício. Já Metodologia remete sempre a uma determinada maneira de trabalhar algo, ações concretas, mais do que ao pensamento, remete, à ação prática. Teoria (modo de ver), pertencem: conceitos, teorias específicas, campos intradisciplinares, campos teóricos de te pertencimento (correntes teóricas e paradigmas). Quadro 2. Metodologia (modo de fazer), pertencem: delimitação do tema (recorte), planejamento de pesquisa, constituição de fontes, métodos e técnicas (história oral, arqueologia, de coleta de fontes, de análise fontes como de conjunto, qualitativa e comparada, de pesquisa de campo). Compartilha igualmente como a Teoria as hipóteses e diálogos bibliográficos, além de ter para si a maior parte do projeto de pesquisa e a menor dos diálogos interdisciplinares. Quadro 2. Também pertencem ao âmbito da Teoria da História os grandes paradigmas historiográficos e os sistemas teóricos mais amplos que se destinam a encaminhar a compreensão e análise historiográfica. O olhar que um campo de estudos estabelece sobre si, identificando e constituindo seus espaços internos, é também uma questão teórica. É verdade, ainda, que uma decisão “teórica” pode encaminhar também uma escolha “metodológica”. Reciprocamente, a metodologia também pode retroagir sobre a concepção teórica do pesquisador, modificando sua visão de mundo e levando-o a redefinir os seus aportes teóricos. Há, portanto, implicações metodológicas a partir de certos pressupostos e vice-versa. A pesquisa em História, e a sua posterior concretização em escrita da História envolvem necessariamente este confronto interativo entre teoria e metodologia. Uma determinada Teoria pode se sintonizar com determinadas possibilidades metodológicas; e certamente existem metodologias que favorecem ou que inviabilizam o encaminho de certas perspectivas teóricas. Hipótese (colocação provisória que se pretende submeter a um processo de demonstração que visará comprová-la ou refutá-la) x Conjectura (preposição que é colocada sem a intenção de ser submetida à comprovação). Uma hipótese nasce no mundo teórico, a partir de uma determinada maneira de enxergar a realidade, mas em seguida ela se dirige ao âmbito metodológico em busca de comprovação. Teoria e Metodologia são como que duas irmãs siamesas. Uma olha para o alto, buscando enxergar algo de novo no céu estrelado de todas as realidades possíveis e imaginárias. A outra, decididamente prática, aponta para o chão, em busca de soluções concretas para confirmar ou rejeitar as hipóteses aventadas pela irmã. Teoria e Metodologia, separadas uma da outra, não têm muito sentido para a Ciência. A “teoria pura” facilmente poderia se converter em especulação. A “metodologia pura”, a rigor, nem surge como possibilidade, e quando muito se converte em alguma forma de exercício aprendido mecanicamente em alguma faze inicial de treinamento artesanal ou científico. (p. 76 / 77) Uma vez que cada teoria pressupõe ou se articula a uma determinada “visão de mundo”, ela também corresponde à formulação de determinadas perguntas e, consequentemente, abre espaço a um certo horizonte de respostas. Na mesma medida em que as teorias se diversificam, também variam muito as respostas proporcionadas por cada teoria em relação a uma certa realidade ou objeto examinado. Cada teoria, ao corresponder ou ao equivaler a uma determinada visão de mundo, permite que sejam formuladas certas perguntas e, frequentemente, uma nova teoria contrasta com as teorias anteriores que abordam esta ou aquela questão precisamente pela sua capacidade de colocar novas perguntas. Contrapor à realidade uma nova pergunta, que até então ainda não havia sido imaginada, é já enxergar a realidade de uma nova maneira. Uma nova imagem do mundo a ser elaborada por uma teoria científica só consegue florescer em épocas e terrenos propícios. Obrigatoriamente o pensar no “modo teórico” deve se amparar, nos dias de hoje, em certos procedimentos e pressupostos que foram reforçados pelo padrão de cientificidade da vida moderna. A “teoria” sem demonstração, sem encadeamento coerente de suas partes, sem verificabilidade, pode se converter meramente em um conjunto de “conjecturas”. Uma Teoria pode ser definida como um corpo coerente de princípios, hipóteses e conceitos que passam a constituir uma determinada visão científica do mundo. Também é necessário que o que se formula teoricamente seja submetido a um diálogo com outras proposições teóricas, seja para reforço ou para refutação. Não se pode avançar no campo científico, nem se movimentar no universo teórico de um determinado campo de saber, sem se conectar com os diversos autores que já percorram esse mesmo campo.