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DOI: 10.1590/1413-81232018245.

10602017 1723

Modos de ver e de fazer: saúde, doença e cuidado

artigo article
em unidades familiares de feirantes

Ways of seeing and doing: health, disease and care in marketers’


family units

Milena Nascimento Guirra Saturnino (https://orcid.org/0000-0002-6344-1984) 1


Tamires Pereira dos Santos (https://orcid.org/0000-0003-0606-9984) 1
Paulo Roberto Lima Falcão do Vale (https://orcid.org/0000-0002-1158-5628) 2
Maria Geralda Gomes Aguiar (in memorian) 1

Abstract The concepts of health, disease, care Resumo As concepções de saúde, doença, cuidado
and care practices in family units of marketers e de práticas de cuidado em unidades familiares
in Feira de Santana (BA), Brazil, are the object de feirantes em Feira de Santana – BA constituem
of the study, which aimed to understand the re- o objeto do estudo com o objetivo de compreender
lationships between the concepts of health, dis- as relações entre as concepções de saúde, doença e
ease, care and ways of seeing their care practices. os modos de ver suas práticas de cuidado. Reali-
An exploratory research through qualitative ap- zou-se pesquisa exploratória na abordagem qua-
proach was conducted with 16 marketers through litativa, com 16 trabalhadores feirantes, mediante
a semi-structured interview. The corpus was sub- entrevista semiestruturada. O “corpus” foi subme-
mitted to thematic content analysis. The concepts tido à análise de conteúdo temática. As concepções
about health, disease and care are linked to the sobre saúde, doença e cuidar atrelam-se a modelos
explanatory models of health-disease process em- explicativos do processo saúde-doença emanados
anating from the professional sector of care and do setor profissional de assistência e a lógicas de
to the socially constructed of action rationales ação construídas socialmente e articulam-se às
and are coordinated with the ways of daily act- maneiras de agir no cotidiano para prestar cuida-
ing to provide care. The family stands out in the dos. A família destaca-se nas práticas de cuidado
care of its members through solidarity, leveraging pelo recurso à solidariedade para potencializar
resources in order to overcome health problems. forças visando à superação de problemas de saúde.
Among the therapeutic options, the marketers use Entre as opções terapêuticas os feirantes utilizam
the informal sector, especially home care provided o setor informal, sobretudo o cuidado domiciliar
by their support network. The family is a network oferecido por sua rede de apoio. A família consti-
1
Núcleo de Estudos of social support that assumes a moral and sol- tui-se como rede de apoio social que assume um
e Pesquisas sobre idary duty in the provision of health care to its dever moral e solidário na oferta de cuidados de
o Cuidar/Cuidado, members without relinquishing the healthcare saúde a seus membros, sem prescindir das redes de
Universidade Estadual
de Feira de Santana. Av. networks. atenção à saúde.
Transnordestina s/n, Novo Key words Health-disease process, Family, Care, Palavras-chave Processo saúde-doença, Família,
Horizonte. 44036-900 Feira Social support Cuidado, Apoio social
de Santana BA Brasil.
mil.n.s.saturnino@
gmail.com
2
Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia. Santo
Antônio de Jesus BA Brasil.
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Saturnino MNG et al.

Introdução Ao reconhecer o processo saúde-doença, bem


como as práticas de cuidado como espaços de in-
A pesquisa sobre família e cuidado tem como teração entre os sujeitos sociais em seu contexto
questões-chave estabelecer a concepção de famí- de vida, as concepções de saúde, doença e cuida-
lia adotada, definir quais são as perspectivas atra- do situam-se desde as mais biologicistas até as
vés das quais as relações entre família e cuidado mais holísticas7.
estão sendo tratadas, e dispor de um referencial O cuidado é parte do processo saúde-doença9,
teórico que permita balizar o processo de análi- sendo composto por símbolos e significados que
se do material empírico. Assim, nesta pesquisa, permeiam as relações familiares, e que permitem
cujos objetos são as concepções de saúde, doença, a seus membros organizar, entender, interpretar,
cuidado, e de práticas de cuidado em unidades reaprender e enfrentar os entraves para a super-
familiares de trabalhadores feirantes de Feira de ação dos problemas de saúde.
Santana – BA, a família é entendida como uma Assume-se, neste estudo, o cuidado como
instituição complexa, um corpo social, agência um fenômeno na esfera existencial, como aquele
socializadora, que garante a reprodução social. que faz parte do ser, é dotado de racionalidade,
Outros conceitos em torno da família sinalizam cognição, sensibilidade e sentimentos; o cuidado
que esta vai além de laços sanguíneos, e seus confere humanidade. É relacional ou coexisten-
membros são unidos pelo afeto, identificação ou cial, pois ocorre em relação ao outro, e é também
necessidades1,2. contextual, à medida que, para sua prática, é pre-
A unidade familiar é o primeiro referencial ciso considerar as circunstâncias em que ocorre,
de sistema de cuidado de saúde de um indivíduo, assumindo variações, intensidades e diferenças
devido, principalmente, aos cuidados inerentes em suas formas de cuidar10.
ao convívio familiar. É um corpo social cujos Essas formas de cuidar, também chamadas
membros possuem experiências de adoecimento de modos de fazer cuidado, ou práticas de cui-
e cultura compartilhados e vivem o processo saú- dado, são maneiras de fazer de grupos popula-
de-doença de forma parecida1. cionais referenciadas nos seus contextos de vida,
O cuidado da família, principal núcleo de buscando identificar as práticas relacionadas
cuidado, abarca a saúde, o bem-estar e a felicida- com as suas experiências de saúde e doença. Dito
de. Em linhas gerais no adoecimento de qualquer isso, as práticas de cuidado podem estar atreladas
de seus membros, ela rearranja os modos de vi- a maneiras de agir nas quais os indivíduos e as
ver e de cuidar, isto porque o processo de adoeci- suas famílias buscam alternativas a partir de suas
mento atinge toda a unidade familiar3, exigindo próprias lógicas de ação, e não somente aquelas
a satisfação de novas necessidades de cuidado4,5. atreladas a normas e regras presentes em deter-
A família constrói um mundo particular de minada cultura11.
significados, saberes e práticas em consonância As práticas de cuidado, portanto, estão pre-
com o seu ambiente sociocultural e experiências sentes nas unidades familiares dos mais diversos
do cotidiano intra e extrafamiliar. E esse contexto grupos sociais, classes, e etnias. Cada grupo social
inclui a dimensão da saúde, e a busca dos siste- e familiar vai enfrentar as necessidades de saúde
mas de cuidados5,6. As concepções sobre saúde, desenvolvendo meios, ou práticas que são cons-
doença e cuidado relacionam-se às características tituídas por estratégias e táticas de cuidados, de
do contexto sociocultural, à experiência subjetiva acordo com sua cultura, valores, crenças, educa-
de cada sujeito7. ção, acesso às redes de serviços de saúde formal,
Essas concepções são construções históricas informal, e redes de apoio sociofamiliar11-13.
e sociais atreladas ao momento histórico, social, O problema de pesquisa foi estruturado a
econômico e político vivido por determinada ge- partir das seguintes questões norteadoras: Quais
ração em um território. Em função disso, são ela- as concepções de saúde, doença, cuidado, e prá-
boradas teorias populares8 que se desenvolvem a ticas de cuidado de famílias de trabalhadores fei-
partir das condições materiais de existência, das rantes que atuam no Centro de Abastecimento de
experiências do cotidiano4. Essas teorias reorga- Feira de Santana (CAF), na Bahia (BA)? Como as
nizam-se e moldam-se aos saberes científicos, concepções das famílias acerca de saúde-doença-
não deixando, porém, de considerar a influência cuidado se interrelacionam no enfrentamento do
e a relevância de um saber comum aprendido e processo saúde-doença? A partir dessas questões,
passado de geração em geração, para os membros o presente trabalho teve como objetivo compre-
da família, respeitando-se uma hierarquia fami- ender as interrelações entre as concepções de
liar. saúde, doença, cuidado, e os modos como traba-
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lhadores feirantes que atuam no CAF em Feira atribuídos por eles, à saúde, à doença e ao cuidar,
de Santana – BA veem as práticas de cuidado em fossem regulares; o que constituiu critério de sa-
suas unidades familiares. turação, entendendo-se que esta ocorreu quando
Destaca-se a relevância de tomar os feirantes se tornou “possível identificar padrões simbóli-
como atores sociais da pesquisa, por se tratar de cos, práticas, sistemas classificatórios, categorias
um grupo de trabalhadores informais sobre o de análise da realidade e visões de mundo do uni-
qual existem poucos estudos com enfoque nos verso em questão, e as recorrências [...]”16. Aten-
seus modos de ver e de fazer relativos à saúde, deu-se aos preceitos éticos de pesquisas com seres
doença e ao cuidado, realizados em suas unida- humanos, e baseou-se no respeito à autonomia
des familiares; como uma rede de apoio mútuo dos atores sociais, tratando-os com dignidade,
que mobiliza esforços e reorganiza-se frente às sendo mantida uma postura de respeito diante
necessidades de saúde12. de seus modos de pensar sobre saúde-doença,
Os feirantes possuem, ademais, peculiarida- e de praticar cuidados. A pesquisa foi aprovada
des relacionadas ao ambiente e às condições de pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Hu-
trabalho, exposição a fatores de risco, e proteção, manos da Universidade Estadual de Feira de San-
que os coloca em situação de vulnerabilidade em tana - CEP/UEFS, respeitando-se a Resolução nº
relação ao adoecimento e cuidados exigidos para 466/12 do Conselho Nacional de Saúde.
o enfrentamento de suas necessidades de saúde14. Utilizou-se análise de conteúdo do tipo temá-
Trabalhar o processo saúde-doença centrado tica, a partir dessa escolha, foram realizadas lei-
na família ainda é um desafio, pois essa unidade turas iniciais, que permitiram chegar a uma pri-
possui singularidades, por conseguinte, compre- meira impressão do corpus, seguida da definição
ender os significados atribuídos ao cuidar e aos das unidades de registro, unidades de contexto e
modos de prestar cuidados no cotidiano da famí- categorias empíricas; seguiu-se a análise, ou ex-
lia é uma dinâmica social complexa e desafiadora5. ploração do material, que se consistiu em leituras
sucessivas do corpus, a fim de realizar sua codifi-
cação, por meio da agregação dos temas em uni-
Metodologia dades que permitiriam a descrição das caracterís-
ticas pertinentes do conteúdo; e, por fim, houve
A pesquisa se constituiu exploratória, com abor- o tratamento dos resultados, no qual se buscou
dagem qualitativa. O campo empírico foi o Cen- uma compreensão do conteúdo subjacente, me-
tro de Abastecimento de Feira de Santana (CAF), diante inferência e interpretação.
na Bahia (BA), que concentra comerciantes va- O processo de análise e interpretação dos da-
rejistas e atacadistas de gêneros alimentícios e dos possibilitou a elaboração das categorias em-
produtos de artesanato. Foram participantes 16 píricas: Concepções de saúde, doença, cuidado, e
feirantes de ambos os sexos que trabalhavam no modos de ver as práticas de cuidado; Protagonis-
CAF juntamente com familiares, tendo como cri- mo da família nas práticas de cuidado; Atuação
tério inicial de inclusão, estar exercendo sua ativi- das redes de apoio social e profissional no proces-
dade laboral há, no mínimo, seis meses, e aceitar so saúde-doença-cuidado.
participar da pesquisa após contato inicial e ex-
plicação da proposta de estudo, e esclarecimen-
to dos possíveis riscos e benefícios do processo Resultados
investigativo. Assegurou-se a confidencialidade e
o anonimato, que se configurou através da ado- Participaram do estudo dezesseis feirantes, onze
ção de pseudônimos. Como critérios de exclusão, mulheres e cinco homens, que possuíam ativida-
não fizeram parte do estudo feirantes que traba- de laboral no CAF, juntamente com familiares.
lhavam sozinhos, ou os que tinham funcionários Eram procedentes de Feira de Santana – BA e
com os quais não possuíam vínculos familiares. outras cidades da região metropolitana, e dos es-
A coleta de dados e a produção das informa- tados de Pernambuco e Minas Gerais; as mulhe-
ções se constituíram por meio da realização de res tinham idade entre 20 e 68 anos, e os homens
entrevista semiestruturada, de forma que os fei- entre 36 e 66. Os feirantes autodeclararam-se de
rantes tivessem a possibilidade de discorrer sobre cor/raça branca, parda e negra. A maioria é ca-
o tema proposto, definindo os termos de suas res- sada, seis dos entrevistados são solteiros, e o nú-
postas sem condições prefixadas15. mero de pessoas residindo na mesma casa esteve
A escuta progressiva dos atores sociais ocor- entre dois e seis. A renda mensal variou de 1/2
reu até que as concepções, explicações e sentidos a oito salários-mínimos; a escolaridade situou-se
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entre cinco e 17 anos de estudo, do ensino funda- com as subjetividades. Carregam influências de
mental incompleto ao ensino superior incomple- vivências e assumem um valor relativo a viver a
to, entretanto, os anos de estudo incluem aqueles vida, a gastá-la da melhor forma. Parece haver
de abandono e repetições. Em relação à religião, um entendimento que para fazer andar a vida de
declararam-se católicos e evangélicos. maneira agradável é preciso ter saúde. Saúde na
A atividade de feirante é a única ocupação, a verdade é vida, porque quando você não tem a saú-
jornada de trabalho é de 10 a 13 horas por dia, em de, você não tem a vida, a saúde é que faz que você
média. O tempo de atuação como feirante variou viva, né? (Jacó). Para os feirantes, a vida depende
de um a vinte e três anos. Na barraca, box ou ar- do estado de saúde.
mazém, que compõem os ambientes de trabalhos A concepção de saúde, nesta visão, amplia-se
no CAF, o número de familiares trabalhando no e ganha sentido ao sentir-se vivo, na capacidade
local, variou de dois a cinco. O vínculo entre os de trabalhar, de usufruir a vida. Saúde é viver bem,
familiares é pai-mãe-filho, que formam o núcleo é estar disposta para trabalhar, estar sem doença,
da família, e tios, sobrinhos e primos, que com- sem estresse, fazer exercício físico, caminhada, en-
põem a família extensa. As funções realizadas são tendeu? [...]. (Raquel). Nota-se uma concepção
de vendedor, balconista e caixa. de saúde que engloba práticas de promoção de
A categoria a seguir descreve as formas pelas saúde. De acordo com Noemi: a doença para tudo
quais as concepções acerca da saúde e da doença na vida, estar doente é horrível [...] às vezes você
relacionam-se com as concepções de cuidado, ou deixa de trabalhar, deixa de estudar por causa da
até os modos de praticar o cuidado no contexto doença [...]. Percebem-se, ademais, aspectos so-
familiar. ciais da concepção de saúde-doença através da
influência da sociedade capitalista, na qual a ideia
Concepções de saúde, doença, cuidado, de estar doente associa-se à incapacidade de gera-
e modos de ver as práticas de cuidado ção do trabalho.
Algumas concepções de cuidar, em certo
As concepções acerca do processo saúde-do- sentido, aproximam-se das concepções de saúde
ença-cuidado relacionam-se com as práticas de relatadas pelos feirantes. Há, portanto, uma di-
cuidado quando o modo de entender o mundo mensão biologicista da ideia de cuidar (consul-
e sua dinâmica social legitimam ações, atitudes, tas; exames periódicos; saúde entendida como
relações interpessoais, orientações e conselhos. ausência de doença) e, não obstante, outras con-
Nessa relação, saúde é atribuída a uma ideia atre- cepções assumem dimensões mais amplas, de
lada à adoção de práticas higiênicas, sobretudo, prevenção de doenças. Cuidado, o nome já está
aquelas necessárias à limpeza dos alimentos, to- dizendo, é cuidar mesmo do corpo, né? Cuidar da
madas como ação de cuidado. Saúde é tudo, é hi- alimentação, se alimentar direitinho, é ir no médi-
giene, lavar as mãos, quando ir no banheiro lavar as co pelo menos uma vez no ano. (Matheus).
mãos, lavar as mãos antes de pegar na alimentação O cuidado pode ser concretizado com a re-
[...] (Maria). Maria ratifica o reducionismo das alização de práticas de prevenção: cuidando da
concepções de saúde-doença, através da ênfase no alimentação, indo periodicamente ao médico;
biologicismo, ao adotar práticas higiênicas como ou de práticas de cura, como comprar o medi-
uma medida para ter saúde e evitar a doença. camento prescrito. Ao suprir tais necessidades,
A doença é percebida em analogia ao fun- cuida-se da família, no sentido de manter a vida e
cionamento de uma máquina; nota-se que algo prover recursos imprescindíveis à sobrevivência.
não está dentro do “normal” e, assim, os feirantes Defende-se que apesar da indistinção quanto
associam doença a alguma desordem no corpo às concepções de cuidar e de saúde, muitas vezes
biológico; é quando sinais e sintomas manifes- presente na percepção dos feirantes, há, contudo,
tam-se no corpo e os feirantes os expressam ao uma noção mais abrangente do cuidar; e esta, ao
referir mal-estar ou dor. Doença é quando não se contrário de saúde, pode prescindir da relação
sente bem, o corpo esmorecido, sem força, sem co- com o processo de adoecimento, ao imbricar as-
ragem, sentindo dor. (Lia). Desse modo, sentir-se pectos inatos ao ser humano. Nessa vertente, cui-
bem para o feirante não se constitui das várias dar assume uma dimensão afetiva, com aspectos
dimensões que o bem-estar possui (físico, social, relacionados à felicidade, e social, relacionada às
mental), resume-se ao bom funcionamento dos necessidades da família enquanto corpo social.
órgãos e a não sentir dor. A dimensão ontológica do cuidar – no seu
As concepções de saúde são construções sentido genuíno – é resgatado por Jacó e Noe-
sociais, e podem ser ressignificadas de acordo mi, ao passo que eles entendem o cuidar como
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preocupação, zelo, atenção, como um processo A família é valorizada como espaço de segu-
inerente à essência humana. Para Jacó, o cuida- rança, cuidado e transmissão de valores e, em
do se refere a você cuidar, amar, porque quem ama certos aspectos, se aproxima da concepção de
cuida, não é? O conceito na verdade é o amor, você família contemporânea que exerce sua cidada-
ama, você cuida. Noemi, por sua vez, disse: [...] nia através da responsabilidade com o processo
Depende de cada um, primeiro a gente tem que saúde-doença, em sua conotação política. Nesse
cuidar de nós mesmos, nos valorizarmos; cuidar de sentido, os serviços de saúde são cobrados pelos
mim mesma para depois cuidar do outro. As fa- sujeitos enquanto instâncias garantidoras do di-
las remetem ao sentido humano do cuidar, um reito à saúde. A gente tem o Agente Comunitário
sentido altruísta, inerente ao ser humano, pois se de Saúde, se for alguma coisa que a gente não possa
entende que o cuidado é intrínseco, ao ser consi- ir é obrigação da Agente de Saúde ir. (Maria).
derado uma competência subjetiva. Maria enfatiza o papel do Agente Comunitá-
A partir dessas reflexões, aborda-se na ca- rio de Saúde (ACS) como mediador nas relações
tegoria seguinte, a importância atribuída pelos entre as famílias e a unidade básica de saúde,
trabalhadores feirantes ao cuidado familial nas tendo em vista o atendimento às necessidades de
práticas de cuidado, processo no qual a família saúde. Estas, por sua vez, pressupõem o compar-
agencia cuidados e promove saúde. tilhamento de direitos e deveres entre os usuários
e os serviços de saúde.
Protagonismo da família A família se torna um recurso primordial
nas práticas de cuidado para o processo saúde-doença-cuidado, reite-
rando o seu papel de apoiadora, provedora de
A família pode ser entendida como uma uni- recursos objetivos e subjetivos para o restabe-
dade protagonista do desenvolvimento humano, lecimento da saúde. A família tem que estar em
destacando-se nas práticas de cuidado. Nesse primeiro lugar [...] estar unido, estar junto. Como
sentido, a solidariedade na unidade familiar se se diz a união é que faz a força. [...]. A união real-
reafirma para potencializar as forças visando a mente é muito importante, esse amor, carinho pela
superação de problemas de saúde. Nossa família família, isso ajuda muito, principalmente em ca-
é muito unida, quando precisa está todo mundo sos extremos, o apoio da família, o carinho ajuda
disposto a cuidar, acompanhar ao médico, ficar até a pessoa a se restaurar, a se recuperar, a ajuda
em hospital, dar apoio, confortar mesmo. (Marta). da família, a união, isso realmente conta e muito.
Percebe-se que, para Marta, todos os familiares (Jacó). Observa-se que o modo de pensar a fa-
podem participar das práticas de cuidado. Para mília como fonte de força e de união articula-se
ela, qualquer membro familiar, quando aciona- com o pensamento de que existem maneiras ide-
do, estará disposto a unir-se aos outros familia- ais de agir: no cuidar, no amor e no carinho, que
res, e potencializar o cuidado. Parece pairar a são oferecidos como práticas de cuidado e como
ideia que todos podem e devem cuidar, ou como força restauradora de doenças, mesmo conside-
uma “obrigação”, uma função da família, ou rando a individualidade de cada membro, sua
como uma responsabilidade com o outro, pron- personalidade e suas atitudes.
tamente assumida, sem imposições. Contudo, o sentimento de união familial car-
Destacou-se nas falas a figura da mulher- reia experiências vividas, cabe refletir como se
cuidadora, sinalizando que mesmo a mulher da conformarão as relações familiares, antes confli-
sociedade moderna ao assumir outros papéis tuosas e distantes. Será o fenômeno do adoeci-
sociais, internalizou o papel de cuidadora, mo- mento capaz de atenuar ou eliminar tais carac-
nopolizando saberes e práticas de cuidado. Dessa terísticas das relações familiares em prol da cura?
maneira, a sociedade, ainda machista, naturaliza Para Jacó, a família deve ofertar apoio e carinho
e subordina a mulher a um cenário doméstico, até a restauração das “condições de saúde”. Entre-
algo que ocorre principalmente nas classes po- tanto, ao se tratar do adoecimento crônico, por
pulares. [...] A mãe, eu acho assim que ela sempre exemplo, tal prática pode resultar na ruptura do
tem um cuidado maior, nem o pai tem [...] quando cotidiano dos membros familiares que exercem o
se trata de doença eu acho que é mais importante cuidado, ou no abandono das ações de cuidado.
ainda. (Judite). Cabe a ela um “cuidado maior”, A família é, em suma, um dos componentes
cercado de atenção, de desvelo, de amor, parece, da rede de apoio social no processo saúde-do-
então, natural que caiba a ela cuidar dos aspectos ença, e, atua juntamente com outras instituições
práticos numa situação de adoecimento, como (formais e informais) que servem de comple-
levar ao médico, por exemplo. mento às redes de saúde no âmbito profissional.
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Saturnino MNG et al.

Essa abordagem temática é exposta na categoria para levar no médico, um vizinho ajuda da forma
a seguir. que tiver ao alcance dele [...]. É a primeira família
que a gente tem são os vizinhos [...]. (Judite). Con-
Atuação das redes de apoio social forme Hosana: Na igreja cada um faz seu papel,
e profissional no processo um ora, outro ajuda [...], aí a gente ajuda a elas
saúde-doença-cuidado ajudarem, eles arrecadam aqui para ajudar outras
pessoas [...]. Para Marta: A escola ajuda também
As concepções de saúde, doença e cuidado educando as crianças, fazendo essas campanhas,
interferem na forma de agir e transitar pelos gincanas que coletam objetos para doar, essas coi-
serviços de saúde que integram os sistemas de sas.
cuidado. Portanto, não se pode falar do proces- Os vizinhos oferecem apoio social, pois estão
so saúde-doença-cuidado sem relacioná-lo à próximos das famílias, podendo auxiliar com
vivência concreta de ter transitado pela rede de ajuda financeira, ou obter transporte para deslo-
serviços de saúde, sejam eles públicos ou priva- camento da pessoa doente até o serviço de saú-
dos. Geralmente a gente procura o posto de saúde de, entre outros auxílios. Eles são considerados
do bairro, assim, né? Só quando não resolve lá que também membros da família, como relatado por
é obrigatório buscar outro recurso no serviço par- Judite, há, portanto, uma teia de relações que se
ticular. (Acsa). forma e ampara os sujeitos em situações diversas,
Os atores sociais buscam assistência ao seu principalmente de adoecimento.
processo saúde-doença através dos serviços de A igreja é um espaço de apoio social, além de
saúde oferecidos pelos sistemas de cuidado for- oferecer auxílio espiritual e emocional, que pro-
mal e informal. Esses serviços referem-se ao fazer movem a saúde e cuidado, através de palavras de
profissional ou aproximam-se deste através do conforto, de esperança, de força e de determina-
empirismo de leigos, que por meio da sabedoria ção para seguir em frente na busca do restabele-
popular exercem apoio às necessidades de saúde, cimento da saúde, ou mesmo de sua prevenção e
mediante conselhos sobre o uso de remédios ca- promoção. As escolas, ainda que de forma mais
seiros. O cuidado é prestado pelas pessoas que es- restrita, são vistas como promotoras de saúde,
tão ali preparadas para isso, médicos, enfermeiros, fornecendo orientação sobre medidas de saú-
o cuidado profissional e também o cuidado pessoal, de, desenvolvendo a sociabilização de crianças e
né? De parentes, de amigos, uma visitação, tudo transmitindo a ideia de solidariedade.
isso é válido [...] procura, no caso, pode ser erva, Diante da diversidade das relações interpes-
sempre o acompanhamento de ervas ajuda [...]. soais e do contexto sócio-político-econômico,
(Jacó). as redes que envolvem os atores sociais buscam
O sistema formal de cuidados constituído suprir diversas carências ou necessidades, dentre
pela rede de atenção à saúde não exclui a procu- elas, as de saúde.
ra do sistema informal, ou popular, representa-
do pela rede social da família: mãe, pai, irmãos,
parentes, amigos, vizinhos e instituições como a Discussão
escola e a igreja. E os recursos do sistema popular,
para os atores, restringem-se à utilização de ervas O processo saúde-doença-cuidado tem relevân-
(chás), possivelmente por ser um saber enraizado cia e influência marcante no cotidiano de uma
no âmbito familiar, que passa de geração para ge- família, visto que envolve diferentes aspectos da
ração, pela experiência do uso, cercado por ideias vida em sociedade. Argumenta-se que nenhuma
de que o consumo não irá fazer nenhum mal, ou organização tem o poder de impor um compor-
pelo preço mais acessível e disponibilidade, pois tamento humano, elas podem orientar e, talvez,
alguns tipos de ervas medicinais são cultivados e/ influenciar decisões e estabelecer limites17. No
ou vendidos pelos próprios feirantes. entanto, as concepções dos atores sociais sobre
A rede de apoio social oferece proteção social este processo revelam o poder de determinada
e parte primordialmente do âmbito familiar, es- organização social, no caso, a unidade familiar –
tendendo-se a instituições informais, com caráter em convergir reações previsíveis.
de filantropia, como igrejas, instituições sociais e A família pensa em sintonia e age de forma
escolas, que assumem essa função. Elas pautam- semelhante, muitas vezes. Defende-se, por con-
se nas relações de cooperação e solidariedade, as seguinte, a ideia de que mesmo com reações
quais favorecem um senso de proximidade e se- diferentes à dor e ao processo de adoecer, os su-
gurança. [...] às vezes você não tem o transporte jeitos têm, até certo ponto, reações previsíveis,
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pois pertencem a um grupo; e seus membros sujeito usufrui de sua autonomia, atribuindo a si
compartilham os significados sociais atribuídos mesmo a responsabilidade com sua saúde e a de
a esse processo. Pode-se inferir, pois, que a vida seus familiares.
familiar, de compartilhamento de valores, cren- As concepções de saúde-doença-cuidado e
ças e comportamentos reflete na identificação do sobre as práticas de cuidado adotadas estão re-
“ser família”, e isto, em última instância, faz que lacionadas às construções culturais, crenças e
se compartilhem sentimentos e atitudes conver- valores que sustentam ou capacitam a família a
gentes no processo de adoecimento18. melhorar e manter a vida, visto que a cultura é
As concepções de saúde, doença e cuidado es- uma teia de significados que exerce influência
tão articuladas, e o seu condicionamento por um poderosa no comportamento e nas práticas das
contexto social e econômico desfavorável pode famílias22,23, em que pese o caráter prescritivo que
levar a práticas de cuidado pontuais, reducionis- parece emanar do discurso biomédico sobre saú-
tas. Quando a concepção de saúde se restringe a de-doença e sobre os modos de cuidar de si.
práticas de higiene, por exemplo, pensa-se que No entanto, esse caráter prescritivo não inva-
elas podem ter o objetivo, apenas, de afastar do- lida a realização de ações de cunho preventivista,
enças causadas por microrganismos patológicos. nas quais as práticas de saúde ampliam-se através
Os atores sociais parecem considerar saú- da visão de prevenção de doenças, de medidas
de e doença como categorias interdependentes. que satisfaçam às necessidades básicas de sobre-
Dessa forma, a doença, em oposição ao que foi vivência e, ainda, relativas ao bem-estar afetivo
dito sobre saúde, pode significar a não adoção de (esteio emocional, cuidar genuíno), caracterizan-
práticas de higiene, uma noção que também está do-se em práticas de cuidado (menos biologicis-
relacionada ao higienismo, consistindo que prá- tas e mais amplas).
ticas de higiene sejam pessoais, sejam estruturais As práticas de cuidado são inerentes ao pro-
como limpeza e arejamento dos ambientes e me- cesso saúde-doença, talvez por isso, autoras como
didas de saneamento básico19-21. Rosa et al.24 utilizem a nomenclatura processo
O reducionismo conceitual acerca do pro- saúde-doença-cuidado, que foi adotada neste
cesso saúde-doença-cuidado pode fundamentar estudo. As falas dos atores sociais revelam que
práticas de cuidado voltadas apenas para reabili- eles entendem o cuidado como estratégia para
tação e prevenção do adoecimento, pois, caso es- superar e evitar a doença, como requisito para
teja estabelecida a doença, os atores irão conviver ter saúde, situação em que se nota a sinonímia
com a ruptura do cotidiano, prováveis alterações entre concepções, leiam-se, modos de ver cui-
de renda, intensificação no envolvimento dos dado e saúde com as próprias práticas – modos
familiares e, por vezes, o agenciamento da rede de fazer cuidado e saúde. Nota-se, ademais, uma
de apoio; contudo, não é adequado generalizar indistinção conceitual entre concepções de saú-
tais concepções, visto que para alguns feirantes, de e cuidado. Contudo, percebe-se, também, que
a saúde amplia-se, assumindo uma perspectiva cuidado envolve e contém, numa comparação a
social22. Tal característica manifesta-se por explo- um diagrama matemático, a saúde e a doença,
ração de aspectos que condicionam concepções visto que é realizado para evitar a doença e para
próprias de determinado grupo, influenciadas se aproximar da saúde.
por características socioeconômicas, perfil epide- As concepções acerca do processo saúde-do-
miológico e pelo ambiente de trabalho, resultan- ença-cuidado representam ferramentas, entenda-
do em vulnerabilidade social. se, capacitam a partir do plano teórico-reflexivo,
A partir da visão ampliada de saúde e de de ideias, conselhos e crenças, para os modos de
cuidado, percebe-se que as condições socioeco- fazer dentro desse processo; estes se constituem
nômicas desfavoráveis dos feirantes não os impe- em práticas que permitem à unidade familiar op-
dem de ver o processo saúde-doença-cuidado de ções de cuidar da saúde, de planejar as ações de
forma crítica, entendendo a existência de fatores cuidado, de compartilhar e sugerir estratégias de
de risco no seu ambiente de trabalho, que os afas- prevenção e superação dos problemas decorren-
tam da qualidade de vida, de hábitos saudáveis de tes, bem como, o conhecimento e a concretização
vida; percebendo, por conseguinte, a saúde atra- das opções de cuidado, oferecidas pelos setores
vés de aspectos subjetivos, de bem-estar, de sen- de assistência à saúde: profissional, informal ou
tir-se bem, de ter qualidade de vida. A saúde as- popular.
sume a ideia de valor, da preciosidade que é viver, Enfatiza-se que o modo de ver, entender o
“saúde é vida”. Nesse sentido, a saúde é entendida mundo, a dinâmica familiar e os conselhos de
não somente como um dever do Estado, pois o familiares, amigos e vizinhos se constituem em
1730
Saturnino MNG et al.

um poder de persuasão de ideias, modos de ver saúde e articula-se com as diversas instituições de
e de fazer, que regem as relações familiares e apoio à saúde. Assim, além de prevenir, ela pro-
orientam pré-diagnósticos, medidas de saúde e move saúde e subsidia as condições que propi-
de busca por serviços de saúde26. Numa situação ciam bem-estar e qualidade de vida29.
de adoecimento ou de demanda por práticas de Ela reafirma-se como estrutura sociabilizado-
prevenção, esses ensinamentos auxiliam na deci- ra e basilar ao desenvolvimento psicossocial dos
são, interação e atitudes dentro do processo saú- seus membros; funciona, ademais, como rede
de-doença-cuidado. de apoio social – talvez, a mais representativa –
Nota-se, consequentemente, que a interna- e de saúde; é um sistema que mobiliza esforços
lização de costumes e ideias compartilhadas e quando um de seus membros requer cuidados,
aceitas na unidade familiar podem influenciar os agenciando, os ajudando financeiramente,
nas decisões e atitudes de cuidado, de procura dando-lhes bons conselhos e os apoiando mutu-
dos serviços de saúde, e até no fortalecimento amente nas situações de adoecimento, juntamen-
emocional que as situações de adoecimentos e te às demais instituições.
prevenção de eventos futuros exigem. O processo Os atores sociais, a partir de suas concepções
saúde-doença-cuidado é subsidiado pela semió- leigas somadas ao saber científico apreendido das
tica (símbolos e ressignificações), que auxilia no instituições sociais, lançam mão de estratégias e
percorrer e superação deste, a partir da reorga- táticas, e parecem elaborar um modelo explana-
nização da dinâmica familiar, de concepções e tório para explicar o estado de saúde19 e as ações
práticas, de modo a atender às demandas de cui- de cuidado. Os feirantes utilizam o setor infor-
dado, e enfrentar os entraves relacionados à supe- mal notadamente no cuidado domiciliar ofereci-
ração dos problemas de saúde. do pela família e sua rede de apoio. No setor for-
Esse empirismo compartilhado é respaldado mal, serviços do Sistema Único de Saúde (SUS)
na experiência de situações vividas pelos fami- aparecem como principal rede de atenção, ressal-
liares, mesmo que cada indivíduo ressignifique tando-se que a busca de atendimento nos servi-
sua experiência particular e tenha concepções ços privados ocorre, sobretudo por obstáculos no
próprias27. Novas concepções individuais podem acesso – alta demanda em detrimento de poucos
ser compreendidas como variantes das normas profissionais, demora no atendimento, escassez
sociais há tempos sustentadas pela unidade fami- de recursos diagnósticos, ou até falta de urbani-
liar. Por outro lado, ao se adotar novas concep- dade no atendimento – nos serviços públicos.
ções, fundamentadas pelo conhecimento cien-
tífico, por exemplo, a que goza de amplo acesso
as gerações contemporâneas, constituir-se-á os Considerações finais
conflitos intergeracionais28.
Conforme os relatos, diante de uma situação As concepções de saúde, doença, cuidado, e de
de adoecimento e das demandas de cuidado que práticas de saúde-cuidado auxiliam a família a
emergem, aparentemente, à primeira vista, não agenciar cuidados. Ela é responsável por trans-
existe ou não se observa um limite de papéis en- mitir valores, hábitos, informações e orientações
tre os familiares cuidadores. Não obstante, a ale- que influenciarão no transitar dos seus membros
gada prontidão da rede de solidariedade que é a dentro da rede de cuidados à saúde, e na oferta de
família, e do auxílio às necessidades de saúde do cuidados relacionados à promoção ou à reabili-
processo saúde-doença-cuidado, a figura femini- tação da saúde. As famílias permitem aos sujeitos
na ainda assume lugar de destaque, em um papel ressignificar os modelos explanatórios instituídos
naturalizado socialmente, uma vez que a mulher sobre o processo saúde-doença-cuidado, e assim
é vista (e se assume) como mais apta e disponível fazer escolhas terapêuticas para o atendimento de
para o cuidado. suas necessidades de saúde e, ainda, refletir criti-
A família é uma ferramenta fundamental no camente de maneira a readequar suas concepções
cuidado, juntamente com os serviços de saúde, e práticas de saúde-cuidado, isto é, seus modos de
pois ela tem a capacidade de ser disseminadora ver e de fazer.
de cuidados e de informações, e de influenciar Observou-se que nem sempre as concepções
seus membros a procurar os serviços de saúde, de saúde e cuidado são bem delimitadas e dife-
bem como, auxilia a entender e prevenir as doen- renciadas pelos feirantes. De modo similar, essa
ças no âmbito familiar, porque possui um olhar indistinção se estende à sinonímia entre práticas
aguçado enquanto produtora de saúde e cui- de saúde e cuidado. Contudo, defendem-se, ideias
dados. Ela busca a superação dos problemas de de que as concepções e as práticas de cuidado, a
1731

Ciência & Saúde Coletiva, 24(5):1723-1732, 2019


primeira no campo da reflexão e percepção cul- disposta a atender e/ou acompanhar o atendi-
tural, e a segunda, das atitudes de cuidado, são mento das demandas do processo saúde-doen-
instâncias diferentes – práticas de cuidado, que se ça-cuidado, pode vir a redundar em conflitos por
tornam mais abrangentes, assumindo múltiplas acúmulo de tarefas, faltas ao trabalho, sofrimento
dimensões, entre elas uma dimensão afetiva de emocional entre outros resultantes das novas ne-
apoio emocional aos membros. cessidades de saúde em um processo de adoeci-
Com efeito, parece haver uma dominância mento de um membro.
de concepções reducionistas de saúde e doença, Notam-se modos de ver e de fazer que se
que fundamentam práticas de saúde voltadas aproximam das concepções biologicistas, bem
apenas para reabilitação e prevenção do adoeci- como de outras, que evocam outras concepções
mento, pois, caso estabelecida a doença, os atores ampliadas de saúde, doença e cuidado. Estas úl-
deverão conviver com a ruptura do cotidiano, timas parecem vir de um empoderamento polí-
prováveis alterações de renda, intensificação no tico-social e científico que propicia uma amplia-
envolvimento dos familiares e, por vezes, o agen- ção conceitual e de ações, permitindo aos atores
ciamento da rede de apoio, contudo, não se abs- sociais protagonizar o processo saúde-doença-
tém da dimensão mais ampla e promocional das cuidado, numa relação de compartilhamento de
atitudes de prevenção de doenças e agravos. direitos e deveres entre os serviços de saúde e sua
A marcante idealização da família como rede rede de apoio social.
solidária e altruísta de apoio social, vista sempre

Colaboradores

MNG Saturnino trabalhou na concepção e deli-


neamento da pesquisa, na análise e interpretação
dos dados, na redação do artigo e na aprovação
da versão a ser publicada. TP Santos e PRLF Vale
trabalharam na redação do artigo e na aprovação
da versão a ser publicada. MGG Aguiar trabalhou
na concepção e delineamento da pesquisa, na re-
visão crítica do artigo e na aprovação da versão a
ser publicada.
1732
Saturnino MNG et al.

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