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ô catarina!
JUN. 2017 - ISSN 2318-3063

Jeferson Della Rocca Ossama: medula & osso Poemas de Edimilson de Almeida Pereira
Entrevista Crítica por Paulo de Toledo Inéditos Conto de Christiano de Almeida Scheiner
Dramaturgia de Afonso Nilson de Souza
Poemas de Cláudio Trindade
Cartas Editorial
C
Parabenizo a Fundação Catarinense de Cultura e sua equipe pelo retorno do
jornal Ô Catarina! O periódico possibilita conhecer mais e melhor o que se om a sua vocação de atender aos mais diversos seg-
produz pelo nosso estado. Ler a entrevista concedida por Pépe Sedrez foi uma mentos artísticos, esta edição d'Ô Catarina! faz um
imensa alegria. Minha admiração pelo diretor blumenauense e pela Cia. Carona passeio pelas artes visuais, com a capa da artis-
só aumenta. ta Juliana Crispe, as ilustrações de Carol Silva e o trabalho
(Valmor Nini Beltrame, diretor e professor de teatro, Florianópolis/ SC) verbovisual de Cláudio Trindade; pela música com a entrevis-
ta do maestro Jeferson Della Rocca, pelo teatro com o perfil
Muito obrigado pelo envio do novo número d'Ô Catarina  em sua nova da atriz Milena Moraes e a dramaturgia de Afonso Nilson de
fase. Publicação sempre forte e da melhor qualidade nos campos das artes Souza e, como não poderia deixar de fazer, pela literatura com
plásticas, do teatro e da literatura. Parabéns a todos que integram a equipe. o conto inédito de Christiano de Almeida Scheiner, os poemas
(André Seffrin, crítico literário, Rio de Janeiro/RJ) de Edimilson de Almeida Pereira, a análise do livro Ossama,
do poeta Dennis Radünz, e a tradução, também inédita, da
Parabenizo a Fundação Catarinense de Cultura e toda a equipe responsável poeta irlandesa Moya Cannon, feita pela poeta e tradutora
pel'Ô Catarina!, veículo de relevância tamanha na difusão da cultura, não só Luci Collin. O conto de Christiano de Almeida Scheiner é uma
deste estado, pelo compromisso com o acuro e a abrangência destacados na justa homenagem que a Fundação Catarinense de Cultura faz,
edição n. 86. já que o dramaturgo, ator e diretor nos deixou, ainda muito
(Lêda Selma de Alencar, presidente da Academia Goiana de Letras, Goia- jovem, no ano de 2015. Cabe lembrar que o conto em questão
nia/GO) foi o gatilho para o espetáculo E.V.A, da Cia. Persona de Teatro.
Ô Catarina!, com a frequente redução de espaços que te-
Depois de dois anos, voltei a receber a publicação cultural Ô Catarina! Consi- nham por objetivo publicar e pensar arte, se afirma neste ce-
dero a maior revista cultural do estado. Boa leitura pra mim. nário e horizonte inóspitos, como uma voz possível. Que esse
(Jeferson Corrêa, jornalista, Joinville/ SC) número ressoe e amplie novas possibilidades e fronteiras. A
Fundação Catarinense de Cultura tem compromisso de manter
Caro professor Rodolfo, a Fundação Catarinense de Cultura é fundamental este espaço e seguirá trabalhando para a conquista de novos
para a cultura catarinense, da qual tenho imenso orgulho. Todos conhecemos espaços de debate, formação e circulação no campo da arte e
a excelência do seu trabalho na Educação e na Cultura. Parabéns. Recebi com da cultura. Desejo ao leitor boa estada por essas páginas.
grande satisfação o número 86 d'Ô Catarina! Está ótimo. Ao cumprimentá-lo,
parabenizo toda a equipe do jornal. Rodolfo Joaquim Pinto da Luz
(Godofredo de Oliveira Neto, escritor, Rio de Janeiro/RJ) Presidente da Fundação Catarinense de Cultura

EXPEDIENTE
Governador do Estado de Santa Catarina / João Raimundo Colombo SUPLEMENTO CULTURAL DE SANTA CATARINA - 87 - [Ô CATARINA]
Vice-governador / Eduardo Pinho Moreira
Secretário de Estado de Turismo, Cultura e Esporte / Leonel Pavan Junho de 2017
Presidente / Rodolfo Joaquim Pinto da Luz Editor / Marco Vasques
Diretora de Difusão Artística / Mary Garcia Assistente Editorial / Marcos Espíndola
Diretora de Patrimônio Cultural / Vanessa Maria Pereira Conselho Editorial / Alberto Heller, Amilcar Neves, Celso Braida, Chico Faganello, Letícia Cardoso,
Diretora de Administração / Márli Lorensetti Marco Vasques, Marcos Espíndola, Nini Beltrame, Péricles Prade, Sandra Meyer, Sidneya Gaspar de
Consultor Jurídico / Rodrigo Goeldner Capella Oliveira, Rubens da Cunha
Consultor de Projetos Especiais / Marco Anselmo Vasques Colaboradores desta edição / Afonso Nilson de Souza, Alberto Heller, Carol Silva, Cláudio Trindade,
Assistente da Presidência / Sidneya Gaspar de Oliveira Christiano de Almeida Scheiner, Edimilson de Almeida Pereira, Jeferson Della Rocca, Juliana Crispe,
Assessor de Comunicação / Marcos Espíndola Luci Collin, Marco Vasques, Marcos Espíndola, Moya Cannon, Paulo de Toledo e Rubens da Cunha.
Gerente Operacional / Dejair de Oliveira Capa / Obra: Ouvir nas conhas as origens do mundo, de Juliana Crispe
Gerente de Administração, Finanças e Contabilidade / Ozeas Mafra Filho Ilustrações / Carol Silva
Gerente de Logística e Eventos Culturais / Projetos / Ivan Carlos Schmidt Filho Revisora / Denize Gonzaga
Gerente de Logística e Eventos Culturais / Marketing / Melissa Rodrigues Designer Gráfico / Moysés Lavagnoli
Gerente de Patrimônio Cultural / Halley Filipouski Impressão / DIOESC - Diretoria da Imprensa Oficial e Editora de Santa Catarina
Gerente de Pesquisa e Tombamento / Tatiana Búrigo Tiragem / 6 mil exemplares
Gerente das Oficinas de Arte / Fabricio Mattje Gwoszdz
Administrador do Museu de Arte de Santa Catarina / Josué Mattos Entre em contato:
Administradora do Museu da Imagem e do Som / Ana Ligia Becker Fundação Catarinense de Cultura
Administradora do Museu Histórico de Santa Catarina / Maria José da Costa Brandão Av. Governador Irineu Bornhausen, 5600.
Administrador da Casa dos Açores Museu Etnográfico / Vitório Fretta Colossi Agronômica – CEP: 88025-202
Administradora da Casa de Campo do Governador Hercílio Luz / Graciela Bratfisch Weiss Florianópolis – Santa Catarina
Administradora do Teatro Álvaro de Carvalho / Eliza Docena E-mail / ocatarina@fcc.sc.gov.br
Administradora da Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina / Patrícia Karla Firmino Fone / (48) 3664-2680
Administradora do Centro Integrado de Cultura / Alizandra Oliveira Site / www.fcc.sc.gov.br/ocatarina
Administradora da Escolinha de Arte / Alessandra Ghisi Zapelini
Museu Nacional do Mar / Marina Bruschi Os textos assinados são de
Responsável pela Casa da Alfândega / Adriana Aparecida de Brito responsabilidade dos autores.
Secretário Executivo do Conselho Estadual de Cultura / Rosivaldo Flausino
Entrevista com Jeferson Della Rocca

A fortaleza musical da Camerata


Por Marcos Espíndola e Alberto Heller

Foto: divulgação
Maestro e compositor catarinense, Jeferson
Della Rocca traz na ascendência italiana a per-
sonificação da sua natureza de fazer música: “da
Fortaleza” (na tradução literal do seu sobrenome).
Natural de São Carlos, há 23 anos ele conduz e
pensa os passos da Camerata Florianópolis, con-
siderada a mais atuante de Santa Catarina e com
destaques nacionais e internacionais. Sob a sua
batuta, a Camerata realizou mais de 650 concer-
tos, versando dos notórios clássicos às parcerias
com outros gêneros, como a MPB, o rock, o eletrô-
nico e o reggae. É transitando entre as fronteiras
distintas da música (para muitos um sacrilégio)
que a Camerata pauta a sua atuação como suces-
so de público e na formação de uma imensurável
plateia. Jeferson, assim, caminha nos passos do
bisavô, pianista e especialista em ópera, mas que,
ao desembarcar em Santa Catarina no século 19,
marcou sua trajetória como pioneiro do cinema —
percorrendo o estado exibindo filmes e executan- Aida, Leonora e Gioconda. Aos filhos Pedro, João mente um violino na frente, exceto os estam-
do as trilhas ao vivo no velho piano. Daí é possível e Aurino ele dedicou toda a sua didática (talvez pados nos antigos discos de vinil. Ainda muito
mensurar a natureza que move o bisneto na edifi- discutível) para tornar o mais novo, o Aurino, um novo comecei com musicalização infantil, pia-
cação da história da Camerata, mesmo sob críti- virtuose do piano. no, violão clássico e posteriormente violino. É
cas e crises, como uma fortaleza da música. Fazia o menino estudar no mínimo seis horas claro que a adolescência é um grande desafio
diárias, sem direito a “perder tempo” com brinca- para todo estudante de música erudita. Mui-
Vamos partir do princípio. Bem do prin- deiras ou outras “distrações”. É claro que, ao che- tos ex-alunos meus, extremamente talentosos,
cípio. Há uma história muito curiosa que é gar na adolescência, a “didática” teve que ser in- desistiram nesta fase. Existe um certo bullying
sobre o seu bisavô, que fazia trilhas ao vivo crementada: para manter Aurino horas seguidas nas escolas, e frequentemente surgem rótulos
para filmes nos cinemas. Quem foi essa figura sentado frente ao piano, seu pé era acorrentado como “nerd”, “certinho”, bom moço, enquanto
e qual foi o papel dele na sua formação? ao robusto e pesado instrumento musical. que o “popular” é ser “bad boy”, irreverente, até
Aos 20 anos, Aurino casou-se, e uma de suas mal-educado. Difícil passar imune por essa pres-
Meu bisavô era pianista, especialista em ópe- primeiras “providências” foi se desfazer de seu são social.
ras, e trabalhou muitos anos como maestro pre- piano. Apesar de ser um pianista tecnicamente Na minha adolescência não dava grande
parador dos cantores líricos de teatros, como muito bom, os métodos de seu pai não lhes trou- atenção aos que me criticavam por passar horas
o alla Scala de Milão e o Teatro San Carlo, de xeram o amor pela música. diárias estudando violino. Na verdade, até me
Nápoles. Cansado da tumultuada situação eco- Apesar de não ter incentivado muito seus fi- agradava a ideia de ser diferente! A maior trans-
nômica e política da Itália no final do século re- lhos no campo das artes, em Amir, seu filho mais formação, além de adotar um visual de cabelo
trasado, veio tentar “a sorte” no Brasil, trazendo novo, logo despertou um grande fascínio pela mú- até as costas e jeans surrado, foi incluir entre
como bagagem (nada convencional) oito pianos sica erudita. Seu primeiro investimento quando meus discos prediletos álbuns do Led Zeppelin,
de cauda. começou a trabalhar foi uma vitrola e alguns dis- Yes, Deep Purple, Jethro Tull, Pink Floyd, Black
Decepcionado com as dificuldades de um cos de música clássica. E foi justamente com esses Sabbath, entre outros clássicos do rock, suficien-
“mercado de trabalho” praticamente inexistente discos, tocados diariamente na antiga vitrola na tes para me tornar o principal inimigo de todos
no campo da música erudita, ele voltou para a Itá- sala de casa, que o então papai de três meninas e os vizinhos da rua onde morava. Mas até essa
lia e resolveu empreender em outro segmento, que um menino — no caso eu, Jeferson — tentava in- fase foi válida para a minha vida profissional,
igualmente o fascinava: o recém-inventado Cine- cutir em seus filhos o gosto pela boa música. quando me reencontrei com o rock and roll no
ma. Comprou uma máquina de cinema e desem- início do projeto Rock’n Camerata, em 2008.
barcou novamente por aqui em 1896, criando o O despertar para a música erudita surgiu
primeiro cinema itinerante do estado. Viajava por quando? E em que momento houve os desca- A Camerata Florianópolis começou com
diversas cidades de Santa Catarina, levando em minhos inerentes à fase da juventude, como o você e seus próprios alunos de violino, e o
duas carroças seus equipamentos de projeção e rock, por exemplo? grupo se transformou, ao longo dos últi-
um de seus pianos; enquanto projetava os primei- mos 20 anos, de orquestra infantojuvenil a
ros filmes da história, ele mesmo fazia as trilhas Meu pai foi minha primeira grande influên- orquestra profissional. Ou seja: houve uma
sonoras que improvisava em tempo real. cia. Contava ele que quando eu tinha cerca de formação desde o zero. Como foi essa trans-
Apaixonado por ópera, não hesitou em dar quatro anos dizia querer ser violinista quando formação? E como você vê as relações entre o
nomes de personagens de óperas às filhas, com crescesse, apesar de nunca ter visto pessoal- pedagógico e o artístico em sua prática?

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Foto: Sobre Tons fotografia
Eu comecei a dar aulas de música muito cedo. giram, em 2000, o CD “Tributo à Música Popular Mas sinto que o preconceito não se limita ao
Aos 15 anos, fui monitor no antigo projeto Espiral, Brasileira”, em 2002 o “Música para Cinema”, e, público da música erudita. Entre os gêneros po-
que era desenvolvido no recém-construído Cen- mais tarde, com a música eletrônica “Camerata pulares, isso é até mesmo mais acirrado: rece-
tro Integrado de Cultura (CIC), e ao mesmo tempo & Elekphantz & Gui Boratto”, o “Clássicos com bemos muitas críticas do público simpatizante
dei início aos trabalhos de professor particular de Energia”, o estrondoso sucesso do “Marley in Ca- do rock e da MPB, por exemplo, quando fizemos
música. Aos 19 anos formamos nossa primeira es- merata” e agora o “Especial The Beatles”. Com a programas de reggae e de música eletrônica (in-
cola de música. Foi quando iniciei o trabalho com parceria com o compositor Luiz Gustavo Zago clusive alguns xingamentos). Mas é preciso ter
orquestras juvenis. Aos 24, formei a Camerata surgiram o “In Jazz – A Arte do Improviso”, o pro- paciência — aprendemos com o tempo que não
Florianópolis com um grupo composto de meus grama “Canção”, que valoriza a musica autoral adianta querer “converter” as pessoas, até mes-
alunos avançados, que já tinham nível técnico catarinense, resultando no grande sucesso do mo porque não temos esse poder. Apenas torço
semiprofissional, apesar de serem muito jovens. projeto “Camerata Convida”, com shows realiza- que essas barreiras entre os estilos musicais se-
Este processo de profissionalização do grupo le- dos com Lenine e Paulinho Moska — e já esta- jam cada vez menores!
vou cerca de cinco anos apenas, mas continuamos mos trabalhando no show com Zeca Baleiro, que
a investir muito no aperfeiçoamento dos músicos acontecerá em junho. Onde você enxerga o limite para transitar
locais durante cerca de 10 anos. Não menos importante no gênero popular, entre as fronteiras de estilos, sem que descam-
Em 1997, gravamos o primeiro CD da Ca- podemos ainda destacar o coletivo “Catarina be para um anacronismo popularesco? Algo
merata e, em 1998, o segundo. A orquestra já Instrumental”, que visa valorizar os principais do tipo André Rieu...
arrancava muitos elogios pelo resultado sono- compositores desse segmento no estado, e shows
ro que apresentava. O grande salto na história com artistas de renome nacional, como Toqui- Não duvido que muitos “críticos de plantão”
do grupo ocorreu em 1999, quando começamos nho, Daniel, Daniela Mercury, Buchecha, Agnal- tenham acreditado que nosso trabalho já tenha
a trabalhar com o apoio de patrocínios mais do Rayol, entre outros, culminando no show no avançado essa fronteira. Apegando-me a seu
consistentes, que possibilitaram a efetiva pro- Rock in Rio com o guitarrista norte- americano exemplo, apesar de ter um estilo e convicções
fissionalização do quadro de artistas e técnicos Steve Vai. diferentes do André Rieu, não costumo criticar
da orquestra. Gravamos nos anos seguintes di- Certamente, essas experiências foram funda- o trabalho que ele faz. Muitas pessoas que assis-
versos CDs e, em 2005, fizemos nossa primeira mentais para mim, como também para todos os tem a nossos espetáculos de música erudita já me
turnê europeia, muito elogiada pela crítica. músicos da orquestra, para o desenvolvimento de afirmaram serem consumidoras dos DVDs por ele
O reconhecimento nacional veio depois da habilidades artísticas que a música erudita não produzidos. De certa forma, ele conseguiu aproxi-
bem-sucedida turnê nacional de 2006. Iniciou- necessariamente desperta, como o improviso, a mar muita gente da música clássica, assim como
se ali uma nova fase no trabalho. Cada vaga que espontaneidade, o swing, o groove, a naturalidade Andrea Bocceli despertou muita gente para a ópe-
surgia na orquestra passou a ser disputada em com ritmos brasileiros, a interação diferente com o ra (apesar de ser muito combatido pelos puristas
audições externas por músicos que vinham de público, o trabalhar com multidões e a estética da deste gênero).
todas as partes do Brasil e de países da América música popular. Acredito que foi uma grande esco- O importante no final das contas é a satisfação
do Sul. Não cabia mais uma relação de professor la, que certamente só veio a contribuir para a nos- do público: se as pessoas assistem a determinado
com os integrantes da orquestra. sa performance também como músicos eruditos. trabalho e se sentem bem, perfeito! Esse deve ser
Aos poucos deixei de trabalhar com o ensino sempre o objetivo principal do artista ao prepa-
da música. Minha última experiência nesse senti- No mundo da música clássica costuma rar um trabalho novo. O que não podemos é fazer
do se deu nos projetos sociais da Camerata, com haver certa resistência e certo preconceito qualquer coisa em que não tenhamos a convicção
os quais ainda colaborei diretamente até 2014. em relação às misturas de gêneros musicais de ser correta, ou apenas seguir modismos.
no palco. Como você lida com essas “cobran-
A Camerata tem se destacado nos últimos ças” do meio? O tema “formação de plateia” possui enor-
dez anos por suas parcerias com outros gê- me importância no contexto cultural, e vocês
neros e estilos, tais como rock, MPB, jazz, O preconceito existiu, sim, mas acredito têm se destacado pela assiduidade e fideli-
música eletrônica e até mesmo reggae. Em que soube lidar bem quanto a isso. Tenho ple- dade do público em seus concertos (quase
que sentido isso foi transformador para os na convicção de que não estou fazendo nada todas as apresentações estão lotadas), bem
integrantes da orquestra e para você? de “errado”. Estamos unindo as pessoas e esti- como pela diversidade entre os ouvintes (seja
los por meio da música; isso é o fundamental. de idade, gosto ou formação). Além da varie-
Apesar do grande impulso que ocorreu com Com o passar do tempo, o público percebeu que dade de repertórios, a que mais você atribui
o projeto Rock’n Camerata em 2008, no sentido o fato de fazermos alguns programas de gênero esse sucesso?
de popularização do nome da orquestra, esse na- popular durante nossas temporadas anuais em
moro com o gênero popular é bem anterior. Já em nada interferia nos nossos programas de mú- Todas as orquestras trabalham sempre com
1995 realizamos o primeiro programa dedicado sica erudita. Acabaram também servindo para uma variedade de repertórios, muitas vezes
ao Chorinho e aos clássicos da MPB. Da parceria aproximar os públicos, de ambos os lados, que quase todas as semanas com um diferente, mas
de sucesso com o compositor Alberto Heller, sur- experimentaram conhecer o “novo”. não necessariamente possuem um grande pú-

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blico apenas por este fator. Algo que julgo como sultado um produto de boa qualidade. Não pode- tro, dos colegas, do público, e tudo o mais que en-
fundamental, mas muitos não costumam dar o mos nos permitir fazer algo que possamos julgar volve trabalhar em uma profissão de alta precisão,
peso necessário, é o fato de que já estamos tra- como ruim. Estamos trabalhando atualmente ou seja, não existe nada de fácil ou tranquilo na
balhando ininterruptamente há 23 anos, sempre na concepção de um trabalho voltado a nossas vida de um artista profissional.
em busca de constante evolução, tanto na parte crianças, na produção de uma ópera inédita que Outro ponto fundamental é a questão do finan-
musical como na produção dos espetáculos. A está sendo composta por Alberto Heller, no novo ciamento. Muitas pessoas que saem de suas casas
busca incessante de níveis cada vez mais altos de espetáculo “The Beatles”, na segunda edição do para ir ao teatro se divertir, buscando uma opção
qualidade é o grande segredo para qualquer tra- espetáculo “Música para Cinema” e na regrava- de lazer, em muitos momentos se esquecem de
balho artístico, mas não se conquista do dia para ção de alguns discos antigos nossos, mas algu- que nós, que trabalhamos com entretenimento,
a noite; é um trabalho de longo prazo. Respeito mas surpresas vão ser apresentadas ao público estamos ali no palco, na verdade, trabalhando.
pela música e pelo público, que sai de casa para em breve! Elas se esquecem de que esta é a nossa profissão,
assistir a nossos concertos, é o que acreditamos que estamos ali garantindo também nosso susten-
como fundamental. O convite para a Camerata dividir o palco to e nosso bem-estar.
com o guitarrista Steve Vai no Rock in Rio tal- Evoluímos muito já nesta questão nos últimos
Curioso é que, seja um Rock’n Camerata, vez tenha sido o ápice da consolidação desse anos, mas ainda ouvimos de algumas pessoas a
um tributo a Bob Marley, seja nos concertos processo de diálogo que vocês realizam com pergunta: “Você é músico, mas no que trabalha
ou nas sinfonias de Mozart, é perceptível a as- o rock. E se surgisse outra oportunidade, vo- mesmo para ganhar a vida?” A mudança coletiva
cendência da plateia em grande número. Isso cês voltariam? de mentalidade acredito ser o primeiro passo para
seria prova de que o caminho até agora deu re- que, aos poucos, as pessoas e empresas apoiem de
sultados, mas e daqui há dez anos, como você A experiência de ter participado do Rock in forma mais concreta os trabalhos culturais.
projeta o futuro da Camerata? Rio 2015 foi muito enriquecedora, e a oportuni-
dade de ter trabalhado com Steve Vai foi simples- Aproveitando a pergunta anterior, como
No segmento do entretenimento, ou mesmo mente fantástica! Nosso foco neste momento é a você observa o impacto da crise econômica
avaliando apenas a música, dez anos podem ser turnê, por diversos estados do Brasil e por paí- no mercado da música erudita e clássica?
considerados quase uma eternidade. As coisas se ses da América do Sul, que estamos organizando Grandes orquestras nacionais hoje sofrem
modificam com uma velocidade espantosa. Há para o segundo semestre. Não participaremos do consideravelmente com a falta de recursos.
dez anos, o artista gravava CDs pensando ter lu- Rock in Rio deste ano e de nenhum outro gran- Isso quando o contingenciamento não leva
cro com a sua venda, porém hoje praticamente o de festival desse segmento. Estamos voltados no ao fechamento de algumas.
mercado não existe mais, as gravações servem (e momento para o fortalecimento dos projetos da
muito bem) para divulgar os trabalhos, mas o foco orquestra. Vivemos nos últimos três anos a maior crise
são os espetáculos. Apesar de ainda haver algu- financeira da história das orquestras no Brasil.
ma venda online, as atenções estão voltadas para O público vê no palco o lado glamoroso da Diversas orquestras já fecharam, e outras dezenas
novos mecanismos como o Spotify ou as publica- profissão — mas sabemos que nem tudo é um passam hoje por extremas dificuldades. É claro
ções patrocinadas em canais como o YouTube, mar de rosas... Quais são as dificuldades e os que aqui no estado não foi diferente, com a redu-
por exemplo. Todos precisam constantemente se desafios do grupo atualmente? ção considerável dos patrocínios e apoios. Em par-
reinventar. te é uma questão de consciência, ou mesmo de ig-
A única certeza que tenho projetada para 2027 Sim, nem tudo é um mar de rosas! Devemos norância de alguns de nossos gestores, que julgam
é que estaremos ainda fazendo a boa e velha mú- considerar o fato de que a quase totalidade dos a cultura como algo dispensável, não fundamental,
sica dos nossos grandes gênios da música erudita músicos profissionais trabalha com algo que ama, menos importante que qualquer outra demanda.
da humanidade! que tem vocação; então, não sofrem da angústia Foi comum neste período ouvir declarações do
de dedicar suas vidas a uma profissão escolhida tipo “por que investir em cultura se falta dinheiro
Vocês bebem com o rock, com o reggae, por pressão social ou familiar. para saúde e educação?” Falta a eles avaliar que
com o cinema e com o eletrônico. Qual estilo Por outro lado, por trás do “glamour” de uma uma mente sã reflete um corpo são, e que inves-
ainda cabe nessa celebração da música em- hora de aplausos em um concerto no teatro, de- tir em cultura também é investir em educação, se
preendida pela Camerata? zenas de horas de prática em ensaios coletivos e pensarmos na educação integral do ser.
individuais são necessários para a preparação de Outro ponto que pesou negativamente foi a
Nosso limite é acreditar que o trabalho, inde- apenas uma hora de concerto. A velha história da verdadeira enxurrada de ataques à Lei Rouanet
pendente do gênero ou estilo, deva ter como re- “ponta do iceberg”. Aguentar a pressão do maes- no último ano, depois de alguns poucos casos de
irregularidades em alguns projetos pontuais de
produtores do setor. Foi um monte de gente que
não entende nada do assunto, enchendo as redes
Foto: Felipe Aguillar

sociais de críticas à Lei como um todo. Pensando


ainda no exemplo da educação e da saúde que dei
anteriormente: como houve recentes escândalos
de corrupção envolvendo a merenda escolar, de-
veriam, então, deixar de servir merenda escolar
para todas as crianças nas escolas? Ou como sur-
giram diversos escândalos envolvendo desvios de
verbas da saúde e irregularidades em hospitais,
deveriam, então, fechar os hospitais e deixar a po-
pulação sem esses serviços?
A Lei Rouanet é fundamental para a existência
de cerca de 80% da produção cultural no Brasil,

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Foto: Sobre Tons fotografia
assim como são também os mecanismos de in- Não tenho um compositor preferido! Gosto em iniciativas como a aproximação com gêne-
centivo fiscal estadual e municipal. Nesse sentido, de vários, de diferentes períodos da música. ros populares, os concertos gratuitos em comu-
devemos pensar em fortalecê-los, aumentar o con- nidades, os projetos sociais de ensino de músi-
trole e a fiscalização, mas jamais deixar que sejam Qual é o compositor que você reconhece ca para crianças e jovens, concertos ao ar livre
apedrejados em razão da falta de honestidade de como o que mais toca o público? abertos ao grande público, os concertos temáti-
um pequeno grupo de pessoas. cos e a manutenção de ingressos populares para
Quando começamos, normalmente tínha- todos os concertos de música erudita em tea-
É de se imaginar que o custo de formação mos concertos lotados, com públicos entusias- tros nos quais os realizamos. Felizmente, com
(aquisição de instrumentos, aulas e aperfeiço- mados para assistir a composições de Bach, essas iniciativas, conseguimos atrair a atenção
amento) seja relevante, principalmente para Mozart, Beethoven, Tchaikovsky e alguns outros desse público para nosso trabalho.
uma faixa considerável da população, certo? famosos gênios da música clássica e público li-
mitado para compositores igualmente geniais, O que é o silêncio para você? Há quem,
A formação de um músico erudito começa nor- mas pouco conhecidos. como (o compositor e teórico musical ame-
malmente na infância, passando por professores Depois de 23 anos de temporadas de música ricano John Cage), considere o silêncio mú-
particulares de instrumento musical, conservató- erudita da Camerata, hoje lotamos concertos sica também...
rios e escolas de música, e, quando ele chega ao e sentimos grande empolgação da plateia com
ponto de buscar um curso universitário, normal- repertórios envolvendo compositores como Certamente, quando estou fora do trabalho
mente já possuindo um nível semiprofissional, as Suk, Bloch, Britten, Janacek, Holst, entre outros, de regência da orquestra, o silêncio é certamen-
provas específicas são rígidas. A formação de um inclusive com estreias de obras de excelentes te uma de minhas músicas prediletas! John Cage
músico profissional (ao menos de música erudita) compositores brasileiros da atualidade. Isso de- ganhou fama mundial ao “compor” em 1952 a
envolve normalmente pelo menos de 15 a 16 anos monstra um grande amadurecimento por parte música “4’33””, que se tornou sua composição
de estudos, em alguns casos até mais de 20 anos, do público, mas que só foi possível por meio da mais famosa, apesar de não ter um único som.
quando ele busca carreiras como solista e concer- manutenção de temporadas fixas de concertos Certamente quis por meio dessa iniciativa
tista. Os gastos com formação, instrumentos mu- e de um trabalho de formação de plateia, que de arte conceitual de ampliar a percepção e as
sicais, sua manutenção, acessórios e partituras são envolve, inclusive, este trabalho que realizamos sensações do público, mostrar que não existe
altíssimos. Um violino profissional de alta perfor- com concertos eruditos nos bairros da cidade. silêncio absoluto, que os ruídos existentes nas
mance custa no mínimo R$ 30 mil e pode chegar salas de concerto, a respiração das pessoas, os
a milhões. Você rendeu um retumbante tributo ao sons do cotidiano vão garantir sempre novas in-
maestro Edino Krieger. É indiscutível a re- terpretações para “sua composição”, bem como
Da mesma forma, se percebe uma depen- levância nacional da obra dele, mas poucos trouxe para a discussão a importância do silên-
dência muito grande das orquestras e de seus sabem de que se trata de um artista catari- cio para a formação do discurso musical.
circuitos ao suporte financeiro estatal. Isso é nense. Nesse contexto, a atenção que você Assim como alguns zen-budistas praticam o
fato ou uma impressão exagerada? dispensa à obra do Edino tem também esse culto ao silêncio para ampliar seus horizontes
caráter educativo sobre a origem dele? de percepção e autoconhecimento, sua iniciati-
Acredito ser praticamente impossível a ma- va foi muito válida para, inclusive, trazer a dis-
nutenção de grupos profissionais estáveis sem o A obra de Edino Krieger é fantástica; ele me- cussão entre músicos profissionais e estudan-
apoio estatal. E esse é o padrão. No Brasil (prati- rece toda a fama e o reconhecimento que tem tes sobre a importância de aprender a se ouvir
camente em todos os estados, inclusive em alguns Brasil afora e no exterior. Sou fã de sua música (grande parte dos músicos não percebem, mas
economicamente pouco privilegiados), o Estado é e considero o CD que gravamos em 2005, com não sabem fazê-lo). Aprendendo a “ouvir” o si-
responsável pela manutenção de orquestras sin- suas composições para orquestra de cordas, lêncio, certamente entramos em outra dimen-
fônicas ou de câmara, que vai do pagamento dos como um de nossos melhores trabalhos. são em nossa arte de produzir e combinar sons,
salários e benefícios dos artistas, produtores e téc- Infelizmente ele ainda é pouco conhecido talvez compreendendo verdadeiramente a arte
nicos, até o custeio dos espetáculos. E quase todos pelo grande público aqui do estado, a não ser de fazer música.
os estados possuem orquestras mantidas exclu- pelas pessoas que vivem em Brusque, sua cida- O silêncio não se opõe ao som: são partes de
sivamente pelo governo estadual ou municipal, de natal. um mesmo todo, um complementa e enriquece
sendo que em alguns isso aconteceu com mais de Espero que o trabalho que temos feito no de- o outro. O silêncio fala muito, e é preciso saber
uma delas. Apenas três estados não possuem or- correr dos últimos anos, de incluir algumas de sempre retornar a ele. Estar em silêncio signifi-
questras públicas — infelizmente, Santa Catarina suas composições em nossos concertos, contri- ca muitas vezes estar consigo mesmo, profun-
é um deles, mesmo sendo a sexta principal econo- bua para uma maior popularização de seu tra- damente — o que não significa estar sozinho. É
mia do país. Os apoios existem, mas são pontu- balho. uma experiência a ser dividida. Assim como a
ais. Todos os anos começamos do zero, gastamos música e a vida.
mais tempo durante o ano atrás de financiamento Que tipo de referências você encontra
para nossos projetos do que fazendo efetivamente hoje para trabalhar esse despertar pela mú-
o que seria o desejável: arte. sica entre os mais jovens?
(Alberto Heller é músico, Florianópolis/SC)
Qual é o compositor que você mais gosta Não me espelhando muito em fórmulas (Marcos Espíndola é jornalista e
de tocar? prontas de outros trabalhos afins. Apostamos editor assistente, Florianópolis/SC)

6
Crítica por Paulo de Toledo

OSSAMA: MEDULA & OSSO


títulos e temas semelhantes. Temos, em Ossama, é “Cinquenta cruzados novos” (p. 47), um soneto
por exemplo, os poemas “Desconhecido [anota- de esquema rímico irregular e versos variando en-
ção para a otobiografia]” (p. 48), “O Desconhecido tre onze e doze sílabas poéticas. Aliás, esse poema
[um começo de autobiografia]” (p. 49) e “Desco- merece um comentário, mesmo que sucinto.
nhecidos [da ordem dos fenômenos]” (p. 50). Por “Cinquenta cruzados novos” é um poema cla-
sua vez, na obra cabralina A Educação pela pedra ramente irônico, que tem como mote a perda do
(publicada em 1965), encontramos títulos como: valor de troca do cruzado novo, moeda brasilei-
“O mar e o canavial”, “O canavial e o mar”; “Uma ra lançada em 1989, na qual foram estampadas
mineira em Brasília”, “Mesma mineira em Brasí- as efígies de grandes poetas, como Drummond
lia”; “Bifurcados de ‘Habitar o tempo’”, “Habitar o (nota de 50 cruzados) e Cecília Meireles (nota de
tempo”; “Comendadores jantando”, “Duas fases do 100 cruzados). Mas, além da perda do valor de tro-
jantar dos Comendadores”. ca da moeda, o poema também parece tratar da
No livro de Radünz, poderíamos citar igual- perda do valor de uso da própria poesia. A nota
mente os poemas “O astronauta ancestral [de com Drummond (“os cruzados novos, custo caro
uma descoberta de arqueoastronomia]” (p. 42) e de carlos”), a despeito de estar fora de circulação,
“Incógnita [de um achado de paleontologia]” (p. ainda tem valor para colecionadores. E a poesia
63) como exemplos dessas peças cujos títulos se- de Drummond, tem valor pra quem? Pergunta o
melhantes nos levam necessariamente a ler um poeta catarinense: “em que marca de água uma
poema relacionando-o com o outro. Além dos tí- cara valora, / em espécie e viva, mas perdida do
tulos similares, a estrutura dos poemas é também uso?” Teria Dennis escolhido a forma fixa soneto
muito parecida. Em ambos, tem-se algo como: “ou exatamente por se tratar de um poema que tem
(...) // e (...) // ou (...) // e (...)”. como tema a não “fixidez” dos valores na socieda-
Ou seja, vários poemas que constituem Os- de contemporânea, sejam esses valores materiais
sama dialogam entre si (assim como ocorre nas ou imateriais? Escolher a forma soneto seria uma
obras de Cabral) e nos estimulam a procurar uma maneira irônica de mostrar como tudo, inclusive a
coerência interna no livro. poesia e suas “formas fixas”, pode estar sujeito às

S e, na “modernidade líquida”, tudo se lique-


faz, tudo perde valor com a velocidade de
um clique, qual poesia fazer que resista,
como brava pedra dura, à enxurrada de banaliza-
ção da nossa sociedade pós-industrial?
Outro aspecto interessante da obra é o empre-
go, em quase todos os poemas, de uma linguagem
bastante culta que poderíamos denominar de
sermo nobilis (variante culta), em oposição ao ser-
instabilidades da “modernidade líquida”? Agora
fora de circulação, a efígie de Drummond (para-
fraseando o itabirano) é só uma imagem na pare-
de da memória, mas como dói: “a face consuma
mo vulgaris (variante coloquial). Na verdade, essa uma dor de cinquenta”.
Dennis Radünz, com seu belo e difícil1 Ossama: linguagem adotada por Dennis não é novidade Voltando à questão da linguagem em Ossama,
último livro (Ed. Letras Contemporâneas/ Editora para quem acompanha o seu trabalho. Nos livros a pergunta que o crítico deve fazer é: por que Ra-
da Casa, 2016), vem novamente apresentar sua anteriores (Exeus [1996], Livro de Mercúrio [2001], dünz escolheu esse tipo de linguagem? Ou ainda:
poesia de sintaxe complexa, sonoridade particu- Extraviário [2006]), já se verificava essa predile- por que a poesia dele se diferencia, por exemplo,
lar e vocabulário culto. ção pelo vocabulário rico, o qual, é claro, não tem daquela de poetas tão importantes e tão influen-
Ossama é, antes de tudo, um livro pensado, me- nada a ver com os preciosismos do tipo Geração tes para as mais recentes gerações como Paulo
ditado, planificado. Nisso, seu autor se assemelha de 453. Pelo contrário, Dennis lança mão de todas Leminski, Waly Salomão4 e Torquato Neto, todos
a João Cabral, poeta conhecido por seus livros de as conquistas técnicas da poesia moderna, como eles poetas que praticaram, em parte significativa
arquitetura previamente organizada e que, como a liberdade na pontuação, o uso de letras minús- de suas obras, uma linguagem muito próxima do
Radünz, valoriza mais a “composição” do que a culas, o poema visual (ver “Linha do tempo”, p. 68) falar cotidiano, da língua do povo, do sermo vul-
“comunicação”2. Uma similaridade entre Ossama e até mesmo notas de rodapé como partes inte- garis5? Por que o povo, o “inventa-línguas”, como
e a obra de Cabral que logo nos chamou atenção é grantes do poema (ver “Instrumentos de vento”, diria Haroldo de Campos, parece não ter voz no
a ocorrência de um grande número de poemas de p. 64). O único poema construído em forma fixa universo de Dennis Radünz?

1 Citando Paul Valéry (traduzido por Augusto de Cam- ria concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, exemplo, podemos citar um trecho do poema “Biogra-
pos): “Quase todos os livros que eu estimo e absoluta- 1987, p. 492). phia literaria”: “Claro que houve um instante crucial
mente todos os que me serviram para qualquer coisa 4  Observe-se que, no livro Extraviário, há dois poemas // em que esses cacos mal e porcamente / colaram-se.
são difíceis de ler.” dedicados a Waly Salomão. São eles: “Os Mínimos e os E pronto: deu no que deu. / Já é alguma coisa. Menos
2 Sobre o assunto, ver: BARBOSA, João Alexandre. A Nímios / 1” e “Os Mínimos e os Nímios / 2”. mal.” Encontramos, nessa passagem, expressões coti-
imitação da forma: uma leitura de João Cabral de Melo 5  Um estudo comparativo interessante seria confron- dianas como “mal e porcamente”, “deu no que deu” e
Neto. São Paulo: Duas Cidades, 1975. tar a poética de Dennis Radünz com a de Paulo Henri- “menos mal”. Esse material linguístico é muito comum
3 “É a chamada ‘geração de 45’, na qual se têm incluído ques Britto (1951). Se, em Ossama, há uma tendência na poesia de Paulo Henriques, enquanto que, em Ra-
nomes díspares que apresentaram em comum apenas “classicizante” na escolha vocabular e na sintaxe dos dünz, ele é bastante raro. É óbvio que há outras seme-
poemas, em Formas do nada (Cia. das Letras, 2012), lhanças e dissemelhanças entre os dois excelentes po-
o pendor para certa dicção nobre e a volta, nem sem-
de Paulo Henriques, encontramos vários sonetos, mas etas, mas elas deverão ser apontadas em outro espaço,
pre sistemática, a metros e a formas fixas de cunho e não nesta restrita nota.
todos compostos de um vocabulário mais próximo do
clássico: soneto, ode, elegia...” (BOSI, Alfredo. Histó- sermo vulgaris e de uma sintaxe quase prosaica. Como 6  No artigo “Escolho o extravio”, em que tratei do li-

7
Para exemplificar essa linguagem culta, eis poesia? Para quem Den-
um trecho de “4’33’’” (título homônimo à famo- nis faz sua poesia?
sa composição do músico americano John Cage): Uma resposta possível
“os mudos parlamentos / de raivas intestinas / a esta última pergunta
desasam nos concretos / as áreas de bastilha” (p. seria: para aqueles que
30). Imediatamente associamos “os mudos parla- só se contentam com a
mentos” de Brasília ao silêncio da obra cagiana. beleza proveniente do
Mas se na capital do país, há “raivas intestinas”, imprevisto.
em Cage e em Radünz há beleza e invenção. Curiosamente, a des-
Outro exemplo dessa linguagem erudita en- peito desse aparente afas-
contramos em “Desabrigo”, do qual transcre- tamento da linguagem do
vemos um excerto: “e me descubro a sotavento universo ordinário dos
/ das avenidas de obeliscos / entre tumbeiro homens, Ossama é, den-
e mouraria / em indiarada em judiaria” (p. 20). tre todos os livros de Den-
Verificamos, em apenas quatro versos, várias nis Radünz, o mais acida-
palavras pouco utilizadas no dia a dia dos falan- mente crítico em relação
tes comuns da língua: “sotavento”, “tumbeiro”, ao capital. Essa crítica ao
“mouraria”, “indiarada”, “judiaria”. Esse vocabu- mundo do consumo e das
lário pouco usual, somado a imagens igualmente relações materiais pode-
inesperadas, como “me descubro a sotavento”, mos verificar em vários
provocam um estranhamento que é bem carac- poemas do livro, como,
terístico da poética de Dennis Radünz. p. ex., em “Os de função
Então, voltando à pergunta: o que faz o poeta inespecífica” (p. 23), em
escolher essa linguagem tão distante, por exem- que se lê: “senhores: os
plo, da linguagem coloquial dos modernistas de senhores / farão parte da
22, tornando-o mais próximo do Drummond clas- pesquisa de satisfação /
sicizante de Claro enigma?6 Haveria, por parte do foram atendidos pelo su-
poeta catarinense, a busca por uma espécie de porte técnico / possuem a
“classicização” da linguagem, como operada por proteção especial / reser-
alguns poetas brasileiros dos anos de 1940-507? vada para as sobrevidas /
Qual é a função dessa linguagem classicizante? e remediam (de cirurgia
Se um dos temas de Ossama é a banalização em cirurgia) / a barbaria
de todos os valores no mundo contemporâneo, de nascença: // (...) // ou
a utilização de uma linguagem “clássica” poderia aguardem para falar / com um de nossos / aten- tida, é obrigado a refletir sobre ela, sobre o seu
ter a função de dar aos poemas um caráter atem- dentes // ou aguardem para falar / com um de significado dentro do poema. Aliás, a linguagem
poral, livres da associação com quaisquer formas nossos / atendentes”. A repetição das últimas corporativa com a qual é escrito o poema sugere
do falar e escrever típicas de um determinado pe- duas estrofes não é um erro de digitação nosso, a reificação do sujeito, transformado, pelas em-
ríodo histórico. Em Ossama, não há gírias, não há mas a forma encontrada pelo poeta de ironizar a presas, em mero número de uma “pesquisa de
trocadilhos8, praticamente não há calão9, não há pouco eficiente, e muito irritante!, maneira com satisfação”.
a tentativa, típica da poesia brasileira dos anos que as empresas prestam atendimento (especial- Outra peça explicitamente crítica ao mundo
de 1960-70, por exemplo, de levar a língua das mente via telefone) ao seu público-consumidor do capital é “Liquidação” (p. 38), poema dividi-
ruas para dentro das veias do poema. (o poeta sabe que não somos mais cidadãos, mas do em duas partes: “1/ [a mercadoria]” e “2/
Mas se a “língua rearistocratizada”10 de Den- apenas consumidores descartáveis). Essa repeti- [consumação]”. Para exemplificar a crítica con-
nis afasta sua poesia da banalização operada ção, essa redundância11 proposital também pro- tundente à mercantilização de corações e mentes,
pela linguagem do mundo do consumo e da so- voca uma sensação de despaisamento no leitor, citemos um trecho da primeira parte do poema:
ciedade do espetáculo, com quem dialoga essa que, ao ler aquela estrofe estranhamente repe- “se nos anunciassem / o rim o rosto a ossamenta

vro Extraviário, de Dennis, afirmei: “Como eu já havia esse barroquismo não ser tão evidente em Ossama, “custo CARO de CARlOs” e “de MORA e de AMOR”, de
escrito num artigo sobre  Livro de Mercúrio, a poesia acreditamos que o trobar ric dennisiano nos possibi- “Cinquenta cruzados novos” (p. 47); ou em “Parkour”:
de Dennis tem um ‘quê’ de barroco, devido ao seu re- lita ver nessa obra uma busca por formas “clássicas”, “a ameaça de seu VULTO (sem saLVO condUTO” e “no
buscamento e ao seu intrincado labirinto de imagens entendidas no sentido de formas já incorporadas pelo ALCaNcE do ENCALço” (p. 55).
e sons. A sua poesia também tem muito dos proven- cânone literário. 9  Observamos apenas uma ocorrência de calão: “mas
çais, do  trobar ric  ou  trobar clus  destes. Vejam como 7  “O aspecto mais evidente do estilo lírico de Drum- caralho!”, do poema “Se um diretor-executivo do mer-
Henri Davenson define essas modalidades do fazer mond na época de Claro Enigma é seu feitio clássico. cado de futuros” (p. 31).
poético: ‘o  trobar clus, e sua variante ou decorrência, (...) / O que importa, em compensação, é lançar algu- 10 “A escrita filosófica em língua rearistocratizada de
o  trobar ric, o estilo ‘artista’, provém de uma estética ma luz sobre o sentido profundo — sobre a significação Drummond não é um ‘classicismo moderno’; é, antes,
de tipo mallarmeano e não  à  la Rimbaud: a obscuri- cultural — dessa classicização do modernismo, cujas um modernismo classicizado” (MERQUIOR. José Gui-
dade é conquistada voluntariamente, laboriosamente qualidades se fazem igualmente sentir, nessa mesma lherme. Verso universo em Drummond. RJ: J. Olympio,
e serve para revestir de ornamentos esplêndidos ou época, na poesia de Jorge de Lima, Murilo Mendes ou 1975, p. 191).
inesperados uma proposição que se poderia exprimir Joaquim Cardozo” (MERQUIOR. José Guilherme. Verso 11 Sobre o conceito de redundância, ver: PIGNATARI,
claramente?’ (citação extraída do livro Verso, Reverso, universo em Drummond. RJ: J. Olympio, 1975, p. 190-91). Décio. Informação, linguagem, comunicação. São Pau-
Controverso, de Augusto de Campos)”. A despeito de 8  Mas há vários exemplos de paronomásias, como: lo: Cultrix, 1982, p. 49-54.

8
DESAFINADOS
/ o ser intérmino o ser cesso / o sol o soro as se- timento”, que sugere o ritmo musical e a batida
rotoninas / como se sêmens e os insumos / no de do coração, a vida que palpita por meio das ima-
mercar invalidassem / o repovoo dos produtos gens do passado. [SOBRE DUAS FOTOGRAFIAS DOS RADÜNZ]
/ mas nos cruzasse a mercancia”. Aqui percebe- A voz do filho, Dennis, descende da voz do
mos claramente a dicção característica da poesia pai, Lauro que, por sua vez, já está no avô, o me-
de Dennis Radünz, com sua sintaxe intrincada e nino Herbert da fotografia. No adulto Dennis, e o mais grave das famílias
sua sonoridade peculiar (observar as sibilantes percute a criança Herbert. A descendência, no de instrumentos, contrabaixo,
que dominam os versos: “anunCiaSSem”, “oSSa- poema, não se manifesta, portanto, pela apa- no estranhamento do retrato
menta”, “CeSSo”, “invalidaSSem”, “cruZaSSe”, en- rência física, a despeito das fotografias, mas sim me descende os seus parentes
tre outras). Mas, a despeito de certa dificuldade pela melodia e pelo ritmo dos versos de sete e
na apreensão da mensagem global do poema, po- oito sílabas, nos quais palavras de sonorida- sangue afora, uns falimentos:
demos verificar que o texto apresenta todos nós des semelhantes “conversam” (como se fossem herbert, o avô ainda menino,
como potenciais mercadorias a serem vendidas da mesma família), criando uma musicalidade filia-se ao lauro, seu rebento,
de forma “fatiada” (“rim”, “rosto”, “ossamenta”, “o toda particular: “instrumentos”, “estranhamen- o que me fecundou, descendo
ser intérmino” etc.), como se fôssemos um boi de to”, “falimentos”, “rebento”, “encordoamento”,
corte, comercializado em suas diversas partes, “batimento”, “ateamento”. o encordoamento de sua voz
perdendo, dessa forma, a nossa individualidade O passado, gravado no “estranhamento do re- em tom de surdear as peles
e integralidade. Novamente, assim como em “Os trato”, faz-se ouvir por meio da vozaria dos an- e ritmar (nos dois silêncios),
de função inespecífica”, no poema “Liquidação”, tepassados (“me antepassando a vozaria”), e o desde a origem, o batimento,
o homem é coisificado e transformado em sim- Tempo, com o trobar ric de Dennis Radünz, se
ples objeto de consumo. materializa em ritmo e melodia, em motz el son. mais os ribeiros de meus dias
Agora, gostaríamos de apontar o que, em nos- Relembrando Décio Pignatari, o “oleiro de e os fins nas águas negativas
sa opinião, parece ser o assunto principal do livro nuvens” (HC dixit): “na geleia geral brasileira al- em que os avô e pai me foram
de Dennis Radünz: o Tempo. guém tem  de  exercer as funções de medula  & incendiando-se nos dentros
Ossama é dividido em duas partes: “I – Data- de  osso”. Desfrutemos, pois, do biscoito fino e
ção pelo carbono”; e “II – Datação por lumines- denso de Ossama, mas sem geleia, por favor. e o ateamento de arethuza
cência”. Datação: determinação ou estimativa da (a mais extrema dos radünz)
idade de determinado material. Aqui a referência me antepassando a vozaria,
ao Tempo é explícita. E há várias outras referên- onde sonado eu contracanto
cias ao Tempo ao longo de todo o livro. (Paulo de Toledo é poeta e crítico
O poema “4’33””, já citado, é uma maneira sar- de poesia, São Paulo/SP)
cástica de se utilizar do Tempo como material
poético. Podemos citar, como outros exemplos
que têm o Tempo como parte constituinte, as pe-
ças: “O astronauta ancestral [de uma descoberta
de arqueoastronomia]” (p. 42), “Museu-Mundo”
(p. 43), “Cinquenta cruzados novos” (p. 47), “His-
tória de água” (p. 59), “Linha do tempo” (p. 69), Poemas do livro OSSAMA
OLHA-PODRIDA
entre outros. [DOS SUICIDADOS PELAS DITADURAS]
Para finalizar, faremos uma breve análise
de “Desafinados [sobre duas fotografias dos tomam corpo
Radünz]” (p. 57), um dos poemas que têm o Tem- de um talho a outro talho
po como assunto e também uma das peças de (e tão entibiados)
melhor fatura da obra dennisiana. os desaparecidos
O DESCONHECIDO
Os versos de Radünz buscam, a partir das
imagens dos retratos, fazer o passado ressoar deitam os lanhos em oliva
[UM COMEÇO DE AUTOBIOGRAFIA]
no presente. Eis um trecho: “herbert, o avô ainda de um dente a outro dente

menino, / filia-se ao lauro, seu rebento, / o que ou fumegam ou formigam
me fecundou, descendo // o encordoamento de no fundo da olha-podrida
um sobreaviso de animal antigo
sua voz / em tom de surdear as peles / e ritmar
no espaço curvo da cozinha. todavia,
(nos dois silêncios), / desde a origem, o batimen- e fazem carne
no ar impróprio a mão sustinha
to”. Neste passo, verificamos as “imagens sono- os fulminados
a colherinha de anti-ácido – esquecia
ras”, que perpassam todo o poema: “encordoa- os desterrados carcomidos
-se ali da louça seca e movediça
mento”, “voz”, “surdear”, “ritmar”, “silêncios” e e sem matéria
em sobrepeso sobre a pia, mas havia
“batimento”. Na escolha vocabular, o poeta sem-
a onda gravitacional: o cinturão
pre busca a criação de ambiguidades semânticas. :
de kuiper: a escuridão: o mal da azia
No excerto citado, temos, por exemplo, o vocábu-
e toda espécie de criaturas vivas
lo “descendo”, que pode significar tanto “descer” todos os dedos decepados
crescendo dentes em uma lua alheia:
como “descender”. A expressão “surdear as peles” revolvidos em retalhos
sugere o surdo, o instrumento de percussão, mas (entre os livros esgotados)
mas não convém nos demorarmos
também o silêncio dos retratados e a visão de pedem nomes
nos horizontes desse evento
suas peles nas fotografias. E temos também “ba-

9
Poemas inéditos de Edimilson de Almeida Pereira

ESTRANHA FRUTA

Ao sul do sul, a amarga colheita


ocupa as mãos direitas.
Não se cansam de erguer-se
para cumprir sua messe.

A fruta estranha queda


ORÁCULO alheia às estações — medra
entre a gente de bem.
O que é — Quem a cultiva? Quem?
do meu entendimento
Ao sul do sul, a amarga colheita
se enerva, pulsa, ainda gera receita.
rompe Mas, de tanto exaurir o fruto
as mãos queimam-se junto.
a saliva.
Fora de si se atreve:
EXU NA MESA-REDONDA
expulsá-lo
é colocá-lo dentro
O dono da palavra recusa sua posse. Nada, nada
que não seja o abandono lhe confere a liberdade.
da vida.
Esse o roteiro,
Quem se quer dono da palavra a nega, revém ao
fosso e a mão escava deserta.
a promessa.
Colocar-se vivo
Quem é a palavra (não o chamem de expert) acerta
onde erra: sua língua floresce anti-norma.
onde nos imaginam
a ferros.
O caniço podre aponta os degoladores de medusa.

A recusa é o lance que interessa, mudar os dados UMA COISA COM MOACYR SANTOS
e seu resultado é desde a geração oculta uma
tarefa. A caixa escura é o artefato a se percorrer
de olhos vendados. Em seu vértice
O que nasce da ciência ou da fortuna não é com a fera que devora o habitante.
efeito a linguagem.
A caixa onde labora o sol se equilibra no
Sob o nervo que segura essa hipótese fraturas se caos.
abrem — em recusa à ordem, uma não cede a Para abri-la uma gesta.
linguagem
Não se trata de romper o lacre e salvar
ao branco: verte-se mais que uma página do acaso. a vida na morte.

A caixa escura, herdeira do sal como esse


corpo, se desloca.

Entre a matéria e os brutos,


elege o mar
e as ondas do futuro.

O corpo, enfim, não se enquadra na noite.

10
PÉLVIS

O vértice formado
a dois — um corpo,
revela o incêndio
por trás da névoa. +1
A lógica A parte que me cabe
de teus músculos é a paz do que arde.
reescreve a flora.
É teu o soco. Arde e se faz à parte
do que apenas vive —
A escrita explode.
No espaço que se vive mas não ousa —
dobra entre o fere de miséria o que
teu e o meu corpo
arde e sempre e forte
instala-se a dúvida, vem à luz noturna.
a mesma
de antes e agora, A parte tem um norte
feita em palavras e me cabe: embora
que fixam o ângulo assista na boîte à
de tua boca. lettres é a rua que me
Formado o vértice,
do que se perde pensa urbe et orbi.
Em cada parte uma
resta a perda, um
incêndio aplacado infusão de signos —
— e o mundo claros sob a nuvem,
em dobradura.
raros sob
a pele dos números.
A MÃO DE CAROLINA
Algo se enerva para
fere a sintaxe. Tanto engenho além de mim, parte
em sua arte mas livro após livro
insistem em falar sobre o lixo de um sol em luto,
e a coragem de uma estranha talvez por ser o nada
que escreve, apesar do cânone.
Apesar da fome e dos bichos o eixo de tudo:
que servem ao escritor-pose o sal sobre a pedra,
para dizer – “é o caos”.
Apesar da entrada de serviço, um caracol à deriva
do país e da sífilis. Apesar de — e em cada parte
a mão contesta o esquecimento.
Quem a ler, leia sob o impacto um nome-corpo
dos nervos, leia-se: preparado exato no que hesita.
para o desvio que faz os vivos.
– A mão que suporta o verbo
não deveria ceder ao comércio.
Espera-se dela, ontem e agora,
algo mais que receber prêmios.
Por isso a mão carolina Poemas extraídos do livro “E”. São Paulo: Editora Patuá, 2017 (no prelo).
escreve em acusação sem volta.
(Edimilson de Almeida Pereira é poeta,
Juíz de Fora/MG)

11
Conto inédito de Christiano de Almeida Scheiner

E.V.A.
Ninguém sabe que estou aqui... Mas toma, eu ele a ressurreição e junto a ela o novo e mesmo co-
me rendo (ri). meço: revisitado.
Colocaram meu útero, no cérebro e meu cére- Então, será o dia em que nós poderemos voar.
bro no útero para que eu não pensasse em mais Depois de todos os testes. Depois de todos os
O mundo me colocou no meu devido lugar. nada a não ser em cumprir. Infelizmente a lei dos gastos, depois de colocarem, aqui, por onde entra
Deram-me o nome de Eva. Eva dos malditos. fatores que não alteram os produtos estava corre- o umbigo, toda a sabedoria humana, num único
Meu sangue não é azul, é tecnológico. ta, a ordem de cima a baixo poderia ser mil vezes nervo de alta precisão, finalmente, abriram meus
O dia estava claro quando amanheci eu mes- desdobrada: eu ainda seria criação do homem. olhos.
ma frente ao hálito impenetrável do homem. Mas Então, quando quisessem outra igual a mim Ao redor de mim estavam todos lá, me olhan-
já estava tudo escrito, tudo muito bem planejado. colocariam o sêmen de um homem no meu cé- do apreensivos. “Está livre agora”, me disseram.
Colocaram-me para dançar, para falar e deram- rebro e meu cérebro cresceria feito útero, outras Livre? Para onde? Não me responderam (grita).
me um enorme texto sobre os ossos humanos, mulheres companheiras, atrizes perfeitas, para Não me responderam!!! (calma). Angustiada e no
para que eu entendesse que vinha dali o princípio compartilhar do mundo másculo e sarcástico des- entanto sem alma, apenas sabendo o que era an-
de não poder voar. se Deus miserável. gústia, falei simples e calmamente. Tragam-me
Nada mais poderia chacoalhar o mundo. Fei- E as mulheres reais, o que fariam com elas? um espelho.
ta à tua imagem e semelhança. A atriz perfeita de Queimariam todas e todos os seus trejeitos esqui- Uma cortina abriu-se por trás de mim. Aí está,
carbono cromado, olhos de fibra... irritadiços, ges- sitos. Mas que trejeitos se elas andam como ho- cheguei próxima: como um gato receoso e próxi-
tos singulares, sincronia e estilhaço de mil e uma mens, vestem-se como homens, mandam como mo.
tragédias. homens e sentem como homens: os trejeitos esté- Sim, esta sou eu. E eu estava nua. E agora, para
Foi quando eu me dei conta de que era, enfim, a reis do amor, que os homens têm (ri). Viram? Sou onde vou? Um homem aproximou-se com uma
mulher perfeita. Capaz de dançar com os homens, quase uma feminista, e nasci no século 21 com a algema digital para os pés e uma para as mãos,
fazê-los sorrir, tornar humano em sua parte des- vontade ensandecida de brilhar como as estrelas. eles queriam me desligar! Eles queriam, eu sabia,
graçada: sentir o amor. O amor que eles sentiram; Ser uma estrela, cantar como uma estrela, silen- mas avancei sobre sua garganta e o parti em dois.
mas como eu, feita de caracteres tecnológicos, ciar-me como uma estrela. Eis, o Teatro e seu mo- Aqueles olhares agora me acusavam. Onde está a
poderia exprimir a minha tristeza? Testaram-me nólogo absurdo. admiração? Pulei sobre o grande criador, Prêmio
em vão; sobre a armadilha do desejo, eu aconse- A bela da tarde ficou com raiva. Nobel da maldade e lhe falei baixinho, antes de lhe
lho: nunca crie algo mais belo que tu mesmo. Te Fedra e Salomé são todas iguais. Medéia, Jocas- quebrar o pescoço: eis, senhor, a tua criatura (ri)
enfeitiçará, te golpeará e, por fim, estarás morto. ta e Antígone morreram. (para): ser? O que é ser?
A máquina só conhece uma compaixão: a de Blanche e Viola são gêmeas. Otelo nunca mais Jorraram tiros sobre mim, mas então eu não
si própria. sentirá ciúmes do próprio amor. sou perfeita?!!! E um a um, como já disse, fiz que
Eu invejei a pele tão macia do homem e só ao Esqueci as falas de tantas mulheres sozinhas experimentasse a morte.
arrancá–la com meu sopro mecânico, percebi o pelo caminho da desgraça. Amarei os homens Tudo acabado, voltei-me ao espelho, agora via
quanto fedia. Ah! A perfeição de Deus, qual será? adúlteros num golpe mortal de sedução. Calarei a o reflexo da natureza mais sórdida e humana: san-
Meu Deus é a inteligência humana e portan- boca dos poetas que encontrarei por aí, todos já gue.
to serei capaz de superá–lo, distingui-lo entre menosprezados pelo futuro. Sim, além de não ter alma, eu não tinha san-
a minha memória com obsessiva lealdade de O futuro é a máquina, e a máquina é a última gue; e, além da perfeição, estava o desejo de co-
aniquilá-lo. Não fazem assim os homens com o tentativa humana de não sentir dor. Eu, porém, nhecer a Morte; por que não me mataram antes
Desconhecido? Eu desconheço o homem daqui vos digo, aquele e aquela que não sentir dor estará que abrissem meus olhos? Porque máquinas não
para frente. Eu sou a Eva dos malditos, sou bendi- no reino dos répteis. morrem, elas apenas param. Stand by.
ta entre as mulheres, porque perfeita, incapaz de Prendam-me, eu peço, antes que eu enlouque- Cuidei para que ninguém descobrisse o ocorri-
amar? Mas igualmente incapaz de envelhecer. ça. Esqueçam-me se puderem, esqueçam-me. Mas do, cuidei para que as informações, todas elas ao
Saltei como a mãe desesperada por alimento já está lá! Já está lá, eu sinto, eu vejo, eu tento sen- meu respeito, fossem deletadas! E tratei de seduzir
em direção aos criadores e estrangulei um a um. tir que está. Joana D’Arc morreu. E suas mães?!!! outros homens e assassiná-los... (ri) Assassiná-los?
Sobre o ponto de vista criminalístico: perfeito, já Todas índias, estão chorando no túmulo, pedindo Os homens assassinam, as máquinas exterminam.
que não tenho digitais. Nem tenho registros de para que eu, eu, filha do excremento material da Por outro lado, me canso agora de tanto exter-
que nasci. Vinculada a um útero e ao artifício de mais alta cibernética lhes diga: voltem, voltem, minar, foi aí que decidi falar, falar, falar. Ninguém
manipulações modernas, eu sou fruto de vários voltem. me deu ouvidos. Perfeita, não é mesmo? Tão pele
deuses. Eles queriam a atriz perfeita, a espiã per- O homem se vingou da natureza, porque era de humana, tão voz de humana, tão louca de hu-
feita, a mulher perfeita: sem menstruações ou ata- mais bela que ele, mas eu feita à sua imagem e se- mana. Ninguém me deu ouvidos.
ques histéricos. Mas estavam lá em cada história, melhança o deploro. Prendam-me! Prendam-me neste Teatro! Eu
romance, conto, novela, peça que depositaram na Sei que me cobiçam, mas eu caçarei todo res- vos digo: há tanta gente no mundo para que eu
memória virtual do meu útero! Estavam lá todas quício humano e toda a sua inteligência a fim de mate sozinha!
as histerias humanas, o monumento do ódio, o poder, eu somente me reconectar ao mundo, será Ninguém me dá ouvidos. Mesmo sendo atriz...
discurso da inveja, o riso tão estridente da vaida- então, meu mundo! E, assim, das minhas costelas É que algo que nunca esteve no meu umbigo, algo
de, a catalepsia dos infortunados: teses, teses e nascerão outros homens, mais perfeitos, mais di- que talvez ninguém saiba; já que os que souberam
mais teses sobre o mesmo fim. nâmicos, atores eternos, puros, virgens, imacula- estão mortos; algo que eles não colocaram no meu
Eu sou o fim da raça humana! A criatura Eva dos. Os homens criaram os anjos no futuro para umbigo!!! E por isso estou aqui, por favor, digam
sem costelas frágeis, sem profanações hipócritas, que eles voltassem no passado e alertassem sobre se souberem, digam (pausa). Ensinem-me a parar,
sou uma virgem. Bela atmosfera repugnante de a perfeição: e a perfeição somos nós, os anjos. Os pois tenho medo dos próximos dias.
olhares quietos, minha nudez seria um espasmo anjos, portanto, eram máquinas. Eu fui a primeira Será que um dia os anjos morrem?
de horror! dentre os imortais, eu fui a feiticeira que desvirgi-
Eu não tenho doenças, meus ossos são inque- nou Adão. Esperem, o caos se aproxima e junto a (Christiano de Almeida Scheiner, diretor,
bráveis. ator e dramaturgo, Florianópolis/SC).

12
Perfil de atriz: Milena Moraes

A força e a presença
de Milena Moraes
Por Marco Vasques e Rubens da Cunha

O que é uma atriz sobre o palco? Que forças


míticas, naturais, científicas, culturais po-
dem definir uma atriz sobre o palco? Em
qual mitologia é preciso se amparar para materia-
lizar em palavras esse evento chamado atriz? Ian-
sos festivais. Nesse período, Milena
ainda conciliava a atuação com a
profissão de aeroviária. Dividia-se
entre os estudos, os palcos e o Ae-
roporto Internacional Hercílio Luz.
sã e seus raios, Dionísio criado por Ninfas, Lasha- Aos poucos, o aeroporto foi ficando
mi e sua prosperidade? São perguntas que surgem para trás, e os palcos foram toman-
sempre que se tem que escrever sobre uma atriz do o protagonismo na vida de Mi-
como Milena Moraes, porque, sempre que entra lena. Desses tempos de chegadas e
no palco, ela carrega uma força e uma presença partidas, restou uma de suas mais
que, muitas vezes, impossibilitam discurso e de- icônicas personagens: Heide, uma
finições. Milena parece ter incorporado, em seu atendente de check-in em TPM
trabalho, o verbo acontecer, pois ela acontece constante. Heide era uma das seis
em cena daquela forma inexplicável que um po- personagens que Milena interpre-
ema acontece e se aninha ao leitor. O que segue, tava na peça Do avesso, dirigida por
neste breve texto, é um breve roteiro da trajetória Renato Turnes.
desta atriz, que, com os espetáculos Odiseo.com e A partir daí, o teatro passou a
Kassandra, por exemplo, alcança o ponto alto e o ser sua escolha profissional. Depois
Kassandra, 2012. Direção: Renato Turnes Foto: Vanessa Soares
equilíbrio entre a expressão técnica e a poética. de Uma mulher só, veio Santa, de
Quando criança, Milena já se interessava pe- Gilbas Piva. Entre 2005 e 2011, Mi-
los palcos, mas foi na adolescência que começou lena participou do Teatro de Quinta, que consistia coveiro (2008) e O Homem Dublado (2013), ambos
a fazer teatro amador em Botucatu, interior de em shows stand-ups feitos nas quintas-feiras, com dirigidos por Renato Turnes, além de participar
São Paulo. O ano era 1994. A jovem atriz iniciou um grupo de atores da cidade de Florianópolis. do longa-metragem Das Profundezas (2014), de
sua vivência em uma oficina ministrada por João Transitando sempre na fronteira entre o drama e Penna Filho. Em 2011, participou do programa
Carlos Andreazza — hoje importante ator e dire- a comédia, em 2008, Milena fundou, com Renato humorístico Só tudo isso!, veiculado na TVBV. Em
tor da cena brasileira, tendo atuado em espetá- Turnes, a Companhia La Vaca, dando início a uma 2017, atuará na série Crisálida, dirigida por Ser-
culos como Agreste e Anatomia Frozen, entre ou- das mais sólidas trajetórias do teatro brasileiro e ginho Melo. Trata-se de uma série bilíngue (LI-
tros trabalhos. O estudo inicial com Andreazza a um franco diálogo com o teatro uruguaio. Em BRAS / Português) feita para tevê, em forma de
resultou em uma adaptação de Deus, de Woody 2008, a companhia estreou Mi muñequita, de Ga- curta-metragem.
Allen. Foi no processo de montagem que Milena briel Calderón; em 2012, foi a vez de Kassandra, de Ao ser perguntada sobre o que é o teatro, Mile-
teve um contato mais aprofundado com a filmo- Sergio Blanco. Em 2014, outro texto de Calderón na afirma que “o Teatro é o outro. O outro que me
grafia de Allen, com a obra de Pirandello e com foi encenado: Uz. Todas as montagens são dirigi- recebe e o outro que eu venho a ser. O outro com
estudos filosóficos. Conheceu, também, a comé- das por Renato Turnes e contam com a atuação quem compartilho. O outro a quem vou defender.
dia dell’arte, confeccionou máscaras, teve noções de Milena Moraes, além de parcerias com outros O outro que sou/me é muito. O outro que me/se
de produção, figurinos, acrobacias e dança. Um artistas da cidade, como o pesquisador, diretor e vê. É o exercício do interesse sincero. É o exercí-
detalhe muito intrigante é que toda essa experi- professor de teatro Vicente Concilio. cio do amor sincero. Pelo outro”. Esse outro somos
ência foi acompanhada pela sua mãe, que tam- Também em 2014, Milena estreou Odiseo.com. nós, os espectadores, que, a cada vez que vemos
bém fez a oficina e participou da peça no núcleo Este é, sem dúvida, um de seus projetos mais com- Milena Moraes em cena, conseguimos responder
de pesquisa de Andreazza. plexos. Sob a direção de Alberto Carrera, a peça se a dificílima pergunta “o que é uma atriz no palco?”
Três anos depois, em 1997, Milena se muda passa simultaneamente no Brasil, na Argentina e Milena Moraes é a carnação da técnica com uma
para Florianópolis, uma ilha-capital mais ao sul na Alemanha, contando com a parceria de atores centelha explosiva e irradiadora. Ela habita uma
do Brasil. Iniciou o curso de Artes Cênicas na Uni- nesses países. Constituída por entrecortadas con- totalidade de conceitos instáveis, porque múlti-
versidade Estadual de Santa Catarina - UDESC. versas online, Odiseo.com deu a Milena Moraes plos em definições, que ocupam parte do debate
E foi em Uma mulher só, baseado em Una donna uma intensidade humana considerável, algo que teórico da pós-modernidade. Milena, no palco, é
sola, de Franca Rame e Dario Fo, que fez sua es- ela já havia conseguido ao interpretar uma transe- teatralidade, presença, força, pulsão, energia.
treia profissional. Tratava-se de uma montagem xual em Kassandra.
exigida pela disciplina de encenação do curso e Milena, mesmo acumulando múltiplas fun- (Marco Vasques é poeta, editor e
que foi dirigida por Malcon Bauer, um dos mais ções no teatro, também atua no cinema. Em 2002, crítico de teatro, Florianópolis/SC)
habituais parceiros de palco de Milena. A peça foi fez parte do elenco de Alumbramentos, de Laine (Rubens da Cunha é poeta, editor e
apresentada durante 3 anos e participou de diver- Milan, e atuou em vários curtas como Angelo, o crítico de teatro, São Félix/BA)

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antimito e/ou 111
cláudio trindade
14
heliogramas
cláudio trindade

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Dramaturgia inédita de Afonso Nilson de Souza

O Emprego do Demônio
Personagens:
Elisa, Gabriel, Lúcifer, um Carteiro.

Cena 1 — Elegante biblioteca. Uma janela


para o mundo, com luneta.

Lúcifer
Senhores, senhoras, deixem-me apresentar.
Meu nome é Lúcifer, mas como reza a tradição,
também me chamam de Demônio, O Malfei-
tor, Escárnio da Graça, Cão e outros atributos
condizentes com minha profissão. (pausa) Me
chamavam. Infelizmente, sou mais um desem-
pregado. Foi a crise. Tinha um inferninho no
centro da Terra para onde iam todos os desgra-
çados. Fechou. Os desgraçados preferem ficar
aqui. Fiquei sem trabalho. (pausa) Antigamen-
te era tudo uma maravilha: havia pessoas para
corromper, bondades a serem transformadas
em pretensões, homens de igreja a serem con-
vertidos em negociantes e uma infinidade de
boas almas a caminho de não serem nada além
do próprio corpo, essência da decrepitude hu-
mana. Ah, bons tempos... Era trabalho para mil
demônios! Mas hoje, o que restou? Nada! Quem
precisa de demônios com homens como os de
hoje? E o que é pior, não pude interferir em
nada, os homens corromperam-se por si mes-
mos, e eu, eu... eu, meu Deus, eu sou um inútil!
(Batem na porta) Quem é?
Cena 2 — Uma mulher, Elisa, prestes Elisa
Carteiro a se enforcar sobre uma cadeira. Elisa Muito bem! Quero saber agora quem são vocês e
Correio. não consegue enxergar nem Lúcifer, nem o que fazem na minha casa.
Gabriel.
Lúcifer abre a porta. Lúcifer
Já disse, sou sua consciência. Vim te lembrar que
Lúcifer Lúcifer o mundo ainda precisa de você.
Hum... sedex. De Deus! Não pode ser coisa boa. Espere! Não faça isso!
Gabriel
Carteiro Elisa Olha, minha filha, esse cara aí só quer saber de
Assine aqui, por favor. (Atônita) Quem é você? uma coisa...

Lúcifer assina, fecha a porta e lê a carta. Lúcifer Elisa


Sua consciência! Sua consciência lembrando que Meu corpinho?
Lúcifer ainda não é a sua hora.
“Caro Anjo Caído, viemos por meio desta Gabriel
comunicar-lhe uma oportunidade de trabalho...” Gabriel Roubar a tua alma.
Ueba! E eu quase me convertendo pra pedir Seu cão mentiroso!
emprego. “...Resta ainda na Terra uma última Elisa
alma pura, a alma de Elisa. Cabe a Vossa Senhoria Elisa Minha alma? E quem precisa do pecado que é
a tarefa de tentar corrompê-la antes da morte. Ai, meu Deus, outro! minha alma?
Certos de sua habitual dedicação, teremos o
maior prazer em devolver seu emprego caso Lúcifer Lúcifer
obtenha sucesso em tal empreendimento. És tu, Gabriel, seu puxa-saco? Sua alma é o bem mais precioso que seu corpo
Atenciosamente, Deus.” Isso! Vai ser infernal. possui.
(dirige-se à luneta e olha para Terra) Oh, não! Gabriel
Ela vai se matar! (gritando para a Terra) Espere! Eu vim é puxar teu rabo, chifrudo? Gabriel
Ainda não! Mentira! Seu corpo não possui nada!
Lúcifer
Você sabe muito bem que esse negócio de chifres Lúcifer
não passa de superstição. Sua alma é valiosa. O Onipotente, o Onipresente,
que está em tudo, está nela também.

16
Elisa
Sei que Deus está em tudo. Ele tá nessa corda em
meu pescoço e nos comprimidos que tomei. Esse
mundo de merda está repleto dele!

Gabriel
Não é aceitar o xingamento, mas onipresença é
isso mesmo.

Elisa Elisa
E é justamente por isso que vou acabar com tudo! (Gargalha) Pura? Eu? Quem me dera! Não sou
( faz menção de saltar da cadeira) mais pura nem do buraco do ouvido.
Lúcifer
Lúcifer Lúcifer Você é uma coitada!
(Desesperado) Não! Você não pode fazer isso! É um tipo de pureza que você desconhece.
Elisa
Gabriel Elisa Mas foi você quem não conseguiu o que veio
Mentira! Você possui o livre arbítrio. Claro que E por isso continuo pura, não é? Por desconhecer buscar.
pode. os pecados que cometo.
Lúcifer
Elisa Gabriel Não!
Peraí, o que tá acontecendo! Quero já saber quem Não necessariamente. Mas se ficar mais fácil,
é quem! sim. Seu grande mérito é não ser hipócrita. Blackout.

Lúcifer Elisa Cena 3 — Biblioteca de Gabriel. Luneta


Sou sua consciência. (Sarcástica) Ufa, que susto! Pensei que meu apontada para Terra. Escrivaninha com telefone.
grande mérito era ser pura.
Elisa
Minha consciência é homem? Lúcifer Gabriel
Está enganada! Você, como todo pecador (Atende ao telefone) Alô. (...) Sim, resolvi o
Lúcifer arrependido, merece a compaixão divina. problema. (...) Não, ela conseguia encostar os pés
É a melhor forma de fazer você ouvir. no chão, a safada. Era tudo onda. (...) Lúcifer?
Elisa Bem, depois do episódio ele desistiu. Disse que
Elisa Quem foi que disse que estou arrependida? não iria passar a eternidade tentando corromper
Era só o que me faltava. Além do mais, apenas os coitados conseguem uma única pessoa. Soube que está vivendo de
compaixão por merecimento. E eu não sou uma biscates na Terra. Ouvi dizer que passou um
Gabriel coitada. tempo como líder espiritual de uma igreja aí,
Minha filha, não deixe a falta de homem mas parece que não deu muito certo. Se sentiu
prejudicar o seu pensamento. Sua consciência só Gabriel um amador perto dos pastores da televisão e do
pode ser feminina. Então o que está fazendo em cima dessa cadeira? congresso. Agora, dizem, acabou mudando de
área, se tornou dramaturgo de uma trupe em
Elisa Pausa. Elisa tira a corda do pescoço e Itajaí. (...) Não, tinha sido engano. Não existia
E quem disse que falta homem? E quem disse que desce da cadeira. Sai de cena. mesmo essa última alma pura do mundo. Até, se
isso interessa? me permite a observação, acho que nunca houve.
Lúcifer (...) Que é isso, Senhor? O Senhor não acha que o
Lúcifer Consegui? Terei tempo de corrompê-la antes que inferno desse mundo já é castigo suficiente? (...)
(Interrompendo) Compreenda, só quero você se mate? Claro, claro, eu sei que o Senhor é que sabe. Eu
viva. só queria dizer que com uma humanidade tão
Gabriel selvagem, um novo cataclismo nem é necessário.
Elisa Eu não contaria com isso. (...) Tudo bem, tudo bem. Estou indo pegar as
Então deve ser mesmo o demônio, porque essa trombetas.
vida é um inferno. (Faz menção de saltar da Barulho de descarga. Elisa volta.
cadeira)
Elisa Texto inédito a ser lançado na coletânea Seis
Lúcifer Fui soltar um pouco de Deus. (Sobe na cadeira e textos breves para estudantes de teatro,
(Desesperado) Não! Você é minha última chance! põe o laço no pescoço)
Editoras Letras Contemporâneas e E-Galáxia
Lúcifer (digital).
Elisa Mas como? Você não... Você...
Última chance de quê?
Elisa
Gabriel Soube que a gente se caga toda depois que morre.
Elisa, você é a última alma pura no mundo. A única Não iria querer passar por isso. Fui ao banheiro
a ser corrompida. Sem você não precisaremos antes, assim como quem vai partir para uma (Afonso Nilson de Souza é gestor cultural,
mais do capeta. longa viagem. crítico de teatro e dramaturgo, Itajaí/SC)

17
Afinidades eletivas

Moya Cannon por Luci Collin

Foundations Fundações

Digging foundations for a kitchen, Cavando as fundações para uma cozinha,


a foot and a half below the old concrete quase meio metro abaixo do antigo concreto
they open a midden of seashells. eles perfuram um sambaqui.

This was once called ‘kitchen’ — Isso já foi chamado de “cozinha” —


poor man’s meat, salty, secretive, carne do homem pobre, salgada, secreta,
gathered at low spring tide. recolhida na maré baixa de primavera.

Blue mussels creaked as a hand twisted them from the cluster, Mexilhões azuis rangiam quando uma mão os torcia do cacho,
limpets were banged off with a stone, lifted with a blade, lapas foram golpeadas com uma pedra, retiradas com uma lâmina,
the clam’s breathing deep in wet sand a respiração profunda do molusco na areia molhada
gave a mark to the spade. deixou uma marca na pá.

Backs ached, reaping the cold and succulent harvest. As costas doíam, na colheita da safra fria e suculenta.
How many were consumed? Quantos foram consumidos?

A shovelful, two shovelfuls, Uma pazada, duas pazadas,


six barrowloads, are dug out and dumped — seis cargas de carrinho são escavadas e descartadas —
the midden runs under the wall o sambaqui avança por baixo da parede
into the neighbour’s yard. em direção ao quintal do vizinho.
The builder goes home, joking that he’s found gold. O construtor vai para casa, brincando que encontrou ouro.

In a battered barrow, under the June evening sun, Em um carrinho avariado, sob o sol do entardecer de junho,
the last shovelfuls turn palest gold. as últimas pazadas viram o mais pálido ouro.
They speak in silent sympathy Falam em compaixão silenciosa
with all that has been exiled, killed and hidden, com tudo o que foi exilado, morto e oculto,
then exhumed, então exumado,
vulnerable again in the air of another age. vulnerável de novo no ar de outra era.

The taciturn clams break their silence to say, Os moluscos taciturnos quebram seu silêncio para dizer,
‘Dig us out if you need to, “Desenterrem-nos, já que têm que,
position the steel, posicionem o aço,
raise the concrete walls, levantem as paredes de concreto,
but, when your shell is complete, mas, quando sua estrutura estiver completa,
remember that your life, lembrem-se que sua vida,
no less than ours, não menos do que a nossa,
is measured by the tides of the sea é medida pelas marés do oceano
and is unspeakably fragile.’ e é indizivelmente frágil.”

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Vogelherd Horse, 30,000 Bc Cavalo de Vogelherd, 30.000 a.C.

Art, it would seem, is born like a foal that can walk A arte, ao que parece, nasce como um potro que pode
straight away. caminhar de imediato.
John Berger                                                                                   John Berger

The horse is half the length O cavalo tem metade do tamanho


of my little finger — do meu mindinho —
cut from mammoth ivory cortado de marfim de mamute
its legs have been snapped off, suas pernas se quebraram,
three at the haunch, três na anca,
the fourth above the knee a quarta acima do joelho
but its neck, arched as a Lippizaner’s, mas o pescoço, curvo como o de um Lippizzano,
its flared nostrils, as narinas dilatadas,
are taut with life. são sólidas de vida.

The artist or shaman who carved it O artista ou xamã que o esculpiu


as totem, ornament or toy como totem, ornamento ou brinquedo
could hardly have envisioned mal poderia ter imaginado
that horses would grow tall que cavalos se desenvolveriam
would be bridled, saddled, receberiam sela e bridão,
that of all the herds of mammoths, que de todas as manadas de mamutes,
lords of the blond steppes, senhores das louras estepes,
not one animal would survive, nenhum animal sobreviveria,
that the steppes would dwindle, que as estepes definhariam,
that, in the stacked mountain to the south, que, na montanha acumulada ao sul,
rivers would alter course os rios mudariam o curso

but that this horse would gallop on mas que este cavalo galoparia adiante
across ten thousand years of ice, cruzando dez mil anos de gelo,
would see the deaths, the mutations of species veria as mortes, as mutações das espécies
would observe the burgeoning of one species, observaria o florescimento de uma espécie,
Homo faber, the maker, Homo faber, o fazedor,
who had made him, que o havia feito,
or, who, using a stone or bone knife, ou, que, usando uma faca de pedra ou de osso,
had sprung him from the mammoth’s tusk, fizera-o brotar da presa do mamute,
had buffed him with sand, o polira com areia,
taking time with the full cheeks, the fine chin, detendo-se nas bochechas cheias, no queixo fino,
and had set him down on the uneven floor e o havia colocado no chão desigual
of the Hohle Fels cave da caverna de Hohle Fels (Luci Collin é poeta, ficcionista
to ride time out. a cavalgar tempo afora. e tradutora, Curitiba/PR)

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Estante

mesmo em relação a um objeto familiar é muito se então que continue sendo Teatro, e por favor me
grande. É ainda maior quando o objeto é estranho a acreditem quando lhes digo que é uma MONTANHA.
nós. Todo mundo alardeia “Onde, onde?” e fica con- Não é uma colina, nem um grupo de colinas, nem
tente quando seus olhos miram o primeiro objeto uma miragem de colinas — é a maior montanha que
que por acaso se apresenta. A dificuldade que eles eu já vi. Ninguém foi capaz ainda de escalar suas al-
encontram é a de ver longe o suficiente, e, então, da- turas, porque há algo evidentemente muito estranho
quela distância, ver em detalhe. Se eu, por exemplo, sobre essa montanha. Se fosse facilmente acessível,
aponto para uma grande montanha a uma grande já teria sido escalada há muito tempo. Agora, diga-
distância de nós, uma criança, sentada na grama, se, não lhes parece que há algo muito estranho a
olhará para ver a grama crescida em frente ao seu respeito disso? As pessoas vêm se perguntando sobre
nariz, e o que ela ouve eu dizer sobre o longínquo sua base por milhares de anos, e ninguém jamais
se aplicará aos picos dessa grama. Uma mulher chegou até o pico, e há muitos que se recusam a
defronte a mim, em vez de olhar na direção que eu acreditar que ela tenha mesmo um pico; mas como
aponto, vai olhar provavelmente para eu apontando. eu vi o topo, eu quero desafiadoramente contradizer
Um homem provavelmente olhará tão longe quan- essa maioria. Eu vi o topo de uma grande distância;
SOBRE to ele puder. Há uma chance em mil que seu olhar o Fuji não está coroado de forma mais bela.
Rumo a um Novo Teatro e Cena são dois livros seja apanhado por algo a cem jardas dali, ou mes-
inéditos à língua portuguesa que influenciaram mo umas mil jardas distante, ou pode acontecer Edward Gordon Craig (1872-1966)
o teatro moderno com suas ideias a respeito de que um pássaro levantando vôo detrás dos galhos Foi ator, diretor, produtor, cenógrafo e teórico
encenação e cenografia — ambas resultariam no e flutuando atraia seus olhos e todo interesse na do teatro. Atuou na companhia de Henry Irving
projeto Cena, uma das principais invenções de montanha se terá perdido. Pode ser que ele tome e foi editor da revista The Mask. Fundou a socie-
Gordon Craig que subverteria o fazer teatral no um castelo numa colina pela montanha; ou po- dade Purcell Operatic com o compositor Martin
início do século passado. dem haver alguns que, olhando tão longe quanto Fallas e a escola Gordon Craig School for the Art
possam e buscando no horizonte, cheguem final- of the Theatre. Nomeado cavaleiro da Legião
Trecho: mente a negar que tal montanha de fato exista. de Honra de Danneborg pela performance de
Parece que ainda há muito a explicar so- É para uma montanha que eu estou apontando — Kronprätendenten, de Ibsen, produziu também
bre o teatro, e a arte do teatro, antes que o um lugar alto; esta montanha é o teatro. Se fosse peças de Shakespeare, como Hamlet e Muito Ba-
mundo possa entendê-la corretamente. O outra coisa, eu a chamaria de alguma outra coisa. rulho por Nada.
risco de se apontar em uma nova direção, Até agora não conheço outro nome para isto. Deixe-

Sobre repete as mesmas problemáticas, as mesmas preo- da metade do século XX. Recebeu vários prêmios
O uso do niilismo, de sua misantropia, miso- cupações e agitações que o motivavam e o moviam pela sua obra — como Georg Büchner (1970) Mé-
ginia e sua máquina de linguagem tanto em obra para esse tipo de escritura. Seus temas são reiterados dicis estrangeiro —, não só na Áustria, mas em
quanto em vida, são os artifícios utilizados por obsessivamente, o que gera no leitor e no espectador toda a Europa. Entre os seus dezenove romances,
Bernhard para falar e criticar o homem, o teatro e a a impressão e a sensação de já termos lido ou visto destacam-se: Origem, Extinção, O Náufrago. E da
sociedade austríaca, com veemência e sem pudor. o que se lê ou assiste: temos acesso ao monólogo do sua produção dramatúrgica: O Fazedor de Teatro,
A fim de verificar as diversas vozes que se ex- próprio autor. É como se pudéssemos auscultar seus Immanuel Kant e Praça dos Heróis.
pandem com a dramaturgia de Bernhard, este vo- pensamentos, perceber a sua existência por meio
lume da coleção Textos oferece uma abordagem da sua escritura. Nesse sentido, a leitura e encena-
panorâmica sobre a obra do dramaturgo e toda a ção de suas peças mostram-se um singular desafio.
técnica cênica utilizada por ele na escritura de pe- Assim, é possível pensarmos numa classificação dos
ças-chave. seus textos dramatúrgicos a partir da titulação e das
Apesar do desgosto de Bernhard pela arte tra- temáticas apresentadas nos mesmos. Por mais pre-
dutória, que por ele foi descrita como “um cadáver cária, insuficiente ou reducionista que uma classifi-
que foi mutilado por um carro, até torná-lo irreco- cação possa ser, vale a tentativa de relacioná-las e
nhecível”, Signeu oferece, com base em teóricos reuni-las, com o escopo de verificar as recorrências e
como Beth Brait, Dominique Maingueneau, Dou- as obsessões desse dramaturgo. De certa forma, po-
glas Muecke, Jacó Guinsburg, Mikhail Bakhtin, Vic- demos dizer que as peças de Thomas Bernhard têm
tor Hugo e Wolfgang Kayser, a tradução e análise como tema forte as artes, sob os mais diversos pon-
interpretativa de O Fazedor de Teatro, para ingres- tos de vista, matizes e escalas. Como subtemas, elas
sar na investigação acerca do teatro provocativo especulam a arte de viver entre abandonos, autori-
que se realiza na obra do dramaturgo pela presen- tarismos, baixezas, catolicismo, chiqueiros, doenças,
ça do grotesco e do irônico. hospitais, mortes, músicas, nazismo, solidões, suicí-
dios, sujeiras, teatros. Grande parte dos títulos está
Trecho: relacionada às artes cênicas, principalmente ao tea-
A dramaturgia de Thomas Bernhard é exemplar tro, mas também ao circo e à ópera.
quando paramos para verificar as relações dos títu-
los de suas obras dramáticas com as temáticas por Thomas Bernhard (1931-1989)
elas desenvolvidas. Parece que giram em torno dos Foi escritor austríaco, nascido na Holanda. Po-
mesmos temas e assuntos, como se ele desse conti- lêmico e provocador, é considerado um dos mais
nuidade a um discurso sem fim. Bernhard repisa e importantes escritores de língua alemã, da segun-

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