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Revista do Instituto Humanitas Unisinos


Nº 402 - Ano XII - 10/09/2012- ISSN 1981-8769

Edgar Morin e o pensamento


complexo
Jean Louis Le Edgard de Mario Novello
Moigne Assis Carvalho Um pensamento que
Um apelo ao eterno A revogação do não recebe ordens
perguntar antropocentrismo e a
aquisição de saberes
transversais
E MAIS

Pedro Trigo: James Alison:


Teólogos enclausurados “O perdão antecede o pecado”. A superação
na academia. Um desafio de uma visão moralista e chantagista
Edgar Morin e o
Editorial

pensamento complexo

O
pensamento complexo vida mais humana”, além de reencon- mesmo que provisória, aos problemas
seguindo as rotas abertas trarmos o sentido em nosso mundo. da humanidade.
por Edgar Morin é o tema A autonomia dos saberes acon- Um artigo e mais duas entrevis-
da revista IHU On-Line tece na “relação criativa com outras tas completam a presente edição.
desta semana. Pesquisadores e pes- partes”, e não através do isolamento, Dênis de Moraes, professor do
quisadoras de várias áreas do conhe- que atesta miopia e morte, assinala Departamento de Estudos Cultu-
cimento contribuem no debate. Laércio Pilz, professor na Unisinos. A rais e Mídia da Universidade Federal
A fragmentação dos saberes obs- abertura ao Outro e aos diferentes sa- Fluminense, recorda a trajetória e o
taculiza a consolidação do humanis- beres é o que “alimenta o nosso viver testemunho de Valério Brittos, re-
mo, atesta Edgard de Assis Carvalho, e o desejo pelo saber”. centemente falecido, descrevendo-o
da Pontifícia Universidade Católica de Gerson Egas Severo, professor como um missionário da ética e da
São Paulo – PUC-SP. A ciência se tor- da Universidade Federal da Frontei- solidariedade.
naria menos arrogante e prepotente ra Sul – UFFS, examina o legado de James Alison reflete sobre a
caso assumisse a unidade indissolúvel Morin para compreendermos a mio- doutrina do pecado original à luz da
entre o sapiens e o demens dos seres pia dos saberes que não dialogam, o Ressurreição de Jesus Cristo, seguin-
humanos, assinala. delírio arrogante de tudo conhecer- do as trilhas de Paulo de Tarso e René
Jean Louis Le Moigne, professor mos, e a falta de sentido num ensino Girard. O teólogo inglês busca superar
emérito da Universidade Aix-Marseille compartimentalizado. uma visão moralista e chantagista do
(França), analisa a importância das “Pode parecer dramático, mas pecado original.
obras de Morin em conexão com as é realista: a necessidade da transdis- Apostando numa teologia capaz
ciências dos sistemas, a engenharia e ciplinaridade aparece mesmo no in- de ler os ‘sinais dos tempos’ sendo
a inteligência artificial. Todos somos terior de uma ciência como a Física”, profética, o teólogo jesuíta venezue-
responsáveis pela aventura do conhe- constata o físico Mario Novello. lano Pedro Trigo, refletindo sobre
cimento humano e de suas socieda- Na visão de Angelita Maders, a caminhada da reflexão teológica
des, avalia. Defensora Pública do Estado do Rio latino-americana, aponta os riscos de
Unir conhecimentos, ciências exa- Grande do Sul, o pensamento aberto teólogos enclausurados na academia.
tas e humanas é o objetivo da trans- à transdisciplinaridade e o pensamen- A todas e a todos uma ótima se-
disciplinaridade hoje, afirma o físico to complexo auxiliam a compreensão mana e uma excelente leitura!
romeno Basarab Nicolescu. Saberes do sujeito e o diálogo com outros sa-
entrelaçados são esperança de “uma beres para encontrar uma solução,
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Instituto Humanitas
REDAÇÃO Colaboração: César Sanson,
Unisinos André Langer e Darli Sampaio,
Diretor de redação: Inácio
do Centro de Pesquisa e Apoio
Endereço: Av. IHU On-Line é a revista semanal Neutzling (inacio@unisinos.br).
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São Leopoldo/RS. ISSN 1981-8769. (grazielaw@unisinos.br). Projeto gráfico: Agência
CEP.: 93022-000 IHU On-Line pode ser Redação: Márcia Junges MTB Experimental de Comunicação
Telefone: 51 3591 1122 - ramal 4128. acessada às segundas-feiras, da Unisinos - Agexcom.
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Revisão: Isaque Correa
Schneider (jacintos@unisinos.br). (icorrea@unisinos.br). Wagner Altes e Mariana Staudt

2
Tema de Capa
Índice
LEIA NESTA EDIÇÃO
TEMA DE CAPA | Entrevistas
5 Quem é Edgar Morin?
5 Baú da IHU On-Line
6 Edgard de Assis Carvalho: A revogação do antropocentrismo e a aquisição de saberes
transversais
11 Jean Louis Le Moigne: Um apelo ao eterno perguntar
17 Mario Novello: Um pensamento que não recebe ordens
21 Angelita Maria Maders: Morin e a compreensão do Direito como um sistema
25 Laércio Pilz: Complexidade e pensamento vivo
29 Gerson Egas Severo: A professora imaginária e o descentramento da humanidade
34 Basarab Nicolescu: A incompatibilidade entre transdisciplinaridade e pensamento
único

DESTAQUES DA SEMANA
36 LIVRO DA SEMANA: James Alison: “O perdão antecede o pecado”. A superação de
uma visão moralista e chantagista
40 TEOLOGIA PÚBLICA: Pedro Trigo: Teólogos enclausurados na academia. Um desafio
44 COLUNA DO CEPOS: Dênis de Moraes: Valério Brittos, missionário da ética e da
solidariedade
46 DESTAQUES ON-LINE

IHU EM REVISTA
48 Agenda da Semana
50 IHU Repórter: Sérgio Trombetta
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3
Tema
de
Capa

Destaques
da Semana
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IHU em
Revista
4 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000
Tema de Capa
Quem é Edgar Morin?
Edgar Morin nasceu em Pa- Filho único, seu pai, Vidal Nahoum, alternativa à concepção de paradig-
ris, no dia 8 de julho de 1921. É um era um comerciante originário de ma encontrada em Thomas Kuhn.
antropólogo, sociólogo e filósofo Salônica. Sua mãe, Luna Beressi, fa- Seu primeiro livro traduzido para o
francês, judeu de origem sefardita. leceu quando ele tinha 10 anos. Ateu português é O cinema ou o homem
Pesquisador emérito do Centre Na- declarado, descreve-se como um imaginário, em 1958.
tional de la Recherche Scientifique. neomarrano. Morin afirma que diante dos
Formado em Direito, História e Geo- A principal obra de Edgar Morin problemas complexos que as socie-
grafia, realizou estudos em filosofia, é a constituída por seis volumes, “La dades contemporâneas hoje enfren-
sociologia e epistemologia. É autor méthode” (em português, O Méto- tam, apenas estudos de caráter in-
de mais de trinta livros, entre eles: O do). Foi escrita durante três décadas ter e politransdisciplinar poderiam
método (6 volumes), Introdução ao e meia. Trata-se de uma das maiores resultar em análises satisfatórias de
pensamento complexo, Ciência com obras de epistemologia disponível. tais complexidades. “Afinal – escreve
consciência e Os sete saberes neces- Morin inicia os primeiros escritos de –, de que serviriam todos os sabe-
sários para a educação do futuro. da obra em 1973, com a publicação res parciais senão para formar uma
Durante a Segunda Guerra Mundial, do livro O paradigma perdido: a na- configuração que responda a nossas
participou da Resistência Francesa. É tureza humana, uma transformação expectativas, nossos desejos, nossas
considerado um dos principais pen- epistemológica por questionar o fe- interrogações cognitivas?”
sadores contemporâneos e um dos chamento ideológico e paradigmático Disponível em: http://migre.me/
principais teóricos da complexidade. das ciências, além de apresentar uma aBgaN.

O Método em português
O Método 1 – A Natureza da Natureza (Europa América: Portugal 1987. Porto Alegre: Sulina, 2003)
O Método 2 – A vida da vida (Europa América, 1999. Sulina, 2001)
O Método 3 – O Conhecimento do Conhecimento (Europa América, 1996. Sulina, 2002)
O Método 4 – As ideias: habitat, vida, costumes, organização (Sulina, 2002. Europa América, 2002)
O Método 5 – A humanidade da humanidade: a identidade humana (Sulina, 2003. Europa América, 2003) www.ihu.unisinos.br
O Método 6 – A Ética (Europa América, 2005. Sulina, 2005)

Baú da IHU On-Line


Confira a edição da IHU On-Line que trata sobre tema congêneres aos de Edgar Morin:
• O ser humano como sujeito social na Teoria dos sistemas, auto-organização e caos. Edição 142, de 23-05-2005, dispo-
nível em http://bit.ly/jkjCb6

EDIÇÃO 402 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 5


Tema de Capa
A revogação do antropocentrismo
e a aquisição de saberes
transversais
Fragmentação dos saberes obstaculiza a consolidação do humanismo, frisa Edgard de
Assis Carvalho. A ciência se tornaria menos arrogante e prepotente caso assumisse a
unidade indissolúvel entre o sapiens e o demens dos seres humanos

Por Márcia Junges

“O
antropocentrismo colocou os Edgard de Assis Carvalho é graduado em
humanos em nível superior a Ciências Sociais pela Universidade de São
todas as espécies vivas. Pulsões Paulo – USP, doutor em Antropologia pela
incontidas o levam a destruir o que tem e vê Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
pela frente. De nada adiantou sabermos que a Rio Claro, pós-doutor pela Ecole des Hautes
Terra não era o centro do universo, que a evo- Études e Sciences Sociales (EHESS), na França,
lução é um processo descontínuo, que somos e livre docente pela Universidade Estadual
irremediavelmente regidos pelo inconsciente. Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp. É
Achamos, também, que somos únicos seres professor titular de Antropologia na Pontifícia
de cultura”. A ponderação é de Edgard de As- Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP,
sis Carvalho, em entrevista exclusiva concedi- coordenador do comitê de ética em pesqui-
da por e-mail à IHU On-Line. Em seu ponto de sa e coordenador do Núcleo de Estudos da
vista, revogar o antropocentrismo é “crucial Complexidade – Complexus – da PUC-SP e
para a concretização da política de civilização representante brasileiro da Cátedra Itineran-
proposta por Edgar Morin”. E acrescenta: “a te Unesco Edgar Morin – Ciuem. É um dos
aquisição de saberes transversais é a base que autores de Cultura e pensamento complexo
deve reger a reforma do ensino e da educa- (Natal: EDUFRN, 2009). De suas obras, des-
ção. A religação, portanto, não é solução para tacamos: Ética, solidariedade e complexida-
nada, mas desafio constante a ser posto em de (São Paulo: Palas Athena, 1998) e Edgar
prática nas escolas do ensino fundamental, Morin: em busca dos fundamentos perdidos.
médio e superior. A fragmentação que hoje Textos sobre o marxismo (Porto Alegre: Edi-
domina os campos do saber impede a conso- tora Sulina, 2002).
www.ihu.unisinos.br

lidação do humanismo”. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a maior in- seu primeiro livro publicado em 1946. tar um avanço nas conquistas sociais.
tuição de Edgar Morin em seu pen- Em O ano zero da Alemanha1, sob os O ano de 1989 – que sinalizou para
samento? Em que as aspectos reside escombros do final da Segunda Guerra Eric Hobsbawm2 o final do século XX –
sua atualidade? Mundial, ele imagina que a Alemanha
Edgard de Assis Carvalho – Não poderia vir a ser um exemplo para o
2 Eric Hobsbawm: historiador marxista
se trata apenas de intuição, mas de mundo. Dividida entre as potências do século XX. Autor de inúmeros livros,
um trabalho sistemático de pesquisa, que saíram vencedoras da Guerra, a entre os quais A era dos extremos (São
interpretação, criatividade. Com mais Alemanha socialista poderia represen- Paulo: Companhia das Letras, 1995),
A era do capital (Rio de Janeiro: Paz e
de 60 livros publicados, aos 91 anos, Terra, 1982), A era das revoluções (Rio
Edgar Morin é hoje um dos maiores de Janeiro: Paz e Terra, 1982), A era dos
pensadores vivos. Judeu sefardita, 1 L´An zéro de l´Allemagne (La Cité impérios (Rio de Janeiro: Paz e Terra,
Universelle, Paris, 1946). (Nota da IHU 1988), Bandidos (Rio de Janeiro: Forense
membro da resistência francesa, teve On-Line) Universitária, 1976) e sua autobiografia,

6 SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 402


incumbiu-se de demonstrar que essa
“A importância noologias, ou seja, esses circuitos de

Tema de Capa
bipartição ficara inviável no contexto ideias que organizam as percepções
político-econômico da modernidade
que varreu os socialismos da face da de Edgar Morin do sujeito. Os sistemas de ideias que
conformam as teorias e conceitos de-
Terra. Importante frisar, porém, que
a semente da complexidade já estava não pode ser vem ser abertos, biodegradáveis, ja-
mais eternos e fixos. Funcionam como
lá, mesmo que ele fosse muito jovem operadores de organização do mundo
e não tivesse ainda passado pelas resumida aos da vida.
três reorganizações genético-cogni- O volume cinco – A humanidade
tivas que iriam marcar sua trajetória seis volumes da humanidade: a identidade humana
acadêmica. (Sulina, 2003. Europa América, 2003)
de O método, – estabelece uma relação crítica com o
IHU On-Line – Nesse contexto, conceito de identidade e adverte con-
qual a importância dos seis volumes publicados tra os sentidos do relativismo que não
de O método? consegue enxergar além das fronteiras
Edgard de Assis Carvalho – A im-
portância de Edgar Morin não pode
de modo não de raça, sexo, religião. A identidade
nunca é pura, pelo simples fato de que
ser resumida aos seis volumes de O
método, publicados de modo não se-
sequencial ordens individuais, sociais e cósmicas
estão em constante interação, e nem
quencial no período 1977-2004. Sua
obra é dividida em macrotemas: mé-
no período sempre de modo harmônico. Por ve-
zes são antagônicas e contraditórias.
todo, pensamento complexo, trindade
humana, tetralogia pedagógica, era
1977-2004” Finalmente o volume seis – A Ética
(Europa América, 2005. Sulina, 2005)
planetária, tempo presente, pensa- – ilustra as contradições contemporâ-
mento político, caminho, voz, diários, neas que cercam a ética individual e
colóquios. Há também um site oficial destacar algumas ideias nucleares a ética da polis. É preciso redefinir o
do Centre Edgar Morin na internet: dessa fascinante hexalogia. O volume pensamento da ética e a ética do pen-
www.iiac.cnrs.fr, em que a bibliografia um – A natureza da natureza (Europa samento. Qualquer ato ético é uma re-
completa é encontrada. Esses temas América: Portugal 1987. Porto Alegre: ligação com o mesmo e o outro, com a
se entrecruzam a todo tempo. Há, Sulina, 2003)– estabelece a dialogia comunidade, a humanidade, o cosmo.
porém, algo que deve ser enfatizado. entre ordem e desordem que marca a
Sem a leitura dos seis volumes, qual- passagem das leis da natureza à natu- IHU On-Line – Para Edgar Morin,
quer leitor não conseguirá estabele- reza das leis. A unidade complexa da somos sapiens e demens concomitan-
cer as conexões necessárias para a natureza contém relações entre todo e temente. Como conviver com esse
compreensão das bases, dos funda- partes, emergências e reorganizações lado oculto (e inegável) da nossa exis-
mentos, das propostas que cercam o de padrões organizatórios aleatórios. tência como apontara Nietzsche ao
pensamento do autor. Se você lê, por A natureza não é regida unicamente formular o conceito de tragédia?
exemplo, Meu caminho, livro de en- por relações de causa e efeito e, em si Edgard de Assis Carvalho – Não
trevistas concedidas a Djénane Kareh mesma, não é portadora de uma fina- considero uma concomitância, mas
Tager, o próprio Morin se incumbe lidade estabelecida a priori. uma convivência. Como toda convi-
de revelar que a totalidade da obra O volume dois – A vida da vida vência, a do sapiens e a do demens
constitui um mosaico de interligações (Europa América, 1999. Sulina, 2001)– é simultaneamente oposta e com-
e interconexões entre várias áreas do penetra a fundo na ecologia, pelo plementar. De um lado, temos o lado
saber, e não apenas do ocidental. Daí simples fato de que os ecossistemas sistemático das regulações cotidianas
resultam as críticas, incompreensões e são sistemas vivos que, a todo tempo, e dos padrões culturais que prescre-
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ressentimentos que os intelectuais – e integram a organização biológica na vem nossa vida cotidiana; de outro
não só os brasileiros – dirigem ao con- ordem cósmica. O volume três – O Co- o descomedimento, a loucura, a hi-
junto de suas ideias. nhecimento do Conhecimento (Europa bris que costumam ser recalcados
América, 1996. Sulina, 2002)– abran- para os subterrâneos da mente e do
IHU On-Line – O que destacaria ge o processo do conhecimento e a corpo. Assumir a dialogia necessária
em cada um deles como fundamento abertura bioantropossociológica e é o entre oposição e complementarida-
para compreendermos sua obra? ponto de partida para a análise do ina- de implica reconhecer que somos
Edgard de Assis Carvalho – A res- cabamento humano. Conhecer é com- sempre seres da falta e que, por isso,
posta demandaria uma análise mais putar, e essa computação é tecida pelo aprendemos a priorizar um lado em
aprofundada que excede os limites entrelaçamento dos itinerários racio- detrimento do outro. Conviver simul-
de uma entrevista. É possível, porém, nal-lógico-dedutivo e simbólico-míti- taneamente com essas duas facetas
co-imaginário. O volume quatro – As requer o abandono do antropocen-
ideias: habitat, vida, costumes, organi- trismo e o reconhecimento de que
Tempos Interessantes: uma vida no século zação (Sulina, 2002. Europa América, somos, como afirmou Michel Cassé,
XX (São Paulo: Companhia das Letras,
2002).(Nota da IHU On-Line)
2002) – incursiona pelas noosferas e filhos do Céu, seres da impermanên-

EDIÇÃO 402 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 7


cia, insignificantes diante do mistério
“Nietzsche é um mos que, em si mesma, a técnica não
Tema de Capa
e da incerteza da vida. Nietzsche é um é boa nem má. Seus efeitos dependem
dos interlocutores de Edgar Morin e,
certamente, O nascimento da tragé- dos interlocutores de ecopolíticas postas em prática pelo
conjunto da sociedade civil. A revoga-
dia (São Paulo: Companhia das Letras,
1992), de 1872, mesmo que não o cite de Edgar Morin ção do antropocentrismo é, portanto,
crucial para a concretização da política
constantemente, faz parte de suas ba- de civilização proposta por Edgar Mo-
ses interpretativas. Nesse ensaio per- e, certamente, rin. Em Rumo ao abismo (Rio de Janei-
turbador Nietzsche expõe a relação ro: Bertrand Brasil, 2007), por exem-
entre o apolíneo e o dionisíaco. E não O nascimento plo, publicado em 2007, encontramos
faz isso para ser aplicado ao teatro ou explicitados os fundamentos da crise
a música, mas a todas as expressões da tragédia, de da mundialização. Se as mídias pro-
do humano. O que ele mostra é como duziram e difundiram produtos cultu-
duas noções aparentemente opostas 1872, mesmo rais os mais diferenciados, o acesso à
podem ser complementares. A rigor, cultura permanece elitizado. A cultura
todos somos, ao mesmo tempo, apo-
líneos e dionisíacos. E aqui reside nos-
que não o cite dita de massa não se democratizou.
Pelo contrário, criou ilusões, fantas-
sa tragédia contemporânea. Sob a luz
da razão, da técnica, existem sombras
constantemente, mas, desejos miméticos que nunca se
realizam. Seria preciso perceber que
que precisam ser identificadas. faz parte de a humanidade é, ao mesmo tempo,
una e múltipla. Diversidades culturais
IHU On-Line – Tomando em con-
sideração o pensamento de Edgar
suas bases deveriam dialogar entre si, pois todas
elas se inserem na mesma identida-
Morin, como se manifestam o homo
sapiens e o demens?
interpretativas” de terrena. A sociedade-mundo tem
diante de si o desafio de enfrentar o
Edgard de Assis Carvalho – Não terror-mundo que se dissemina por
se trata de uma manifestação, mas de toda parte.
uma condição imanente dos homens sitado a Terra, em vez de viver sim-
em geral. Está presente em humanos bioticamente com ela? IHU On-Line – Podemos pensar
de todos os tempos e lugares. O sa- Edgard de Assis Carvalho – A pre- esse comportamento antropocêntri-
piens é apolíneo, o demens dionisíaco. servação e a sustentabilidade da Terra co a partir da ecologia da ação? Como
Nos tempos líquidos de hoje, o sapiens são metas prioritárias diante da idade seria essa análise?
é o legitimador da razão contemporâ- de ferro planetária em que nos en- Edgard de Assis Carvalho – A eco-
nea, comandada pelo quadrimotor contramos. Sustentabilidade implica logia da ação é um dos deflagradores
ciência/técnica/indústria/estado que garantir para as gerações futuras uma desse processo. Em primeiro lugar,
conduz os processos da globaliza- destinação democrática digna que seria necessário desfazer a separação
ção. Sabemos que, de um lado, eles acabe de vez com as desigualdades e entre homem e natureza, introduzida
pregam a uniformização e, de outro, isso é contraditório com políticas de- no pensamento moderno, pelo menos
geram processos crescentes de exclu- senvolvimentistas baseadas numa su- desde Descartes4. O antropocentrismo
são, intolerâncias, racismos. O demens posta superioridade da tecnociência.
considera que a via racional não é a A perspectiva estadocêntrica precisa
única forma de acesso à realidade. ser reequacionada em prol de rela- disponível para download em http://
migre.me/uNtv, e 187, de 3-07-2006,
Por vezes, a via “imaginal” acessa essa ções sociais equitativas e equânimes. intitulada Ser e tempo. A desconstrução
mesma realidade com certo despudor A destruição sistemática dos ecossis- da metafísica, que pode ser acessado
e liberdade. Por isso as artes em ge- temas tem a ver com a suposta supe- em http://migre.me/uNtC. Confira,
www.ihu.unisinos.br

ainda, o nº 12 do Cadernos IHU Em


ral são elementos fundamentais de rioridade do homem que acredita na Formação intitulado Martin Heidegger.
compreensão do mundo. Para Edgar dominação da natureza como fonte A desconstrução da metafísica, que pode
Morin, o cinema, a literatura, as artes de progresso. Desde Heidegger3, sabe- ser acessado em http://migre.me/uNtL.
Confira, também, a entrevista concedida
são desdobramentos da representa- por Ernildo Stein à edição 328 da revista
ção e, como tal, devem ser necessa- 3 Martin Heidegger (1889-1976): IHU On-Line, de 10-05-2010, disponível
filósofo alemão. Sua obra máxima é O em http://migre.me/FC8R, intitulada O
riamente incluídas nas interpretações ser e o tempo (1927). A problemática biologismo radical de Nietzsche não pode
que fazemos a nosso próprio respeito. heideggeriana é ampliada em Que ser minimizado, na qual discute ideias de
A ciência ficaria menos arrogante e é metafísica? (1929), Cartas sobre sua conferência A crítica de Heidegger
o humanismo (1947), Introdução à ao biologismo de Nietzsche e a questão
prepotente se admitisse esse fato e metafísica (1953). Sobre Heidegger, a IHU da biopolítica, parte integrante do Ciclo
percebesse que o sapiens e o demens On-Line publicou na edição 139, de 2-05- de Estudos Filosofias da diferença - Pré-
constituem uma unidade indissolúvel. 2005, o artigo O pensamento jurídico- evento do XI Simpósio Internacional
político de Heidegger e Carl Schmitt. IHU: O (des)governo biopolítico da vida
A fascinação por noções fundadoras do humana. (Nota da IHU On-Line)
IHU On-Line – A partir do cenário nazismo, disponível para download em 4 René Descartes (1596-1650): filósofo,
http://migre.me/uNtf. Sobre Heidegger, físico e matemático francês. Notabilizou-se
de devastação da natureza, é correto confira as edições 185, de 19-06-2006, sobretudo pelo seu trabalho revolucionário
concluir que o ser humano tem para- intitulada O século de Heidegger, da Filosofia, tendo também sido famoso

8 SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 402


colocou os humanos em nível supe-
“A ciência ficaria na teoria da complexidade de Morin.

Tema de Capa
rior a todas as espécies vivas. Pulsões Acredita que a religação dos saberes
incontidas o levam a destruir o que
tem e vê pela frente. De nada adian- menos arrogante pode tornar mais pacífica e ressignifi-
car a existência das pessoas?
Edgard de Assis Carvalho – A
tou sabermos que a terra não era o
centro do universo, que a evolução e prepotente se Teoria Geral dos Sistemas e o pen-
é um processo descontínuo, que so- samento complexo são complemen-
mos irremediavelmente regidos pelo admitisse esse tares. Não podem ser igualados. A
inconsciente. Achamos, também, que existência humana pacífica, tão pro-
somos únicos seres de cultura. Morin fato e percebesse clamada desde Kant8 a respeito da paz
refere-se várias vezes ao conceito de perpétua, requer um trabalho siste-
cultura, considerando-o um conceito- que o sapiens mático no nível das ideias. As noosfe-
-armadilha. Contaminado pelo carte- ras e as noologias estão aí para serem
sianismo, esfacelou-se em dualidades: e o demens retrabalhadas a todo tempo. A religa-
cultura erudita/cultura popular, cultu- ção dos saberes é uma base cognitiva
ra científica/cultura das humanidades,
essas últimas responsáveis pela conso-
constituem e afetiva a ser aplicada em todos os
níveis da formação escolares. A aqui-
lidação da fragmentação universitária.
Patrimônio universal, a cultura tem
uma unidade sição de saberes transversais é a base
que deve reger a reforma do ensino
padrões, prescrições, normas, mas
também resistências, zonas obscuras
indissolúvel” e da educação. A religação, portanto,
não é solução para nada, mas desafio
difíceis de serem decifradas. A cultura constante a ser posto em prática nas
não é apenas uma fábrica da ordem. admitíssemos esse fato, nossa supos- escolas do ensino fundamental, mé-
É igualmente desordem, interação, re- ta arrogância poderia ser minimizada. dio e superior. A fragmentação que
organização. A moderna etologia de- Passaríamos a ser coparticipantes de hoje domina os campos do saber im-
monstra que primatas não humanos nossa aventura hominescente. pede a consolidação do humanismo.
conseguem estabelecer políticas do É uma reserva de poder de áreas dis-
bem-viver baseadas em estratégias de IHU On-Line – Diz-se que no um- ciplinares que se contentam com ava-
paz e ética. A cultura não é mais nos- bral da academia de Platão6 havia um liações quantitativas e produtivismos
so privilégio. Trata-se, talvez, de uma conselho de que só entrasse ali quem classificatórios. A pergunta que deve-
quarta ferida narcísica que seria acres- soubesse geometria. Esse “conselho” ria ser dirigida aos avaliadores nome-
centada à formulação de Freud5. Se tem sua versão moderna na teoria ados pelo aparato de Estado é quem
geral dos sistemas de Bertalanffy7 e irá avaliá-los. Essas comissões consa-
por ser o inventor do sistema de gram a fragmentação e, com isso, são
coordenadas cartesiano, que influenciou empecilhos à construção do conheci-
o desenvolvimento do cálculo moderno. disponível para consulta no link http://
Descartes, por vezes chamado o fundador migre.me/s8jc. A edição 207, de 04-12-
da filosofia e matemática modernas, 2006, tem como tema de capa Freud e 8 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo
inspirou os seus contemporâneos e a religião, disponível para download em prussiano, considerado como o último
gerações de filósofos. Na opinião de http://migre.me/s8jF. A edição 16 dos grande filósofo dos princípios da era
alguns comentadores, ele iniciou a Cadernos IHU em formação tem como moderna, representante do Iluminismo,
formação daquilo a que hoje se chama de título Quer entender a modernidade? indiscutivelmente um dos seus pensadores
racionalismo continental (supostamente Freud explica, disponível para download mais influentes da Filosofia. Kant teve um
em oposição à escola que predominava em http://migre.me/s8jU. (Nota da IHU grande impacto no Romantismo alemão
nas ilhas britânicas, o empirismo), posição On-Line) e nas filosofias idealistas do século XIX,
filosófica dos séculos XVII e XVIII na Europa. 6 Platão (427-347 a. C.): filósofo tendo esta faceta idealista sido um ponto
(Nota da IHU On-Line) ateniense. Criador de sistemas filosóficos de partida para Hegel. Kant estabeleceu
5 Sigmund Freud (1856-1939): influentes até hoje, como a Teoria das uma distinção entre os fenômenos e a www.ihu.unisinos.br
neurologista e fundador da Psicanálise. Idéias e a Dialética. Discípulo de Sócrates, coisa-em-si (que chamou noumenon),
Interessou-se, inicialmente, pela histeria Platão foi mestre de Aristóteles. Entre isto é, entre o que nos aparece e o que
e, tendo como método a hipnose, suas obras, destacam-se A República e o existiria em si mesmo. A coisa-em-si
estudava pessoas que apresentavam Fédon. Sobre Platão, confira e entrevista não poderia, segundo Kant, ser objeto
esse quadro. Mais tarde, interessado “As implicações éticas da cosmologia de de conhecimento científico, como até
pelo inconsciente e pelas pulsões, foi Platão”, concedida pelo filósofo Prof. Dr. então pretendera a metafísica clássica. A
influenciado por Charcot e Leibniz, Marcelo Perine à edição 194 da revista ciência se restringiria, assim, ao mundo
abandonando a hipnose em favor da IHU On-Line, de 04-09-2006,disponível dos fenômenos, e seria constituída
associação livre. Estes elementos em http://migre.me/uNq3. Leia, pelas formas a priori da sensibilidade
tornaram-se bases da Psicanálise. Freud, também, a edição 294 da Revista IHU On- (espaço e tempo) e pelas categorias do
além de ter sido um grande cientista e Line, de 25-05-2009, intitulada Platão. A entendimento. A IHU On-Line número
escritor, realizou, assim como Darwin totalidade em movimento, disponível em 93, de 22-03-2004, dedicou sua matéria
e Copérnico, uma revolução no âmbito http://migre.me/uNqj. (Nota da IHU On- de capa à vida e à obra do pensador com
humano: a idéia de que somos movidos Line) o título Kant: razão, liberdade e ética,
pelo inconsciente. Freud, suas teorias e 7 Karl Ludwig von Bertalanffy (1901- disponível para download em http://
o tratamento com seus pacientes foram 1972): biólogo criador da Teoria geral dos migre.me/uNrH. Também sobre Kant foi
controversos na Viena do século XIX, sistemas. Cidadão austríaco, desenvolveu publicado este ano o Cadernos IHU em
e continuam muito debatidos hoje. A a maior parte do seu trabalho científico formação número 2, intitulado Emmanuel
edição 179 da IHU On-Line, de 08-05- nos Estados Unidos da América. É autor Kant - Razão, liberdade, lógica e ética,
2006, dedicou-lhe o tema de capa sob o de Teoria Geral dos Sistemas (Petrópolis: que pode ser acessado em http://migre.
título Sigmund Freud. Mestre da suspeita, Vozes, 1968). (Nota da IHU On-Line) me/uNrU. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 402 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 9


mento pertinente, aliás um dos sabe-
“A preservação e da racionalização. A desrazão está
Tema de Capa
res propostos por Edgar Morin. diante de nós e integrá-la ao nível dos

IHU On-Line – Como os sete sa- e a susten- saberes sistematizados é algo prioritá-
rio e inadiável. Uma nova concepção
beres podem se fazer presentes para
as pessoas nos dias de hoje? Qual é tabilidade da de mundo exige que a esperança se
converta em meta prioritária. Sem ela,
a grande esperança que nasce a par- instalam-se o conformismo e a ade-
tir de uma nova concepção de vida e Terra são metas são às práticas convencionais. Com
relacionalidade? ela podem-se construir vias para o fu-
Edgard de Assis Carvalho – A prioritárias diante turo da humanidade desencadeadas
proposta dos sete saberes – as ce- por amplas reformas do pensamento,
gueiras do conhecimento: o erro e a da idade de ferro da educação, da sociedade, da vida.
ilusão, o conhecimento pertinente, a Esse é o propósito do último livro de
condição humana, a identidade terre- planetária em que Edgar Morin – A via para o futuro da
na, as incertezas, a compreensão, éti- humanidade.
ca do gênero humano – tem a ver com
algo mais profundo. Foi um desafio
nos encontramos” IHU On-Line – Gostaria de
proposto a Edgar Morin pelo ministro acrescentar alguns aspectos não
da educação nacional da França, em questionados?
1999, no final segundo mandato de na IX tese sobre Feuerbach12, aliás Edgard de Assis Carvalho – Como
François Mitterand. A proposta visa- sempre referida por Morin, deve ser explicitei anteriormente, a complexi-
va prioritariamente o ensino médio. o fio condutor de qualquer iniciativa dade não deve ser vista como solução
Em sucessivas reuniões preparatórias reformadora. O pensamento comple- para os males do mundo, mas como
e entrevistas à imprensa, Edgar Mo- xo não pensa contra Marx, mas com desafio constante a ser posto em
rin sempre enfatizava que os saberes Marx. É necessário retomar os fun- prática na vida social em seu conjun-
não deveriam ser concebidos como damentos perdidos, saturar a noção to em prol de um mundo mais justo,
disciplinas. Eles são deflagradores de de homem genérico com emoção e equitativo e ético, e isso no nível do
uma cosmovisão capaz de religar de- descomedimento. indivíduo, da sociedade e da espécie.
finitivamente a cultura científica e a Somos seres dotados de razão, Recentemente, Morin publicou um
cultura das humanidades. Essa neces- mas não podemos nos deixar domi- pequeno livro – O Caminho da espe-
sidade já havia sido explicitada por nar pelos atratores do racionalismo rança (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
Charles Snow9 em 1957. Em As duas 2012), escrito com Stéphane Hessel13.
culturas10, Snow é enfático ao afir- Único representante vivo dentre os
mar que qualquer sistema social que historiador e revolucionário alemão, um signatários da Declaração Universal
pensasse a si mesmo com sabedoria dos pensadores que exerceram maior do Direitos do Homem, Hessel, hoje
influência sobre o pensamento social
deveria empenhar-se na busca dessa e sobre os destinos da humanidade no
com 93 anos, notabilizou-se em 2011
junção, não por justaposição, mas por século XX. Marx foi estudado no Ciclo pela publicação de um pequeno livro
transversalidade. Talvez por isso o de Estudos Repensando os Clássicos – Indignai-vos – no qual conclama as
da Economia. A edição número 41 dos
projeto da reforma do ensino médio Cadernos IHU Ideias, de autoria de Leda
novas gerações a se revoltarem con-
não tenha dado certo. Foram grandes Maria Paulani tem como título A (anti) tra o desmando generalizado instala-
os protestos sindicais. Restou uma re- filosofia de Karl Marx, disponível em do no mundo. Em O caminho da espe-
http://migre.me/s7lq. Também sobre
serva de memória para ser redefinida o autor, confira a edição número 278 da
rança, ambos reiteram que o objetivo
nas escolas empenhadas numa edu- IHU On-Line, de 20-10-2008, intitulada que pregam implica a denúncia do
cação planetária. No Brasil, em 2010, A financeirização do mundo e sua crise. curso perverso da política insensata
Uma leitura a partir de Marx, disponível
ocorreu em Fortaleza uma conferên- atual. Se ela permanecer intocada,
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para download em http://migre.me/


cia internacional presidida por Morin. s7lF. Leia, igualmente, a entrevista que desastres irreversíveis advirão.
Os saberes foram reiterados como Marx: os homens não são o que A salvação pública de que necessita-
pensam e desejam, mas o que fazem,
prioritários e o congresso lançou um concedida por Pedro de Alcântara
mos requer revolta, esperança, de-
manifesto que foi institucionalmente Figueira à edição 327 da revista IHU terminação em prol de uma política
divulgado. É preciso, porém, ter em On-Line, de 03-05-2010, disponível de civilização que abarque todos os
para download em http://migre.me/
mente que reforma da educação só Dt7Q. (Nota da IHU On-Line)
domínios da vida.
ocorrerá a partir da reforma dos edu- 12 Ludwig Feuerbach (1804-1872):
cadores. Essa a formulação de Marx11 filósofo alemão, reconhecido pela
influência que seu pensamento exerce 13 Stéphane Frédéric Hessel (1917):
sobre Karl Marx. Abandona os estudos de diplomata, embaixador, combatente da
9 Charles Percy Snow (1905-1980): físico Teologia para tornar-se aluno de Hegel, resistência francesa e agente da Bureau
e romancista inglês. (Nota da IHU On- durante dois anos, em Berlim. De acordo Central de Renseignements et d’Action
Line) com sua filosofia, a religião é uma forma (o serviço de inteligência da França).
��The Two Cultures (London: Cambridge de alienação que projeta os conceitos Nascido como alemão, Stéphane obteve
University Press, 1959). (Nota da IHU On- do ideal humano em um ser supremo. É a nacionalidade francesa em 1937. Ele
Line) autor de A essência do cristianismo (2ª. participou da elaboração da Declaração
11 Karl Heinrich Marx (1818-1883): ed. São Paulo: Papirus, 1997). (Nota da Universal dos Direitos Humanos de 1948.
filósofo, cientista social, economista, IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

10 SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 402


Tema de Capa
“Um apelo ao eterno perguntar”
Jean Louis Le Moigne analisa a importância das obras de Edgar Morin em
conexão com as ciências dos sistemas, a engenharia e a inteligência artificial.
Todos somos responsáveis pela aventura do conhecimento humano e de
suas sociedades, avalia

Por Márcia Junges | Tradução: Vanise Dresch

D
e acordo com o engenheiro francês epistemológico exigente. Fazendo isso, Morin
Jean Louis Le Moigne, “a complexi- esforçou-se, junto com outros obviamente,
dade está vinculada tanto ao global para documentar, argumentar e ilustrar essas
como ao local. Não devemos reduzi-la à glo- questões”.
balidade. Na mecânica celeste, já se conside- Jean Louis Le Moigne nasceu em 1931,
ra o problema da gravitação atrativa de três em Casablanca, formou-se em Engenharia
corpos (três somente!) como muito comple- na Universidade de Harvard (EUA), trabalhou
xo, no sentido de potencialmente imprevisí- entre 1956 e 1971, no grupo Shell francês e
vel na prática. Ele discute, também, a auto- lecciona, desde 1971, na Universidade Aix-
-organização e a Teoria Geral dos Sistemas, -Marseille (França) onde é atualmente pro-
de Bertallanfy: “para adquirir autonomia fessor emérito. É presidente do Programa
e, portanto, auto-organizar-se, um sistema Europeu de Modelização da Complexidade
deve ser aberto, estar em interação efetiva e vice-presidente da Associação Para o Pen-
com seus ambientes, que ele transforma e samento Complexo – APC. Publicou mais de
que o transformam”. Analisando o legado de uma centena de artigos e cerca de duas de-
Morin, Le Moigne pontua que as disciplinas zenas de livros, alguns dos quais, escritos em
científicas não podem mais definir-se por um colaboração com autores tão importantes
único “objeto de conhecimento”, estritamen- como Edgar Morin ou Herbert Simon, entre os
te delimitado e tido como um dado da Natu- quais Les systèmes d’information dans les or-
reza: “elas devem ser entendidas também e ganisations (1973), Les systèmes de décision
primeiramente por seu ‘projeto de conheci- dans les organisations, (1973) La théorie du
mento’, conscientemente formulado pelo es- système général, théorie de la modélisation
pírito humano, através do qual interligam-se (1977); La modélisation des systèmes com-
a experiência do corpo e a compreensão do plexes (1990), Sciences de l’intelligence, scien-
mundo”. E ressalta: “a contribuição mais de- ces de l’artificiel (1986) – com Edgar Morin;
cisiva da obra de Edgar Morin nesse sentido Science et conscience de la complexité (1984);
foi o apelo permanente dirigido a todos os L’intelligence de la complexité (1999).
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cientistas para que nunca deixassem de fazer Confira a entrevista.
essas perguntas e praticassem esse trabalho

IHU On-Line – A partir da teoria Edgar Morin fala mais precisamente to, a expressão ciência dos sistemas
da complexidade de Edgar Morin, do paradigma da complexidade: “O complexos surge, em nossas univer-
qual é o nexo que une as ciências dos paradigma não explica, ele permite sidades, a partir de 1985, reunindo
sistemas, a engenharia e a inteligên- a compreensão”. Do mesmo modo, subdisciplinas da ciência da regula-
cia artificial? a expressão “ciência de sistemas” é ção (cibernética de primeira ordem),
Jean Louis Le Moigne – Em pri- inadequada, no sentido de que todas da informática, da inteligência arti-
meiro lugar, precisamos estar atentos as disciplinas científicas podem tam- ficial e da matemática dos sistemas
à escolha das palavras: a complexi- bém ser consideradas ciências dos dinâmicos lineares e não lineares.
dade não é uma teoria no sentido da sistemas, de modo que a expressão porém, como ciência autônoma, “ela
teoria da gravitação ou da evolução. não designa nenhuma delas. Por cer- se esqueceu de alicerçar – ou arrai-

EDIÇÃO 402 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 11


gar – seus próprios fundamentos... tar e conceber unidades complexas, finir a inteligência artificial, a qual ele
Tema de Capa
O trabalho preliminar ainda está por constituídas por inter-relações orga- preferia ter denominado simulação
ser feito: conceber os objetos como nizacionais entre elementos, ações ou funcional dos processos cognitivos.
sistemas”. outras unidades complexas. A ciên- Uma simulação computacional (por
Foi a esta empreitada que se de- cia dos sistemas torna-se, por assim programação de heurísticas que dis-
dicou Edgar Morin a partir de 1970, dizer, a ciência da modelização e da põem de sistemas de memorização)
a partir de sua experiência como so- concepção sistêmica (como e por um pode muitas vezes possibilitar uma
ciólogo e antropólogo, mas principal- sistema em geral). Antes organizado e interpretação plausível de compor-
mente desde o seu encontro com a fechado, o conceito de sistema passa tamentos observáveis de um sujeito
obra de H. Von Foerster1 e, em par- então a organizar e a organizar-se. Em dotado de um projeto e exposto a
ticular, o artigo seminal deste autor, vez de ser a palavra-mestra da totali- variações de seu “ambiente externo”.
de 1959, intitulado “Os sistemas au- dade (holismo), ele se torna a raiz da Nesse sentido, a inteligência artifi-
to-organizadores e seu ambiente”. complexidade. cial torna-se uma ferramenta de ex-
Para adquirir autonomia e, portanto, Assim sendo, as novas ciências ploração de situações possíveis e de
auto-organizar-se, um sistema deve da engenharia, ciências de concepção elaborações de estratégias de ações
ser aberto, estar em interação efetiva ou do artificial, como dirá H. Simon próximas concebíveis, sem, contudo,
com seus ambientes, que ele transfor- (1969), podem ser entendidas como impor a escolha da “decisão certa”.
ma e que o transformam. ciências fundamentais, e não mais Os possíveis nem sempre são os de-
A partir desse apelo a um pen- como disciplinas de aplicação, servas sejáveis nas decisões de comporta-
samento aberto (e não mais fechado, das ciências de análise, ditas exatas mento humano, que, na prática, são
como implicavam os quatro preceitos (reducionistas, causalistas, fecha- muitas vezes multicritérios, critérios
fundadores do Discurso do método, das em torno de um objeto passivo). raramente hierarquizados de manei-
de René Descartes, 1637), Morin mo- Tornam-se também, sobretudo elas, ra uniforme.
biliza todos os recursos oferecidos responsáveis por sua própria crítica
pelas novas disciplinas que se desen- epistemológica interna. Perspectiva transhumanista
volveram desde a institucionalização A inteligência artificial torna-se Essas considerações metodo-
da cibernética (ciência da regulação uma dessas novas ciências da enge- lógicas requerem, evidentemente,
interativa e da comunicação entre or- nharia, fontes de heurísticas explo- um exercício permanente de crítica
dem desejada e desordem percebida), ratórias nos campos das ciências da epistemológica. Devemos nos inter-
das ciências da informação, da com- computação, que se revelarão muitas rogar aqui sobre a leviandade desses
putação, da cognição etc. O conceito vezes poderosas para orientar infe- questionamentos ético-epistêmicos
rígido de estrutura não permitia con- rências nas ciências da cognição, da quando se observam desvios cientifi-
siderar nem dar conta da miríade de biologia computacional, da linguística cistas tais como aqueles desenvolvi-
interações entre ordem e desordem computacional, etc. dos na perspectiva transumanista (ou
que cada um de nós observa nas ati- pós-humanista) de uma humanidade
vidades humanas. Fazia-se necessário IHU On-Line – O desenvolvimen- transformada pelas técnicas compu-
restaurar o conceito de organização, to da inteligência artificial foi notá- tacionais, que deveriam permitir me-
entendendo-o em sua complexidade: vel nos últimos anos. De que modo lhorar as características físicas e men-
Unitas multiplex. esta área do conhecimento humano tais dos seres humanos (a partir de
pode contribuir para o avanço da trabalhos contemporâneos sobre as
Crítica epistemológica interna compreensão interligada do conhe- técnicas informáticas da vida artificial,
A partir dessa base paradigmáti- cimento, da própria vida e de suas da concepção artificial, da engenharia
ca, a complexidade de base, o concei- possibilidades? artificial, trabalhos raramente atentos
to de sistema, ou unidade complexa Jean Louis Le Moigne – Talvez eu às questões ideológicas). Será que po-
organizada, surge como um conceito- possa responder com uma observa- demos estabelecer definitivamente os
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-piloto resultante das interações entre ção de Paul Valéry2 em seus Cahiers, a critérios de uma melhora certa e uni-
um observador/conceptor e o univer- qual é bem anterior ao surgimento da versal da espécie humana?
so fenomenal; ele permite represen- expressão inteligência artificial (MIT,
1956): “Nós compreendemos melhor Inteligência artificial
1 Heinz Von Foerster (1911-2002):
os viventes à medida que inventamos Resta que as técnicas da inteli-
biólogo austríaco e um dos arquitetos da e construímos máquinas” (Cahiers XIII, gência artificial são técnicas de simu-
cibernética, chamado por Edgar Morin 617, 1929). lação informática. Enquanto tais, elas
como “Sócrates cibernético”, fundou a
Biocibernética para estudar os fenômenos
Foi este argumento que H. Si- levam ao exame fenomenológico de
biológicos a partir dessa nova matriz. mon enfatizou, já em 1969, para de- comportamentos observáveis, suge-
Concebeu o processo de vida como sistema
fechado para informação e aberto para a rindo hipóteses heurísticas programá-
energia, destacando o papel da interação 2 Ambroise-Paul-Toussaint-Jules Valéry veis a fim de propor inferências que
e da auto-organização. Na esteira dos (1871-1945): filósofo, escritor e poeta autorizam compreensões funcionais
estudos de Von Foerster, surgiu a teoria francês da escola simbolista cujos escritos
de Maturana & Varela e o conceito de incluem interesses em matemática, plausíveis dos fenômenos considera-
Autopoiesis. (Nota da IHU On-Line) filosofia e música. (Nota da IHU On-Line) dos. Se algumas dessas simulações pa-

12 SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 402


ramétricas levam a comportamentos
“Vivemos hoje Sem dúvida, foi o desenvolvimen-

Tema de Capa
tidos como desejáveis em contextos to do positivismo segundo Auguste
predefinidos, elas permitirão então a
realização efetiva de robôs e próteses a crise dessa Comte6 que garantiu a longa sobrevi-
vência do paradigma da epistemolo-
que podem cumprir essas mesmas
funções no mesmo contexto, prestan- renovação de gia cartesiana que observamos ainda
hoje. E. Morin (1991) o nomeia “o
do atenção nos efeitos ditos “pleiotró- grande paradigma do Ocidente” ou o
picos”. O processador concebido para nossos paradigmas paradigma da ciência clássica. No en-
cumprir essa função pode revelar-se tanto, devemos lembrar que, já em
a posteriori capaz de exercer outras de referência” 1934, G. Bachelard7 conclui Le nouvel
funções não antecipadas no caso de esprit scientifique8 com um apelo a
modificações às vezes mínimas do uma “epistemologia não cartesiana”,
contexto, sejam elas exógenas ou en- cartesianos do Discurso do método que ia desenvolver-se e organizar-se
dógenas, provocadas por efeitos de (1637): independência do objeto e nos desenvolvimentos das novas ci-
autoaprendizagem. do sujeito, fundamento do postulado ências, dentro do paradigma da com-
Lembremo-nos aqui do prin- fundador de objetividade dita científi- plexidade que E. Morin nos apresenta
cípio de Jean Piaget3: “Um sistema ca; modelização analítica por redução nos seis tomos de O método.
inteligente pode e deve construir e a elementos tidos como simples e evi-
memorizar os traços de seu próprio Pensamento aberto
dentes; determinismo universal por
comportamento”. Este princípio nos Doravante, o desafio deixa de
cadeias causais lineares; fechamento
lembra que a inteligência não é pri- ser defensivo, contra um pensamento
absoluto dos modelos que implicam
meiramente um processador, mas fechado, o reducionismo e o determi-
contagens exaustivas. Esses preceitos,
um processo que só pode ser com- nismo integrista. Torna-se construtivo,
essencialmente derivados dos três
preendido e desenvolvido em intera- a favor de um pensamento aberto:
axiomas formais do silogismo perfeito
ções, que, por sua vez, são auto-eco- “O pensamento complexo é um pen-
segundo Aristóteles4, não apresentam
-organizadoras. Podemos concluir samento que interliga”, escreveu E.
um caráter de evidência universal.
com uma famosa expressão de desse Morin em 1976: “O único método que
Não é surpreendente que eles
pensador: “A inteligência não inicia adotei foi tentar captar as ligações
não tenham sido considerados a úni-
nem pelo autoconhecimento, nem móveis. Interligar, sempre interligar,
ca garantia de todas as verdades cien-
pelo conhecimento das coisas como era um método mais rico, mesmo no
tíficas nos séculos anteriores. Já em
tais, e sim pelo conhecimento de sua nível teórico, do que as teorias blin-
1708, G. B. Vico5 publicou, na Univer-
interação, e, orientando-se simul- dadas, sob invólucro epistemológico
sidade de Nápoles, um discurso expli-
taneamente para os dois polos des- e lógico, metodologicamente aptas a
citamente alternativo, O discurso do
sa interação, ela organiza o mundo enfrentar tudo, exceto, é claro, a com-
método dos estudos de nosso tempo,
organizando-se a si mesma” (Piaget, plexidade do real”.
destacando as deficiências do reducio-
1937). Sem dar atenção a essa recur- É assumindo essa relação críti-
nismo analítico e insistindo na riqueza
sividade constitutiva da inteligência, ca fundadora da legitimação antro-
dessa faculdade da mente humana de
será que podemos falar apropriada- política dos conhecimentos a serem
“relacionar, sempre relacionar” em
mente de inteligência artificial? ensinados e acionados, que renovam
vez de separar primeiro.
constantemente a ciência, sempre en-
IHU On-Line – Nesse sentido, gajada na aventura do conhecimento
4 Aristóteles de Estagira (384 a.C. –
como o desenvolvimento transdis- 322 a.C.): filósofo nascido na Calcídica, humano, que uma efetiva inter e trans-
ciplinar das ciências pode fornecer Estagira, um dos maiores pensadores disciplinaridade pode desenvolver-se.
de todos os tempos. Suas reflexões As disciplinas científicas não podem
outra compreensão sobre a irreduti- filosóficas — por um lado originais e por
bilidade dos modelos analíticos, cau- outro reformuladoras da tradição grega mais definir-se por um único objeto de
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salistas, deterministas e simples? — acabaram por configurar um modo de conhecimento, estritamente delimita-
pensar que se estenderia por séculos.
Jean Louis Le Moigne – A ques- Prestou inigualáveis contribuições para
tão nos convida expressamente a vol- o pensamento humano, destacando-se 6 Augusto Comte (1798-1857): filósofo e
tar ao enunciado dos quatro preceitos nos campos da ética, política, física, pensador social francês. Fundou a escola
metafísica, lógica, psicologia, poesia, filosófica conhecida como positivismo e
retórica, zoologia, biologia, história criou um conceito de ciência social a que
3 Jean Piaget (1896-1980): psicólogo, natural e outras áreas de conhecimento. deu o nome de sociologia. O positivismo
epistemólogo e educador suíço, professor É considerado, por muitos, o filósofo que comteano afirma que a verdade da
de psicologia na Universidade de Genebra mais influenciou o pensamento ocidental. ciência é indiscutível e demonstrável
de 1929 a 1954, conhecido principalmente (Nota da IHU On-Line) universalmente. (Nota da IHU On-Line)
por organizar o desenvolvimento cognitivo 5 Giambattista Vico ou Giovanni Battista 7 Gaston Bachelard (1884-1962): filósofo e
em uma série de estágios. Escreveu Vico (1668-1744): filósofo italiano. poeta francês que estudou sucessivamente
inúmeras obras, das quais citamos Discerniu a explosiva mistura da razão as ciências e a filosofia. Seu pensamento
Tratado de Psicologia Experimental: A com a mecânica e ofereceu uma nova está focado principalmente em questões
inteligência (Rio de Janeiro: Forense, v. ciência que poderia trazer as mais altas referentes à filosofia da ciência. (Nota da
7, 1969) e A construção do real na criança percepções da Renascença para dentro da IHU On-Line)
(Rio de Janeiro: Zahar, 1970). (Nota da metodologia dos primeiros investigadores 8 O novo espírito científico (Lisboa:
IHU On-Line) modernos. (Nota da IHU On-Line) Editora 70, 1996). (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 402 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 13


do e tido como um dado da natureza: formalmente admissível, H. von Foers- emergência autoeco-organizacional,
Tema de Capa
elas devem ser entendidas também ter introduziu no pensamento científi- o que levou E. Morin a desenvolver o
e primeiramente por seu projeto de co uma ideia muito renovadora: para paradigma da complexidade a partir
conhecimento, conscientemente for- que um sistema possa evoluir aumen- do esquema de referência de O méto-
mulado pelo espírito humano, através tando sua “riqueza organizacional” do, aquele da autoeco-reorganização.
do qual interligam-se a experiência do (emergência de novos comportamen- Tornava-se assim possível renovar a
corpo e a compreensão do mundo (cf. tos não pré-programados), ele preci- modelização dos sistemas complexos
O paradigma corpo, espírito, mundo, sa ser ativo em seu ambiente, rece- passando da modelização cibernética
dirá P. Valéry). bendo não só os inputs programados e holística inicial, fechada (autorre-
Vivemos hoje a crise dessa reno- ou ordenados, mas também o ruído, gulação do processador caixa-preta),
vação de nossos paradigmas de refe- a priori aleatório, não programado, à modelização sistêmica aberta (fun-
rência. Precisamos fazer do “ideal de desordenado, que seguidamente os cionamento e evolução teleológica e
complexidade da ciência contemporâ- acompanha. Potencialmente, em cer- contextualizada).
nea aquele da restauração da solida- tas condições plausíveis (um mínimo Caberia aqui completar a inter-
riedade entre todos os fenômenos”, de redundâncias na organização ini- pretação operatória do paradigma da
lembrou G. Bachelard. Não mais sepa- cial), essa desordem imprevista pode, autoeco-reorganização pelos desen-
rar o fazer e o compreender significa contudo, suscitar a emergência inter- volvimentos importantes introduzidos
também entender que “o cientista tor- na de novos comportamentos, im- por Morin acerca da interação recur-
na-se cego sem os óculos do cidadão”. previstos, que se manifestarão na ati- siva dos processos organizacionais e
A aventura do conhecimento humano vidade da organização dentro de seu dos processos informacionais que eles
entrelaça-se constantemente com a ambiente. Desenvolve-se assim uma formam e que os transformam recur-
aventura das sociedades humanas: recursão dita morfodinâmica: agindo sivamente. A concepção dos sistemas
todos nós somos responsáveis por ela. cinematicamente sobre seu ambiente de informação encontra aí um pla-
que então ela transforma, a organi- no diretor que permite evitar que as
IHU On-Line – O que é a auto- zação é transformada ela mesma. A restrições próprias das tecnologias da
-eco-organização dos fenômenos regulação cibernética de primeira or- informação e da comunicação prejudi-
complexos? Em que aspectos o co- dem engendra uma recursão ciberné- quem a qualidade potencial das inte-
nhecimento dessa complexidade re- tica de segunda ordem. rações poiéticas entre os dois proces-
sulta numa outra compreensão tanto sos, organizacional e informacional.
da forma como do funcionamento Paradigma da complexidade
dos sistemas? Assim, para que um sistema seja IHU On-Line – Em que aspectos a
Jean Louis Le Moigne – Acredito autônomo (“auto”) e, portanto, capaz obra de E. Morin pode ser considera-
que a história do conceito de auto- de transformar-se ele mesmo, é pre- da como um contraponto à clausura
-eco-organização inicia em 1959 com a ciso que seja dependente e solidário ideológica e paradigmática das ciên-
publicação do artigo de H. Von Foers- (“eco”) de seu ambiente. Todo sis- cias clássicas?
ter (que criou um laboratório de bio- tema é ecossistema. O modelizador Jean Louis Le Moigne – Conside-
informática) intitulado “On self organi- poderá distingui-los, mas não poderá rando as devidas nuanças, proponho
zing systems and their environment”. mais mantê-los separados. E. Morin dois comentários para esclarecer sua
Até então, as ciências não conseguiam e H. Atlan tomaram consciência da pergunta. O primeiro provém da crí-
dar conta dos fenômenos imprevisí- importância da “mudança de olhar” tica epistemológica, que deveria ser
veis, de emergência aparentemente sobre os processos de dinâmica orga- própria de toda e qualquer atividade
endógena, que se observavam prin- nizacional por volta de 1968-1970, ao científica: um dos efeitos mais perver-
cipalmente nos sistemas vivos. O de- mesmo tempo em que era publicada sos da pregnância das ideologias posi-
terminismo implicado pela teoria da a obra de I. Prigogine10 intitulada In- tivistas há mais de um século tem sido
degenerescência neguentrópica dos trodução à termodinâmica11 dos pro- a ausência de reflexão epistemológica
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sistemas físicos tidos como fechados cessos irreversíveis. A insistência no livre do argumento do postulado dito
não permitia compreender a gênese caráter irreversível dos processos de da objetividade científica pura e rigo-
dessas emergências que eram, no en- evolução organizacional corroborava rosa, objetividade que seria garantida
tanto, tão comuns quanto um broto aquela que H. von Foerster convida- pela estrita aplicação de métodos de
nascendo de um galho. va a reconhecer para os processos de observação e de raciocínio indepen-
Propondo simbolicamente a al- dentes tanto do contexto como dos
ternativa order from disorder para a 10 Ilya Prigogine (1917-2003): cientista
observadores-descritores. Esses últi-
tese order from order, de E. Schrödin- de origem russa, que recebeu o Prêmio mos não teriam de criticar o valor e
ger9 (What is life, 1944), e a argumen- Nobel de Química em 1977. Na 62ª edição, a pertinência da “verdade científica”
de 2 de junho de 2003, IHU On-Line
tando tanto de maneira figurada como dedicou-lhe a editoria Memória e, dele,
que produzem, uma vez que usam
publicou o artigo A dimensão ”narrativa” métodos impessoais, cientificamente
do universo, na 64ª edição, em 16 de objetivos. Isso os autoriza a ignorar as
9 Erwin Rudolf Josef Alexander junho de 2003. (Nota da IHU On-Line)
Schrödinger (1887-1961): físico austríaco, �� Introduction to Thermodynamics of
perguntas banais que Piaget lembrou
um dos pais da teoria quântica. (Nota da Irreversible Processes (2ª ed. New York: em 1968 ao definir a epistemologia
IHU On-Line) Interscience, 1961). (Nota da IHU On-Line)

14 SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 402


como “o estudo da constituição dos
“A aventura do zido em português na obra Inteligên-

Tema de Capa
conhecimentos válidos”, perguntas cia da complexidade epistemológica e
que muitas vezes não são feitas: o que
é o conhecimento (gnoseologia)? Qual conhecimento sociedade (1999).

IHU On-Line – Sob que aspectos


é o critério de apreciação de seu valor
(ética)? Como o conhecimento é cons- humano podemos compreender o mundo atu-
tituído (metodologias)? Quem pode- al como globalmente complexo?
rá então reconsiderar e argumentar entrelaça-se Jean Louis Le Moigne – “Quan-
as críticas que poderiam ser feitas às to menor o grão da matéria, mais o
suas respostas a essas três perguntas constantemente descobrimos complexo”, escreveu Ba-
interdependentes? chelard. A complexidade está vincu-
A contribuição mais decisiva da com a aventura lada tanto ao global quanto ao local.
obra de Edgar Morin neste sentido foi Não devemos reduzi-la à globalidade.
o apelo permanente dirigido a todos das sociedades Na mecânica celeste, já se conside-
os cientistas para que nunca deixas- ra o problema da gravitação atrativa
sem de fazer essas perguntas e prati-
cassem esse trabalho epistemológico
humanas: todos de três corpos (três somente!) como
muito complexo, no sentido de po-
exigente. Fazendo isso, Morin esfor-
çou-se, junto de outros obviamente,
nós somos tencialmente imprevisível na prática
(extrema sensibilidade às condições
para documentar, argumentar e ilus-
trar essas questões. Basta relermos,
responsáveis iniciais).
“A complexidade não está a
por exemplo, Os sete saberes e nos
perguntarmos: será que me fiz seria-
por ela” priori na natureza das coisas, e sim
na mente dos homens”. Associamos
mente essas sete perguntas antes? ao conceito de complexidade a ima-
Ou então a reflexão de Bachelard em gem da imprevisibilidade possível dos
Le nouvel esprit scientifique, que nos comportamentos dos fenômenos que
convida a substituir a objetividade do consideramos, a partir do momen-
objeto pela projetividade (a intencio- essa empreitada que, na prática, não to em que nos propomos a prestar
nalidade explícita) do sujeito: “A me- visava senão a recuar um pouco as atenção nas interações internas e
ditação do objeto pelo sujeito sempre fronteiras do campo apreensível pelo externas que relacionam os fenôme-
toma a forma do projeto”. pensamento fechado, sem, contudo, nos com os contextos em que eles se
abri-las e principalmente sem aban- desenvolvem.
Paradigma perdido donar a primazia da modelização Então, para responder à sua per-
O segundo comentário diz res- matemática formal. Esses partidários, gunta, digo que é sob todos esses as-
peito à compreensão do paradigma ainda numerosos em 2012, preferem pectos que podemos entender o mun-
da complexidade. Se a ciência clássi- ignorar também a “existência de mo- do atual em e por sua complexidade.
ca ignorou ou rejeitou durante muito delos formais que, embora rigorosos, Cada vez que tentamos simplificá-lo
tempo a complexidade, isso ocorreu não se assemelham aos modelos sob a alegação da eficácia, acabamos
porque ela não conseguia abordá-la que usam a matemática tradicional” em catástrofes humanas e muitas
a partir do pensamento fechado que (de acordo com as palavras de H. Si- vezes planetárias. Reduzir a política
a epistemologia cartesiana impunha, mon, em 1967, que já citava muitos internacional à “luta do eixo do bem
tida como a garantia do postulado exemplos). contra o eixo do mal”, como quis fazer
de objetividade científica. Quando Para dar ênfase a essa restrição G. W. Bush para conduzir a guerra do
foi progressivamente restaurado nas sensível do alcance epistemológico e Iraque, é o trágico exemplo dos efei-
culturas científicas, a partir do Nou- metodológico do paradigma da com- tos perversos dessas simplificações
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vel esprit scientifique, de Bachelard plexidade que sua redução ao sim- mutiladoras.
(1934) e, posteriormente, a partir da ples estudo dos sistemas complexos
emergência das novas ciências em formalmente fechados implicaria, Ed- IHU On-Line – Em que consiste
1945-1950, o paradigma perdido (E. gard Morin propôs identificar essas uma epistemologia construtivista e
Morin, 1973) do pensamento aberto “ciências dos sistemas complexos” quais são suas relações com o para-
formulado e amplamente desenvol- formalizados ou programáveis sob a digma da complexidade?
vido e argumentado por Morin em O denominação de complexidade restri- Jean Louis Le Moigne – Define-se
método (que propôs então chamar de ta. Poder-se-ia então considerar que o a epistemologia como e pelo “estudo
pensamento complexo aquilo que se paradigma da complexidade geral in- da constituição dos conhecimentos
entendia antes por pensamento aber- tegra as contribuições metodológicas válidos” (Piaget, 1967). Isso implica a
to), os partidários da ciência clássica da complexidade restrita. Uma am- conjunção explícita de três grupos de
esforçaram-se para resgatar o con- pliação do modo de pensamento que hipóteses gerais e genéricas:
ceito de sistema complexo. Pode-se passa da formalização de programas
datar simbolicamente a partir da cria- automatizáveis à concepção de estra- • A hipótese gnoseológica versa
ção do Instituto de Santa Fé (1985) tégias autônomas (cf. seu artigo tradu- sobre a gênese, a forma e a natu-

EDIÇÃO 402 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 15


reza do conhecimento; ela pode (como o lema do positivismo se- Na verdade, nunca é demais
Tema de Capa
concernir: gundo Auguste Comte: ordem e assinalar que a teoria geral dos sis-
–– À essência atribuível às coisas ou progresso). Ou as opções éticas temas, segundo Bertalanffy, é uma
ao Númeno (a hipótese ontológi- podem ser consideradas como teoria holística formada certamente
ca, presumida independente do dependente da responsabilidade em reação às teorias reducionistas,
sujeito cognoscente que a des- dos atores envolvidos (quer as as quais comprometiam (e continu-
creve); ou à experiência gerada elaborem, quer se refiram a elas am comprometendo) a própria ideia
pela atividade de fenômenos (ou para agir), que se obrigam então a de uma organização transdisciplinar
processos percebidos ou conce- explicitar os critérios aos quais se da ciência. No entanto, a passagem
bidos pelo sujeito cognoscente – referem (como o lema tríplice da do reducionismo ao holismo man-
“knowing system”, como dirá H. República [francesa]: liberdade, tém o fechamento no todo (a soma
von Foerster). igualdade, fraternidade). Opção das partes), considerando as partes
–– À origem da determinação que é explicitamente aberta em como frações aritméticas do todo,
das relações internas e exter- seu contexto sociocultural. partes que, por sua vez, são defini-
nas que relacionam númenos das como objetos, e não como sis-
e fenômenos; ela pode ser de As epistemologias construtivistas temas (ou processos) sem dar maior
tipo causal ou determinante, privilegiam as abordagens de cons- atenção às interações permanentes
imposta pelas leis da nature- tituições dos conhecimentos válidos entre elas.
za, independente, portanto, pelo primado de que apresentam op-
do observador-descritor; ou de ções ditas “abertas”, como acabamos Questão epistemológica
tipo teleológico ou reflexivo, de apresentar. Desde a origem, o pen- O paradigma da complexidade,
dependente, portanto, do pon- samento aberto é a matriz do pensa- que se expressa aqui sob o modo pro-
to de vista do observador-des- mento complexo segundo as apresen- jetivo e reflexivo do paradigma da au-
critor, privilegiando as relações tações que faz deste Morin. Pode-se toecorreorganização ativa em contex-
endógenas de tipo “comporta- então considerar que o paradigma da tos que evoluem, permite desdobrar
mento-finalidade”, em detri- complexidade tem seus enraizamen- os conhecimentos entendidos como
mento das relações exógenas tos epistemológicos no terreno fértil processos e de forma transversal. A
de tipo causa-efeito. das epistemologias construtivistas. questão é novamente epistemológi-
• A hipótese metodológica versa so- Morin, que fala mais em paradigmato- ca: a passagem de uma concepção
bre os critérios atribuídos à razão logia do que em epistemologia – pro- dos conhecimentos-resultados, que
humana para deduzir ou inferir vavelmente, para fugir das querelas se acumulam sem se relacionarem,
conhecimentos a partir de conhe- bizantinas de vocabulário que os epis- a uma concepção dos conhecimen-
cimentos de que se dispõe ante- temólogos de profissão apreciam –, tos-processos, que se enraízam no
riormente: aqueles da racionali- defende às vezes uma epistemologia terreno fértil das experiências hu-
dade silogística, formal, fechada e construtivista. manas. Permitam-me concluir com
dedutiva (substantive rationality, duas citações que esclarecem minha
dirá H. Simon), estabelecida sobre IHU On-Line – Qual é o nexo que exposição.
os três axiomas da dedução “per- une a transdisciplinaridade à comple- “Considera-se cada vez mais atu-
feita” de Aristóteles; ou aqueles xidade proposta por Morin e à teoria almente o conhecimento mais como
da racionalidade tópico-crítica, geral dos sistemas, de Bertalanffy? um processo do que como um estado”
funcional e aberta (procedural Jean Louis Le Moigne – Já no (Piaget, Psicologia e epistemologia
rationality, dirá H. Simon), esta- primeiro capítulo do Tomo 1 de O [...], 1970).
belecida com base nos princípios método (1977), Edgar Morin assinala: “Todo conhecimento adquirido
dialógico, recursivo, transdutivo e “Embora comporte aspectos radical- sobre o conhecimento torna-se um
de irreversibilidade. mente inovadores, a teoria geral dos meio de conhecimento que esclarece o
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• As opções éticas (pelas quais são sistemas nunca tentou a teoria geral conhecimento que permitiu adquiri-lo.
valorizados os conhecimentos do sistema; ela esqueceu de preparar Podemos então acrescentar uma via
produzidos) que podem ser tidas seu próprio alicerce, de refletir sobre de retorno ao sentido único episte-
como consubstanciais à escolha o conceito de sistema. Por isso o tra- mologia-ciência e efetuar passagens
do método, que, sendo postula- balho preliminar do sistema ainda está de um nível de conhecimento ao ou-
do perfeito, deve incorporar uma por ser feito, interrogar a ideia de sis- tro e vice-versa. Podemos, ao mesmo
opção ética subjacente, uma úni- tema”. Por isso – acrescenta Morin – é tempo, conceber um desenvolvimen-
ca, sendo, portanto, fechado. É preciso “abrir a problemática sistêmi- to transformador em que o conheci-
o caso da opção cientificista: o ca” (Morin, La Méthode, t. 1, 1977, p. mento elaborador tente conhecer-se a
conhecimento tido como cienti- 101). “Oponho à ideia de teoria geral partir do conhecimento que ele mes-
ficamente verdadeiro será tido ou específica dos sistemas a ideia de mo elabora e que torna assim colabo-
como o único moralmente bom, um paradigma sistêmico (irredutível à rador” (Morim, La connaissance de la
quaisquer que sejam as preferên- visão muito simplificadora do Todo, do connaissance, 1986).
cias pessoais dos observadores holismo)” (ibid, cap. II-6).

16 SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 402


Tema de Capa
Um pensamento que não
recebe ordens
Compartimentalização da Física em áreas que “não se comunicam” é uma realidade,
contudo é imprescindível realizar “encontros entre os saberes”, adverte Mario
Novello. “No sistema capitalista de configuração global, a ciência se constrói a
reboque da tecnologia”

Por Márcia Junges

“P
roduzir instabilidade no sistema Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pela Uni-
de conhecimento: essa é a fun- versidade de Brasília (UnB), mestre em Física
ção fundamental do cientista. A pelo CBPF e doutor na mesma área pela Uni-
solução é uma questão da técnica, o que não versité de Genève (Suíça), com a tese Algebre
significa que ela seja menor. É somente dife- de l’espace-temps, pós-doutor pela University
rente. Não se trata de opor ciência e tecnolo- of Oxford (Inglaterra) e doutor honoris causa
gia, mas sim exibir o diferente status que elas pela Universidade de Lyon (França). Conquis-
possuem na sociedade e nos diversos meios de tou prêmios internacionais, destacando-se a
comunicação e governamental na sua orga- Menção Honrosa por Teses em Cosmologia e
nização como principal financiadora dessas Teoria da Gravitação, concedida pela Gravity
atividades”. A ponderação é do físico Mario Research Foundation (USA). É autor de mais
Novello, na entrevista concedida por e-mail de 150 artigos e de inúmeros livros, dos quais
à IHU On-Line. Ele destaca que uma das maio- destacamos: Cosmos e Contexto (Rio de Ja-
res revoluções da Física do século XXI “foi a neiro: Forense Universitária, 1989), O Círculo
abertura do pensamento para o não-linear, isto do Tempo: Um olhar científico sobre viagens
é, a utilização de métodos e processos não- não-convencionais no tempo (Rio de Janeiro:
-lineares na descrição de vários fenômenos”. Campus, 1997), Os jogos da natureza (Rio de
Sobre o pensamento de Edgar Morin, o cien- Janeiro: Campus, 2004), Máquina do tempo
tista aponta suas origens multifacetadas, cuja – Um Olhar Científico (Rio de Janeiro: Jorge
consequência natural é não receber ordens, Zahar, 2005) e Do Big Bang ao universo eterno
mas investigar “incessantemente, produzindo (Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2010). Foi
o mais das vezes, a crítica de sua atividade”. o responsável pela condução da oficina A re-
Novello é professor do Centro Brasileiro latividade, a física das partículas e as origens
de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro, do Universo, ministrada em 17-05-2006 no www.ihu.unisinos.br
onde é coordenador do Laboratório de Cos- Simpósio Internacional Terra Habitável: um
mologia e Física Experimental de Altas Ener- desafio para a humanidade.
gias. É graduado em Física pela Universidade Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a impor- Mario Novello – Talvez devêsse- compartimentou, dividiu-se em várias
tância do diálogo entre os saberes, mos fazer aqui uma distinção para que áreas que, no mais das vezes, não se
chamada de transdisciplinaridade? fique claro por onde iremos penetrar comunicam. Enquanto no começo do
Quais são os temas que têm sido nessa nossa conversa. Creio que não século XX nas famosas Conferências
tratados transdisciplinarmente pela deveríamos considerar a Física como Solvay, podíamos identificar um grupo
Física e o que esse tipo de aborda- um corpo só, único e monolítico. A de cientistas que representavam todo
gem trouxe em termos de avanço do Física (assim como o modo conven- o conhecimento daquela época reu-
conhecimento? cional de organizar os saberes) se nidos em um grande anfiteatro, hoje

EDIÇÃO 402 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 17


isso não é de forma alguma possível.
“A Física (assim ções que podem ser controladas em
Tema de Capa
Qualquer sub-área da Física produz laboratório.
reuniões científicas que se estendem Note que não se trata de uma
por vários dias e envolvem centenas como o modo analogia. Trata-se realmente de utili-
de participantes. zação de métodos formais adquiridos
Como consequência, embora cla- convencional em um território e um dicionário ca-
ro está, existam aspectos em comum paz de transportá-lo para outro. Ou
e algumas Leis fundamentais que são
gerais, a linguagem de cada uma des-
de organizar seja, mais do que nunca, somos le-
vados a desenvolver esses encontros
sas sub-seções que os físicos organi-
zam, é típica, singular e seu “dialeto”
os saberes) se entre saberes transportando práticas
e modos de uns para outros que estão
dificilmente utilizado por todos. Isso
se refere desde aspectos observacio- compartimentou, fora de suas rotinas.

nais até aspectos matemáticos que IHU On-Line – Nessa perspec-


– exceto (repito) por algumas estrutu- dividiu-se em tiva, como o estudo dos fractais,
ras fundamentais em comum – se dis- como aquele empreendido por Man-
tinguem de tal forma que se tornam várias áreas que, delbrot1, ajuda a compreendermos
(quase) incompreensível para outras fenômenos da natureza e sistemas
áreas. no mais das complexos? Quais são os grandes
problemas ainda não resolvidos pela
Compartimentação do saber
O que estou querendo dizer pode vezes, não se Física e que podem avançar a partir
da perspectiva transdisciplinar e da
parecer dramático, mas é realista: a
necessidade da transdisciplinaridade comunicam” complexidade, como proposto por
Edgar Morin?
aparece mesmo no interior de uma Mario Novello – Uma das maio-
ciência como a Física. Como isso não res revoluções da Física do século XX
deve ser exclusivo dessa ciência, deve- gravitacional que é capaz de atrair ine- foi a abertura do pensamento para o
mos então nos preparar para repensar xoravelmente tudo que está à sua vol- não-linear, isto é, a utilização de méto-
onde estamos indo nessa comparti- ta. Isso envolve uma complicada análi- dos e processos não-lineares na des-
mentação do saber para evitar (ou se que a partir da descrição da Teoria crição de vários fenômenos. Isso foi
pelo menos aliviar essa especialização da Relatividade geral foi empreendida. possível graças a uma série de desco-
atomizada) que cada área, cada disci- Assim, seria estranho e quase bertas, mas talvez se tivéssemos que
plina, cada grupo de pesquisa ou até incompreensível imaginar que um tal escolher um nome para simbolizar
mesmo no limite idealizado, cada in- Buraco Negro poderia ser construí- esse movimento eu citaria o grande
dividuo, possua seu próprio discurso, do sem a ação da força gravitacional. matemático francês Henri Poincaré2.
como se houvesse uma necessidade Entretanto, foi o que alguns cientistas
implícita a cada um levando a limitar propuseram com sucesso. Estamos
seu conhecimento a um território to- desenvolvendo o que chamaríamos 1 Benoît B. Mandelbrot (1924-2010):
pologicamente isolado dos demais. matemático francês de origem judaico-
de Buraco Negro não-gravitacional, polonesa, conhecido pela teoria dos
Isso dito, como preâmbulo, podemos produzido por outros mecanismos em fractais. Sobre seu legado, confira a
então procurar entender a questão ação.
entrevista realizada pela revista IHU On-
Line 349, de 01-11-2010, com o físico
que me foi colocada. O que está por trás disso? Nada Paulo Mors, intitulada O Universo e seus
mais do que a utilização de uma práti- fractais: a contribuição de Mandelbrot,
Encontros de saberes ca típica de uma área (gravitação) em
disponível em http://bit.ly/bmt6X3.
(Nota da IHU On-Line)
www.ihu.unisinos.br

Como exemplo da situação aci- outra (eletromagnetismo, no caso em 2 Jules Henri Poincaré (1854-1912):
ma, vamos tratar daquilo que é conhe- questão). Para isso foi necessário rea- matemático, físico e astrônomo francês,
importante figura no campo da mecânica
cido pelos especialistas, como “Buraco lizar uma transposição de saberes ou celeste. Estudioso da matemática pura
Negro não-gravitacional”. Explico-me. uma ponte formal capaz de permitir a e aplicada, empregando os recursos
Creio não ser exagero afirmar que a da análise ao estudo das equações
exibição de um conhecimento escon- diferenciais, foi o criador de uma das mais
noção de Buraco Negro foi populari- dido em um território no qual, sem importantes contribuições à matemática:
zada por diversos meios de comuni- a ponte, se tornaria incomunicável. as propriedades das funções automorfas
cação, desde revistas especializadas (1880), uma generalização das funções
Transportar para a ciência chamada elípticas. Participou ativamente da
em divulgação até jornais cotidianos e Eletromagnetismo algumas caracte- polêmica sobre a crise dos fundamentos
entrevistas e programas de televisão. rísticas de métodos usados em outra da matemática, surgida logo após a
formulação da teoria dos conjuntos de
Sabemos assim que um Buraco Negro ciência como a Gravitação resultou Georg Cantor (1845-1918), e afirmou a
é um estado especial da matéria (asso- nessa produção fantástica de aproxi- impossibilidade de reduzir a matemática
ciado possivelmente ao resultado do mar propriedades incapazes de serem à lógica, assim como a necessidade de um
princípio não-formal para fundamentar a
colapso de uma estrela) de processo diretamente observadas por situa- matemática. (Nota da IHU On-Line)

18 SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 402


Foi ele que iniciou de modo sistemá-
“Mais do que região onde a previsibilidade deixa de

Tema de Capa
tico o estudo daquilo que chamamos ser uma característica do sistema.
hoje de sistemas dinâmicos, uma série
de equações de natureza não-linear
nunca, somos O Universo e a complexidade
capazes de representar diferentes
processos da natureza. Embora seu
levados a Ao examinarmos algumas parti-
cularidades das equações de Einstein4
estudo tenha se iniciado na Mecânica
de Fluidos, onde o aspecto não-linear
desenvolver da Relatividade Geral, mostrou-se que
sob certas condições o Universo admi-
é dominante, cedo seu método de
investigação se espalhou para outras
esses encontros te a presença de uma bifurcação. Isto
é, o sistema de equações que descre-
áreas da Física e, em seguida, adquiriu
universalidade de aplicação como na
entre saberes ve o Universo neste cenário admite a
descrição em termos de um sistema
Química e até mesmo na descrição de
processos envolvendo estruturas tão
transportando dinâmico que possui bifurcação. Isso
significa que no modelo de Universo
amplas como fenômenos humanos
de várias espécies. A lista é enorme.
práticas e modos controlado por aquelas equações a
descrição desse Cosmos é imprevisí-
Filósofos como Gilles Deleuze3, quími-
cos como Ilya Prigogine, engenheiros,
de uns para outros vel. Creio que todos nós estaríamos
de acordo em afirmar que uma tal
psicólogos, e uma extensa série de
pensadores tem usado esses métodos
que estão fora de propriedade possui consequências
extraordinárias e certamente conduz
que não são mais do território exclu-
sivo da matemática mas servem para
suas rotinas” a uma visão do Universo distinta da
convencional.
diferentes análises, estendendo cada O notável é que esse processo
vez mais o alcance de sua aplicação. que descrevemos usando uma situa-
ção particular em nosso conhecimen-
Bifurcação e sistema to da Cosmologia pode ocorrer em ou-
pensar a descrição de outros sistemas
Somente para citar uma proprie- tras áreas. A utilização desses sistemas
envolvendo, por exemplo, processos
dade notável dessa análise eu gostaria ditos complexos, envolvendo sua des-
químicos relacionados à rapidez da
de me referir a um dos fenômenos crição por meio de funções não-linea-
reação entre diferentes substâncias,
mais interessantes que é o da bifurca- res transbordou para outros modos de
processos psicológicos ou até mes-
ção. Talvez o território que vou esco- investigar processos na natureza não-
mo uma questão de tráfego em uma
lher para exemplificar esse processo -orgânica e orgânica tornando-se um
cidade.
seja o menos esperado: a Cosmologia. poderoso método de análise desses
Pois bem, uma bifurcação nesse
Vejamos. sistemas complexos.
sistema bi-dimensional registra a exis-
A análise de processos de bifur-
tência de uma região do sistema onde
cação provém do estudo de sistemas IHU On-Line – Em entrevista que
a previsibilidade deixa de ser parte
dinâmicos descritos em uma superfí- o senhor nos concedeu em 2010, afir-
formal de sua análise. Dito de outro
cie bi-dimensional. Esse é o caso mais
modo, uma curva nessa superfície bi-
simples que posso pensar agora. As-
-dimensional caracteriza a evolução 4 Albert Einstein (1879-1955): físico
sim, o sistema em questão se carac- alemão naturalizado americano.
de um processo. Cada ponto dessa
teriza somente por duas variáveis. A Premiado com o Nobel de Física em
curva pode servir como ponto de par- 1921, é famoso por ser autor das teorias
evolução do sistema é dada por uma especial e geral da relatividade e por
tida para uma determinação futura, ou
curva nessa superfície. Se necessário, suas ideias sobre a natureza corpuscular
seja, a caracterização da evolução está
podemos imaginar que as duas variá- da luz. É, provavelmente, o físico mais
inscrita nessa curva. Diferentes curvas conhecido do século XX. Sobre ele,
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veis em questão são, por exemplo, a confira a edição nº 135 da revista IHU
são diferentes histórias com condi-
posição e a velocidade de um corpo On-Line, sob o título Einstein. 100 anos
ções iniciais distintas e, consequente- depois do Annus Mirabilis, disponível em
material; mas essa especificação não é
mente, evolução distinta. Entretanto, http://migre.me/16Mto. A TV Unisinos
necessária, pois podemos igualmente produziu, a pedido do IHU, um vídeo de
dentro de cada curva podemos utilizar
15 minutos em função do Simpósio Terra
a noção associada ao determinismo Habitável, ocorrido de 16 a 19-05-2005,
3 Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo desse processo, ou seja, o conheci- em homenagem ao cientista alemão, do
francês. Assim como Foucault, foi um mento completo futuro de uma traje- qual o professor Carlos Alberto dos Santos
dos estudiosos de Kant, mas tem em participou, concedendo uma entrevista.
Bérgson, Nietzsche e Espinosa, poderosas tória se faz a partir do conhecimento Leia, ainda, a edição 130 da IHU On-Line,
interseções. Professor da Universidade de inicial dessa curva. Exceto se o sistema de 28-02-2005, intitulada Einstein: 100
Paris VIII, Vincennes, Deleuze atualizou anos depois do Annus Mirabilis. João Paulo
ideias como as de devir, acontecimentos,
é tal que em um dado ponto da super- II. Balanço e perspectivas, disponível em
singularidades, conceitos que nos fície um ponto de bifurcação ocorre. A http://migre.me/16Mur e a edição 141,
impelem a transformar a nós mesmos, partir desse ponto a trajetória do ca- de 16-05-2005, chamada Terra habitável:
incitando-nos a produzir espaços de um desafio para a humanidade, disponível
criação e de produção de acontecimentos- minho para além desse ponto deixa de em http://migre.me/16MuZ. (Nota da
outros. (Nota da IHU On-Line) ser previsível: o sistema entra em uma IHU On-Line)

EDIÇÃO 402 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 19


mou que compartimentar os saberes financiadora dessas atividades. Ou Ele está, assim, dando seu teste-
Tema de Capa
se configura numa “prática de domi- seja, parece que estamos entrando munho de um pensamento de origens
nação política”. Em que medida avan- em uma ordem econômica e social na multifacetado que, consequência na-
ça a técnica e regride o saber a partir qual o desenvolvimento brasileiro exi- tural, não recebe ordens. Mas inves-
dessa concepção fragmentária? ge o aparecimento de um contingente tiga, o tempo todo, incessantemente,
Mario Novello – Em um dos pri- grande de técnicos e cada vez menos produzindo o mais das vezes, a crítica
meiros números da revista eletrônica de cientistas. de sua atividade. Essa estrada que o
Cosmos e Contexto (www.cosmose- Se você conversar com os dirigen- humanista constrói – seja ele um cien-
contexto.org.br) em um artigo do tes, a maioria deles ainda se resguarda tista ou um pensador de qualquer área
pensador espanhol Ortega y Gasset5 de explicitar qualquer forma de dico- – não pode terminar, não pode ter fim.
ele comenta de uma forma brilhan- tomia a nível institucional, e argumen- Seguir em frente é sua finalidade. E ela
te e agradável o mal que a especiali- tam que o conhecimento deve ser não não se mede por resultados concre-
zação produz sobre as atividades do enciclopédico, mas prático. Leia-se: tos, mas sim trata de um outro lugar.
saber. Todos nós reconhecemos que primado da técnica. Se essa premissa Que lugar é esse que o filósofo está
no sistema capitalista de configura- for verdadeira, então entendemos que apontando?
ção global, a ciência se constrói a re- a fragmentação a que estamos referin-
boque da tecnologia. Parece que a do é uma consequência intrínseca de
sociedade moderna está derrubando uma diretriz do Estado em detrimen- Leia mais...
todo vestígio de encantamento que a to do conhecimento que não possua
descoberta científica pode conceder uma forte componente técnica. Confira outras entrevistas concedida
reduzindo a atividade do cientista a por Mario Novello à IHU On-Line.
uma busca pela técnica, ou como se IHU On-Line – Gostaria de
diz ultimamente, pela inovação. Não acrescentar algum aspecto não • A cosmologia está mudando a for-
é sem consequência que os órgãos de questionado? ma humana de pensar. Edição 142
financiamento da pesquisa fundamen- Mario Novello – Sim. Em seu belo da Revista IHU On-Line, de 23-05-
tal, como o CNPq e o Ministério da livro Mes philosophes (Meaux: Germi-
Ciência e Tecnologia – MCT em geral, na, 2011), Edgar Morin termina sua in- 2005, disponível em http://migre.
estejam mais do que nunca utilizando trodução argumentando que ele havia me/15Ew3
o termo “pesquisador” ao que antes escapado à ditadura do pensamento
• Nobel da Física 2006 auxilia a com-
se conhecia pelo termo “cientista”. convencional dominante, e em parti-
Essa mudança de terminologia não é cular àquilo que estamos chamando preender a formação do Universo.
ocasional nem sem consequências. Ela de “especialização”, através de uma Entrevista especial com Mario No-
traz em si a ideia de que o pesquisador vertente autodidata e em particular
vello, publicada nas Notícias do Dia
se lança em uma busca para resolver graças à multiplicidade de suas fon-
um problema conhecido. Ou seja, te- tes que ele admite ser de diferentes 11-10-2006, disponível em http://
mos a priori um problema. Resta en- e variadas orientações, chamando de migre.me/15EyB
tão encontrar sua solução. “maîtres” por exemplo Heráclito6, Lao-
• José Leite Lopes: um físico que não
A orientação do cientista é distin- -Tsé, Breton, Bataille7, Von Foerster ,
ta. Ele procura produzir um problema, Spinoza8, Heidegger e outros. aceitava trivializar o conhecimento.
mesmo ali onde o conhecimento pare- Uma entrevista especial com o pro-
ce ser estável e seguro. Produzir insta- 6 Heráclito de Éfeso (540 a. C. – 470
bilidade no sistema de conhecimento: a.C.): filósofo pré-socrático, considerado fessor Mario Novello, publicada nas
o pai da dialética. Problematiza a questão
essa é a função fundamental do cien- do devir (mudança). Recebeu a alcunha Notícias do Dia 15-06-2006, dispo-
tista. A solução é uma questão da téc- de “Obscuro” principalmente em razão da
nível em http://migre.me/15Ezu
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obra a ele atribuída por Diógenes Laércio,


nica, o que não significa que ela seja Sobre a Natureza, em estilo obscuro,
menor. É somente diferente. Não se próximo ao das sentenças oraculares. Na
• “O Universo estava condenado a
trata de opor ciência e tecnologia, mas vulgata filosófica, Heráclito é o pensador existir’’. Edição 340 da revista IHU
do “tudo flui” (panta rei) e do fogo, que
sim exibir o diferente status que elas seria o elemento do qual deriva tudo On-Line, de 23-08-2010, disponível
possuem na sociedade e nos diversos o que nos circunda. De seus escritos
meios de comunicação e governamen- restaram poucos fragmentos (encontrados em http://bit.ly/QClKdB
em obras posteriores), os quais geraram
tal na sua organização como principal grande número de obras explicativas.
(Nota da IHU On-Line) holandês. Sua filosofia é considerada
7 Georges Bataille (1897-1962): uma resposta ao dualismo da filosofia
5 José Ortega y Gasset (1883-1955): escritor, antropólogo e filósofo francês. de Descartes. Foi considerado um dos
filósofo espanhol, que atuou também O erotismo, a transgressão e o sagrado grandes racionalistas do século XVII
como ativista político e jornalista. Sobre são temas abordados em seus escritos. dentro da Filosofia Moderna, e o fundador
o autor, confira a entrevista concedida Sua correspondência foi publicada em do criticismo bíblico moderno. Confira a
por José Maurício de Carvalho, Pampa. 1997 pela Gallimard sob o título Choix de edição 398 da revista IHU On-Line, de
Um espaço humano de promessas e lettres 1917-1962. Grande parte de sua 06-08-2012, intitulada Baruch Spinoza.
realizações, concedida à IHU On-Line nº obra não foi traduzida para o português. Um convite à alegria do pensamento,
190, de 07-08-2006, disponível em http:// (Nota da IHU On-Line) disponível em http://bit.ly/ITqFx. (Nota
migre.me/16MA9. (Nota da IHU On-Line) 8 Baruch de Spinoza (1632–1677): filósofo da IHU On-Line)

20 SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 402


Tema de Capa
Morin e a compreensão do
Direito como um sistema
Na visão de Angelita Maders, o pensamento aberto à transdisciplinaridade e o
pensamento complexo auxiliam a compreensão do sujeito e o diálogo com outros
saberes para encontrar uma solução, mesmo que provisória, aos problemas da
humanidade

Por Márcia Junges e Graziela Wolfart

A
partir do pensamento de Edgar Morin, mas para isso ele necessita dialogar com as
a professora Angelita Maders defende, outras áreas do conhecimento”.
na entrevista que concedeu por e-mail Angelita Maria Maders é graduada em Ci-
à IHU On-Line, que todas as ciências “devem ências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de
estudar e compreender a desordem, reconhe- Direito de Santo Ângelo-RS, mestre em De-
cer que são falíveis e que não são detentoras senvolvimento, Gestão e Cidadania pela Uni-
da verdade. Devem ser complexas, críticas e versidade Regional do Noroeste do Estado do
autorreflexivas para viabilizar a emancipação Rio Grande do Sul e doutora em Direito pela
dos seres humanos, e não a sua sujeição, por- Osnabück Universität, Alemanha. É professo-
que é inseparável de seu contexto histórico e ra da Universidade Regional do Noroeste do
social. Sua realidade deve ser multidimensio- Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí e da Uni-
nal, sob pena de ser automatizada e esteriliza- versidade Regional Integrada do Alto Uruguai
da”. Para Angelita, que é doutora em Direito e e das Missões – URI Santo Ângelo e Defensora
defensora pública estadual, “compreender o Pública do Estado do Rio Grande do Sul.
complexo humano auxilia o Direito na busca Confira a entrevista.
de solução aos conflitos também complexos,

IHU On-Line – Qual é a pertinên- complexo, que não admite reducio- mentados, constitui um grande erro,
cia da crítica de Morin à objetividade nismo ou determinismo. Morin rein- porque ele é disjuntivo e não con-
das ciências, pensando no Direito em troduziu a incerteza no pensamento segue estabelecer a relação entre,
específico? de diferentes níveis de reflexão trans- por exemplo, sociedade e indivíduo,
Angelita Maders – É importan- disciplinar e com seus textos e suas como se um excluísse o outro. Por
te, primeiramente, contextualizar as reflexões, ele consegue abalar nossas isso a crítica do autor é pertinente, já
respostas a serem dadas às questões verdades. A objetividade das ciências que os cientistas e os juristas devem
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propostas descrevendo, mesmo que é por ele criticada em razão de sua não somente conhecer por conhecer,
brevemente, o autor em cuja teoria tendência ao reducionismo, que faz mas também entender a ética do co-
elas são fundadas. Edgar Morin é com que o conhecimento dela pro- nhecimento e a ética da responsabi-
francês. N�����������������������
asceu em 1921 e formou- veniente não seja pertinente, já que lidade, que devem guiar o seu cami-
-se em Direito, História e Geografia. não compreende o todo, o conteúdo nhar. Todas as ciências, então, devem
É sociólogo por título e filósofo, an- multidimensional das unidades com- estudar e compreender a desordem,
tropólogo, historiador por formação, plexas. Para Morin, tudo que é huma- reconhecer que são falíveis e que não
além de um grande pensador dos no deve ser compreendido a partir são detentoras da verdade. Devem
problemas do ser humano no mundo de um jogo complexo, pois para co- ser complexas, críticas e autorreflexi-
contemporâneo. Sua obra trabalha nhecer melhor as partes deve-se co- vas para viabilizar a emancipação dos
de forma transdisciplinar as ciências nhecer o todo e vice-versa, como em seres humanos, e não a sua sujeição,
humanas com as ciências físico-bio- um movimento circular ininterrupto. porque é inseparável de seu contexto
lógicas, sem separar o objeto do co- O mesmo deve ocorrer com o Direi- histórico e social. Sua realidade deve
nhecimento com a própria vida. Ele é to, pois o pensamento redutor, com ser multidimensional, sob pena de
pioneiro e introdutor do pensamento ênfase em elementos isolados, frag- ser automatizada e esterilizada.

EDIÇÃO 402 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 21


IHU On-Line – Em que medida a jurista não pode limitar-se a ser um ta para a necessidade de um convívio
Tema de Capa
transdisciplinaridade e o pensamento positivista. Ele tem necessidade de maior do Direito com as demais áreas
complexo podem auxiliar o Direito a conhecer um pouco de cada ciência do conhecimento. Nesse sentido, de-
dialogar mais com os outros saberes? e, mais, de humanidade. O Direito ve-se recordar que o Direito faz parte
Angelita Maders – Segundo deve compreender que precisa re- do sistema social e sua função cinge-
Morin, os complexos da inter e mul- ligar os conhecimentos e recusar a -se a reduzir a complexidade desestru-
titransdisciplinaridade realizam e cisão entre as ciências e as humani- turada para fazer com que ela alcan-
desempenham um fecundo papel dades; deve conhecer o humano e o ce uma complexidade mais elevada e
nas ciências, pois correspondem à complexo tecido real, pois todo ser estruturada. Então, já se concluiu que
cooperação, à integração ao objeto e carrega em si multiplicidades internas ele deve ser um sistema aberto, em
ao projeto comuns, às suas relações, que geram conflitos. A influência da constante diálogo não somente com
inter-relações, implicações mútuas, transdisciplinaridade e do pensamen- outras ciências, mas também com a
fenômenos multidimensionais, re- to complexo auxiliam dando mais hu- complexidade, porque, na atualidade,
alidades que são simultaneamente manismo ao positivismo jurídico e, não se tem mais como se estender ao
solidárias e conflitivas (a exemplo da aos juristas, mais humanidade, pois comportamento humano o raciona-
democracia), que respeitem a diver- os problemas jurídicos são cada vez lismo, o positivismo científico, como
sidade e a unidade. Compreender o mais multidimensionais. Essa inter e pretendia Kelsen1, porque o ser é com-
complexo humano auxilia o Direito multidisciplinaridade entre o Direito plexo. O problema está em como per-
na busca de solução aos conflitos e as outras áreas do conhecimento é fectibilizar essa ideia na prática fren-
também complexos, mas, para isso, importante, na medida em que não te ao positivismo, que não enxerga a
ele necessita dialogar com as outras se pode negar que há um conflito realidade como um todo. O avanço é
áreas do conhecimento. Embora Mo- entre o imperativo do conhecimen- percebido na luta de uma parcela dos
rin tenha sido criticado por ter pauta- to e os imperativos éticos. Os juízes, profissionais do Direito que passaram
do seus estudos na inter, na poli, na por exemplo, devem estar cientes da a entender que os processos carregam
transdisciplinaridade, sua crítica ao arbitrariedade de suas decisões, da em si não somente procedimentos e
paradigma científico contemporâneo provisoriedade e da incerteza que fórmulas metodológicas, mas também
tem sido progressivamente reconhe- elas carregam, bem como que elas dinâmicas e tramas sociais que são re-
cida mundo afora e em diferentes servem como uma aposta quanto à ais e não conseguem ser compreendi-
áreas do conhecimento, inclusive no verdade. Por tudo isso é que se exi- das pela norma abstrata e nas decisões
Direito. Assim sendo, o pensamen- ge do julgador um conhecimento que recentes do Supremo Tribunal Federal,
to aberto à transdisciplinaridade e extravase o saber jurídico: o conheci- que estão considerando a complexida-
o pensamento complexo auxiliam a mento da realidade social onde aplica de, a multidimensionalidade ao nor-
compreensão do sujeito e o diálogo a lei, assim como um conhecimento matizar expectativas complexas de
com outros saberes para encontrar mais aprofundado da complexidade diferentes setores sociais que ainda se
uma solução, mesmo que provisória, das relações que ensejaram a de- encontram à margem.
aos problemas da humanidade. Para manda judicial que lhe cabe julgar, Todavia, considerando que o
manter sua vitalidade, o Direito não porque ele não poderá retirar-lhes a fenômeno social é complexo, faz-se
pode ser fechado, mas deve manter complexidade, simplificá-las e, se o necessário avançar mais, pois à cul-
um amplo relacionamento disciplinar, fizer, estará eliminando seu contex- tura jurídica, à letra fria da lei, deve
uma hibridização, já que o ser e a so- to, sua singularidade, sua localidade, ser agregada uma cultura humanista,
ciedade implicam ordem/desordem, sua temporalidade e, por sua vez, o num elo de consciência e responsa-
interação/reorganização (que é o te- conhecimento do todo, o que pode bilidade com os problemas gerais e
tragrama organizacional que repre- ensejar decisões injustas por total globais. Para isso o Direito precisa
senta a teoria da complexidade, que desvinculação com a realidade fática servir-se dos conhecimentos da filo-
faz parte da vida). Se o Direito serve das partes envolvidas. sofia, da antropologia, da medicina,
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o ser humano, e este deve respeito a da biologia, da sociologia, economia,


ele, o Direito também deve compre- IHU On-Line – Quais seriam os psicologia, enfim, das mais variadas
ender que o ser humano não é so- maiores avanços que surgiriam no Di- áreas do conhecimento, pois todas
mente físico e biológico, mas também reito a partir desse diálogo? elas lhe dizem respeito e se interligam,
cultural e espiritual. A fragmentação Angelita Maders – Um avanço de uma ou de outra forma. Afinal, pa-
do estudo jurídico não pode criar que pode ser apontado é o reconhe- rafraseando Morin, também a cultura
especialistas reclusos em um emara- cimento da insuficiência do Direito do jurista precisa ser multidimensio-
nhado de saberes abstratos que não frente à crise da humanidade e dos nal, para que possa desenvolver uma
consegue conviver com a cultura hu- problemas humanos cada vez mais policompetência para articular a sua
manística. A teoria jurídica formalis- complexos que reclamam por uma so- competência a outras competências,
ta, instrumental e individualista ne- lução. Entendo isso como um avanço, que, ligadas em cadeia, formariam um
cessita de mudanças e a construção porque essa é a única certeza que se
de novos paradigmas, direcionados extrai dos diferentes estudos acerca 1 Hans Kelsen (1881-1973): jurista
para uma perspectiva pluralista, flexí- dos problemas que afetam o sistema e filósofo austríaco, um dos mais
importantes e influentes do século XX.
vel e interdisciplinar. Nesse sentido, o jurídico e também porque é um aler- (Nota da IHU On-Line)

22 SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 402


círculo completo e dinâmico, o anel do reito no Brasil é a crescente demanda lidade, da solidariedade e da compre-

Tema de Capa
conhecimento do conhecimento, pois, da inter, multi e transdisciplinaridade; ensão também é um grande desafio.
por meio de sua atuação, pode exer- o grande desafio é como capacitar os
cer um papel na transformação social. juristas para a solução de conflitos de IHU On-Line – Como o pensa-
tamanha complexidade. mento de Niklas Luhmann e Morin
IHU On-Line – Quais são os prin- se entrecruzam e contribuem para
cipais limites do Direito, hoje, pen- IHU On-Line – Quais são os gran- a construção de um sistema jurídico
sando em termos de transdisciplina- des temas de fronteira em nosso tem- mais dinâmico e mais adequado à hi-
ridade? Por que é tão difícil o debate po nos quais o Direito tem dificuldade percomplexidade da sociedade atual?
com outras ciências? em avançar devido à falta de concep- Angelita Maders – Os caminhos
Angelita Maders – Os instrumen- ções que consideram outras áreas do trilhados por Edgar Morin, de alguma
tos jurídicos existentes, por si só, são conhecimento? ou outra forma, entrecruzam-se com
incapazes de dar respostas e soluções Angelita Maders – Talvez se- os trilhados por Niklas Luhmann2, na
para o encaixe das diferentes e novas jam muitos os temas de fronteira em medida em que este autor, já na déca-
peças que constituem o mosaico de nosso tempo nos quais o Direito tem da de 1970, percebia a complexidade
problemas da sociedade. Uma das dificuldade em avançar devido ao emergente no mundo e voltou seus
barreiras enfrentadas pelo Direito é seu excessivo dogmatismo, como é estudos para a teoria sistêmica apli-
oriunda do ainda vigente pensamento o caso dos problemas fundamentais, cada às ciências sociais. Ele teorizou a
cartesiano e positivista, que precisa a exemplo da pobreza, da efetivação sociedade como um sistema autopoié-
ser abolido para que se possa efetiva- dos direitos sociais e, em especial, da tico, onde o Direito é um sistema aber-
mente falar em religação dos saberes proteção à diversidade cultural e ao to cognitivamente e dinâmico, mas
de diferentes áreas para a solução dos conhecimento tradicional. Além disso, fechado operacionalmente, que tem
conflitos judiciais. Existe uma necessi- as realizações da tecnologia moderna sua própria linguagem e que se autor-
dade premente de conciliar métodos, estão a exigir a reorientação das ciên- reproduz, independentemente do que
conceitos e disciplinas que são isola- cias, inclusive a jurídica, que deve se se passa no sistema político ou nos
dos na ciência jurídica, de modo a fazê- adaptar aos novos tempos para civili- demais sistemas. As contribuições de
-los convergir para um sistema jurídico zar suas teorias e fazê-las autocríticas Luhmann precedem as contribuições
condizente com a realidade. Isso será e aptas a se autorreformar, estabele- de Morin, mas, as primeiras proposi-
possível se ocorrer uma integração cendo um consenso para respeitar as ções de uma Teoria Geral dos Sistemas
de abordagens qualitativas e quanti- liberdades e também as regras demo- iniciaram no campo da Biologia com
tativas; uma redefinição das relações cráticas. Os fenômenos sociais devem Ludwig Von Bertalanffy, na década de
entre direito público e privado; a intro- ser considerados como sistemas com- 1930, mas foi a partir dos estudos de-
dução de conceitos cosmopolitas e do plexos, cuja complexidade o Direito senvolvidos por Humberto Maturana
pensamento complexo, que facilitem não poderá reduzir, mas com a qual e Francisco Varela3 (1997) que surge
o estudo do multiculturalismo. Deve- haverá de conviver. Há necessidade
-se pautar a prática jurídica em uma de vencer-se o egocentrismo, aceitar a 2 Niklas Luhmann (1927-1998): Estudou
ênfase gnosiológica capaz de coletar e imprevisibilidade do futuro, identificar direito em Friburgo, onde se doutorou em
processar dados objetivos e relacioná- falsas racionalidades, superar as anti- 1949. Em 1960 viajou aos EUA e estudou
sociologia na Universidade de Harvard
-los com realidades subjetivas, sempre nomias decorrentes do progresso e as- em Boston, que exerce uma influência
considerando sua complexidade, bem sumir a condição humana. Isso tudo, significativa em seu pensamento. Em
como a pluralidade da sociedade atu- porque as mudanças estruturais que 1964 publica Funktionen und Folgen
formaler Organisation (Duncker &
al, onde também deve haver uma con- estão transformando as sociedades Humblot, Berlín, 1964), e ingressa na
vergência cultural e respeito às cultu- modernas, cada vez mais complexas, Universidade de Münster, em Dortmund,
ras heterogêneas existentes. O Direito estão fragmentando questões de cul- onde doutorou-se em sociologia política.
Em 1968 se estabelece em Bielefeld, em
já está sendo e deve ser modificado tura, classe, gênero, sexualidade, raça,
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cuja Universidade permanecerá o resto
juntamente com o processo de trans- ética, genética, dentre outras. Como de sua carreira como catedrático editor
formação social devido ao aumento refere Morin, a sociedade está viven- da revista acadêmica Zeitschrift für
Soziologie (Stuttgart). Recebeu o prêmio
da heterogeneidade cultural da po- do um período em que a disjunção Hegel em 1988. Em língua portuguesa
pulação, buscando soluções jurídicas entre os problemas éticos e os proble- foram publicadas as suas seguintes obras:
mais elaboradas, de acordo com as de- mas científicos podem se tornar mor- Legitimação pelo procedimento. Brasília:
Ed. Univ. de Brasília, 1980; Sociologia do
mandas e mudanças que surgem, para tais se perdidas as ideias humanistas Direito. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
reforçar o enfrentamento às incerte- de cidadão e de ser humano. Assim, é 1985; A Improbabilidade da Comunicação.
zas. É preciso ainda compreender o necessário que o ser humano entenda Lisboa: Vega, 1992. Em 15 de março
de 2005, no evento Abrindo o Livro,
Direito como um sistema em que suas que as ciências não têm consciência promovido pelo Instituto Humanitas
partes integram o todo e o todo deve de que lhe falta uma consciência e que Unisinos – IHU, o Prof. Dr. Leonel Severo
ser conhecido também por suas par- elas não podem ocupar o centro da Rocha, da Unisinos, apresentou El derecho
de la sociedad, obra de Niklas Luhmann.
tes, combatendo o reducionismo do sociedade, mas o ser humano e a com- (Nota da IHU On-Line)
positivismo a partir do conjunto, sem plexidade de suas relações, a quem a 3 Humberto Maturana e Francisco
esquecer suas inter-retroações com- ciência deve estar a serviço. Para tan- Varela: biólogos chilenos. Entre outros,
escreveram El Arbol Del Conoscimiento.
plexas. Em suma, a perspectiva do Di- to, desenvolver a ética da responsabi- Santiago do Chile: 1994. Editorial

EDIÇÃO 402 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 23


o entendimento de que os sistemas confluente. Esse novo paradigma seria as relações todo/parte seriam media-
Tema de Capa
seriam capazes de se autoconstruir e aquele já exposto por Blaise Pascal4, das por interações e organizações, que
reduzir a complexidade. Nesse contex- no sentido da impossibilidade de co- não afastam a desordem, a incerteza e
to que surgiu a proposição de Morin nhecer as partes sem conhecer o todo, antagonismos. Morin define sua teoria
de que a concepção de sistema é a raiz ou de conhecer o todo sem conhecer como dimensão sistemática organi-
da complexidade, defendendo que se particularmente as partes. Isso é pos- zacional, que deve estar presente em
deve fugir de explicações simplistas, sível, segundo Morin, desde que se todas as teorias do universo, já que
lineares, para abarcar as diversas rea- extraia dessa fórmula uma circularida- a teoria geral dos sistemas baseada
lidades – leia-se a multidimensionali- de construtiva da explicação do todo na noção de sistema aberto é insufi-
dade – do mundo enquanto sistema, pelas partes e das partes pelo todo. O ciente, porque “o sistema não é uma
ideia esta que se constitui palavra- sistema para ele não seria a unidade palavra-chave para a totalidade; é uma
-chave do pensamento luhmaniano. A global, mas a unidade multiplex, isto palavra-raiz para a complexidade”. A
ideia trazida por Luhmann é de que o é, complexa, aberta às politotalidades complexidade superaria a perspectiva
Direito se legitima na medida em que e para uma nova organização do pen- de micro para macro, propondo formas
os seus procedimentos garantem esta samento e da ação, ambos complexos, alternativas de solução dos problemas
ilusão, percebendo na legitimação do diferente da simplificação holística, que não conseguem ser resolvidos na
poder o sentido do procedimento juri- que reduz ao todo. Teoria Geral dos Sistemas, já que nega a
dicamente organizado, na medida em existência de única e absoluta verdade,
que o poder gera a decisão e a torna IHU On-Line – Em que aspectos propondo um método de aproximação
legítima, de sorte que o objetivo do a Teoria Geral dos Sistemas, de Karl máxima da verdade superando a com-
procedimento juridicamente organi- Ludwig von Bertalanffy, pode contri- partimentação e especialização pelo
zado consiste em tornar transmissível buir em uma renovação do Direito no uso de meios inter, multi e transdisci-
a redução da complexidade. Luhmann século XXI? plinares. As perspectivas dessa teoria
entende que, nas sociedades com- Angelita Maders – Karl Ludwig são tentadoras e os ensinamentos de
plexas, a natureza das decisões deve von Bertalanffy é considerado um dos Morin prometem soluções desejadas
ceder lugar aos procedimentos, que fundadores da Teoria Geral dos Siste- pela sociedade, mas cujo verdadeiro le-
generalizam o reconhecimento das mas, mas especificamente da ideia de gado e utilidade somente poderão ser
decisões, tornando os procedimen- sistema aberto, que pode se alimentar percebidos e definidos no futuro.
tos a garantia de decisões que terão de matéria/energia e de informação.
aceitabilidade. Segundo o autor, os Ele propôs a aplicação dessa teoria IHU On-Line – No caso da bioé-
processos ajudam, perante um futuro não somente à Física e à Biologia, mas tica e do direito, há um laço que une
incerto, a proporcionar uma seguran- também às ciências sociais, comporta- ambos conhecimentos indiscutivel-
ça atual através de uma complexidade mentais e à Filosofia, pois entendia que mente. A partir disso, como analisa a
imprevisível de possibilidades do direi- os sistemas estão em toda a parte. Sua pesquisa biogenética humana no Bra-
to variável e ajudam a tornar possível teoria ganhou adeptos ao longo dos sil e na Alemanha?
um comportamento representativo no anos e tem sido adotada por diferentes Angelita Maders – O laço que
presente. Morin, por sua vez, criticou autores na atualidade, mas restou apri- une esses dois ramos do conhecimen-
a teoria geral dos sistemas, porque morada, até mesmo por Luhmann, para to demonstram a interdisciplinaridade
ela estaria fundada no holismo, que quem ela deveria ser uma teoria sistê- necessária para a compreensão e solu-
abrange também uma visão unidi- mica autopoiética, onde o Direito de- ção dos problemas oriundos dos avan-
mensional e simplificadora do todo. veria ser fechado objetivamente, mas ços biotecnológicos, que não prescin-
Para ele, a inteligência do sistema re- admitir ruídos externos e a convivência dem da ética e do Direito, tanto que se
quer um novo princípio que não seria com outras áreas do conhecimento, fala hoje em uma disciplina chamada
o holismo, porque este acaba reduzin- portanto, aberto cognitivamente. O Biodireito. A pesquisa biogenética en-
do à totalidade uma ideia à qual se re- próprio Morin também adotou a teo- volvendo seres humanos no Brasil e
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duzem outras ideias sistêmicas, quan- ria dos sistemas, porém com um novo na Alemanha, onde ela é mais restri-
do em verdade deveria ser uma ideia paradigma, o qual se entende adequa- ta sob determinados aspectos, assim
do para ser empregado ao Direito no como a ciência em geral, possui um
século XXI, já que abrange uma visão lado positivo e outro negativo, lados
Universitária. Santiago do Chile, 1994. multi, pluridimensional e complexa. que devem conviver dialogicamen-
Humberto Maturana (1928) é crítico do
Realismo Matemático e criador da teoria
Segundo ela, a complexidade não deve te. O problema reside na prevalência
da autopoiese e da Biologia do Conhecer, ser afastada pelo Direito, que deve com dos aspectos negativos e na utilização
junto a Francisco Varela. Faz parte dos ela conviver para nela apostar em uma da ciência não mais a serviço do ser
propositores do pensamento sistêmico
e do construtivismo radical. Francisco
solução para problemas complexos. A humano, mas o inverso. O que deve
J. Varela (1946-2001) escreveu sobre complexidade, então, conduziria a um ocorrer, nessa área, é justamente um
sistemas vivos e cognição: autonomia conhecimento mais verdadeiro, onde controle adequado para garantir que
e modelos lógicos. Ph.D. em Biologia,
escreveu Princípios de Autonomia
o caminho percorrido pelos cientistas
Biológica, um dos textos básicos da seja efetivamente ético, responsável
autopoiese, teoria que desenvolveu com 4 Blaise Pascal (1623-1662): físico, e, portanto, em benefício da humani-
Humberto Maturana. (Nota da IHU On- matemático, filósofo moralista e teólogo
Line). francês. (Nota da IHU On-Line)
dade (solidário).

24 SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 402


Tema de Capa
Complexidade e pensamento vivo
A autonomia dos saberes acontece na “relação criativa com outras partes”, e não
através do isolamento, que atesta miopia e morte, assinala Laércio Pilz. A abertura ao
Outro e aos diferentes saberes é o que “alimenta o nosso viver e o desejo pelo saber”

Por Márcia Junges

“E
dgar Morin é importante porque ça vivo, devemos estar vigilantes para que a
ele defende a dignidade de criar ordem e a separação das coisas não ignorem
através da proposição do pensa- a complexidade”.
mento complexo, porém, ao mesmo tempo, Laércio Pilz é graduado em Filosofia pela
ele não ignora a realidade das coisas, as or- Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da
dens que estão aí e diante das quais estamos Imaculada Conceição – Fafimc, em Viamão,
construindo as possibilidades”. A reflexão especialista em Educação pela Federação de
é do filósofo Laércio Pilz na entrevista que Estabelecimento de Ensino Superior, em Novo
concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. Em seu Hamburgo, mestre e doutor em Educação
ponto de vista, a proposta desse pensador pela Unisinos com a tese A afirmação de uma
sobre a complexidade “é uma nova maneira pedagogia da afirmação: Desconstruindo mo-
de universalizar, não mais em forma de um rais racionalistas a partir do encontro com o
círculo em que as coisas parecem relacionar- desejo, a multiplicidade e o devir. Leciona na
-se mecanicamente, mas através de conexões Unisinos, no departamento de Ciências Hu-
que vão se realizando dinâmica e criativa- manas, e atua como professor autor de diver-
mente”. E completa: “Sua crítica à ordem e sas disciplinas nos cursos EAD da instituição.
à fragmentação não é de alguém que ignora É autor de Antropologia filosófica e ética (São
que existe ordem e que separar as coisas faz Leopoldo: Unisinos, 2010) e Ética e negócios
parte do procedimento científico. Porém, ele (São Leopoldo: Unisinos, 2012).
alerta que, para que o pensamento permane- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Uma relativização desenvolve. Reconhecer antropologi- que liberem e potencializem a mani-
radical de cada olhar, mas sem cair camente, em cada um desses saberes, festação plena da vida por parte dos
no relativismo, é um dos pilares da uma manifestação humana verdadeira outros seres.
transdisciplinaridade. Em que aspec- não pode deixar que ignoremos que a
tos o diálogo entre os saberes incen- relativização radical, que tu colocas na Relação criativa com o Outro
tiva uma visão mais abrangente sobre questão, aponta para a crítica a uma Só há diálogo entre os saberes (os
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a existência, as diversas formas de possível simplificação (redução) da humanos) e do ser humano com os se-
vida e sua legitimidade ontológica? vida por parte do discurso de um des- res/forças do planeta, se experimenta-
Laércio Pilz – O ser humano expe- ses saberes. mos o de fora, este sair de si, sentindo,
rimenta diferentes maneiras de conce- Vamos radicalizar em relação ao assim, uma rede de potencialização
ber a sua relação com a existência. Os final da tua questão: qual é a legitimi- dos seres entre si. A verdade ontoló-
mitos, a religião, a ciência, entre ou- dade ontológica dos seres vivos em gica de cada ser se compõe pela di-
tros saberes, são maneiras pelas quais geral? Sua dignidade não está posta a nâmica de sua relação com o de fora.
o ser humano deu e dá significado e partir de sua própria reflexão e defesa O ser humano, como ser reflexivo e
sentido à sua existência e à vida de um em relação às suas possibilidades de autogerador de sentido, experimenta
modo geral. Se falarmos em diálogo existência. Nós, humanos, seres refle- sua ontologia na compreensão de sua
entre saberes, estamos falando não xivos, estamos desafiados a desenvol- relação criativa com o Outro, tanto o
só entre os saberes modernos, mas ver a compreensão do que significa a outro-eu como o outro-humano e o
entre todas essas formas de manifes- dignidade da vida planetária, presente outro-ser vivo.
tações de produção de sentido que o nos seres vivos e em suas relações e, a Por fim, quando propões a ideia
ser humano, em seu trajeto cultural, partir disso, desenvolvermos práticas de diálogo entre saberes, penso na

EDIÇÃO 402 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 25


compreensão do pertencimento a
“A autonomia ele teme que a ciência, assim como
Tema de Capa
uma rede dinâmica de relações em outras formas de saber, seja mais uma
que, além do apaziguamento (um cer-
to cruzamento) entre saberes míticos, dos saberes não maneira pela qual possamos ignorar a
complexidade da vida e das relações.
científicos, religiosos, cotidianos (sen-
so comum), etc., também podemos se faz pelo seu Ele seguidamente enaltece a impor-
tância da racionalidade humana para
pensar no diálogo entre os saberes a compreensão e execução de um
acadêmicos, ou seja, do entendimen- isolamento, pois projeto propositivo em relação à so-
to de que o ser humano e a socieda- lidariedade terrestre. Conseguimos
de podem ser melhor compreendidos assim atestam sua coisas maravilhosas com o desenvolvi-
se nosso estudo sobre eles for levado mento científico, o que não podemos
adiante de forma colaborativa entre miopia e morte. A desprezar como elemento que pode
história, psicologia, sociologia, direito, fazer parte de um projeto colaborativo
biologia, etc. autonomia é um da humanidade em sua evolução com
a vida planetária. Ciência com consci-
IHU On-Line – Em que medida
a transdisciplinaridade é um contra-
movimento de ência2, O método III (Conhecimento do
conhecimento)3, entre outras obras,
ponto ao pensamento totalitário e
único, e qual é seu papel numa socie-
relação criativa revelam um autor que discursa em fa-
vor da teoria científica e da pesquisa,
dade na qual a especialização técnica
resulta em fragmentação do conheci-
com outras partes porém, sempre pensando na dinâmica
de abertura ao pensamento comple-
mento e “miopia” da ação?
Laércio Pilz – Um pensamento
– contextos” xo, ou seja, na capacidade propositiva
que esse saber científico desenvolve,
totalitário e único retira o próprio ho- dialogando com a história e com a di-
mem de sua liberdade, pois a essência nâmica dos contextos. A autonomia
da liberdade é o não determinismo, nização. Em segundo lugar, é acreditar dos saberes não se faz pelo seu isola-
é a possibilidade de contar a História que existe um estudo que nos levará mento, pois assim atestam sua miopia
e a sua história de outras maneiras, a modelos que devem ser seguidos. e morte. A autonomia é um movimen-
subvertendo certos registros padro- Essa é a grande cegueira da ação. to de relação criativa com outras par-
nizados. O que atesta o pensamento Se existem ações que atestam tes – contextos. Autoeco-organizado-
totalitário e único, algo que conside- uma ordem repetitiva em relação aos ores, conceito muitas vezes repetido
ro impossível de se manter diante da resultados, não é esse processo que por Morin, são todos os saberes que
lógica do tempo? É a representação revela a criatividade e a possibilidade estendem seu conhecimento em rela-
pré-determinada sobre algo ou o uso humana de elaborar o novo, de fazer ção a um projeto dinâmico e que se faz
de um método restrito e simplificado da existência um campo de criação es- histórico, marca indelével da condição
para definir e representar os objetos. tética. O pior problema da fragmenta- humana. O que deve ser pressupos-
Edgar Morin, em A inteligência cega1, ção do conhecimento é a redução da to básico para se desenvolver ciência
tem uma passagem que me marcou ação a um padrão de sequência, como em um mundo complexo e dinâmico?
muito em que afirma que quando os se houvesse uma regra pré-determi- A compreensão dos múltiplos fatores
mitos e religiões se fixam em seus nada, a partir de um tipo de saber, que se fazem presentes nos processos
dogmas, quando a ciência se reduz em para a execução dos processos. Repito de ação e reação das forças da natu-
seus abstracionismos e empirismos, com Edgar Morin: a vida segue certos reza, das forças sociais e de cada ser
quando as ideologias se fixam em padrões, as espécies têm seus códigos humano.
suas doutrinas, estamos desenvolven- genéticos de reprodução, assim como
do uma inteligência cega. A abertura, nós possuímos leis e normas que esta- IHU On-Line – Normalmente a
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para ele, é o que alimenta o nosso vi- belecem uma organização mínima das arte, a ciência e a tradição são ana-
ver e o desejo pelo saber. Aquilo que estruturas e dos movimentos. Porém, lisadas separadamente, como se não
pretende fechar o conhecimento em o engessamento nessa ordem nega a dialogassem ou não fizessem parte
uma resposta dada e pronta tem seu vida como força dinâmica e o ser hu- do mesmo sistema complexo. Numa
limite e, se não for reconhecido como mano como ser para a criatividade em perspectiva do Manifesto da transdis-
tal, produz cegueira. O problema do sua relação consigo, com os outros ciplinaridade4, o que o entrelaçamen-
tecnicismo e do mecanicismo está, em e com o planeta – animado por uma to entre esses saberes representa?
primeiro ligar, numa visão limitada de perspectiva ética.
pensar a ordem das coisas como algo 2 MORIN, Edgar. Ciência com Consciência
linear, repetitivo, fixo, sujeito à padro- IHU On-Line – Sob quais aspec- (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002).
(Nota da IHU On-Line)
tos a obra de Morin é um contrapon- 3 MORIN, Edgar. O MÉTODO III.
1 MORIN, Edgar. A inteligência cega e to ao �����������������������������
fechamendo ideológico e para- Conhecimento do Conhecimento (Porto
epistemologia da complexidade. In: digmático das ciências? Alegre: Sulinas, 1999). (Nota da IHU On-
______. Introdução ao pensamento Line)
complexo. 2 ed. Lisboa: Instituto Piaget,
Laércio Pilz – Edgar Morin não é 4 Basarab Nicolescu. O Manifesto da
2001. (Nota da IHU On-Line) um crítico das ciências. Parece-me que Transdisciplinaridade (2. ed. São Paulo:

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Laércio Pilz – A arte já foi vista, as- mais simples – não gosto de usar esta desejo pessoal com que atualmente

Tema de Capa
sim como o mito, com certo desdém. expressão que parece querer forçar indivíduos buscam experimentar mais
Não seria um saber sério... A tradição, uma explicação, ignorando a criativi- sentido em relação àquilo que fazem,
muito próxima do mito, era uma igno- dade de interpretação do leitor –, pro- pode ser um espaço a ser alimentado
rância cultural que submetia a massa. ponho que a bela tradição está aberta pela perspectiva transdisciplinar, que
Logo, a ciência seria o campo da liber- ao outro e ao tempo, que a bela ciên- é um discurso e uma proposta radical
tação, pois ela levaria o ser humano a cia explica, reproduz e (re) cria mun- em favor do diálogo e da paz, do en-
descobrir o que de fato era importante dos e que a arte fala outras línguas a contro com o Outro, esse outro que
para a vida a partir do uso experimen- partir de sua língua. vai do devir pessoal aos devires que
tal e analítico da razão. Uma sociologia cada ser humano e ser vivo represen-
positivista nos libertaria da ignorância IHU On-Line – Em que perspecti- tam na geografia da vida.
e nos levaria à produção de uma es- va a transdisciplinaridade coloca em
trutura social adequada, transferindo xeque a concepção antropocêntrica IHU On-Line – Morin atingiu um
a lógica de estudo e estabelecimento e etnocêntrica das sociedades? Tem reconhecimento público por seu pen-
de leis de análise e interferência na na- percebido avanços em termos da mu- samento. Qual é a importância desse
tureza física e biológica para a nature- dança desse cenário? pensador para nosso tempo?
za das coisas sociais – humanas. Uma Laércio Pilz – Os estudos sobre Laércio Pilz – Quando se lê Edgar
sociedade com leis perfeitas (ordem a vida alimentam a perspectiva trans- Morin, a gente se sente provocado,
e progresso). Mas esse ser humano, disciplinar. Edgar Morin, em boa parte desafiado e animado a produzir cone-
endurecido pela cientificismo, come- de seus escritos, vai revelando como a xões entre as coisas e, ao mesmo tem-
ça a sentir falta da arte. A tradição natureza acontece e evolui através da po, a refletir sobre o que aquilo que
se descobre pela antropologia (entre complexidade. A diversidade dinâmica estamos estudando pode fazer a gen-
outras ciências), não era somente um é característica básica da natureza e a te pensar de maneira diferente o que
refúgio, mas também o espaço de ri- compreensão desse fato revela a igno- até então nos parecia tão óbvio. Mo-
tuais de pertencimento, de encontro rância de concepções e posturas et- rin não é um filósofo do Universal, mas
com o outro e com a história, com o nocêntricas e antropocêntricas. Todo sua proposta sobre a complexidade é
sagrado, com o que religa os humanos preconceito é, antes de tudo, um ates- uma nova maneira de universalizar,
entre si e esses com o divino ou com o tado de ignorância em relação à com- não mais em forma de um círculo em
que se pensa divino (com um projeto preensão de que a riqueza da vida está que as coisas parecem relacionar-se
de salvação). no encontro criativo da diversidade. mecanicamente, mas através de cone-
Acredito que, em certos aspec- xões que vão se realizando dinâmica e
Aliança dinâmica tos, não podemos ignorar avanços em criativamente. Ao dar importância ao
Na perspectiva transdisciplinar, o relação ao relaxamento de posturas aleatório, ele nos desafia à intuição e à
encontro entre a arte, a tradição e a etnocêntricas. A defesa da liberdade é capacidade criativa, a aprender a per-
ciência é um encontro entre diferen- algo que ressoa dentro de vastos cam- ceber a possibilidade de interpretar e
tes estéticas humanas, porém, cada pos da democracia, mesmo que essa pensar as palavras e os fatos de outras
uma trazendo elementos que possam ainda seja débil em países emergen- maneiras. Somos também o encontro
colaborar com a expansão do enten- tes e sujeita a experiências muito res- de várias contingências e, diante de-
dimento do humano em relação ao tritas às políticas internas em nações las, podemos imaginar outras coisas
mundo e com a ampliação do universo desenvolvidas. que podemos combinar produzindo
simbólico do qual ele pode fazer uso No entanto, quando converso es- algo novo. Ele é atual em todos os
para preservar e dignificar sua exis- ses temas com os estudantes, percebo sentidos, desde o campo da criativida-
tência pessoal e social. O verdadeiro afetivamente que a maioria deles é to- de produtiva até, e principalmente, do
cientista é um artista que compreende cada e que seu corpo acolhe, em geral, ponto de vista do compromisso ético
que está inserido dentro de uma tra- a mensagem. É evidente que há muito para com as possibilidades de poten-
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dição, que vive o seu tempo histórico, ainda a se conquistar em termos de cializar a vida. Quando lemos a manei-
porém, se conjuga em seu ser a arte desenvolvimento de linguagem e de ra como Morin escreve sobre biologia,
de explicar, reproduzir e recriar mun- maneiras de compreensão para que de percebemos que ele está a nos desa-
dos. Assim como o verdadeiro artista fato a perspectiva transdisciplinar seja fiar a pensar sobre o quanto a vida é
está no mundo, reconhece seu estado experimentada. Ainda vivemos, como criativa. Ele reconhece a ordem que
neste mundo, porém deseja propor/ afirmam Morin e Kern em Terra-Pá- está presente na estrutura da vida,
desenhar outros mundos. Por fim, o tria5, o fim da Era de Ferro Planetária mas ao mesmo tempo e, de maneira
homem da tradição se encontra com (de visões etnocêntricas, de invasão singular, percebe e estende a vida para
a cultura não para se enquadrar num do espaço do outro) e a Pré-História a dinâmica das possibilidades.
quadro social, mas para atualizar os do espírito humano (o entendimento
signos através da aliança dinâmica en- da solidariedade terrestre). Porém, o Espírito poético
tre o passado e o futuro, na experiên- Sua crítica à ordem e à fragmen-
cia atualizada da tradição. De maneira tação não é de alguém que ignora que
5 MORIN, Edgar. Terra-Pátria (Porto existe ordem e que separar as coisas
Alegre: Sulina, 1995). (Nota da IHU On- faz parte do procedimento científico.
Triom, 2001). (Nota da IHU On-Line) Line)

EDIÇÃO 402 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 27


Porém, ele alerta que, para que o pen- estamos construindo as possibilidades. de (Deleuze), a teoria da complexidade
Tema de Capa
samento permaneça vivo, devemos O conceito que eu vou trabalhar ou que (Morin), a formação total (De Masi7),
estar vigilantes para que a ordem e a vai aparecer não está isolado de tudo, a visão sistêmica (Capra8), a cabeça
separação das coisas não ignorem a ele acontece na relação, nas conexões mestiça (Michel Serres9) são pressu-
complexidade. Lembro aqui quando criativas entre os processos. O desejo postos teóricos e práticos que abrem
ele critica a separação entre prosa e que move cada pessoa verdadeira e perspectivas antropológicas muito
poesia, denunciando que o trabalho não capturada, é dar sentido ao que importantes para o nosso tempo glo-
acabou tão prosaico, que sobraram so- experimenta, porém, não se produz bal, para um encontro solidário entre
mente o fim de semana e as atividades sentido sem o encontro com o Outro, culturas abertas, entre pessoas livres e
estritamente artísticas para chamar- com a multiplicidade que emerge da criativas e dessas consigo mesmas em
mos de poesia. Mas por que trabalhar criatividade com que desenvolvo o en- seus movimentos de experimentação.
não pode ser algo a ser invadido por contro com minhas sensibilidades, com
um estado poético? Por que escrever a aliança com novas linguagens e com
essas linhas aqui para o IHU não pode o devir que essas sensibilidades e lin- Leia mais...
ser um exercício prosaico atravessado guagens experimentam nos processos
pelo espírito poético? Esse encontro que experimento. Se eu tiver um pro- >> Laércio Pilz já concedeu uma
entre as coisas, essa capacidade de jeto de aula a desenvolver, se eu tiver
entrevista à IHU On-Line, sobre sua
pensar as nossas atividades em sua conceitos e imagens que quero apre-
potência trans, em sua relação com sentar aos alunos, o sentido vai emer- trajetória pessoal. Confira:
um projeto maior, é algo que Morin gir do encontro entre esses e o mundo
• IHU Repórter – Laércio Antônio Pilz.
faz emergir. Digo sempre em minhas dos alunos e suas memórias. Um belo
falas para professores que o que faz cruzamento é possível, um projeto de Entrevista publicada na edição nú-
com que uma disciplina seja trans é miscigenação.
mero 315, de 16-11-2009, disponí-
que ela é desafiada a pensar de que Morais racionalistas – tudo o que
forma está colaborando para um pro- transforma uma pessoa num trapo de vel em http://bit.ly/QeOOcc
jeto maior, ou seja, como a forma e o gente, como dizia Deleuze, é muito
conteúdo da mesma estão relaciona- pobre. Todo discurso ou postura só
dos com um projeto pessoal, social e se justifica eticamente se minha dig- Paulo: Editora 34, 1996). (Nota da IHU
ético ampliado, em extensão. nidade e a do outro forem considera- On-Line)
7 Domenico De Masi (1938): professor de
das como pressupostos primeiros, por Sociologia do Trabalho na Universidade
IHU On-Line – A partir de sua mais que eu me sinta supostamente La Sapienza, de Roma, e diretor da S3
pesquisa de doutorado, qual é a con- esclarecido. Studium, escola de especialização em
ciências organizacionais que fundou.
tribuição de Morin na desconstrução Escreveu diversos livros, dentre os quais
de morais racionalistas a partir do en- IHU On-Line – Gostaria de “Desenvolvimento Sem Trabalho”, “A
contro com o desejo, a multiplicidade acrescentar algum aspecto não Emoção e a Regra”, “O Ócio Criativo”
e “O Futuro do Trabalho”. (Nota da IHU
e o devir? questionado? On-Line)
Laércio Pilz – Lembro aqui, pri- Laércio Pilz – Penso que certos 8 Fritjof Capra: físico austríaco,
meiramente, de minha dissertação de pensadores que venho estudando há cientista, ambientalista, educador e
ativista. Surgiu para o mundo após lançar
mestrado. Além de professor universi- algum tempo trazem consigo certos O tao da física, no qual discorre sobre os
tário, na época eu era professor de His- conceitos e propostas que se aproxi- paralelos, a princípio impossíveis, entre
tória no ensino médio e me perguntava mam. Há diferenças, que bom! Mas a física quântica e o misticismo oriental.
Estabeleceu-se no posto de pensador
como o encontro com os fatos histó- também há uma certa generosidade holístico com O ponto de mutação,
ricos poderia ser criativo ou reprodu- comum: uma defesa radical da dig- explorando as mudanças no paradigma
tivo. Uma razão fechada, explicativa, nidade de cada ser e, em especial, a social que acompanham as descobertas
científicas. Atualmente, vive em Berkeley,
interpretativa ou ideológica reproduz vontade de enriquecer a linguagem
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na Califórnia. Ele fundou o Center for


de tal forma a história, que nada sobra de cada pessoa para que possa se en- Ecoliteracy, uma instituição que forma
para que os estudantes desenvolvam contrar com sua própria potência e profissionais para ensinar Ecologia nas
escolas. É professor do Schumacher
a sua criatividade no encontro com os ao mesmo tempo colaborar com um College, um centro de estudos ecológicos
fatos. Estudar Edgar Morin me ajudou mundo de Inteligentes Coletivos (Pier- na Inglaterra. Em português, foram
a pensar, ainda em 1995, de maneira re Lévy6). A diferença e a multiplicida- publicados, entre outros, os livros: O
ponto de mutação. São Paulo: Cutrix,
mais crítica este encontro com os fatos 1982, Sabedoria incomum. São Paulo:
históricos, a refletir sobre as narrativas 6 Pierre Lévy: filósofo da informação Cutrix, 1995, A teia da vida. São Paulo:
históricas e a desejar pensar outras his- que estuda as interações entre a Internet Cultrix, 1997, O tao da Física. São Paulo:
e a sociedade. Mestre em História da Cultrix, 2000, As conexões ocultas. São
tórias com os estudantes. Ciência e doutor em Sociologia e Ciência Paulo: Cultrix, 2002, Pertencendo ao
Edgar Morin é importante por- da Informação e Comunicação, pela universo. São Paulo: Cultrix, 2003. (Nota
que ele defende a dignidade de criar Universidade de Sorbonne, França, Lévy da IHU On-Line)
é titular da cadeira de pesquisa em 9 Michel Serres (1930): filósofo francês.
através da proposição do pensamento inteligência coletiva na Universidade Escreveu entre outras obras “O terceiro
complexo, porém, ao mesmo tempo, de Ottawa, Canadá. Entre outras obras, instruído” e “O contrato natural”. Atuou
ele não ignora a realidade das coisas, as escreveu A ideografia dinâmica: rumo a como professor visitante na USP. Desde
uma imaginação artificial? (São Paulo: 1990 ele ocupa a poltrona 18 da Academia
ordens que estão aí e diante das quais Loyola, 1998) e O que é o virtual? (São francesa. (Nota da IHU On-Line)

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Tema de Capa
A professora imaginária e o
descentramento da humanidade
Gerson Egas Severo examina o legado de Morin para compreendermos a miopia dos
saberes que não dialogam, o delírio arrogante de tudo conhecermos, e a falta de
sentido num ensino compartimentalizado, sem ligações

Por Márcia Junges

“A
reposição dos seres humanos no das vaidades”, disse referindo-se à universida-
centro de um universo que con- de. “Convencer este povo de que alimentar o
templa o mais macro e o mais Lattes com artigos-sempre-o-mesmo e comu-
micro não nos deve, entretanto, deixar en- nicações requentadas, assim como atender
ganar: não se trata do homem como medida às exigências da Capes, por exemplo, com a
de todas as coisas de Protágoras e nem do sujeição humilhante com que o fazemos não
antropocentrismo de corte renascentista-ilu- é exatamente, digamos, o objetivo final da
minista (...). Trata-se do contrário: o saber-se existência”.
parte de um Universo, de um planeta, de um Gerson Egas Severo é graduado, mestre e
passado compartilhado, de uma sociedade doutor em História pela Unisinos com a tese
presente e futura, implica precisamente um Clio convocada – História, memória e inter-
‘descentramento’ dos seres humanos, um pretação do Brasil (Erechim: Edifapes, 2008).
passo para o lado, um deslocamento – um Leciona na Universidade Federal da Fronteira
cosmocentrismo? – que promoverá uma vi- Sul – UFFS, campus Erechim e é autor de O
são de si mesmo, bem como do mundo e das que somos e o que esperávamos ser: Estado,
coisas do mundo, em uma perspectiva mais economia e discurso presidencial na América
adequada porque relativizada”. A ponderação Latina – O pós-1929 e o pós-1989 (São Leopol-
é do historiador Gerson Egas Severo, em en- do: Editora Unisinos, 2003) e da edição 171
trevista concedida por e-mail à IHU On-Line. dos Cadernos IHU ideias, intitulada Sub spe-
Com o auxílio de uma “professora imaginá- cie aeternitatis – O uso do conceito de tempo
ria”, ele percorre aspectos da obra de Edgar como estratégia pedagógica de religação dos
Morin com provocações que valem a pena saberes, disponível em http://bit.ly/GD6sTY.
serem ouvidas: “O desafio é o de cultivar vida Confira a entrevista.
intelectual realmente orgânica nesta fogueira

IHU On-Line – Qual é a importân- tensa, hesitante e tímida: “Professor, única que, afinal, havia aprendido.
cia da religação dos saberes para um eu não aprendi nada...”. Marin, que Ainda que intuitivamente, meio mío-
www.ihu.unisinos.br
outro modo de vida e compreensão havia passado a última aula inteira pe como o prisioneiro de que nos fala
da humanidade? indagando aos alunos o que haviam Platão ao deixar a caverna, ela havia
Gerson Egas Severo – Lembre- aprendido durante o ano, pergunta se ido além das expectativas de qualquer
mos a última cena do filme de Laurent ela está se referindo às aulas de fran- professor, de qualquer pensador da
Cantet “Entre os muros da escola”, cês, e a menina (negra, certamente educação, de qualquer sistema esco-
aquela em que é apresentada (quem imigrante ou filha de imigrantes) res- lar: encontrava-se em condições de
sabe) sua própria tese: estamos no ponde, seu olhar e gestos abrangen- interpelar os próprios fundamentos
último dia de aula, o professor Marin do a escola inteira, talvez o mundo: da civilização, da paideia grega – ou de
despede-se dos alunos, deseja-lhes “Não... Isso tudo... Eu não compreen- outra paragem antiga qualquer, talvez
boas férias e prepara-se para deixar a do...”. Há uma breve troca de olhares africana – a Rousseau e Paulo Freire1.
sala de aula mais ou menos satisfeito, e uma despedida constrangida. A im-
quando uma aluna, que havia ficado à pressão com que ficamos é a de que 1 Paulo Freire (1921-1997): educador
margem dos demais e da própria nar- o professor não a entende, e de que brasileiro. Como diretor do Serviço de
rativa durante todo o filme, põe-se à a única aluna que havia afirmado não Extensão Cultural da Universidade de
Recife, obteve sucesso em programas
sua frente e um pouco diz, um pouco ter aprendido nada é, na verdade, a de alfabetização, depois adotados pelo

EDIÇÃO 402 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 29


Agora, ponha-se o leitor no lugar da sua inscrição nessa linhagem, poderá ciplinas, de um lado, e esse mundo a
Tema de Capa
professora de seu filho em uma es- eventualmente, com Morin, desejar que se deve dar sentido, de outro.
cola de São Leopoldo. Ela “congela o iniciar sua pequena revolução a par-
tempo”, olha para a barulhenta turma tir de sua própria experiência (Lévi- IHU On-Line – Em que aspectos a
de quinta-série ou de terceiro ano do -Strauss3: sou eu o lugar onde as coisas reposição dos seres humanos no cen-
Ensino Médio à sua frente, e pensa: acontecem) e no lugar em que ela se tro de um universo que contempla o
não está dando certo, está? Não, não encontra (a pedagogia do lugar), pro- mais macro e o mais micro propõe
está. Se ela estiver ali “de verdade” pondo (difícil...) a necessidade inadi- uma nova forma de relação com a
e for intelectualmente honesta, fará ável, na escola e em sua organização existência como um todo?
um esforço mental para mover para o curricular, de um redimensionamento Gerson Egas Severo – Nossa pro-
lado aqueles poucos casos de sucesso, estrutural, radicalizado, da discussão fessora imaginária da escola básica já
e de absoluta exceção, que muitas ve- acerca da inter, multi e transdisciplina- terá notado que é aí que o bicho mul-
zes são usados para disfarçar o desas- ridade tal como tradicionalmente for- tidimensional da ideia da religação dos
tre, a catástrofe, o naufrágio que é a mulada, quer dizer: enfrentar o desafio saberes começa a pegar. Descobrirá
educação brasileira (só a brasileira?) (difícil, difícil...) de “religar os saberes” em Morin que os seres humanos pos-
e concluirá que está lutando uma luta em torno de um núcleo mínimo co- suem uma dupla natureza, biológica e
perdida. Se for professora de história, mum que – precisamente – (re) ligue cultural – aspectos que se relacionam
verá a si mesma, então, como uma es- indissociavelmente os seres humanos entre si em uma dinâmica comple-
pécie de encarnação pedagógica dos ao Universo que habitam e de que são xíssima, cada um tendo a “mão” do
300 de Esparta, que sabiam que iriam parte (poeira das estrelas...), à Terra jogo a cada momento histórico dado
morrer ao final da batalha contra os em suas dimensões geológica, geográ- (dependendo muitas vezes do mo-
persas, mas que estavam eticamente fica e biológica (dimensão esta em que dismo interpretativo de plantão) –, e
impedidos de não lutá-la – pensamen- estão inscritos desde uma perspectiva devem interrogar o mundo, situar-se
to que lhe dará algum ânimo (pelo me- evolutiva), à história que constitui sua no mundo e dar sentido (s) ao mundo
nos até o próximo contracheque). E se, experiência no mundo e a narração/ sabendo-se parte desse mesmo mun-
por fim, nossa professora hipotética explicação dessa experiência (e aqui a do (uma parte quase desprezivelmen-
for leitora de Edgar Morin, saberá que inscrição se dá na ordem do tempo), te pequena, aliás), mas parte mesmo,
aquela aluna anônima do professor e, enfim, ao mundo do trabalho e da sabendo-se, portanto, filhos marginais
Marin teria de ter terminado seu ano cidadania – em uma palavra, o mundo do Cosmos, como diz Morin (a vida na
escolar sabendo, no mínimo, que a ra- dos outros. Afinal, ela terá aprendido Terra surgiu marginalmente no Uni-
zão última (e primeira...), a própria ra- com Morin que o retalhamento das verso e os seres humanos surgiram
zão de ser da educação é a de ensinar disciplinas escolares impossibilita que marginalmente na história da vida).
a condição humana, dar sentido (pré- os estudantes assimilem “o que é te- As partículas elementares que cons-
-existente? atribuído? decida-se...) à cido junto”, isto é, o complexo, e que tituem tudo o que há no Cosmos, ao
condição humana. Para usar a expres- é preciso justamente vencer a inade- menos em sua parte conhecida (toda
são de Douglas Adams, dar sentido(s) quação crescentemente problemática a matéria e toda a energia, as quais
ao Universo, à vida e a tudo o mais... entre saberes fragmentados em dis- são intercambiáveis, como ensinou
Einstein em sua célebre equação), são
Saberes fragmentados as mesmas que nos constituem. Nossa
Nesse momento, a professora são eventos centrais da obra de Platão professora franze a testa, pensativa.
terá começado a (re) ligar escola e (Apologia e Críton). (Nota da IHU On- Seríamos nós a possibilidade mesma
vida, comunidade escolar e humanida- Line)
3 Claude Lévi-Strauss (1908-2009):
de o Universo compreender a si mes-
de, e a si mesma a Freire, Rousseau e antropólogo belga que dedicou sua mo? Lembra as aulas de filosofia: essa
Sócrates2. Reconhecida legitimamente vida à elaboração de modelos baseados formulação não terá cheiros hegelia-
na linguística estrutural, na teoria
nos? E, por outro lado: isso não é uma
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da informação e na cibernética para


governo federal (1963). Esteve exilado interpretar as culturas, que considerava coisa meio religiosa, não? Simpática à
entre 1964 e 1971 e fundou o Instituto como sistemas de comunicação, dando ideia (não se trata, afinal, de religar os
de Ação Cultural em Genebra, Suíça. Foi contribuições fundamentais para o
também professor da Unicamp (1979) e progresso da antropologia social. Sua obra
saberes?), será com alguma decepção
secretário de Educação da prefeitura de teve grande repercussão e transformou, que descobrirá não ser possível – salvo
São Paulo (1989-1993). Confira a edição de maneira radical, o estudo das melhor juízo, e um melhor juízo sem-
223 da revista IHU On-Line, de 11-06- ciências sociais, mesmo provocando
2007, intitulada Paulo Freire. Pedagogo reações exacerbadas nos setores ligados
pre vem – encontrar na obra de Edgar
da esperança, disponível para download principalmente à tradição humanista, Morin reverberações espirituais, não
em http://migre.me/2peDT. (Nota da evolucionista e marxista. Ganhou renome necessariamente religiosas, derivadas
IHU On-Line) internacional com o livro Les Structures
2 Sócrates (470 a. C. – 399 a. C. ): filósofo élémentaires de la parenté (1949). Em
desse complexo de ideias, ao contrário
ateniense e um dos mais importantes 1935, Lévi-Strauss veio ao Brasil para do que ocorre, por exemplo (e perma-
ícones da tradição filosófica ocidental. lecionar Sociologia na USP. Interessado necendo no mesmo diapasão “religa-
Sócrates não valorizava os prazeres dos em etnologia realizou um trabalho de
sentidos, todavia escalava o belo entre pesquisa em aldeias indígenas do Mato
dor), nas de Carl Sagan, Marcelo Glei-
as maiores virtudes, junto ao bom e ao Grosso. A experiência foi sistematizada no ser e do próprio Einstein (ainda que,
justo. Dedicava-se ao parto das ideias livro Tristes Trópicos, publicado em 1955 para o caso de Einstein, necessitemos
(Maiêutica) dos cidadãos de Atenas. O e considerado um dos mais importantes
julgamento e a execução de Sócrates livros do século XX. (Nota da IHU On-Line)
talvez da mediação de um Max Jam-

30 SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 402


mer). De qualquer modo, com Morin, as heranças do Renascimento e do Gerson Egas Severo – Em uma

Tema de Capa
ela veria que das ciências da natureza Iluminismo é certamente complexa. espécie de ideia alternativa à de Freud
passaríamos às ciências da vida e às Ele aceita a ideia de que a noção de ao elaborar os célebres três cortes
humanidades, e de volta. humanismo oriunda daquelas raízes narcísicos (Copérnico, Darwin e a pró-
A reposição dos seres humanos da modernidade é, hoje, problemáti- pria psicanálise) pelos quais teria pas-
no centro de um universo que con- ca – para dizer o mínimo –, uma vez sado a humanidade, Carl Sagan, em
templa o mais macro e o mais micro que implicava aceitar-se a infalibili- Pálido ponto azul (p. 52 a 58), pensan-
não nos deve, entretanto, deixar enga- dade da razão e da ciência, as quais do exatamente na necessidade de os
nar: não se trata do homem como me- nos conduziriam, em pista azeitada, seres humanos encontrarem uma jus-
dida de todas as coisas de Protágoras sempre para a frente e para cima. ta posição, uma posição “desprovin-
e nem do antropocentrismo de corte Compreende também, no entanto, cianizada”, relativizada, no esquema
renascentista-iluminista (em seu elo- que é preciso encontrar um caminho mais geral das coisas, e assim anda-
gio à ciência, Marcelo Gleiser fala do do meio entre o discurso dos que rem melhor, respirarem mais fundo e
homem como medidor de todas as coi- entendem a ciência como algo es- enxergarem mais longe, elabora o que
sas...). Trata-se, mesmo, do contrário: sencialmente positivo, devendo seus chama “as oito grandes humilhações”,
o saber-se parte de um Universo, de aspectos negativos ser entendidos humilhações impostas pela ciência ao
um planeta, de um passado compar- como provisórios e residuais (a ciên- deitar por terra os seguintes e suces-
tilhado, de uma sociedade presente e cia vista como uma fada benfazeja, sivos enganos (note-se que a primeira
futura, implica precisamente um “des- nas palavras de Attico Chassot), e o e a quinta correspondem ao primeiro
centramento” dos seres humanos, um dos que veem a ciência como algo e ao segundo “cortes” de Freud): “(1)
passo para o lado, um deslocamento – de todo negativo: uma fonte de po- a Terra está no centro do Universo;
um cosmocentrismo? – que promove- der, sujeição e opressão das massas (2) mesmo que a Terra não esteja no
rá uma visão de si mesmo, bem como “ignorantes” (a ciência tida como um centro do Universo, o Sol está. O Sol é
do mundo e das coisas do mundo, em ogro maligno, ainda nas palavras de o nosso Sol. Assim, a Terra está apro-
uma perspectiva mais adequada por- Chassot). Com Morin, nossa profes- ximadamente no centro do Universo;
que relativizada. sora sabe que precisamos da ciência (3) bem, então, ao menos, nossa Ga-
– mas precisamos, também, “de uma láxia está no centro do Universo; (4)
Reaparecimento? atitude crítica e até mesmo autocrí- bem, mesmo que existam centenas de
Desde sua leitura de Morin, nos- tica no interior da ciência” (A minha bilhões de galáxias, com centenas de
sa professora passa a conceber suas esquerda, p. 1330). Uma ciência que bilhões de estrelas cada, nenhuma ou-
aulas em função do ensinar-aprender esteja em função de um projeto (aos tra estrela tem planetas; (5) bem, nos-
essas diversas e necessariamente ar- leitores mais jovens, lembro que um sa posição no espaço não demonstra
ticuladas pertenças, procedimento dia existiu esta palavra: projeto). Ela nosso papel especial, mas nossa po-
ao qual subjaz a ideia-força de que apanha seu volume todo sublinhado sição no tempo, sim: estamos no Uni-
àquelas instâncias não apenas todos (não gosta de fazer apontamentos di- verso desde o Início. Recebemos res-
pertencemos como também funda- retamente nos livros) de Terra-Pátria ponsabilidades especiais do Criador;
mentalmente pertencemos juntos: e lê, na página 177, que “precisamos (6) bem, se não temos nada especial
trata-se, portanto, do... reaparecimen- aprender a ser-aí (Dasein), no plane- quanto a nossa posição ou nossa épo-
to? da própria ideia (moderna, sólida, ta. Aprender a ser é aprender a viver, ca, vejamos nosso movimento (aqui,
iluminista em termos de seu paradig- a partilhar, a comunicar, a comungar; Sagan destaca a Teoria da Relatividade
ma por assim dizer “de base”) de hu- é isso que se aprendia nas e pelas cul- Especial, de Albert Einstein: trata-se da
manidade. A educação – estando os turas fechadas. Precisamos doravante ideia de que não há, no Universo, um
saberes religados ou em situação de aprender a ser, viver, partilhar, comu- sistema de referências privilegiado, e
religação in progress – vista e entendi- nicar e comungar enquanto humanos mesmo um tempo presente univer-
da como os seres humanos fazendo-se do planeta Terra. Não mais apenas a sal); (7 – talvez a mais polêmica “hu-
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a si mesmos (alguém ainda lembra de ser de uma cultura, mas a ser terres- milhação”) bem, ainda que sejamos
Gordon Childe?) no que e com o que tres. (...) Um planeta por pátria? Sim, intimamente relacionados com alguns
têm de, precisamente, humanos. tal é nosso enraizamento no cosmos”. dos outros animais, somos diferentes
Que tal? Agora, convenhamos: Ba- – em grau e em espécie – no que real-
IHU On-Line – O que é o conceito con, Descartes, Buffon e Marx – ah!, mente importa: raciocínio, autocons-
de terra pátria de Morin? Esse é um fundamentalmente Marx – foram ho- ciência, manufatura de ferramentas,
contraponto ao sonho alucinado de mens de seu tempo, não é mesmo? ética, altruísmo, religião, linguagem,
conquista do Universo e dominação Então, contraponto sim: mas um con- nobreza de caráter; (8) Ok, talvez não
da natureza formulado por Bacon, traponto rigorosamente histórico. sejamos grande coisa, talvez tenha-
Descartes, Buffon e Marx? Por quê? mos um parentesco humilhante com
Gerson Egas Severo – Prossi- IHU On-Line – Sob quais aspec- os macacos, mas pelo menos somos o
gamos com o esboço do desenho tos se aproximam as ideias de Morin que de melhor existe. À parte Deus e
do que se passa na cabeça de nossa e as oito grandes humilhações formu- os Anjos, somos os únicos seres inteli-
professora leitora de Edgar Morin. ladas por Carl Sagan? O que são essas gentes no Universo”.
A relação de seu autor favorito com oito grandes humilhações?

EDIÇÃO 402 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 31


É interessante incluir, nessa coube viver. Do caos ao cosmos (como resistir à hegemonia daquilo que Ed-
Tema de Capa
perspectiva, o princípio temporal co- escreveu Mário Quintana, “deixa rugir gar Morin chama “mentalidade hiper-
pernicano apresentado por Adams e o caos atônito”). Saberemos continuar disciplinar”, a mentalidade exagerada
Laughlin (Uma biografia do Universo, a fazê-lo? Afinal, convém lembrar que do especialista, ou seja, a mentalidade
p. 31): “Uma vez que o Universo atual conhecimento, hoje mais do que nun- de proprietário que proíbe (e pune!)
é muito conveniente para a vida, tal ca, é igual a poder. E, como observou o toda e qualquer incursão estrangeira
como a conhecemos – temos estre- espetacular Homem-Aranha, poder e em seu território de saber. E, como se
las para fornecer energia e planetas responsabilidade têm de ser entendi- não bastasse, ela deve também vencer
em que viver –, temos uma tendência dos como as duas faces de uma única eventuais constrangimentos internos
natural a pensar na época atual como e mesmíssima moeda. que a levariam, talvez, a explorar com
sendo privilegiada de algum modo. cuidado excessivo as possibilidades
Resistindo a essa tendência, adota- IHU On-Line – Por que Morin do olhar extradisciplinar – o oposto
mos a ideia de um princípio temporal afirma que é imprescindível que se- exato da mentalidade hiperdisciplinar
copernicano, que diz, muito simples- jam religadas as culturas humanística – e, no limite, a evitar, envergonhada,
mente, que a época cosmológica atual e científica? “ocupações de terra” e migrações in-
não tem um lugar especial no tempo. Gerson Egas Severo – Essa é a reli- terdisciplinares. Ela, porém, não desis-
Em outras palavras, coisas interessan- gação-mãe, não é? Aquela de que falou te da empreitada. Morin a surpreende
tes continuarão a acontecer à medida C. P. Snow em sua clássica comunicação ao propugnar (não sem uma boa dose
que o Universo evoluir e se alterar”. – e posterior ensaio – de 1959, “As duas de saudável ironia) o que denomina-
culturas”. Trata-se de uma expressão da ríamos epistemologia da ingenuidade,
Filhos marginais do Cosmos necessidade (para Morin hoje absolu- ou ainda do amadorismo: a ideia de
Não será essa, pensa nossa pro- tamente incontornável) de se religar as frequentemente, na história da ciên-
fessora, a ideia de “filhos marginais do “culturas” científica e humanística, es- cia, acontecer de “um olhar ingênuo
Cosmos”, de Morin, levada às últimas ses dois continentes que um dia forma- de amador, alheio à disciplina, e mes-
consequências? Ela volta a seu exem- ram uma única massa de terra, uma por mo a qualquer disciplina, resolver um
plar de Terra-Pátria, e o abre na pági- assim dizer pangea cultural, e que hoje problema cuja solução era invisível
na 176. Morin e Sagan fazem sentido. se encontram não apenas separados dentro da disciplina. “O olhar ingênuo
“Dominar a natureza? O homem é mas em uma situação de afastamento – que não conhece, é óbvio, os obs-
ainda incapaz de controlar sua própria progressivo e acelerado. Para fazer um táculos que a teoria existente levanta
natureza, cuja loucura o impele a do- exercício semelhante ao que fez Snow, contra a elaboração de uma nova visão
minar a natureza perdendo o domínio vá até o Programa de Pós-Graduação – pode, em geral erradamente, mas às
de si mesmo. Dominar o mundo? Mas em Letras de sua universidade e peça vezes com acerto, permitir-se essa vi-
ele é apenas um micróbio no gigan- aos docentes que conceituem a se- são”. Os exemplos dados são Darwin e
tesco e enigmático cosmos. Dominar gunda lei da termodinâmica. Eles não Wegener, e um apoio considerável é
a vida? Mas mesmo se pudesse um o poderão fazer, é claro (nem concei- buscado em Proust e Labeyrie. Legal,
dia fabricar uma bactéria, seria como tuar, nem coisa nenhuma), e – é lícito hein? Dê uma olhada nas páginas 106
copista que reproduz uma organiza- pensar – alguns não o farão com um e 107 de A cabeça bem feita.
ção que jamais foi capaz de imaginar”. certo orgulho. No entanto, você estaria
Além de tudo isso, reflete nossa pro- perguntando algo que é o equivalente IHU On-Line – Por que o tempo
fessora ao lembrar de um artigo lido científico perfeito de indagar se já le- é o tema religador dos saberes por
alhures, com as pesquisas atuais em ram Machado de Assis... E não adianta excelência?
cosmologia, astronomia e astrofísica dizer que a experiência contrária tam- Gerson Egas Severo – Essa foi
a respeito da matéria e da energia es- bém seria verdadeira (ir até o Progra- uma ideiazinha que me ocorreu quan-
curas, tem-se dito que somente cerca ma de Pós-Graduação em Ciências da do, a partir do já longínquo ano de
de 5% do Universo é composto pelas Terra, e tal, sei lá), porque não é bem 2004, no ensino médio, perdi a paciên-
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partículas elementares que conhece- assim: há uma assimetria (pequena, é cia e decidi formular, em minhas aulas
mos – quarks, elétrons etc. Quer dizer: verdade, mas há) na burrice cruzada. de História e Filosofia, uma espécie de
até as “peças de Lego” de que somos “Triste, triste”, pensa nossa professora “religação dos saberes aplicada”. Per-
feitos são marginais na evolução cós- imaginária. cebi que o tempo é um assunto que,
mica... Agora: dotados de intelecção com o perdão da palavra pedagogica-
e memória, são precisamente esses IHU On-Line – O que Morin mente desgastada, “atravessa” todas
filhos marginais do Cosmos a única es- quer dizer com epistemologia da as disciplinas da grade curricular tra-
pécie viva (por enquanto e até prova ingenuidade? E com mentalidade dicional. A pergunta “O que é o tem-
em contrário!), apesar do lembrete hiperdisciplinar? po?” poderia ter possíveis respostas a
de Sagan na oitava “humilhação”, ca- Gerson Egas Severo – A simpáti- partir da Filosofia, da História, da So-
paz de pôr tudo isso em perspectiva, ca professora conjectural que estamos ciologia, da Literatura, da Psicologia,
organizar todo esse conhecimento, acompanhando, disposta a arrostar o da Biologia, da Física – tanto a clássica,
conferir-lhe sentido e ainda projetar desafio da religação dos saberes, além newtoniana, como a moderna, rela-
o futuro, saindo lisos da rede de cri- de mil e uma dificuldades – mil e uma tivística e quântica –, da Química, da
ses que é a marca do tempo que nos mesmo, não é modo de dizer –, deverá História das Religiões, e ser represen-

32 SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 402


tada inclusive nas aulas de Artes. Tive assim, mas imagino que pode ser de quis prosseguir, nem desejei ir mais

Tema de Capa
a experiência de ver um aluno tentar outros modos, e não necessariamen- longe / Só estar parado, admirando o
desenhar a “ideia de tempo” de Pla- te, é claro, desde o conceito de tempo. tempo todo esse início, para cantá-lo
tão... Inicialmente, tentei articular um em canções de êxtase”.
grupo de professores em torno dessa IHU On-Line – Qual é o grande
“desobediência civil” – até mesmo desafio de se estudar Morin e apli- IHU On-Line – Gostaria de
politicamente, para não desobedecer car suas ideias no meio acadêmico, acrescentar algum aspecto não
sozinho à supervisão da escola –, mas notadamente carente de atitude questionado?
não deu certo. Então, não tive alter- transdisciplinar? Gerson Egas Severo – Antes da
nativa: explodi o programa das disci- Gerson Egas Severo – O desafio conclusão de seu romance O sangue
plinas de História e Filosofia e procu- é o de cultivar vida intelectual real- do mundo, Catherine Clément põe nas
rei trabalhar a partir de novas bases mente orgânica nesta fogueira das mãos de Théo, seu personagem prin-
epistemológicas (as da complexidade, vaidades (uma coisa interessante na cipal, o livro de Knud Rasmussen, o
envolvidas na religação dos saberes), vida dos clichês é que alguns deles, explorador dinamarquês criado como
pedagógicas (teoria da aprendizagem por vezes, permanecem classicamen- um inuíte, “Da Groenlândia ao Pacífico,
significativa, mapas conceituais – obri- te válidos, no sentido de Italo Calvino), dois anos de intimidade com tribos de
gado, Baldissera –, e tal), e também neste circo, neste teatro sem trama esquimós desconhecidos”, em uma edi-
em uma nova perspectiva, como se vê, que é a Universidade – e então avaliar ção de 1929. Théo havia feito com sua
em termos de conteúdo. livremente Edgar Morin e sua obra, tia Marthe uma viagem para conhecer
assim como qualquer outro livro, au- as dores ecológicas do mundo, e agora
IHU On-Line – Em que aspectos tor ou ideia. Convencer este povo de se depara, no texto, com duas fórmulas
o conceito de tempo foi discutido que alimentar o Lattes com artigos- mágicas enunciadas para preservar o
como estratégia pedagógica da reli- -sempre-o-mesmo e comunicações equilíbrio da cultura inuíte e da nature-
gação dos saberes em sua experiên- requentadas, assim como atender às za. Primeiro invoca-se Qeqertuanac, a
cia docente? exigências da Capes, por exemplo, criadora da invocação. Depois, pronun-
Gerson Egas Severo – Relatei com a sujeição humilhante com que o cia-se a primeira fórmula para atrair
parte substancial dessa experiência fazemos não é exatamente, digamos, os animais de caça: “Animal marinho,
em um artigo chamado Sub Specie Ae- o objetivo final da existência. Não é entregue-se ao amanhecer. Animal da
ternitatis: O uso do conceito de tempo possível que entreguemos nossa dig- estepe, entregue-se ao amanhecer”. E,
como estratégia pedagógica de religa- nidade intelectual assim tão facilmen- então, vem a segunda fórmula, aquela
ção dos saberes. Inspirado em um livro te: um dia poderemos precisar dela, que Théo, médico, adotará como filo-
admirável dos físicos Peter Coveney e quem sabe? Nossa professora hipo- sofia de vida, a fórmula para estancar
Roger Highfield, intitulado A flecha do tética lembra, neste instante, de uma hemorragias: “Aqui está o sangue da
tempo, dividi o assunto tempo em três passagem cristalina de A grande his- mãe do pequeno pardal. Estanque-o.
dicotomias organizadoras: o tempo é tória da evolução (p. 432) em que Ri- Aqui está o sangue que correu de um
imaginário ou real? Circular, cíclico, chard Dawkins fala da larva da ascídia, pedaço de madeira. Estanque-o”. Bem,
ou linear? Absoluto ou relativo? Des- que, “ao metamorfosear-se, desinte- aí está: é preciso estancar o sangue do
se modo, pude convocar muitíssimos gra seus tecidos larvais, recicla-os e os mundo, da Terra-Pátria. E há um san-
temas para a brincadeira (a maioria transforma no corpo adulto. Isso inclui gue para estancar, também, no mun-
deles pouco ou mesmo nunca traba- desintegrar o gânglio da cabeça, útil do da educação. Não será fortuita a
lhada na escola básica): cosmogonia enquanto a criatura nadava livremen- semelhança, para além da metáfora,
babilônica e cultura antiga, mitologia te no plâncton. (…) Mais de uma vez com o que diz Edgar Morin em A mi-
grega, a cosmologia dos pré-socráti- vi referências à ascídia larval que, che- nha esquerda (p. 174): “Há um atraso
cos, Platão e Aristóteles, Índia e hin- gada a hora, se fixa na vida sedentária da consciência ligado à enfermidade de
duísmo, Buda e o budismo, China e e come seu próprio cérebro, como um nosso modo de conhecer”.
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Japão, cultura maia, os livros Gênesis professor universitário depois de ser
e Apocalipse, Santo Agostinho e o efetivado no corpo docente”. Então, o
célebre capítulo sétimo de sua obra que ocorre é que ela prefere ficar na
Confissões, Nietzsche, a revolução escola básica, no front onde a verda- Leia mais...
científica do século XVII, Copérnico, deira guerra está sendo travada, e ler
Kepler, Galileu, Newton, Adam Smith em voz alta “Iniciando meus estudos”, Gerson Egas Severo é autor
e os primeiros formulares do liberalis- o poema de Walt Whitman, todos os da edição 171 dos Cadernos IHU
mo, Darwin, Marx e a crítica ao capita- dias pela manhã, como uma prece:
lismo, Einstein, Charles Chaplin e sua “Iniciando meus estudos o primeiro ideias, intitulada Sub specie aeter-
esteira taylorista, a teoria do big bang, passo me agradou tanto / O mero fato nitatis – O uso do conceito de tem-
cada um deles deflagradores de rami- da consciência, estas formas, o poder
ficações virtualmente infinitas – todas do movimento / O mínimo animal ou po como estratégia pedagógica de
amarradas pelo “tempo”. Até Paul Vi- inseto, o sentidos, o olhar, o amor / O religação dos saberes, disponível
rilio apareceu por lá, com suas ideias primeiro passo eu digo me maravilhou
de aceleração do tempo social... Foi e me agradou tanto / Que quase não em http://bit.ly/GD6sTY

EDIÇÃO 402 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 33


A incompatibilidade entre
Tema de Capa

transdisciplinaridade e
pensamento único
Unir conhecimentos, ciências exatas e humanas é o objetivo da transdisciplinaridade
hoje, afirma Basarab Nicolescu. Saberes entrelaçados são esperança de “uma vida
mais humana”, além de reencontrarmos o sentido em nosso mundo
Por Márcia Junges | Tradução: Luís Marcos Sander

U
m pensador maior, que “propõe o a esperança de reencontrar um sentido em
questionamento e a incerteza como nosso mundo e assim reencontrar o nosso
prioridade em relação às respostas mundo”. As afirmações fazem parte da en-
sempre falsas (quando categóricas)”. Assim o trevista a seguir, concedida por e-mail à IHU
físico romeno Basarab Nicolescu define Edgar On-Line.
Morin e a importância de seu pensamento Basarab Nicolescu é especialista na teoria
em nossos dias. Ele acentua que, em função das partículas elementares, autor de diversos
de sua metodologia, a transdisciplinaridade é livros e centenas de artigos publicados em re-
incompatível com o pensamento totalitário e vistas especializadas e livros científicos coleti-
único. “Os diferentes níveis de realidade são vos na Europa, nos Estados Unidos, no Japão
incompatíveis com a redução a um só nível e no Brasil. É professor de física teórica da
de realidade. Além disso, a lógica do terceiro Universidade Pierre e Marie Curie, em Paris,
incluído é incompatível com a verdade ab- onde foi fundador do Laboratório de Física
soluta. A função da transdisciplinaridade na Teórica e de Altas Energias. É também presi-
sociedade contemporânea é de unificar os dente do Centro Internacional de Pesquisas e
conhecimentos, as ciências exatas e as ciên- Estudos Transdisciplinares – CIRET, fundado
cias humanas”. O entrelaçamento de saberes na França em 1987.
é uma “esperança de uma vida mais humana, Confira a entrevista.

IHU On-Line – Uma revitalização incompatível com o pensamento to- ção antropocêntrica e etnocêntrica
radical de cada olhar, sem cair no re- talitário e único. Os diferentes níveis das sociedades? Você percebeu avan-
lativismo, é um dos pilares da trans- de realidade são incompatíveis com ços em termos de mudança dessas
disciplinaridade. Em que aspectos a redução a um só nível de realidade. cenas?
o diálogo entre os saberes incentiva Além disso, a lógica do terceiro in- Basarab Nicolescu – A transdisci-
uma visão mais abrangente sobre a cluído é incompatível com a verdade plinaridade implica o sagrado. O homo
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existência, as diversas formas de vida absoluta. A função da transdisciplina- religiosus é central na transdiscipli-
e a legitimidade ontológica? ridade na sociedade contemporânea naridade. Mas os avanços são muito
Basarab Nicolescu – No domí- é a de unificar os conhecimentos, as lentos.
nio do diálogo entre as culturas e as ciências exatas e as ciências humanas.
religiões. IHU On-Line – Morin obteve
IHU On-Line – Qual é o nexo que um reconhecimento público por seu
IHU On-Line – Em que medida une a transdisciplinaridade proposta pensamento. Qual é sua importância
a transdisciplinaridade é um contra- por Morin à Teoria Geral dos Siste- para o nosso tempo?
ponto ao pensamento totalitário e mas, de Bertalanffy? Basarab Nicolescu – Um pensa-
único, e qual é sua função numa so- Basarab Nicolescu – O pensa- dor maior, que propõe o questiona-
ciedade na qual a especialização téc- mento simultâneo da unidade e da di- mento e a incerteza como prioridade
nica resulta em fragmentação do co- versidade representa este nexo. em relação às respostas sempre falsas
nhecimento e em “miopia” da ação? (quando categóricas).
Basarab Nicolescu – A transdis- IHU On-Line – Em que perspecti-
ciplinaridade, por sua metodologia, é va a tradição põe em xeque a concep-

34 SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 402 3


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0000000 | EDIÇÃO 000 35
Livro da Semana
Destaques da Semana

ALISON, James. O pecado original à luz da


ressurreição (São Paulo: É Realizações, 2011)

“O perdão antecede o pecado”.


A superação de uma visão
moralista e chantagista
A narrativa de “chantagem emocional” é predominante quando pensamos no pecado
original, acentua o teólogo James Alison. Contudo, a doutrina central da fé diz que
somos perdoados antes mesmo de sermos criados

Por Márcia Junges

P
ensar na doutrina do pecado original ao aprendermos e recebermos o perdão que
“sem tomar parte da visão moralista chegamos a ser capazes de nos arrepender, e
e chantagista do Evangelho”. Assim o por isso de ascender à criação”.
teólogo James Alison nos aconselha a refle- James Alison é teólogo católico, sacerdote
tirmos a respeito de um dos temas do Cris- e escritor. Com estudos em Oxford, é doutor
tianismo. Para ele, é preciso compreender a pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teolo-
doutrina do pecado original numa visão re- gia – FAJE, de Belo Horizonte. Atualmente é
trospectiva a partir da ressurreição. “Nesse Fellow, da Fundação Imitatio, instituição que
sentido, a noção de uma visão retrospectiva apoia a divulgação da teoria mimética. Há
é muito importante, pois ela nos exime de mais de 15 anos é um dos raros padres e te-
considerar tudo de maneira moralista, como ólogos católicos assumidamente gays. Seus
se Jesus tivesse vindo para pagar uma dívi- sete livros já foram traduzidos para o espa-
da. Ao invés disso, Ele nos traz uma visão nhol, italiano, francês, holandês e russo. Em
mais primigênia do Novo Testamento, que é português podem ser lidos Uma fé além do
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a irrupção em nosso meio da plenitude da ressentimento: fragmentos católicos numa


criação, o que São Paulo chama de nova cria- chave gay (São Paulo: É Realizações, 2010) e
ção”, disse na entrevista concedida por tele- O pecado original à luz da ressurreição (São
fone à IHU On-Line. Paulo: É Realizações, 2011). Seu trabalho mais
Em seu ponto de vista, a doutrina do peca- recente é A vítima que perdoa – uma introdu-
do original é “a instalação da possibilidade de ção para a fé cristã para adultos em doze ses-
uma vivência autocrítica”. E completa: “A dou- sões (www.forgivingvictim.com). James Alison
trina do pecado original é secundária à pre- reside em São Paulo, onde está iniciando uma
sença de Jesus Cristo. Porque se aquilo que pastoral católica gay e viaja pelo mundo dan-
Jesus Cristo nos traz é a possibilidade de viver do conferências, palestras e retiros. Textos
como se a morte não fosse, é precisamente seus podem ser encontrados no site www.
só a partir dele que tem qualquer sentido fa- jamesalison.co.uk. Mais detalhes sobre a Fun-
lar de um passado quando as pessoas viviam dação Imitatio encontram-se disponíveis no
presas ao pecado original”. Alison enfatiza link endereço www.imitatio.org.
que “o perdão antecede o pecado”, e que “só Confira a entrevista.

36 SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 402


IHU On-Line – Em entrevista à
“Para Paulo, a Nesse sentido, a noção de uma vi-

Destaques da Semana
IHU On-Line sobre Girard, você men- são retrospectiva é muito importante,
ciona que a doutrina do pecado ori-
ginal é a visão retrospectiva a partir
criação mesma pois ela nos exime de considerar tudo
de maneira moralista, como se Jesus
da ressurreição. Poderia dar-nos mais aconteceu em tivesse vindo para pagar uma dívida.
detalhes sobre o que isso significa? Ao invés disso, Ele nos traz uma visão
James Alison – As pessoas ten- nosso meio e mais primigênia do Novo Testamento,
dem a imaginar a visão cristã como
se fosse uma narração de criação se- utiliza a palavra que é a irrupção em nosso meio da
plenitude da criação, o que São Paulo
guida de queda, salvação e, ao final
desse processo, o que deveríamos
Adão apenas para chama de nova criação.

fazer é viver uma vida moral. Tudo se referir àquilo IHU On-Line – Qual é o sentido e
acontece entre bastidores e deixa- a validade da doutrina do pecado ori-
-nos com a necessidade de bom com- que é universal, ginal em nossos dias?
portamento. Isso não é esperançoso James Alison – Esta é uma dou-
e não há nada de graça no sentido aquilo que Jesus trina muito sutil. Há duas maneiras
teológico. Esta é simplesmente uma
maneira de controlar as pessoas e
estava trazendo” de se esquivar daquilo que a doutri-
na nos mostra e sugere. A primeira é
obriga-las a comportarem-se segun- considerar que somos seres, por na-
do regras que, seriam, segundo essa mundo Antigo não se pensava daquele tureza, violentos, assassinos e que só
visão, ditadas por Deus há muito jeito. chegamos a sermos humanos devido
tempo, e este próprio pagou o pre- a nossa maior capacidade de matar do
ço pelas “travessuras” das pessoas. Vivência retrospectiva que os outros bichos. Há maneiras de
Agora que Ele pagou o preço, como A questão interessante para ele entender a paleontologia humana que
uma espécie de chantagem emo- é aquilo que fez Jesus ao inaugurar a demonstra isso. Qual é diferença en-
cional, devemos nos comportar. As plenitude da criação e, evidentemen- tre nós e nossos seres mais próximos,
pessoas tendem a pensar isso. Mas te, mostra que aquilo que nós está- como os símios? É que somos mais ca-
isso não foi originalmente a compre- vamos vivendo até lá era, de alguma pazes de matar. É lamentável dizê-lo,
ensão do Evangelho. maneira, uma vivência ainda fútil, não mas é verdade. Essas são questões que
É importante resgatar a doutrina chegada à sua plenitude, e que isso diz os paleontólogos vão estudando na
do pecado original sem tomar parte respeito a toda a humanidade, desde medida em que descobrem mais ossos
da visão moralista e chantagista do que começou. Para se referir a toda e evidências arqueológicas. A noção
Evangelho. Isso, desde os primórdios, humanidade desde que começou, uti- de que somos, à diferença de outros
percebe-se em São Paulo, o Apóstolo, liza a palavra Adão. O central na visão animais, melhores “matadores”, não é
uma vez que ele considera o primei- é entender que já chegaram os inícios totalmente desprezível. Essa ideia ser-
ro Adão somente à luz de Cristo. Ele da plenitude da criação, que é aquilo ve para a pessoa que quer evidências
considera Adão cronologicamente que traz Jesus. Então, a vivência fútil de nossa natureza violenta.
primeiro somente como aquele que é olhar para trás, é como se dissessem O segundo ponto de vista é que
“e pensar que nós achávamos isso
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prefigurava o Adão definitivo, que é os seres humanos são basicamente
Cristo. Para Paulo, a criação mesma normal... Agora vemos que aquilo era bons e que nos agrupamos por acor-
aconteceu em nosso meio e utiliza a um estado de ser, uma condição muito dos razoáveis e, basicamente, somos
palavra Adão apenas para se referir menor daquilo para o que deveríamos amáveis, e só por incidências fora de
àquilo que é universal, aquilo que Je- aspirar”. Então, podemos começar a nós, de clima, invasão, etc, é que nos
sus estava trazendo. Então, São Paulo viver como se a morte não nos domi- tornamos violentos e perigosos. As-
não está preocupado com que as pes- nasse. A partir disso, podemos ousar a sim, temos os pontos de vista do ser
soas façam estudos paleontológicos criar coisas sem medo da morte, por- humano violento por natureza, e o ser
para saber quem era “o tal de Adão” que ela não tem direito de dominar humano como essencialmente bom.
e o que foi que ele fez. Para São Pau- nossa vida. Isso é o que foi trazido por O problema é que nenhum dos pon-
lo, o assunto de quem era e o que ele Jesus mostrando a abundância de vida tos de vista parece corresponder à
fez é totalmente secundário, se é que de Deus, que não tem nada a ver com realidade. É aqui onde a doutrina do
é de qualquer importância, porque no a morte. Para isso que fomos criados. pecado original é interessante, pois é

EDIÇÃO 402 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 37


sutil, sugerindo que o ser humano não “no ato”. Mas isso é impossível, por- sos, que não somente o sapiens, aqui-
Destaques da Semana
é intrinsecamente violento, mesmo que somos o fruto desse processo de lo que parece ser interessante é o que
que se dê o caso de que desde nossos hominização, e só a partir de dentro produziu e permitiu que ao longo de
primórdios assim tenhamos sido. Em da capacidade moderna de olhar para milênios a capacidade imitativa deste
princípio, somente, somos capazes de trás é que podemos fazê-lo. tipo de macaco crescesse de forma a
aprender a conviver de maneira não Quando se fala do ato primor- permitir que aquilo que fosse instin-
violenta em que construímos nossas dial que teria sido uma separação de to nos outros chegasse a ser mais do
mútuas edificações. Porém, em todos Deus, isso é muito complicado. Aquela que instinto, e passasse a ser desejo,
nossos casos, isso não é uma coisa que maneira de pensar imagina a possibi- ou seja, quando começa a haver uma
nos vem facilmente. Começamos “pré- lidade de uma história linear na qual vivência coletiva, uma inteligência co-
-bagunçados”, mas isso não é a mes- todas as pessoas eram humanas e já letiva que agita os membros do grupo
ma coisa que sermos intrinsecamente era possível pecar e havia uma possi- a partir de um centro que eles podem
violentos. Se o fôssemos, só seríamos bilidade de olhar “de fora”. Mas não identificar.
isso. Se somos intrinsecamente bons, é o caso. Para nós, é difícil imaginar o Trata-se do começo de uma cul-
então a “culpa” é sempre dos outros. que seria um cenário original no qual tura propriamente humana, e isso é
O difícil, para nós, é começando como como parte do processo de hominiza- um momento que todo paleontólogo
“pré bagunçados” aprendermos que ção nossos antepassados alcançaram ou arqueólogo quer descrever num
sermos bons passa sempre pela auto- a humanidade. No momento em que processo de algum modo. Meu assun-
crítica, o que é muito difícil de se fazer. alcançaram a humanidade, o fizeram to, contudo, é o desenvolvimento do
Então, a doutrina do pecado original é, de forma “torta”, porque é disso que desejo, da capacidade simbólica e da
ainda, a instalação da possibilidade de se trata: de manter ao mesmo tem- cultura da violência, porque é a par-
uma vivência autocrítica. Normalmen- po a intrínseca bondade daquilo que tir do momento em que a morte tem
te somos bastante binários no pensa- nos faz seres humanos, e a constante sentido que as pessoas começam a
mento, então sutilezas como essa são presença em nosso meio da violência sepultar.
mais difíceis de pensar. como coisa nossa. Só quero indicar que aquilo que
Penso que entre as possíveis ma- nos oferece Girard é um modelo para
IHU On-Line – Por que a partir do neiras de manter juntas essas duas entender o relacionamento do desejo,
pecado original Adão e Eva, e portan- coisas, o pensamento de Girard nos a chegada da cultura e da violência. É
to todas as pessoas posteriormente, dá recursos para uma interpretação um modelo que entende que se trata
romperam sua relação com Deus? interessante quanto à questão do de- não só de um ato específico de um mo-
Como compreender esse paradoxo se sejo, pois quando falamos de seres mento X, que foi um pouco aquilo que
as pessoas se extinguiriam caso não humanos se trata da possibilidade do pensou Freud na explicação que deu
tivesse pecado? desejo. para a hominização. Contudo, é algo
James Alison – Você volta ao bem mais extenso no tempo que che-
âmago da questão. Somos intrinseca- IHU On-Line – “Não somos seres gou à capacidade dos seres humanos
mente ou acidentalmente violentos? fadados à morte, mas à vida”, você se unirem em contraste com o outro
Retornemos ao início da entrevista. afirmou nessa entrevista sobre Gi- tido como ruim. Trata-se do mecanis-
Falamos, nesse caso, de uma visão rard. Nesse sentido, como a hipóte- mo vitimário, do bode expiatório. Essa
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unicamente retrospectiva, e por de- se do desejo mimético de Girard nos é a hipótese girardiana, que vejo como
finição não podemos ter nenhum ajuda a compreender e explicar esse muito rica porque nos permite acom-
acesso imediato àquilo que foi o pri- dogma? panhar os estudos dos paleontólogos
meiro ato humano. Somos o produto James Alison – Estamos falando e arqueólogos para entender melhor
desse ato. Assim, só podemos pensar daquilo que nos faz seres humanos o que teria sido o processo pelo qual
a partir de um ato de compreensão e diferentes dos nossos primos mais o homo sapiens emergiu.
contemporânea que iremos descrever próximos entre os outros símios e en-
aquilo que nos fez ser aquilo que so- tre os outros pré-humanos, pois pelo IHU On-Line – Qual é a importân-
mos. Não temos nenhuma capacidade visto havia vários tipos de pré-huma- cia de Jesus Cristo e do batismo para
de nos colocarmos fora de nós mes- nos, que não eram os homo sapiens, e a Igreja Católica como figuras que eli-
mos. Como se houvesse uma câmara que nunca chegaram a ser tão eficazes minam o pecado original?
de circuito fechado e os macacos, os como nós na sobrevivência. Como es- James Alison – A doutrina do pe-
pré-humanos, tivessem sido pegos tamos falando de hominídeos diver- cado original é secundária à presença

38 SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 402


de Jesus Cristo. Se não houvesse a pre- pessoas que elas não podem ser boas trás. O perdão antecede a nossa cria-

Destaques da Semana
sença de Jesus Cristo não haveria a pre- porque o pecado original sempre irá ção, o que é contra intuitivo.
sença da doutrina do pecado original. atrapalha-las é algo errado. Se têm Curiosamente, a doutrina central
Porque se aquilo que Jesus Cristo nos pessoas que o fazem dessa forma, da fé é que somos perdoados antes de
traz é a possibilidade de viver como não se trata de doutrina cristã. A dou- sermos criados, e que só ao aprender-
se a morte não fosse, é precisamen- trina do pecado original tem tudo a mos e recebermos o perdão que che-
te só a partir dele que tem qualquer ver com a presença do perdão como gamos a ser capazes de nos arrepen-
sentido falar de um passado quando já presente em nosso meio. O per- der, e por isso de ascender à criação.
as pessoas viviam presas ao pecado dão antecede o pecado. Tipicamente Porque Aquele que nos criou não quer
original. Então, qual é o sentido do ba- pensamos na narrativa da chantagem nos humilhar, mas abrir-nos para mais.
tismo? É a introdução desde já neste emocional. Por exemplo: alguém se O problema com o pecado é a dimi-
começo de vivência da vida eterna a comporta mal e por isso precisa ser nuição do nosso ser. E quem nos ama
partir de agora. E precisamente o rito perdoado. Para ser perdoado é pre- quer que sejamos mais, e que não fi-
consiste em certo passar de antemão ciso pedi-lo, e para ser atendido é quemos fechados em nós mesmos. O
por uma espécie de pré-morte. Até o necessário estar muito arrependido. perdão não provem daquele que está
Apóstolo Paulo se refere ao batismo O mau uso do pecado original é um de fora de nós olhando e falando com
como “aqueles que foram batizados pretexto para que alguém fique insis- olhar orgulhoso. Ao contrário, provem
na morte de Cristo”. A noção é ante- tindo em aterrorizar os outros pelos dAquele que nos olha com igualdade
cipar a morte sendo batizado para pecados que fez, sugerindo que se a de coração e quer apaixonadamente
poder viver dali para frente como se a pessoa consegue demonstrar arre- que cheguemos a ser bem mais.
morte não fosse. Você começa a viver pendimento suficiente pelos pecados
a vida eterna a partir de agora. Esse é que cometeu será perdoada.
o sentido do batismo. Todo sentido da Esse é um modelo atroz. Qual-
vida da igreja, da liturgia depende dis- quer pai ou mãe que valham a pena Leia mais...
so: da presença sacramental dos sinais sabem que nenhum filho humano
James Alison já concedeu outras
da eternidade em nosso meio. deveria ser tratado com uma menta- entrevistas à IHU On-Line.
lidade assim. Isso é pura chantagem. Confira:
IHU On-Line – Em que aspec- Conseguimos ser melhores que isso. • O amor homossexual. Um olhar teo-
tos essa doutrina não é o “complô O interessante da doutrina é que lógico-pastoral. Revista IHU On-Line
cínico de um clero ávido de poder, ela sugere o contrário: que o perdão
253, de 07-04-2008, disponível em
nem o absurdo de um pensamento chegou antes que conhecêssemos o
http://bit.ly/fNXN10
balbuciante”? tamanho do nosso problema, e que só
• Uma fé para além do ressentimen-
James Alison – Realmente há a partir do dom é que nós nos conhe-
pessoas que usam o pecado original cemos perdoados, amados, recebidos to. Revista IHU On-Line 393, de 21-

como forma de justificar qualquer tal e qual somos que somos capazes 05-2012, disponível em http://bit.
maldade. Por um lado, dizer para as de sermos desatados e de olhar para ly/JmHmZu

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EDIÇÃO 402 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 39


Teologia Pública
Destaques da Semana

Teólogos enclausurados na
academia. Um desafio
A teologia tem que ser profética, porque deve se realizar não como exposição de
doutrinas e de disciplinas, mas sim como leitura dos sinais dos tempos, uma leitura
que só pode ser feita a partir da encarnação solidária a partir dos debaixo, afirma
Pedro Trigo

Por Graziela Wolfart, Thamiris Magalhães e Luis Carlos Dalla Rosa | Tradução de Moisés Sbardelotto

“N
ão podemos ignorar como nos gência de rigor metodológico, mas tem tido
afeta o totalitarismo de mercado, dois graves inconvenientes: “O mais óbvio,
hoje dominante, mas também a tendência à formalização, aumentada pela
não podemos nos restringir a maldizer o feti- orientação das universidades à excelência aca-
che”, declara o teólogo Pedro Trigo, em entre- dêmica, entendida neste caso como o cumpri-
vista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para mento de padrões formais, já que os qualifica-
ele, temos que partir da atuação vitoriosa do dores, burocratas secularizados em geral, não
Espírito do Crucificado Ressuscitado, “porque são capazes de julgar conteúdos. Mas o mais
só tem sentido falar e propor a partir dessa grave é que os teólogos vão se enclausurando
liberdade libertada que se manifesta em um na academia, e se perde a referência básica ao
modo alternativo de viver e se traduz na res- povo de Deus e, principalmente, aos pobres
ponsabilidade concreta pelos outros, estando com espírito, que são a principal fonte da prá-
lado a lado com eles e priorizando os que estão xis e da consciência cristãs”.
embaixo”. E acrescenta: “A assunção dos bens Jesuíta de origem espanhola e naturali-
civilizatórios da última revolução tecnológica zado venezuelano, Pedro Trigo é professor
pode potencializar essa atitude”. de Teologia na Faculdade de Teologia da Uni-
Questionado sobre se a teologia vive hoje versidad Católica Andrés Bello, em Caracas, e
um processo de “enclausuramento” ou uma pesquisador do Centro Gumilla para estudos
tendência academicista, o teólogo explica que sociopolíticos da Companhia de Jesus na Ve-
o enraizamento da teologia nas universidades nezuela, onde foi diretor por várias vezes.
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tem tido grandes vantagens, sobretudo a exi- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o senhor Não podemos ignorar como nos afeta lado com eles e priorizando os que es-
analisa a teologia latino-americana, o totalitarismo de mercado, hoje do- tão embaixo. A assunção dos bens ci-
tendo presente a complexidade da minante, mas também não podemos vilizatórios da última revolução tecno-
atual realidade do mundo? nos restringir a maldizer o fetiche. Te- lógica pode potencializar essa atitude.
Pedro Trigo – Acredito que a teo- mos que partir da atuação vitoriosa do
logia não deve ser fundamentalmente Espírito do Crucificado Ressuscitado, IHU On-Line – O que significa fa-
ideológica, no sentido de discussão de porque só tem sentido falar e propor a zer teologia latino-americana no atu-
ideias, mas sim concreta, isto é, deve partir dessa liberdade libertada que se al contexto da Igreja?
se ater a problemas sólidos, sem se manifesta em um modo alternativo de Pedro Trigo – Concebo a teologia
restringir à sua particularidade, po- viver e se traduz na responsabilidade latino-americana como uma função e
rém chegando ao nível da realidade. concreta pelos outros, estando lado a missão da Igreja, mas entendendo a

40 SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 402


Igreja como povo de Deus articulado,
“Acredito que a ção, aumentada pela orientação das

Destaques da Semana
com diversas vocações, que se realiza universidades à excelência acadêmica,
ao nos levarmos mutuamente na fé,
no amor fraterno e na vida concreta teologia não deve entendida neste caso como o cumpri-
mento de padrões formais, já que os
a um nível anterior ao da diversifica-
ção de funções, e que, desse modo, se ser fundamen- qualificadores, burocratas seculariza-
dos em geral, não são capazes de jul-
converte em sacramento da união da gar conteúdos. Mas o mais grave é que
humanidade como família de povos, talmente os teólogos vão se enclausurando na
dinamismo que o Espírito impulsiona academia, e se perde a referência bá-
em todos os seres humanos. Ampliar ideológica, sica ao povo de Deus e, principalmen-
os problemas da instituição eclesiásti- te, aos pobres com espírito, que são a
ca é um modo de clericalismo. Como no sentido de principal fonte da práxis e da consciên-
dizia o catecismo que estudei quando cia cristãs. Não estou dizendo que não
criança, somos cristãos pela graça de discussão de existe contato, mas talvez mais como
Deus. Animados ou não, aqueles que, trabalho de extensão ou “para conten-
como nós, se consideram cristãos têm
que seguir o mesmo caminho compar-
ideias, mas sim tar a sua alma devota” do que como
alimento fontal da experiência cristã,
tilhado e solidário. concreta” como ato primeiro do qual a teologia
é ato segundo. Por isso a repercussão
IHU On-Line – A partir da reali- muito escassa que ela tem na marcha
dade latino-americana, qual o senti- de dentro exclui a adaptação ao esta- do nosso cristianismo.
do de se pensar e fazer uma teologia belecido, porque configura uma situa-
profética e evangélica? ção de pecado e exige um constante IHU On-Line – Por que teolo-
Pedro Trigo – A teologia tem que discernimento. Como a nossa época gias fundamentalistas e doutrinárias
ser profética, porque deve se realizar é diferente da de Medellín2, é impres- estão em auge ou ganhando espa-
não como exposição de doutrinas e de cindível realizar um discernimento ço particularmente no continente
disciplinas, mas sim como leitura dos equivalente ao que foi realizado pela latino-americano?
sinais dos tempos, uma leitura que só Igreja latino-americana neste local. Pedro Trigo – Porque boa parte da
pode ser feita a partir da encarnação Mas, assim como naquela época, não instituição eclesiástica aposta nessas
solidária a partir dos debaixo. A en- basta a denúncia. Não temos autori- pastorais, que são, obviamente, mais
carnação no mundo em que nos cabe dade cristã se carecemos de propostas baratas, já que se enclaustram em uma
viver expressa o pathos (a entrega positivas, nas quais se possa caminhar parcela da realidade, como se o cristia-
apaixonada) e o ethos (a exigência) com plenitude humana, verdadeiras nismo pudesse se confinar nela e não
do Concílio1. A solidariedade a partir alternativas, principalmente no plano tivesse que ser exercido em todos os ní-
antropológico concreto. veis da vida histórica. Por essa mesma
1 Concílio Vaticano II: convocado no dia 11-
razão, muitos se dispõem a aceitá-las.
11-1962 pelo Papa João XXIII. Ocorreram IHU On-Line – A teologia vive A proposta de se encarnar na realidade
quatro sessões, uma em cada ano. Seu
hoje um processo de “enclausura- a partir de baixo para nos salvar nela,
encerramento deu-se a 8-12-1965, pelo
Papa Paulo VI. A revisão proposta por mento” ou uma tendência academi- ajudando a que ela se humanize a par-
este Concílio estava centrada na visão cista? Por quê? tir do paradigma de Jesus de Nazaré,
da Igreja como uma congregação de fé,
Pedro Trigo – O enraizamento envolve toda a pessoa e todos os âm-
substituindo a concepção hierárquica
do Concílio anterior, que declarara a da teologia nas universidades tem bitos da realidade. Como se diz na Ve-
infalibilidade papal. As transformações tido grandes vantagens, sobretudo a nezuela: “quem se mete a redentor sai
que introduziu foram no sentido da
exigência de rigor metodológico, mas crucificado”. É custoso seguir a Jesus de
democratização dos ritos, como a missa
Nazaré, mesmo que se faça com toda a
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rezada em vernáculo, aproximando a tem tido dois graves inconvenientes:
Igreja dos fiéis dos diferentes países. Este o mais óbvio, a tendência à formaliza- discrição e prudência. Em segundo lu-
Concílio encontrou resistência dos setores gar, também seria preciso reconhecer
conservadores da Igreja, defensores da
hierarquia e do dogma estrito, e seus
que uma parte considerável da pastoral
frutos foram, aos poucos, esvaziados, será publicada uma edição especial em iluminada, seja do iluminismo liberal
retornando a Igreja à estrutura rígida comemoração aos 50 anos do Vaticano II ou do socialista, se centrou muito na
preconizada pelo Concílio Vaticano. O (Nota da IHU On-Line)
IHU promoveu, no ano de 2005, o Ciclo 2 Documento de Medellín: Em 1968,
promoção ou na conscientização e or-
de Estudos Concílio Vaticano II – marcos, na esteira do Concílio Vaticano II e da ganização popular, em detrimento dos
trajetórias e perspectivas. Confira, encíclica Populorum Progressio, realiza- aspectos religiosos, e cultivou quase
também, a edição 157 da IHU On-Line, se, na cidade de Medellín, Colômbia, a II
de 26-09-2005, intitulada Há lugar para Assembléia Geral do Episcopado Latino-
que exclusivamente o pensar e o agir
a Igreja na sociedade contemporânea? Americano que dá origem ao importante corretamente, deixando de lado todo
Gaudium et Spes: 40 anos, disponível documento que passou a ser chamado o o simbólico, desconhecendo que o ser
para download na página eletrônica Documento de Medellín. Nele se expressa
do IHU, http://migre.me/KtJn. Ainda a clara opção pelos pobres da Igreja
humano é um animal simbólico.
sobre o tema, a IHU On-Line produziu a Latino-Americana. A conferência foi
edição 297, Karl Rahner e a ruptura do aberta pessoalmente pelo papa Paulo VI. IHU On-Line – O senhor defen-
Vaticano II, de 15-6-2009, disponível no Era a primeira vez que um papa visitava
link http://migre.me/KtJE. Em breve, a América Latina. (Nota da IHU On-Line).
de a ideia de que é preciso discernir

EDIÇÃO 402 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 41


entre a religião neolítica e o cristia-
“Os teólogos vão inculturar o cristianismo em cada uma
Destaques da Semana
nismo. Pode explicitar essa ideia? Em das culturas populares, de modo que
que sentido nossa época seria a supe-
ração do modelo neolítico? se enclausurando desses cristãos excelentes saiam pa-
dres e bispos de cada cultura: indíge-
Pedro Trigo – A religião neolítica,
também a dos maias, astecas e incas na academia, e se na, camponesa, afro-latino-americana
e suburbana. Um indício de que esta-
na Ameríndia, se caracteriza por tem- mos nos negando a ouvir esses sinais
plos, sacerdotes e sacrifícios, e é uma perde a referência dos tempos é a quantidade de pessoas
religião política, no sentido mais am- que estão passando para outras con-
plo dessa palavra. Como é evidente, básica ao povo de fissões cristãs.
nos Evangelhos, Jesus desconhece o
templo e, consequentemente, o sa- Deus” IHU On-Line – A partir dos atuais
crifício em sua proposta do Reino, e desafios que concernem a teologia,
o seu messianismo não é político. Por que sinais de esperança afloram des-
isso o quarto evangelho pode colocar segundo, os americanos se emancipa- de a realidade latino-americana?
na boca de Jesus que chegou a hora ram dos peninsulares. No terceiro, os Pedro Trigo – Essa é a pergunta
em que não se adorará a Deus em ne- ocidentais americanos admitiram no mais importante, já que ver só o mau
nhum templo. Por isso, Mateus coloca poder os das demais etnias, mas com e não ter olhos para ver onde o Espíri-
na boca de Jesus, por duas vezes, para a condição de que deixassem as suas to atua vitoriosamente é não ver com
explicar o seu proceder, a expressão culturas e passassem à ocidental: é o olhos de fé. Onde vejo mais inequi-
de Oseias: “Eu quero misericórdia, e processo da modernização. Esse pro- vocamente o Espírito atuar vitoriosa-
não sacrifícios”. Consequentemente, cesso se estancou quando os ociden- mente é nos que vivem quando não
no Novo Testamento, os sacerdotes tais no poder preferiram acabar com há elementos para se viver, quando
são os pagãos ou os judeus; não há a democracia ou esvaziá-la antes de a vida não tem mais objetivo do que
sacerdotes nas comunidades, mas permitir que mudasse a correlação viver, porque não se pode dar a vida
sim apóstolos, evangelistas, doutores, de forças. Agora, muitos de etnia não por óbvia. Quando essas pessoas (as
epíscopos, presbíteros, diáconos... No ocidental se esforçam para adquirir os que eu conheço são, acima de tudo, as
entanto, no longo prazo, a pressão da bens civilizatórios do Ocidente mun- dos bairros, das favelas, como vocês
religião neolítica é tão forte que a Ceia dializado, mas não para deixar as suas dizem), que passam fome, doenças de
do Senhor passa a fazer, às vezes, do culturas, mas sim para mantê-las com pobres, que não têm trabalho estável
ato do culto que garante a presença excelência. O discernimento mais ele- qualificado, que vivem desprotegidas e
protetora de Deus ao império e, poste- mentar dos sinais dos tempos nos faz desprezadas, que não se deixam mor-
riormente, às nações europeias. A mu- ver que, nesse movimento dos nossos rer nem se degradam para satisfazer
dança atual de época é precisamente povos, está presente o impulso do seus instintos mais elementares, nem
o fim do neolítico. O cristianismo não Espírito do Crucificado Ressuscitado. se convertem em feras que arrebatam
tem nada a perder, porque, no seu nú- Portanto, resistir a ele é resistir a Deus. à força até atropelar os que estão na
cleo constituinte, ele é heterogêneo a O problema para o nosso cristia- frente; quando essas pessoas, no meio
esse esquema. Nesse sentido, o fim da nismo é que a instituição eclesiástica de tudo isso, vivem e se esforçam para
religião que se proclama é unicamente é ocidental americana e, por isso, não viver humanamente e até dão da sua
o da religião neolítica. Seria catastrófi- vive na transcendência e vê como uma pobreza e celebram festas, é que elas
co que, por falta de discernimento, a ameaça a ela o que na realidade (no vivem obedecendo ao impulso do Es-
instituição eclesiástica se identificasse plano de Deus) é a sua salvação. A pírito, Senhor e doador da vida, como
com esse revestimento e se afundasse plêiade de bispos em torno de Medel- diz o Credo. Enquanto houver esses
com ele. lín e de Puebla3 se aliou, sim, com os irmãos nossos, haverá esperança. Mas
eles não aparecem nos mass media.
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povos como pura vivência evangélica,


IHU On-Line – O senhor coloca e os povos captaram isso com alegria Só é possível receber a sua influência
como um dos principais desafios da e esperança. Hoje, isso não aparece aproximando-se deles. Poder ser ami-
atualidade, para o teólogo latino- tão claro ou, dependendo das regiões, gos deles e até formar comunidade
-americano, o discernimento da ter- aparece o contrário. Por isso a dificul- com eles é o maior presente que Deus
ceira época. O que seria essa “ter- dade de tirar a consequência cristã pode dar a alguém. Também há espe-
ceira época” e o que tem a ver com dessa época, que não é outra que a de rança naqueles que se solidarizam até
a teologia? o ponto de que a sua solidariedade os
Pedro Trigo – A primeira épo- configura. Pode-se começar pelo vo-
3 A Terceira Conferência Geral do
ca da nossa região é, obviamente, a Episcopado Latino-Americano realizou-se
luntariado, que pode ser apenas um
ameríndia; a segunda, a dos ibéricos, em Puebla, no período de 27 de janeiro estágio; mas que também pode abrir
peninsulares e americanos, que se a 13 de fevereiro de 1979. Foi convocada caminho na vida de alguém até confi-
pelo Papa Paulo VI, confirmada por João
tornaram com o tempo, por causa das Paulo I e inaugurada pelo Papa João
gurá-la. Essas pessoas têm alegria por-
migrações, em ocidentais america- Paulo II. O tema desta conferência foi que descobriram um tesouro. É claro
nos. No primeiro período, os daqui e “Evangelização no presente e no futuro que tudo isso tem um preço. Mas já se
da América Latina”. (Nota da IHU On-
os de lá compartilharam o poder. No Line)
sabe: a alegria cristã é pascal.

42 SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 402


Confira as publicações do

Instituto Humanitas Unisinos - IHU

Elas estão disponíveis na página eletrônica

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EDIÇÃO 402 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 43


C

Valério Brittos, missionário da ética


e da solidariedade

Por Dênis de Moraes*

Outros colegas já escreveram sobre Após obter o título de doutor e regressar


a significativa contribuição do saudoso Va- ao Rio Grande do Sul, Valério me convidou
lério Cruz Brittos1, símbolo da consciência para uma banca na pós-graduação da Uni-
ética e cidadã, aos estudos de economia sinos. Levou-me para almoçar no bandejão
política da comunicação. Junto-me a eles, do campus e depois para jantar em um res-
sublinhando a irreparável lacuna aberta taurante de São Leopoldo. Falamos bastante
pela sua prematura passagem à dimensão de um dos temas que nos acompanharia ao
dos justos, em 27 de julho último. Gostaria longo dos anos: a necessidade de combater
de dar um breve depoimento sobre outro desvios na vida acadêmica, quando esta se
Valério. O missionário que cumpriu na Ter- fecha em seus muros e se aparta da realida-
ra o papel diferenciado de tentar fortalecer de social, tornando-se prisioneira do espíri-
o humanismo, tanto através do trabalho to de gueto, de mecanismos de competição
intelectual persistente e agregador como estúpida, de narcisismos e de improdutivi-
da capacidade singular de dar afeto e soli- dade intelectual.
dariedade aos outros. Qualidades raras em Aprofundamos o conhecimento du-
um tempo de mercantilização da vida e das rante o curso de especialização por ele co-
relações humanas. ordenado na Universidade do Contestado,
Já no primeiro contato Valério demons- em Concórdia, Santa Catarina. Lá o teste-
trou ser movido pela ideia da partilha. No munhei como cicerone inexcedível, dis-
começo da década de 2000, quando ainda posto a não poupar providências para que
cursava doutorado em Comunicação e Cul- fosse exitoso o módulo que ministrei sobre
tura na Universidade Federal da Bahia, ele teoria crítica da mídia. Na noite inteira de
me enviou e-mail dizendo, em síntese, que conversações em uma cantina italiana,
havia lido escritos meus e neles identificava revelou-se o Valério de carne e osso, ex-
pontos de identidade que desejava estreitar. tremamente preocupado com os destinos

___________________________
* Professor do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense; vem
colaborando ativamente nas atividades do Grupo Cepos. E-mail: <denisdemoraes@yahoo.com.br>.
1 Confira a notícia Morre Valério Cruz Brittos, publicada pelas Notícias do Dia do IHU em 28-06-2012,
em http://bit.ly/QwuHp4. (Nota da IHU On-Line)

44 SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 402


Coordenação: Prof. Dr. Bruno Lima Rocha
WWW.GRUPOCEPOS.NET

individuais e coletivos, fiel à religiosi- Alegre como se transitássemos pela momento de reflexão, pensando o
dade e ecumênico, impregnado pela terra da promissão à procura de senti- que e como fazer. Vamos ver. Só tomo
leveza dos sentimentos genuínos. dos para as nossas jornadas. O sentido todo o cuidado para a mágoa não to-
Quase sem timidez, contou-me sua da solidariedade social em uma qua- mar conta e não fazer o jogo de nos-
história de amor com Tati, iniciada dra histórica caracterizada pela reifica- sos oponentes, permanecendo gene-
pelas ondas do rádio. Ele, comenta- ção e pelo egoísmo. Os sentidos para rosos e acreditando em valores como
rista do programa de debates de uma a atividade ético-política dos intelec- solidariedade e fraternidade, base da
emissora de Pelotas; ela, ouvinte e tuais progressistas, em meio à uni- sociedade mais justa que todos que-
logo simpatizante de suas ideias. O versalização da barbárie capitalista. remos. Também tenho me aproxima-
cruzamento dos dois no corredor de Éramos absolutamente convergentes do muito do movimento social, dialo-
refeitório da Universidade Católica no inconformismo frente às desigual- gando e contribuindo, na medida do
de Pelotas, onde ele lecionava e ela, dades e injustiças numa sociedade em possível. Mas a ‘inserção capitalista’
bem mais jovem, estudava ou tinha que pouquíssimos concentram renda, do Brasil é sedutora e o mundo acaba
estudado. E depois o casamento. riqueza e poder, enquanto as imensas sendo o que vemos”.
Tudo se alterou a partir dali. Se maiorias resistem, subalternizadas, Com a saúde debilitada e esca-
nunca deixamos de dialogar sobre a sobrevivendo com muito menos do vando forças para superar o esgota-
exigência de se revitalizar o pensamen- que o suportável. mento emocional, Valério não desistiu
to crítico frente à ofensiva ideológica Nos últimos meses, Valério me de seguir semeando. De Belém e Te-
despolitizadora do neoliberalismo, in- escrevia desolado com as amarguras resina a Lisboa e Madri, ele incansa-
clusive nas universidades; Concórdia que acumulava em instâncias aca- velmente se dispunha a estimular a
representou o divisor de águas em ter- dêmicas e deprimido em função das reflexão consequente no que definia
mos de afinidades eletivas entre nós. esperanças diminuídas na recupera- como “périplo de viagens”, organizan-
As circunstâncias existenciais atra- ção do pai idoso e adoentado. Como do ou participando de eventos que
vessariam os encontros presenciais e fiz outras vezes, insisti para que ele contribuíssem para a formação crítica
virtuais, a ressaltar a possibilidade de deixasse as funções que dignamente e a democratização da comunicação.
equilíbrio entre conhecimento e vida, exercia para além do magistério e da Mesmo na derradeira internação hos-
de modo a não permitir que a aridez pesquisa a fim de cortar a proximi- pitalar, em estado grave, explicitava
do primeiro sufoque a beleza incon- dade com mesquinharias que o ator- a vontade de continuar trabalhando
trolável da segunda. Ele perguntava- mentavam. Ele dizia concordar comi- pelo bem comum. Seu extraordiná-
-me, frequentemente, sobre minhas go e falava de valores fundamentais rio exemplo de dedicação, honradez,
relações afetivas e os planos para o a preservar. Como neste e-mail de combatividade, lealdade e lucidez
futuro imediato. Ainda me recordo de 21 de maio de 2012: “Como sempre, estará sempre presente onde se faça
um entardecer de final de verão, em você tem toda a razão. Isso tudo é um mais urgente a luta dos homens pela
que caminhamos pelo centro de Porto aprendizado. Creio que estou num emancipação.

EDIÇÃO 402 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 45


Destaques On-Line
Destaques da Semana
Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line no período de 03-09-2012 a 10-09-2012, disponíveis nas Entrevistas do Dia
do sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br).

A desindustrialização precoce: Brasil Hidrelétricas comprometem


perdeu o bonde do desenvolvimento? conservação do Pantanal
Entrevista especial com André Nassif, economista Entrevista especial com Débora Calheiros, bióloga
Confira nas Notícias do Dia de 03-09-2012 Confira nas Notícias do Dia de 06-09-2012
Acesse no link http://migre.me/aB5cq Acesse no link http://migre.me/aB5Ie

A mudança macroeconômica que está ocorrendo “Se quisermos conservar o Pantanal, deveremos
no governo Dilma poderá “reverter o quadro solicitar que os órgãos gestores federais e estaduais
de desindustrialização de modo geral”, mas tomem uma atitude. Infelizmente, só conseguimos
possivelmente o “Brasil já tenha perdido o ‘bonde’ algum resultado através da Justiça”, lastima a bióloga.
no sentido de conseguir dominar setores de alta
tecnologia”, lamenta o economista André Nassif.

“A questão amianto e câncer já está


bem estabelecida”
Poluição: um problema de saúde pública
Entrevista especial com Jefferson de Freitas,
Entrevista especial com Paulo Saldiva, médico médico pneumologista do Centro de Referência
Confira nas Notícias do Dia de 04-09-2012 em Saúde do Trabalhador da Freguesia do Ó,
Acesse no link http://migre.me/aB5gm São Paulo, do Sindicato dos Trabalhadores das
Indústrias Químicas, Farmacêuticas, Plásticas e
“Quando as mesmas empresas propõem produtos de Similares de São Paulo, e professor-instrutor do
padrões ambientais distintos em lugares diferentes, Departamento de Medicina Social da Faculdade
penso que é uma forma de tratar mal as pessoas. É de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo
isso que chamo de racismo ambiental: é uma forma Confira nas Notícias do Dia de 07-09-2012
de oferecer produtos de menor qualidade tomando Acesse no link http://bit.ly/PPr2TL
partido”, assinala o médico.
A fibra do amianto é cancerígena e não há “limite de
tolerância segura para sua utilização”. A “tendência”
é de que a produção e a comercialização diminuam
gradualmente no Brasil, após a “proibição de sua
“A cultura gospel é o jeito de ser utilização em Estados importantes como São Paulo”.
evangélico”
Entrevista com Magali do Nascimento Cunha,
professora na Universidade Metodista de São
Pacote de concessões não é sustentável
www.ihu.unisinos.br

Paulo
Confira nas Notícias do Dia de 05-09-2012
Acesse no link http://migre.me/aB5lJ Entrevista com Carlos Eduardo Young,
economista, leciona na UFRJ, no Instituto de
“Boa parte dos evangélicos pentecostais e Economia Industrial
neopentecostais são grupos que elaboram propostas
Médicas da Santa Casa de São Paulo
Confira nas Notícias do Dia de 10-09-2012
religiosas com uma estreita relação com as demandas Acesse no link http://bit.ly/QewgsG
e as formas de vida do tempo presente”, diz a
pesquisadora. A discussão em torno do pacote de concessões
anunciado pela presidente Dilma em meados do mês
de agosto deste ano não deve ficar restrita à forma e
ao embate privatista. A “questão fundamental” é de
outra ordem: “Qual modelo de desenvolvimento está
associado a esse pacote?”.

46 SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 402


Tema
de
Capa

Destaques
da Semana

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IHU em
Revista
EDIÇÃO 000 | SÃO LEOPOLDO, 00 DE 00 DE 0000 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000 47
IHU em Revista
Agenda da Eventos do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Eventos programados para a semana de 10-09-2012 a


17-09-2012

Tema: A Doutrina de Choque (Mat Whitecross e Michael Winterbottom, Inglaterra,


2009, 79min.)
Evento: Ciclo de Filmes e Debates: Crise do Capitalismo no Cinema
Data: 11 de setembro
Mais informações: http://bit.ly/SNCz6D

Tema: O conceito de abundância em Feyerabend


Evento: IHU Ideias
Data: 13 de setembro
Mais informações: http://bit.ly/SxBi9h

Tema: Módulo 2 – A questão energética no mundo contemporâneo (3 semanas – 15h)


Evento: Ciclo de Estudos em Educação a Distância (EAD) – Sociedade Sustentável
Data: 10-09-2012 a 29-09-2012
Mais informações: http://migre.me/aB4XN

Evento: IHU ideias

Data: 13-09-2012
Palestra: O conceito de abundância em Feyerabend
www.ihu.unisinos.br

Palestrante: Profa. Dra. Anna Carolina Krebs


Pereira Regner – PPG Filosofia / Unisinos
Horário: 17h30min às 19h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU
Mais informações: http://migre.me/aE50K

48 SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 402


Acesse as redes sociais do

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blog twitter

EDIÇÃO 402 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 49


IHU Repórter
IHU em Revista

Sérgio Trombetta
Por Graziela Wolfart e Thamiris Magalhães

“S
ou uma pessoa sensível, curio- incoerência e a cobrança aos outros. Gosto
sa, inquieta, querendo sempre de levar a vida com humor, o que nos salva
aprender cada vez mais. Procuro e dá leveza à vida”. Este é o professor Sérgio
manter os valores que aprendi em casa com Trombetta, da Unidade de Ciências Humanas
meus pais, tentando ser decente nesse mun- da Unisinos. Saiba mais sobre a trajetória pes-
do onde, às vezes, tudo é tão complicado. Sou soal e profissional deste gaúcho, morador de
tranquilo. Procuro sempre ouvir, dialogar e Igrejinha e pai de Emanuele e Sofia.
respeitar os outros. O que me incomoda é a

Origens – Nasci em 1970, em Carreira – Depois de ter conclu- livros, à leitura. Temos que desco-
Planalto/RS, uma pequena cidade ído o curso de Filosofia, comecei a nectar a gurizada das redes sociais,
do norte do estado, com caracterís- carreira no magistério, trabalhando do Facebook, do Twitter, e despertar
tica agrícola muito forte. Sou o quin- com alunos de ensino fundamen- neles o amor pelos livros e a busca
to filho de uma família de seis. Mi- tal e médio. Eu ensinava Filosofia e de uma sabedoria que só se encon-
nha mãe faleceu há três anos e meu História. Era o ano de 1992, nos mu- tra na leitura.
pai continua morando lá. Devido às nicípios de Taquara e Igrejinha. Em
condições precárias da agricultura, 1996 comecei a dar aulas nas Facul- Política – Em Igrejinha tenho
alguns de meus irmãos foram morar dades Integradas de Taquara – Fac- uma atuação política. Sou militan-
na cidade. cat e, em agosto de 1998, entrei na te do Partido Socialista Brasileiro –
Unisinos. Já se vão quase 15 anos de PSB. Nesta eleição estou, de modo
Formação – Comecei meus história aqui, trabalhando com dis- corajoso, concorrendo a vereador.
estudos na minha cidade natal. De- ciplinas de Antropologia, Introdução Acredito na política feita com prin-
www.ihu.unisinos.br

pois continuei a estudar no semi- à Filosofia, e hoje concentro minha cípios, com seriedade.
nário de cidade de Viamão, onde atuação dentro da Antropologia
cursei Filosofia. O Seminário Maior Filosófica. Nas horas livres – Apesar de
de Viamão formou gerações de re- não ter muito tempo livre, gosto de
ligiosos, padres, mas também bons Família – Sou casado com Ja- poder me dedicar à leitura. Também
professores leigos. Hoje ele está in- nice, que é professora na rede mu- gosto de viajar, apreciar a natureza,
corporado à PUCRS. Mais tarde, fiz nicipal de Igrejinha, cidade onde pescar, acampar na beira de um rio
o mestrado em Filosofia na PUCRS moramos. Somos pais da Emanuele, ou de uma lagoa. Não gosto de tele-
e atualmente estou com o doutora- de 12 anos, e da Sofia, de 7. Hoje, visão. Só me sento diante dela para
do em andamento, faltando escre- em meio às novas tecnologias, ten- assistir aos jogos do meu glorioso
ver a tese. tamos ainda educar para o amor aos Grêmio.

50 SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 402


IHU em Revista
Autores – Minhas leituras con- rança. Um de meus sonhos é ver dicional, que mantém seus valores,
templam Paulo Freire, Enrique Dus- minhas filhas crescerem, estudan- mas que acompanha o espírito do
sel, Levinas, Bauman, Edgar Morin, do, tendo uma boa educação. Outro tempo.
Husserl, Heidegger e Leonardo Boff. sonho, em caráter não privado, é de
que tomemos consciência de que é IHU – Recebo a revista e posso
Filme – Gosto de ouvir rádio e preciso cuidar do meio ambiente e dizer que é um dos espaços em que
música. Em relação a filmes sou um pensar com seriedade na questão os grandes temas pertinentes da so-
fracasso, pois não costumo assistir. da sustentabilidade. Também sonho ciedade são discutidos. Sou um pro-
com um mundo em que todos nos pagandista do IHU para meus alunos.
www.ihu.unisinos.br

www.ihu.unisinos.br
Religião – Sou católico frequen- tenhamos acesso à educação e no Não resta dúvida de que o Instituto é
tador e colaborador em minha co- qual consigamos vencer a violência, uma conquista importante como es-
munidade, nas equipes de liturgia. para que possamos viver em uma paço de discussão permanente dos
Mesmo saindo do seminário, conti- sociedade de paz e fraternidade. grandes temas. Para a Unisinos, o
nuo muito ligado à Igreja. Sou mui- IHU é muito importante para o diá-
to adepto à Teologia da Libertação. Unisinos – Um lugar maravilho- logo com a sociedade, inclusive por
A Igreja que aponta para o céu não so, onde construo uma história há intermédio das Notícias do Dia, com
pode esquecer da situação das pes- 15 anos. Isso é parte da minha vida. reprodução de artigos de jornais.
soas que vivem neste mundo. É uma instituição importante para a
região, respeitada perante a socie- Uma frase – “Só o amor é gran-
Sonho – A vida é um sonho. Não dade. Admiro a Unisinos, gosto de de”, de Fernando Pessoa.
há existência sem sonho, sem espe- estar aqui. É uma universidade tra-

EDIÇÃO 402 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 51


Contracapa
IHU em Revista
Hans Jonas e a humanização da tecnociência
Acaba de ser publicada a 176ª edição dos Ca- A versão completa desta edi-
dernos IHU ideias, intitulado “Da magnitude e am- ção estará disponível no sítio do
bivalência à necessária humanização da tecnociên- IHU (www.ihu.unisinos.br) a par-
cia segundo Hans Jonas”. O artigo, de autoria de tir de 4 de outubro de 2012 para
Jelson Roberto de Oliveira, professor no Programa download em formato PDF. Já a
de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Uni- versão impressa dos Cadernos
versidade Católica do Paraná – PUCPR, analisa o IHU ideias pode ser adquirida
diagnóstico realizado por Hans Jonas a respeito do desde já na Livraria Cultural, no
cenário tecnológico moderno no que tange ao au- campus da Unisinos ou pelo
mento do poder tecnocientífico e sua consequente endereço livrariaculturalsle@terra.
alteração no sistema de valores, trazendo novas exi- com.br. Informações pelo telefone
gências éticas. (51) 3590 4888.

Peter Phan e José M. Vigil no XIII Simpósio Internacional IHU


O XIII Simpósio Internacio- Na manhã do último dia do evento, acontecem
nal IHU: Igreja, Cultura e Socie- duas palestras: “A semântica do Mistério da Igreja
dade: A semântica do Mistério no contexto das gramáticas atuais. Uma perspec-
da Igreja no con- tiva inter-religiosa”, com o Prof. Dr. Peter C. Phan,
texto das novas da Georgetown University, Washington D.C./EUA;
gramáticas da e, mais tarde, às 10:45, o Prof. Dr. José Maria Vigil,
civilização tecno- do ASETT/AL, falará sobre “O Concílio Vaticano II 50
científica ocorre anos depois: indicações para uma semântica do mis-
de 2 a 5 de outu- tério da Igreja hoje”. Ambas as atividades se realizam
bro de 2012. no Auditório Central da Unisinos.

Saiba mais em http://bit.ly/KNSrCD

Três concertos de Beethoven


Os amantes da música erudita que participarem Violino e Orquestra em Ré
do XIII Simpósio Internacional IHU: Igreja, Cultura e Maior, opus 61”; do “Con-
Sociedade: A semântica do Mistério da Igreja no con- certo Triplo para Piano,
texto das novas gramáticas da civilização tecnocientí- Violino e Violoncelo em Dó
fica, de 2 a 5 de outubro de 2012, poderão apreciar Maior, opus 56”; e do “Con-
três concertos de Beethoven assistindo à atividade certo para Piano e Orques-
“Semânticas do Mistério na Música. Audição comen- tra nº 5, em Mi bemol Maior,
tada de três concertos de Beethoven”, no dia 02 de – ‘Imperador’ – opus 73”, de
outubro, às 14h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Ludwig van Beethoven.
Companheiros, no IHU.
Mais informações po-
Na ocasião, a Profa. Dra. Yara Caznock, da Unesp/ dem ser obtidas em http://
SP, fará a sua explanação a partir do “Concerto para bit.ly/KNSrCD

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