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RESUMO
A compreensão da experiência dissociativa e das origens dos transtornos dissociativos é difícil
devido à complexidade da questão. As contradições da classificação são decorrentes das
dificuldades de se construir uma teoria da mente abrangente que unifique neurobiologia e
psicodinâmica. Os autores discutem as bases conceituais da dissociação com ênfase na
integração entre neurobiologia e fenomenologia. O papel do aprendizado é amplamente
discutido, assim como as teorias atuais de neodissociação, trauma e sociocognitivismo para os
transtornos dissociativos.
DESCRITORES
Dissociação; transtornos dissociativos; modelos teóricos
ABSTRACT
It is challenging to understand the dissociative experiences and the origins of dissociative
disorders. Contradictions of classification are due to the intrinsic difficulties to build up a theory
of the mind that unifies neurobiology and psychodynamics. The authors discuss the conceptual
basis of dissociation, with emphasis on the integration of neurobiology and phenomenology. The
role of learning is discussed as well as the neodissociative, trauma, and sociocognitive theories
for dissociative disorders.
KEYWORDS
Dissociation, dissociative disorders; theoretical models
Introdução
diferentes usos do termo. Dissociação (ou a "desagregação" de Pierre Janet2,3) implica que dois
ou mais processos mentais não estão associados ou integrados. Sob o ponto de vista do estudo da
personalidade e do campo da psicologia clínica, o Domínio pode ser abrangido sob três
perspectivas diferentes: 1) para caracterizar módulos mentais semi-independentes ou sistemas
cognitivos não acessados conscientemente e/ou não integrados dentro da memória, identidade e
volição (conscientes) do indivíduo; 2) como representação de alterações da consciência do
indivíduo, em situações em que certos aspectos do Eu e do ambiente se desconectam; 3) como
um mecanismo de defesa associado a fenômenos variados, tais como amnésia psicológica,
eliminação de sofrimento físico ou emocional, e não integração crônica da personalidade (como
no transtorno de personalidade múltipla)1.
b) Dissociação como coexistência de sistemas mentais separados que deveriam ser integrados
na consciência, memória, ou identidade do indivíduo (exemplos: identidade – transtorno de
personalidade múltipla; memória – memória dependente de estado ou reencenamento de
memórias traumáticas em situações em que o indivíduo se diz amnésico para o trauma; volição –
estados de transe ou possessão espiritual). Esse conceito de dissociação é datado do começo do
século – Pierre Janet, Freud, Breuer – e embasa a noção de distúrbios dissociativos4.
essa definição de dissociação inclui situações em que o indivíduo experiencia estados distintos
de consciência que envolvam uma separação ou desconexão entre a experiência fenomênica do
ambiente e o ambiente propriamente dito. Assim, uma vítima de estupro pode se desconectar da
situação e descrever ausência de experiências sensório ou emocional, mas vivenciar a situação
como um observador fora do corpo (uma experiência de autoscopia). As experiências de
despersonalização e de desrealização também podem ser classificadas aqui (como vivências de
irrealidade e/ou anestesia mental/corpórea).
Mecanismo de defesa é um conceito teórico que diz respeito ao controle de informações capazes
de provocar ansiedade ou sofrimento. O conceito de dissociação como mecanismo de defesa é
frequentemente utilizado. Para a teoria psicanalítica, esse mecanismo é considerado proposital,
ainda que inconsciente, podendo ser desencadeado por eventos específicos ou se apresentar
como traço de personalidade. Segundo Pierre Janet, o fenômeno não teria origem proposital ou
funcional, mas surgiria quando o indivíduo experiencia emoções "veementes" (inclusive terror)
que levariam ao estreitamento do campo atencional e desorganização das funções usuais de
integração das informações na consciência. Assim, experiências não integradas na identidade e
memória de longo prazo do indivíduo se tornariam "idéia fixas" simples ou identidades
alternativas complexas1,5.
A dissociação como mecanismo de defesa poderia ter uma origem filogenética devido à
adaptação conferida pela experiência dissociativa em situações traumáticas e a seu paralelo a
comportamentos de passividade verificados em animais em situações de trauma inescapável
(com a vantagem de possível conservação de energia em tais situações).
É preciso ressaltar que, na condição de mecanismos de defesa, distinções clínicas entre repressão
e dissociação são ambíguas (os dois mecanismos são na verdade virtualmente indistinguíveis) e
frequentemente baseadas em posicionamentos teóricos em vez de descrições fenomenológicas
claras. Isso é de grande importância na controvérsia atual a respeito da recuperação de memórias
"reprimidas" de abuso6. A seguinte taxonomia do fenômeno dissociativo em eixos patológico-
normal e neurológico-psicológico pode ser útil para sua classificação:
Sintomas dissociativos também fazem parte dos critérios diagnósticos de outros transtornos
Essa divisão dos transtornos dissociativos, assim como a classificação de reações conversivas
como "transtornos somatoformes" é consequência da suposta natureza "ateórica" do DSM-IV,
que busca antes a classificação dos distúrbios pelos seus sintomas do que por mecanismos
subjacentes. Ainda que a ênfase em fenomenologia clínica e nosologia descritiva do sistema
DSM o coloquem como herdeiro da tradição kraepeliniana como base científica da prática
clínica, as contradições no caso dos sintomas dissociativos demonstram os limites da abordagem
"ateórica" da classificação.
Freud originalmente acreditava que todas as suas pacientes histéricas teriam sofrido traumas
sexuais na infância e que seus sintomas de histeria seriam representações simbólicas de suas
experiências traumáticas16. Apenas mais tarde ele reviu essa formulação para argumentar que as
memórias de terem sido seduzidas seriam fantasias, derivadas de desejos infantis inconscientes.
A despeito da mudança de opinião de Freud ter sido crucial para o desenvolvimento da
psicanálise, por ter abordado o inconsciente, as fantasias e os desejos provenientes dele, ao
mesmo tempo ela desviou a atenção do papel de eventos traumáticos no desenvolvimento de
psicopatologia17,18.
modelagem da vida psíquica pelo impacto da realidade no indivíduo. Freud, entretanto, nunca
abandonou totalmente a idéia da significância etiológica de experiências traumáticas. A
construção de experiências dissociativas e de amnésia associada como repressão da memória se
encaixa dentro da visão da dissociação como mecanismo de defesa, no modelo de conflitos
proposto por Freud, porém contradiz estudos sobre neurofisiologia da memória. A distinção
entre fantasias e traumas é de crucial importância (ainda que disputada por diferentes autores)
como a contraposição entre as idéias de Freud e Janet16.
O fenômeno dissociativo pode, portanto, acontecer não apenas como decorrência da mediação
de conflitos entre impulsos e defesas em um modelo (estruturado) de Ego20, mas devido à ação
desencadeadora de experiências da realidade física ou interpessoal sobre complexos ideacionais/
Quão ilusório é o modelo de que processos mentais representam uma entidade unitária? Uma
visão de dissociação se baseia na pressuposição de que os processos mentais representam uma
forma de unidade, que pode ser rompida por um mecanismo especial (a dissociação). Outra
visão de dissociação se baseia na pressuposição de que alguma multiplicidade dos processos
mentais é típica e normal, que níveis diferentes de controle comportamental se sobrepõem,
normalmente coordenados por níveis de funcionamento consciente. Circunstâncias nas quais a
dissociação se torna evidente seriam aquelas em que esse funcionamento superior se
enfraqueceria, liberando níveis subjacentes e expondo a natureza de multiciplidade dos
processos mentais37,38. Conforme discutido acima, o modelo teórico proposto por Freud para a
repressão implicava que o processo de reprimir idéias ou informações para o inconsciente era
um fenômeno ativo ou motivado, enquanto este não era necessariamente o caso da dissociação.
A teoria neodissociativa de E.R. Hilgard12, parcialmente inspirada nas idéias de Janet, sugeria
um predomínio de processo primário no material reprimido (irreal e ilógico). Em contrapartida,
a dissociação diria respeito a um sistema de idéias desconectado da consciência por uma
barreira amnéstica. Esse sistema manteria relações lógicas e realistas entre si. O conceito de
barreira amnéstica implica a coexistência de duas (ou mais) correntes paralelas de consciência.
Em analogia à porção motora, a porção límbica dos núcleos da base poderia codificar hábitos
emocionais, sistemas de resposta emocional subordinados, possivelmente associados a processos
dissociativos e a fenômenos comportamentais como atuação (acting out) e repetição-compulsão.
Isso reforça a importância dos lobos frontais na transformação de memórias em uma estrutura
narrativa (lesões frontais, além de causar disfunção executiva, podem produzir amnésia de fonte
– source amnesia – e confabulação). Em resumo, a fragmentação da informação mnéstica não
aponta para um processo ativo de repressão, mas para um processo ativo de reconstrução da
memória em narrativa por sistemas modulados, hierarquicamente estruturados.
Tal hipótese implica considerar a hipnose, sob o ponto de vista neuropsicológico, como um tipo
de disfunção executiva e consequente liberação de sub-rotinas de comportamento arquivadas em
regiões subcorticais, tais como os núcleos da base. Conforme descrito acima, os núcleos da base
podem participar do arquivamento de memórias de habilidades motoras e sub-rotinas afetivas; é
possível imaginar subrotinas de comportamento afetivo encoberto emergirem em situações
clínicas e experimentais de diminuição da atividade integrativa mental. A descrição de vivências
dissociativas de veteranos de guerra é um bom exemplo do fenômeno. Elas podem ser
desencadeadas pelo barulho de helicópteros civis em veteranos da guerra do Vietnã, por
exemplo. A resposta dissociativa pode incluir sentir-se na selva, reviver a intensidade da
exposição ao perigo com descarga adrenérgica, reduzir qualitativamente o campo vivencial e
experienciar alucinações auditivas e visuais. O contexto existencial também influencia o
desenvolvimento dessas experiências de flashback e dissociação; frequentemente veteranos de
guerra do Vietnã não desenvolvem sintomatologia de distúrbio de estresse pós-traumático logo
após retornar da guerra, mas anos após, quando têm filhos e família, possivelmente conectando
situações de sua vida cotidiana com observações de violência durante a guerra (por exemplo,
relembrando crianças mortas no conflito).A inibição do sistema de supervisão neuropsicológica
leva à emergência de padrões de comportamento aparentemente contraditórios, mas
frequentemente observados em condições de disfunção executiva por distúrbios neurológicos:
uma rigidez comportamental caracterizada por ausência de comportamentos espontâneos,
autogerados (observada em lesões do córtex cingulado, por exemplo), perseverança (observada
em lesões da convexidade frontal, por exemplo) e a tendência de pensamento e comportamento
serem desencadeados por estímulos impróprios e levados a associações irrelevantes (como no
caso de lesões orbitais)50-54.
Como explicar a amnésia hipnótica sem utilizar o modelo de barreira mnéstica? O fenômeno
representa uma alteração na recuperação de informação, não da codificação da memória.
Entretanto, a recuperação de informações arquivadas como memória semântica (ou episódica)
envolve a utilização de operações atribuíveis ao sistema de supervisão, capaz de integrar de
forma narrativa informações arquivadas de forma fragmentada37,60. Portanto, embora muito da
informação não seja arquivado em regiões diretamente responsáveis por atividade supervisora,
esse sistema é responsável pela integração da memória no contexto geral da vida do indivíduo.
Para Shallice57, quando confrontado com um problema não solucionável por sistemas de sub-
rotina, os sistemas de supervisão primeiramente formulariam descrições de como seriam dados
relevantes de memória, caso existentes. A seguir, essas descrições seriam pareadas como os
dados arquivados e aqueles considerados relevantes, recuperados para verificar se realmente o
são. Ciclos de descrição, pareamento e verificação são análogos àqueles observados na
recuperação de material em CD-ROM em sistemas cibernéticos. A interação entre córtex frontal
e formação hipocampal provavelmente inclui a mediação separada das propriedades temporais e
representacionais das cognições na produção de memórias (narrativas) de eventos e a
reconstrução flexível destes. Esse modelo é útil na análise da hipnose, cuja interferência em
sistemas supervisórios criaria vulnerabilidades em processos mnésticos caracterizados pela
formulação de descrições e subsequente verificação (com o envolvimento de estruturas frontais
e temporais mediais, portanto), com a preservação de sub-rotinas mnésticas, tais como o
reconhecimento desencadeado por estímulos ambientais. Amnésia hipnótica característicamente
prejudica "lembrança livre" (free recall) de eventos ao mesmo tempo que preserva
reconhecimento e memória implícita em tarefas como associação de palavras. Indivíduos
hipnotizados também mostram uma verificação ruim de informação, seja por diminuição da
discriminação entre dados corretos e incorretos, seja por atribuição de igual certeza subjetiva a
memórias relativas a fatos reais e a fantasias (source amnesia)61.
social. Essa é a base da teoria sociocognitiva para a hipnose e personalidade múltipla, que define
comportamentos dissociativos como representações ou dramatizações (enactments) responsivas
a modelagem social.
Múltiplas identidades seriam criações sociais, que incluiriam interações sociais com terapeutas
durante o fenômeno hipnótico, quando o indivíduo estaria mais vulnerável à sugestão e à
distorção de memória. Curiosamente, a influência da sugestão na organização e modelagem de
comportamentos grupais já havia sido apontada por Freud67, ainda que em um contexto
diferente.
A teoria de Spanos considera que o transtorno dissociativo de identidade é uma síndrome ligada
à cultura e produzida pela interação entre agentes microssociais (terapeutas) e macrossociais
(mídia, livros, associações de indivíduos com personalidade múltipla). Tais idéias causaram
grande controvérsia, principalmente quando o autor comparou o conceito de personalidade
múltipla a comportamento de bruxaria, identificada e "tratada" (fisicamente eliminada) durante a
Idade Média68. Memórias de abuso infantil em indivíduos com tal diagnóstico seriam
decorrentes de comorbidade, do uso de história de abuso infantil para justificar intervenções
hipnóticas (e induzir personalidades múltiplas) ou de confabulação após exposição a entrevistas
nas quais tais relatos são sugeridos e legitimados.
Spanos62 observa que amnésia não é invariavelmente observada durante a hipnose e/ou em
indivíduos com personalidade múltipla, mas atribui o fenômeno (quando presente) à barreira
amnéstica descrita acima, um fenômeno ativo, também modelado por expectativas sociais. Suas
idéias foram abordadas na literatura, alvo de intensa controvérsia69-71 e contraditas por estudos
empíricos de transtornos dissociativos72-74. Um dos principais argumentos é que, apesar de
modelagem social do comportamento poder ser observada em situações experimentais, nenhum
desenho experimental foi capaz de gerar o transtorno de personalidade múltipla. Infelizmente, o
pesquisador não teve oportunidade de responder a várias críticas devido à sua morte precoce e
trágica.
Embora muito tenha sido escrito sobre aspectos transculturais das experiências dissociativas,
dados clínicos precisos e investigações estruturadas ainda são claramente insuficientes. A
análise transcultural dessas experiências e dos transtornos dissociativos é relevante não apenas
para entender o fenômeno, mas para articular intervenções psicoterapêuticas que possam ser
justificadas em diferentes culturas. Como todo termo psiquiátrico ou psicológico, "dissociação"
é uma tentativa de membros de um grupo social descrever e compreender o mundo em que
vivem. Entretanto, fenômenos dissociativos são construídos de maneira diferente em diferentes
momentos históricos e em diferentes grupos sociais75,76. É importante cautela, portanto, com a
reificação do termo e a aceitação sem crítica de paradigmas ocidentais (europeus)77.
A possessão por uma entidade espiritual e o transtorno de personalidade múltipla podem ser
considerados exemplos de como o processo dissociativo pode ser reconstruído de maneira
completamente diversa em culturas diferentes. O DSM-IV7 separa o fenômeno de possessão não-
patológica, considerada parte normal de práticas culturais e religiosas, da possessão como
transtorno dissociativo em que o indivíduo é tomado por um espírito ou divindade e se apresenta
com sofrimento psicológico e/ou diminuição da adaptação e desempenho social. O diagnóstico é
chamado de transtorno de transe dissociativo, porém codificado com critérios diagnósticos
sugeridos para estudos adicionais em pesquisas subsequentes. O DSM-IV equaciona o fenômeno
possessivo como um estado involuntário de transe, não aceito como parte normal da cultura ou
das práticas religiosas do grupo ao qual o indivíduo pertence. Estados de transe seriam
caracterizados por alterações da consciência e da atenção e associados a comportamentos não-
complexos (por exemplo, movimentos convulsivos, correr, cair). A possessão espiritual seria
associada a comportamentos mais complexos, inclusive com o aparecimento de uma ou mais
identidades alternativas (como conversas coerentes, gestos e expressões faciais características).
possessão espiritual (patológica ou não) é sempre necessária, ainda que o transe seja verificado
frequentemente nestas experiências. A teoria sociocognitivista de Spanos68 pode ser utilizada
para explicar o fenômeno, embora a complexidade do fenômeno da alteração de consciência em
transes seja abordada na literatura79. Da mesma forma que muitos participantes de sessões de
hipnose parecem se apresentar como "bons indivíduos" para procedimento, médiuns recebendo
espíritos podem se apresentar como "bons médiuns" e assumir papéis consistentes com esse
comportamento. Conforme descrito acima, a teoria sociocognitiva pode ser criticada, mas a
analogia entre o fenômeno hipnótico como uma ação dirigida a metas e a mediunidade como
atividade que preenche os requisitos de papéis sociais é sugestiva. Em contraste, indivíduos com
personalidade múltipla se identificariam com papéis contraproducentes veiculados pela mídia
norte-americana, que legitimaria comportamentos negativos.
Conclusão
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Correspondência
Paulo Jacomo Negro Jr.
Commission on Mental Health Services
Community Outreach Branch
2700 Martin Luther King Jr. Ave, S.E.
Allison Bldg 4, 1st. Floor
Washington, D.C. 20032, EUA
Email: pjnegro@pol.net
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