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BH/UFC

R T I G O

ANTROPOLOGIA DA HONRA:
UMA ANÁLISE DAS GUERRAS SERTANEJAS

E ste trabalho se cons-


titui no resumo de
dois capítulos de mi-
nha tese de doutorado em
LUITGARDE OLNElRA

RESUMO
CAVALCANTI BARROS*

Síntese de dois capítulos de minha Tese de Doutorado


(A Derradeira Gesta: Lampião e Nazarenos Guerrean-
do no Sertão), este trabalho analisa lutas no Nordeste,
Elemento importante
para o desvelamento dessa
realidade é a decodificação
da linguagem usada pelos
Ciências Sociais intitulada A travadas no espaço sertanejo, sob a evocação do
contendores no campo da
Derradeira Gesta. Lampião "código de honra". A partir do entendimento da cultura luta e do imaginário serta-
como código, mostra as formas de organização e apro-
e Nazarenos Guerreando priação de símbolos culturais como coragem, valentia, nejo, construído simbolica-
no Sertão, defendida na roubo e honra, por grupos em confronto mortal, os mente com as misérias e
cangaceiros e seus perseguidores. Numa seqüência
PUC-SP. de histórias de valentes que deram sua vida no "cam- glórias dos homens em suas
Utilizo a expressão po da honra" - Sinhô Pereira. José de Souza, a luta relações sociais e com a
entre Lampião (cangaceiro) e Nazarenos (inimigos do
"guerras sertanejas" por cangaço) aparece como a última manifestação da pre- natureza. "Homens de bem"
considerar o conceito de sença desses valores, de herança do cancioneiro me- e "bandidos' têm significa-
dieval, nas lutas que convulsionaram aquela sociedade.
"guerra cangaceira", en- dos absolutamente opostos,
contrado nos livros Guer- correspondendo a formas
Doutora em Ciências Sociais (PUC/SP). Profes-
reiros do Sol e Lampião sora Adjunta de Antropologia da UERJ diferenciadas de ordenação
Além da Versão- Mentiras e articulação de regras, va-
e Mistérios de Angico, es- lores, em códigos culturais.
critos respectivamente por Frederico Pernam- Na literatura de cordel, como nos
bucano de Mello (Pernambuco) e Alcino Alves racontos da memória popular e nos depoi-
Costa (Sergipe), insuficiente para a análise do mentos coletados na pesquisa de campo em
cangaço e outras manifestações da violência mais de trinta anos percorrendo os sertões de
no nordeste sertanejo. Atendo-se exclusiva- Alagoas, Bahia, Sergipe, Pernambuco, Paraíba,
mente às manifestações concretas da violên- Rio Grande do Norte e Ceará, sobressaem o
cia, constantes dos embates nas diferentes tom poético e a estrutura épica das histórias
guerras do sertão nordestino, aqueles autores revi vidas como sagas. O imaginário sertanejo
homogeneízam essas lutas como "guerras deu formato de epopéia às narrativas dos con-
cangaceiras' . frontos entre valentes, mitologizados como
Estudando os elementos mais recorren- símbolos da coragem do homem sertanejo.
tes naquela sociedade, destaca-se a violên- Sem querer reificar a idéia de cultura ser-
cia, uma constante nas lutas sociais não só ali, taneja como algo dado, de forma acabada, na
mas em todas as regiões do país. Entendo o delimitação do tema que analiso, regional, tem-
fenômeno como elemento necessário à ma- poral e conjunturalmente, procuro trabalhar os
nutenção das relações sociais em estruturas termos 'sertão' e 'sertanejo' como categorias
desigualitárias, como ressalta Maria Sílvia de elaboradas por teóricos e literatos, bem como
Carvalho Franco no seu já clássico Homens os elementos invocados por agentes sociais
Livres na Ordem Escravocrata. concretos em seus discursos através dos quais

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se vêem e representam como sertanejos. Este des fazendeiros, também não se constituem
se ver e se autoper ceber e representar é homens do alugado, nem integram o quadro
construido a partir da vivência e manipulação dos totalmente despossuidos que têm sua for-
de valores culturais centenariamente articula- ça de trabalho e sua coragem nas mãos dos
dos nos chamados "códigos da honra sertane- membros da classe dominante".
ja', do apego à terra de seus ancestrais, do
conhecimento do mundo a que pertence. A forma como se construíram e traça-
Essa constatação me remete à proposta ram vivencialmente estratégias de sobrevivên-
de análise sociológica da honra, apresentada por cia, são o fulcro de minhas pesquisas.
Carlos Alberto Dória no texto "A Tradição Hon- Pela incapacidade de ampliarem suas pe-
rada (a honra como tema de cultura na socie- quenas heranças, esses descendentes de ve-
dade iberoamericana)"". Apresentando a lhos troncos familiares apegavam-se a seus
universalização do fenômeno, o autor analisa pedaços de terra, às glórias ancestrais, à defesa
esta categoria tradicionalmente objeto de estu- de um nome honrado, único bem que depen-
do do Direito, da Religião, da Filosofia, etc., a deria exclusivamente de suas açôes, isto é, da
partir das teorias de Hobbes, Montesquieu e forma como se aproximassem ou distanciassem
Weber. Este último autor encontrava importân- dos códigos sociais estabelecidos. Teriam ao
cia dos códigos de honra apenas nas socieda- mesmo tempo que lutar pela sobrevivência,
des estamentais. Mostrando sua importância na numa sociedade em que o trabalho era uma
explicação de diferentes momentos da história ação infamante. Escravos, judeus, ciganos e
dos povos, registra a persistência de códigos de mestiços eram infames, como trabalhadores bra-
honra no que delimitou como ,.sociedade çais e manuais, mesmo brancos e livres perten-
iberoamericana' (Portugal e Brasil), insistindo ciam aos desqualificados sociais.
na necessidade de se fazer "análises de suas a sociedade sertaneja a ameaça maior
várias representações em sociedades concretas". para aqueles produtores desnecessários ao
No período estudado, equilíbrio econômico do sistema era perde-
rem a terra, emigrarem rumo ao desconheci-
fins do século XIX até às primeiras décadas do do, ou caírem na posição de .,trabalhador na
atual, pode-se afirmar que o uso desses códi- terra dos outros'. Essa preocupação se traduz
gos inicialmente monopólio e indicativo de no ditado corrente naquele período: "Onde
"classe superior", nobreza, riqueza e poder, me conhecem, honras me dão, onde não me
tinha-se socializado culturalmente com mu- conhecem, me darão, ou nãot".
danças de significado. Mais de duzentos anos Corolário desse medo de resvalarem
após a constituição da classe dirigente na co- para a camada onde se recrutavam os valen-
lônia, muitos de seus descendentes eram po- tes para as cabroeiras (exércitos privados dos
bres, herdeiros de pequenas propriedades grandes proprietários ou bandos periodica-
originárias de partilhas familiares de antigas mente organizados), a defesa da propriedade
sesmarias. Como muitos homens livres que dos bens de subsistência se fazia com o risco
conseguiram alguma ascensão social, essesgru- de vida, condenando-se como transgressão
pos aparecem no sertão como esboço de uma imperdoável o roubo de gado, cavalo e bode.
insipierue camada média que, não compondo O ladrão se torna o mais odiado da socieda-
O grupo no poder, não tendo importância na de, o desagregador do equilíbrio socioeco-
economia de exportação dos senhores de en- nômico arduamente mantido numa sociedade
genho, nem pertencendo à categoria de gran- periodicamente fustigada pela seca.

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Como forma de puniçao desse crime, Mentir na realidade,
desenvolve-se a violência exacerbada da po- leva dos vícios ao cabo:
pulação em rituais exemplares de perversi- Pois da mentira é o diabo,
dade visando dissuadir os indivíduos dessa E deus é a suma oerdade?
prática. Esse processo é unanimemente san-
cionado como punição de um "pecado mor- Livros como Carlos Magno e os Doze
ta!', tornando-se o transgressor o elemento Pares de França, A História da Donzela
mais infame da comunidade, restando-lhe, se Tbeodora, os feitos de Oliveiros e Ferrabrás,
escapasse da morte - muitas vezes com As Canções de Rolando, são leitura ou escuta
mutilações denunciadoras do roubo, a expul- obrigatória para todos os segmentos SOCIaIS,
são do meio de seu povo onde passa a lhe popularizados como "exemplos' nas "regras
ser negada qualquer pretensão de honra. do bem viver".
Em minhas pesquisas sobre essa região, Em suas fainas cotidianas, nas lutas de
tenho detectado, em situações concretas, a vida e morte por questões econômicas ou de
existência de códigos de honra como honra, o homem sertanejo constrói-se num
imaginário em que transforma as histórias lo-
determinantes das ações individuais e grupais.
cais, regionais, nacionais e seus próprios fei-
Para o entendimento da passagem das idéias
tos, em grandes gestas sertanejas". Nelas se
às ações nessa sociedade, remeto-me, numa
evidencia uma consciência de que as lutas se
perspectiva gramsciana, ao estudo da supe-
desenvolvem não só em função da posse,
restrutura, da religião como forma específica
defesa ou conquista de bens materiais. Valo-
de ideologia, de sua importância na constitui-
res como o cumprimento das leis, a proteção
ção da sociedade sertaneja.
à honra da família - representada pela cora-
Para Carlos Alberto Dória a Igreja de-
gem e o bom comportamento dos homens,
sempenha importante papel, na manipulação
associados à pureza sexual das donzelas e
e publicidade da honra.
recato de viúvas e mulheres casadas - , a
Em fins do século passado surgem as
obediência à Igreja Católica, o respeito aos
gráficas publicando sob forma de livros de
mais velhos e padrinhos; a caridade; a sobrie-
feira (cordéis), antigos "rornanços', cantigas
dade e modéstia no vestir e no falar, o "res-
das gestas medievais, histórias de valentes,
peito ao alheio", articulam-se no código de
divulgando-se também o livro Peregrino da
"honra sertaneja".
América, de frei Bruno Marques Pereira. Es- A partir de meados do século XIX, mis-
crito em versos, é um guia de procedimentos
sionários pregadores como frei Caetano de
sociais, passando a integrar o cancioneiro po- Messina e, posteriormente, o Padre Mestre
pular. Sílvio Romero destaca alguns desses Ibiapina - criador da ordem dos beatos no
versos mais reproduzidos nos cordéis, livros sertão, começam um movimento cultural mu-
de época, na linguagem dos sertanejos, evo- dando o significado infamante de trabalho,
cados em disputas de violeiros e em ques- transformado no elemento principal de
tões resolvidas com sangue: dígnifícação de homens trabalhadores, pobres
mas honrados. Ao mesmo tempo procuram
Honra é jóia, que mais val, direcionar a função da valentia, centenária-
A tudo o mais preferida: mente usada em defesa e preservação dos
Pela honra se arrisca a vida, privilégios dos poderosos, para a "preserva-
Que a honra é vida imortal. ção do bem". Esta categoria bem, enquanto

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idéia abstrata, princípio ético, une, para além onde Lampião e seus bandos implantassem
das diferenças materiais de classe, homens e pelo terror a nova ordem cangaceira no ser-
mulheres de todos os segmentos sociais que tão. Os Ferreira (Virgulino, Antonio Ferreira
dão prioridade a este princípio moral em de- e Livino - estado maior do cangaço), além
trimento da categoria materializante - "ho- dos irmãos João e Ezequiel e do pai José
mem de bem'. Ferreira, já haviam diversificado suas ativida-
Através dessa manipulação cultural asso- des de agricultores. Com o semi-nomadismo
cia-se o novo valor trabalho aos antigos códi- de mascates, tangerinos de tropas de burros
gos de honra, criando-se a categoria" homem bem arreados, faziam o comércio nas feiras e
de bem", na qual procuram-se identificar par- transportavam por frete mercadorias, percor-
celas significativas da população sertaneja, rendo as estradas do sertão de Alagoas,
principalmente pobres e remediados que usam Pernambuco e os Estados vizinhos até os prin-
essa classificação como instrumento de cipais centros comerciais do sertão baiano.
integração social num mundo violentamente Freqüentaram a mesma escola do pro-
hierarquizado. fessor Soriano, pertencente às famílias de
Na história que enfoco, a luta entre Lam- Nazaré, povoado construído em terreno doa-
pião e seus mais ferrenhos inimigos - os do por membros do grande tronco de povoa-
Nazarenos, procuro reconstituir suas histórias mento formado pelas famílias jurubeba, Souza,
de vida, sua inserção na formação social ser- Ferraz, Nogueira e Gomes, em 1917. Os mais
taneja, buscando os elementos estruturais e velhos chefes de família, Gomes Jurubeba e
conjunturais, os símbolos e signos, as oposi- João de Souza Ferraz (Ioão Flor) partilham a
ções dos sistemas de valores pelos quais es- direção do novo arruado e a orientação do
sas duas diferentes facções se guerrearam povo, sob a égide de Nossa Senhora e dos
cruamente por quase vinte anos. códigos culturais de seu mundo. A sede do
Pertencentes aos estratos intermediári- município, Floresta, fora missionada pelo Pa-
os dessa sociedade, Ferreiras e Nazarenos dre Ibiapina que aí plantara as sementes de
eram pequenos proprietários, agricultores, sua ideologia de paz, trabalho e caridade.
comerciantes, artesãos, pedreiros e criadores Naquela época a região vivia o desespe-
de miúças (cabras, ovelhas, porcos e galinhas). ro dos embates entre dois clãs poderosos, Pe-
Possuíam também algumas cabeças de gado, reira (descendente do Barão do Pajeú) e
a principal riqueza do sertanejo remediado, Carvalho. Aquela guerra se arrastando desde
além de cavalos, burros e jumentos. os confrontos na Revolução Praieira, ensan-
Contada como saga guerreira, a história güentava o sertão na disputa dos "grandes' pelo
de suas vidas começa numa das regiões mais poder. Esta saga é considerada a maior gesta
secas do país, num perímetro circunscrito a sertaneja, por cantadores, memoria!istas e in-
três ribeiras de rio: Riacho do Navio, Ribeira formantes sobreviventes daqueles tempos. Pela
do Pajeú e Ribeira do Moxotó, Estado de rígida obediência aos códigos de honra serta-
Pernambuco. neja, Sinhô Pereira, Luís Padre (Pereira) e An-
No desdobramento da guerra contra Lam- tonio da Umburana (Carvalho) transformam-se
pião e todo o cangaço, os Nazarenos se trans- nos heróis, protótipos da cultura sertaneja. O
formam de agricultores e criadores sedentários feito mais glorioso dessa gesta é a luta final
em guerreiros nômades, percorrendo com suas entre Sinhô Pereira e Antonio da Umburana.
volantes legalizadas como polícia pernambu- Gastando a munição num combate de muitas
cana ou baiana, os sete Estados do Nordeste horas sob o cerco de Sinhô Pereira, o derrota-

BARROS, LUITGARDE OLIVEIRA CAVALCANTI. ANTROPOLOGIA DA HONRA: UMA ANÁLISE ... P. 160 A 168 163
do pelas armas é desafiado para uma "luta no Revoltados com a decisão do pai,
ferro frio" pelo inimigo que lhe entregara um Virgulino, Antonio Ferreira e Levino entram
punhal idêntico ao dele próprio. Saltando no armados em Nazaré com os rifles a tiracolo,
terreiro, abaixadas as armas dos Pereira, Anto- numa transgressão aberta dos códigos de "bem
nio da Umburana e Sinhô Pereira amarram-se viver' no povoado. Instado pelo compadre João
pelas faldas das camisas, e assim entrelaçados Flor e o amigo João Gomes a conter os filhos,
para matar e morrer lutam de punhal até a José Ferreira é desmoralizado pela decisão dos
queda do representante dos Carvalho. Glorifi- três mais velhos que rompem com ele o códi-
cando a coragem do inimigo, Sinhô Pereira go de obediência aos pais. Para mostrar a dis-
presta homenagens à valentia de um homem posição de ruptura cultural, Virgulino destrata
morto no "campo da honra', Anos depois, sob João Flor, seu padrinho de São João, e ameaça
a influência do Padre Cícero do juazeirc, Sinhô "mostrar aos cachorros de Nazaré' o que é ser
Pereira e o primo Luís Padre se retiram do homem. Daí só vai sair no fim do dia, exibindo
Nordeste, terminando uma guerra sem vence- as armas e dizendo chistes.
dores nem vencidos. Reconhecida a igualdade Paralelamente Virgulino começa a diver-
de poder e honra, cessam as lutas entre os sificar suas atividades de mascate. Existem re-
dois grupos. Após mais de cinqüenta anos Sinhô gistros de memória em Alagoas, de que já em
Pereira reviu suas plagas, visitou o cenário de 1917, ele pertencia ao bando de cangaceiros,
sua juventude e voltou para Minas Gerais onde os Porcino, que operava no município de Santana
morreu de morte natural aos 75 anos de idade. do Ipanema. Este território estava sob jurisdição
Em suas tentativas de autonomia de "ho- policial do Sargento José Lucena de Albuquerque
mens de bem", José Ferreira e os Nazarenos Maranhão, incumbido pelo governador do Esta-
não emprestam ou alugam sua própria valen- do - o jornalista Costa Rego (diretor do Correio
tia às facções em luta. Seguindo os códigos da Manhã no Rio de Janeiro) - de eliminar o
de respeito à dor e ao ódio das partes envol- cangaço no sertão alagoano, matando assaltan-
vidas, longe de fuxicos, traições e tomadas tes e ladrões de cavalo. Neste período se ins-
de posição a favor de qualquer uma das famí- taura dura repressão em Alagoas, com civis
lias, o sertanejo poderia viver sem ser atingi- participando armados das diligências policiais
do diretamente pelo conflito. numa verdadeira caçada que livrasse o povo
Vivendo no município de Serra Talhada dos assaltos nas estradas e nas fazendas, o que
antiga Vila Bela, os Ferreira e seu vizinho havia submetido a população a um clima de
José Saturnino se envolvem numa disputa ini- sobressalto e terror.
ciada com acusações recíprocas de roubo de A partir de 1919, com o desafio lançado
bode. A questão evolui até os confrontos ar- de entrar sempre armado em Nazaré, desfeito
mados, municiando-se, cada vez mais José o código de respeito ao padrinho, dos mais
Saturnino e os filhos mais velhos de José significativos naquela sociedade, torna-se ques-
Ferreira, Atestando a opção de vida pela não tão de honra para as duas partes executar as
violência, José Ferreira vende a propriedade decisões tomadas, reafirmando os objetivos
e se muda para Nazaré, para a convivência enunciados no conflito verbal entre João Flor,
de seus amigos que também não admitiam Gomes Jurubeba e Virgulino. Derrotar os
gente armada na rua, principalmente nos dias Nazarenos, impondo-lhes a presença armada
de feira quando a cachaça despertava a va- no povoado, toma-se o objetivo último dos três
lentia de muitos, terminando em arruaças as irmãos Ferreira que contratam o primeiro va-
brincadeiras começadas. lente de aluguel para ajudá-Ios na empreitada.

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Colhi depoimento do Sr. Antônio Giló, o povo de Nazaré, espalhando-se, agora em
residente em Olho d'Água do Chicão, distrito Pernambuco, a má fama dos três jovens
de Santana do Ipanema (Alago as) , na época, Ferreira, nas cidades vizinhas, através da soli-
de que em 1919 os Porcino já espalhavam a dariedade de parentesco entrecruzando as fa-
prática de roubos e mortes no sertão alagoano mílias Jurubeba, Ferraz, Lira, Souza, Soriano
até Mata Grande e Água Branca, atravessando Lopes, Nogueira, Gomes, Capistrano, Euzébio,
para os Estados vizinhos. Naquele ano, entre Barbosa, Freire, Alexandre, Marques dos San-
os cabras que se juntavam em sua mercearia, tos, Tomaz, Silva, Leite de Sá, Araújo,
Virgulino começava a se impor como o mais Marcolino, Militão, todas com membros resi-
inteligente e ousado, determinando o com- dentes em Nazaré.
portamento do bando na ausência dos três ir- Esgotados os mútuos desafios verbais,
mãos Porcino (Pedro, Antonio e Manuel). vão-se aprofundando as transformações na
Cangaceiro em Alagoas, em Pernambuco interação social dos envolvidos. Abandonan-
tenta se impor aos antigos amigos quebrando do o propósito de fazer de Nazaré um espaço
a autoridade dos velhos João Flor e Gomes pacífico sem exibição de valentia, sonho dos
jurubeba, procurando substituí-los pela força, mais velhos que fundaram o povoado, os jo-
no mando de Nazaré. Com apenas 21 anos de vens - filhos e sobrinhos de João Flor e Go-
idade, comandando os dois irmãos e um con- mes Jurubeba - se armam e organizam um
tratado, Virgulino destrata João Flor de "cha- corpo coeso disposto a "quebrar a castanha'
leira" e "co ite iro" de Zé Saturnino. O dos Ferreira.
ex-padrinho se defende reafirmando sua au- Com a primeira ameaça de invasão do
toridade baseada nos valores da tradição ser- povoado todos os primos e amigos aderem à
taneja: era um velho, não era homem de empreitada, os mais velhos comandando a
mentira, era seu padrinho. Virgulino, reafir- defesa. No dia do ataque, até uma tia e os
mando os "desaforos ditos', declara que "na- primos de Virgulino, que residiam em Nazaré,
quele dia padrinho atirava em afilhado e se engajam na campanha que arrasta também
afilhado atirava em padrinho 'i? Gomes mulheres e crianças, como municiadoras. Li-
Jurubeba se arma, no que é acompanhado gando-se por parentesco, compadrio ou ami-
pelos três filhos mais velhos de João Flor, zade, identificados pelo princípio de defesa
Euclides, Manuel e Odilon, de mesma idade do espaço geográfico, social e familiar, en-
dos Ferreira, companheiros de adolescência. frentam o inimigo como um bloco único. Apa-
Virgulino e Odilon Flor, poetas repentistas, gando-se as diferenças de nome e origem, se
eram a dupla dos desafios na viola, das pegas vêem na unidade articulada de crenças em
de boi, inseparáveis nas festas da região. João valores e disposição de defesa de seu sistema
Flor, pacífico e mais ponderado que o cunha- de vida. Rechaçando a invasão, passam a ser
do Gomes Jurubeba, procura acalmar os âni- visualizados como "povo de Nazaré', Virgulino
mos repreendendo os parentes, enquanto Zé já é Lampião, apoiado em extensa rede arti-
Ferreira se coloca na frente dos filhos para culada com grandes comerciantes, juízes,
impedir o conflito. desembargadores, policiais corruptos, infor-
Mantendo-se acesa a antiga inimizade mantes pagos regiamente com o produto dos
entre José Saturnino e os Ferre ira , desde Ser- saques em Alagoas, Pernambuco e Paraíba.
ra Talhada, a nova moradia comprada por Zé Preso ao monopólio do tráfico de armas, só
Ferreira se torna também espaço de hostilida- possível aos homens do poder, Virgulino pre-
de e insegurança. Rompera-se a amizade com cisará cada vez mais de recursos para se man-

BARROS, LUITGARDE OLIVEIRA C AVALCANTI. ANTROPOLOGIA DA HONRA: UMA ANÁLISE ... P. 160 A 168 165
ter municiado, o que o leva a ampliar suas Pernambuco" que se fazem conhecer em rodo
zonas de ataque até a Paraíba. o sertão percorrido pelos cangaceiros. Em
Açoitado pela perseguição dos grupos combates sangrentos os inimigos se enfren-
de Nazaré, Lampião tenta uma estratégia de tam com alegria guerreira, desafiando-se num
acordo, propondo aos mais velhos, coman- verdadeiro embate de coragem e ódio. Lam-
dantes das lutas, um pacto de não agressão pião aguça a inteligência em novas estratégi-
com os antigos amigos. A resposta parte de as de combate, com as táticas de emboscada
João Flor: "Digam a Lampião que esta é uma e fuga, lutando somente quando se encontra
questão já repetida e que não podemos mais em vantagem em relação ao inimigo. Frio, foge
confiar nele. A essa altura, qualquer acordo dos confrontos com as volantes pemambucanas,
com os trêsirmãos Ferreira jaz na boca do meu alertando os bandos sobre a dureza de com-
riflet" Em contrapartida Virgulino inicia o pro- bate dos paulatinamente reconhecidos como
cesso sistemático de arrasamento de todo e "Nazarenos'. Estes, atiçados pelo ódio e a ne-
qualquer bem dos inimigos, incendiando-lhes cessidade de ganharem a guerra pela valen-
as propriedades e matando todo "bicho vivo" tia, atiram-se à luta com ímpeto, tornando-se
que encontrasse, desde os homens até as ga- alvos fáceis para as balas cangaceiras, quando
linhas dos terreiros. não punham os inimigos em fuga.
Acossado, o povo de Nazaré se divide Procurando legitimar sua guerra ao
em grupo de defesa e grupo de ataque. Os cangaço, os Nazarenos submetem seus atos
mais velhos ficam na vigilância do lugarejo, aos códigos dos pais que acompanham a mar-
enquanto os jovens se organizam em grupos cha dos filhos, guerreiros nômades afastados
de caça aos inimigos, onde suspeitassem de do trabalho da terra, recomendando-lhes as
sua presença. Propriedades destr u ídas, velhas regras de respeito à lei de Deus e dos
afastados das roças, perdidos os pequenos re- homens.
banhos, avalia-se a impossibilidade de conti- Os Ferreira são os "almadiçoados por
nuação daquela guerra. Deus'; tendo perdido a propriedade na últi-
Associando rendição a extermínio, o ma mudança para o sertão de Alagoas, peri-
povo se decide pela estratégia de legalização goso espaço percorrido pela volante de
daquela guerra particular através do alistamen- Lucena Maranhão. Enquanto a mãe morrera
to dos jovens, em grupos de caça a Lampião, no desespero do exílio, dos sobressaltos e
na polícia de Pernambuco. do empobrecimento, em 1921, menos de
O governador aceita o projeto e conce- um mês depois José Ferreira tombava sob
de o direito de constituição de volantes com- as balas da polícia. Na batida de Lampião,
postas pelos jovens já experimentados nas que saqueara o povoado alago ano Pariconha,
técnicas de guerra móvel de perseguição aos deixando morto um cego de dezesseis anos,
cangaceiros, sob o comando de policiais da Lucena chegou ao suposto refúgio de can-
inteira confiança deles, ou dos que mais se gaceiros cercando a fazenda com pesada
destacavam entre os vindos de Nazaré. Os fuzilaria. Não encontrando resistência, inva-
que não se alistam são incorporados às volan- de a casa encontrando, desarmado, o corpo
tes como contratados, ou participam espontâ- de José Ferreira, ao lado do fazendeiro que
nea e ocasionalmente das lutas, quando vêem lhe dera abrigo, também morto.
os parentes militares necessitados de ajuda. A tradição de violeiros e contadores da
O cangaço passa a enfrentar uma guer- história sertaneja etemizou os feitos daquela
ra sem tréguas, perseguido pelas "volantes de guerra travada entre Ferreiras e Nazarenos em

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sete Estados ensangüentados pela tragédia da maiores combates daquela guerra sertaneja.
violência mais explícita, que arrasta milhares Muitos Nazarenos engajararn-se na vida mi-
de vítimas dos assaltos ou combates. litar, não mais voltando a sua terra, ao modo
Dos Ferreira sobraram João Ferreira e de vida camponesa, depois da morte de Lam-
as irmãs, exterminados Virgulino, Antonio pião. Odilon Flor, único a derramar lágri-
Ferreira, Levino e Ezequiel nos combates mas diante da tragédia de Angicos, morre
da campanha cangaceira. Procurando esca- na Bahia sem voltar à vida de Nazaré.
par da condenação de seu povo por todas Os registros escritos e a memória oral
as violações dos códigos da honra sertaneja, dão conta da fragmentação do mundo serta-
Lampião e os cangaceiros, que matavam nejo em dois blocos irreconciliáveis: de um
para roubar, estupravam e desrespeitavam lado o cangaço - composto de cangacei-
quase todos os valores tradicionais dos "bo- ros, vítimas reais de injustiças, policiais cor-
mens de bem ", criaram o que Frederico ruptos, protetores, coiteiros e simpatizantes.
Pernambucano chama de escudo ético. Di- Neste universo, a valentia é o principal va-
ziam que não roubavam: "requeriam por- lor, não sendo dada importância a possíveis
que precisavam "; viviam aquela "vida de articulações com outros tipos de regras como
desgraça" vingando as injustiças praticadas trabalho ou roubo. Do lado oposto, situam-
contra a honra e as vidas suas ou de seus se os que vêem no cangaço um fenõmeno
familiares. Compungido, Lampião contava a tão destrutivo como a seca, representação
jornalistas e grandes protetores como do mal. A essa categoria pertencem as víti-
Eronildes de Carvalho, governador de mas impotentes ou combatentes, policiais e
Sergipe, que entrara no cangaço, louco de autoridades civis incorruptíveis, homens ri-
desespero, para vingar o assassinato do pai cos que não tinham relações econõmicas e
e da mãe. políticas lucrativas com o cangaceiro. De-
Nazaré perdeu o nome e seus mais fensor do extermínio do cangaço, este seg-
aguerridos defensores. No calor da luta seus mento supra-classe social se via e representava
campos secaram abandonados pelos jovens e era visualizado pela maioria da popula-
que em nome de sua defesa esqueceram a ção como "homens de bem ", muitos deles
esperança do plantio e a alegria da colhei- tombando no "campo da honra ". Defenso-
ta. Sedentos de vingança contra o cangaço, res da valentia a serviço da manifestação
responsável segundo suas crenças por toda dos códigos de honra, para eles os valores
a perversidade da terra, viveram no derra- maiores seriam o trabalho, o respeito ao
mamento do sangue dos irmãos e dos inimi- alheio, a mansidão de trato e a obediência à
gos, com estes entrelaçados pelo terror ou "lei de Deus", numa combinação de elemen-
admiração no imaginário popular: "Lampião tos culturais superados posteriormente pe-
X Odilon Flor", "Ferreiras X Nazarenos", os las transformações operadas naquela
"Flô X os Ferreira" e todas as outras formas sociedade.
de pares de oposições X identificações. En- Lampião e Nazarenos não tiveram o ajus-
terrando onze "Naz arenos", o povo de te final segundo os códigos sertanejos. Confi-
Nazaré chor ou-Ihes a perda que arrastou na ante no pagamento feito a volantes para
tristeza, matando-os, muitos dos mais velhos, descansar em Sergipe, Lampião e seu grupo
como João Flor que não viu nunca mais caem vítimas da traição de seus comparsas
Ildefonso, o filho de dezesseis anos enter- fardados, sem direito a um único gesto de
rado nas terras de Xiquexique, num dos defesa. Os Nazarenos não tiveram o direito

BARROS, LUITGARDE OLIVEIRA CAVALCANTI. ANTROPOLOGIA DA HONRA: UMA ANÁLISE ... P. 160 A 168 167
BH/UFC

tradicional de vingar seus mortos num com- ROMERO, Sílvio. Estudos sobre a Poesia Po-
bate de "homem pra homem" com o inimigo pular no Brasil. Petrópolis: Vozes/Go-
que lhes destruíra a juventude e a paz na verno do Estado de Sergipe, 1977, p.
terra de Nazaré. 5I.
Morto pela traição e não pela valentia lhid., p. 261.
sertaneja, Lampião impede a "derrota do ma!' Canções de Gesta - Latim Gesta, feitos históri-
pela "força do bem", destruindo a importância cos ou ilustres. Cf.:
épica da saga vivida pela defesa ou desestru- - MOISÉS MAUSSAD- Dicionário de Termos
turação dos códigos tradicionais. Os Nazarenos Literários. S. P, Ed. Cultrix, 2 ed., 1978,
não tiveram o prazer da vitória contra o p. 71 a 73. Sobre o tema ler:
cangaço, derrotado pelas forças do governo - BEZERRA DE MENEZES, Eduardo Diatahy
que transformara vingadores em defensores - "Das Classificações Temáticas da Lite-
da ordem. É o fortalecimento dos códigos le- ratura de Cordel: Uma Querela
gais, universalizantes, sobrepondo-se ao di- Inútil", .Revista de Letras, Fortaleza, 13,
reito tradicional de homens lutarem e matarem 0/2), jan/dez, 1988.
em nome da honra. - LAGARDE, André e MICHARD, Laurent -
Moyen Age. Paris, Bordas (collection
textes et literature), 1960.
BIBLIOGRAFIA - MEDEIROS FILHO, Pe. João e FARIA,
Osvaldo Lamartine de. Seridó Séc. XIX
DÓRIA, Carlos Alberto. In. Cadernos Pagu - (Fazendas e Livros). Rio de Janeiro:
Sedução, Tradição, Transgressão. Cam- Fonape Indústria e Comércio Ed., 1987.
pinas: UNICAMP, (2) 1994. - VASSALO, Lígia. O Sertão Medieval- Ori-
Ibid., p. 56. gens Européias do Teatro de Ariano
BARROS, Luitgarde O. Cava1canti. A Derra- Suassuna. Rio de Janeiro: Livraria Ed.
deira Gesta: Lampião e Nazarenos Francisco Alves, 1993.
Guerreando no Sertão. Tese de Dou- FERRAZ, Marilourdes. O Canto do Acauã. Reci-
torado em Ciências Sociais, defendida fe: Ed. Rodovalho de Guias Especiais
na PUCSP em 1997, p. 9. (Exemplar LTDA, 1985.
impresso por computação). Ibid., p. 191.

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