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R T I G O
ANTROPOLOGIA DA HONRA:
UMA ANÁLISE DAS GUERRAS SERTANEJAS
RESUMO
CAVALCANTI BARROS*
BARROS, LUITGARDE OlIVEIRA CAVALCANTI. ANTROPOLOGIA DA HONRA: UMA ANÁLISE ... P. 160 A 168 161
Como forma de puniçao desse crime, Mentir na realidade,
desenvolve-se a violência exacerbada da po- leva dos vícios ao cabo:
pulação em rituais exemplares de perversi- Pois da mentira é o diabo,
dade visando dissuadir os indivíduos dessa E deus é a suma oerdade?
prática. Esse processo é unanimemente san-
cionado como punição de um "pecado mor- Livros como Carlos Magno e os Doze
ta!', tornando-se o transgressor o elemento Pares de França, A História da Donzela
mais infame da comunidade, restando-lhe, se Tbeodora, os feitos de Oliveiros e Ferrabrás,
escapasse da morte - muitas vezes com As Canções de Rolando, são leitura ou escuta
mutilações denunciadoras do roubo, a expul- obrigatória para todos os segmentos SOCIaIS,
são do meio de seu povo onde passa a lhe popularizados como "exemplos' nas "regras
ser negada qualquer pretensão de honra. do bem viver".
Em minhas pesquisas sobre essa região, Em suas fainas cotidianas, nas lutas de
tenho detectado, em situações concretas, a vida e morte por questões econômicas ou de
existência de códigos de honra como honra, o homem sertanejo constrói-se num
imaginário em que transforma as histórias lo-
determinantes das ações individuais e grupais.
cais, regionais, nacionais e seus próprios fei-
Para o entendimento da passagem das idéias
tos, em grandes gestas sertanejas". Nelas se
às ações nessa sociedade, remeto-me, numa
evidencia uma consciência de que as lutas se
perspectiva gramsciana, ao estudo da supe-
desenvolvem não só em função da posse,
restrutura, da religião como forma específica
defesa ou conquista de bens materiais. Valo-
de ideologia, de sua importância na constitui-
res como o cumprimento das leis, a proteção
ção da sociedade sertaneja.
à honra da família - representada pela cora-
Para Carlos Alberto Dória a Igreja de-
gem e o bom comportamento dos homens,
sempenha importante papel, na manipulação
associados à pureza sexual das donzelas e
e publicidade da honra.
recato de viúvas e mulheres casadas - , a
Em fins do século passado surgem as
obediência à Igreja Católica, o respeito aos
gráficas publicando sob forma de livros de
mais velhos e padrinhos; a caridade; a sobrie-
feira (cordéis), antigos "rornanços', cantigas
dade e modéstia no vestir e no falar, o "res-
das gestas medievais, histórias de valentes,
peito ao alheio", articulam-se no código de
divulgando-se também o livro Peregrino da
"honra sertaneja".
América, de frei Bruno Marques Pereira. Es- A partir de meados do século XIX, mis-
crito em versos, é um guia de procedimentos
sionários pregadores como frei Caetano de
sociais, passando a integrar o cancioneiro po- Messina e, posteriormente, o Padre Mestre
pular. Sílvio Romero destaca alguns desses Ibiapina - criador da ordem dos beatos no
versos mais reproduzidos nos cordéis, livros sertão, começam um movimento cultural mu-
de época, na linguagem dos sertanejos, evo- dando o significado infamante de trabalho,
cados em disputas de violeiros e em ques- transformado no elemento principal de
tões resolvidas com sangue: dígnifícação de homens trabalhadores, pobres
mas honrados. Ao mesmo tempo procuram
Honra é jóia, que mais val, direcionar a função da valentia, centenária-
A tudo o mais preferida: mente usada em defesa e preservação dos
Pela honra se arrisca a vida, privilégios dos poderosos, para a "preserva-
Que a honra é vida imortal. ção do bem". Esta categoria bem, enquanto
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do pelas armas é desafiado para uma "luta no Revoltados com a decisão do pai,
ferro frio" pelo inimigo que lhe entregara um Virgulino, Antonio Ferreira e Levino entram
punhal idêntico ao dele próprio. Saltando no armados em Nazaré com os rifles a tiracolo,
terreiro, abaixadas as armas dos Pereira, Anto- numa transgressão aberta dos códigos de "bem
nio da Umburana e Sinhô Pereira amarram-se viver' no povoado. Instado pelo compadre João
pelas faldas das camisas, e assim entrelaçados Flor e o amigo João Gomes a conter os filhos,
para matar e morrer lutam de punhal até a José Ferreira é desmoralizado pela decisão dos
queda do representante dos Carvalho. Glorifi- três mais velhos que rompem com ele o códi-
cando a coragem do inimigo, Sinhô Pereira go de obediência aos pais. Para mostrar a dis-
presta homenagens à valentia de um homem posição de ruptura cultural, Virgulino destrata
morto no "campo da honra', Anos depois, sob João Flor, seu padrinho de São João, e ameaça
a influência do Padre Cícero do juazeirc, Sinhô "mostrar aos cachorros de Nazaré' o que é ser
Pereira e o primo Luís Padre se retiram do homem. Daí só vai sair no fim do dia, exibindo
Nordeste, terminando uma guerra sem vence- as armas e dizendo chistes.
dores nem vencidos. Reconhecida a igualdade Paralelamente Virgulino começa a diver-
de poder e honra, cessam as lutas entre os sificar suas atividades de mascate. Existem re-
dois grupos. Após mais de cinqüenta anos Sinhô gistros de memória em Alagoas, de que já em
Pereira reviu suas plagas, visitou o cenário de 1917, ele pertencia ao bando de cangaceiros,
sua juventude e voltou para Minas Gerais onde os Porcino, que operava no município de Santana
morreu de morte natural aos 75 anos de idade. do Ipanema. Este território estava sob jurisdição
Em suas tentativas de autonomia de "ho- policial do Sargento José Lucena de Albuquerque
mens de bem", José Ferreira e os Nazarenos Maranhão, incumbido pelo governador do Esta-
não emprestam ou alugam sua própria valen- do - o jornalista Costa Rego (diretor do Correio
tia às facções em luta. Seguindo os códigos da Manhã no Rio de Janeiro) - de eliminar o
de respeito à dor e ao ódio das partes envol- cangaço no sertão alagoano, matando assaltan-
vidas, longe de fuxicos, traições e tomadas tes e ladrões de cavalo. Neste período se ins-
de posição a favor de qualquer uma das famí- taura dura repressão em Alagoas, com civis
lias, o sertanejo poderia viver sem ser atingi- participando armados das diligências policiais
do diretamente pelo conflito. numa verdadeira caçada que livrasse o povo
Vivendo no município de Serra Talhada dos assaltos nas estradas e nas fazendas, o que
antiga Vila Bela, os Ferreira e seu vizinho havia submetido a população a um clima de
José Saturnino se envolvem numa disputa ini- sobressalto e terror.
ciada com acusações recíprocas de roubo de A partir de 1919, com o desafio lançado
bode. A questão evolui até os confrontos ar- de entrar sempre armado em Nazaré, desfeito
mados, municiando-se, cada vez mais José o código de respeito ao padrinho, dos mais
Saturnino e os filhos mais velhos de José significativos naquela sociedade, torna-se ques-
Ferreira, Atestando a opção de vida pela não tão de honra para as duas partes executar as
violência, José Ferreira vende a propriedade decisões tomadas, reafirmando os objetivos
e se muda para Nazaré, para a convivência enunciados no conflito verbal entre João Flor,
de seus amigos que também não admitiam Gomes Jurubeba e Virgulino. Derrotar os
gente armada na rua, principalmente nos dias Nazarenos, impondo-lhes a presença armada
de feira quando a cachaça despertava a va- no povoado, toma-se o objetivo último dos três
lentia de muitos, terminando em arruaças as irmãos Ferreira que contratam o primeiro va-
brincadeiras começadas. lente de aluguel para ajudá-Ios na empreitada.
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ter municiado, o que o leva a ampliar suas Pernambuco" que se fazem conhecer em rodo
zonas de ataque até a Paraíba. o sertão percorrido pelos cangaceiros. Em
Açoitado pela perseguição dos grupos combates sangrentos os inimigos se enfren-
de Nazaré, Lampião tenta uma estratégia de tam com alegria guerreira, desafiando-se num
acordo, propondo aos mais velhos, coman- verdadeiro embate de coragem e ódio. Lam-
dantes das lutas, um pacto de não agressão pião aguça a inteligência em novas estratégi-
com os antigos amigos. A resposta parte de as de combate, com as táticas de emboscada
João Flor: "Digam a Lampião que esta é uma e fuga, lutando somente quando se encontra
questão já repetida e que não podemos mais em vantagem em relação ao inimigo. Frio, foge
confiar nele. A essa altura, qualquer acordo dos confrontos com as volantes pemambucanas,
com os trêsirmãos Ferreira jaz na boca do meu alertando os bandos sobre a dureza de com-
riflet" Em contrapartida Virgulino inicia o pro- bate dos paulatinamente reconhecidos como
cesso sistemático de arrasamento de todo e "Nazarenos'. Estes, atiçados pelo ódio e a ne-
qualquer bem dos inimigos, incendiando-lhes cessidade de ganharem a guerra pela valen-
as propriedades e matando todo "bicho vivo" tia, atiram-se à luta com ímpeto, tornando-se
que encontrasse, desde os homens até as ga- alvos fáceis para as balas cangaceiras, quando
linhas dos terreiros. não punham os inimigos em fuga.
Acossado, o povo de Nazaré se divide Procurando legitimar sua guerra ao
em grupo de defesa e grupo de ataque. Os cangaço, os Nazarenos submetem seus atos
mais velhos ficam na vigilância do lugarejo, aos códigos dos pais que acompanham a mar-
enquanto os jovens se organizam em grupos cha dos filhos, guerreiros nômades afastados
de caça aos inimigos, onde suspeitassem de do trabalho da terra, recomendando-lhes as
sua presença. Propriedades destr u ídas, velhas regras de respeito à lei de Deus e dos
afastados das roças, perdidos os pequenos re- homens.
banhos, avalia-se a impossibilidade de conti- Os Ferreira são os "almadiçoados por
nuação daquela guerra. Deus'; tendo perdido a propriedade na últi-
Associando rendição a extermínio, o ma mudança para o sertão de Alagoas, peri-
povo se decide pela estratégia de legalização goso espaço percorrido pela volante de
daquela guerra particular através do alistamen- Lucena Maranhão. Enquanto a mãe morrera
to dos jovens, em grupos de caça a Lampião, no desespero do exílio, dos sobressaltos e
na polícia de Pernambuco. do empobrecimento, em 1921, menos de
O governador aceita o projeto e conce- um mês depois José Ferreira tombava sob
de o direito de constituição de volantes com- as balas da polícia. Na batida de Lampião,
postas pelos jovens já experimentados nas que saqueara o povoado alago ano Pariconha,
técnicas de guerra móvel de perseguição aos deixando morto um cego de dezesseis anos,
cangaceiros, sob o comando de policiais da Lucena chegou ao suposto refúgio de can-
inteira confiança deles, ou dos que mais se gaceiros cercando a fazenda com pesada
destacavam entre os vindos de Nazaré. Os fuzilaria. Não encontrando resistência, inva-
que não se alistam são incorporados às volan- de a casa encontrando, desarmado, o corpo
tes como contratados, ou participam espontâ- de José Ferreira, ao lado do fazendeiro que
nea e ocasionalmente das lutas, quando vêem lhe dera abrigo, também morto.
os parentes militares necessitados de ajuda. A tradição de violeiros e contadores da
O cangaço passa a enfrentar uma guer- história sertaneja etemizou os feitos daquela
ra sem tréguas, perseguido pelas "volantes de guerra travada entre Ferreiras e Nazarenos em
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BH/UFC
tradicional de vingar seus mortos num com- ROMERO, Sílvio. Estudos sobre a Poesia Po-
bate de "homem pra homem" com o inimigo pular no Brasil. Petrópolis: Vozes/Go-
que lhes destruíra a juventude e a paz na verno do Estado de Sergipe, 1977, p.
terra de Nazaré. 5I.
Morto pela traição e não pela valentia lhid., p. 261.
sertaneja, Lampião impede a "derrota do ma!' Canções de Gesta - Latim Gesta, feitos históri-
pela "força do bem", destruindo a importância cos ou ilustres. Cf.:
épica da saga vivida pela defesa ou desestru- - MOISÉS MAUSSAD- Dicionário de Termos
turação dos códigos tradicionais. Os Nazarenos Literários. S. P, Ed. Cultrix, 2 ed., 1978,
não tiveram o prazer da vitória contra o p. 71 a 73. Sobre o tema ler:
cangaço, derrotado pelas forças do governo - BEZERRA DE MENEZES, Eduardo Diatahy
que transformara vingadores em defensores - "Das Classificações Temáticas da Lite-
da ordem. É o fortalecimento dos códigos le- ratura de Cordel: Uma Querela
gais, universalizantes, sobrepondo-se ao di- Inútil", .Revista de Letras, Fortaleza, 13,
reito tradicional de homens lutarem e matarem 0/2), jan/dez, 1988.
em nome da honra. - LAGARDE, André e MICHARD, Laurent -
Moyen Age. Paris, Bordas (collection
textes et literature), 1960.
BIBLIOGRAFIA - MEDEIROS FILHO, Pe. João e FARIA,
Osvaldo Lamartine de. Seridó Séc. XIX
DÓRIA, Carlos Alberto. In. Cadernos Pagu - (Fazendas e Livros). Rio de Janeiro:
Sedução, Tradição, Transgressão. Cam- Fonape Indústria e Comércio Ed., 1987.
pinas: UNICAMP, (2) 1994. - VASSALO, Lígia. O Sertão Medieval- Ori-
Ibid., p. 56. gens Européias do Teatro de Ariano
BARROS, Luitgarde O. Cava1canti. A Derra- Suassuna. Rio de Janeiro: Livraria Ed.
deira Gesta: Lampião e Nazarenos Francisco Alves, 1993.
Guerreando no Sertão. Tese de Dou- FERRAZ, Marilourdes. O Canto do Acauã. Reci-
torado em Ciências Sociais, defendida fe: Ed. Rodovalho de Guias Especiais
na PUCSP em 1997, p. 9. (Exemplar LTDA, 1985.
impresso por computação). Ibid., p. 191.