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Revista Crítica de Ciências Sociais

76 | 2006
Estudos queer: Identidades, contextos e acção
colectiva

Louro, Guacira Lopes, Um Corpo Estranho – Ensaios


sobre sexualidade e teoria queer
Telmo Fernandes

Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/rccs/879
ISSN: 2182-7435

Editora
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

Edição impressa
Data de publição: 1 Dezembro 2006
Paginação: 145-147
ISSN: 0254-1106

Refêrencia eletrónica
Telmo Fernandes, « Louro, Guacira Lopes, Um Corpo Estranho – Ensaios sobre sexualidade e teoria queer
», Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 76 | 2006, colocado online no dia 01 outubro 2012, criado
a 30 abril 2019. URL : http://journals.openedition.org/rccs/879
Revista Crítica de Ciências Sociais, 76, Dezembro 2006: 141-147

Recensões

Binnie, Jon, The Globalization of Sexuality. London: Sage, 00, 1 p.

Jon Binnie tem um longo trabalho no âm- um quadro teórico partilhado entre cen-
bito da Geografia das Sexualidades, parti- tros e periferias.
lhando tal reconhecimento científico com Binnie nota um fracasso genérico dos
nomes como Gill Valentine ou David Bell. estudos gays e lésbicos em tratar o tema do
Neste seu mais recente livro, Binnie retoma nacionalismo, como se fosse mais simples
algumas perplexidades formuladas em The (ou possível) quebrar identidades sexuais
Sexual Citizen: Queer Politics and Beyond do que identidades nacionais. Tal ficará a
(com D. Bell, 2000) ou Pleasure Zones: dever-se a uma estreiteza de perspectivas
Bodies, Cities, Spaces (com R. Holliday, associada à ausência de análises científicas
R. Longhurst e R. Peace, 2001). de sexualidades não-ocidentais, tal como
O objectivo principal de The Globalization assinalado pelas teorias pós-coloniais.
of Sexuality consiste em dar conta da hete- Neste passo, indaga-se: por que razão é o
ronormatividade dos estudos mainstream controlo das sexualidades tão fundamental
sobre globalização e contribuir para uma nos projectos nacionalistas? Binnie acre-
perspectiva queer sobre a temática. Exami- dita que a sexualidade é encarada pelo
nando questões como “De que forma os Estado-nação como ameaça porque não é
fenómenos de nacionalismo, classe e trans- facilmente controlável. Assim, o sado-ma-
nacionalização interagem com as sexuali- soquismo consensual entre pessoas do
dades?” e “Como é que as sexualidades mesmo sexo é muitas vezes criminalizado
constroem ou (re)produzem categorias porque desafia o monopólio do Estado
como Estado-nação ou identidades de sobre a violência. Da mesma forma, o uso
classe?”, Binnie sublinha a centralidade da da violação sexual enquanto arma de
auto-reflexividade como instrumento de guerra revela que o Estado controla vio-
desconstrução crítica e elaboração de no- lentamente o sexo e a sexualidade, ilus-
vas perspectivas queer. trando igualmente a forma como a ideo-
Para Binnie, as teorias da globalização logia do nacionalismo é marcada pela
frequentemente omitem diferenças entre questão da diferença sexual. Binnie pros-
Estados-nação e dentro das fronteiras na- segue questionando-se sobre até que ponto
cionais, ao que acrescem diferenças na os direitos LGBT são utilizados como ins-
forma como as culturas sexuais têm sido trumentos de reprodução de nacionalismos
estudadas. Salienta-se aqui o carácter pio- específicos, investigando as possibilidades
neiro dos EUA, cuja reflexão tem domi- de extrapolação na aplicação de modelos
nado os estudos gays e lésbicos desde conceptuais desenvolvidos num dado país.
sempre, resultando numa sobreposição O facto de a dissidência sexual poder agir
entre discursos anti-gay e a retórica anti- (ou ser lida enquanto agindo) como contra-
-americana. Binnie postula que uma for- poder político também é objecto de aná-
ma de ultrapassar tal armadilha concep- lise, reportando-se ao exemplo da Eslové-
tual é valorizar a produção científica nia e à forma como a queerness parece
desenvolvida fora dos grandes centros ameaçar as fronteiras nacionais. O autor
hegemónicos, mediante a elaboração de revela cepticismo perante o que designa
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por “política de assimilacionismo da liber- queer e o papel do ciberespaço na constru-


tação gay” (p. 25), que considera ser um ção identitária. Enquanto espaço utópico
sinal de domesticação das sexualidades. Na de fuga e autopercepção, o ciberespaço
mesma esteira, Binnie olha para o conceito permite escapar dos constrangimentos diá-
de “nação queer” através das formas como rios ou do “confinamento da heterosse-
a nação é imaginada no âmbito do pensa- xualidade” (p. 42). Consequentemente, é
mento queer, nomeadamente a) o cariz proposto um paralelo entre ciberespaços
americanizado dos discursos queer (veja-se queer e turismo queer na medida em que
Stonewall); b) o nacionalismo percebido ambos partilham um importante papel na
como hipermasculino (i.e., uniformes, dis- transmissão de uma cultura sexual: a Inter-
ciplina, força); c) a reivindicação de mu- net permite a antevisão dos destinos turís-
danças legislativas baseada no que é per- ticos futuros e o ciberespaço converteu-se
cepcionado como característica nacional no novo lugar de cruising, permitindo que
(a tolerância irlandesa ou a liberdade holan- desde muito cedo se experimentem vivên-
desa). Conclui-se que “a nação importa aos cias queer. Contudo, este espaço apresenta
dissidentes sexuais” (p. 29), embora não condicionamentos económicos resultantes
exista nenhuma lógica essencialista na do acesso à tecnologia e linguagem, desi-
forma como a nação é construída dentro gualdades que podem sair reforçadas.
das comunidades queer. Assim, gays e Revisitando o debate da “libra rosa”, Binnie
lésbicas não são meras vítimas dos nacio- defende que cultura e economia são mu-
nalismos, uma vez que beneficiam activa- tuamente constituídas e que qualquer
mente de políticas nacionais de reconhe- análise deve considerar as pessoas LGBT
cimento político. como trabalhadoras, mais que consumi-
Binnie remete-nos para a importância de doras. Na verdade, “a riqueza gay e lésbica
olhar as localidades das práticas discursi- é um dos mitos em torno da economia
vas. Uma vez que a globalização é (re)pro- rosa. […] Uma ênfase excessiva nos con-
duzida de formas distintas de acordo com sumos queer reproduz estereótipos dos
o contexto geográfico, Binnie sugere cau- queers enquanto ricos e invisibiliza o papel
tela face ao conceito “cultura gay global”. de gays e lésbicas enquanto produtores”
O autor inicia então um debate presente (p. 55). Prossegue-se com uma reflexão
em muitos capítulos seguintes: será que o sobre as implicações de classe noutros
reconhecimento de direitos LGBT consti- espaços queer, nomeadamente as associa-
tui um marco das sociedades progressistas, ções LGBT.
espelhando um modelo evolutivo de mo- No capítulo 5, o autor investiga os modos
dernidade? Considerando diferentes mar- como as sexualidades têm sido configura-
cos identitários – etnia, classe e género –, das dentro do pós-colonialismo. Perante a
Binnie detém-se na forma como cada um acusação de que o grau de desenvolvi-
deles promove ou sanciona certos modelos mento societal se mede em função da aber-
de dissidência sexual, o que o conduz à tura sócio-jurídica às questões LGBT,
questão “quais os modelos de sexualidade Binnie relembra que a heteronormativi-
que acabam por ser vistos como autên- dade é um produto de exportação do Oci-
ticos?” (p. 39), seguida de uma reflexão em dente para outros contextos através da
torno do conceito de hibridação. colonização. Por outro lado, assinala-se
Após uma forte crítica a Dennis Altman, o uma tendência para tratar temas LGBT
autor introduz um novo tópico de análise, como se se tratasse de questões étnicas –
nomeadamente o das comunidades virtuais o designado queer folk, cujo perigo reside
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no silenciamento da diversidade étnica Nos capítulos seguintes, debate-se mobili-


dentro da população LGBT, “solificando dade queer (migração e turismo), sida e
categorias mais do que desafiando […] urbanismo, nos seus múltiplos cruzamen-
relações de poder” (p. 69). Binnie insiste tos com globalizações e sexualidades queer:
numa crítica dura ao que designa por ame- migração enquanto processo de “saída do
ricanização dos estudos gays e lésbicos, ao armário” e de experiência de uma cidada-
ponto de identificar uma ocidentalização nia sexual, desejo de anonimato associado
da política gay e lésbica reflectida na trans- aos centros urbanos, asilo político, diás-
formação dos direitos LGBT em platafor- pora queer, cosmopolitismo imaginado
mas de acesso, por exemplo, à Europa (Gay Games), cruising como intervenção
Comunitária. Tal narrativa desenvolvimen- democrática e mega eventos queer (Prides,
tista vai de par com discursos racistas que Marchas, etc.).
opõem, por exemplo, o Zimbabué à Ho- Em suma, mais do que fornecer um enqua-
landa ou à Dinamarca, fazendo recordar dramento teórico acabado, Binnie sublinha
alguma da racionalidade que enformou a a complexidade inerente a qualquer ponto
missão civilizadora patente nas Cruzadas. de vista, defendendo a importância de
Outro conceito complexo é o “armário” valorizar o que se esconde por baixo de
ao transformar as histórias de “coming superfícies aparentemente lisas. Dessa
out” em passos necessários a uma identi- forma o autor permite ao/à leitor/a a cons-
dade e cidadania sexuais bem sucedidas. trução da sua própria posição sobre globa-
Para Binnie, a moralidade do “coming out” lizações queer, ao invés de se converter
mais não é do que uma exportação do mo- num/a consumidor/a passivo/a de escolhas
delo confessional proveniente do judaico- alheias. Neste sentido, este livro constitui
-cristianismo, encerrando num lugar infe- uma ferramenta importante na medida em
rior todos/as aqueles/as que recusarem tal que nos facilita conhecimentos factuais
confissão. Acresce ainda que o conceito de ancorados num questionamento crítico e
“armário” não é universal, carecendo de auto-reflexivo acerca dos pressupostos
uma análise cuidada que considere os não- dominantes nos estudos gays e lésbicos.
-ditos, em jeito de uma sociologia das
ausências das sexualidades queer. Ana Cristina Santos

Butler, Judith, Undoing Gender. New York: Routledge, 00,  p.

O conceito de “gender” de Butler (Gender padrões. Trata-se de uma reflexão crítica


Trouble, 1990) foi um forte ponto de vira- sobre as condições duma vida vivível para
gem nos estudos queer uma vez que torna todos aqueles que desconstroem o género,
radicalmente claro que o género não é uma ao ponto de não serem mais reconhecidos
essência já feita que seria vivenciada pelos como humanos (sendo este o risco mais
sujeitos mas sim um permanente fazer pela radical), ao ponto de a vida lhes ser insu-
sua própria reiteração performativa, que portável, pela violência sobre eles exercida,
poderia subverter ou não os padrões dua- muitas vezes até à morte – sendo a morte
listas hegemónicos. e as condições de possibilidade do seu luto
Undoing Gender tem a particularidade de o horizonte teórico por excelência duma
reflectir radicalmente sobre os riscos que qualquer política do reconhecimento. Res-
correm aqueles que desconstroem esses salvando desde logo que as diferenças na
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posição e no desejo impossibilitam qual- dade física humana pelo globo. Certas vi-
quer universalidade ética, este livro, se bem das serão altamente protegidas, e a violação
que ancorado nas questões queer, continua das suas exigências de santidade será sufi-
o trabalho de Precarious Life: The Power ciente para mobilizar as forças da guerra.
of Mourning and Violence (Butler, 2004), E outras vidas não encontrarão apoio tão
ou seja, uma nova filosofia política do re- rápido e tempestuoso e não serão sequer
conhecimento, centrada na sobrevivência, qualificáveis como dignas de luto” (p. 24).
de inspiração hegeliana: que tudo o que é Quanto à questão específica da descons-
humano não nos deve ser estranho – “Que trução da diferença sexual, o que Undoing
recursos devemos possuir para trazer para Gender traz de novo é uma humildade
a comunidade humana aqueles humanos teórica e existencial. “Tal como eu a en-
que não foram considerados parte do re- tendo, a diferença sexual é o lugar onde
conhecidamente humano? Essa é a tarefa uma questão relativa à relação do biológico
duma teoria e prática democrática radical com o cultural é posta e reposta, onde deve
que procura estender as normas que su- e pode ser posta, mas onde não pode, estri-
portam uma vida viável a comunidades tamente falando, ser respondida. Enten-
previamente sem direitos” (p. 225). Estas dida como um conceito de fronteira […].
novas normas terão de ser elas próprias É portanto, não uma coisa, não um facto,
lugar de rearticulação do humano: “Segu- não uma pressuposição, mas antes uma
ramente, algumas normas serão necessárias exigência de rearticulação que não desa-
para a construção de um tal mundo, mas parece nunca – mas que também nunca
serão normas que ninguém possuirá, normas aparece?” (p. 185/186). Este tipo de humil-
que terão de trabalhar não através da nor- dade teórica seria, aliás, específica dos
malização ou da assimilação racial e étnica, nossos tempos: “[a diferença sexual é] um
mas sim tornando-se lugares colectivos de momento particularmente denso de irre-
trabalho político contínuo” (p. 231). solução na linguagem, um momento que
A rearticulação do humano só pode acon- marca o horizonte contemporâneo da lin-
tecer “[…] no ponto onde os excluídos guagem como nosso.” (p. 177). Quanto à
falam para e a partir dessa categoria.” humildade existencial, ela deve estar
(p. 13). Mas não é fácil conquistar esse lu- apoiada na consciência de que o processo
gar, uma vez que, para falar a partir dele, de incorporação das normas culturais, no-
é necessário ser já reconhecido como hu- meadamente de género, não é totalmente
mano. Daí que o trabalho crítico funda- consciente e controlável: “Há sempre uma
mental esteja em manter a abertura da dimensão de nós mesmos e da nossa rela-
questão pelo humano: “[…] a questão que ção com os outros que não podemos conhe-
colocamos ao Outro é simples e irrespon- cer, e este não-conhecer persiste connosco
dível: ‘quem és tu?’. A resposta violenta é como uma condição da existência, orien-
aquela que não pergunta, e não procura tada pelo que não conhecemos, e não pode-
saber” (p. 35). mos conhecer, e esta ‘pulsão’ (Trieb) é
Central à questão da sobrevivência é a precisamente o que não é nem exclusiva-
questão da vulnerabilidade diferenciada mente biológico nem cultural, mas sempre
dos corpos e a da hierarquização dos lutos: o lugar da sua densa convergência.” (p. 15).
“Reagir à opressão requer que entendamos Esta fuga a si é vista pela autora como um
que as vidas são apoiadas e mantidas dife- lugar do êxtase: “E assim quando falamos
rencialmente, que há formas radicalmente sobre a minha sexualidade ou o meu gé-
diferentes de distribuição da vulnerabili- nero, como fazemos (e como temos que
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fazer), queremos dizer algo complicado cial, entre o biológico e o cultural: “Não
com isso. Nada disso é exactamente uma pretendo sugerir que sinais puramente cul-
possessão, mas ambos são entendidos turais produzem um corpo material, mas
como modos de ser despossuído, modos de somente que o corpo não se torna sexual-
ser para o outro ou, de facto, por meio de mente legível sem esses sinais, e que esses
outro.” (p. 19, itálicos da autora). “Ser sinais são irredutivelmente culturais e ma-
ex-tático significa, literalmente, estar fora teriais ao mesmo tempo.” (p. 87).
de si próprio […]. […] falo daqueles de Não existe, igualmente, nenhuma cristali-
nós que vivem de algumas maneiras para zação simbólica, nomeadamente da dife-
lá de nós próprios, quer seja numa paixão renciação sexual, que garanta um fundo
sexual, numa dor emocional, ou numa imutável ao cultural: “[…] espero mostrar
raiva política. Num certo sentido, o desa- que a distinção entre lei simbólica e social
fio é compreender que tipo de comuni- não é enfim sustentável, que o próprio sim-
dade é composta por aqueles que estão bólico é a sedimentação de práticas sociais
para lá de si próprios” (p. 20, itálicos da […]” (p. 44). Todo o humano é portanto,
autora). Trata-se, portanto, do êxtase re-articulável, lugar de luta política.
como lugar politico, de formação de comu- Esta obra é notável no esforço que faz de
nidade em geral. re-articulação das questões queer com a
Este lugar de humildade crítica, de humil- teoria crítica e a filosofia política, trazendo
dade política, continua ser um lugar de novos contributos a todas estas disciplinas.
trabalho da psicanálise: “O corpo é aquilo Como limite à pujança teórica de Butler
sobre o qual a linguagem tropeça, e o corpo pressinto apenas uma excessiva espirituali-
carrega os seus próprios sinais, os seus pró- zação, provavelmente resultado do seu ju-
prios significantes, de formas que perma- daísmo, que a impede de trabalhar no
necem largamente inconscientes” (p.198). campo dos estudos visuais, o que lhe per-
Portanto, todo o trabalho político de des- mitiria ultrapassar um excessivo dualismo e
construção da diferença sexual e rearti- psicanalização da questão corpo-linguagem.
culação do humano acontece num quadro
de forte indescernibilidade, teórica e viven- Anabela Rocha

Louro, Guacira Lopes, Um Corpo Estranho – Ensaios sobre sexualidade e


teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 00,  p.

Guacira Lopes Louro é uma autora com a Louro procurou desde cedo reflectir sobre
qual os leitores portugueses interessados a forma como o género e a sexualidade se
nas questões de género e da sexualidade cruzam com as políticas educativas, tendo
poderão já estar familiarizados. Existe in- em 1990 criado o GEERGE (Grupo de
clusivamente uma edição portuguesa de Estudos de Educação e Relação de Gé-
um trabalho recente – Currículo, género e nero), que se constitui desde então en-
sexualidade (Porto: Porto Editora, 2000) – quanto núcleo de investigação em torno
que procura sintetizar e cruzar os princi- destas temáticas.
pais interesses de pesquisa desta intelectual Neste trabalho, reflectindo sobre o legado
licenciada em História, doutorada em Edu- do pensamento feminista, a autora acabou
cação e professora da Universidade Fede- por se aproximar das perspectivas pós-
ral do Rio Grande do Sul. Guacira Lopes -estruturalistas, no âmbito das quais se
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produziu a teoria queer, já no início dos de vivências de género e das sexualidades,


anos 1990, sob a influência de autores realidade constatada pela própria autora
como Michel Foucault, Jacques Lacan ou na sua vivência pessoal e profissional. Ao
Jacques Derrida. Sob o olhar queer, mais atribuir-lhes um sentido dentro das possi-
do que pensar sobre a realidade, importa bilidades do conhecimento, permite-se que
reflectir sobre os discursos produzidos estas vivências adquiram um significado
acerca dela e operar uma desconstrução não só hermenêutico mas também político,
dos conceitos utilizados para a descrever. designadamente se pensarmos nas poten-
O objectivo será procurar expor o carácter ciais implicações para o campo educativo.
compulsório que resulta da sua reprodu- Por outro lado, há uma tentativa de supe-
ção permanente, através de várias instân- ração da lógica binária de leitura da reali-
cias, e que se traduz na construção de uma dade, entendendo-se que, mais do que
lógica binária e assimétrica de sexos, gé- servir para compreender, esta tem estado
neros e sexualidades. ao serviço de um processo permanente de
Parece tarefa impossível encontrar quem, classificação e compartimentação da pró-
após longos anos de carreira como cientista pria realidade, definindo fronteiras e hie-
ou intelectual, não se comprometa de rarquias, através de dinâmicas de poder
forma indelével com um património de mais ou menos dissimuladas. O que im-
ideias e conceitos ou escolas de pensa- porta neste processo será não tanto perce-
mento. No trajecto da investigação, re- ber qual a verdade, mas os mecanismos
corre-se a teorias, perfilham-se correntes, pelos quais esta verdade se estabelece
encontra-se conforto em conceitos e ope- enquanto tal.
rações, e tudo se parece alicerçar ou mesmo O corpo, essa entidade que transporta as
refutar a partir de um inabalável, ainda que marcas identitárias (e, como tal, o produto
eventualmente moldável, conjunto de prin- de vários discursos), é também o lugar
cípios orientadores. Para esta autora, con- onde se observa a rebelião da diversidade,
tudo, este constitui um bom momento para e onde se ensaiam tentativas de subversão
questionar o inquestionado e distanciar-se das fronteiras de género. Um exemplo es-
dos modelos tradicionais de pensamento. colhido pela autora neste livro é a figura
Ao mesmo tempo, procura fazer um im- da drag queen, alguém que, na sua opinião,
portante trabalho de tradução de textos e parodia a ideia de essência feminina através
conceitos que de outra forma poderiam daquilo que Judith Butler designaria por
permanecer inacessíveis a um número con- uma elaborada performance de género que
siderável de leitores (também porque denuncia o seu carácter de construção (elo-
parece passar por aqui uma vontade de quente a expressão do homem que traz
dessacralizar o próprio conhecimento). consigo na mala os acessórios para se trans-
Neste livro reúnem-se quatro pequenos formar: “eu me monto e a drag baixa”).
ensaios – “Viajantes pós-modernos”, Parece fazer sentido incluir também neste
“Uma política pós-identitária para a edu- âmbito de subversão inúmeros pequenos
cação”, “’Estranhar’ o currículo” e “Mar- gestos diários de resistência dentro do
cas do corpo, marcas de poder”. Trata-se regime de género e sexualidade domi-
maioritariamente de transcrições de pales- nante, como os que são facilmente obser-
tras, onde algumas questões sobre o corpo váveis diariamente no quotidiano de qual-
e a sexualidade são repensadas à luz de um quer escola.
novo questionamento. Pensar ‘queer’ surge Somos todos queer? Em parte, se o padrão
como uma forma de incluir a pluralidade binário de masculinidade e feminilidade é
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uma prescrição de imagens e atitudes de quanto os homens geralmente se interro-


que permanentemente nos desviamos, in- gam sobre o tipo de performances sexuais,
conscientemente ou como gesto intencio- as mulheres tendem a verbalizar as presu-
nal de insubmissão. Por outro lado, as midas implicações na possibilidade de ma-
políticas identitárias feministas ou gays ternidade ou paternidade. Nessa palestra,
e lésbicas não podem ser enquadradas ressalvou ainda a necessidade de repensar
necessariamente num quadro de leitura as representações acerca dos argumentos
queer; elas têm a seu encargo uma política essencialistas e construtivistas em relação
de afirmação que se inscreve ainda na ló- ao género e à sexualidade. Sendo verdade
gica de pensamento binário que domina a que os primeiros são normalmente associa-
civilização ocidental desde a modernidade. dos a correntes mais conservadoras, eles
Era na mesma lógica que Guacira Lopes têm sido “repescados” para as políticas de
Louro, numa palestra recente sobre Gé- identidade, tornando-se desta forma pro-
nero e Cidadania na Faculdade de Psicolo- gressistas. Por outro lado, dizer que deter-
gia e Ciências da Educação da Universi- minado conceito (por exemplo, a homos-
dade do Porto, entre 9 e 10 de Junho de sexualidade) é uma construção pode
2006, sublinhava a importância da sexua- conduzir a um discurso do tipo corrector
lidade na definição da masculinidade (re- e “retrógrado” (“se conheço a causa, posso
pare-se nas associação da impotência ao tentar eliminá-la”).
fim da masculinidade), agregada à homo- Em suma, estamos perante uma obra poli-
fobia e à misoginia, ao passo que nas mu- ticamente empenhada e cientificamente
lheres a centralidade na definição do ser pertinente, para todos os que gostam de
feminino parecia passar mais pela mater- assumir a incerteza como o método de
nidade. Também poderemos estabelecer trabalho mais adequado para a compreen-
um paralelismo diferencial nas reacções são da volatilidade e diversidade das rea-
sociais à “saída do armário” (a expres- lidades sociais.
são que designa um homossexual que se
assume publicamente enquanto tal): en- Telmo Fernandes

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