Sie sind auf Seite 1von 12

1983

Eixos de desenvolvimento econômico e geração de conflitos

ARTIGO ARTICLE
socioambientais no Brasil: desafios para a sustentabilidade
e a justiça ambiental

Economic development axis and socioenvironmental conflicts


generation in Brazil: challenges to sustainability
and environmental justice

Marcelo Firpo Porto 1


Bruno Milanez 2

Abstract The 1st National Environmental Resumo A realização da 1ª Conferência Nacio-


Health Conference, in December 2009, presents nal de Saúde Ambiental, a ser realizada em dezem-
countless challenges to the field of Public Health. bro de 2009, apresenta inúmeros desafios ao cam-
It debates key concepts as development, sustain- po da Saúde Coletiva. Seus objetivos e eixos ado-
ability, production and consumption processes, tam conceitos-chave como desenvolvimento, sus-
democracy and public policies; advocating for in- tentabilidade, processos de produção e consumo, a
novative, interdisciplinary and intersectorial as- questão da democracia e das políticas públicas, re-
pects of Environmental Health. The Conference velando a abrangência, a novidade e o forte cará-
recovers and articulates important themes for the ter interdisciplinar e intersetorial da Saúde Am-
Public Health, and also indicates the need of re- biental. Ao resgatar e articular temas importantes
flecting the socio-environmental determinants of para a Saúde Coletiva, a conferência aponta para
health at the present time, in order to provide a necessidade de refletirmos sobre os determinan-
progresses in the construction of guidelines and tes socioambientais da saúde na atualidade, de for-
actions to health surveillance and promotion. This ma a avançarmos na construção de diretrizes e
article discusses the characteristics of the Brazil- ações de vigilância e promoção da saúde. Este arti-
ian model of development, its impacts and con- go discute as características do modelo de desen-
flicts within social, environmental and health volvimento brasileiro, seus impactos e conflitos so-
fields. We use theoretical and empirical contri- cioambientais e sanitários. Usamos como referen-
butions from the fields of Ecological Economy and ciais teóricos e empíricos os acúmulos provenien-
Political Ecology, as well as, experiences of coop- tes dos campos da economia ecológica e da ecologia
eration with the Brazilian Network on Environ- política, assim como as experiências de coopera-
mental Justice and several social movements. Two ção junto à Rede Brasileira de Justiça Ambiental e
1
cases are discussed in more detail: the first related diversos movimentos sociais. Dois casos serão apro-
Centro de Estudos da
Saúde do Trabalhador e to agribusiness and the use of pesticides, and the fundados, o do agronegócio e uso de agrotóxicos, e
Ecologia Humana, Escola other about the expansion of the iron and steel a expansão da cadeia siderúrgica no país. Ao final,
Nacional de Saúde Pública,
industry in Brazil. We conclude proposing some elencamos alguns pontos para compor uma agen-
Fiocruz. Rua Leopoldo
Bulhões 1480/302, elements that could be incorporated by a research da da “crise” socioambiental.
Manguinhos. 21041-210 agenda committed to the debate about the “so- Palavras-chave Desenvolvimento, Sustentabili-
Rio de Janeiro RJ.
cioenvironmental crisis”. dade, Conflitos, Justiça ambiental, Metabolismo
marcelo.firpo@ensp.fiocruz.br
2
Instituto de Pesquisa Key words Development, Sustainability, Con- social
Econômica Aplicada. flicts, Environmental justice, Social metabolism
1984
Porto MF, Milanez B

Introdução: os desafios para se construir como referenciais teóricos e empíricos os acú-


sustentabilidade, cidadania e qualidade de mulos provenientes dos campos da economia
vida nos territórios ecológica e da ecologia política nos últimos anos1-
3
, assim como as discussões sobre conflitos soci-
O tema da 1ª Conferência Nacional de Saúde oambientais relacionados aos movimentos por
Ambiental (1ª CNSA), a ser realizada em dezem- justiça ambiental no Brasil, em estreita articula-
bro de 2009, foi definido como “A Saúde Ambien- ção com nossa cooperação técnico-científica junto
tal na cidade, no campo e na floresta: construindo à Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA)4- 6.
cidadania, qualidade de vida e territórios susten- As discussões teóricas e as experiências empí-
táveis”. Trata-se de um evento de grande rele- ricas apontam para a existência de eixos de de-
vância, não somente por ser o primeiro, mas pelo senvolvimento econômico no Brasil ambiental-
caráter transversal e intersetorial do campo ex- mente insustentáveis e socialmente injustos, que
plicitado no objetivo geral, indicando que a pro- intensificam os conflitos socioambientais. Estes
moção da Saúde Ambiental pressupõe a realiza- podem ser definidos pelo embate entre grupos
ção de políticas públicas integradas. sociais a partir de seus interesses e valores envol-
Dentre seus objetivos específicos, a conferên- vendo de forma central questões ecológicas,
cia intenta promover o debate social sobre as re- como o meio biofísico, o uso dos territórios e
lações entre saúde, ambiente e desenvolvimento seus recursos naturais7. Em linhas gerais, nossa
no campo, na floresta e nas cidades, articulando principal argumentação é que a emergência e in-
tais relações com os determinantes socioambi- tensificação dos conflitos no atual contexto bra-
entais, a qualidade de vida e a cidadania. Além sileiro (mas também internacional) decorrem de
disso, os três eixos da 1ª CNSA complementam e uma visão economicista restrita de desenvolvi-
orientam as discussões para temas abrangentes mento. Esta visão é pautada por critérios de cres-
e transversais, sendo eles: (i) desenvolvimento e cimento econômico – visto como alternativa única
sustentabilidade socioambiental no campo, na de progresso – de natureza produtivista e consu-
cidade e na floresta; (ii) trabalho, ambiente e saú- mista. Tal visão desrespeita a vida humana e dos
de: desafios dos processos de produção e consu- ecossistemas, bem como a cultura e os valores
mo nos territórios; (iii) democracia, educação, dos povos nos territórios onde os investimentos
saúde e ambiente: políticas para a construção de e as cadeias produtivas se realizam. A apropria-
territórios sustentáveis. ção dos recursos naturais e espaços públicos para
Os objetivos e eixos da 1ª CNSA adotam con- fins específicos que geram exclusão e expropria-
ceitos-chave que sintetizam alguns dos grandes ção produzem reações por parte de movimentos
desafios estruturais da Saúde Ambiental: desen- sociais, grupos e populações que se sentem atin-
volvimento, sustentabilidade, processos de pro- gidos em seus direitos fundamentais, envolven-
dução e consumo, a questão da democracia e do questões como saúde, trabalho, cultura, pre-
das políticas públicas. Tais conceitos revelam a servação ambiental e uso de espaços, bens e ser-
abrangência, a novidade e o forte caráter inter- viços públicos.
disciplinar da Saúde Ambiental. Eles resgatam e O reconhecimento dos conflitos socioambi-
articulam temáticas importantes para o campo entais na realidade brasileira tem por base nossa
da Saúde Coletiva, ao mesmo tempo em que cooperação com a RBJA, calcada em metodologi-
apontam para a necessidade de refletirmos so- as participativas que resultam em discussões con-
bre os determinantes socioambientais da saúde ceituais e projetos empíricos de investigação nos
na atualidade, de forma a avançarmos na cons- moldes de uma ciência cidadã ou pesquisa-ação.
trução de diretrizes e ações de vigilância e pro- Nesta, os objetivos, o campo empírico, a análise e
moção da Saúde Ambiental. o encaminhamento de possíveis soluções dos pro-
Os objetivos e temas da 1ª CNSA levantam blemas são concebidos de forma coletiva através
algumas perguntas fundamentais: como enten- do diálogo entre pesquisadores e populações ou
dermos o desenvolvimento e a sustentabilidade movimentos sociais ligados aos problemas em
em sua relação com a saúde e a cidadania? Como questão8. Em anos recentes, a articulação de cam-
compreendermos os caminhos de desenvolvimen- pos como a saúde pública, o meio ambiente, a
to que vêm orientando a inserção do Brasil numa educação e os direitos humanos vem produzindo
economia cada vez mais globalizada? Até que pon- variantes para a ação engajada de pesquisadores
to estamos a caminho de uma sociedade mais que usam metodologias participativas, como a
sustentável, saudável e justa, ou o seu contrário? chamada pesquisa baseada na comunidade (com-
Este artigo busca discutir, ainda que de for- munity-based research)9, ou ainda as propostas
ma limitada, estas questões. Para isso, usamos de ciência cidadã (citizen science)10 e ciência de
1985

Ciência & Saúde Coletiva, 14(6):1983-1994, 2009


rua (street science)11. Tais abordagens não tratam rias decorrentes do atual modelo de desenvolvi-
apenas de ampliar as possibilidades de participa- mento global e nacional.
ção das comunidades, populações e movimentos
sociais no conjunto das investigações, mas de con-
textualizar o trabalho científico. Através da for- Desenvolvimento, metabolismo social
mação de comunidades ampliadas de debates ou e conflitos socioambientais segundo
de pesquisa, as metodologias propostas permi- a economia ecológica e a ecologia política
tem combinar descobertas e vivências locais com
procedimentos e conceitos acadêmicos; incorpo- As contribuições da ecologia política e da econo-
rar distintas formas de conhecimentos situados e mia ecológica nos ajudam a compreender pro-
tradicionais, presentes na vivência cotidiana e nas blemas sociais, de saúde e meio ambiente em sua
culturas das populações; delinear situações-pro- relação com os processos e modelos de desenvol-
blemas que preocupam cidadãos e populações fre- vimento econômico de um território, país ou re-
quentemente ausentes das prioridades institucio- gião. A economia ecológica tem como seu precur-
nais e grupos de pesquisa, portanto, gerando ou- sor mais importante o economista Georgescu-
tras formas coletivas de construção de agendas Roegen, cujos estudos entre os anos cinquenta e
de investigação. setenta buscaram integrar os processos econô-
Com base nessas experiências e referenciais micos e os processos de organização da natureza
teóricos, o artigo está organizado da seguinte for- em seus fluxos de energia e materiais na produ-
ma: inicialmente, apresentamos algumas contri- ção da vida, em especial através das implicações
buições da economia ecológica e da ecologia po- das leis da termodinâmica no funcionamento da
lítica para entendermos o atual modelo de de- economia12. Mas foi somente no final dos anos
senvolvimento brasileiro a partir de sua inserção oitenta, quando a crise ambiental passou a fazer
em um comércio internacional com característi- parte da agenda pública internacional, que o cam-
cas injustas socialmente e insustentáveis ambi- po foi oficialmente inaugurado através da criação
entalmente. Para isso, recorreremos ao conceito da International Society of Ecological Economics13.
de metabolismo social para analisar o papel do Uma das principais contribuições de Geor-
comércio internacional injusto na formação de gescu-Roegen e diversos de seus seguidores tem
cadeias produtivas cujos padrões se caracterizam sido a crítica do regime energético da atual soci-
por mecanismos de externalização negativa de edade industrial e de mercado, baseado no uso
custos sociais, ambientais e de saúde, ao mesmo intensivo de combustíveis fósseis não renováveis
tempo em que geram inúmeros conflitos decor- que aceleram processos entrópicos globais no
rentes dos riscos e disputas no uso dos territóri- planeta. As características desse regime energéti-
os onde tais investimentos se realizam. co, aliado aos padrões de produção e consumo
Em seguida, apresentamos quatro grupos de das sociedades capitalistas contemporâneas, ge-
conflitos e injustiça ambiental no Brasil, decor- ram intensos fluxos de materiais e energia in-
rentes de nosso trabalho na análise das reivindi- compatíveis com o metabolismo ecológico e so-
cações e dos documentos que circulam na Rede cial do planeta, sendo, portanto, insustentáveis.
Brasileira de Justiça Ambiental. Nos próximos A consequência é a aceleração de entropias glo-
itens, aprofundamos dois casos particulares de bais, ou seja, processos de desorganização dos
eixos econômicos que vêm marcando o modelo ecossistemas e da própria vida, acentuados pela
de desenvolvimento no Brasil, os quais apresen- emergência dos chamados riscos ecológicos glo-
tam, além da forte tendência de expansão, diver- bais nas últimas décadas, como as mudanças cli-
sos impactos socioambientais e de saúde decor- máticas globais. Portanto, a sustentabilidade da
rentes das cadeias produtivas desses setores. O economia em um planeta com recursos limita-
primeiro caso é o do agronegócio, em especial no dos como a Terra dependeria tanto da mudança
tocante aos impactos relacionados ao uso de dos padrões de produção e consumo como do
agrotóxicos. O segundo se refere à expansão da regime energético, em direção a formas renová-
cadeia produtiva do carvão-ferro-aço diante das veis com base na radiação solar, incluindo os bi-
demandas por aço no mercado internacional. Na ocombustíveis e a energia eólica. Esta compreen-
conclusão final do artigo, buscamos elencar al- são vem influenciando também visões ecomar-
guns pontos considerados importantes na cons- xistas, nas quais a centralidade dos conflitos atu-
trução de uma agenda da “crise” socioambiental, ais deixa de ser vista exclusivamente a partir das
dado o agravamento tanto das incertezas quan- classes sociais, mas, segundo Altvater, ao redor
to das consequências socioambientais e sanitá- da relação social entre homem e natureza, o meio-
1986
Porto MF, Milanez B

ambiente construído, as condições gerais de pro- dutores de commodities do mundo no momen-


dução, o tema da qualidade e quantidade da provi- to, através de mercadorias como a soja, o café, a
são de bens públicos14. Nesta visão, ONGs e no- laranja, a celulose, a carne bovina e de frango, o
vos movimentos sociais, bem como novas práti- minério de ferro, o aço, o alumínio e o petróleo,
cas científicas e institucionais, passam a ter um além da tendência de crescimento de outras com-
papel fundamental na criação de novos rumos modities, como os biocombustíveis.
para o desenvolvimento e a democracia a partir Por detrás da produção de commodities, en-
dos conflitos e crises existentes. contram-se fluxos de energia, materiais e
Outra importante contribuição para enten- distribuição de riquezas decorrentes de um mo-
dermos a insustentabilidade do atual modelo de delo de produção e consumo insustentável e in-
desenvolvimento econômico vem sendo dada pela justo. O comércio internacional de commodities
junção da economia ecológica com a ecologia produz um “metabolismo social” que intensifica
política, sendo um dos seus expoentes o espanhol as desigualdades sociais e a degradação ambien-
Martinez-Alier2. Para este autor, grande parte dos tal, pois se baseia em preços de mercadorias que
conflitos socioambientais pode ser analisada a não incorporam as degradações ambientais, os
partir das contradições existentes no comércio efeitos sociais da concentração de renda e poder
desigual e injusto entre países do atual capitalis- para as populações, tampouco os impactos à
mo globalizado. Ao articular a ecologia política saúde gerados pelas fases mais agressivas da ca-
com a economia ecológica tendo por base a aná- deia produtiva. Quando um país rico importa
lise do metabolismo social, Martinez-Alier forne- matérias-primas baratas no mercado de com-
ce uma importante base teórica para entender- modities, também está importando somente os
mos os conflitos socioambientais enquanto con- benefícios do uso de vários recursos naturais,
flitos distributivos, produtos das desigualdades e como a água, o solo e a biodiversidade de outras
contradições decorrentes dos processos econô- regiões em territórios afastados, que arcam com
micos e sociais de desenvolvimento que formam a degradação ambiental e social provocada pela
“centros” e “periferias” mundiais e regionais. Tais expansão desses investimentos produtivos nos
conflitos, porém, tendem a se radicalizar em situ- países exportadores.
ações de injustiça presentes em sociedades mar- Conflitos socioambientais podem ocorrer no
cadas por fortes desigualdades sociais, discrimi- momento de extração dos recursos naturais, da
nações étnicas e assimetrias de informação e po- geração de energia utilizada ou na produção de
der. Nestes casos, o tema da saúde humana e mercadorias, estando presentes em praticamen-
ambiental se intensifica pela vulnerabilização de te todo o planeta, porém tendem a se intensificar
populações e territórios afetados, e a gravidade nos países exportadores de commodities. Os con-
dos problemas de saúde pública se apresenta flitos podem estar associados a diversas ativida-
como importante bandeira de luta para as popu- des e setores, como a ocupação de terras para a
lações atingidas e movimentos sociais diversos. produção agrícola e animal; a poluição causada
No caso dos contextos vulneráveis de países por fábricas, veículos e depósitos de resíduos; as
de média e baixa renda da América Latina, África minas de ferro, bauxita e urânio; fundições, side-
ou Ásia, os processos de desenvolvimento en- rúrgicas e fábricas de alumínio; extração e refino
contram-se fortemente conectados ao papel des- de petróleo ou de gás; ou ainda a extração de
tes países no mercado globalizado de commodi- material de construção. Outra fonte de conflitos,
ties. Estas podem ser definidas como mercadori- também conhecida como biopirataria, encontra-
as, principalmente gêneros agrícolas, minérios e se na apropriação de recursos genéticos (“silves-
seus processamentos como o ferro, o aço e o tres” ou agrícolas) sem o pagamento adequado
alumínio, que são produzidas em larga escala e ou o reconhecimento da posse de camponeses
comercializadas em nível mundial. O fato de te- ou populações indígenas sobre eles (incluindo o
rem seus preços definidos pelo mercado interna- projeto Genoma Humano)1.
cional, podendo variar substancialmente de um
ano para o outro, além de possuírem baixo va-
lor agregado, faz com que os países especializa- Quatro grupos de conflitos
dos na produção de commodities rurais e metáli- e injustiça ambiental no Brasil
cas sejam, via de regra, mais vulneráveis diante
de um mercado internacional marcado pelo co- A Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA)
mércio injusto entre o “centro” e as “periferias”6. foi lançada no Fórum Social Mundial de 2002 e
No caso do Brasil, somos um dos principais pro- reúne representantes de movimentos sociais, sin-
1987

Ciência & Saúde Coletiva, 14(6):1983-1994, 2009


dicatos, ONGs, entidades ambientalistas, orga- sedia a secretaria executiva da RBJA, vem propi-
nizações afrodescendentes e indígenas, e pesqui- ciando a indexação de documentos que circulam
sadores universitários. As discussões que mar- na RBJA desde o ano de 2002, assim como sua
caram a criação da rede se centraram no fato do disponibilização pública através da internet para
modelo de desenvolvimento dominante no Bra- pesquisas15. O banco temático criado pretende
sil destinar as maiores cargas de danos ambien- dar visibilidade às situações de riscos e tem por
tais às populações socialmente mais vulneráveis, foco os processos políticos de resistência em cur-
pobres e discriminadas da sociedade, o que refle- so na sociedade. Além de fortalecer os movimen-
te a enorme concentração de poder na apropria- tos já existentes, o objetivo do banco é contribuir
ção do território e dos recursos naturais que ca- para que novos atores se estruturem como pro-
racteriza a história brasileira. Os objetivos cen- tagonistas na construção de modelos alternati-
trais da RBJA residem na troca de experiências e vos de desenvolvimento e, dessa forma, assegu-
informações entre movimentos sociais, popula- rem a democracia no acesso aos recursos ambien-
ções, entidades e pesquisadores, assim como a tais e à sustentabilidade de seu uso.
produção e circulação de denúncias e campa- A Tabela 1 apresenta os documentos circula-
nhas15. Trata-se, portanto, de um espaço privile- dos na RBJA disponíveis no banco temático en-
giado para levantar a existência de conflitos socio- tre os anos de 2002 e 2008, classificados de acor-
ambientais no Brasil. do com a tipologia de classificação adotada se-
Desde 2004, um projeto de cooperação técni- gundo a atividade geradora de injustiça ambien-
co-científica da Fiocruz com a FASE, ONG que tal. O número reduzido de casos em 2008 se jus-

Tabela 1. Documentos indexados por atividades geradoras de injustiça ambiental entre 2002 e 2008.

Categorias 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 Total %


Situações relacionadas ao descarte 548 17,89
de rejeitos e poluição
Lixos e resíduos industriais, domésticos e 5 56 26 38 54 38 6 223 7,28
hospitalares
Acidentes químicos ambientais 2 24 3 5 8 8 0 50 1,63
Contaminação por substâncias perigosas 7 61 21 35 38 100 13 275 8,98
Atividades de extração mineral 593 19,36
e produção industrial
Indústria química e do petróleo 7 56 41 67 48 74 18 311 10,15
Mineração, garimpos e siderurgia 4 43 13 42 33 112 35 282 9,21
Atividades de produção agrícola e animal 756 24,68
Madeireiras 18 19 7 21 7 35 14 121 3,95
Monocultura, agrotóxicos e transgênicos 20 42 29 74 120 226 69 580 18,94
Atividades pesqueiras e carnicicultura 9 6 6 15 6 6 7 55 1,80
Preservação ambiental e recursos hídricos 221 7,22
Implantação de áreas protegidas 4 15 2 12 16 8 10 67 2,19
Usos e poluição da água 5 43 10 28 15 37 16 154 5,03
Atividades de infraestrutura 614 20,05
e produção de energia
Telefonia e linhas de transmissão 0 1 0 1 2 5 2 11 0,36
Energias e radiações nucleares 0 5 1 1 9 25 7 48 1,57
Ferrovias, hidrovias, rodovias e gasodutos 6 14 6 26 24 31 7 114 3,72
Termoelétricas 1 4 1 2 7 11 6 32 1,04
Barragens e hidrelétricas 10 57 26 50 52 169 45 409 13,35
Atuação das instituições governamentais 1221 39,86
e da justiça
Atuação da Justiça e do Ministério Público 3 20 25 29 31 69 43 220 7,18
Atuação de entidades governamentais 27 96 52 121 106 408 191 1001 32,68
Total 128 562 269 567 576 1362 489 3953

Fonte: Banco Temático da RBJA.


1988
Porto MF, Milanez B

tifica pela existência de documentos ainda em fase dos à inserção brasileira – e em boa parte latino-
de indexação relativos ao segundo semestre da- americana – no mercado globalizado, através das
quele ano. cadeias de produção de commodities rurais e
A partir da análise de vários documentos e de metálicas, bem como às infraestruturas que dão
nossa experiência com inúmeros casos de confli- suporte às mesmas, como estradas, usinas hi-
tos socioambientais, sugerimos uma tipologia de drelétricas e transposição de bacias hidrográfi-
conflitos que visa retratar sua relação com os cas como a do rio São Francisco. As monocultu-
setores econômicos ou atividades geradoras de ras voltadas ao agronegócio de exportação e à
injustiça ambiental, presente no Quadro 1. O expansão do parque siderúrgico são exemplares
quadro relaciona cada grupo com seus impactos em termos de conflitos socioambientais e gera-
ambientais e à saúde e fornece alguns exemplos ção de riscos para a saúde pública. Ambos en-
de casos presentes em cada tipo. volvem desde casos de trabalho semiescravo que
Os primeiros três tipos de conflitos apresen- lembram os primórdios do capitalismo do sécu-
tados no Quadro 1 estão fortemente relaciona- lo XIX, até riscos tecnológicos que vêm sendo

Quadro 1. Tipologia de conflitos socioambientais no Brasil e exemplos de impactos.

Tipo de conflito Impactos ambientais Exemplos de casos


e setor econômico e de saúde

Uso da terra Monocultura da soja Perda da biodiversidade Expansão da soja no cerrado do Centro-
na produção Monocultura do Destruição de ecossistemas na Oeste, no Piauí e na Amazônia, com
agrícola e eucalipto Amazônia, cerrado, Pantanal, vários movimentos ambientalistas e de
animal Carnicicultura floresta atlântica e manguezais trabalhadores atuando nestas regiões.
Madeireiras Contaminação ambiental do solo, Monoculturas de celulose no Espírito
Pecuária água e alimentos por agrotóxicos Santo, Bahia e Minas Gerais. Rede
Contaminação humana de Alerta contra o Deserto Verde atuando
trabalhadores, moradores e no Espírito Santo e outros estados
consumidores por agrotóxicos Brasil tornou-se em 2008 o principal
Invasão e expulsão de indígenas, consumidor de agrotóxicos do mundo,
quilombolas, extrativistas, com a presença de diversas substâncias
pescadores e pequenos perigosas que não são utilizadas na
agricultores Europa e Estados Unidos.
Concentração da terra, Carcinicultura nos estados do Ceará, Rio
entravando a reforma agrária, a Grande do Norte e Bahia, com casos de
agroecologia e impulsionando violência contra pescadores, populações
êxodo rural indígenas e quilombolas.

Mineração e à Mineração do ferro e Degradação ambiental nas áreas Acidentes ampliados em várias
produção ciclo do aço de mineração plataformas e o incêndio numa favela
industrial, em Mineração da bauxita Poluição atmosférica próximas às em Vila Socó, São Paulo, com
especial e cadeia do alumínio plantas industriais estimativas de mais de quinhentas
indústrias Indústrias químicas e Áreas de risco de acidentes pessoas mortas. Contaminação
químicas e petroquímicas químicos ampliados, com vários ocupacional em diversos setores, como
petroquímicas, Indústria dos resíduos casos nos casos do amianto (minas, fábricas
e aos ciclos de industriais, Acidentes ambientais e de materiais de construção e construção
produção do coprocessamento, ocupacionais em indústrias e civil) e do benzeno (em especial na
aço e do incineração, etc. setores de risco siderurgia, no setor de coqueria). Estes
alumínio Casos de contaminação trabalhadores formaram associações de
ocupacional, principalmente por vítimas bastante atuantes em vários
substâncias químicas perigosas estados. No caso do amianto, a principal
reivindicação é a do banimento, como
já ocorrido na Europa há muitos anos.
continua
1989

Ciência & Saúde Coletiva, 14(6):1983-1994, 2009


transferidos para países como o Brasil, como as de pessoas que um agricultor, além de si mesmo,
pesadas indústrias siderúrgicas e os agrotóxicos seria capaz de alimentar. Na Alemanha, em 1950,
largamente utilizados na produção rural16. esta relação era de 1 para 10, passando a 1 para
17 em 1960, 1 para 33 em 1970 e de 1 para 57 em
1980. Já em 1988, essa relação chegou a 1 para 67,
O caso do agronegócio ampliando-se em 1991 para 1 para 7117. Apesar
e impactos no uso de agrotóxicos do aumento da capacidade de geração de oferta
de alimentos sem precedentes, é importante sali-
O aumento da produtividade agrícola nas últi- entar que o aumento da produtividade agrícola é
mas décadas tem evoluído significativamente, responsável por vários efeitos negativos como,
inclusive no Brasil, justificando para muitos nos- por exemplo, a concentração de terras, renda e
sa vocação como “celeiro” do mundo. A “eficiên- poder político dos grandes produtores através
cia” desse novo modelo de agricultura baseado da ampliação das monoculturas; o desemprego
em novas tecnologias pode ser vista no número e a migração campo-cidade com impactos no

Quadro 1. continuação

Tipo de conflito Impactos ambientais Exemplos de casos


e setor econômico e de saúde

Produção de Indústria do petróleo Derramamentos de óleo e derivados de A construção de grandes hidrelétricas na


energia e Barragens e usinas petróleo por navios e dutos em diversas Região Norte (como Belo Monte no Rio
grandes obras hidrelétricas regiões do país Xingu e Jirau no rio Madeira) vem
de Termoelétricas, usinas Desmatamento, deslocamento de provocando diversas reações por parte de
infraestrutura nucleares, hidrovias, populações e degradação ambiental ambientalistas, comunidades indígenas e
transposição e decorrentes da construção das grandes pequenos agricultores. A construção de
integração de bacias barragens e usinas hidrelétricas grandes barragens no Brasil produziu
hidrográficas Poluição atmosférica por termoelétricas como reação social o Movimento dos
Atingidos por Barragens (MAB).
O derramamento de óleo na Baía de
Guanabara em 2000 provocou vários
inquéritos na Justiça e afetou animais,
pescadores e populações ao redor. Muitos
anos depois, pescadores, organizações
ambientalistas, comunidades em áreas
vulneráveis e pesquisadores discutem os
problemas ainda sem solução da Baía de
Guanabara

Conflitos Poder público, em Falta de oferta imobiliária para população Contaminação em Santo Amaro da
urbanos especial setores de de baixa renda Purificação (BA) por metais pesados em
associados à saneamento, saúde, Expansão de áreas faveladas sem fábrica de chumbo, afetando
moradia e meio ambiente, infraestrutura urbana principalmente a população negra da
infraestrutura moradia, planejamento Desastres, como enchentes e região, caracterizando o caso como de
das cidades urbano, defesa civil e deslizamentos em favelas, e acidentes racismo ambiental
segurança pública químicos ampliados em áreas de risco Contaminação por organoclorados em
Setor imobiliário densamente povoadas aterros clandestinos dos resíduos da
(especulação e falta de Construção de prédios, condomínios e fábrica Rhodia na Baixada Santista,
oferta de casas favelas em áreas contaminadas e gerando importante movimento
populares e dignas) proximidade de lixões organizado atuante na segurança
Indústrias e instalações Falta de saneamento básico (água potável, química e na justiça ambiental (ACPO).
de risco localizadas em esgoto e coleta de lixo)
meio urbano Violência urbana, principalmente em
áreas pobres das periferias atingindo
grupos vulneráveis, como jovens e negros
Especulação mobiliária e estigma contra
populações pobres em áreas “verdes”
1990
Porto MF, Milanez B

caos urbano das metrópoles dos países periféri- países mais pobres20. Esses números são apenas a
cos; o não atendimento às demandas de segu- ponta do iceberg, uma vez que as doenças crôni-
rança alimentar dos países mais pobres, quando cas associadas aos agrotóxicos são difíceis de se-
estes produzem mercadorias agrícolas que não rem estimadas. De acordo com Lyznicki et al.21, os
são alimentos (caso dos biocombustíveis) ou são efeitos dos agrotóxicos na saúde humana, especi-
exportados como commodities para os países almente os crônicos, não têm sido caracterizados
mais ricos e, ainda, o uso intensivo de agrotóxi- adequadamente, pois os efeitos tardios de alguns
cos e agroquímicos, uma das marcas da “mo- desses químicos podem se tornar aparentes após
dernização agrícola” no Brasil. anos de exposição sem que sejam reconhecidos
A Tabela 2 apresenta a evolução do uso de pelos profissionais de saúde e registrados pelos
agrotóxicos entre 1995 e 2005 no mundo e no sistemas de informação.
Brasil. Tendo por referência a venda no mercado O uso dos agrotóxicos é um caso típico de
interno como indicador de uso, pode-se verificar externalidade negativa, já que o produtor agríco-
que, no Brasil, a aplicação de agrotóxicos tem la numa situação de mercado, ao tomar uma
crescido a uma taxa muito superior à expansão decisão quanto à possibilidade, qualidade e quan-
da área plantada, com tendência distinta ao que tidade de uso de agrotóxicos, tende a pensar no
vem ocorrendo no mundo, principalmente nos curto prazo em termos de sua produtividade
países mais ricos. Considerando o preço em dó- marginal e o custo marginal privado do uso. Fre-
lar dos agrotóxicos constante, a quantidade de quentemente, com isso, tende a desprezar os efei-
agrotóxico por hectare mais que dobrou entre o tos para a saúde humana e dos ecossistemas,
período 1995-2005, sendo atualmente o Brasil como a flora, a fauna, a qualidade da água e dos
considerado o principal consumidor de agrotó- solos, assim como os impactos destes para o sis-
xicos no mundo. A principal hipótese para expli- tema de saúde e a sociedade como um todo.
car esses números é a consolidação do modelo Como resultado, temos custos “invisíveis” ou
agroexportador intensivo no uso de insumos sociais, ambientais e sanitários que permanecem
químicos. Apesar de não termos obtido dados ocultos nos preços das mercadorias e terminam
mundiais disponíveis para 2005, a partir da ta- por serem socializados. Enquanto isso, os pre-
bela podemos afirmar que, entre 1995 e 2000, a ços dos produtos no mercado nacional e inter-
intensidade de uso de agrotóxico no Brasil foi nacional sistematicamente não incorporam tais
bem maior que a média mundial. prejuízos, principalmente quando existe um des-
Estima-se que ocorram anualmente aproxi- compasso entre as medidas legislatórias, de fis-
madamente sete milhões de intoxicações por agro- calização e as ações nos campos da educação am-
tóxicos18, sendo os países de baixa e média renda biental e da saúde22. O resultado no Brasil é uma
responsáveis por pelo menos metade destas into- expansão descontrolada no uso de agrotóxicos.
xicações e 75% das mortes por agrotóxicos19. A Por exemplo, Soares e Porto23 encontraram as-
OMS e PNUMA estimam que a taxa de intoxica- sociações positivas entre áreas de monocultura e
ções por agrotóxicos é de dois a três por minuto, contaminações na água e no solo por uso de agro-
com aproximadamente 20.000 mortes de traba- tóxicos.
lhadores expostos todos os anos, a maioria nos Pimentel20 estimou os custos com a saúde nos

Tabela 2. Intensidade de consumo de pesticidas no Brasil e no mundo.


Brasil Mundo
Ano Venda de Área Agrotóxico/ Venda de Área Agrotóxico/
agrotóxicos plantada área agrotóxicos plantada área
(Milhões US$) (Milhões ha) (US$/ha) (Milhões US$) (Milhões ha) (US$/ha)
1995 1.536 51,08 30,06 37.696,00 1.111,79 33,91
2000 2.500 49,98 50,02 32.769,00 1.124,54 29,14
2005 4.244 62,42 67,99 * 1.163,49 *

* Dados não disponíveis


Fontes: Vendas de agrotóxicos no Brasil: MAPA (2007); Vendas de agrotóxicos no mundo: Aspelin (1997); Kiely et al. (2004);
Área plantada no Brasil e no mundo: FAO (2007).
1991

Ciência & Saúde Coletiva, 14(6):1983-1994, 2009


Estados Unidos associados ao uso de agrotóxi- Mesmo passando por fases industriais relativa-
cos, incluindo problemas crônicos e agudos, no mente sofisticadas, tais mercadorias transfor-
valor de 787 milhões de dólares ao ano, sendo mam-se em commodities metálicas de relativo
que os custos com a intoxicação aguda (hospita- baixo valor agregado, sendo seus baixos preços
lização, tratamento e perdas de trabalho) repre- obtidos, em boa parte, pela externalização nega-
sentaram apenas 3,24% desse custo, ao passo que tiva dos custos ambientais, sociais e de saúde
doenças como cânceres e mortes acidentais, cer- decorrentes dos inúmeros impactos destas ca-
ca de 76,76%. Estudo recente22 com dados do deias produtiva16. No campo da saúde do traba-
Estado do Paraná indica a existência de elevados lhador, as doenças causadas pelo benzeno pre-
custos econômicos relacionados às intoxicações sente no gás de coqueria das siderúrgicas vêm,
agudas por agrotóxicos, com estimativas indi- desde os anos oitenta, mobilizando trabalhado-
cando gastos no valor de até 90 milhões de dóla- res, sindicatos e o SUS no seu combate24.
res na safra de 1998, caso os fatores de risco mais O parque siderúrgico brasileiro foi consolida-
relevantes estejam presentes, quais sejam: venda do, como em outros setores da economia (vide
pelo vendedor (e não por agrônomo) sem recei- petróleo e petroquímica) com a entrada maciça
tuário e com uso de agrotóxicos de classe mais de investimentos públicos e a criação de empresas
perigosa. Caso esses fatores de risco não estives- estatais. Com a crise econômica e a perda de inves-
sem presentes, estima-se que os custos decor- timento público, agravada pelas políticas neolibe-
rentes de intoxicação aguda poderiam cair em rais posteriores, várias empresas perderam capaci-
cerca de 86%. Além disso, são principalmente os dade de investimento e passaram por programas
pequenos agricultores os que mais sofrem com a de privatização, no bojo da globalização dos mer-
intoxicação, já que nas grandes propriedades o cados. Desde então, o setor siderúrgico vem pas-
nível de mecanização e o uso orientado por agrô- sando por um intenso processo de reestrutura-
nomos com receituário tende a diminuir bastan- ção, incluindo privatização, fusão e aquisição por
te as situações de exposição mais graves22. grupos internacionais. O desfecho desse processo
atualmente em curso é o forte direcionamento
para o mercado global através da exportação do
O caso da expansão da cadeia produtiva aço semiacabado, sendo paulatinamente reduzi-
carvão-ferro-aço da a importância relativa do mercado doméstico.
Por exemplo, entre 1997 e 2006, as exportações
Outro setor econômico que pode ser considera- brasileiras passaram de 38% para 42% da produ-
do um eixo de desenvolvimento econômico do ção total de aço, sendo que 90% dos produtos
país é a produção e exportação de minérios e, semiacabados foram exportados25, 26.
mais recentemente, a forte expansão da produ- Os preços competitivos do Brasil no merca-
ção de produtos industriais semiacabados como do internacional se baseiam, além da oferta de
o aço e o alumínio. Particularmente, desde os minério, no baixo valor dos salários pagos no
anos noventa, o setor siderúrgico brasileiro vem Brasil27. Porém, tudo indica que nossos preços
passando por um processo de reestruturação que reduzidos e maior competitividade resultem da
intensifica sua inserção no mercado global de aço. externalização negativa dos impactos socioam-
Se antes era o comércio de minério de ferro a bientais não considerados nas cadeias de produ-
principal mercadoria de exportação na cadeia do ção e comercialização, somado à legislação tra-
aço, as últimas duas décadas vêm apontando para balhista e ambiental menos rigorosa nos países
o crescimento da produção de bens semiacaba- periféricos e à necessidade dos países industriali-
dos de aço para os mercados da Europa e dos zados reduzirem suas emissões de CO228.
Estados Unidos. Essa tendência pode ser captada Considerando os indicadores de eficiência le-
pela concentração dos atuais projetos de expan- vantados pelo IBS29, para uma produção de 78
são junto a portos exportadores em várias regi- Mt de aço prevista para o ano de 201230, o setor
ões do país, como os projetos do Porto de Sepe- siderúrgico brasileiro precisaria todo ano captar
tiba no Rio de Janeiro e Pecém no Ceará. Trata- cerca de 1,2 bilhão m3 de água, ou seja, o equiva-
se, portanto, da mesma tendência contemporâ- lente a 75% de toda a água distribuída no Estado
nea indicada no caso dos agrotóxicos de um du- de Minas Gerais no ano 200031. Levando em con-
plo padrão de processos e plantas industriais de sideração ainda a quantidade de eletricidade que
mercadorias que, por serem altamente poluen- as empresas adquiriram externamente em 2006,
tes e eletrointensivas, acabam tendo reduzida sua essa produção de aço exigiria 28,2 mil GWh de
relevância na economia dos países mais ricos. eletricidade, quantidade similar ao consumo re-
1992
Porto MF, Milanez B

sidencial do Estado de São Paulo em 2006. Além que poderão contribuir para uma transição com
disso, os fornos para a produção de ferro gusa e bases mais justas e sustentáveis.
aço consomem uma enorme quantidade de mi- O artigo aprofundou dois eixos econômicos
nério de ferro e carvão, contribuindo para a ge- de especial relevância na atualidade do país: o for-
ração de CO2 e aumentando a contribuição do talecimento do agronegócio com o uso intensivo
país para as mudanças climáticas. Se as empre- de agrotóxicos e a expansão da cadeia produtiva
sas tentassem usar apenas carvão vegetal nas do ferro e aço. Quanto ao primeiro eixo, no Bra-
chamadas “florestas plantadas”, considerado por sil, as intoxicações por agrotóxicos em trabalhado-
isso como “carvão sustentável”, seria necessário res e população em geral podem ser consideradas,
derrubar todo ano 7,7 Mha de eucalipto, o equi- em termos econômicos, como externalidades ne-
valente a 1,7 vezes a área do Estado do Rio de gativas. Os custos com tratamento médico e as-
Janeiro16. Cabe lembrar que as florestas planta- sistência previdenciária recaem sobre os ombros
das são também denominadas de “desertos ver- da sociedade como um todo através dos sistemas
des” por serem monoculturas de árvores e apre- públicos de saúde e previdência social. Ao mesmo
sentarem impactos socioambientais e sanitários tempo, a concentração fundiária nas enormes pro-
semelhantes a qualquer monocultura. priedades rurais das monoculturas dificulta a re-
Os dados apresentados revelam que a socie- forma agrária e gera enormes impactos em ecos-
dade brasileira, frente ao crescimento do setor si- sistemas como a Amazônia e o cerrado, além de
derúrgico, não possui apenas um desafio de mai- agravar a crise urbana. Portanto, uma transição
or sustentabilidade a partir de melhores níveis de agroecológica eficiente em termos de proteção am-
eficiência, gestão ambiental e de responsabilidade biental, segurança alimentar e fixação com quali-
social. Consideramos que melhorias tecnológicas dade de vida de famílias agricultoras é vital para a
e organizacionais com características incremen- mudança do modelo. E isso também implica a
tais nos processos de produção e comércio são construção de novas bases argumentativas e mo-
incapazes de romper com o padrão de metabolis- bilizações políticas que enfrentem as grandes mo-
mo social gerado por tal cadeia, sendo apenas noculturas, a produção e o comércio de agrotóxi-
possível minimizar ou compensar alguns dos cos, assim como valorizem a produção rural regi-
impactos sociais e ambientais gerados pela pro- onal, familiar e agroecológica.
dução de ferro e aço. Sua natureza intensiva em No caso do segundo eixo, a expansão do se-
recursos naturais e poluente torna relevante o tor siderúrgico não é um fato isolado, mas faz
debate sobre a relocalização das etapas mais im- parte de uma tendência mais geral que concentra
pactantes em países como o Brasil. Seus benefíci- no Brasil setores produtivos intensivos em re-
os econômicos e sociais, como a geração de divi- cursos naturais e poluentes voltados para a ex-
sas e empregos no curto prazo, devem ser enfren- portação de commodities. Portanto, possui uma
tados a partir da compreensão do papel do Brasil correspondência com o eixo anterior relaciona-
diante das novas tendências da divisão internaci- do ao agronegócio de exportação, em especial a
onal do trabalho na atual fase do mercado globa- soja, a produção de celulose para as indústrias
lizado, seus riscos e alternativas para novas pos- de papel e, em um futuro próximo, o agrocom-
sibilidades de transição ambientalmente mais sus- bustível. A sociedade precisa se apropriar desta
tentáveis e socialmente mais justas16. discussão e levar o debate para fóruns nos quais
políticas públicas de desenvolvimento regional,
promoção da saúde e proteção ambiental sejam
À guisa de conclusão: elementos discutidas de forma integrada. É necessário que
para uma agenda da crise socioambiental o país debata de forma mais democrática e cons-
ciente qual modelo de progresso e desenvolvi-
Ao longo do artigo, buscamos argumentar que o mento desejamos para as gerações atuais e futu-
modelo de desenvolvimento brasileiro, fortemen- ras para que o crescimento econômico de curto
te baseado na produção de commodities rurais e prazo não se sobreponha às necessidades de saú-
metálicas para o mercado internacional globali- de, justiça e preservação ambiental.
zado, pode ser considerado ambientalmente in- É interessante observar nos dois casos como
sustentável e socialmente injusto. A intensifica- os processos de “duplo padrão” entre países mais
ção dos conflitos socioambientais decorrentes ricos e pobres vêm se comportando. Para alguns
desse modelo, ao mesmo tempo em que inevitá- autores32, 33, o modelo de duplo padrão com pro-
vel, apresenta possibilidades de criação de movi- dutos proibidos nos países ricos sendo exporta-
mentos sociais e espaços públicos de discussão dos para os mais pobres – como no clássico caso
1993

Ciência & Saúde Coletiva, 14(6):1983-1994, 2009


do asbesto – vem sendo substituído, a partir dos serviços e tecnologias associadas que permitam a
anos noventa, pela exportação de processos e plan- melhoria da qualidade de vida e o florescimento
tas industriais. Por exemplo, países como o Bra- cultural; ampliar os esforços de metodologias
sil, China e Índia assumiram papéis de destaque participativas na elaboração e monitoramento de
na produção e no comércio internacional de agro- políticas públicas, bem como em pesquisas, como
tóxicos perigosos32. Atualmente, os chamados nas propostas da ciência cidadã e de processos
BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China) produzem dialógicos inspirados em Paulo Freire.
cerca de 50% do aço bruto no mundo, com uma A mudança de regime energético, de modelo
tendência crescente de participação com relação à agrário e industrial, também dependerá de uma
União Européia e aos países do NAFTA34. profunda transformação no modelo de ciência
Levando-se em consideração o atual cenário positivista dita “objetiva” no enfrentamento da
de ampliação dos acordos de livre comércio, mui- atual crise socioambiental e civilizatória. A ciência
tos países como o Brasil possivelmente investirão positivista ainda hegemônica tende a ocultar os
ainda mais no modelo exportador de commoditi- limites, incertezas e ignorâncias do conhecimento
es rurais e metálicas atendendo aos interesses dos científico, ao mesmo tempo em que é fortemente
países e consumidores mais ricos. Portanto, difi- financiada por interesses comerciais que dificul-
cilmente os países mais pobres e periféricos con- tam seu engajamento crítico e cidadão. Uma nova
seguirão aumentar seus PIBs sem contribuírem prática científica deve permitir a produção de sín-
para tragédias socioambientais locais e planetári- teses que sintam e captem as dimensões éticas e
as. Para reverter este processo, é necessário que morais da condição humana que fazem parte dos
políticas públicas de âmbito nacional e internaci- problemas mais relevantes da atualidade, dialo-
onal voltadas a uma transição ecológica dos atu- gando com a população e outras formas de co-
ais setores em expansão sejam construídas e dis- nhecimento, inclusive os tradicionais6.
ponibilizadas de forma acessível aos territórios Ao longo deste artigo, buscamos demonstrar
onde o agronegócio e a cadeia do carvão-ferro- que a justiça ambiental é uma temática com gran-
aço se expandem. Tais políticas deveriam induzir de potencial de crescimento no país, em especial
alternativas de transição sustentáveis e justas, na Saúde Coletiva, sendo imprescindível o incenti-
como apoiar a agroecologia para pequenos e vo para a realização de mais pesquisas visando a
médios produtores rurais; promover a reorien- identificar exposições desiguais que acarretem pa-
tação dos transportes individuais automotivos drões desiguais de saúde. Nesse sentido, deve ser
para soluções de transporte coletivo; favorecer destacado o papel potencial que a Rede de Justiça
atividades de turismo ecológico e comunitário; Ambiental, através de várias de suas organizações
permitir o uso de recursos nas florestas, campos, e militantes, deve assumir com relação à 1ª Confe-
regiões ribeirinhas e litorâneas em bases susten- rência Nacional de Saúde Ambiental. Os fóruns
táveis; desenvolver políticas de redução do con- em torno da conferência devem propiciar a expli-
sumo energético simultaneamente à transição do citação de conflitos e situações de injustiça ambien-
regime baseado em combustíveis fósseis; favore- tal nas várias regiões do país, bem como apontar
cer a desmaterialização da economia através da propostas de políticas que caminhem na constru-
ampliação de atividades qualificadas no setor de ção de outro modelo de desenvolvimento.

Colaboradores

MF Porto trabalhou na concepção e na redação


final do artigo e B Milanez trabalhou na coleta de
dados sobre agronegócio e a cadeia carvão-ferro-
aço, bem como nas discussões metodológicas.
1994
Porto MF, Milanez B

Referências

1. Porto MFS, Martinez-Alier J. Ecologia política, eco- 19. Organização Pan-Americana da Saúde. Manual de
nomia ecológica e saúde coletiva: interfaces para a Vigilância da Saúde de Populações Expostas a Agrotó-
sustentabilidade do desenvolvimento e para a pro- xicos. Brasília: OPAS; 1996.
moção da saúde. Cad Saude Publica 2008; 23(Supl. 20. Pimentel D, Greiner A. Environmental and socio-
4):S503-S512. economic costs of pesticide use. In: Pimentel D,
2. Martinez-Alier J. O ecologismo dos pobres. São Pau- editor. Techniques for Reducing Pesticide Use: Eco-
lo: Contexto; 2007. nomic and Environmental Benefits. Chichester, UK:
3. M’Gonigle RM. Ecological economics and politi- John Wiley & Sons; 1997. p. 51-78.
cal ecology: towards a necessary synthesis. Ecolog- 21. Lyznicki MS. Educational and Information Strate-
ical Economics 1999; 28:11-26. gies to Reduce Pesticide Risks. Preventive Medicine
4. Acselrad H, Herculano S, Pádua JA. Justiça am- 1997; 26:191-200.
biental e cidadania. Rio de Janeiro: Relume-Duma- 22. Soares WL, Porto MF. Estimating the social cost of
rá; 2004. pesticide use: an assessment from acute poisoning in
5. Porto MFS. Saúde do trabalhador e o desafio ambi- Brazil. Ecological Economics 2009; 68(10): 2721-2728.
ental: contribuições do enfoque ecossocial, da eco- 23. Soares WL, Porto MF. Atividade agrícola e externa-
logia política e do movimento pela justiça ambien- lidade ambiental: uma análise a partir do uso de
tal. Cien Saude Colet 2005; 10(4):829-839. agrotóxicos no cerrado brasileiro. Cien Saude Colet
6. Porto MF. Uma ecologia política dos riscos. Rio de 2007; 12(1):131-143.
Janeiro: Fiocruz; 2007. 24. Machado JMH, Costa DF, Cardoso LM, Arcuri A.
7. Little PE. A etnografia dos conflitos sócio-ambien- Alternativas e processos de vigilância em saúde do
tais: bases metodológicas e empíricas. In: Anais do I trabalhador relacionados à exposição ao benzeno
Encontro da Associação Nacional de Pós-graduação e no Brasil. Cien Saude Colet 2003; 8(4):913-921.
Pesquisa em Ambiente e Sociedade; 2004; Indaiatuba. 25. Instituto Brasileiro de Siderurgia. Anuário estatísti-
8. Thiollent M. Metodologia da pesquisa-ação. São Pau- co 2003. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Side-
lo: Cortez ; 1986. rurgia; 2003.
9. Israel BA, Schulz AJ, Parker EA, Becker AB. Review 26. Instituto Brasileiro de Siderurgia. Anuário estatístico
of Community-Based Research: Assessing Partner- 2007. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Siderur-
ship Approaches to Improve Public Health. Annu gia; 2007.
Rev Public Health.1998; 19:173-202. 27. Organização Internacional do Trabalho. [site da
10. Irwin A. Ciência cidadã: um estudo das pessoas, espe- Internet]. 2005. [acessado 2009 abr 23]. Disponível
cialização e desenvolvimento sustentável. Lisboa: Ins- em: http://laborsta.ilo.org/
tituto Piaget; 1998 28. Andrade MLA, Cunha LMDS, Gandra GT. Reestru-
11. Corburn J. Street science: community knowledge and turação na siderurgia brasileira. Rio de Janeiro:
environmental health justice. Cambridge: MIT Press; BNDES; 1999.
2005. 29. Instituto Brasileiro de Siderurgia. Siderurgia brasi-
12. Georgescu-Roegen N. The Entropy Law and the leira: relatório de sustentabilidade. Rio de Janeiro:
Economic Problem. In: Daly EH, Towsend KN, Instituto Brasileiro de Siderurgia; 2006.
editors. Valuing the Earth: Economics, Ecology, Eth- 30. Instituto Brasileiro de Siderurgia. Siderurgia: investi-
ic. Cambridge: MIT Press; 1993. mentos e expansão da produção. [site da Internet].
13. International Society of Ecological Economics. Dis- [acessado 2008 jul 01]. Disponível em: http://www.
ponível em: http://www.ecoeco.org/ ibs.org.br/downloads/Folder_Investimento_IBS.pdf
14. Altvater E. Existe um marxismo ecológico. In: Bo- 31. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesqui-
ron AA, Amadeo J, González S, organizadores. A sa Nacional de Saneamento Básico. Rio de Janeiro:
teoria marxista hoje: Problemas e perspectivas. 2007. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2000.
[acessado 2009 abr 20]. Disponível em: http:// 32. Colopy J. Poisoning the developing world: the ex-
bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/campus/ portation of unregistered and severely restricted
marxispt/cap.15.doc pesticides from the United States. Journal of Envi-
15. Rede Brasileira de Justiça Ambiental. Banco Temáti- ronmental Law and Policy 1994; 13:167-224.
co. Disponível em: http://www.justicaambiental. 33. Clapp J. Foreign Direct Investment in Hazardous
org.br/_justicaambiental/pagina.php?id=1010 Industries in Developing Countries: Rethinking the
16. Milanez B, Porto MFS. Gestão Ambiental e Side- Debate. Environmental Politics 1998; 7(4):92-113.
rurgia: Limites e Desafios no Contexto da Globali- 34. World Steel Association. [site da Internet]. [acessa-
zação. Revista de Gestão Social e Ambiental 2009; do 2009 abr 27]. Disponível em: http://www.
3(1):4-21. worldsteel.org/?action=newsdetail&id=265
17. Martins PR. Trajetórias tecnológicas e meio ambiente:
a indústria de agroquímicos/transgênicos no Brasil
[tese]: Campinas (SP): Instituto de Filosofia e Ciên-
cias Humanas, Unicamp; 2000.
18. Faria NX, Fassa AG, Facchini LA. Pesticides poiso-
ning in Brazil: the official notification system and Artigo apresentado em 10/06/2009
challenges to conducting epidemiological studies. Aprovado em 22/07/2009
Cien Saude Colet 2007; 12 (1):25-38. Versão final apresentada em 06/08/2009

Das könnte Ihnen auch gefallen