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artigo

Como ensinar a não saber?


Helena Maffei Cruz
How to teach to not know? Socióloga, psicóloga, mestre
em psicologia clínica, sócia
fundadora e docente do
Instituto Familiae, SP.
E-mail: helenamcruz@uol.com.br
Resumo: O presente artigo propõe-se a refletir Abstract: The present paper intends to pro-
sobre os caminhos e desafios que possibilitam mote the debate over the routes and challenges
aos alunos de cursos de formação de terapeutas that enable the therapy student’s preparation
com uma postura colaborativa, desenvolver a ati- course with a focus on a collaborative stance, to
tude denominada como “não-saber” (Anderson develop an attitude named “not knowing” (An-
& Goolishian, 1988). Procura refazer o processo derson & Goolishian, 1988). This article wishes
pessoal da autora de aquisição de conceitos fa- to redo the author’s personal acquiring process
cilitadores para uma escuta atenta e disponível, of facilitating concepts for an attentive and avail-
que se mescla com processo semelhante da able listening, which mingles itself with the Fa-
constituição do Instituto Familiae. Descreve quais miliae Institute birth. It describes which voices
vozes têm sido propiciadoras e organizadoras de have been the generators and the organizers of
um caminho permanentemente em construção do the ongoing construction path of the scholar’s
lugar do docente como um facilitador do processo role as facilitators of the learning process that
de aprendizagem que o Instituto Familiae procura the Familiae Institute wishes to develop in cou-
desenvolver em cursos de formação de terapeu- ples and family therapy graduation courses and
tas de casal e família e de profissionais que atuam in the development of professionals that work
junto a famílias, grupos e comunidades em áreas with families, groups and communities within
de desenvolvimento humano. Apresenta as vozes the fields of human development. It also intro-
de alunos das quatro últimas turmas quanto ao duces the student’s voices from our last four
que aprenderam no Familiae, o que foi importante classes, regarding what they have learned at
para formarem com os colegas uma comunidade Familiae, which was paramount to the building
de aprendizado colaborativa informada pela posi- of a collaborative learning community driven by
ção do “não saber”. the “not knowing” position.

Palavras-chave: curso de formação, não sa- Keywords: training course, not knowing, colla-
ber, grupos colaborativos borative groups

Recebido em 12/10/2011.
1. Introduzindo um caminho
Aprovado em 28/10/2011.

Aprendemos com Foucault (1970): “Como as coisas são” não são representa-
ções da realidade, mas “como aprendemos pelos discursos que dizem como as
coisas são”.
Somos formados por meio de ideias as quais se atribuem o status de verdade.
O principal efeito do poder através da verdade e da verdade através do poder é a
especificação de uma forma de individualidade que, por sua vez, é o veículo desse
poder.
A forma mais sutil desse poder é a formada por verdades universais – saberes
que reclamam para si valor de verdade universal, como o poder de objetividade
das disciplinas científicas modernas.
Para Foucault, poder e saber são inseparáveis. A análise que ele faz dessa liga-
ção tem como ferramenta o que ele denominou de problematização, que é um
método de pensamento que põe em gerar transformações em nossas práti-
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dúvida tudo que se apresenta como cas, mas nada tem sido tão mobiliza-
evidente, bom, inquestionável, indu- dor para os inquietos, nos quais me in-
bitável. cluo, do que ouvir nossos colegas que,
Foucault também aponta para uma do dia a dia da prática, extraem con-
qualidade que se tornou uma marca ceitos que revolucionam as compreen-
dos terapeutas sistêmicos de segunda sões dessa mesma prática. Esses con-
ordem ou dos informados pelas pre- ceitos perturbam nossa acomodação
missas do construcionismo social: a ao já sabido, ao dado como a maneira
curiosidade. verdadeira ou correta de ser terapeuta.

Eu gosto da palavra curiosidade; ela evoca Somos tão sedentos de receber respostas
o “cuidado”, evoca a solicitude que se tem que não nos engajamos suficientemente
com aquilo que existe e poderia existir, um nas questões. Submetam a teoria ao teste
sentido aguçado do real, mas que nunca do senso comum e da sabedoria prática
se imobiliza nele, uma disposição para en- e tornem-se atentos a todos os proble-
contrar o que há de estranho e singular à mas e pontos falhos, não só no que é dito,
nossa volta, certa obstinação em desfazer- mas no que é ignorado ou marginalizado
-se de nossas familiaridades e mirar de ou- (Sullivan, 2005).
tra maneira as mesmas coisas, certo ardor
para captar o que sucede e o que se passa; Essas são palavras de um profissio-
uma desenvoltura diante das hierarquias nal que busca colocar as teorias no seu
tradicionais entre o importante e o essen- lugar, ao dar aulas de teorias de tera-
cial (Foucault, 1970). pia, evitando o pensamento funda-
mentalista.
Nesse sentido, problematizar não Entre propostas problematizadoras
avalia os saberes instituídos como cer- escolhi olhar para nossa trajetória de
tos ou errados, mas pergunta a qual- coordenadores de cursos de formação
quer saber que se apresenta como evi- de terapeutas familiares e trabalhado-
dente: res sociais que atendem famílias, gru-
• Quais saberes alternativos esse sa- pos e comunidades, com foco na per-
ber desqualificaria? gunta: “Como Ensinar a Não Saber?”
• Que pessoas ou grupos de pessoas Not knowing é como Harlene An-
seriam diminuídos através do su- derson e Harry Goolishian (1988) de-
cesso desses argumentos como nominaram a postura desejável de um
superiores? terapeuta que entende a terapia como
uma conversa colaborativa na qual “o
Outros filósofos assim como soció- cliente é o especialista”, afirmação em
logos e antropólogos fazem perguntas que “especialista” significa conhecedor
semelhantes aos seus próprios saberes. de sua própria vida e história assim
A psicologia aparentemente custou como suas tentativas de solucionar
mais para essa reflexão. Como prática problemas. Essa postura respeita os
discursiva, a psicoterapia na vertente te- significados construídos pelo cliente
rapia familiar sistêmica vem produzin- em seus relacionamentos prévios, é
do seus problematizadores com maior informada pela compreensão de que
visibilidade nos últimos vinte anos. o conhecimento é sempre construído
Ouvir as vozes de filósofos ou soció- e negociado em relações e propõe uma
logos convida a reflexões que podem relação em que novos significados po-

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dem redescrever situações nomeadas 2. Saberes que movem certezas
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como problemáticas, dessa forma dis- Helena Maffei Cruz
solvendo o que era “problema”. 2.1 Vozes do pensamento
sociológico e antropológico
O não saber se refere à posição do tera-
peuta – uma atitude, uma convicção – de Como minhas certezas foram ques-
que um terapeuta não tem acesso à infor- tionadas na trajetória das ciências so-
mação privilegiada, nunca pode enten- ciais para a psicologia?
der completamente outra pessoa, sempre Esta pergunta surge de quando em
precisa estar no estado de ser informado quando, ao repassar na memória o ca-
pelo outro e sempre necessita aprender minho trilhado. Como toda memória
mais a respeito do que tem sido dito ou omite, recria, mas traz para o presente o
não (ANDERSON, 2011). que deixou, uma impressão, aquilo que
fica visível quando olhado atentamente.
É um conceito enganadoramente As primeiras noções que problema-
simples. Ensiná-lo é missão impossível. tizaram o conhecimento como uma
Harlene Anderson afirma que série de descobertas progressivamen-
aprendizado colaborativo não pode te cumuladas, produzidas por mentes
ser ensinado, mas os formadores privilegiadas em ambientes apropria-
podem criar ambientes nos quais dos, onde a neutralidade e objetivi-
os estudantes aprendem a aprender dade estivessem garantidas, surgiram,
colaborativamente. As relações e os como relatei em outro texto (Naime
processos emergem espontaneamen- Pontes, 2011), já na primeira aula de
te a partir da própria experiência, ao sociologia do curso de ciências sociais.
aprender fazendo em vez de através Leitura para a aula seguinte: dois tex-
de aulas expositivas. Os estudantes tos mimeografados! (Estávamos em
mudam de uma tradição de apren- 1969), A mercadoria, de Karl Marx e
dizado individual competitivo para a noção de estrutura em Lévi-Strauss.
uma nova experiência de pesquisa Não entendi nenhum dos dois. Esse foi
compartilhada. um não saber angustiante. Eu supunha
Em minhas, ou melhor, nossas pro- que todos os colegas entendiam me-
postas como docentes no Instituto Fa- lhor. Eles eram mais jovens e tinham o
miliae* sempre esteve presente a busca que custei a descrever como um verniz
de práticas que fossem nossas teorias marxista, presente no estudo de histó-
em ação. O foco é no “como”. ria dos cursinhos. Conheciam algumas
• Como desenvolver práticas úteis palavras usadas como um passaporte
para gerar reflexões? para aceitação ou rejeição de textos e
• Como essas reflexões dialogam autores; foi um caminho muito sofri-
com as metáforas vigentes no do. Fui atrás dos livros: O Capital – a
campo pesquisado? primeira noção de construção social
• Como ampliar a capacidade dos do conhecimento da realidade social,
estudantes dialogarem com suas e de ideologia; Lévi-Strauss, introdu-
práticas e teorias anteriores em zindo as teorias da produção de sig-
* O Instituto Familiae foi fundado
um contexto de respeito e curio- nificado e a minha cabeça girando: em 1991 por 6 profissionais, 5
sidade? ensinaram-me só metade da história, psicólogas: Helena Maffei Cruz,
Marília de Freitas Pereira, Neyde
• Como desenvolver leituras críti- e o pior: a metade errada! Bittencourt de Araújo, Rose
cas dos construtos disponíveis na Acalmado o turbilhão de novida- Riskallah Nahas, Vânia Curi
des esboçava-se a ideia de que apenas Yazbek e uma psiquiatra, Azair
área? Vicente.

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mais tarde ia me guiar na busca por cias sociais, pelo menos no ambiente
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uma psicologia como um campo do da USP de então, tinham um caráter
conhecimento voltado para a compre- eminentemente crítico e mesmo os
ensão das maneiras singulares de estar professores marxistas propunham
no mundo, seus como e porquê, isto é, explicações conflitantes para os fenô-
as maneiras próprias de cada pessoa menos da atualidade que não podiam
mover-se em uma cultura, sociedade e ser explicados pela Bíblia – leia-se O
tempo dados. capital.
Mannheim (1956) foi um autor Se o marxismo da sociologia que
importante que ampliou a noção de eu aprendia na USP inoculou a des-
ideologia-defeito-da-direita para ideo- confiança dos discursos objetivos e
logia-conjunto-de-ideias-disponíveis- neutros, foi a antropologia quem me
-em-um-tempo-e-lugar. capturou para a pesquisa da constru-
Desenvolveu em Ideologia e utopia ção de significados. Dois nomes mar-
a noção de que o homem nasce sob caram essa aproximação ao mundo do
dupla determinação, pois se, por um sentido.
lado, encontra uma determinada si- Edmund Leach (1974) em seu livro
tuação social, por outro, recebe tam- Repensando a Antropologia discute o
bém os modos de pensar essa situação. etnocentrismo das descrições de rela-
A solução seria a constituição de um ções sociais observadas com lentes da
grupo constituído de pessoas repre- cultura do antropólogo, criando cate-
sentativas dos vários discursos social- gorias sem utilidade para a compreen-
mente disponíveis que negociassem são de como os habitantes da cultura
esses modos de descrever a sociedade – estudada organizavam sua vida. São
a Intelligentsia. Há nessa proposta uma suas palavras:
semente da postura socioconstrucio-
nista de significado negociado, mas é Surpreendem-me constantemente as
conservada a superioridade da ciência proezas de ginástica mental que os an-
sobre os demais discursos do senso co- tropólogos executam no seu esforço de
mum, e a esperança utópica de que o elaborar definições e discriminações uni-
discurso da Intelligentsia seja neutro. versais [...] creio que nós, antropólogos
Na esteira de Mannheim, vieram sociais, como os astrólogos ptolomaicos
Berger e Luckmann (1966) e o livro medievais, passamos o tempo tentando
A construção social da realidade, cujo encaixar os fatos do mundo objetivo na
título inspirou a expressão Construcio- armação de um conjunto de conceitos
nismo Social. que foram desenvolvidos a priori, em vez
Eu não tinha então vocabulário de ser resultado de observação.
para pensar a linguagem como cons-
titutiva da realidade em que vivemos, Ao desenvolver alguns modelos ma-
entretanto, aceitar que só podíamos temáticos para generalizações afirma:
nos expressar com os discursos já
disponíveis em nossa sociedade, que Não digo que antropólogos devam se
a construção de novas explicações não tornar matemáticos, tudo que peço é que
era uma criação livre de mentes ar- não iniciem suas discussões com muitos
rojadas, mas uma longa negociação, conceitos carregados de significação, con-
frequentemente uma disputa entre ceitos que prejulgam todo o problema
discursos em competição, começou a (...) nós antropólogos também temos que
fazer parte do meu repertório. As ciên- reexaminar premissas básicas e com-

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preender que padrões mentais da língua regras de evitação e aproximação entre
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inglesa não são um modelo necessário determinados membros dos intrinca- Helena Maffei Cruz
para qualquer sociedade humana (...) dos sistemas de parentesco, dentro dos
um reexame despreconceituoso de fatos quais a família, como a concebemos, é
etnográficos estabelecidos, que não par- apenas um elemento.
tem de uma bateria de conceitos elabora- Na contramão da norma da ciência
dos em um estudo professoral, pode levar moderna de analisar as partes isoladas
a algumas conclusões inesperadas. para compreender o todo, Lévi-Strauss
(1970) aponta a inutilidade de se com-
Essas noções estiveram presentes parar objetos semelhantes em diferen-
em todas as disciplinas da área de an- tes culturas como pertencendo à mes-
tropologia, que, na época, especial- ma espécie, em que um poderia ser um
mente na USP, onde foi implantada descendente mais elaborado do outro,
por Lévi-Strauss, era dominada pelo enfatizando a dependência do contex-
discurso estruturalista. to para o sentido.
Nas críticas presentes ao estrutura- Opondo-se à naturalização dos fa-
lismo, em textos de autores sistêmicos, tos culturais, o autor critica o evolu-
encontramos às vezes simplificações cionismo cultural presente em afirma-
que levam em conta os diferentes usos ções como:
do termo, ignorando a máxima de
Wittgenstein (que procuramos seguir O arco e a flecha formam uma espécie, o
em nossas práticas), de que o signifi- hábito de agrupar números em dezenas
cado está no uso. Tais críticas igualam é uma espécie, o costume de deformar o
noções de estrutura em Freud, Marx e crânio das crianças é uma espécie. A dis-
Lévi-Strauss. O significado e o lugar tribuição geográfica destes objetos e sua
de “estrutura” são muito diferentes transmissão de região a região, devem
em cada um desses autores. Uma dis- ser estudadas da mesma maneira como
cussão sobre isto não cabe aqui, mas os naturalistas estudam a distribuição
quero assinalar a importância da abor- geográfica de suas espécies animais ou
dagem de Lévi-Strauss para a desnatu- vegetais.
ralização do fenômeno cultural.
O início do século XX foi bastan- Segundo Lévi-Strauss:
te influenciado pela obra de Darwin,
incluindo-se a obra de Freud. A an- Nada mais perigoso do que essa ana-
tropologia seguindo o discurso evolu- logia. Mesmo que o desenvolvimento
cionista nomeou como “primitivas” as da genética permita ultrapassar a no-
sociedades sem divisão social do tra- ção de espécie, o que a tornou e ainda
balho, organizadas em torno da divi- torna válida para o naturalista é que
são sexual que se repete de geração em o cavalo produz efetivamente o cavalo,
geração. Sistemas muito complexos de e que através de um número suficiente
organização social, com sofisticadas de gerações, Equus caballus é o descen-
normas que garantem a sobrevivência dente real do Hipparion. Ao contrário,
do modo de vida daquela cultura, não um machado não gera jamais outro ma-
foram vistos. O foco do saber ociden- chado; [...] (entre eles) há sempre uma
tal de como uma família deveria ser, descontinuidade radical que provêm do
no início do século XX, estava na fa- fato de que um não gera o outro, mas
mília nuclear e não permitia dar um cada qual provém de um sistema de re-
sentido para posições específicas ou presentações específico.

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Na área da psicologia poderíamos tinatário humano terá que suprir de
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com esse rigor pôr em dúvida as “es- significado (1971).” Alarme igual a re-
pécies” de bipolares, obsessivos, ho- presa cheia a um nível em que se deve
mossexuais, tímidos, agressivos, enfim acionar o mecanismo de esvaziamento
de todos os sistemas de classificação pode ser interpretado como perigo,
genéricos e generalizantes. catástrofe iminente, não importante
A antropologia estrutural teve sua porque a represa nunca passou desse
raiz e ao mesmo tempo trouxe à tona ponto e muitos outros, dependentes
o esquecido Curso de Linguística Es- não da informação do sistema, mas da
trutural (1926). As décadas de 1960 e relação do homem em questão com fe-
1970 foram dominadas por discursos nômenos semelhantes, tanto em expe-
estruturalistas em vários campos, en- riências passadas nessa função, como
tre eles o da linguística e da semiologia. nas narrativas que construiu sobre
O uso de “estrutura” por diferentes represas, eficiência de servomecanis-
autores e a discussão sobre a diferen- mos, de proximidade com perigo, sua
ça entre considerá-la ontológica ou relação com o trabalho e muitas outras
uma ferramenta metodológica é tema que mudarão de caso a caso.
amplamente explorado no livro cujo Poderíamos usar a metáfora dos
nome já indica as possíveis polêmicas: sistemas cibernéticos, como uma alu-
A estrutura ausente de Humberto Eco são a modos repetitivos de manter um
(1971), que me forneceu antecipada- determinado tipo de relação familiar
mente a crítica à metáfora cibernética que “corrige” os desvios estreitando o
com suas discussões sobre o universo número de escolhas dos participantes.
dos sinais e do sentido. Não como explicação, mas sim metá-
Eco apresenta a diferença fun- fora a ser explorada caso a caso.
damental para aceitarmos ou não a Com uma bagagem que passava por
metáfora cibernética para sistemas explorar sem categorias a priori, em
humanos com um exemplo que pro- aprender na prática sobre os signifi-
põe supormos uma represa entre duas cados de regras e rituais, comporta-
montanhas que está aparelhada com mentos prescritos e proibidos, e fazer
uma espécie de boia que indica o ní- isso literalmente aprendendo a língua
vel da água, e tem codificado o nível de do pesquisado, ingressei no mundo
alarme. Ele descreve os diferentes está- da psicologia que me foi apresentado
gios de comunicação entre mecanismo como uma curiosa colcha de retalhos
transmissor da mensagem “nível de em que cada pedaço era “uma psicolo-
alarme” e o receptor, outra máquina gia”. Havia o quadradinho da psicolo-
que ao receber essa mensagem aciona gia do aprendizado, o da psicologia do
um dispositivo para esvaziar a represa. excepcional, da educação, das organi-
Em seguida, explora o que pode acon- zações, e outras psicologias de alguma
tecer se o destinatário da mensagem coisa; havia também ferramentas para
sobre o nível da represa não for uma costurar os quadradinhos: testes psi-
máquina, mas um ser humano. Des- cológicos, algumas teorias de terapia.
creve a passagem de um universo de Tive o privilégio de aprender psi-
sinais para um de sentido. “Abriu-se canálise no Instituto Sedes Sapientiae
um processo de significação, porque que, entre as muitas ideias libertado-
o sinal não é mais uma série de uni- ras, incluía como princípio não acei-
dades discretas computáveis em bits, e tar a chamada “análise didática” que,
sim uma forma significante que o des- muitas vezes, gerava uma relação de

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dependência do aluno ao poder-saber mos sentido aos acontecimentos, mas o
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de seu analista sobre sua saúde mental. metálogo “O que é um Instinto?” (1991, Helena Maffei Cruz
p.65) me instigou com uma heresia, pe-
los cânones da ciência moderna.
2.2 Vozes do pensamento sistêmico
Filha – Papai, o que é um instinto?
Cheguei à terapia familiar via psica- Pai – Um instinto, querida, é um princípio
nálise. De um grupo de estudos sobre explicativo.
psicanálise de casal e famílias, coorde- Filha – Mas o que ele explica?
nado pela saudosa Mari Carposi, que Pai – Tudo... quase tudo. Qualquer coisa
terminou por ocasião de sua morte que você queira explicar.
prematura, surgiu nosso desejo de
continuarmos a buscar mais recursos Prosseguindo, afirma que “um
para os atendimentos, estimuladas por princípio explicativo não explica real-
sua própria voz: “Precisamos conhe- mente nada. É uma espécie de acordo
cer os sistêmicos.” Ela não teve tempo. convencional entre os cientistas para
Nós (as fundadoras do Familiae) pros- não passar além de certo ponto em sua
seguimos. intenção de explicar as coisas”.
Ao nos aproximarmos do campo Essa postura não é anticiência, mas
das terapias familiares ditas sistêmicas, exige mais humildade e rigor nas cons-
cada uma de nós tinha seu repertório truções que chegam a serem conside-
de premissas anteriores, mas, em co- radas científicas, dialogando com a
mum, histórias de aprendizado com noção de paradigma em Kuhn (1974)
mestres inquietos, corajosos e positi- e com a crítica atual presente nos dis-
vamente não formadores, no sentido cursos socioconstrucionistas.
de formatar. Um artigo sobre o “não Cada capítulo dos Steps to an ecolo-
saber”, escrito por minhas colegas, cer- gy of mind pede uma reflexão, pelo de-
tamente dedicaria também um espaço safio que apresenta à ciência moderna,
especial ao inesquecível Di Loreto que cuja metáfora poderia ser fotografar
só vim a conhecer muito mais tarde. tudo com um potente zoom e destrin-
Começamos a ler tudo que conse- char os mínimos detalhes. Bateson pro-
guíamos; pouca coisa nos empolgava. põe primeiro a foto panorâmica para
Bateson, biólogo por formação e an- sabermos o que se relaciona com o quê
tropólogo por vocação e adoção, foi a antes de nos tornarmos o superespecia-
diferença que fez a diferença. Junto com lista que sabe quase tudo sobre quase
Margareth Mead, antropóloga, trouxe- nada.
-nos algumas das ideias mais férteis. Esse metálogo foi publicado em 1969.
Pessoalmente, meus primeiros en- Nessa época começam a aparecer na filo-
contros com a dúvida, a desmistifi- sofia estudos sobre como constituímos o
cação das teorias como verdades des- mundo em que vivemos pela linguagem
cobertas e a nomeação de conceitos (Austin, 1962; Foucault, 1970; Wittgens-
como invenções mais ou menos úteis tein, 1996).
deram-se através das conversas acon- O campo da terapia familiar teo-
tecidas ou inventadas entre Gregory e rizava com metáforas da década de
sua filha, então menina, Mary Catheri- 1940: informação, comunicação, ci-
ne, que ele nomeou como metálogos. bernética.
Não havia então discursos socio- Bateson, buscando vocabulários re-
construcionistas disponíveis para dar- lacionais, explorou todas essas teorias,

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sem jamais cair em simplificações fa- meiro encontro com elas, no Rio: uma
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vorecidas pelo empirismo america- visita de 3 dias, introdução do que se
no. O projeto para a investigação de tornaria nossa formação.
paradoxos na comunicação (1976) Encontrei-me com ideias inovado-
foi desenvolvido com Jay Haley, John ras, que atendiam minhas perguntas
Weakland e Don D. Jackson e culmi- da formação em psicanálise, vinda das
nou em artigo cuidadosamente no- ciências sociais – mas “é tudo dentro
meado como “Toward a Theory of da cabeça?”.
Schizophrenia”, e apresenta uma teoria Já no prólogo de Steps to an ecology
relacional e linguística. Suas formula- of mind, Bateson anuncia seu cami-
ções complexas e minuciosas não en- nho, com uma pergunta que, segundo
contraram eco na modernidade ame- ele, era a única que havia sido útil em
ricana, impulsionada no pós-guerra suas tentativas por demais incomuns
pela enorme quantidade de desenvol- de desafiar o que chamava de “princí-
vimentos tecnológicos. pios dormitivos”, com seus alunos da
À sua construção sobre maneiras residência psiquiátrica em Palo Alto.
ditas esquizofrênicas de se relacionar
como um aprendizado baseado em Uma mãe habitualmente recompensa
uma relação duplo vincular constante seu filho com um picolé se ele comer espi-
vivida na infância, Haley contrapunha nafre. De qual informação adicional você
um desenho de pesquisa quantitati- precisaria para prever se a criança vai:
va para se contar quantas mensagens • amar ou odiar espinafre;
duplo-vinculares havia em um tempo • amar ou odiar picolés;
X de conversa entre essas duas pessoas. • amar ou odiar a mãe.
Durante o desenvolvimento do pro-
jeto, enquanto Bateson publicava o Incluía-se a compreensão da qua-
artigo “Minimal Requirements for a lidade da relação, especificamente, o
Theory of Schizophrenia” (1960), que contexto das refeições para entendi-
apenas tocava perifericamente na or- mento do processo de comunicação
ganização familiar, Haley publicava, humana.
em 1959, “The Family of the Schizo- Como falava a mãe? Era uma brin-
phrenic: A Model System”, que sugeria cadeira? Uma ameaça? Um jogo de faz
um meio de classificar famílias segun- de conta com cartas marcadas ou “pra
do regras explícitas de boa e má comu- valer”?
nicação e provar que o comportamen- Bateson nos desafiava a duvidar e
to é adaptativo para os diferentes tipos procurar novas descrições para a men-
dessas famílias. te, o conhecimento e a diferença entre
A história da terapia familiar que teorias sobre encontros de seres vivos e
nascia aí não poderia ter os dois como de bolas de bilhar.
iniciadores. Bateson se afasta, Ha- As teorias e práticas em terapia fa-
ley funda o MRI e a continuação nós miliar que floresceram a partir do MRI
conhecemos: terapia estratégica, te- deixaram descendentes cujos discur-
rapeutas que creem operar sistemas sos são dominantes em muitos centros
como se fossem máquinas. reconhecidos mundialmente. Aqueles
O Familiae deve a Gladis Brum e que, como Tom Andersen (2000), fize-
às demais professoras do Instituto de ram a si a pergunta: “É assim que eu
Terapia de Família do Rio de Janeiro quero passar a minha vida profissio-
a apresentação a Bateson para o pri- nal? Dizendo como as pessoas devem

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viver suas vidas? Forçando mudanças gera uma nova tipificação: com divór-
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mesmo quando elas não querem mu- cio destrutivo, separação inconclusa, Helena Maffei Cruz
dar?” partiram das ideias de Bateson, e como diria Bateson, com quantos
alguns mantendo e complexizando princípios explicativos o autor quiser.
o uso da metáfora cibernética como Também não considero acaso que os
Marcelo Packman (1988), quando descontentes com esse desenvolvi-
apresenta a cibernética como uma mento rechaçassem qualquer metáfo-
epistemologia; outros como Cecchin ra ligada a padrões, retroalimentações,
(1989) ou Elkaïm (1989) desenvolven- manutenção de homeostase. Esses des-
do práticas a partir da teoria geral dos contentes iniciaram um movimento
sistemas de formas muito sofisticadas que revolucionou a própria definição
conhecidas como “de segunda ordem”. de terapia.
Não creio que seja acaso serem euro-
peus os autores citados como terapeu-
tas sistêmicos de segunda ordem. O que 3. Vozes da pós-modernidade
cai em solo americano brota facilmente
como “how to do”. Quando Milão ini- A equipe do Familiae compartilha-
ciou uma clínica baseada em conceitos va desse desconforto, mas desfrutava
sistêmico-cibernéticos, fez um caderno de grande liberdade de escolha de ca-
de viagem exemplar da experiência. minhos em um campo que se inicia-
Paradoxo e Contra-Paradoxo (1988) é va no Brasil, sem escolas ou discursos
um livro transparente e corajoso. O ca- dominantes. Iniciamos a atividade
pítulo “A tirania do condicionamento docente atentas à revolução no campo
linguístico” aponta para as construções da terapia familiar em curso em 1991,
essencialistas que fazemos ao estender ano da fundação do Instituto. Nessa
a estrutura linguística de sujeito-verbo- época, Dora Fried Schnitman e Saul
-predicado, do mundo das coisas imó- Fucks, no Instituto Interfás, de Buenos
veis para o dos seres vivos. A avaliação Aires, encantavam-nos com a fluência
crítica dos autores a partir do que sua dos diálogos que propunham. Assim
prática lhes ensinava gerou uma nova como nossos alunos depois, nós que-
visita aos conceitos que haviam eleito ríamos “aprender a fazer perguntas”. E,
como guias para a condução de uma aprendendo a escutar o que era dito e
sessão: hipótese, circularidade e neutra- não o que achávamos que alguém que-
lidade, redescrevendo esta última como ria dizer, aprendemos que “fazer per-
uma posição de curiosidade (1989). Co- guntas” não era uma técnica, mas uma
meçam a surgir os discursos sobre o lu- ferramenta linguística para a conver-
gar do terapeuta e suas teorias pessoais sação e que esta nascia da escuta.
sobre a vida. Aprendemos a nos perguntar pelas
A terapia que floresceu nos EUA nossas afirmações, deixamos de pro-
nessa época teve, em geral, caráter curar seguir uma teoria para dialo-
abertamente interventivo, informado garmos sobre nossas escolhas teóricas.
por um saber a priori do que é melhor Esse processo que denominávamos de
para o outro, por meio da tipificação trabalho com a epistemologia do te-
de famílias, o que chamo de constru- rapeuta teve forte influência nos pro-
ção de um dicionário de “famílias de... gramas e formatos que desenvolvemos
com”, isto é, de membro com drogadi- para o curso. Estávamos, ainda sem
ção, de membro com transtorno men- nomear, começando a praticar e ensi-
tal, de pais separados, tipo este que nar o não saber.

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Escolhi o subtítulo “vozes da pós- participar de um universo cultural,
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-modernidade” sabendo-o um tanto fazermos usos de muitas narrativas
vago para refletir sobre a importância disponíveis. Essa escolha, porém, não
em nosso aprendizado de Não Saber, é uma escolha de cada indivíduo. A
dos teóricos e clínicos que denomi- sustentabilidade das narrativas de self
nam-se ou não socioconstrucionistas, de uma pessoa depende da sua rede de
mas desenvolvem trabalhos informa- relações. Há uma interdependência
dos por características distintivas da de narrativas que resulta na formação
pós-modernidade científica. de uma rede de identidades recíprocas.
Pego emprestadas as palavras de Isto é, uma identidade não pode ser
Marilene Grandesso (2000) para re- mantida sem a existência de outros que
sumir as posturas que cabem sob esse apoiem tal descrição.
nome. Segundo Guanaes (2006), as pro-
postas construcionistas têm em co-
O psicólogo pós-moderno, antes de lidar mum “a noção de que o self depende
com verdades históricas como determi- das práticas discursivas através das
nantes do que vem a ser fatos psicológicos e quais as pessoas dão sentido ao mun-
o seu funcionamento, lida com as “verda- do e às suas próprias ações – ou seja, o
des narrativas”, mudando completamente self é entendido enquanto uma cons-
os quesitos para uma investigação psico- trução social, produto das trocas dis-
lógica. Esta já não pode assentar-se na cursivas situadas”.
observação neutra e fidedigna como base De quais selves de professor e de alu-
para as construções teóricas, mas, sim, nas no queríamos ser coconstrutores?
múltiplas e contextualizadas convenções Que relações possibilitariam essa
da linguagem, como um amplo horizonte construção?
de possibilidades para suas construções. Desde a primeira turma do curso
A psicologia da pós-modernidade, por- consideramos a aceitação de um aluno
tanto, valoriza o singular, o idiossincrá- um processo de duas mãos: apresentá-
tico e o contextualmente situado, em vez vamos nosso objetivo e as premissas bá-
de leis gerais. [...] Em uma concepção sicas do programa que seria construído
pós-moderna, o conhecimento psicológi- acompanhando cada grupo em suas es-
co pertence ao domínio do intersubjetivo pecificidades e os interessados apresen-
no qual os significados são construídos tavam-se com sua história profissional,
nos espaços comuns de pessoas em rela- e suas demandas para o curso.
ção. Considerado um dos iniciadores do Para que participássemos deste
movimento na psicologia social, conhe- contexto dialógico foi importante que
cido como construcionismo social, Ken- tivéssemos oportunidade de refletir
neth Gergen (1996, p. 186) afirma: “O sobre nossas inserções sociais, esco-
self não é uma propriedade do indivíduo, lhas profissionais, pré-concepções e
mas dos relacionamentos – produto do preconceitos. Aprendíamos um estilo
intercâmbio social. De fato, ser um self de supervisão diferente da tradicional
com um passado e um futuro potencial “supervisão do caso”. O caso éramos
não é ser um agente independente, único nós na relação com os que nos procu-
e autônomo, mas um ser imerso na inter- ravam com algum problema, definido
dependência.” como uma comuicação alarmada.
Esse processo favoreceu a constru-
O autor explora a noção de múl- ção de um tipo de conversação colabo-
tiplos selves e a possibilidade de, ao rativa na qual cada participante pode

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 41, p. 65-84, dez. 2011.


se manter curioso a respeito de si mes- do terapeuta, um processo que po-
Como ensinar a não saber? 75
mo e do outro. deríamos nomear como de segunda Helena Maffei Cruz
À medida que deixávamos de lado ordem, informado pela curiosidade.
as afirmações generalizantes e desen- As ideias de Maturana sobre a biolo-
volvíamos uma atenção ao que acon- gia do fenômeno social (1996) nos fa-
tecia no momento, ampliávamos as ziam rever premissas sobre o humano
aberturas na conversa motivadas pela e nos aproximaram da compreensão
curiosidade de vir a saber a respeito do de sistemas humanos como sistemas
outro, e suas construções de realidade. linguísticos e geradores de linguagem
Como consequência começou a ficar e significado (Andersen & Goolishian,
mais fácil para os alunos o duvidar de 1988). Mas a mola do salto paradig-
suas certezas, sem sentirem-se incom- mático que permitiu chegar aí foi o
petentes. encontro com Tom Andersen, em
Assim, a chamada formação de te- 1993. Havíamos iniciado a parte prá-
rapeutas tornou-se para nossa insti- tica com os alunos da primeira turma,
tuição a criação de um contexto con- no segundo semestre do ano anterior,
tínuo de reflexões que começavam com o uso de sala de espelho unidire-
quando no primeiro encontro entre cional, a presença de uma supervisora
nossa equipe e os interessados no cur- e colegas assistindo o atendimento
so, nós os convidávamos a se apresen- realizado por uma dupla.
tarem através de 3 questões (Cruz & Não usávamos interfone nem inter-
Pereira, 1995): rompíamos sessões. Maturana (1984)
1 – o que me trouxe hoje aqui? (o que já nos apresentara conceitos como sis-
quero obter); temas autónomos, a impossibilidade
de interações intrutivas e a presença
2 – como cheguei aqui? (a história do
de uma emoção em todo ato cognitivo.
já feito nesta direção);
Estávamos buscando um caminho
3 – o que penso que é importante que para construção da prática sem tentar
as pessoas saibam sobre mim? (o instruir.
que necessito e o que posso dar nes- Nossa primeira experiência de traba-
sas interações). lhar com uma equipe atrás do espelho
deu-se antes de iniciarmos o instituto,
Esse processo de perguntas nos experimentando novas maneiras de
levava ao segundo passo em que os atender, aprendendo as teorias relacio-
candidatos que considerassem a nós nais – da comunicação, dos sistemas etc.
e ao nosso curso como potencialmen- Nunca nos sentimos confortáveis
te capazes de construir um caminho com o sistema leva e traz de Milão,
atraente em relação ao que buscavam, entra, sai, escreve, manda recado, faz
marcariam uma entrevista individual, intervenção, propõe tarefa, e que tais.
em que se ampliava o conhecimento Apenas assistíamos atrás do espelho e
mútuo, o que incluía não só expec- no final da sessão “ajudávamos” a co-
tativas acadêmicas como quantidade lega que estava no campo com uma
e qualidade de textos a serem lidos, coleção de ideias, com um significado
horários de aula a serem seguidos, in- implícito – “o que eu faria se estivesse
vestimento financeiro, e demais obri- lá” o que implicava em – “o que você
gações mútuas. deixou de fazer”. Esta é uma avaliação
Por meio dessa eleição recíproca, a posteriori. Na época apenas dávamos
começava o processo da constituição para a colega nosso melhor.

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Em um curso com o ITF do Rio de mento sobre o lugar da linguagem e
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Janeiro, em 1990, fizemos uma inter- seu efeito performativo.
locução com a Gladis, que ouvindo as Em outros artigos desta revista
aflições da colega terapeuta, com tan- descrevemos o Caderno de Viagem
tas ideias “corretoras” do seu caminho, (Yasbek, 1996), o trabalho de Multi-
disse: “O problema de vocês é: como plicadores Reflexivos (Barbas, Bernar-
transformar os urubus em anjos da des, Pereira, 2003) a constituição de
guarda?”. “grupos autogeridos” de alunos (Cruz,
Essa metáfora nos acompanhou e, 2009) como importante atividade
em 1992, quando nossa primeira tur- do curso, assim como exercícios que
ma começou a atender com supervisão dão oportunidade a cada um de no-
ao vivo, assistida pelas outras colegas, mear seus repertórios sobre os temas
tomávamos todos os cuidados para estudados. Essas práticas discursivas
não despejarmos nossas ideias sobre as levam-nos a crer que estamos cons-
terapeutas-alunas (já então o formato truindo comunidades de aprendizado
era de duas terapeutas no campo) e colaborativas e desenvolvendo postu-
sim as ajudarmos no desenvolvimen- ras de “não saber”.
to de suas próprias habilidades como Coerentemente com essa compreen-
terapeutas. são do processo de ensinar como uma
Ao conhecemos Tom Andersen en- prática colaborativa (McNamee, 2009)
contramos a teoria e a prática que nos ao revisitar uma trajetória pessoal e do
faltavam. meu grupo de pertinência (na minha
interpretação), perguntei-me: Como
nossos alunos responderiam à questão
4. Vozes de quem ensina sobre o não saber?
aprendendo Tendo permanecido afastada da do-
cência da terapia familiar por alguns
Organizamos o atendimento cur- anos, voltei a dar aulas para o último
ricular com o formato delineado pela módulo há quatro anos.
equipe de Tromsø e fomos aperfei- Em todas essas turmas notei algo
çoando a maneira de facilitar a colabo- muito especial: o grau de colaboração
ração entre os terapeutas de campo e a entre os colegas que se manifestava
equipe reflexiva (ER). Nesse caminho, expressamente no atendimento, na
ainda ouvíamos às vezes os terapeutas relação terapeutas de campo – equi-
de campo sentirem-se incompetentes pe reflexiva. Esta última foi sempre
pela competência da ER. considerada apoio, auxílio, ampliação.
Ficava claro, então, que embora a Todos os nossos encontros foram sem-
ER não tivesse criticado o terapeuta, pre pautados pela delicadeza com que
nem insinuado que ele não havia feito uma parte do sistema terapêutico cui-
o melhor caminho (seja o que for que dava da outra. O que contribuía para
isto queira dizer) não havia uma clare- isso?
za dos diferentes lugares de escuta. A resposta, ou melhor, as respostas
Processos reflexivos guiaram desde só poderiam vir daqueles que viven-
então não só todas as nossas práticas, ciaram a experiência como alunos.
como abriram nossa compreensão Assim convidei-os a me ensinar se e
para as ofertas da terapia colaborativa, como aprenderam essa atitude, quais
das práticas narrativas, e nos convida- foram os momentos marcantes na sua
ram a aprofundarmos nosso conheci- formação para o desenvolvimento de

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uma atitude de “não saber” em seus re- que maneira, fariam parte do repertó-
Como ensinar a não saber? 77
lacionamentos como terapeutas, com rio cotidiano de profissionais forma- Helena Maffei Cruz
os colegas e professores e transforma- dos conosco? O que espontaneamente
ções na vida pessoal. apontariam?
As práticas discursivas de ensino
desenvolvidas no Instituto Familiae
intencionalmente buscavam desenvol- 5. Vozes de quem aprende
ver-se de modo que cabe na descrição ensinando
abaixo:
Decidi incorporar ao escrito as vo-
Conversação é uma prática relacional e zes dos protagonistas do processo de
por extensão, ensinar, como conversação aprendizagem. Descrevo essas turmas
– o processo colaborativo de aprender é como comunidades de aprendizado
também uma prática relacional na qual colaborativo. Pergunto, sob esse viés, o
os participantes, professor e aluno, enga- que foi importante.
jam em um processo de fazer sentido jun- A pergunta foi enviada por e-mail
tos. O sentido, não é posse de uma pessoa. explicando a finalidade do pedido
Emerge no interjogo de pessoas intera- para os 29 participantes dessas 4 tur-
gindo umas com as outras. Deste ponto mas de quem fui professora e interlo-
de vista, o significado não é transmitido cutora clínica.
de uma pessoa para outra, mas emerge
de sua ação conjunta. Dar sentido a uma Estou escrevendo um artigo para a re-
relação de aprendizado, por exemplo, re- vista NPS com o título Como Ensinar a
quer ações coordenadas de todos os parti- Não Saber?.
cipantes. (McNamee, 2009) Revisitei meu caminho pessoal e estou
revisitando o caminho do Familiae; acre-
Desenvolvemos programas flexí- dito que coerentemente com nossas pre-
veis, procuramos respeitar ritmos missas relacionais devo ouvir o que esta
conduzidos pela classe, e, desde a in- pergunta desperta em vocês.O “não sa-
trodução do grupo autogerido, avalia- ber” tem consequências não só na sala de
mos que a construção de uma comu- terapia, mas em todas as nossas relações,
nidade de aprendizado colaborativa em especial nas relações entre pares, no
foi fortalecida. Ao término de cada trabalho, no estudo e na realização de
módulo semestral, repassamos atra- projetos grupais.
vés do Caderno de Viagem o que foi - Do que vocês aprenderam no Fami-
mais útil, o que poderia ter sido de- liae, o que foi importante para vocês
senvolvido de outra maneira, sempre formarem com seus colegas uma co-
com o foco relacional. Essas conversas munidade de aprendizado colabora-
explicitavam o caminho percorrido tiva informada pela premissa do “não
naquele semestre, enumeravam lei- saber”, isto é, do saber construir um
turas, exercícios, as intervenções dos contexto para a expressão de todas
professores. Em suma não configu- as vozes, em que todos têm autoria e,
ravam uma escolha espontânea, mas cada um, curiosidade pelo saber do ou-
motivada. tro, mesmo que este seja muito diferen-
Entretanto, ao revisitar nossas prá- te do próprio?
ticas que pretendiam “ensinar a não Se você puder me responder em algumas
saber” dúvidas surgiram-me. Que mo- linhas agradeço muitíssimo. Se você não
mentos, quais textos, apresentados de puder, por favor, avise que recebeu este e-

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-mail. O tempo para eu terminar o artigo Cada um puxou um ou mais fios da
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está ficando escasso. trama tecida a muitas mãos que gerou
tecidos semelhantes, mas não iguais,
Quem responderia? O que seria para cada turma. Recebi relatos de
para cada um “o que foi importante”? momentos, climas, atividades especí-
Não delineei uma pesquisa, queria ficas e reflexões sobre mudanças que
um coral que dialogasse como o que ocorreram na vida além da prática clí-
descrevi como um caminho em dire- nica, ao mergulharem em nova lingua-
ção ao não saber. gem. A apresentação abaixo suprime
Lembrei-me de um módulo sobre repetições e afirmações mais gerais,
Desenvolvimento Social da Criança escolhendo o que me ofereceu descri-
que eu dei em um curso para arte- ções sobre os significados criados em
-educadores, há mais de 20 anos na interações específicas. É um recorte
Universidade de São Paulo. Como pessoal, entretanto foi autorizado pe-
sempre, eu era a mais entusiasmada los autores dos relatos.
da turma e, sem recursos computa-
cionais, havia feito longas tiras verti-
cais com algumas características das 5.1 Ambiente diferente
etapas, que eu pregava na lousa com
uma fita adesiva larga que colava dos No Familiae, desde o primeiro dia
dois lados. Parecia-me que estavam to- de aula, notei que ali era um lugar di-
dos atentos prestando muita atenção. ferente, que ali teríamos tempo para
Quando quis saber se havia dúvidas nos expressar e ouvir o outro sem atro-
ou comentários, uma jovem me per- pelos nem menosprezo, que ali podería-
guntou com expressão de admiração: mos ser íntegros, nos mostrar por intei-
Onde você arranjou essas fitas que co- ro sem riscos... Sempre me senti muito
lam dos dois lados? respeitada por todos, professores e co-
Ao não elencar nenhuma das ati- legas, para expressar minhas dúvidas,
vidades ou posturas do processo era angústias e mesmo aquelas coisas que
possível surgirem respostas sobre “fitas nem eu aceitava bem em mim – e mes-
colantes dos dois lados”. A finalidade, mo nesses momentos, aprendi que valia
portanto, não é descobrir e categorizar a pena trocar, me expor, falar e ouvir
o mais e o menos citado, mas trazer porque, ainda que não concordassem
todas as vozes dispostas a fazer essa comigo, isso seria feito num enquadre
reflexão. Como os estilos de aprendi- de respeito à minha pessoa e às nossas
zagem são individuais, é esperado que possíveis diferenças.
diferentes processos tenham efeitos
transformadores diferentes na relação Vejo a formação do nosso grupo em
singular que cada um estabelece com dois tempos. Em um primeiro, vive-
seu grupo, o curso e os professores. mos todo um trabalho de construção
No prazo de duas semanas, recebi de grupo, de respeito às diferenças, de
17 respostas com relatos de experiên- exercícios constantes de experimentar a
cias marcantes e duas desculpando- postura do não saber, da plurivocalida-
-se pela impossibilidade de responder de. Sentia que éramos cuidados, ampa-
neste momento. rados. Desse modo, acredito que a pre-
Li e reli com vários sentimentos. As sença de formadores atentos e que nos
respostas foram carinhosas, espontâ- acompanhavam naquele momento foi
neas. Sem preocupação de “acertar”. essencial.

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Uma das coisas importantes foi o do acompanhar/ouvir, há a percepção
Como ensinar a não saber? 79
modo pelo qual fui acolhida na primei- das emoções, sensações, afetações, e ou- Helena Maffei Cruz
ra aula do curso. O “apadrinhamento” tros giros, que convidam a outras possi-
dos alunos do segundo ano, no intervalo bilidades.
do café, me possibilitou conversar com
quem já estava alguns passos adiante, Foi para mim um divisor de águas,
e isso gerou em mim uma sensação de traçado no Familiae, a redescrição que
transparência e de cuidado. fiz de linguagem como construtora de
realidades e não como representante de
mundo. Se somos constituídos relacio-
5.2 Não saber é ... nalmente pela linguagem e concorda-
mos com a premissa do “não saber”, tra-
O não saber está sempre presente balhar em campo ou fazer parte de uma
quando nossa arrogância não fala mais equipe reflexiva é viver a subjetividade
alto, quando nossa vaidade dá uma tré- construída no espaço terapêutico, nas
gua, quando nossa insegurança não es- relações. Considero que saio enriqueci-
camoteia nossas possibilidades... da ao ouvir diferentes vozes e ampliar
meu olhar sobre um mesmo caso, além
O fato de eu ser estrangeira, com de perceber que esta prática, construiu
costumes diferentes não te deixou de- uma amizade profunda e respeitosa em
sistir da minha formação. A tua atitude nosso grupo.
foi: Não saber e enfrentar o desafio.
Não sei se porque sou psicopedago-
O que o Familiae trouxe para minha ga o “não saber” sempre me instigou,
formação foi fundamentalmente saber a criança ou adolescente que chega ao
escutar. Escutar de outro lugar. Ficar meu consultório, geralmente chega por-
mais calada e escutar. Não interpretar o que ele “não sabe” alguma coisa, mas
que eu escutava. Essa mudança de para- basta um primeiro atendimento e perce-
digma foi fundamental. bo quantos saberes esta criança possui!
A escuta, as múltiplas vozes, toda a Sara Pain, no livro “A função positiva
diversidade que as conversas aportavam da ignorância”, apresenta o “não saber”
aliadas ao que íamos aos poucos incor- como a “curiosidade”, que pode insti-
porando das leituras e aulas foram para gar a em busca de conhecimento do que
o grande caldeirão que produziu em fogo “não sei”. O “não saber” ocuparia um
baixo uma nova postura, com possibili- lugar como se fosse a cadeira vazia em
dades ampliadas em leque de perguntas, determinado atendimento, onde posso
reflexões. Ficou muito claro que o saber sentar diversas vezes quando sinto von-
seria construído passo a passo, no per- tade de perguntar, conversar mais com
curso, com cada um, em cada relação. cada paciente que atendo, querendo en-
tender de onde ele fala quando ele fala...
O conceito do não saber favorece res-
peito que inclui ouvir aquilo que é dito, As professoras conferiam comigo se o
como uma dança em que você é levado que elas estavam entendendo era o que
pelo seu par e quando percebe já estão eu pretendia que elas compreendessem,
em sintonia, e descobrem juntos a sin- ou seja, aprendi “ao vivo e a cores” que eu
tonia dos pés, das mãos, dos giros, do não posso supor que eu compreendi uma
ritmo, da respiração e da emoção. Nos pessoa se ela não legitimar que se sentiu
giros que a dança/conversa cria a partir compreendida. Uma escuta que pressu-

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 41, p. 65-84, dez. 2011.


põe uma coordenação com o referencial mecei o curso de terapia de Família. O
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do outro: seus valores, crenças e apren- exemplo veio de atitudes de professores.
dizados. Uma compreensão que se dá no
espaço “entre”, não está nem em mim e A experiência do grupo autogerido
nem no outro, está no meio do caminho, foi fundamental para a construção de
sendo algo que se constrói junto. um ambiente de trabalho colaborati-
vo em todas as demais atividades que
participei durante o curso. A leitura e
5.3 A gente aprende ... discussão de textos, conhecimento do
construcionismo social, assim como a
Aprendemos isso no Familiae, viven- postura dos professores/supervisores
ciando na prática, vendo o tratamento foram igualmente importantes por ofe-
que vocês, professoras, davam umas às recerem substância teórica à prática.
outras, tendo a oportunidade de ver as Mas, na ordem de importância surge
professoras no campo, na raça, bata- em primeiro plano o desenvolvimento
lhando por uma boa sessão, suando a de uma vivência de espaço democrá-
camisa para que os atendidos levassem tico e acolhedor, onde saberes e fazeres
algo de bom daquele encontro, se ques- de cada participante são validados e as
tionando o tempo todo e totalmente discordâncias e diferenças tratadas com
abertas e receptivas às nossas falas... respeito e cuidado.

Sempre pensava ”que humildade tem Aprender que a escuta responsiva abre
essas professoras e que coragem para se um leque de novas possibilidades, uma
exporem atendendo diante de alunos escuta ampliada. A escuta para com-
e clientes”! Se elas podem, eu também preender, a escuta para a curiosidade, a
posso, eu também quero experimentar escuta para a afetação.
isso.
No FOT (oficina de trabalho com a
Acredito que o mais importante família de origem do terapeuta) pude
para eu poder construir/aprender/es- entender que a forma como eu contava a
tudar/viver a postura do não saber foi história da relação dos meus pais e como
aprender a premissa de que o mundo ela me fazia sofrer era apenas uma das
existe sob descrição, de que não há ver- diversas possibilidades de compreender
dades e fatos universais, e que o mundo essa experiência. Entender que posso nar-
se constrói a partir das descrições que rar essa história de outra forma e, a partir
fazemos dele. Acho que essa é uma pre- dessa outra descrição, me inserir de outra
missa básica que aprendi no primeiro forma no casamento deles e na história da
ano no Familiae, mas que foi sendo cor- minha família, possibilitou uma mudan-
roborada através da leitura de diversos ça significativa para mim, nas minhas re-
outros textos que lemos no curso, espe- lações com eles e com diversos outros, me
cialmente “O cliente é o especialista”, de fazendo sentir muito diferente.
Anderson & Goolishian.
Aprendi muito no Familiae, com to-
O “não saber” do outro, do que ele das as professoras (cada uma com dife-
está sentindo ou pensando foi uma rentes particularidades), minhas cole-
aprendizagem muito importante para gas, que se tornaram queridas amigas,
mim, apesar da prática da psicologia com os casais e famílias atendidas e com
em consultório por 15 anos, quando co- todos os autores para quem fui apresen-

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 41, p. 65-84, dez. 2011.


tada e com quem muito conversei que Acho que foi possível formar um
Como ensinar a não saber? 81
não há verdade única e absoluta, há grupo de aprendizagem pela prepara- Helena Maffei Cruz
sempre diversas maneiras de dar sentido ção feita pelos professores que deram o
às experiências vividas. Conversar com contorno do que faríamos nos grupos
o outro com respeito e curiosidade para auto-geridos e à partir deste contorno,
saber quais suas “verdades”, sem que- criamos a nossa própria forma de fun-
rer impor as minhas, e sim, oferecê-las cionamento. Em nossa primeira aula,
como uma nova possibilidade: o “não quando as professoras contaram do fun-
saber”. No processo de contar a própria cionamento do curso e do grupo autoge-
história, há a possibilidade de fazer uma rido algumas pessoas desistiram de par-
nova edição, aliviando sofrimentos e ticipar. Quem ficou já sabia das regras
abrindo novas possibilidades. do jogo e as aceitou.

De pronto a proposta do “autogerido” Eu trazia na minha bagagem a difi-


nos jogou nessa experiência de constru- culdade de me expressar verbalmente.
ção do aprendizado com o grupo. Uso a As conversas, tanto no grupo autogeri-
palavra “jogou” porque para mim essa do como nos pequenos grupos em classe,
proposta parecia então embalada de uma possibilitaram que eu falasse/me expres-
autonomia prematura. Abalou de cara o sasse sem vergonha e sem medo. Outro
primeiro pilar da minha escola conheci- fator que me ajudou a “desamarrar” as
da. Onde ficam os professores? Não tar- minhas palavras foi mover-me do cri-
dou muito para sentirmos nos encontros tério do “certo” e do “errado” para o de
auto-geridos a riqueza de compartilhar “utilidade”. Aprendi a perguntar-me:
escuta, duvidas, incertezas, diferenças.. para quem isso é bom? Quando? Em que
contexto?
Vivenciei no curso do Familiae in-
contáveis experiências nas quais cada
aluno era convidado a falar de si, a co- 5.4 Um jeito colaborativo
laborar, a trazer suas reflexões no grupo. de atender
Penso que isso se tornou possível, por
meio das perguntas feitas a nós, alunos, Da relação criada no grupo para
pelas professoras. estar no campo ou na equipe reflexiva
Na primeira aula: Como eu gostaria com meus irmãos-de-coração, foi só dei-
de me apresentar? O que acho impor- xar acontecer. Já estávamos envolvidos
tante que as pessoas saibam a meu res- nesse clima de colaboração, unidos pelo
peito nesse momento? sistema terapêutico e para o sistema te-
No início de cada encontro: rapêutico.
Como estou chegando hoje?
O que preciso para me sentir confor- As equipes reflexivas eram sempre
tável? muito esperadas pelas terapeutas de
Disso que preciso o que depende de campo e pelos próprios pacientes. Sabía-
mim, o que depende das professoras, o mos que ouviríamos outras vozes, sobre
que depende do grupo? coisas que não tinham sido conversadas:
Tais perguntas, do meu ponto de vis- novas ofertas que poderiam ser úteis.
ta, “criam”e favorecem um contexto de Importância da constante observação
aprendizagem e de colaboração, no qual do terapeuta, de suas afetações, suas
as vozes de cada um são bem-vindas e conversas internas, que vão interferindo
legitimadas. no que escolhemos falar.

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O que mais me ajudou na construção no. A verdade é de cada um, mas com
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dessa postura foi de fato a ideia de que uma ética forte e precisa. Esse foi um te-
estávamos ofertando possibilidades souro que o IF me presenteou.
que poderiam ou não ser aproveitadas
pela família ou casal atendido. A atitude colaborativa foi das maio-
Penso que para quem está sendo aten- res aquisições da formação de terapeuta
dido poder participar de um contexto familiar no Familiae. Penso que isso me
onde todos se colocam disponíveis para valeu mais do que crescimento profissio-
um bem comum é de grande valia por si nal; o pessoal foi maior.
só. A competitividade perde espaço para
a colaboração e o olhar para o outro. Essas posturas respeitosas de se orien-
A partir da experiência de estar na tar no mundo me fazem pensar o quan-
equipe reflexiva, aprendi a escutar o to preciso do outro para criar/aprender
outro, enquanto ao mesmo tempo estou algo. Hoje, me vejo num exercício de
atenta para o que estou sentindo. Passei aprender a ser espontânea. Nas palavras
a considerar que as reflexões que faço, a de Harlene Anderson: “Ninguém pode
partir do que me toca, são “ofertas” para ensinar ninguém a ser espontâneo, mas
o outro: ele pode escolher utilizá-las ou eu posso me responsabilizar de criar
não. Aprendi ainda que uma pergunta com o outro um contexto onde as pesso-
abre um espaço de busca e é uma ferra- as possam pensar mais livremente.” Eu
menta fundamental para a construção escolho me responsabilizar pela criação
conjunta de novos significados. desse contexto hoje na minha vida!

Eu atendo em uma clínica univer-


5.5 Atitudes de vida sitária pessoas encaminhadas por mé-
dicos e “tem que” passar com a psicó-
Isso vale para o meu trabalho clí- loga. Chegam à primeira entrevista de
nico, quando estou com minha filha maneiras muito diversas, entre outras
adolescente e p/ inúmeras outras situ- coisas, em função do motivo pelo qual
ações onde preciso contemplar minhas foram encaminhadas e das expecta-
necessidades mas também as do outro. tivas que criaram sobre esta entrevis-
É como uma parada no tempo, uma ta. É muito frequente relatarem, ao
conversa interna pautada pela sinceri- final, que a conversa foi muito dife-
dade e lealdade comigo mesma, antes de rente do que imaginavam e de expe-
qualquer coisa. riências (consultas) que já viveram.
Dizem que se sentiram ouvidas, aco-
Em quaisquer relações (no trabalho, lhidas, se sentiram à vontade... Pen-
com família, com amigos) sei que minha so que tem a ver, entre outras coisas,
descrição é apenas uma dentre tantas com o encontro com uma psicóloga
possibilidades, assim, me disponho com que “não sabe”, e que contribui para
curiosidade para saber outras descrições que a conversa seja muito diferente...
possíveis que o outro pode me trazer, sus-
tentando assim a postura de não saber Estive em Roma recentemente. Ouvi
qual a descrição de mundo do outro. várias histórias de brasileiros que visita-
vam a cidade. Meu impacto foi grande
No Familiae vocês nos ensinaram um ao perceber que pude aceitar e compre-
jeito novo e diferente de ser e estar no ender a visão de pessoas crentes que se
mundo. Mais respeitoso bonito e huma- maravilharam com a Roma cristã. Fi-

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 41, p. 65-84, dez. 2011.


quei surpresa comigo mesmo por dei- propõem exercícios para seus alunos
Como ensinar a não saber? 83
xar de lado o preconceito em relação visando desenvolver a atitude de “não Helena Maffei Cruz
às pessoas crentes. Pensei com meus saber”.
botões: acho que estou mais aberta às Que mais precisam para saber se:
diferenças. Como judia não religiosa, • eles aprenderão o “não saber”?
não consegui deixar de pensar na In- • renegarão o “não saber”?
quisição e na riqueza material da Igre- • considerarão as professoras com-
ja. Acho que a principal contribuição petentes ou ignorantes?
foi poder olhar de “peito mais aberto”
para as diferentes formas de conceber a Resposta: Conversar, conversar, con-
existência. Entendo este não saber como versar, conversar... Tomo emprestadas
uma posição de aceitação do saber do as palavras de Harlene (2011): “Espero
outro buscando não compará-lo. Não é ter provocado conversações e reflexões
fácil, pois a comparação faz parte de internas em você e ter estimulado-o a
uma escolha. quando escolho algo, analisar e questionar suas próprias teo-
deixo de lado outro. rias e práticas (de ensino). Continuarei
a examinar as minhas. Você, leitor(a),
será parte das conversações de que par-
5.6 Aprendendo pelo avesso ticipo à medida que novas experiências
me intimarem a descrevê-las, e à
Em um momento, no meio do cur- medida que eu refletir sobre coisas que
so, as disciplinas passaram a ser ofere- disse e deixei de dizer.”
cidas como módulos abertos a outros
profissionais da área. Senti então uma
grande diferença na formação. Prin- Referências Bibliográficas
cipalmente quanto ao cuidado com o
grupo. Nosso grupo, que havia experi- ANDERSEN, T. (2000). Workshop Práti-
mentado uma construção muito pró- cas Reflexivas em Novos Cenários,
pria, conjunta, foi ao primeiro dia de realizado pela Associação Paulista
aula e soubemos repentinamente que de Terapia Familiar – APTF. [filme-
o curso era um módulo aberto no qual -vídeo], São Paulo.
haviam sido incluídos mais   8 alunos. ANDERSON, H., GOOLISHIAN, H. (1988).
Não Sabíamos disso e precisávamos nos Los Sistemas Humanos como Sis-
adaptar. Acredito que conseguimos nos temas Linguísticos Implicaciones
flexibilizar, mas em alguns momentos para La Teoria Clinica y La Terapia
havia atividades que nos convidavam a Familiar. Revista de Psicoterapia, v.
expormos aspectos da vida pessoal. Fa- II, n. 67, p. 41 – 72.
zê-lo em meio a pessoas com que convi- ANDERSON, H. (2011). Conversação,
víamos e havíamos experimentado a co- linguagem e possibilidades: um en-
laboração e respeito, era uma coisa. Mas foque pós-moderno da terapia. São
sem essa construção anterior, foi difícil. Paulo: Roca, 2011.
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