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António Manuel Hespanha a, O estatuto jurídico da mulher na época da expansão

António Manuel Hespanha , O estatuto jurídico da mulher na época da


a

expansão.

Em 1557, um advogado da corte, Rui Gonçalves, animou-se a oferecer à


rainha D. Catarina um livrinho em que coleccionava, juntamente com exemplos
de "algumas virtudes em que as mulheres foram iguais e precederam os
homens" (p. 4), os privilégios e prerrogativas que o direito lhes concedia . 1

Rui Gonçalves não era, de certo, um "feminista". O intuito da sua obra


era, como o de muitos escritores cortesãos da época, concitar o favor real. Neste
caso, estando a coroa sob a tutela de uma mulher, elaborando uma recolha de
exemplos e tópicos que favoreciam - por diversas razões, incluindo a
condescendência paternalista ou o favor devido aos imbecis - o género
feminino. Levantar a carga de preconceitos que a tradição fizera cair sobre a
natureza ou a condição das mulheres exigiria renegar as autoridades
estabelecidas e inventar um discurso novo.

De facto, ontem como hoje, a condição da mulher, concretizada nos usos


da linguagem, em preceitos cerimoniais e de etiqueta, em normas jurídicas,
decorria de modelos de leitura (ou de construção) da natureza depositados na
tradição cultural europeia. Nesta tradição, os textos fundadores quanto às
grandes questões da compreensão do mundo e do homem são os livros de
autoridade da cultura religiosa, da cultura letrada difundida, em geral, nas
Escolas de Artes, e de duas culturas especializadas, com antiga tradição
universitária e fortíssimo impacto na vida quotidiana - a dos médicos e a dos
juristas. E, mesmo neste âmbito, manifestam-se hierarquias. Se, pegando em
textos de direito, explorarmos as suas genealogias, é muito provável que
terminemos no Génesis ou na Física de Aristóteles. E, se partirmos de textos de
medicina, chegaremos provavelmente aos Aforismos de Hipócrates ou nos textos
de Galeno sobre a natureza e as doenças das mulheres.

Ressalvadas as diferenças de ênfase e alguma discussão de detalhe -


como a conhecida polémica entre platónicos e aristotélicos sobre a alma das

a Investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.


1 Rui Gonçalves, Dos privilegios e praerogativas que ho genero feminino tem por direito comum &
ordenações do Reyno mais que ho genero masculino, Lisboa, 1557. Outro título juríico, mais tardio,
sobre o género feminino: Duarte de Barros, De Iure foeminarum. Quaestines iuris civilis, 1678, 2 tomos.

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mulheres ou entre Aristóteles e Hipócrates sobre a existência de sémen


feminino -, a imagem da mulher contida nesta tradição era consistente,
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podendo explicar, não apenas as práticas habituais, mas também as normas de


comportamento. Neste sentido, tudo o que se relaciona com mulheres - desde
os provérbios e as representações literárias até às normas jurídicas e aos
preceitos morais - constitui um universo sem surpresas, pois cada detalhe é
imediatamente referível a uma ideia força, frequentemente ligada a um lugar
textual bem conhecido, como o relato bíblico da Criação ou da Queda ou os
passos do Tratado da geração dos animais de Aristóteles sobre a função dos
machos e das fémeas na geração.

O direito participava deste sistema de pré-compreensões profundas


sobre a identidade e a natureza dos sexos e recebia dele as suas intuições
fundamentais . No entanto, como saber prático de um mundo social em que as
3

mulheres eram mais do que seres passivos e menorizados, o direito - que, de


resto, partia dos dados da cultura romana sobre o género, muito mais
igualitária do que a cultura judaica -, diferenciara-se como sistema produtor de
imagens sobre o feminino. Descolara dos pontos de vista extremos sobre a
incapacidade das mulheres, frequentes em vários lugares das Escrituras e da
Patrística, e desenvolvera algumas valorações próprias, que permitiam a
integração de situações reais, como as da mulher dona de bens, da mulher
feudatária, da mulher rainha.
Antes de tudo, o que era "mulher" ?

Mulheres.
Eis uma questão que, para os juristas, tem um alcance próprio. Para eles,
não se trata, fundamentalmente, de identificar uma coisa. Claro que existiam
questões facticamente complicadas, como a classificação sexual do
hermafrodita, a que os juristas também se dedicaram. Como se dedicaram a
estabelecer normas que impedissem a confusão dos géneros na ordem das
coisas, proibindo, por exemplo, que as mulheres se vestissem de homens ou
que cortassem os seus cabelos como os dos homens . 4

2 Aristóteles, Tratado da geração dos animais, II, 5, 20.


3Sobre o estatuto da mulher no direito comum, v., por todos, Helmut Coing, Europäisches Privatrecht.
1500 bis 1800. Band I. Älteres Gemeines Recht, München, C. H. Beck, 1985, 234 ss..
4Decreto, I, dist. 30, c. 6 (concílio Gangrense, contra os maniqueus, c. 376) "Anátema seja a mulher
que, por isso lhe ser útil, se vista com vestes masculinas [ou cortar os cabelos à homem]".

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Mas, rigorosamente, saber se, na ordem dos factos, existem seres


sexualmente diferentes e quais são essas diferenças é, para os juristas, coisa
pouco menos do que irrelevante. Os juristas não trabalham com coisas,
trabalham com conceitos. O importante, para eles, é saber como é que, por cima
dessas pré-jurídicas distinções das coisas, o direito constitui, ao classificar o
mundo, os seus objectos próprios e que força expressiva dá aos seus nomes.
Por exemplo, que força tem, juridicamente, o nome "mulher", o
feminino. Ou seja, dispondo a lei para as fémeas, abrange também os machos ?
E, dispondo a lei para os machos, abrange também as fémeas ? Por detrás
destes problemas de interpretação das palavras genéricas, muito usuais e
importante para quem lida com normas formuladas em termos abstractos,
escondem-se todavia questões muito mais substanciais do ponto de vista de
uma ontologia do género.
A regra mais geral que os juristas evocam , quanto a este uso do género
5

das palavras, é a de que na locução corrente, o masculino inclui geralmente o


feminino. O que está de acordo com um princípio de representação simbólica
de âmbito muito geral segundo o qual a cabeça evoca, naturalmente, todo o
corpo. Já o feminino não compreende, senão excepcionalmente, o masculino,
pela mesma ordem de razões de que não se designa o todo pela parte mais
fraca.
Já se vê que esta regra generalíssima é tudo menos inocente, do ponto de
vista da hierarquização dos géneros, remetendo - na época muito mais do que
hoje -, quer para uma concepção hierarquizada do mundo, quer para uma
concepção realista da linguagem, em que o poder denotativo das palavras se
enraizava nos poderes e hierarquias recíprocos das próprias coisas. As próprias
excepções são significativas. As Ordenações filipinas (I, 74, 20) falam das coimas a
aplicar às "mulheres que são useiras de bradar" ; tal como, ao tratar do crime
6

de feitiçaria, o Decreto de Graciano (p. II, C. 26, q. 5, c. 12) evoca, naturalmente,


feiticeiras. Num caso e noutro, a norma contida nos textos aplicava-se também
aos homens. Aqui o uso do feminino remetia para usos correntes da linguagem
em que este género significava - contra a regra generalíssima - o todo. Mas isto
não pode deixar de se relacionar com a presunção subjacente de que situações
como as previstas envolviam normalmente as mulheres. Zaragateiras e bruxas.
Agostinho Barbosa - um célebre canonista do séc. XVII - discute
detidamente esta questão do uso do feminino e do masculino, a propósito do

5 Cf., v.g., Rui Gonçalves, Dos privilegios ..., "prólogo".


6 Cf. Manuel A. Pegas, Commentaria ad Ordinationes, 1669, VII, ad Ord. fil. I, 74, 20, n. 4: "o mesmo
se passa com o estatuto que proíbe [o pastoreio de] cabras, pois sob tal proibição se compreendem
também os bodes".

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par "filhos / filhas" . Em geral, "filhos" incluiria as filhas, excepto naqueles


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casos em que a razão do direito fosse diferente para os homens e para as


mulheres. Os exemplos que dá destes casos excepcionais também são
característicos. Não se aplicaria às filhas, por exemplo, a lei que manda punir os
filhos pelo crime do pai, como na lesa majestade. Uma vez que a razão da lei é
que a memória do crime do pai se mantenha nos filhos, esta não valeria nas
filhas, não só porque nestas se perde a memória da família (ao ganhar, por
casamento, uma outra família), mas também porque as filhas "por causa da
fraqueza do sexo, são menos ousadas". Já na heresia - que era equiparada à
lesa-majestade (laesae majestatis spiritualis) -, se passaria o contrário: a punição
do pai deveria passar às filhas, porque "na heresia, o perigo é maior nas
mulheres por causa da imbecilidade do seu intelecto" (n. 55).
A regra de que o masculino inclui o feminino é, além disso, em geral
afastada sempre que daí decorram soluções absurdas ou inconvenientes (ibid.,
ns. 67-68). Ou seja, sempre que, neste mundo particular construído pelos
conceitos do direito, o ser mulher seja, para certos efeitos, tão radicalmente
específico, que se rompa a unidade de natureza entre o varão e a fémea e se
transforme esta numa espécie à parte, à qual o regime jurídico genérico não
possa ser aplicado sem absurdo ou impropriedade. Um destes casos em que a
femilidade bradava por uma especialidade do direito era o da sucessão de bens
que importassem dignidade. Pois era tão absurdo que estes viessem a recair
numa mulher que, se o pai no testamento falou de "filhos", era claro que não
poderia ter querido incluir as filhas na locução. Esta era a regra hermenêutica
adequada a cláusulas testamentárias referidas aos castelos, aos feudos ou s
jurrisdições, "em que as mulheres não podem suceder" (n. 71) ou aos bens que
só se transmitam a varões, "por causa da dignidade ou da conservação da
memória familiar" (n. 70).
Uma interpretação profunda destas regras de uso do género nos textos
jurídicos - decalcadas, em parte, dos usos da linguagem corrente - permite
detectar já, não apenas os âmbitos do feminino no direito, mas também os
contornos da imagem da mulher.
O feminino é, em geral, irrelevante (inexistente), sendo denotado pelo
masculino tanquam corpus a capite sua. Porém, quando a imagem da sua
particular natureza o faz irromper no direito, o próprio direito explicita os
traços da sua pré-compreensão da mulher, traços que o próprio saber jurídico
amplifica e projecta socialmente em instituições, regras, brocardos e exemplos -
fraqueza, debilidade intelectual, olvido, indignidade.

7Agostinho Barbosa, Tractatus varii. De appelativa verborum utriusque iuris significatione, Lugduni,
1644 (ed. util.), v."Filius", ns. 48 ss..

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Percorramos mais detidamente os traços desta imagem da mulher.

Menos dignas.
O primeiro traço é o da sua menor dignidade, o que incapacitaria as
mulheres, nomeadamente, para as funções de mando.
Esta distinção era constante nas matérias políticas e jurisdicionais, em
que, ou por natureza ou por decência, a mulher não podia ter as mesmas
prerrogativas que os homens.
O texto fundador era, neste caso, um passo de Ulpianus, inserido no
Digesto *): "As mulheres estão afastadas de todos os ofícios civis ou públicos; e,
(

por isso, não podem ser juízes, nem desempenhar magistraturas, nem advogar,
nem dar fianças, nem ser procuradoras" (D. 50. 17, 2). Santo Agostinho devia
tê-lo conhecido, pois quase o reproduz, combinado com outros e ampliado, nas
suas Quaestiones super veteris Testamenti (c. 45), em apoio da imagem negativa
da nulher que perpassa todo o Antigo Testamento. Daí passa ao Decreto de
Graciano **) : "Constata-se que a mulher está sujeita ao domínio do homem, não
( 8

tendo, por isso, qualquer autoridade, nem poder ensinar, nem ser testemunha,
nem dar fianças, nem julgar; muito menos pode exercer o império". O círculo -
direito civil, direito canónico - fechava-se, constituindo a mulher em sujeito
particular - na verdade, um sujeito excluído - do direito político; ou seja,
identificando a mulher para a poder exluir do universo dos detentores
possíveis de prerrogativas políticas.
A lição de alguns escritores clássicos permitia mesmo atribuir
fundamentos naturais a esta interdição. Aristóteles, por exemplo, abunda no
tema da inferioridade do género feminino. No seu Tratado da geração dos
animais , o filósofo insiste longamente no tópico do papel gerador e activo do
9

macho na procriação. Para além da enunciação deste princípio geral da


natureza (I, 2, 2-5; I, 14, 15-18; I, 15, 4-8; II, 5, 6-7, etc.), Aristóteles ilustra-o com
provas concretas tiradas da fisiologia da união sexual. Tanto as fémeas eram
inferiores, que nem sequer emitiam, no coito, qualquer sémen (I, 13, 12-13; I, 14,
2-3, 15-18; II, 5, 20). Também o seu prazer era puramente derivado, coincidindo

(*) Compilação bizantina de doutrina jurídica romano-clássica, incluída no Corpus iuris civilis, obra
central em toda a tradição jurídica europeia.
(**) Compilação de cânones e de doutrina canonística (séc. XII), incluída no Corpus iuris canonici, outro
texto central na tradição europeia do direito até ao séc. XVIII.
8 II, C. 34, q. V, c. 17.
9 Ed. util. Traité de la génération des animaux, ed. J. Barthélemy-Saint Hilaire, Paris, 1887.

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com a efusão na madre do sémen masculino (II, 5, 16-17) . Em suma, tal como
10

o oleiro age, com a sua ideia e a sua acção, sobre o barro inerte e passivo, assim
o macho trabalharia, na geração, a matéria passiva do fluxo menstrual
feminino, considerado como a matéria prima do embrião (I, 15, 8; I, 16, 1-2).
Passivas, e mais fracas: "as fémeas são naturalmente mais fracas e mais frias 11

do que os machos; pode-se crer que isto é uma espécie de inferioridade de


natureza do sexo feminino" (IV, 6, 7). Platão fora, como se sabe, mais longe na
indignificação da mulher. Um e outro convinham, porém, na inabilidade
natural da mulher para o exercício de funções de mando. A aplicação de tudo
isto ao género humano também não deixa de ser expressamente feita (II, 5; II,
6).
S. Tomás de Aquino, um bom leitor de Aristóteles, partilhava destes
pontos de vista sobre a condição feminina . Na Summa theologica , uma obra
12 13

que influenciará decisivamente toda a cultura europeia, antes e depois de


Trento, ele manifesta a opinião de que as mulheres são infelizes acidentes da
natureza: "[...] Deve dizer-se que, pela natureza particular, a mulher é algo de
deficiente e ocasional. Pois a virtude activa que reside no sémen do varão,
tende a produzir um efeito semelhante a si mesmo, de sexo masculino. Porém,
se se gerou uma mulher, isto aconteceu por causa de debilidade da virtude
activa, ou por alguma indisposição, ou ainda por alguma mudança extrínseca,
como os ventos do sul, que são húmidos".
A tradição judaica vincava ainda mais a inferioridade da mulher. O
relato da criação da mulher (Génesis, I, 2, 18), bem como a da sua parte na
tentação de Adão e sua consequente condenação por Deus (Génesis, 1, 3) têm
efeitos devastadores muito duradouros sobre a imagem da dignidade da
mulher. No universo dos textos jurídicos, a presença desta imagem é constante.
O Decreto de Graciano - que recolhe muito da tradição patrística, fortemente anti-
feminista - está cheio de referências à menor dignidade da mulher, aos seus
fundamentos e às suas consequências.

10Cf. Hipócrates, Da geração, n. 6 (ed. util., Oeuvres médicales, Toulouse, 1801. Sobre as concepções
àcerca dos aspectos físicos e fisiológicos do género feminino, Edward Shorter, A history of women's
bodies, New York, Basic Books, 1982; Susan R. Suleiman, The female body in western culture.
Contemporary perspectives, Cambridge, Harvard U. Press, 1986 (colecção de ensaios de interesse
desigual).
11Frialdade e calor, humidade e secura, são, na medicina hipocrática, sintomas, respectivamente, de
imperfeição e de perfeição. O calor é a fonte da geração e da acção; a humidade, o sinal da
degenerescência e decomposição.

12 Sobre a condição feminina em S. Tomás, Otto H. Pesch, Tomás de Aquino. Límite y grandeza de una
teologia medieval, trad. esp., Barcelona, Herder, 1992, 246-271 (notável).
13 Summa theol., I, 92.1 ad 1.

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Alguns textos baseiam a menor dignidade da mulher na lei da natureza.


"É da ordem natural em tudo, que as mulheres sirvam os homens e os filhos, os
pais; pois não constitui nenhuma injustiça que o menor sirva o maior" (Decreto,
2. p., C. 33, q. V, c. 12) . 14

Outros ligam-na à história da criação de um género e de outro. As


palavras de S. Paulo aos coríntios sobre a submissão da mulher ao homem e da
esposa ao marido (cf. Coríntios, I, 11), estão constantemente subentendidas,
sempre que se aborda o tema das relações entre os géneros. De Santo Agostinho
cita-se, por exemplo, a doutrina de que "a imagem de Deus reside no homem,
de modo a que ele seja tido como que senhor; de onde alguns deduzem que o
homem tem o império de Deus, como seu vigário [...] Mas a mulher não é feita
à imagem de Deus" (Decreto, 2. p., C. 33, q. V, c. 13) . 15

Outros fundam a menor dignidade da mulher no papel da mulher no


pecado original e na condenação com que Deus, por isso, a fulminou (Génesis, 1,
3, 16). Daí provinha a ideia bíblica de impureza da mulher, nomeadamente nos
períodos caracteristicamente femininos da menstruação e do parto, nos quais
estava interdita de frequentar o templo, não podia ser acedida sexualmente e
impurificava as coisas em que tocasse (Levítico, 3, 12; 3, 15, 19 ss.). Os cristãos
atenuaram estas interdições; mas as Decretais continuam a desculpar a mulher
que, por se sentir impura, observasse os preceitos da Lei Antiga . De qualquer 16

modo, o Decreto retinha o ensinamento de Santo Ambrósio de que "foi Adão


quem foi enganado por Eva e não Eva por Adão. Foi a mulher quem o atraiu
para a culpa, pelo que é justo que seja ele a assumir a direcção, para que, por
causa da facilidade das mulheres, não volte a cair" (Decreto, 2. p., C. 34, q. V, c.
18) . 17

Na tradição cultural que arranca daqui, a mulher permanece sempre


marcada por esta mancha original. Ela deve ser continuamente lembrada e
assumida. O véu era uma das marcas de vergonha que sempre devia levar . E 18

o seu comportamento exterior deveria ser continuamente regulado pelas ideias


de sujeição e de expiação. S. Paulo (A Timóteo, I, 2, 9-15) sintetiza assim o seu

14 A fonte é S. Agostinho (1 lib. quaest. Genesis, q. 153).


15 Fonte: S. Agostinho, Quaestiones veteris et novi test., c. 106.
16Decretais, III, t. 47, de purificatione post partum, c. un.: a mulher pode entrar na Igreja durante o
puerpério e menstruação; mas se se quiser abster disso por respeito, tal facto não é considerado falta de
devoção.
17 Fonte: Santo Ambrósio, In hexameron in tractatu diei quartae.
18 Decr., 2. p., C. 33, q. V, c. 19 (< S. Ambrósio, super primam epist. ad Corinthios, in cap. 2): "A
mulher deve velar a cabeça [...] pois o pecado foi provocado por ela e, por isso, deve trazer este sinal.
[...], devendo aparecer como sujeita ao pecado original".

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comportamento devido. "Aprenda a mulher em silêncio e com toda a


submissão. Não permito que a mulher ensine ou domine o homem. Que se
mantenha em silêncio. De facto, Adão foi criado primeiro, e depois Eva. E
Adão não foi seduzido, mas a mulher foi-o para o pecado. Apenas se salvará
pela geração de filhos, se permanecer na fé, caridade e santificação com
sobriedade".
Esta subordinação, no estado de inocência e no estado de pecado, da
mulher ao homem aviva-se ainda no caso da mulher casada, a que alguns dos
textos antes citados mais directamente se referem. Apesar de, no casamento, os
cônjuges serem um para o outro e se fazerem carne de uma só carne , a 19

desigualdade natural (pré-nupcial) dos dois sexos limitava esta igualdade


prometida. Daqui decorrem todas as incapacidades específicas da mulher
casada, bem como a sua subordinação ao marido. S. Jerónimo, esse campeão
da androgenia, fulmina a mulher desobediente com o pecado equivalente ao
daquele que se revolta contra o próprio Cristo "como a cabeça da mulher é o
marido, mas a cabeça do marido é Cristo, toda a mulher que não se submeter a
seu marido, isto é, à sua cabeça, torna-se ré do mesmo crime do homem que
não se submeta a Cristo, sua cabeça [...]. Mesmo as mulheres gentias servem
seu marido segundo uma lei comum da natureza" (Decreto, 2. p., C. 33, q. V, c.
15) . 20

Esta pré-compreensão da mulher como ser degradado desentranha-se,


no decurso da tradição jurídica europeia, em consequências normativas,
algumas das quais são meras extensões dos lugares das Escrituras,
comunicadas ao direito pela sua recepção no direito canónico.
Directamente do Levítico se extrai a consequência de que mulheres,
mesmo as consagradas a Deus ou as monjas, estão proibidas de tocar os vasos
ou vestes sagradas (Decreto, I, dist. 23, c. 25).
A regra paulina sobre a sujeição das mulheres aos homens -
nomeadamente, a sua proibição de que a mulher domine o homem - combina-
se com o já citado passo ulpinianeu do Digesto (D., 50, 17, 2) e gera uma
tradição formidável de interdições quanto ao acesso das mulheres a tudo
quanto possa ser entendido como lugar de magistério ou de mando.

19 "Desta vez, sim, és ossos dos meus ossos,


E carne da minha carne. Esta será chamada mulher
Porque do varão foi tomada." (Génesis, 1, 2, 23)
O passo é citado por Mateus, 19, 5; Paulo, Coríntios, I, 6, 16; Paulo, Efésios, 5, 31.
20 Fonte: S. Jerónimo, Super epist. ad Titum, in cap. 2, c. an. 386. O texto é recolhido em Decreto, 2. p.,
C. 33, q. V, c. 15.

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No plano do direito canónico, está-lhe vedado o sacerdócio, pois este


implica jurisdição e magistério. Bem assim, todos os actos avulsos desta
natureza. As abadessas ou outras superioras, por exemplo, não podem pregar,
benzer ou ouvir as monjas em confissão (Decretais, V, 38, 10) . Por maioria de 21

razão, "qualquer mulher, ainda que douta, não deve ensinar em reunião de
homens". Mas também não pode baptizar (Decreto, I, d. 23, c. 20).
Pelo direito civil, como já se viu, "as mulheres estão afastadas de todos
os ofícios civis ou públicos; e, por isso, não podem ser juízes, nem desempenhar
magistraturas, nem advogar, nem dar fianças, nem ser procuradoras" (D., 50,
17, 2).
O direito comum aplica este princípio, com algumas limitações, ao
mundo político medieval e moderno. Assim, veda-lhes, em princípio, o
exercício de magistraturas e de lugares que importem jurisdição, a sucessão nos
feudos e nas alcaidarias . 22

Esta recusa de capacidade política às mulheres tinha, depois,


consequências na sua capacidade sucessória relativamente a todos aqueles bens
que contivessem alguma dignidade: feudos, morgados, ofícios e regalia . "As 23

mulheres não costumam suceder nos castelos, que costumam ficar para os
filhos, pro dignitate, & consuetudine familiae [a bem da dignidade e memória da
família]", escreve, no séc. XVII, Agostinho Barbosa . 24

Em Portugal, o princípio da incapacidade políticia feminina é recebido


na Lei Mental (primeira metade do séc. XV), que exclui as mulheres da sucessão
nos bens da coroa (Ord. fil., II, 35, 4). "As mulheres - escreve Jorge de Cabedo
no início do século XVII - são incapazes de serem donatárias de bens da coroa,
25

21 "Mulier nos potest ordinari quia est incapax ordinis clericalis[...] nec potest exerceri spiritualia, neque
tangere sacra vasa [...], neque potest accedere ad altare [...] neque potest praedicare, neque publice
docere, quamvis sit docta, & sancta, quoniam hoc est officium sacerdotale" (António Cardoso do
Amaral, Summa seu praxis judicum, et advocatorum a sacris canonibus deducta, Ulyssipone 1610 (ed.
cons. cit. Liber utilissimus ..., Conimbricae 1740 [adições de José Leitão Teles]), v. "Mulier", n. 2.
22 A opinião é comum. V., em Portugal, Alvaro Valasco, Decisionum, consultationum ac rerum
judicatarum, Ulysipone 1588 (ed. util., Ulysipone, 1730), dec. 120, n. 3; 157, n. 8; António da Gama
Pereira, Decisionum Supremi Senatus..., Ulyssipone 1578 (ultª. ed. 1735), dec. 337, n. 2; António
Cardoso do Amaral, Summa ..., cit., v. "Mulier", n. 4..

23Manuel A. Pegas, Commentaria ad Ordinationes, 1669, XI, cap. 69, n. 3 ss.; Jorge de Cabedo,
Practicarum observationum sive decisionum Supremi Senatus regni Lusitaniae, Olyssipone 1602-1604,
2 vols. (ultª ed. 1734), , I, dec. 208; já nas sucessões de bens indiferentes (como os bens alodiais ou
enfitêuticos), o varão não deve preferir a mulher (António Gama, Decisiones ... (cit.), dec. 194, n.3;
Alvaro Valasco, Decisionum ..., cit., cons. 157, n. 7.
24 Tractatus varii. De appelativa ..., v. "Filius", n. 61.
25 Jorge de Cabedo, Practicarum observationum ..., cit, II, 27, 1 ss..

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estando proibidas de os possuirem. A razão é patente, pois tais bens


compreendem muitos actos de jurisdição, como são julgar, nomear ouvidores
para julgar, confirmar os juízes eleitos, apresentar tabeliães e outros
magistrados e, de vez em quando, nomear alguns ofícios. Compreendem
também regalia, como os ofícios dos castelos, que são os chefes dos castelos a
que chamamos Alcaides mores dos castellos, os quais também não competem às
mulheres, nem estas os podem exercer por si, pois não pertencem a mulheres
actos de guerra, como também não lhes pertencem os actos de jurisdição, l.
foeminae [...] Estas proibições existem, a não ser que o Príncipe conceda
especialmente a mulheres estes cargos".
O mundo medieval e moderno europeu participava, no entanto, de
outras tradições jurídicas e políticas que outorgavam papéis políticos diferentes
ao feminino. Conhecia rainhas, condessas, senhoras de terras, padroeiras de
mosteiros, que exerciam prerrogativas de mando e que, enquanto senhoras,
exerciam também a jurisdição. O direito feudal lombardo - que, através dos
Libri feudorum incluídos no Corpus iuris civilis, influenciava o direito feudal e
senhorial de toda a Europa - conhecia a sucessão feminina dos feudos. Se isto
não foi suficiente para obliterar a tradição judaica, foi pelo menos bastante para
temperar as opiniões quanto ao fundamento da exclusão das mulheres dos
cargos de dignidade. Se havia costumes e leis que as admitiam, se, além disso,
a história era abundante em exemplos de boas governantes, é porque a
incapacidade política da mulher não podia decorrer de um defeito do sexo; mas
apenas de um costume criado em certas nações, atenta a honestidade e o pudor
femininos . "A mulher - sintetiza António Cardoso do Amaral -, segundo
26

costume prescrito, não pode ter jurisdições, exercê-las por si, julgar e dar
sentenças. À mulher não é proibido julgar e ter jurisdição por causa da
capacidade, mas por causa da honestidade [...] não porque careça de juízo, mas
porque foi recebido que não exerça ofícios civis" . 27

MENOS DIGNAS, Frágeis e passivas. LASCIVAS ASTUTAS E MÁS


Mesmo que esta tradição literária, fundamentalmente judaica, da
indignidade das mulheres pudesse ser cancelada, restava ainda a tradição, essa
predominantemente clássica, da sua fraqueza e fragilidade.
Os juristas são unânimes em considerar que as mulheres carecem das
capacidades suficientes para se regerem por si só. "As mulheres, em razão da

26 Codex, tit. de mulieribus in quo loco munero sexui congruentia vel honores adgnoscunt.
27 António Cardoso do Amaral, Summa..., v. "Mulier", n. 5.

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ignorância, equiparam-se às crianças", escreve Pegas , recolhendo uma opinião


28

comum. "O seu engenho é móvel [...] a sua disposição vária e mutável, como
diz o poeta, presumindo-se que se deixam facilmente mover com carícias",
escreve Pegas . Daí que já o direito romano lhes proibira, pelo
29

Senatusconsultum Velleianum, dar fianças, para evitar que cedessem às


manobras de sedução dos devedores . 30

São naturalmente ignorantes, como os meninos e os rústicos, não sendo


de presumir que conheçam o direito . Daí que a Glosa enumere os casos em que
31

essa ignorância lhes vale como excusa . 32

Por tudo isto, têm de estar sujeitas à tutela de alguém . S. Tomás explica 33

com detalhe que os fundamentos desta sujeição - que é diferente da do escravo


- são altruístas, destinando-se a proteger a própria mulher. "[...] A sujeição é
dupla. Uma é a servil, pela qual o senhor usa aquele que lhe está sujeito para
sua própria utilidade; e esta sujeição foi introduzida depois do pecado. Mas
existe uma outra sujeição, a económica ou civil, pela qual o senhor usa daquele
que lhe está sujeito para utilidade deste. E esta sujeição existiu também antes
do pecado, pois teria faltado algum bem à multidão dos homens se eles não
fossem governados por alguns mais sabedores. E por tal sujeição a mulher está
sujeita ao homem, pois no homem abunda mais, por natureza, a discrição da
razão. Nem a desigualdade dos homens é excluída pelo estado de inocência
[...]" ([Summa theol., Ia., 92.1 ad 2).
Antes do casamento, estão sob a patria potestas do seu pai. Depois, estão
como pupilas debaixo da curatela do marido. De qualquer modo, "por causa da
fragilidade do sexo e da sua pior condição [...] não se devem intrometer nas
reuniões dos homens" ; não podem ser fiadoras ; não podem ser testemunhas
34 35

nos testamentos (Ord. fil., IV, 76); nos delitos são castigadas mais brandamente.
Mas a fraqueza da mulher decorre ainda dessa impotência do feminino
para se impor ao masculino, dessa passividade e plasticidade do género que o
torna disponível e o faz receber todas as determinações alheias. Esta fraqueza

28 Manuel A. Pegas, Commentaria ad Ordinationes, 1669, IV, ad Ord., I, 62, gl. 43, n. 5 ss..
29 Jorge de Cabedo, Practicarum observationum ..., cit, I, dec. 114, n. 9.
30 Cf. D. 16, 1; C., 4, 29, Ord. fil., IV, 61; Alvaro Valasco, Decisionum ..., cit., cons. 138, n. 23.
31 Cf. Alvaro Valasco, Decisionum ..., cit., 138, n. 24 (embora devam consultar peritos em direito).
32 Gl. in l. fin Cod. de juris et facti ignorantia.
33 António Cardoso do Amaral, Summa..., v. "Mulier", n. 29.
34 António Cardoso do Amaral, Summa..., v. "Mulier", n. 1.
35 V. supra.

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está relacionada com a maior debilidade dos genes e do sémen femininos . De 36

novo, a fisiologia do coito é chamada como testemunho e fundamento: "É que -


ensina S. Tomás - em todo o acto de geração se requer um poder activo e outro
passivo. Donde, como em tudo quanto respeita o sexo, a virtude activa está no
macho, a virtude passiva, porém, na fémea (Summa theol., I, 98.2. resp. § 3).
Nas mulheres, por isso, tudo se perde: a família, o estado , o nome, a 37

memória. "A mulher chefe de família é o fim da família", conclui Alvaro Vaz . 38

Esta é uma das razões que, a mais da da sua menor dignidade, leva a
excluir as mulheres da sucessão em que o sucessor ou a lei tiveram em vista a
conservação dos laços familiares que então mais contavam - os laços
agnatícios . Isso acontece, frequentemente, nos bens vinculados à memória da
39

família, como os morgados e, em Portugal, é estabelecido, em geral, para os


bens da coroa.

Lascivas, astutas e más.


A pré-compreensão do feminino de que o direito parte contém também
referências à perversidade das mulheres.
Muito desta perversidade parece partir do sexo.
Como, em geral, as fémeas em relação aos machos, as mulheres são mais
lascivas do que os homens. A própria forma côncava da madre criaria um

36Hipócrates, Da geração (ed. cit.), n. 10 (os genes do homem são mais fortes do que os da mulher); Da
natureza das crianças (idem), n. 8 (o sémen de que provém as raparigas é mais fraco e mais húmido do
que aquele de que provém os rapazes)
37 "A mulher filha de nobre, ao casar com plebeu, perde a dignidade nobre", António Cardoso do
Amaral, Summa..., v. "Mulier", n. 27. Esta "disponibilidade" da mulher também lhe permitia aproveitar
a nobreza do marido (C., XII,1,13; Manuel A. Pegas, Commentaria ad Ordinationes, 1669, VII, ad I,90,
gl.18, n. 1).
38 Alvaro Valasco, Allegationes ..., all. 29, n. 10; Manuel A. Pegas, Commentaria ad Ordinationes,
1669, XI, ad Ord., II, 35, cap. 181, per totum ("A linha masculina é a linha que começa num varão e
neles se continua sem qualquer mulher ou interposição de seus descendentes [...] A linha feminina é a
que começa na mulher [...] e divide-se em duas espécies, uma sob o ponto de vista do princípio, se
começa em mulher, pois todos os que descendem dela se dizem ser de linha feminina, embora sejam
varões, pois procedem daquela primeira mulher como estirpe [...] Outra é a linha feminina que se
compõem só de mulheres sem qualquer mistura de varão. A mulher que é chefe da sua família também é
o seu fim, pois, em primeiro lugar, a linha masculina extinguiu-se no pai, não se transmite à filha, antes
nela terminando, e não se continua nos seus herdeiros, que se dizem de linha feminina e se consideram
de outra familia e agnação").
39Agostinho Barbosa, Tractatus varii. De appellativa ..., v. "Filius", n. 61; Jorge de Cabedo,
Practicarum observationum ..., cit, I, dec. 208, n. 3 ss..

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desejo mais violento, explicável pelo princípio natural do horror ao vácuo . 40

Mas, de entre todas as fêmeas, a mulher e a jumenta atingiam o extremo da


lubricidade, pois tinham a particularidade de serem as únicas fémeas que se
entregavam ao coito mesmo durante a gravidez . Isto não deixa de ser 41

recordado pelos moralistas e pelos juristas, quando querem justificar a


imoderada luxúria das mulheres. A fraqueza da vontade fazia o resto: "A
sobriedade - ensina S. Tomás - requer-se mais nos jovens e nas mulheres: pois
nos jovens abunda a concupiscência do desejo, por causa do fervor da idade, e
nas mulheres o vigor da mente não é suficiente para resistir à concupiscência"
(Summa theol., IIa.IIae, 1, 49, resp. 4, § 1).
Por isso, o estado de pureza é, nas mulheres, sempre precário e instável,
sujeito a mil atentados e desejos. S. Cipriano, um outro látego do género
feminino, avisa da evanescência da virgindade: "pode-se desflorar com a vista;
mesmo a mulher incorrupta pode não ser virgem. Pois o dormir com homem, a
conversa, os beijos, contém muito de criminoso e impúdico" (Decreto, II, C. 27,
qu. I, c. 4; fonte, S. Cipriano, ad Pomponium).
O luxúria chamava a curiosidade - que já perdera a mulher do Éden - e a
astúcia.
Embora estas disposições do espírito nem semprem fossem defeitos e
explicassem até uma especial aptidão da mulher para o conselho nos casos
árduos, eram também responsáveis pela tendência feminina para a imodéstia e
para o cultivo dos saberes ocultos e proibidos.
À imodéstia nos enfeites e nos trajos se refere S. Agostinho: "Pintar-se
com pigmentos, de modo a parecer ou mais rosada ou mais branca, é uma
falácia adulterina.. Pois sem dúvida os maridos próprios não se deixam
enganar por ela. E apenas a eles pertence decidir se as suas mulheres se
enfeitem, segundo a permissão (venia) deles e não segundo o poder (imperium)
delas. É que os verdadeiros ornamentos são [...] os bons costumes" . Quanto à 42

feitiçaria, um cânone conciliar do séc. IX, incorporado no Decreto de Graciano,


manda reprimir duramente as mulheres que se dediquem a sondar o
sobrenatural por meio de práticas demoníacas. "Também não é de omitir - diz-
se - que algumas mulheres celeradas, reconvertidas a Satanás e seduzidas pelas
ilusões e fantasmas dos demónios, creem e confessam que cavalgavam de noite
aquelas bestas, com Diana, deusa pagã, ou com Herodíades, e uma enorme
multidão de mulheres, viajando no silêncio da noite por muitas terras distantes,

40 Aristóteles, Da geração dos animais (ed. cit.), II, 5, 5 ss..


41 Aristóteles, Da geração dos animais (ed. cit.), IV, 5, 4-5; História dos animais, VI, 22, 2 ss...
42 Epis. 73 ad Possidiam, c. 415; passo recolhido em Decreto, De consecr., dist. V, c. 38.

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obedecendo ao seu império e dedicando certas noites ao seu serviço [...] E o


próprio Satanás se transfigura em anjo da luz para se apossar da mente dessas
mulherzinhas [...]" (Decreto, p. II, C. 26, q. 5, c. 12). E esta prevenção especial
acompanha a prática inquisitorial, que mantém uma particular atenção aos
sortilégios e feitiços das mulheres . 43

O remédio contra estes defeitos das mulheres era uma constante 44

vigilância sobre os seus costumes e um seu rigoroso confinamento ao mundo


doméstico. Era isto que se predicava sob a regra do pudor e honestidade das
mulheres.
A honestidade é, de facto, "a virtude moral oposta à lascívia" . De 45

alguma maneira, é a virtude que consiste em usar do sexo segundo a recta


razão da natureza . Os direitos e deveres que dela decorrem são, assim, de
46

direito natural, impondo-se às obrigações civis ou políticas, e mesmo às ordens


expressas do príncipe . 47

O primeiro preceito da honestidade feminina é que a mulher não se


misture com os homens . "A mulher - escreve António Cardoso do Amaral -
48 49

não deve advogar nem procurar em juízo a favor de causas alheias. É


incompatível com o pudor do sexo que se meta em negócios alheios ou
importune desavergonhadamente os magistrados".
Daí que ela não possa ser juíz ou ocupar cargos que a obriguem a privar
com homens - a não ser que, pela sua dignidade ou idade, o pudor não corra
riscos nessa privança ; não possa ser obrigada a ir ao tribunal, como juiz ou
50 51

43 Cf. as comunicações de Arlinda Leal, Anita Novinsky e José Gentil da Silva ao colóquio Inquisição,
Lisboa, Sociedade Portuguesa de Estudos do séc. XVIII, 1989, 2 vols..
44 Outros eram a avareza (testemunhada por Cícero) e a rixosidade ("vale mais estar sentado na asna do
telhado do que com uma mulher litigiosa que compartilhe a mesma casa", Provérbios, 21, 9).
45 Bento Gil [Benedictus Aegidius], Tractatus de iure, & privilegiis honestatis, Ulyssipone, 1618, art.
proem., n. 2.
46Daí que honestidade não se confunda com virgindade, pois realmente não impede o coito em geral,
mas apenas o "desonesto" (Bento Gil, Tratado ..., art. proem., n.2).
47 Bento Gil, Tratado ..., art. 2., ns. 2 ss..
48Sextum, II, 2 (não convém que se passeiem ou participem em reuniões de homens e, por isso, não
devem vir a juízo).
49 António Cardoso do Amaral, Summa..., v. "Mulier", n. 7.
50 Bento Gil, Tratado ..., art 2, n. 6.
51Bento Gil, Tratado ..., art 2, n. 1 (Ord. fil. ; Nueva recop., III, 9, 7: "porque no seria cosa guisada,
que estuviese entre la muchedumbre de los hombres, librando los pleytos").

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procurador (Ord. fil., III, 47; V, 124, 16), nem a ser testemunha ; não possa ser 52

metida em cárceres públicos, mesmo que de mulheres ; não deva meter-se em 53

questões alheias, nem sequer para acusar crimes públicos . 54

Embora muitas destas restrições sejam apresentadas pelos autores como


honras devidas ao estado de mulher, se nos perguntamos pelos seus
fundamentos, encontramos sempre a virtude da honestidade. E, buscando a
arqueologia desta virtude quando predicada do género feminino, chegaremos
rapidamente ao seu oposto, a natural lascívia das mulheres. Nelas, a
honestidade é uma virtude contra a natureza, um freio da recta razão que
compense a violência das pulsões do desejo e a debilidade da vontade natural
para a elas resistir.

Portugal.
Esta imagem da mulher, latente nos textos do direito comum europeu,
projectava-se sobre os direitos dos vários reinos. Neles ganhava,
eventualmente, refracções próprias, que decorriam de tradições culturais
particulares. Era o que se passava com o direito português que, como se pôde
ver das indicações de fontes que foram sendo dadas, recebera a generalidade
das regras de direito comum.
Onde se verifica alguma especialidade era no regime de comunhão geral
de bens, considerado como costume geral do reino (Ord. fil., IV, 46/47) -
embora sujeito a progressiva usura pelo regime de dote e arras, de direito
comum – e que limitava mais os poderes de disposição patrimonial da
55

mulher. "O marido e a mulher - escreve Jorge de Cabedo no início do séc.


XVII - possuem os dois os bens e são como que sócios na casa divina e
56

humana (cf., Ord. man., IV, 17)". Sendo o marido a cabeça de casal, a mulher
não podia dispôr de quaisquer bens, contratar ou estar em juízo sem a sua

52 Digesto, 12, 2, 15. Ord. fil., I, 78, 3. António Cardoso do Amaral, Summa..., v. "Mulier", n. 52. Esta
isenção é atenuada no caso de mulheres desonestas ou plebeias (Bento Gil, Tratado ..., art 2, n. 15)
53Porque sempre existe o carcereiro (Bento Gil, Tratado ..., art 3, n. 2); se tiver que ser encarcerada,
deve sê-lo em mosteiro de mulheres. Para Portugal, v. Ord. fil., II, 31, 4; IV, 76, ult.
54 Digesto, 3, 1, 1, 2; 48, 2; Decreto, C. 5, 3, 1-3, Bento Gil, Tratado ..., art. 2, n. 12.
55 V. a minha nota em John Gilissen, Introdução histórica..., cit., 592 s.. É provável que a generalidade
de cada um dos regimes dependesse dos estratos sociais; aparentemente, o regime de dote e arras era
mais comuns nos grupos nobres. As camadas populares, com poucos bens de família ("troncais", "de
avoengo"), pouco ciosas dos valores linhagísticos e recorrendo menos ao direito letrado e escrito, usavam
o costume da comunhão, inicialmente mais comum no Sul, mas depois (a partir de Ord. man., IV, 7)
recebido como costume geral do reino.
56 Jorge de Cabedo, Practicarum observationum ..., cit, I, dec. 106, n. 1.

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autorização, mesmo que este estivesse longe. Alguma doutrina era reticente
quanto à capacidade de disposição da mulher casada, mesmo em relação às
pequenas esmolas que o direito comum permitia que a mulher dese sem
autorização do marido . 57

Que influência pode ter tido a expansão ultramarina sobre este estatuto é
tema que não tem ocupado os historiadores portugueses.
Sabe-se que, em geral, a situação estatutária da mulher tendeu a
desvalorizar-se a partir do séc. XVI. Em Portugal, todos os traços negativos da
condição feminina se encontram abundantemente documentados nos juristas e
nos moralistas seiscentistas e setecentistas. Numa aproximação impressionista,
poderia supor-se que, quanto às mulheres casadas, a ausência dos maridos teria
conduzido necessariamente a uma sua maior autonomia, nomeadamente
contratual e de disposição de bens. E, de facto, nos livros de notas dos sécs. XVI
e XVII, encontram-se mulheres dispondo de bens. Se são próprios ou do casal e,
neste último caso, por força de que é que o fazem (como procuradoras ?
autorizadas pelo juiz ?) é questão que não pode ser respondida
sistematicamente.
Também não o pode ser a questão de saber que repercussões poderá ter
tido na imagem reinol da mulher o contacto com as culturas africanas e
orientais e com os seus modelos do feminino. Ou seja, de que modo os estatutos
exóticos das mulheres poderão ter influenciado, como modelo ou como
aberração, o estatuto da mulher europeia. Embora fontes não faltem, desde os
relatos de viagens às cartas dos missionários, nada se tem estudado, nesta
perspectiva. De um modo geral, os ventos da Índia ou da China não eram de
molde a beneficiar o género feminino. Em todo o caso, deparamo-nos, em
algumas das regiões tocadas pelos portugueses, com regimes matriarcais ou,
pelo menos, matrilineares (como o dos macondes) que influenciaram
instituições de direito colonial português. É o caso dos "prazos da coroa", em
Moçambique, espécie de bens enfitêuticos com alguma jurisdição, transmitidos
por via feminina, que se mantiveram até ao séc. XIX , cobrindo uma época em
58

que, na Europa, o princípio da masculinidade permanecia bem firme ou, até, se


reforçava.

57 Jorge de Cabedo, Practicarum observationum ..., cit, I, dec. 106, n. 5.


58 Allen Isaacman, "The «prazos da coroa», 1752-1830. A functional analysis of the political system",
Studia, 26(Abril 1968) 194-277.

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