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G EO U SP Espaço e Tempo, São Paulo, N° 14, pp.

XX, 2003

PATRIM Ô N IO MUNDIAL: DO IDEAL HUMANISTA À UTOPIA DE UMA


NOVA CIVILIZAÇÃO

Simone Scifoni*

RESUMO:
Este artigo procura analisar a trajetória de criação e consolidação do conceito de patrimônio mundial
pela Unesco, com destaque para as questões relativas ao patrimônio natural. Discute os critérios de
identificação do valor universal dos bens, apresentando um diagnóstico da distribuição dos bens
to m b ad o s pelo mundo e analisa o patrimônio mundial como um dos instrumentos que definem o
quadro das relações internacionais na esfera ambiental.
P A L A V R A S -C H A V E :
Patrim ônio mundial, patrimônio natural, gestão ambiental, Unesco, preservação ambiental.

ABSTRACT:
This article seeks for analysing the trajectory of the creation and concept consolidation of world heritage
by Unesco, highlighting the relative questions to the natural heritage. It discusses the criteria of universal
value properties showing a registered properties distribuition diagnosis all through the world and it analyses
the world heritage with one of the instruments that defines the international relationship table in the
environmental sphere.

KEY W O R D S :
World heritage, natural heritage, environmental management, Unesco, enviroment preservation.

1 - Introdução De outro lado, verifica-se hoje, que os


p ro cesso s de re v ita liza ç ã o de á re a s c e n tra is
A proteção do patrimônio cultural constitui
degradadas envolvem restauração do patrimônio
hoje um dos temas im portantes na discussão do
e incorporação à dinâmica urbana com novos usos
espaço urbano.
voltados preferencialmente às atividades culturais.
De um lado, a dificuldade do poder público
Testemunhamos, nos últimos anos da década de
de gerir os problemas das cidades tem levado,
1990, no centro velho de São Paulo, as reformas
entre outras conseqüências, à pressão sobre o
na Estação Júlio Prestes, no prédio do antigo Dops
patrimônio. Assim, assistim os com preocupação
e atualmente na Estação da Luz.
a p ossibilidade de Ouro Preto, nosso primeiro
S e g u n d o C H O A Y ( 2 0 0 1 : 2 1 2 ) , e sta
patrimônio mundial tom bado pela Unesco, perder
valorização do patrimônio se dá no m undo sob
o título em função de p rocessos contínuos de
um combate desigual onde uma forte tendência
deterioração de seu espaço urbano.
se confirma: a de transformar o patrim ônio num

* D o u t o r a n d a em G e og raf ia H u m a n a pelo De pt o de G eog raf ia da FFLCH/USP.


E - m a il : s c i f o n i @ u o l . c o m . b r
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produto econôm ico, consumível por platéias cada Para CFIOAY (2001, p.51) o nascimento
vez m aiores. As conseqüências destas práticas do m onum ento histórico deu-se em Roma, por
r e s u m e m - s e , m u it a s v e z e s, em e x c lu s ã o da volta de 1420, período que se convencionou deno­
população local, uma vez que é necessário fornecer minar de Renascim ento e que foi marcado pela
ao p ro d u to , ta n to uma em b alag em , com o um generalização de ideais humanistas. Entre eles, o
con teúd o a p rop riad o para a venda. Esta exclusão da v a lo r iz a ç ã o do h om em e da n atureza em
ta m b é m se relacion a à valorização do espaço con traposição ao divino e ao sobrenatural e o
g e o g r á fic o qu e ten d e a criar uma pressão do grande interesse, um verdadeiro fascínio, pelas
m ercado imobiliário sobre esta população. obras da Antiguidade Clássica, consideradas como
A s s i m , o d e b a t e s o b r e o f u t u r o do uma "lição de construção"
patrim ônio não se desvincula da discussão sobre Foram p r in c ip a lm e n t e os e s c rito re s e
a produção do espaço geográfico. Entendendo a artistas humanistas que ressaltaram a importância
i m p o r t â n c i a d e s t e t e m a p a ra a G e o g r a f i a dos m o n u m e n to s da civilização g reco-rom ana
p re te n d e m o s e xam in ar a trajetória da idéia de como representativos de um passado antigo e,
p a t r i m ô n i o m u n d i a l, da su a g ê n e s e a sua portanto, portadores de informações históricas e
c o n s o lid a ç ã o internacional e, no interior desta de qualidade artística.
t r a j e t ó r i a , as p a r t i c u l a r i d a d e s r e la t i v a s ao No entanto, segundo a autora, foi somente
p a trim ô n io natural, objeto de nosso in teresse no século XIX, na França, que nasceu a proteção
específico. institucional do patrimônio cultural nacional através
A b o r d a r e m o s , tam b ém , a p ro te çã o do da c r i a ç ã o de um ó r g ã o r e s p o n s á v e l p elo
patrim ônio m undial, de um lado como um dos classem ent (1837), equivalente ao que se conhece
instrum entos que concorrem para configurar uma no Brasil como tom bam ento, e edição da primeira
ordem a m b ie n ta l internacional (RIBEIRO, 2002) e, lei de proteção de m onum entos históricos (1887).
de outro, como uma possibilidade de contribuir para Foram as condições criadas pela Revolução
a gestão de um novo projeto de civilização. Francesa que estim ularam a necessidade desta
p ro teção legal. S e g u n d o MAYUME (1999:25),
2 - A invenção do patrimônio mundial
c o m o c o n s e q ü ê n c i a da r e v o lu ç ã o , os b en s
A U n e s c o 1, criada em 1946 como o o rg a ­ confiscados da igreja, da coroa e da aristocracia
nismo da ONU encarregado de gerir as questões passaram ao dom ínio do Estado. A conservação
r e l a t i v a s à e d u c a ç ã o e c u lt u r a no m u n d o , destes bens to rn o u -s e um problema nacional,
p a t r o c i n o u em 1 9 7 2 a r e a l i z a ç ã o de u m a necessitando da colaboração de toda a sociedade,
conferência em Paris da qual nasceu a idéia de o que foi feito criando-se a idéia de um valor de
patrim ônio mundial. A Convenção do Patrim ônio nacionalidade, o p atrim ônio co le tivo, interesse de
Mundial, nome com o qual o documento resultado todos e expressão de uma história coletiva.
desta conferência ficou conhecido, estabeleceu os N as décadas que su ced eram ao
princípios para atuação nesta área. nascimento institucional desta idéia, os debates
Mas a preocupação com a temática não concentraram -se nas concepções de restauro e
surge na década de 1970. Em 1956 a Unesco já co n servação deste patrim ônio. Isto porque as
havia criado o Iccrom (Centro Internacional de grandes tran sfo rm açõ es no espaço geográfico,
Estudos para a Conservação e Restauração dos resultantes da Revolução Industrial, ajudaram a
B e n s C u l t u r a i s ) , u m a o r g a n i z a ç ã o in t e r - constituir uma visão nostálgica do passado.
governam ental para a pesquisa sobre o assunto. Ao término da Primeira Guerra Mundial esta
Que motivos levaram, então, a realização preocupação estendeu suas fronteiras para os
em 1972 desta conferência e a emergência deste demais países europeus, num primeiro esforço
tema no cenário das relações internacionais? internacional, ainda que restrito a este continente.
Para re sp o n d e r essa questão é preciso Os países europeus, arrasados fisicamente pelo
investigar as raízes da discussão do patrimônio confronto e preocupados em como restaurar seu
cultural, que surge pontualmente em alguns países patrimônio, organizaram em 1931 uma conferência
da Europa, sob o conceito de monumento histórico. que resultou na Carta de Atenas. Esta foi o primeiro
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d o c u m e n to internacional relativo a políticas de relação com grupos humanos como no caso de


preservação do patrimônio tornando-se, por vários c id a d e s la c u s tr e s , g ru tas tra b a lh a d a s ,
anos, uma referência para a restauração de bens. aldeamentos.
A C a r t a de A t e n a s de 1931 t a m b é m No entanto, segundo MAYUME (op. cit. p.
acenava, ainda que de forma incipiente, para a 95), o an tep ro jeto de Mario de A n d ra d e foi
inclusão de um patrimônio natural. Estabelecia que considerado inviável e inadequado à situação,
para a valorização dos monumentos era necessário sendo pouco aproveitado para a redação final do
o e s tu d o das "p la n ta ç õ e s e o rn a m e n ta ç õ e s decreto, feita por Rodrigo Melo Franco. Como a
veg etais convenientes a determ inados conjuntos redação do artigo não estabelece esse caráter
de m o n u m e n to s" (IPHAN, 1995:16). com plem entar do quadro natural, pode-se pensar
Dentro deste contexto é preciso investigar que deve ter havido, por parte do autor, um desejo
com o teria surgido a concepção de elementos da de ampliar essa visão original de Mário de Andrade,
n a t u r e z a c o m o c o m p o n e n t e s do p a t r im ô n io dotando-se o patrimônio natural de uma maior
cultural. importância, incorporando, assim, experiências de
2.1 - A invenção do patrimônio natural outros países europeus.
Ainda que no Brasil, na década de 1930,
Encontram os referências desta questão na te n h a sido tím ida a in cu rsão nesta área do
legislação de alguns países europeus na década de p a t r i m ô n io n a tu ra l, esta idé ia r e s u lto u no
1930, nas quais percebe-se a preocupação, de um tom b am en to , em 1938, de alguns m orros na
lado com a história natural e, de outro, com o cidade do Rio de Janeiro, em função da ameaça
aspecto paisagístico, a beleza cênica. Segundo de construção, no topo do Pão de Açúcar, de um
M A C H A D O (1986: 53), a lei francesa de 02 de r e s t a u r a n te e uma nova e s ta ç ã o de b on d es
m aio de 1930, estab elecia com o de interesse (FONSECA, 1996:59).
público a proteção de monumentos naturais e sítios Na F r a n ç a , b e r ç o do c o n c e i t o de
de caráter científico (h ab itat de fauna rara, uma patrimônio cultural, desde o final do século XIX,
ja z id a m ineral, uma estrutura geológica relevante, p o u c o a p o u c o , a n o ç ã o de p a t r im ô n io foi
um a fision om ia p a rticu la r da terra). No mesmo evoluindo, passando da idéia de monumento, para
sentido encontra-se a legislação italiana (Lei 1.497 a preocupação com o tecido urbano, o centro
de 2 9/06/1939), apontando como de interesse histórico da cidade, surgindo, assim, o conceito
p ú b l i c o os s í t i o s de b e le z a n a t u r a l ou de de patrimônio urbano.
singularidade geológica e, até mesmo, uma vista No início esta preocupação prendia-se à
panorâm ica, bem como o lugar de onde se possa idéia de cid a d e-m useu , objeto a m e a ça d o de
avista-la, com o um belveder desaparecimento e que deveria ser congelado. Os
O Brasil também é pioneiro neste campo. modernistas opuseram-se a isso enfatizando que
O decreto-lei 25 de 1937, que institui a proteção não se podia, em nome do documento histórico,
ao patrim ônio nacional através do instrumento do ignorar mudanças, sobretudo as relacionadas à
to m b a m e n to , e s ta b e le ce que os m o n u m e n to s melhoria de condições de salubridade, que eram
naturais, sítios ou paisagens de feição notável, por necessárias à cidade.
força da natureza ou da técnica humana, também Mas é a partir da década de 1960, já no
d e v e m s e r c o n s i d e r a d o s c o m o p a s s ív e is de século XX, que, segundo C H O A Y(op.cit.), ocorre
preservação. uma gra nd e tra n s fo rm a çã o na prática e nos
Há autores que criticam este entendimento. conceitos patrimoniais. De acordo com a autora,
A N D R A D E (1984:41), por exemplo, lembra que na o refin a m e nto das discussões no âm bito das
proposta original do decreto, elaborada por Mário ciências humanas possibilitou uma ampliação de
de Andrade2, o quadro natural foi destacado apenas bens de domínio patrimonial.
como suporte de atividades humanas, portanto sua De um lado, o reconhecimento de obras
importância relacionava-se apenas aos casos em de um passado recente, possibilitou o que ela
que p a isa g e n s n atu rais estivessem em íntima chamou de am pliação cronológica do p a trim ô n io ,
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incluindo-se, assim, os bens representativos da Nas palavras da coordenadora da área de


m o d ern id ad e. De outro, o alargam ento de visões cultura e patrimônio da Unesco no Brasil, arquiteta
possibilitou o reconhecimento de novas categorias J u r e m a M a c h a d o 3, a c o n sta ta çã o dos rum os
de bens co n sid e ra d o s com o de valor cultural: desta m odernização e de que os governos locais
habitações operárias, instalações industriais, o que eram incapazes de conservar este patrimônio foi
i m p l i c o u n u m a a m p lia ç ã o t ip o ló g ic a d e s t e um dos g r a n d e s m o tiv a d o re s da cria ç ã o da
patrim ônio. Faz parte desta ampliação tipológica c o n v e n ç ã o em 1 9 7 2 . Um c a s o p a r t i c u l a r
o reconh ecim ento, em definitivo, da importância incentivou a discussão: a construção da represa
do patrim ônio natural. de A s s u ã , no E g it o , q u e iria i n u n d a r os
O prim eiro docum ento internacional que m onum entos de Abu Sim bel4
trata deste assunto foi a R ecom endação relativa Para C H O A Y (o p . c it , p. 240) o ritm o
à s a lv a g u a r d a da b e le z a e do c a r á t e r d a s acelerado da sociedade industrial impôs mudanças
p a isa g e n s e sítios, fruto da conferência da Unesco profundas de valores e produziu um sentimento
realizada em dezem bro de 1962 em Paris (IPHAN, de incertezas, uma crise de identidade, pois as
op.cit., p .97). constantes m odernizações não permitem mais
E ste d o c u m e n to p re c o n iz o u com o que o sujeito se reconheça no lugar onde vive.
m edidas para a proteção das paisagens naturais Para a autora, a perturbação cultural que emergiu
e das tran sform ad as pelo homem, sua inclusão nos anos 60 teve, na idéia de patrimônio, a busca
no pla ne jam en to urbano e regional e a criação de pelo resgate da identidade humana, um espelho
parques e reservas naturais. Além disso, sugeriu no qual a sociedade poderia contemplar a sua
outras alte rn ativas com o a proteção legal p o r imagem.
zo n as e proteção de sítios isolados, medidas essas Mas é e v id e n te , ta m b é m , que o
que muito se aproxim avam do instrumento legal nascim ento da idéia de patrimônio universal teve
do t o m b a m e n t o e de o u t r a s u n i d a d e s de relação com o p rocesso de m undialização de
co nservação surgidas a posteriori (caso das Areas valores ocidentais, caracterizado no período pós-
de Proteção Ambiental- APAs), uma vez que estas segunda guerra. A Convenção do Patrimônio foi
não im plicavam na desapropriação de terras. um dos principais veículos que generalizou as
Nos argum entos iniciais do documento, os práticas preservacionistas.
quais ju stificavam a realização da conferência,
3. A consolidação da idéia de patrimônio
havia a constatação de que a modernização da
mundial
sociedade estaria produzindo grandes tran sfor­
m ações, q u er nas paisagens, quer no próprio A convenção de 1972 estabeleceu como
patrim ônio cultural das cidades. Flavia a preocu­ definição de patrimônio mundial - tanto no caso
pação com possíveis perdas: de vida selvagem, do patrimônio cultural como do natural - objetos
em função de sua importância científica; de áreas e lugares de valor excepcional ou monumental.
necessárias à vida do homem (como elemento A p e s a r de f u n d a m e n t a d o em p rá tic a s ,
r e g e n e r a d o r fís ic o e espiritu al); de potencial p rin cip alm en te européias, nas quais a monu-
e c o n ô m ic o ( r e c u r s o s ) ; e p r e o c u p a ç õ e s com mentalidade já era uma característica essencial
salubridade. para o tom bam ento, os critérios presentes no
Esta perda estava relacionada à expansão docum ento eram ainda bastante vagos. A grande
da industrialização e da urbanização, à m od ern i­ q u e s t ã o e ra c o m o d e f i n i r a c o n d i ç ã o de
zação da agricultura, à ampliação de fronteiras excepcionalidade e monumentalidade.
agrícolas e à necessária implantação das infra- Somente em 1977 é que a Unesco elabora
estruturas como rede de estradas e represas que um documento, intitulado D iretrizes operacionais
im plicavam em pressão sobre o patrimônio. Foi para a im p lem en tação do patrim ônio m undial,
esta c o n ju n t u r a que e s tim u lo u m ais tard e a contendo definições e critérios mais precisos para
realização da Convenção do Patrimônio Mundial, a identificação do valor universal dos bens e,
em 1972 em Paris. portanto, para sua inclusão na Lista do Patrimônio
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Mundial. planeta, que é diferenciado, e que pode tornar uma


P a ra o ca so do p a trim ô n io n a t u r a l5 , área rem anescente num verdadeiro fragm ento de
objeto m ais específico de nossa investigação, a e x ce çã o , m e s m o que este não inclua toda a
área a ser reconhecida como de valor universal variedade de elem entos e processos solicitados
d e v e c o r r e s p o n d e r a p e lo m e n o s um d o s nas diretrizes.
seguintes critérios: Além disso, o grau de integridade exigido
§ Estético: p aisag en s no tá v e is e de pede que se pense em escalas territoriais de grande
e x c e p c io n a l beleza e c o n d iç ã o de amplitude. Não deveria haver uma associação
p a is a g e m de e x c e ç ã o . E x e m p lo : necessária entre valor universal e áreas de grande
Jardim Botânico de Pádua, na Itália. extensão, uma vez que se deixa de atentar para a
§ Ecológico: sítios co rresp o n d en d o a importância de pequenas áreas, tais como mini-
habitat de espécies em risco ou que enclaves ecológicos, testem unhos de processos
d e t e n h a m p ro ce s so s e c o ló g ic o s e naturais antigos ou de paleoclimas ou até mesmo
b io ló g ic o s im p o rta n te s . E x e m p lo : representativos de d eterm in ad o s endem ism os,
rem anescentes da Mata Atlântica. como destaca A B 'SA BER (1977:6).
§ C ie n t ífic o : á re a s que c o n t e n h a m Na v e r d a d e t o d o o p r o c e s s o de
f o r m a ç õ e s ou fe n ô m e n o s naturais reconhecim ento de um bem e sua conseqüente
r e le v a n t e s para o c o n h e c i m e n t o inclusão na Lista do Patrim ônio Mundial é um
científico da história natural do planeta. processo com plexo e rigoroso.
Exemplo: um vulcão, geleiras. Em p rim e iro lugar, é o país parte da
O u t r a c o n d iç ã o e s se n cia l para o seu convenção que deve pedir a inclusão na lista e,
re co n h e cim e n to é o estado de integridade dos para tal, deve en cam in h ar toda a docum entação
bens. de apoio à análise. Além de com provar o valor
Pelo crité rio estético uma área guarda u n iv e r s a l e as c o n d iç õ e s de in t e g r id a d e , o
co n d iç õ e s de integridade se a preservação for proponente deve apresentar um plano de gestão
pensada em term os de processo, conservando a para a área e os sítios devem contar, previamente,
sua existência e não só a do atributo. Por exemplo, com uma proteção jurídica adequada.
no caso de quedas d'água a integridade do bem Tal pedido passa por várias instâncias até
pede a preservação da bacia que a alimenta. a deliberação final: o Centro do Patrim ônio Mundial
Pelo critério ecológico> a área apresenta verifica se a proposição está completa, o Icom os
co nd ições de integridade se incluir toda a gama (Conselho Internacional de M onumento e Sítios)
de processos essenciais ao ecossistema. Assim, e a UICN (União Internacional para a Conservação
um fragm ento de Mata Atlântica deve conter certa da N a t u r e z a e de s e u s R e c u r s o s ) a v a lia m
q u an tid ad e de variação topográfica, pedológica, tecnicamente o valor universal do bem, o escritório
hidrográfica e de estágios sucessionais. do patrim ônio m u n d ia l, estuda as opiniões dos
A garantia de integridade, para o critério pareceristas e, finalmente, o Comitê do Patrim ônio
cie n tífico , pede que a área contenha a totalidade M u n d ia l, co m p osto por 21 representantes dos
ou m aior parte de elementos interdependentes países-parte, tem a atribuição de deliberar pela
em suas relações naturais. Sítios vulcânicos devem inclusão ou não na Lista.
conter toda a série de tipos de erupção e de rochas Talvez o grau de exigência deste processo
associadas. Para o caso das geleiras, devem incluir explique, em parte, o fato de que a maior parte
desde o ca m p o de neve, o glaciar, as form as de dos bens tom bados pela Unesco na década de
erosão glacial e as áreas de depósito e colonização 1970 estava concentrada num só país: os EUA
vegetal. (13% do total). É interessante notar, também,
Dois aspectos destas exigências merecem que, levando-se em conta a distribuição destes
ser destacados: de um lado as condições rígidas b ens t o m b a d o s p e lo s c o n t in e n t e s , a E u ro p a
para o reco nhecim en to deste patrimônio natural aparece em primeiro lugar com 40% do total.
não levam em conta o grau de degradação do A corrida para a inscrição na Lista do
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P atrim ô n io M undial tem uma explicação: estar na 8 bens), Turquia em nono lugar com 7 bens e C h i­
lista sig n ifica c o n ta r com sta tu s internacional, na, décim o país (com 6 bens tombados).
prestígio e reconhecimento que é fundamental para A pesar da novidade, ainda permaneceu
o m arketing do turismo. grande a vantagem dos países europeus: dentre
Assim , segundo CHOAY (o p . cit, p. 211), o aqueles (do primeiro ao décimo lugar) que mais
patrim ônio adquiriu a partir da década de 1960, na bens to m b a d o s tiveram no período, a Europa
era da indústria cultural e da expansão da socieda­ correspondia a um total de 59 bens, equivalentes
de do lazer, um duplo sentido: de um lado obras e a 20% do total.
lugares que propiciam saber e, de outro, produtos Q uanto ao Brasil, somente em 1977 tor­
culturais, fab ricado s e em pacotados para serem na-se signatário da convenção e em 1980 com e­
co n su m id o s por cada vez mais e mais levas de ça a ter seus patrimônios reconhecidos com o tom-
turistas. Q uan to mais bens um determ inado país bam ento da cidade de Ouro Preto. Em 1986 tem
tiver inscritos na Lista do Patrimônio, maior é o seu primeiro patrimônio natural inscrito na Lista: o
potencial turístico posto à venda no mundo. Parque Nacional de Iguaçu.
M O R E L lembra que há uma relação grande N e s ta d é c a d a , do p o n to de v is ta do
do tu rism o com o patrimônio. Mas não acredita patrimônio natural, áreas conhecidas internacio­
que a exp loraçã o turística estava entre as razões n a lm e n t e fo r a m t o m b a d a s , t a is co m o : Los
que levaram a Unesco à concepção de patrimônio G laciares (Argentina), Rochosas (Canadá) Parque
mundial, co n form e percebem os nesta citação: Yosemite (EUA) vulcões no Havai (EUA) e Parque
"En los planteam ientos de Ia Convención Nacional do Kilimandjaro (Tanzânia).
de 1972 no se platea de ninguna manera el que un Os anos de 1990 o crescimento do núm e­
bien de Ia hum anidad pueda ser objeto fu ndam en ­ ro de bens inscritos na lista estabilizou-se. A novi­
tal de atracción turística, no se platea de ninguna dade no cenário é a Itália, país que fica em primei­
manera que un bien de Ia humanidad se convierta, ro lugar no número de bens tom bados (25), se­
sea p e r s e u n recurso turístico". (MOREL, 1996:83) guida da China em segundo lugar (17), da A lem a­
No entanto, ele admite que o interesse dos nha (14), em terceiro, e a Rússia, em quarto (13).
países pela inclusão na Lista estava relacionado ao A Austrália aponta como o país que possui maior
ap roveitam en to deste título para o m arketing t u ­ número de bens naturais tombados (13), repre­
rístico, com o abaixo transcrevemos: sentando a totalidade de seu patrimônio da Lista.
"... es in du d ab le y m ás o m enos evidente A lg um as áreas naturais importantes no
de todo Io a n te rio r, que en ca si todos os casos, mundo são reconhecidas neste período entre elas:
practica m ente en todos, los grupos interesados que Parque Nacional do Rapa Nui (Chile), Lago Baikal,
p ro m o v ie ro n Ia declaración han sido m ovidos, al Montanhas do Cáucaso e Altai (Rússia) os Montes
m en o s en p a rte , pre cisam e n te p o r esos intereses Pirineus (França/Espanha) e o delta do Rio Danúbio
turísticos". (MOREL, op.cit., p.84) (Romênia). No Brasil há reconhecimento de três
Teria sido a expansão do turism o ou o re­ patrimônios naturais: Serra da Capivara, Costa do
co n h ecim en to da importância do patrimônio no D escobrim ento e as Reservas da Mata Atlântica
m undo que levaram a ampliação significativa dos do Sudeste.
to m b a m e n to s da Unesco nos anos 1980? O certo Em 1999, do total de 630 bens inscritos
é que o núm ero de bens tom bados quintuplica, na lista, constata-se uma forte predominância de
passando de 61, para 282 no final da década. bens culturais, com 76% do total, em relação aos
Apesar dos EUA continuar inscrevendo seus bens naturais, com 20%, sendo estes últimos em
bens com êxito (mais 11 áreas tombadas), a su r­ sua grande parte relativos à Parques Nacionais.
presa fica por conta da atuação de países que, Os 4% restantes constituem os cham ados bens
a pesar de pobres, constituíram berços de civiliza­ mistos, de caráter natural e cultural.
ções antigas, com o são os casos da índia, prim ei­
ro país em núm ero de bens tom bados neste perí­
odo (19 no total), México, sétimo em número (com
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3. O patrim ônio mundial na Ordem Ambiental Num se gu n d o m om ento analisado pelo


Internacional autor, relativo à Guerra Fria, os tratados e a c o r­
dos refletiam as condições de domínio político-
R IBEIR O (2001), analisando a trajetória
militar das duas superpotências, sendo o Tratado
dos vários acordos e negociações internacionais
Antártico o m elhor exemplo. No entanto, R IB E I­
na esfera am biental conclui que estam os diante
RO (o p .cit, p. 56) nos mostra que o tratado, assi­
de ten ta tivas de estabelecim ento de formas de
nado em 1959 estipulando condições para a ins­
gestão planetária dos recursos e da natureza, o
talação de bases científicas no continente, foi m o ­
que ele cham ou de "ordem ambiental internacio­
t iv a d o pela d is p u ta g e o p o lític a em to rn o da
nal" Trata-se, nas palavras do autor, de um sub-
posse do território, o que ficou dissimulado na fo r­
sistem a da ordem in tern acion al e que, portanto,
ma de p r e o c u p a ç ã o com m e d id a s p re s e r v a -
guarda as características particulares desta.
cionistas.
O p tan d o por uma análise política do sis­
Podemos afirmar que o primeiro docum en­
tema internacional, o autor identifica a Guerra Fria
to internacional que efetivamente refletiu a preo­
com o o principal recorte histórico para elaborar a
cupação com a preservação ambiental é aquele
sua periodização da Ordem Ambiental Internacio­
editado pela Unesco, em 1962, intitulado R e co ­
nal. Deste modo, em sua leitura, as condições
m endação relativa à salvaguarda da beleza e do
políticas de cada período definem a forma como
ca ráter das p aisag en s e sítios.
se dão alianças e confrontos, sob efeito dos quais
Pela primeira vez, o estímulo à criação de
co n stitu em -se os mecanismos internos da ordem
áreas protegidas e a inclusão desta preocupação
ambiental.
nos sistem as de planejamento territorial é o prin­
A ntes da Guerra Fria, o autor analisa que
cípio norteador de políticas públicas. Neste senti­
as poucas relações internacionais nesta esfera
do este é um docum ento importantíssimo para a
ambiental refletiam a supremacia política, no mun­
análise da ordem ambiental internacional.
do, dos países imperialistas europeus. Assim foi
A p e s a r disso, ele teve ca ráter ap e n a s
com a C onven ção para a preservação de anim ais,
n orm ativo, re fle tin d o a co n ju n tura da ordem
p ássaros e peixes da África, estabelecida em 1900
ambiental, ou seja, expressando dificuldades de
com o objetivo de reduzir a caça e pesca d esen ­
se estabelecer regras e exigências internacionais.
freada, visando m anter os estoques para ativida­
Isso também se verificou antes, na realização da
des futuras.
C onferência das N ações Unidas para a C o n serva­
Levando em conta que o objetivo desta
ção e U tilização dos Recursos, em 1949. De a co r­
convenção era, na verdade, o de preservar a caça
do com RIBEIRO (op. cit. p. 63) essa conferência
e pesca com o atividades, sendo os animais v is­
constitui-se na primeira ação de destaque para o
tos apenas com o condições essenciais a estas,
temário ambiental na Unesco, mas resultou a p e ­
p od eríam os relativizar o papel deste documento
nas em diagnósticos e não em recom endações e
com o um dos precursores da ordem ambiental
exigências para os estados-membros.
internacional.
Como aponta o autor, a Unesco teve um
No que diz respeito ao patrimônio, pode­
papel fundamental na emergência e condução das
ríam os incluir a Carta de Atenas de 1931como
discussões am bientais no âmbito das relações in­
instrum ento da ordem ambiental internacional? A
t e r n a c i o n a i s . P o d e - s e d iz e r q u e o d e b a t e
Carta inclui, tim idam ente, a preocupação com os
ambiental, principalmente aquele que diz respeito
ambientes naturais, já que eram entendidos como
às áreas protegidas, surgiu naquela organização
co m p lem en to s para o patrimônio cultural. Mas
articulado com a noção de patrimônio, como se
constituiu-se num documento internacional, o pri­
e x p re s s a no d o c u m e n t o R e c o m e n d a ç õ e s , de
meiro sobre a questão patrimonial, e que, assim
1962.
com o a C on ven ção de 1900, teve uma am plitu­
Em 1972, a realização daquele que é c o n ­
de exclusivam ente européia inscrevendo-se, por­
siderado o grande marco do nascimento da p re o­
tanto, na m esm a lógica deste período inicial da
cupação ambiental - a C onferência de Estocolm o
ordem ambiental.
84 G EQ U S P Espaço e Tempo, São Paulo, N° 14, 2003 SCIFONI, S.

- reafirm a os princípios contidos neste docum ento do poderio político-m ilitar dos EUA, possibilita
pioneiro de 1962, com o se observa nos seguintes novas articulações entre países. De acordo com
tre c h o s retirados da D eclaração de Estocolm o: seus interesses internos os países se alinham em
"...O s re cu rso s naturais da Terra... e e s ­ diversas composições, ora atuando em grupos,
p e c i a l m e n t e , p a r c e la s r e p r e s e n t a t iv a s d o s ora individualm ente, ora compondo com novos
e co ssiste m a s n atu rais, devem se r preservados em p a r c e ir o s , de ce rta fo rm a r o m p e n d o com a
b e n e fíc io d as g erações atuais e futuras... hegemonia norte-am ericana na elaboração dos
...O h om em tem a resp on sab ilidade e s p e ­ docum entos, com o ocorreu com a Convenção da
cia l de p re s e rv a r e ad m in istra r ju d icio sa m e n te o Diversidade Biológica e o Protocolo de Kyoto.
p a trim ô n io re p re sen ta d o pela flora e pela fauna A com posição da Lista do Patrim ônio nos
s ilv e s tre s , bem com o o seu h a b ita t...” (IPHAN, anos de 1990 mostra isso. A dissolução da antiga
op.cit, p .219) URSS fato que levou a novas definições territoriais
A C o n v e n çã o do P atrim ô nio M u n d ial de é a c o m p a n h a d a p e la a d e s ã o da R ú s s ia à
1972 e seu principal desdobram ento - as D ire tri­ C onvenção do Patrim ônio e, conseqüentemente,
z e s o p e r a c io n a is p a ra a im p le m e n t a ç ã o do a inscrição de seus bens à lista. Nesta década o
p a trim ô n io m u n d ia l de 1977 - constituem outros país ocu p o u o 4 o lugar em n úm ero de bens
d o c u m e n to s relevantes para o entendim ento d e s­ tom bados.
ta fase da ordem ambiental internacional. Como Outra expressão destas mudanças pós-
já d e m o n s tra m o s anteriormente, através de d a ­ g u e r r a f r i a e s t ã o r e l a c i o n a d a s ao p a p e l
d o s r e la t iv o s ao s bens in s c r ito s na Lista do representado pelo Japão na condução do processo
Patrim ônio Mundial, é flagrante a supremacia dos de t o m b a m e n t o do p a trim ô n io pela Unesco.
EUA na escolha dos patrimônios mundiais, princi­ Erigido à co n d ição de potência econôm ica na
palm ente na década de 1970. d é ca d a de 1980, o Ja p ã o s o m e n te aderiu à
M a s is s o a té 1 9 8 4 , q u a n d o os E U A co n ven çã o em 1992, passando a ser o maior
d e cid e m re tira r-se da Unesco, em fu n çã o de contribuinte para a Unesco, na ausência dos EUA.
críticas à co n d ução dos trabalhos por parte de seu Mas, em contrapartida, enfrentou a partir de então
diretor geral, o qual o país acusava de conduzir a p r o b le m a s com r e la ç ã o ao r e c o n h e c im e n t o
o r g a n iz a ç ã o co m p a r c ia lid a d e , d e fe n d e n d o e mundial de seus patrimônios.
apoiando iniciativas culturais anti-americanas, como Is s o p o r q u e , s e g u n d o M A Y U M E (op.
as ligadas à OLP (Organização para a Libertação cit., 155), a forma específica como são construídos
da Palestina). e c o n s e r v a d o s os m o n u m e n t o s j a p o n e s e s
A saída dos EUA da Unesco representou c o n t r a s t a v a com a v is ã o o c id e n t a liz a d a de
um corte nos recursos da organização, já que o patrimônio e com os critérios de autenticidade dos
país contribuía com 25% de seu orçamento. b e n s . C o m o s ã o f e i t o s de m a d e ir a , e s te s
E m o s t r o u u m a o u t r a c o n d u ç ã o no monumentos são vulneráveis ao ataque de fungos
p ro c e s s o de r e c o n h e c im e n to dos p a trim ô n io s e insetos, à grande variação de temperatura e
m u n d ia is , p e r m it in d o que o u t r o s p a ís e s alto índice de umidade das Ilhas, além de ocorrência
p a r t i c i p a s s e m c o m o é o ca so da ín d ia , que de terremotos. Todos estes fatores deterioram
representou na década o primeiro lugar em número os m o n u m e n t o s e o b r ig a m os j a p o n e s e s a
de bens tom bados. O período conta tam bém com constantem ente trocarem partes das construções
a adesão à C onvenção do Patrim ônio de países r e f a z e n d o - a s em p a r t e ou no t o d o . P a ra
até então fora da discussão, como é o caso da conservá-los, eles são obrigados a desm ontar os
China, por exemplo, que a partir de 1987 conseguiu m onum entos para a restauração e substituição
incluir diversos bens na Lista. das bases dos pilares, inclusive as fundações de
Para R IB E IR O (o p . cit., p. 130), no pós pedra a cada 300 anos.
guerra fria, a ordem ambiental internacional afirma- Estas particularidades culturais levavam os
se c o m o um q u a d ro m uito mais co m p le x o . A técnicos da Unesco a rejeitar, como autênticos,
configuração de um mundo multipolar do ponto os monum entos do Japão, alegando que sofreram
de vista econôm ico, mesmo com a reafirmação m udanças constantes.
P atrim ôn io m undial: do ideal hum anista à utopia de uma nova civilização, dd. 77- 88. 85

O peso político e econôm ico do país, no que hay qu e s a lv a r" MOREL (1996:81)
entanto, foi decisivo no processo de revisão dos O a u t o r a d m it e que o p r o c e s s o de
critérios de autenticidade dos bens, que teve início inclusão na Lista nem sempre satisfaz todas as
na Unesco, a partir de década de 1990. De acordo n e c e s s id a d e s de p r e s e r v a ç ã o e qu e c e r t o s
com M A YUM E (o p . cit. p. 176) em 1994 a Unesco interesses acabam orientando esta ação, o que
r e a liz o u um a c o n fe rê n c ia , e s p e c ia lm e n te colabora por gerar conflitos internos. Isto porque
org an izad a pelo governo japonês, para divulgar o r e c o n h e c im e n t o de v a lo re s dos bens não
o seu sistem a de preservação aos especialistas p o d e r ia s e r a p e n a s um p r o c e s s o t é c n i c o ,
da área, v is a n d o re orie n tar os critérios para conform e nos alerta MENESES:
seleção de bens à Lista do Patrimônio. O resultado "A/ão se trata, p ois, de uma a tiv id a d e
foi a Carta de Nara, que nas palavras da autora: m e r a m e n t e e s p e c u la t iv a , c o g n it iv a , m a s
"... p o d e se r considerado um m arco na concreta, prática - política. É p or isso que o núcleo
h istó ria do p ro ce sso de am pliação do conceito de de q u a lq u e r p reocu pação relativa ao p atrim ô nio
p atrim ô n io ...reconhece a necessidade de am pliar cu ltu ral (identificação, proteção, valorização) é
o e sp e ctro do patrim ôn io para aten d er às novas político p o r n a tu re z a ".MENESES (1992:189)
n e c e s s id a d e s da c iv iliz a ç ã o c o n te m p o r â n e a : Mas a respeito deste papel político, MOREL
re co n h e ce n d o a im portância da m anutenção da {op. cit, p.81), que é professor da Universidade
d iv e rs id a d e cu ltu ra l num m undo que tende à de M a d r i, é p o u c o c r í t i c o a f i r m a n d o a
g l o b a l i z a ç ã o , a p o ia - s e n o c o n c e it o de "extraordinária representatividade" da Lista do
a u t e n t ic id a d e c u lt u r a l p a r a d e f e n d e r a Patrimônio. Em contrapartida, reconhece que os
h e te ro g e n e id a d e " MAYUME (op.c/'t.p.71) bens tom b ad os estão concentrados na Europa,
A s s i m , os a n o s 1 990 m a r c a m um a e particularmente na Espanha. Mas, para o autor,
m ud an ça significativa nos conceitos e práticas isso tem sua lógica, já que o país apresenta uma
p a trim o n ia is da Unesco. S egundo a arquiteta história mais complexa.
Ju rem a Machado, em uma avaliação feita pelo A m e s m a a r g u m e n ta ç ã o p o d e r ía m o s
o r g a n is m o em 1992, c o n s ta to u -s e o que os e s te n d e r à p artes do co n tin en te asiático ou
dados anteriorm ente tentaram mostrar: a pouca africano, berços de civilizações milenares. No
representatividade mundial da Lista. Havia uma entanto, a Ásia apresenta a metade do número
g r a n d e c o n c e n t r a ç ã o de b en s t o m b a d o s na de bens tom bados da Europa, utilizando os dados
Europa, especialmente representativos da história do próprio autor (76 contra 156 da Europa).
clássica, constituindo mais de 50% do total, com Há, sem d ú v id a , m u ito s in t e r e s s e s
mais de 30% somente na Espanha e Itália. envolvidos na inclusão de bens na lista, o que
A a t u a ç ã o n e sta e s fe r a p a t r im o n ia l levou a Unesco, nos anos de 1990, a limitar em
internacional não poderia deixar de ser, assim trinta o n ú m e ro m áx im o de bens t o m b a d o s
como dos outros instrumento da ordem ambiental anualmente, com a exigência, ainda, de priorizar
internacional produto de um jogo de interesses e países com poucos patrimônios reconhecidos.
pressões. Por fim é preciso destacar que, se os
A respeito disso MOREL destaca: d iv e r s o s in s t r u m e n t o s da ord em a m b ie n t a l
"N aturalm ente, que uno de los problem as i n t e r n a c i o n a l sã o c o n s t r u í d o s de f o r m a a
fu n d a m e n ta le s está a q u i en Ia elección, en Ia preservar os interesses nacionais e a salvaguarda
d e cisió n p o rq u e Ia riq u e za , Ia variabilidad, Ia da soberania, conform e analisa RIBEIRO {op.
excep cion alid ad , en últim o térm ino, de Ia m ayor c it .p .37), a in stitu cion alização do patrim ô n io
p a r t e d o s b ie n e s q u e h a n s id o o b je t o de mundial pela Unesco não poderia ser diferente.
d eclaració n o ficia l es im presionante y entonces O artigo 6 o da Convenção do Patrim ônio
los crité rio s g en erales no siem pre son posibles y, M undial assim declara:
en ocasiones, se m anifestan incapaces de resolver "Com observância plena da soberania dos
los p ro b le m a s, Io que exige decisiones un tanto E sta d o s em cu jo te rr itó r io esteja s itu a d o o
p articulares que no siem pre son bien acogidas p or patrimônio cultural e natural ... e sem prejuízo
a q u ello s que se consideran parte de los bienes dos direitos reais previstos pela legislação nacional
86 G EO U SP Espaço e Tempo, São Paulo, N° 14, 2003 SCIFONI, S.

s o b r e e le s , os E s t a d o s p a r t e s na p r e s e n t e É assim que o patrim ônio cultural e o


c o n v e n ç ã o r e c o n h e c e m qu e se tra ta de um am biente tornaram -se parte do interesse público,
p a t r i m ô n i o u n iv e r s a l p ara c u ja p r o t e ç ã o a co n stitu in d o-se nos cham ados "direitos sociais
co m u n id a d e internacional inteira tem o dever de amplos", num processo que vem ocorrendo e se
c o o p e ra r" fo rta le ce n d o desde os anos 1980, a partir da
Já o artigo 11°, item 3, estabelece que: inserção destas preocupações na ordem do dia.
"A inclusão de um bem na Lista do Patrimônio No Brasil, o esforço conjunto de vários
Mundial não poderá ser feita sem o consentimento segm entos (ONGs, políticos, cientistas, meios de
do Estado interessado" (IPHAN, op.cit, p. 182). Foi com unicação) conseguiu inserir na Constituição
assim que o mundo testemunhou no ano de 2001, Federal de 1988 esta idéia, definindo o m eio
a destruição pelo governo taleban de monumentos am biente ecologicam ente equilibrado como direito
b u d i s t a s s i t u a d o s no A f e g a n i s t ã o , s e m a de todos e subm etendo o direito individual de
interven ção da Unesco, a não ser m anifestações acesso à terra ao cum prim ento de sua função
pedindo o cancelam ento do ato. social. O mesmo ocorreu com o patrimônio cultural
Para concluir, se o conceito de patrimônio que, diante destas novas lógicas legislativas, não
mundial pode nos fazer pensar em solidariedade pode ser ag re d id o com a ju stificativ a de que
p la n e tá ria ou pertença com um , com o destaca prevalece o direito à propriedade privada como
CHO AY(op. cit p .208), na medida em que "cabe a superior aos interesses coletivos.
toda coletividade internacional colaborar com a Mundialmente, retrata LEFF (2000:224),
p r o t e ç ã o do p a trim ô n io ", no e n ta n to , a sua o direito ao ambiente somou-se aos princípios da
i n s t i t u c i o n a l i z a ç ã o m u n d ia l r e la t iv iz a e s ta Carta de Direitos Humanos, colocando um novo
s o l i d a r i e d a d e , na m e d id a em q u e e l e g e a conjunto de direitos sociais, entre os quais o da
s a lv a g u a rd a da soberania nacional com o fator conservação do p a trim ô n io com um da
primordial. humanidade.
4. C on sid erações finais: patrimônio, conflitos Esta nova visão é fruto do peso político
e a produção de um novo projeto de civilização. que a questão ambiental adquiriu no curso dos
anos. De acordo com a análise que LE PRESTRE
V im o s que, m u n d ia lm e n te , a idéia de faz das políticas públicas (o p .cit. p. 71), muitas
patrim ônio é gestada e institucionalizada para não são as demandas, mas a busca de soluções requer,
ferir a soberania nacional. O conflito que envolve a n t e s , a s u a i n s e r ç ã o na a g e n d a p o lít ic a
esta idéia é, portanto, de outra ordem e se dá no reconhecendo-as como problema.
plano dos interesses públicos versus os privados. Mas, no que diz respeito ao patrimônio,
Para e n t e n d e r a raiz d este c o n flito é muito antes disso, em 1931, a Carta de Atenas já
necessário retomar o conceito de patrimônio como apontava para esta idéia, conforme se observa
o de bens representativos da memória social, que no seguinte trecho: "... a conferência aprovou
não é ún ica m as plural, pois é se m p re uma unanim em ente a tendência geral que consagrou
m e m ó r i a de d i v e r s o s g r u p o s s o c i a i s . S ua nessa matéria um certo direito da coletividade em
p r e s e r v a ç ã o se fa z , a s s i m , em n o m e da relação à propriedade privada. (IPHAN, op.cit. p. 15)
coletividade com o um legado que se deixa para O conflito, então, vem do fato de que os
futuras gerações. Se faz, portanto, em nome de avanços deste novo direito deram-se no interior
um interesse público. de u m a r a c i o n a l i d a d e s o c ia l q u e tem se u s
Segundo LE PRESTRE (2002:64) interesse fundamentos na formação da sociedade burguesa,
público é, antes de tudo, um conceito relativo, uma alicerçada, portanto, na valorização do privado.
"con stru ção política e ideológica tem porária" Ele N e s te s e n t id o , e s te n ov o d ir e it o a p r e s e n t a
se define, em cada contexto, não como o que o princípios outros, mas que se contrastam com a
governo estabelece, mas no debate político, como r a c io n a lid a d e d o m in a n te , o que d ificu lta sua
fruto do am adurecim ento e da consciência política. completa assimilação e aceitação. A superação do
Patrim ôn io m undial: do ideal hum anista à utopia de uma nova civilização, pp . 77- 88. 87

conflito pede, desta forma, a consolidação de uma perspectiva global. De outro lado, a necessidade
outra racionalidade. de construção de um novo saber, de novas bases
C om o aponta LEFF (2001:127), o conflito teóricas para fun dam entar este novo projeto, o
é p o s it iv o , p o is é a t r a v é s de uma s é rie de que ele denom ina de racionalidade teórica. E por
p rocessos políticos, de confronto de interesses, fim a racion alid ad e instrum ental, que diz respeito
q u e é p o s s í v e l a c o n t e c e r e m as m u d a n ç a s aos novos in stru m e nto s legais e té cn ico s que
n e ce s sá ria s em direção a um novo projeto de perm itirão revolucionar esta sociedade.
civilização, assentado numa outra racionalidade A construção deste novo projeto, segundo
d o m in a n t e : a r a c io n a lid a d e a m b ie n t a l. Esta o autor, se dá na articulação dialética entre práticas
racionalidad e tem princípios outros não fu n d a ­ s o c ia is e saber: a c ria çã o de n ov as p rá tica s
m e n ta d o s no cálculo econôm ico, pressupondo, estim ula a revolução do saber constituído e a
portanto, um outro olhar sobre o patrimônio e produção de um novo saber, enquanto estes se
s o b r e a n a t u r e z a qu e não é o da v a lo r a ç ã o to r n a m c a p a z e s de p ro m o v e r m u d a n ç a s nas
econôm ica. práticas sociais.
A racionalidade ambiental, segundo o autor, E n te n d e m o s que este n ovo p ro je to é
é p r o d u z i d a na m u d a n ç a de um a s é r ie de construído num movimento histórico, contínuo e
instâncias: de um lado na produção de novos c o t id ia n o de m u d a n ç a s e c o n flito s , os q u ais
v a lo r e s , o q u e ele ch a m o u de ra c io n a lid a d e certam ente estam os testem unhando na forma de
s u b s ta n tiv a , tais com o a pluralidade, a gestão momentos de transição. Acreditamos que os novos
p a r t i c i p a t i v a , a d i s t r i b u i ç ã o da r iq u e z a , a direitos sociais apontam para isso e a idéia de
co n serva çã o de recursos, a qualidade de vida e a patrimônio cultural e natural também.

Notas
1 United Nations Educational, Scientific and Cultural 3 Palestra realizada no Seminário Internacional de
Organization (Organização das Nações Unidas Preservação e Recuperação do Patrimônio Cultural,
para a Educação, a Ciência e a Cultura) promovido pela Secretaria de Estado da Cultura e
2 Mario de Andrade, intelectual modernista, participou Arquivo do Estado em maio/2002.
da form ação do então Serviço do Patrimônio 4 E que foram salvos da inundação das águas da
Histórico e Artístico Nacional, SPHAN, em 1937 represa por uma operação internacional que os
No ano anterior, à pedido do ministro Gustavo deslocou para setores mais elevados.
Capanema, elaborou o anteprojeto do decreto Lei 5 Ver: Critères relatifs à l'inscription de biens naturel
25, o qual instituiu o sistema de proteção ao sur la Liste du Patrimoine Mondiel, art. 43, 44 e
patrimônio histórico e artístico nacional, o qual 45. Fonte: www.unesco.org/nwhc.fr/pages/doc/
permanece ainda em vigor. main.html, acessada em setembro de 2002.

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Trabalho entregue em março de 2003.

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