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“entre”.
Há uma filosofia de pontos e há uma filosofia do entre. A primeira tem a ver com as façanhas do
pensamento substancialista de Aristóteles e, modernamente, com a filosofia do sujeito, cujo
expoente inicial, na conta dos manuais, está em Descartes. As filosofias da intersubjetividade,
como o caso da teoria de Habermas, podem muito bem ser colocadas também nesse campo. A
segunda é relacionista e, nesse sentido, deve ser qualificada. Uma filosofia do entre, para ser
autêntica e não redutível ao substancialismo, tem de apostar que o “entre” não é um apêndice
de feitos de dois polos que se mantém como dois polos autônomos, mas um meio que é
simbiose e ressonância – para usar termos caros a Peter Sloterdijk. É assim que é a filosofia de
Martin Buber.
Sua descoberta fantástica: “não é verdade que a criança percebe primeiramente um objeto, e, só
então entra em relação com ele. Ao contrário, o instinto de relação é primordial, com a mão
côncava na qual o seu oponente possa se adaptar”.[1]
Herdeiros de um dicionário aristotélico que nos mostra um mundo substancial como essencial,
ou seja, o mundo importante, e ao lado o que é desimportante por não ser essencial, não ser
substancial, temos então imensa dificuldade de compreender qualquer narrativa ontológica com
descrições que privilegiem o entre. Ficamos estupefatos diante de um filósofo que diz que a
criança tem um “instinto de relação”. Não importa aí o que se quer dizer com instinto, a não ser
o que o mais fácil dessa palavra: não se trata de alguma coisa que é preciso ser acoplada à
criança, mas que vem dela mesma, que lhe é imanente. Em outras palavras: uma criança é antes
de tudo o que, sendo criança, traz consigo a relação.
Buber deixa bem claro o que pensa sobre isso, em outro trecho:
A vida pré-natal das crianças é um puro vínculo natural, um afluxo de um para outro, uma inter-
ação na qual o horizonte vital do ente em devir parece estar inscrito de um modo singular no
horizonte que o carrega, e entretanto, parece também não estar aí inscrito, pois não é somente
no seio de sua mãe humana que ele repousa. Este vínculo é tão cósmico (…)[2]
Contra toda a sociologia ou psicologia social, por essa filosofia a criança não se socializa, ela
está praticamente pronta para qualquer socialização que, enfim, é apenas um produto de seu
instinto, digamos assim. Estamos sempre vivendo no entre, e não em um polo chamado eu ou
em outro polo chamado tu. O eu-tu de Buber é isso: a vida está entre eu e tu, de modo que o
eu só se coloca se há o tu. Sloterdijk pode dizer: se há um adeus à placenta na hora do parto,
tudo que o bebê precisa fazer é ter se preparado para substituir esse companheiro que vai
embora repondo algum outro parceiro na esfera, de modo a não fazer a bolha explodir ou
implodir. Que seja então o anjo da guarda, isto é, alguma entidade que se embrenha em uma
proto-psique, gerada ainda no útero pela sinestesia da vida sonora, e logo competidora de mais
sons e imagens, agora da própria mãe adentrando como um terceiro elemento na esfera.
O instinto de relação nada é senão o produto da condição humana: nós todos somos gêmeos –
diz Sloterdijk. A companheira placenta não era um “isso”, mas um “tu”. O eu-tu de Buber pode,
na versão de Sloterdijk, se apresentar de um modo inteiramente mais descritivo.
Buber diz tudo que Sloterdijk também diz, ainda que no segundo caso a narrativa inclua uma
visão histórica, cultural e antropológica mais descritiva. Ele diz: “o desenvolvimento da alma na
criança é indissoluvelmente ligado ao desenvolvimento da nostalgia do tu, às realizações e
decepções deste anseio, ao jogo de suas experiências e à seriedade trágica de sua
perplexidade”.[3] Ora, para Sloterdijk, o homem gera uma psique que se põe como psique, isto
é, como uma intimidade nascente, por conta de seu insistente esforço de reposição do
companheirismo do aumentador inicial, a placenta. Esse esforço faz do homem, desde sua vida
primitiva até hoje, um eterno “designer de interior” (Innenarchitekten).[4] É preciso sempre
construir um “dentro”, no qual o que se impõe é o meio, o entre, a vida que se estabelece no
eu-tu, para usar a terminologia de Buber. A vida está no hífen. E o hífen não tem nenhuma
conotação substancialista. Ele é o entre, a simbiose, a ressonância.
Com Bubber e Sloterdijk perde sentido a pergunta sobre se as condições simbólicas que,
depois, propiciam a linguagem, é algo inato ou se é fruto da socialização. Ainda que Chomsky
(inatismo) e o II Wittgenstein (não inatismo) tenham estado preocupados com a linguagem e
não com a capacidade simbólica, ficamos até menos carregados de seus pesos, em certo
sentido. Podemos franzir menos as sobrancelhas diante de problemas típicos da filosofia
analítica, ou seja, de realismo versus anti-realismo, e até, de um certo modo, também em
relação a como que a linguagem se engancha no mundo. Pensar no entre, fazer uma filosofia
do entre, nos põe em uma versão cosmológica do entre pragmatista, que localiza o que é
relacional segundo as palavras pragma e práxis, na experience de James e Dewey, ainda que este
tenha, em alguns momentos, indicado antes uma cosmologia relacional que uma metafísica da
práxis. Podemos pensar o entre como quem desafia os saberes psicanalíticos que postularam
coisas como o “narcisismo primário” e, depois, a chamada fase do espelho (Lacan). O “instinto
de relação” deve estar no horizonte a todo o momento, para não cedermos de novo a tais
problemas que podem ser mais relativizados, postos como menos decisivos, digamos.
[4] Sloterdijk, P. Spharen I. Blasen. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1998, p. 84.