Ministério da Cidadania apresenta

Banco do Brasil apresenta e patrocina

Idealização
Jaiê Saavedra, Julio Bezerra, Rosa Monteiro, José de Aguiar e Marina Pessanha

Organização Editorial
Rosa Monteiro, Jaiê Saavedra e Julio Bezerra

Rio de Janeiro | Firula | 2019

O Ministério da Cidadania e o Banco do Brasil apresentam a mostra
“Věra Chytilová: a grande dama do cinema Tcheco”, que reúne os prin-
cipais filmes de sua carreira como cineasta, marcados por humor ne-
gro, crítica social e sátiras sobre o regime comunista, dando início ao
que se chamou, posteriormente, de Nouvelle Vague Tcheca.

Com 20 longas-metragens e 06 curtas, a mostra Věra Chytilová: a gran-

de dama do cinema Tcheco, como era conhecida, exibe obras cinema-
tográficas que carregam as características da liberdade artística e da
personalidade ousada e rebelde de Věra Chytilová, além dos traços sub-
versivos e elementos de paródia do estilo de vida e cotidiano da antiga
Tchecoslováquia.

O Centro Cultural Banco do Brasil apresenta ao público brasileiro obras

da cineasta que transcende gerações do cinema Tcheco e mundial. A
mostra reforça o compromisso do Banco do Brasil com a democratiza-
ção do acesso à arte e à cultura e com a formação de público por meio
de uma programação multicultural acessível, regular e diversificada.

CENTRO CULTURAL BANCO DO BRASIL

 Rebelde, feminista e crítica da sociedade contemporânea: esses são alguns
adjetivos que descrevem Věra Chytilová, protagonista da Nouvelle Vague
Tcheca. Seus filmes são permeados por elementos de intensa militância e
moldados por um discurso ácido que lhe rendeu também o apelido de “A
Primeira-Dama da Nouvelle Vague Tcheca”.

A cineasta ganhou notoriedade internacional por seu filme As pequenas

margaridas (Sedmikrásky), de 1966, filme conhecido por ausência de uma
narrativa contínua, estilo visual único e montagem abrupta. O filme fazia
críticas severas ao regime comunista e à misoginia, trazendo marcas que
Věra utilizaria em grande parte de seu trabalho posterior. O conteúdo fe-
minista e de crítica social mesclados ao humor negro fez com que ela fos-
se sumariamente banida de seu país. Ela, no entanto, se recusou a deixar
a Tchecoslováquia mesmo depois da invasão da União Soviética em 1968,
quando declarou que fazer filmes naquele momento histórico e político se
tornaria sua missão de vida.

Věra Chytilová personificou uma linguagem cinematográfica única com

um estilo que não se apoia em convenções verbais ou literais. Ao invés dis-
so, ela faz uso de manipulações visuais que criam significados únicos. A di-
retora misturava observações sobre seu dia-a-dia com alegorias surrealis-
tas e chegava a um estilo único que tinha como influência o Neo-Realismo
Italiano e a Nouvelle Vague Francesa.

Rebeldes e satíricos, os filmes de Chytilová mostram sem concessões o es-

tado da sociedade e das relações humanas. A diretora faz também um uso
bem particular do cinema direto para dar a seu público um certo distancia-
mento de suas histórias, o forçando a questionar constantemente o signifi-
cado de suas sequências e a analisar intensamente as questões apresenta-
das pela sua diversificada filmografia.

Depois de estudar arquitetura e filosofia, trabalhou como modelo, assisten-

te de produção e claqueteira. Foi aceita na renomada Academia Superior
de Cinema de Praga, a FAMU, na qual veio a estudar com outros direto-
res renomados como Jiří Menze, Jan Nemec Ji e Milos Forman. O encontro
gerou impactos nas filmografias de todos esses diretores: seus filmes eram

Rosa Monteiro permeados por humor negro, crítica social e sátiras veladas sobre o regi-
me comunista, dando início ao que se chamou posteriormente de Nouvelle
Vague Tcheca. É importante ressaltar que em um determinado ponto da
história do cinema tcheco ela foi indiscutivelmente a principal cineasta do
país em um mercado predominantemente masculino.
A liberdade artística possibilitada pelo clima de protesto e efervescência
cultural durou pouco tempo, por pressão da União Soviética. Muitos con-
temporâneos de Věra Chytilová, incluindo Milos Forman, tiveram que se exi-
lar. Věra, no entanto, resistiu e seguiu produzindo dentro de seu próprio país.
Os filmes de Chytilová não dissociam a visão subjetiva da mulher moderna
de uma objetividade crítica feminista. As personagens de Chytilová são,
emancipadas ou não, prisioneiras das palavras dos homens, da linguagem e
do julgamento masculinos - nesse sentido, a tcheca seria uma cineasta anti-
patriarcal. Chytilová realiza aqui sua obra-prima em As pequenas margaridas
por encontrar, tal como suas personagens, uma linguagem própria, caracte-
rística marcante em toda sua filmografia.
Apesar do reconhecimento mundial e sua relevância artística, a imensa
maioria dos filmes de Věra não chegou ao Brasil. Věra Chytilová foi uma
figura proeminente, embora nem sempre lembrada com a devida atenção
na história da Sétima Arte, que tão comumente prefere pôr suas represen-
tantes do sexo feminino na posição de “musas”, colocando para debaixo dos
panos as suas “criadoras”. Dois ou três de seus filmes são esporadicamen-
te analisados em conjunto sob o contexto da Nouvelle Vague Tcheca, mas
pouca luz foi jogada à exposição e compreensão de sua obra autoral como
um todo. Assistir ao cinema de Věra se torna urgente em um momento de
busca por representatividade e por vozes de autoras mulheres que trans-
formaram socialmente as sociedades nas quais se encontravam sufocadas.
Uma boa mostra a todos.

Depois de As pequenas margaridas o governo soviético tornou quase im-

Rosa Monteiro
possível que Chytilová encontrasse trabalho dentro da Tchecoslováquia e
Curadora
ela passou a dirigir comerciais sob o nome de seu marido, Jaroslav Kučera.
Mesmo assim, após esse hiato de seis anos de lista negra, sua produção pros-
seguiu intensa até os anos 2000, com histórias absurdas repletas de surrea-
lismo e algumas das aberturas mais revolucionárias e chocantes da história
do cinema. Através dos anos os filmes de Chytilová se tornaram menos ex-
perimentais, mas nunca perderam suas características subversivas e seus
elementos de paródia do estilo de vida e cotidiano da Checoslováquia.

Até o fim de sua carreira, Věra lutou intensamente em sua tentativa de

produzir arte dentro de um meio complexo e asfixiante de intensa censura.
Ela resistia a definição e rótulos e  quando questionada por jornais sobre o
tema feminismo dizia:

“Eu era ousada o suficiente para querer liberdade absoluta - mesmo se isso
fosse um erro”.

Ela não se considerava feminista e considerava que esse rótulo diminuía

sua obra, que tratava de muito mais que isso. Os temas mais encontrados
em seu trabalho envolvem o comportamento social e seu significado, rela-
cionamentos e a autonomia feminina na sociedade.

A última gargalhada de Věra Chytilová 10
Boris Nelepo
Algo diferente (O něčem jiném, 1963) 16
Gwendolyn Audrey Foster
As pequenas margaridas (Sedmikrasky, 1966) 22
Steven Shaviro
O campo livre: Entrevista com Věra Chytilová 30
Michel Delahaye e Jacques Rivette
Entrevista com Věra Chytilová 58
Serge Daney e Bernard Gidel
Bonecas fragmentadas: As pequenas margaridas
(Sedmikrasky, 1966) como alegoria feminista 68
Bliss Cua Lim
Fruto do paraíso de Věra Chytilová: Um conto sobre
uma estética feminina, cores dançantes e uma boneca
que mata o diabo 108
Iveta Jusova e Dan Reyes
Sumário
Em busca de autenticidade: filmes de Věra Chytilová
de duas eras 172
Jan Čulík
Contra a destruição: Conjunto habitacional (Panelstory, 1979) 204
Andrew James Horton
O vazio por trás da máscara Game-playing
nos filmes de Věra Chytilová 212
Ivana Košuličová
Věra, a pedagoga: Reflexões de uma estudante
americana de cinema na FAMU 220
Asmara Beraki Marek
Alegoria nua: Banidos do paraíso
(Vyhnâni z râje, 2001), de Věra Chytilová 232
Dora Viceníková
Em Memoriam: Věra Chytilová (1929-2014) 238
Meredith Slifkin
Filmografia 242

Perfeitamente imprevisível: primeiros trabalhos de Sobre os autores 260

Věra Chytilová à luz da censura e de relatórios de produção 134
Créditos 266
Lukáš Skupa

Eu quero trabalhar 162

Věra Chytilová
 A última gargalhada de Vera Chytilová 11

A última
Em Algo diferente (O něčem jiném, 1963), Vera, dona de casa, está farta do
marido emocionalmente indisponível, das tarefas extenuantes e de criar os
filhos, pelo que começa um caso. Esta mulher despedaçada tem ataques de

gargalhada
risadinhas ocasionais, que assustam os dois homens de sua vida. Até certo
ponto prefigurando A salamandra (La Salamandre, 1970), de Alain Tanner,
esse riso levanta o véu que cobre a crise existencial da heroína, tão relutan-
te em ser posto em palavras e, ainda assim, ocasionalmente susceptível de

de Vera imagens de cinema. Ao longo dos seus quase 50 anos de carreira, ouvimos o
riso de Věra Chytilová tantas vezes que merece ser inventariado. As peque-
nas margaridas (Sedmikrásky, 1966) deu muitas razões aos censores para o

Chytilová 1 banirem, mas o cacarejar trocista de duas raparigas em guerra com o senso
comum teria bastado. Ouve-se o som logo no seu filme de escola Miado (Ko-
cicina, 1960), feito na Escola de Cinema e Televisão da Academia de Artes
performativas de Praga (FAMU). Aí, a cineasta faz a voz de um gato que
assiste às transacções suspeitas e picuinhas dos seus donos. Ao concluir a
Boris Nelepo história com uma explosão de gargalhadas contagiosas, a narradora felina
demonstra ter muito em comum com a protagonista da despedida de Chy-
tilová, Momentos agradáveis (Hezké Chvilky bez Záruky, 2006) – a psicana-
lista Hana, espectadora, como nós, de um conjunto de tragédias cotidianas,
cada uma aparentemente insignificante, mas, por vezes, constitutiva da
própria essência humana. No último plano do último longa-metragem de
Chytilová, observamos o rosto da heroína em grande plano, até as garga-
lhadas se transformarem num choro descontrolado.

1 Publicado originalmente no catálogo do festival Doclisboa 2017.
Por que me detenho no riso? Penso que a maior parte das obras de Věra Chy-
tilová podem ser classificadas como farsas morais. Quaisquer outras tenta-
tivas de generalização são dificultadas pela ambivalência da sua obra, tão
evasiva e resistente a definições pré-concebidas, e pelo fato das alterações
de estilo estarem directamente dependentes de mudanças sociopolíticas,
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12 Vera Chytilová
primeiro, na Tchecoslováquia, e depois, na República Tcheca. Nascida em
Ostrava, em 1929, filha de um gerente de um café de uma estação de cami-
nhos-de-ferro, tornaria aos comboios e aos cafés. Chytilová estudara arqui-
tetura, experimentara ser modelo, trabalhara como assistente de realização
no estúdio de cinema Barrandov e até casara com um fotógrafo conhecido,
antes de finalmente se inscrever na FAMU, em 1957. Ao candidatar-se ao se-
minário de Otakar Vávra, alegou desagrado total com o estado do cinema
contemporâneo e, na verdade, os alunos do seu ano iriam revolucioná-lo
por completo, dando origem à Nouvelle Vague Tcheca (o longa-metragem
de estreia de Chytilová, Algo diferente (O něčem jiném, 1963), encontrava-se
entre os predecessores). O filme de antologia Pérolas das profundezas (Perli-
cky na dne, 1965), baseado nos contos de Bogumil Hrabal, tornou-se o mani-
festo informal do movimento e a reunião de turma de Chytilová com Jaromil
Jires, Jirí Menzel, Jan Němec e Evald Schorm. Esta enxurrada de atividade
sem precedentes incluiu os primeiros passos de Jan Němec, Ivan Passer, Mi-
loš Forman, Juraj Herz e Štefan Uher, cada um dos quais merecedor de ser
longamente debatido, em vez de alvo de uma mera menção.
Em 1968, o secretário-geral do Partido Comunista da Thecoslováquia, Ale-
xander Dubček, colocou em andamento um processo de reforma com vis-
ta a um “socialismo de rosto humano”. Esse curto período de liberalização,
que ficou na história como a Primavera de Praga, coincidiu com o auge da
Nouvelle Vague, mas tudo foi bruscamente interrompido quando tanques
soviéticos invadiram a Tchecoslováquia e o país entrou na agora chamada
“normalização”. Com os seus vanguardistas As pequenas margaridas e Fruto
do paraíso (Ovoce stromu rajských jíme, 1970), Chytilová tornou-se rapida-
mente num espinho para os funcionários do partido e foi subsequentemen-
te banida da sua profissão. E, no entanto, tal como Želimir Žilnik, recusou-
-se a deixar o país. A sua perseverança ajudou-a a forçar o seu regresso,
mas teve de renunciar ao surrealismo que a distinguia, tornando-se, em vez
disso, numa cronista ímpar da vida na Tchecoslováquia. Foi fácil para Go-
dard difamar Chytilová no seu Pravda (1969), comparando-a aos “inimigos
do povo”, mas qual foi a sua resposta? Ora, um risinho, naturalmente.
Regresso tardio após um hiato forçado, O jogo da maça (Hra o jablko, 1977)
é talvez o seu trabalho mais acessível, uma quase comédia romântica sobre
um ginecologista (interpretado por nem mais nem menos do que Jirí Men-
A última gargalhada de Vera Chytilová 13
zel!) e a sua enfermeira. Assim teve início o ciclo “libertino infantil” de Chy-
tilová, prosseguido com A tarde de um Fayuno (Faunovo velmi pozdní odpo-
ledne, 1983) e Tainted Horseplay (1988). Todavia, o padrão inverte-se com
Calamidade (Kalamita, 1981), onde Honza, um ferroviário tímido, procura
em vão esconder-se da luxúria das mulheres que o rodeiam. No mundo de
Chytilová, homens e mulheres tendem a ser igualmente risíveis.
A beleza de uma retrospectiva é que se pode realmente ver a consistência
da sua produção e identificar os seus diferentes períodos. Primeiro, há um
breve fascínio pelo cinéma vérité: Teto (Strop, 1961), Saco de pulgas (Pytel
blech, 1962), Algo diferente (1963); depois, uma série de colaborações com
Ester Krumbachová, a força motriz por trás da Nouvelle Vague Tcheca,
agora relegada para os rodapés da história do cinema: As pequenas marga-
ridas, Frutos do paraíso, A tarde de um fauno. A essa época seguiu-se outro
conjunto de colaborações, igualmente frutuosas, desta feita com o mimo e
dramaturgo Boleslav Polívka: Calamidade, O bobo da corte e a Rainha (Sa-
sek a Kralóvna, 1987), A herança (Dedictví aneb Kurvahosigutntag, 1992),
Banidos do paraíso (Vyhnání z Ráje, 2001). Um conjunto de documentários
sobre Praga (Praga - O incansável coração da Europa e Os cidadãos de Praga
me entendem), colegas (Chytilová Versus Forman, Voôs e quedas, Procurando
por Ester, Pokus a Chyba Ivana Vyskočila) e empoderamento das mulheres
(Where Are You Going, Girls?, Troublemakers): juntos, constituem o diário
pessoal da vida de Chytilová.
Mais uma vez escapando aos rótulos, Věra Chytilová – cineasta pioneira, rea-
lizadora de documentários militantes sobre os direitos das mulheres e arqui-
vista de injustiças e humilhações cometidas contra o seu género – ofendia-se
ao ser chamada feminista. Em 2006, concorreu ao Senado como candidata
do Partido da Igualdade de Oportunidades, o partido das mulheres da Repú-
blica Tcheca. Em Um Estudo das Organizações Orientadas para a Igualdade
entre Géneros na República Tcheca e os seus Canais de Influência, Madeleine
Lundin assinala que: “O partido não conseguiu angariar muito apoio do pú-
blico em geral e só teve 0,2% dos votos no escrutínio. Também teve pouco
apoio nos círculos feministas, sobretudo dada a orientação do partido para o
essencialismo de segunda vaga – no qual se assume a existência de determi-
nadas diferenças inerentes ou “naturais” entre os sexos (para lá das diferen-
ças biológicas), em vez das socialmente construídas –, sublinhando, assim,
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14 Vera Chytilová A última gargalhada de Vera Chytilová 15

a necessidade de tornar a política (e todos os outros lugares da sociedade) dade. Conjunto habitacional (Panelstory aneb jak se Rodí Sídliště, 1979),
mais feminina, para a tornar igualitária. Tal ambição era simplesmente to- talvez a obra-prima de Chytilová e definitivamente a sua empreitada mais
talmente contrária às convicções da maioria dos feministas do país, que em próxima de Kira Muratova, é mais do que uma masterclass de montagem
grande medida defendem a igualdade de género com base no argumento (é com razão que Jacques Rivette salientava este aspecto do seu cinema)
de que os indivíduos são todos iguais.” A recepção do trabalho de Chytilová ou um excelente naco de sátira política – mostra também, com uma trans-
pelas feministas foi, na melhor das hipóteses, heterogéneo: por exemplo, o parência surpreendente, uma Torre de Babel, neste caso um grupo de in-
extremamente radical Armadilhas (Pasti, Pasti, Pastičky, 1998), uma história quilinos numa urbanização, a perder a língua comum. Efetivamente, seria
de violação e vingança sombriamente cómica que envolve castração, foi tão difícil encontrar um filme de Chytilová em que os seres humanos não se
louvada quanto injuriada. Todavia, como salienta o estudioso de cinema Pe- entretivessem a destruir-se uns aos outros. É sempre como em Daisies, em
ter Hames, “Vale a pena mencionar que os filmes chave dela antecederam que um abre outro à facada. Esta estética apalhaçada serve muito bem as
o desenvolvimento da escrita para cinema feminista nos anos 1970. Se ela obras de Chytilová, levando a câmara inquieta a rodar de personagem em
percorreu o mesmo caminho, fê-lo num contexto diferente.” personagem enquanto estas se perseguem por sexo, lucro ou prazer, gri-
tando e gesticulando num frenesi típico de Tom and Jerry. Nem sequer uma
“Porque é que se faz filmes? Para que é que se vive?”, insiste a cineasta em
invasão alienígena (O chalé do lobo) faz com que as pessoas se juntem em
Chytilová Versus Forman (1981). Mulher crescida e realizadora bem-sucedi-
solidariedade. Dito isto, podemos apelidar Chytilová de misantropa? Segu-
da, não deixa de colocar questões aparentemente ingénuas sobre Forman e
ramente que não. Durante muitos anos, ela assistiu ao desenrolar da eterna
sobre si mesma, revelando assim a própria essência do seu modus operandi
comédia humana. Uma vez, considerou Algo diferente “Um drama sobre a
enquanto realizadora: é directa, trocista, exagerada. Talvez esta última ca-
luta eterna pela imortalidade entre a finitude dos poderes humanos”. Se
raterística seja a que melhor descreve as subidas de tensão entre as suas
substituirmos “drama” por “comédia,” essa definição aplicar-se-ia a todos os
personagens. Na minha opinião, cada um dos filmes de Chytilová situa-se
seus filmes, sem excepção.
entre dois pólos, a criação e a destruição, com a narrativa a oscilar frene-
ticamente entre uma e outra, como a agulha de um velocímetro avariado
num qualquer comboio desenfreado. Mesmo em Troja – Changes in Time
(Troja v Proměnách v Času, 2003), um documentário sereno que vagueia
pelo bairro epónimo de Praga em que Chytilová viveu durante quase 30
anos, a construir casas e a criar filhos, se causa estrago (ainda que inad-
vertidamente), quando uma inundação repentina interrompe a rodagem.
Igualmente destrutivo no seu âmago, o envelhecimento torna-se no tema
dominante de O tempo é inexorável (Cas je neúprosný, 1978), A tarde de um
Fauno e Momentos agradáveis (neste último, Chytilová fala da velhice com
uma delicadeza particular que faz lembrar Medos privados em ligares públi-
cos, de Alain Resnais).

A criação do mundo (Fruto do paraíso e Banidos do paraíso), o nascimento

de crianças (O jogo da maça), a construção de casas (Conjunto habitacio-
nal), a emergência de um novo regime e de um novo estado (A herança e
Armadilhas) – em última instância, nada disso passa no teste da humani-
 Algo diferente 17

Algo
Embora ela seja mais conhecida no Ocidente por seu clássico feminista ex-
perimental anárquico amplamente celebrado As pequenas margaridas (Sed-
mikrásky, 1966), Věra Chytilová tem uma extensa filmografia. Ela fez parte

diferente
da Nouvelle Vague Tcheca e teve seu trabalho suprimido depois de 1968,
enquanto outros cineastas como Miloš Forman e Ivan Passer fugiram para
o Ocidente e fizeram a transição bem sucedida para o cinema de Hollywood.
Ela também foi a principal diretora do cinema checoslovaco em um período

(O něčem jiném, 1963) 1 absolutamente dominado por homens.

Como Meredith Slifkin observou na Film Comment, Chytilová “foi uma

integrante integral” da Nouvelle Vague, um “veículo de rebelião política
Gwendolyn e expressão estética” que “desafiou as convenções do cinema clássico e o
opressivo regime político-cultural”. Slifkin continua:

Audrey Foster “Seus primeiros trabalhos [...] estabeleceram Chytilová não apenas como
uma força artística a ser considerada, mas como uma diretora feminina
despreocupada com a assimilação de suas contrapartes masculinas. Em
vez disso, Chytilová se dedicou com fervor revolucionário a quebrar as
convenções da representação feminina na tela”.2

Nascida em 1929, Chytilová inicialmente estudou filosofia e arquitetura, e

1 Publicado originalmente em Cinémathèque Annotations on Film, nº 87, junho de 2018.
Tradução de Julio Bezerra. Disponível on-line em:
http://sensesofcinema.com/2018/cteq/something-different-vera-chytilova-1963/
mais tarde trabalhou como modelo de moda, designer e assistente de fo-
tografia. Depois de invadir a indústria cinematográfica da Checoslováquia
em uma variedade de funções subalternas no Barrandov Film Studios em
Praga, ela foi aceita pela Escola de Cinema e TV da Academia de Artes Cê-
nicas de Praga (FAMU), a quinta mais antiga escola de cinema do mundo.
Lá, ela estudou com o diretor Otakar Vávra e completou vários filmes es-
tudantis - incluindo Teto (Strop, 1962), um documentário sobre a vida de
2 Meredith Slifkin. “In Memoriam: Věra Chytilová (1929-2014)”. In: Film Comment, 19 de março de 2014.
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18 Vera Chytilová
Marta Kanovská, uma modelo de moda; e Saco de pulgas (Pytel blech, 1962),
sobre um dormitório de meninas opressivas - antes de embarcar em seu
primeiro filme altamente experimental, Algo diferente (O něčem jiném,
1963), que marcou o surgimento de um grande talento na cena cinemato-
gráfica da Checoslováquia.
Filmado em um preto e branco naturalista, Algo diferente intercala dois
enredos básicos - um encenado e um real. No enredo do documentário,
uma ginasta campeã, Eva Bosáková, prepara-se para uma competição sob
a implacável tutela de um instrutor masculino; e na seção fictícia, a dona-
-de-casa entediada e não apreciada Věra (Věra Uzelacová) enfrenta o tédio
de sua vida diária, enquanto seu marido (Josef Langmiler) nada mais faz do
que voltar para casa depois do trabalho e ler o jornal, esperando que Věra
cuide de toda a casa e suas tarefas domésticas. Eventualmente, Věra adota
um caso de amor como um antídoto para sua vida doméstica estéril, mas
sugere-se que não há escapatória ou liberdade real para Věra ou Eva. Am-
bas vão continuar a lutar em um mundo dominado pelos homens, que priva
cada mulher de qualquer chance real de independência. É uma estratégia
narrativa feminista brilhante, embora deprimente.
Ao longo do tempo de execução do filme, as duas histórias são intercaladas
repetidamente em intervalos aparentemente aleatórios e nunca conver-
gem em uma única narrativa - nem são projetadas para elas. Věra e Eva são
representativas do sofrimento das mulheres na cultura checoslovaca no
início dos anos 1960, que certamente persiste até hoje. Eva acaba triunfan-
do como ginasta em uma vitória no campeonato mundial, mas Chytilová
tem o cuidado de acentuar todo o trabalho que teve em sua eventual vitó-
ria - uma torção no tornozelo que precisa ser tratada constantemente; os
treinamentos intermináveis e a repetição de suas sessões diárias de prática
- de modo que até mesmo a eventual “vitória” chega a um preço tão alto que
ela sacrificou o resto de sua vida como mulher.
O mundo de Věra é igualmente estéril, e seu caso não oferece a ela uma
saída real de sua situação como dona de casa e mãe. Ela está dolorosamente
ciente de que a realidade de suas circunstâncias não condiz com a visão
idealizada da vida doméstica que é vendida como uma visão consumista
através da mídia e da propaganda do governo. Como observa Jiří Cieslar,
Algo diferente 19
“A ansiedade presente em (Algo diferente) resulta de um conhecimento ele-
vado de que ambas as mulheres estão ‘competindo’ em seus mundos distan-
tes, mas com perguntas semelhantes. Ainda assim, a solução de Eva é mais
positiva: a Věra ‘doméstica’, depois de sua inútil fuga de seu casamento te-
dioso para um caso romântico, tenta consertar seus laços de família quebra-
dos sem qualquer esperança mais clara de melhoria. A vida ‘pública’ de Eva
também não melhora sensivelmente, mas ela pelo menos tenta passar para
seus sucessores o que (seu treinador) lhe ensinou: uma arte ou um conjunto
de habilidades. Certamente, Eva não deixou seu espaço; ela não tem outro”.3
Não deveria, portanto, surpreender que a própria Chytilová lutasse conti-
nuamente contra o sistema existente ao longo de sua carreira como cine-
asta. Enquanto todos os seus filmes até As pequenas margaridas finalmente
viram um lançamento público, Chytilová esteve sempre trabalhando con-
tra a corrente da sociedade comunista.
Com os eventos de agosto de 1968, quando os tanques soviéticos invadiram
Praga para acabar com a revolução cultural conhecida como a “Primavera
de Praga” sob o comando do líder checo Alexander Dubček, Chytilová des-
cobriu que seu trabalho estava sob ataque sistemático. Entre 1971 e 1976, ela
foi incapaz de conseguir financiamento ou aprovação governamental para
qualquer novo trabalho, e foi só depois de escrever uma carta ao novo presi-
dente tcheco, o radiante comunista Gustáv Husák, que ela pôde voltar ao ci-
nema com uma obra brilhante, uma comédia feminista O jogo da maça (Hra
o jablko, 1977) que gira em torno dos romances de um jovem ginecologista.
Mesmo em seu trabalho mais antigo, que só agora está se tornando pron-
tamente acessível no Ocidente, podemos ver Věra Chytilová indo além do
comum para algo completamente radical, cru e refrescante - filmes total-
mente experimentais com uma mensagem, valor social e ressonância cul-
tural. No final, a decisão de permanecer no que hoje é a República Tcheca
até sua morte, em 12 de março de 2014, foi uma decisão consciente de ficar
e lutar pelo que ela sabia que era certo: a reforma de todas as construções
sociais em seu país natal. Chytilová era uma feminista radical e extrema-
mente brilhante, revolucionária em estilo e substância. Algo diferente nos
3 Jiří Cieslar. “‘Now I Don’t Know How to Keep On Going’: The Early Films of Věra Chytilová”. In:
Kinoeye V. 2. Nº 8, 29 de abril de 2002.
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20 Vera Chytilová

dá um vislumbre refrescante da mente criativa que criou um novo cinema

com o clássico e insuperável As pequenas margaridas.

Enquanto outros deixaram o país, Chytilová continuou a lutar pela liberdade

artística em um regime que nunca foi realmente simpático ao seu trabalho e
só permitiu que ela continuasse fazendo filmes. “Eu era ousada o suficiente
para querer liberdade absoluta, mesmo que fosse um erro”, disse ela, quase
no final de sua vida.4 Esse foi o objetivo de todo o seu trabalho - questionar a
autoridade, a desigualdade de gênero e a misoginia, lutar pelos direitos das
mulheres, derrubar a ordem patriarcal existente por todos os meios possí-
veis. Chytilová deixou um forte legado: seu trabalho continua a acender o
fogo dentro de jovens revolucionários, feministas e cineastas experimentais
radicais em todo o mundo.

4 Carmen Gray. “Věra Chytilová for Beginners”. In: British Film Institute News, 29 de novembro de 2016.
 As pequenas margaridas 23

As
As pequenas margaridas (Sedmikrasky, 1966), filme de Věra Chytilová, conse-
gue ser abstrato e visceral, intelectual e infantil, divertido e selvagem, tudo
ao mesmo tempo. Quando o revi ontem à noite, eu literalmente vibrava de

pequenas
entusiasmo e alegria. Senti-me da mesma maneira que na primeira vez que
vi o filme, mais ou menos trinta anos atrás, na graduação.

As pequenas margaridas é um filme da Nouvelle Vague Tcheca, mas não tem

margaridas
muito em comum – além de rejeitar a narrativa tradicional e a estética do
“realismo social” – com as outras obras do movimento. Chytilová, como po-
demos dizer, é o Godard pro Truffaut de Jiri Menzel. (Chytilová e Menzel
estudaram na FAMU, a famosa escola de cinema Tcheca, ficaram amigos e
(Sedmikrasky, 1966) 1 ocasionalmente trabalharam juntos). As pequenas margaridas é uma con-
fusão de cores, cortes bruscos, elipses, erros deliberados de continuidade,

Steven Shaviro
inserções escandalosas de imagens, sons e músicas sem conexão diegéticas,
além de efeitos especiais anti-naturalistas. Algumas vezes a tela é colori-
da, noutras permanece em preto-e-branco, com filtros monocromáticos ou
efeitos granulados de pixels fora de ordem (seja o que for o equivalente pré-
-digital disso). Este filme é uma total investida, sem nenhuma piedade, con-
tra as convenções cinematográficas e a forma, ou o próprio cinema; contra
as normas sociais e as regras, ou a sociedade; e contra o espectador. É um
atentado de uma violência niilista, sem deixar de ser perfeitamente alegre
e prazeroso: uma explosão de afeto, que compartilho cada vez que assisto.

As pequenas margaridas encanta do mesmo jeito que choca — provavelmente,

1 Publicado originalmente em The Pinocchio Theory em 26 de janeiro de 2007. Disponível on-line em:
http://www.shaviro.com/Blog/?p=547 Republicado sob a tradução de Arthur Imbassahy na Revista Usina
em agosto 2014. Disponível on-line em: https://revistausina.com/9-edicao/pequenas-margaridas/
nesse ponto, encanta mais do que choca, ao menos foi o que percebi ao pas-
sar o filme ontem para os meus alunos. Ainda assim, apesar de um certo grau
de devoção cult, nunca lhe foi dado o devido reconhecimento na história do
cinema, ou até mesmo na história dos filmes experimentais, radicais ou de
vanguarda. Owen Hatherley escreve de forma brilhante sobre isso (e muito
 ›
24 Vera Chytilová
devo a ele por sua análise do filme); mas sua discussão é a única que parece
fazer jus a arrebatedora força e radicalidade do filme. Até mesmo aqueles
que amam As pequenas margaridas têm dificuldade em encontrar os termos
adequados para expressá-lo.
Lá pro final dos anos 1970 e começo dos 1980, no encalço do inovador arti-
go de Laura Mulvey, “Prazer visual e cinema narrativo” (1975), havia muita
discussão sobre o que significava romper com as satisfações convencionais
proporcionadas pelo cinema. Tais prazeres, como Mulvey demonstrou com
vários argumentos, estão integrados às estruturas heterosexuais da domi-
nação masculina e subordinação feminina. Mulvey pede (de forma um tan-
to ambígua) que se faça um esforço “para liberar o olhar da câmera em sua
própria materialidade no tempo e espaço, e o olhar do público na dialética,
no distanciamento apaixonado.” Mas a principal investida do ensaio diz
respeito à “destruição do prazer.” Mulvey convoca uma prática (tanto da
crítica quanto do cinema alternativo) que “destrua a satisfação, o prazer e
o privilégio” presentes na maneira convencional de ver um filme.
Em boa medida o debate depois de Mulvey questionava se o cinema femi-
nista deveria ser dali em diante didático, “alienante”, e difícil; ou se outros
regimes de prazer e afeto, além do patriarcal, poderiam ser atingidos (ou
sequer imaginados). Será que ninguém percebeu que, uma década antes
de Mulvey, Chytilová já havia respondido que sim? Pois o imenso conten-
tamento de As pequenas margaridas nada tem a ver com os mecanismos
de identificação e objetificação, sadismo e paranoia, dissecados por Mulvey
em seu artigo. As pequenas margaridas tem agência, muita na verdade; mas
nós não temos um vocabulário adequado pra descrever o como e o porquê
dessa agência, e isso explica em parte a razão pelo filme ter sido relegado ao
segundo plano da história do cinema.
Desse modo, há duas garotas – ou jovens mulheres, se preferir; as atrizes (Ji-
tka Cerhova e Ivana Karbanova) estão na faixa dos vinte anos. (O IMDB não
lista as datas de nascimento, e diz que elas nunca mais atuaram, com exceção
de pequenos papeis logo depois de As pequenas margaridas, em 1966 e 1967).
Não sabemos como as personagens se chamam – de fato, ambas são chama-
das de diversos nomes ao longo do filme – apesar da maioria das discussões, e
da lista de créditos do IMDB, as listarem como “Maria I” e “Maria II”.
As pequenas margaridas 25
Depois dos créditos iniciais – passados contra a montagem que combina,
por um lado, planos de uma escultura-máquina Dadaista ou Construtivis-
ta; por outro, vídeos antigos de bombardeio e destruição – vemos as duas
Marias sentadas lado a lado olhando para a câmera, dentro de algo que pa-
rece uma grande caixa ou a frente de um palco. Seus corpos estão travados,
os movimentos são desajeitados, como se fossem fantoches. Toda vez que
uma delas se move, ouvimos um alto ranger na trilha sonora, o que sugere
uma animação mecânica malfeita. Elas estão entediadas. Conversam entre
si que já que o mundo vai “mal”, a única alternativa é serem “más” também.
(Outra tradução possível é spoiled [estragado, mimado] em vez de mal).
As duas Marias se entregam à satisfação de várias formas de comporta-
mento antisocial. Ficam reclamando entre si e batem boca. Mas parece que
elas não têm nenhum interesse nos argumentos em jogo, de modo que é
impossível fazer qualquer distinção consistente entre seus pontos de vis-
ta. (Uma é loira a outra morena, as diferenças não passam disso). Elas vão
a restaurantes chiques com velhos bem-sucedidos (o que isso significa no
contexto comunista? Sabemos que o socialismo não foi sem classes nem
igualitário, tampouco houve igualdade entre os gêneros, como deveria ter
acontecido). Os homens pagam bebidas e comidas caras, com a esperança
(presume-se) de seduzi-las, mas em vez disso têm de lidar com o comporta-
mento irascível das garotas. Maria e Maria se vestem com vestidos curtos;
uma delas com rabo de cavalo; ambas usam muita maquiagem. Menos do
que sedutoras, o que elas lembram são garotinhas brincando de se arru-
mar, ou (pior) objetos de fantasia para pervertidos. Os homens nunca con-
seguem o sexo que esperavam; em vez disso são empurrados pra pegar um
trem e abandonados. As garotas riem com suas brincadeiras, e vão embora
causar mais problemas.
As duas Marias alegremente destroem seu próprio apartamento, assim
como todos os espaços públicos por onde andam; elas estão sempre em mo-
vimento, da latrina de um restaurante luxuoso às margens do rio, de uma
estação de trem até por fim passarem por corredores e subirem os andares
(dentro de um pequeno elevador de comida) de um importante edifício do
governo, onde elas encontram comida em louças de prata meticulosamente
dispostas sobre a imponente mesa para o que (pensamos ser) um banquete
oficial. Na sequência de maior tensão do filme, elas continuam a arrasar a
 ›
26 Vera Chytilová
sala de banquete, se enchendo com uma quantidade gigantesca de carnes,
devorando bolos e bebidas, quebrando copos e pratos, fazendo uma guerra
convulsiva de comida, para no final se pendurar no candelabro. Enquan-
to isso, a trilha sonora se torna bélica ou insólita, extraída do Nibelungo de
Wagner, dentre outros lugares. Certamente trata-se da melhor sequência
que envolva comida em toda a história do cinema.
Um mecanismo de diferenciação está em funcionamento. A má conduta
das duas Marias não tem nada a ver com o garotas-também-podem-ser-
-obscenas que vemos tanto nos últimos anos, seja em séries de TV tipo Sex
and the City, ou nas atitudes de celebridades como as analisadas no último
livro de Ariel Levy: Female Chauvinist Pigs: Women and the Rise of Raunch
Culture. Tais situações em que as mulheres simplesmente substituem os
homens no culto fálico de dominação – terminam com o efeito de reprodu-
zir um comportamento tão estúpido e opressor quanto o masculino.
Mas a atuação das duas Marias acontece num plano distinto. É completa-
mente infantil. Elas não parecem interessadas na sexualidade por si só: ves-
tem-se com trajes liberais dos anos 1960 apenas pra confundir e humilhar
os velhos (nisso elas mostram interesse) e criar uma desordem generaliza-
da. Em vez de sexo, elas querem comida. Não perdem uma oportunidade de
se empanturrar. E se divertem como crianças ao quebrar, rasgar e queimar
as coisas a sua volta. Particularmente, elas fazem uso de tesouras pra cor-
tar sem parar. Essa última ação repercute com o “corte” no sentido cinema-
tográfico; a agressão delas tem correspondência na edição sem continui-
dade de Chytilová, que corta várias vezes a ação ou o objeto apenas pra de
repente mudar tudo de lugar. Em determinada sequência, Maria corta as
partes de seus corpos junto com a tela – do nada um braço some, seguido de
uma cabeça; finalmente a imagem é picotada, quebrando-se em pequenos
quadrados embaralhados por todo o quadro.
Em termos freudianos, pode-se dizer que a sexualidade foi reprimida em
favor de uma regressão ao impulso – narcisista, incorporativo e agressivo –
dos prazeres orais. Mas acredito que seria melhor entendermos o compor-
tamento das Marias de forma afirmativa, como uma construção positiva, ao
invés de uma reação ou regressão. Esse movimento que vai da sexualidade
para a comida é, mais precisamente, um detournement no sentido Situacio-
As pequenas margaridas 27
nista, e não uma “falha em se desenvolver.” É também uma “desordem siste-
mática dos sentidos”, como diz Rimbaud, ou no sentido nietzschiano de se
esforçar “para perceber dentro de si próprio a eterna alegria de se tornar
– aquela alegria que também encerra o deleite de destruir.” Embora Niet-
zsche não fosse capaz de imaginar que isso, como acontece no filme, seria
levado a cabo de forma tão encantadora por duas meninas.
O prazer das duas Marias em se encher de comidas e bebidas está intima-
mente ligado ao seu prazer de recortar. Sua brincadeira com tesouras sem
dúvida deixa a castração implícita. Além de jornais, colchas, e suas próprias
roupas, elas cortam com frequência objetos em formatos fálicos, como sal-
sichas e pepinos – e outros supostamente femininos, como, por exemplo, as
maçãs. (Castração, seja figurativa ou literal, parece ser um tema recorrente
na obra de Chytilová. Um de seus trabalhos mais recentes, Armadilhas (Pasti,
pasti, pasticky, 1998), o qual infelizmente nunca tive a oportunidade de ver,
gerou muita controvérsia com a história de uma mulher que castra os dois
homens que a estupraram).
A destruição do falo não significa apenas minar o poder masculino, mas sim
colocar em xeque toda a “Ordem Simbólica.” Dentre outras coisas, significa
destruir a oposição – ou acabar com a separação – entre as palavras e as coi-
sas, de modo geral entre as coisas e suas representações (sejam elas verbais
ou visuais). Em certo momento, uma das Marias recorta da revista uma ima-
gem de comida, ela então abre a boca e a devora com a mesma vontade que
comeria uma refeição de verdade. Isso acontece no decurso da cena em que
as duas Marias assam salsichas na fogueira feita com partes de seu aparta-
mento em chamas. Então, com um enorme espeto, elas pegam as salsichas e
as cortam ao meio com um par de tesouras igualmente grandes. Enquanto
isso, riem das queixas de um amante rejeitado, cujos patéticos apelos po-
dem ser escutados no telefone fora do gancho. Durante toda a cena, uma
espécie de canto sacramental é tocado, extradiegeticamente, ao fundo.
Tudo que as duas Marias fazem é destrutivo. Elas se divertem no completo
desperdício, na “negatividade sem emprego” e na “despesa sem retorno.”
Acima de tudo, As pequenas Margaridas expressa o desprezo absoluto por
qualquer tipo de produtividade, seja econômica, social ou semiótica. É
claro que se trata de uma bela razão para filme ser denunciado pelas au-
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28 Vera Chytilová
toridades do Partido por desperdiçar recursos do governo, e insultar “os
trabalhadores nas fábricas, nos campos e nas construções.” Já que produzir
era o valor supremo em todos os estados socialistas, a inquietante chacota
que As pequenas margaridas faz dessa concepção a torna mais ameaçadora
para a ideologia oficial do que qualquer crítica mais explícita, imediata e
específica do sistema social poderia ter sido.
Há uma sequência em As pequenas margaridas em que as duas Marias ob-
servam um camponês cuidando de sua lavoura. Ele não presta atenção
nelas, apesar das roupas chamativas. Então elas ficam paradas no meio da
praça enquanto uma turma de homens passa em cima de bicicletas. Prova-
velmente, são trabalhadores a caminho do emprego na fábrica. Mais uma
vez, ninguém repara nelas. Elas começam a se questionar se existem de
verdade: obviamente, não há lugar pras Marias no mundo do “socialismo
real.” (É também duvidoso se no “capitalismo real” elas conseguiriam exis-
tir. Suas orgias de ostentação poderiam ser entendidas como um exagero
consumista, só que elas jamais pagam por nada. Elas roubam dinheiro, mas
não chegam a gastá-lo. Elas não têm nenhuma estima, sequer respeito, à
noção de propriedade; nenhuma ideia de que bens materiais são fonte de
status, poder e prestígio. Sua infantilidade, diferente do consumidor no ca-
pitalismo, não é egoísta. Seu interesse não é o de possuir e acumular).
Depois que as duas Marias destroem o banquete governamental, o filme
termina por mostrar o remorso e o castigo que sofrem por seu mau com-
portamento. Esse clichê da retratação é conduzido de forma tão sarcásti-
ca que só aumenta o caráter infantil do deleite em destruir presente em
todo o filme. (Será que é preciso lembrar de que, após a invasão soviética
em 1968, Chytilová e outros diretores da Nouvelle Vague Tcheca foram
forçados, de maneira parecida, a se retratar e fazer uma auto-análise de
seus filmes?) As Marias murmuram o seu pesar, e se dizem agora felizes por
serem socialmente úteis, enquanto segundo todas as aparências elas colo-
cam as coisas de volta em ordem: o que envolve juntar pedaços de pratos
estraçalhados, e jogar os restos de comida em largas travessas. Por fim, elas
se deitam sobre a mesa de banquete, vestidas com um macacão de jornal e
papel-machê, sussurrando que finalmente estão em paz… até que um enor-
me candelabro cai do teto e as esmaga numa profusão colorida de pixels.
Apesar de Chytilová dizer, sob pressão política, de que seria esta a punição
As pequenas margaridas 29
moral para o comportamento transgressor das personagens, ao invés disso
nos parece que o rastro de destruição termina consumindo não apenas as
duas, mas o próprio filme.
O extraordinário em As pequenas margaridas é que mesmo com o festival
de negatividade e destruição, e mesmo que as protagonistas sejam motiva-
das (até onde se pode afirmar) por um tipo de mal-estar, não há nenhuma
sensação de falta ou incompletude, nenhuma subjetividade alienada, ne-
nhum não-todo lacaniano, não existe a dialética proposta por Mulvey de
distanciamento, ou qualquer revelação adorniana da insuficiência da obra
– mas só uma alegre plenitude, uma superabundância afetiva e material
que ganha forma na exuberante inventividade do filme.
O esforço dos primeiros modernistas em alinhar uma estética radical com
uma política radical sofreu um baque com os horrores do stalinismo, sem
mencionar a estética ultra-conservadora do “realismo social” imposta por
Stalin. Depois da guerra, no Leste Europeu comunista pós-Stalin, Dusan
Makavej foi um dos únicos a se aventurar no restabelecimento dessa liga-
ção entre estética e política radical. O tardio modernismo esteticamente
radicalizado por Chytilová de maneira nenhuma segue esse projeto. Cla-
ramente não é só apolítico, mas violentamente anti-político. Em vez de
apenas afirmar os direitos do indivíduo sobre a sociedade – algo que ain-
da assim seria “político” no sentido convencional da palavra – As pequenas
Margaridas arrasa tanto o indivíduo quanto a coletividade com seu fervo-
roso gozo antisocial. (As duas Marias não podem viver uma sem a outra;
sua duplicidade é tão irredutível à solidão ou individualidade, quanto aos
laços sociais do coletivo). E essa virulência antipolitica é justamente sua
(crucial) relevância política: algo que talvez precisamos hoje em dia, no
nosso mundo “conectado” de redes inescapáveis e mercantilizações oni-
presentes, tanto quanto era necessário 40 e poucos anos atrás no mundo
do “socialismo real.”
O que seria uma história do cinema, ou do modernismo, ou da vanguarda,
ou um relato das estratégias de resistência, evasão e recusa, que realmente
levasse em conta o filme As pequenas margaridas?
 O campo livre 31

O campo
Jacques Rivette: Infelizmente, nós só conhecemos um dos seus cur-
tas-metragens: o sketch Pequenas pérolas, mas nem Teto (Strop, 1961) nem
Saco de pulgas (Pytel blech, 1962) nem A rua Verde.

livre

›
Vera Chytilová: Eu realmente não sei por que querem exibir
A rua Verde aqui, pois fiz esse filme ainda na época da Escola de Cinema,
antes mesmo de Teto.

Entrevista com Věra Chytilová1 Rivette: Quer dizer então que Teto não é o seu primeiro filme?

por Michel Chytilová: Ele é, no sentido de que foi o meu filme de graduação. Mas
antes, eu já tinha feito, como todo mundo na Escola, uns dez filmes de exer-

Delahaye e cício. A rua Verde é um desses filmes. Mas não é bom.

Jacques Rivette
Michel Delahaye: Esses filmes são exibidos para o público na Tche-
coslováquia?

Chytilová: Não, nunca. E os únicos curtas-metragens que eu gostaria

que fossem vistos são Teto, Saco de pulgas e Pequenas pérolas.

Delahaye: As pequenas margaridas (Sedmikrásky, 1966) estreou na

Tchecoslováquia?

Chytilová: Sim, há pouco tempo. Parece que está indo bem. Mas ainda
não sei se ele vai fazer sucesso ou não. Só sei que as pessoas que o viram
até agora estão muito intrigadas e muito divididas. Elas ficam, ao mesmo
tempo, muito atraídas pelo filme e meio embaraçadas.
1 Publicado originalmente em Cahiers du Cinéma 198, fevereiro de 1968. Tradução de
Pedro Henrique Andrade.
 ›
32 Vera Chytilová
Rivette: Isso pode criar um clima muito animado em torno do filme...
Chytilová: Sim, mas é preciso levar em conta o fato de que o filme ainda
não foi visto pelo grande público, somente por um público limitado de apai-
xonados interessados. É um pouco o equivalente dos seus cineclubes e que
nós chamamos em nossa terra de “Cinemas para espectadores exigentes”.
Delahaye: Desde então, você chegou a trabalhar em outro projeto?
Chytilová: Sim, e com a mesma colaboradora, Marta Krumbachova.
Mas o filme permaneceu um projeto. Era uma coprodução canadense. Mas
como o produtor queria intervir no roteiro, eu rompi o contrato. Eu tinha
pedido no início que preservassem toda a minha liberdade. Aceitaram me
dar isso, mas, pouco a pouco, quiseram me impor certas coisas. Quais coisas
exatamente? Olha, eu dificilmente conseguiria dizer, pois o próprio produ-
tor não sabia exatamente o que ele queria me impor, mas sempre acontecia
de ele não querer que as coisas fossem como eu tinha planejado. Em poucas
palavras, não me impunham nada, mas me diziam: não quero isso ou não
quero aquilo, o que, a rigor, dava na mesma.
Acredito, pura e simplesmente, que o produtor não tinha entendido nada.
Tudo o que se queria era obter um “filme de arte”, mas também, é claro, um
“filme comercial”. Tudo isso é muito bonito, só que acontece que ninguém
sabia o que era um “filme de arte” e muito menos um “filme comercial”. Em
todo o caso, eu não conheço ninguém que possa me dar uma definição des-
sas coisas, estabelecer as suas regras e ter, de antemão, a certeza de que
o filme que ele faz será isso ou aquilo. Mas muitas pessoas agem como se
soubessem disso.
Quanto a mim, eu sempre penso nisso aqui: que o roteiro em si não é de
utilidade alguma se não soubermos lê-lo, isto é, se não soubermos que ele
representa nada mais que ele mesmo. Pois ele não representa o filme e não
se pode ver um filme só pelo roteiro. Um filme é sempre algo diferente.
Rivette: Parece que, na esteira do grande sucesso do cinema tcheco no
estrangeiro, houve muitas tentativas de coprodução. Mas tenho a impres-
O campo livre 33
são de que, no caso do cinema tcheco, essas coproduções se mostram par-
ticularmente difíceis.
Chytilová: Se não houver um acordo total sobre todos os pontos, a ten-
tativa de coprodução será uma ilusão. É claro que eu acredito ser possível,
se quisermos, chegar a um acordo. Primeiro, entre dois sistemas econômi-
cos. Depois, sobre os outros problemas que aparecem. Mas aí é preciso re-
almente querer esse acordo e a primeira consequência dessa postura tem
que ser o respeito absoluto pelas pessoas, o respeito absoluto pelo que elas
querem fazer e dizer. Na falta disso, e se exigimos ou consentimos o menor
compromisso, nada pode funcionar. Mas os coprodutores são, em sua maio-
ria, pessoas que não estão nada dispostas a dar toda a liberdade a ninguém.
De todo modo, com ou sem coprodução, eu nunca consegui entender como
se pode querer mudar um filme. Por que mudar as coisas assim? Não se
pode deixá-las se tornarem o que elas devem se tornar? E se alguém pode
julgar que elas devem seguir um caminho diferente do previsto, não seria
esse alguém o autor e apenas ele? Nunca vou admitir que alguém decida
no meu lugar.
Delahaye: Ao ver As pequenas margaridas, muitas pessoas ficaram im-
pressionadas com o modo como você parece romper com Algo diferente (O
něčem jiném, 1963). Como você vê esse filme hoje?
Chytilová: Não gosto de rever esse filme. Pois agora fico pensando que
tudo que se encontra dito nele, e que eu realmente queria dizer, poderia
ter sido dito de maneira mais viva, mais sucinta e mais estrita. Acho que
fui pesada demais. Mas sempre tenho a sensação, quando revejo meus fil-
mes, de ter me expressado de um modo demasiadamente pesado. É por isso
que tenho horror em revê-los. Ainda que eu seja, às vezes, obrigada a fazer
isso... E para mim, isso é uma experiência ainda mais penosa por causa da
impressão que eu já tenho, por conta própria, quando falo, de estar atolada
em dificuldades.
O que eu quero dizer, pura e simplesmente, é que sempre me sinto presa a cer-
tos hábitos e convenções, com os quais eu gostaria de romper, mas me parece
 ›
34 Vera Chytilová
que eu continuo demasiadamente prisioneira deles. Sempre acreditamos que
vamos conseguir escapar deles, mas não conseguimos totalmente, não é?
Parece que eu sempre tenho que recomeçar tudo, pois nunca chego a me
desfazer daquilo que me puxa para trás ou para baixo: o passado, suas mar-
cas... tudo que ficou, tudo que eu arrasto comigo. É disso que a gente de-
veria poder se livrar. Deveríamos poder sair dessa terra onde afundamos.
Deveríamos poder recomeçar de uma terra mais pura.
Eu sei, é claro, que todas as coisas estão ligadas, que não se pode se cindir
delas, que não se pode se abstrair dos seus vínculos. E sei disso como nunca,
agora que essa viagem à França me cindiu do meu meio de origem. E é exa-
tamente aí que está o meu drama: eu descobri que aguento muito mal ser
cindida disso e que sinto falta disso – da minha cidade, meus amigos, minha
família... todos os vínculos que pude criar. Mas apesar disso e até mesmo por
causa disso, o meu maior desejo, a coisa com a qual eu sonho, é poder real-
mente me expressar a partir de algo totalmente novo... É por isso que o que eu
menos consigo entender é como podem existir pessoas que tenham vontade
de manter, no seu próximo filme, a forma ou o espírito do seu filme anterior. É
uma coisa que me deixa besta. A gente deveria sempre tentar se contradizer.
O que eu sei é que sempre tentarei, de todas as maneiras, me afastar do
que veio antes, invertê-lo, contradizê-lo, e usarei tudo o que sou e tudo
o que eu puder para alcançar isso, tanto abordando assuntos diferentes,
como empregando meios tão diferentes quanto possível. É isso que tentei
fazer em As pequenas margaridas, mas, mesmo nesse caso, apesar de ter
achado que encontrei um novo tema, que eu tentei abordar com meios no-
vos, parece que não saio do lugar, da mesma terra que eu já trilhei.
Rivette: É um caso muito comum. Quase todos os diretores tentam fa-
zer cada um dos seus filmes como se fosse o primeiro. Logo depois, perce-
bem que, sem dúvida, não fizeram exatamente a mesma coisa de antes, pois
realmente tentaram fazer o contrário. Mas acabaram fazendo a sequência...
Chytilová: É por essa razão que não suporto rever Algo diferente, pois
eu me revejo nele, pessoalmente. E quando digo “pessoalmente”, eu não que-
ro dizer nada no sentido “autobiográfico” da coisa, como sugerem os que sus-
O campo livre 35
peitam de mim, os que suspeitam que eu tenha me “colocado dentro do meu
filme”, como se diz por aí. É simples, eu encontro nesse filme o meu percurso,
a minha linha, exatamente aquilo contra o que eu quero lutar. É por isso que
tenho medo de reencontrar esse filme.
Delahaye: Mas Jean Renoir, por exemplo, diz que, no fundo, só temos
em nossa vida uma única ideia e que passamos o tempo encontrando for-
mas mais ou menos diferentes dessa mesma ideia.
Chytilová: Mas a minha ideia principal é justamente a de que o ho-
mem pode superar a si mesmo. É a ideia que eu acho que está nos meus dois
filmes, mas quero que essa ideia seja válida também para o próprio cinema.
Rivette: Você gostaria, em resumo, que a ideia da transformação, da
metamorfose, que é a ideia central do filme, também fosse verdadeira para
a realidade do filme.
Chytilová: Eu quero, ao mesmo tempo, reivindicar essa possibilidade
e dar às pessoas a prova dessa possibilidade, convencê-las disso. É por isso
que não posso concordar com a síntese de Renoir, ainda que ela correspon-
da a algo que encontramos na natureza, pois podemos ver isso como uma
enganação, uma falcatrua da natureza...
Rivette: Nós estamos diante de uma contradição, mas é sempre pela
contradição que se faz alguma coisa. Se não houvesse contradição, não se
faria nada.
Chytilová: Em resumo, você quer dizer que estou fadada a perder, que
nunca conseguirei atingir o meu objetivo...
Rivette: Não, pelo contrário! É a contradição que te leva a agir, a ir, por-
tanto, numa certa direção... que talvez seja exatamente a direção do objetivo.
Chytilová: Eu sei que o que você diz é verdade, mais isso não pode
nem me consolar nem me tranquilizar.
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36 Vera Chytilová
Rivette: Mas no dia em que se estiver de acordo consigo mesmo, no dia
em que o problema tiver sido resolvido, a gente para e não faz mais nada.
Você não acha que é isso que é inquietante?
Chytilová: Se eu não quero morrer, preciso continuar. Preciso ir até
o objetivo. Bem, você me disse que, se eu resolver os problemas e atingir
o objetivo, vou morrer. É um paradoxo, isso introduz um nonsense na vida.
Estamos num círculo fechado.
Rivette: Eu não acredito que seja um nonsense nem um círculo fechado.
É, ao contrário, uma espiral e ela se desdobra subindo... é isso que permite
subir nela... como numa escada.
Chytilová: E o que tem no alto – ou embaixo – da escada? É a morte.
Delahaye: Voltemos a falar de Algo diferente, onde vemos a contradi-
ção de que estamos falando em funcionamento. Afinal, o filme é exatamen-
te uma organização abstrata de coisas muito concretas e remete a uma
ideia da vida, da sua evolução e, precisamente, das suas contradições. Bem,
esse filme, feito de equilíbrios contrários (entre as duas vidas que ele mos-
tra e dentro de cada uma delas), faz a gente ver em ação essa contradição
que você sente, mas ela aparece formatada e resolvida (provisoriamente)
pelo próprio filme, que é produto dela.
Chytilová: Mas acho que eu poderia e deveria ter falado de uma for-
ma mais pura e mais direta. Porque o cinema é isso que diz para gente algu-
ma coisa e é também, em si mesmo, a própria coisa que é preciso dizer. Eu
realmente não acredito que superei essa contradição.
Se o homem é um homem, então ele só pode trabalhar fundando-se sobre
uma realidade humana. Isso quer dizer que, no final, a abstração tem que
ter, como base, meios concretos. Precisamos sempre partir das coisas que
estão aí. A abstração não é nada mais do que a generalização, por assim
dizer, dos meios da realidade concreta. Logo, a abstração vem da organi-
zação da realidade concreta. Toda questão torna-se, então, “como organi-
zar?”. Isso aí é outro problema, pois organizar essa realidade no cinema exi-
O campo livre 37
ge tempo. E raramente dispomos de todo o tempo que seria necessário. Eu,
em todo caso, sinto que não tenho tempo e acho que é uma pena. Mas logo,
logo, eu acabo indo fazer outra coisa. Por isso, é preciso se expressar de
forma muito lenta e pesada. Mas aí, ao mesmo tempo, eu percebo que isso
é impossível, afinal eu não tenho esse direito. Eu não me vejo no direito de
consumir assim o tempo do espectador para lhe dizer tão poucas coisas. Se
eu exijo que ele me dê duas horas do seu tempo, então é preciso que esse
tempo seja preenchido até o limite com o que eu tenho para lhe dar. Desse
ponto de vista, acho que, em Algo diferente (em que eu não recuso, por prin-
cípio, os meios e o material que usei), eu utilizei esses materiais de maneira
desajeitada, sem imaginação e de forma estúpida.
Eu sempre defendo essa concepção, mas, a partir da mesma concepção, e
tendo por objetivo criar o mesmo sentido, eu acho que poderia ter feito
muito mais, dado muito mais e muito melhor para o espectador. A questão,
portanto, é: com um meio muito concreto, dizer coisas muito gerais, muito
abstratas, e dizê-las com os procedimentos adequados, isto é, puramente ci-
nematográficos. Que fique claro que eu chamo puramente cinematográfi-
co o que pode ser eventualmente uma mistura de procedimentos variados,
literários, teatrais, picturais, etc. O essencial, para mim, é que o que é dito
por meio desse procedimento não possa, em hipótese alguma, ser dito por
nenhum dos diferentes meios (literários, etc.) que o constituem.
Mas esse modo de proceder te leva a outro perigo. Quando se quer falar
demais em pouco tempo, quando se quer juntar entre si os procedimentos,
os meios e os sentidos, você se condena a sofrer. Pois será necessário se
empenhar, sempre mais cedo, na busca por uma fala cada vez mais estrita
e rigorosa, e você vai se torturar ao mesmo tempo em que vai torturar o fil-
me, para reduzi-lo à sua expressão mais simples e mais justa. O resultado é
que, ainda que as coisas continuem claras para você (porque você conhece
muito bem o roteiro), você corre o risco de desembocar em alguma coisa
que, para o espectador, será, pura e simplesmente, invisível... Vai ser outra
maneira de fazer o espectador perder esse tempo que você pede.
Não estou dizendo aqui que esse é o caso de Algo diferente, mas tenho a im-
pressão de que foi um pouco o que aconteceu em algumas cenas de As pe-
quenas margaridas. Porque aí, como a questão era repetir variações sobre
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38 Vera Chytilová
um único e mesmo tema, que tinha um sentido facilmente compreensível,
eu me julguei autorizada a ir bem longe na condensação. Longe demais tal-
vez, porque, a julgar por certas discussões que ocorreram após o filme, pa-
rece mesmo que algumas coisas estão invisíveis ou são incompreensíveis e
que isso se volta contra o filme. Já outras cenas, pelo contrário, parecem se
explicar para o espectador.
Mas de todo modo, acho que é um direito do espectador agir como manda o
seu julgamento. E se alguma coisa não dá certo, a culpa é minha. Estou con-
vencida de que, mesmo que me deixem livre para fazer o meu filme como
quero, eu tenho, da minha parte, que deixar o espectador completamente
livre. Fico entusiasmada quando percebo que o espectador se sente livre
diante do meu filme. Isso vai ao encontro da ideia que eu faço do espectador
ideal: eu posso trabalhar a partir dele e em função dele, ele é um colabora-
dor do filme, pois o filme termina com ele e nele. Mesmo que eu tenha feito o
filme para mim e também porque fiz o filme para mim. Pois eu também sou a
primeira espectadora dos meus filmes. Uma espectadora excepcional, é cla-
ro, porque nunca sei de antemão o que o filme vai se tornar e sou sempre a
primeira a ser surpreendida.
Rivette: Acho que as As pequenas margaridas é um filme muito esti-
mulante para o espírito do espectador. Primeiro, por causa dessa rapidez
e dessa concentração que você mencionava. Pois o filme exige do especta-
dor uma atenção constante, ele tem que estar constantemente alerta a tudo
que acontece. O que acontece a cada segundo pode dar um sentido com-
pletamente diferente a tudo que aconteceu até então. E é assim até o final.
A gente sai do filme e continua a refletir sobre ele e fica esperando revê-lo
porque, mesmo após ter visto tudo, não podemos dizer com certeza: o filme
quer dizer isso ou quer dizer aquilo. Até o final do filme e depois, tudo é uma
questão perpétua para o espectador.
Chytilová: Eu fiz o filme também por essa aventura que você está co-
mentando e achei que o espectador gostaria de viver essa aventura – esse
espectador livre e ideal de quem eu falava. É que, para mim, um filme é uma
experiência, mas preciso da satisfação de saber que vou partilhar essa ex-
periência com o espectador.
O campo livre 39
Ao mesmo tempo, quero detalhar que esse filme é a prova, por um lado, de que
eu tinha a sensação de dizer poucas coisas, mas sob uma forma condensada, e
por outro, de que eu sempre tive a sensação de não influenciar o espectador.
Isso porque eu penso que não tenho o direito de influenciá-lo. E o simples
fato de que eu me faça essa pergunta já prova que eu corro o risco de fazer
isso. Ou de forçar ou violar a consciência de alguém. Isso é uma coisa que
eu me proíbo de fazer. Tenho muito medo. Mas será que eu posso mesmo
evitar isso? Pois, ao fazer um filme, mesmo que a minha convicção funda-
mental seja a liberdade, eu sinto que violo a mim mesma e que violo, dessa
forma, tudo que está à minha volta.
Rivette: Talvez seja porque você tem a sensação de imobilizar alguma
coisa que deveria permanecer em movimento, de imobilizar alguma coisa
que nunca deveria ser fixa. Mas o que há de apaixonante, de fato, nos seus
dois filmes é que não podemos nunca ceder ao que é a grande tentação de
todo espectador: a vontade que ele tem sempre de dizer “Aí está, eu enten-
di! O filme quer dizer isso e aquilo”. Porque nos seus filmes, vemos constan-
temente acontecer alguma coisa que lhe obriga a dizer não que o que você
viu logo antes é falso, mas que isso era apenas uma parte da verdade, que
deve ser retificada ou contradita, em todo caso, completada.
Chytilová: Eu sempre dou prioridade para o pensamento do espec-
tador, para que ele tenha a possibilidade de escolher. O essencial é que se
descubra, a cada vez, que o que acabou de ser dito ou visto é somente uma
parte da verdade.
Rivette: Em suma, o espectador aprende que a verdade que lhe foi mos-
trada não é verdadeira.
Chytilová: Sim, mas o essencial é que o espectador não aprenda isso
de mim porque eu não tenho essa outra verdade para lhe dar de bandeja.
Ele tem que chegar lá da maneira que eu mesma cheguei.
Rivette: Exatamente. Nem o espectador nem o diretor nem ninguém
pode afirmar: aqui está o sentido definitivo das coisas. O que torna os seus
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40 Vera Chytilová
filmes tão apaixonantes é que eles são feitos dessa forma. Quando vi pela
primeira vez Algo diferente, tive muito medo durante todo o filme, pois eu
não podia deixar de dizer a mim mesmo: o princípio do filme é tão matemá-
tico, tão rigoroso que, depois de um tempo, vai dar um certo cansaço e tudo
vai cair numa coisa mecânica. Eu então fiquei com muito medo de ver esse
momento chegar, quando o filme se tornaria mecânico. O que me surpreen-
deu e maravilhou mais foi constatar que não apenas o filme não se tornava
mecânico, mas, pelo contrário, quanto mais ele avançava, mais vivo ele se
tornava, não mais tão explicativo, mas sim, mais misterioso e interrogativo.
Chytilová: Na verdade, para mim, o filme se tornava, dia após dia, cada
vez menos claro e, portanto, cada vez mais inquietante e apavorante. E o que
me apavora hoje é que se pode descobrir todos os meus problemas nesse filme
e mesmo aquele que eu não pensava, no início, ser possível ver ou adivinhar.
É que o primeiro projeto do filme era muito claro para mim. Mas assim que
percebi que as coisas, na realidade, não eram tão claras assim e que, portanto,
o filme ia ser falso, eu me recusei a continuar no caminho que tinha traçado.
Rivette: É precisamente aí que está o movimento próprio do filme e
aquilo que constitui a sua beleza. Sente-se que, conforme você avança,
você recusa o lado esquemático e teórico que o filme poderia ter. Além dis-
so, tem também alguma coisa, uma espécie de lei da vida, que se impõe a
você e que lhe obriga a recusar isso.
Chytilová: Teria me irritado fazer um filme em que eu já saberia tudo
de antemão. E é justamente por isso que o filme me irrita hoje: quando eu
o vejo, tenho a impressão de que já se sabe tudo do filme antecipadamente.
E me pergunto se o espectador também não tem essa mesma impressão.
Rivette: De jeito nenhum, pois esse filme é uma interrogação. Uma in-
terrogação sobre o que é mostrado (as duas mulheres) e uma interrogação
também sobre o próprio filme e sobre você mesma no ato de fazer o filme.
E é aí que o espectador participa realmente do filme, pois, quando o vemos,
nós meio que estamos na situação em que você estava ao fazer o filme.
O campo livre 41
No cinema, vemos com demasiada frequência, infelizmente, o movimento in-
verso. Parte-se de alguma coisa viva, natural, espontânea, mas mesmo quan-
do isso permanece vivo durante a filmagem (no próprio trabalho de roteiro,
direção e montagem), chega-se no final a alguma coisa totalmente mecânica.
Em Algo diferente e As pequenas margaridas, pelo contrário, temos no começo
um princípio que poderia se tornar uma pura engrenagem de relojoaria, mas
que, no final, encarnou-se literalmente, tornou-se algo orgânico, vivo, com
esse lado espontâneo e misterioso, que tudo aquilo que é vivo possui. E o sur-
preendente é que encontramos esse mesmo movimento nos seus dois filmes.
Chytilová: Posso dizer que eu efetivamente percebo, no momento em
que dirijo o filme, que as coisas são aleatórias. E que me empenho em nun-
ca evitar a forma que elas vão tomar. Quando eu tomo consciência de que
tem alguma coisa arriscada ou perigosa aí (ou quando alguém me faz tomar
consciência disso me dizendo “não, você não deveria fazer isso, há riscos
demais, danou-se”), essa coisa passa a me interessar ainda mais, pois eu pen-
so que a verdade não pode estar nesse tipo de prudência. Acredito que não
devemos evitar os riscos. Acredito que podemos tentar de tudo e usar de
tudo. Acredito que não há nada, em hipótese alguma, que seja proibido ao
homem. Podemos fazer de tudo.
Rivette: Revendo outra noite As pequenas margaridas, eu realmente tive
a sensação, durante todo o filme, de ver alguém que caminha num fio estica-
do sobre as cataratas do Niágara e eu tive aquele tipo de medo que se pode
ter diante de um espetáculo como esse. É porque, a cada passo, a cada plano,
você corre o risco de cair. Eu diria que é um milagre você conseguir sair daí.
Chytilová: Olha, teve uma pessoa que, durante toda a filmagem, me
submeteu a um verdadeiro martírio. Foi o meu marido, que não parava de
dizer: “Atenção! Você vai cair!”. Mas por outro lado, isso me encorajou a per-
severar. Porque, ainda que eu não conheça as coisas e não saiba dizê-las, eu
acredito no esforço interior do homem que vai ao encontro delas. Acredito
que alguma coisa já se expressa nesse filme a partir da minha atividade, a
partir do meu esforço para aproximar as coisas. É assim que consigo dizê-
-las, mesmo sem saber fazer isso.
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42 Vera Chytilová
Porque eu acredito também em outra coisa: nós não somos feitos unica-
mente de coisas racionais, que podem ser enumeradas e medidas. Para usar
um exemplo um pouco superficial, mas revelador: se privamos um homem
da sua voz, dublando-o por outro num filme, destruímos esse homem, pois
tiramos dele algo que lhe é próprio, não apenas algo exterior, mas alguma
coisa profunda, insubstituível, única, a sua alma, de certa forma.
Delahaye: Tudo se passa como se você trabalhasse com muita certeza
e, ao mesmo tempo, na mais completa dúvida.
Chytilová: Tudo é uma questão de confiança. Desse ponto de vista, eu
não duvido, pois tenho uma certa crença em mim mesma. Eu vou até os li-
mites de quem sou e do que posso fazer. Se eu duvidasse, não poderia fazer
nada. De todo modo, quer duvidemos ou não, nós sofremos nos dois casos.
Mas, no final das contas, a gente aguenta o tranco.
Ao mesmo tempo, e precisamente porque eu vou sem duvidar até os limites
de mim mesma, eu cheguei à conclusão de que não posso mais continuar,
de que não aguentarei fazer cinema por muito mais tempo, de que acabarei
não fazendo mais nada a não ser chorar. A minha atual estada na França
é, desse ponto de vista, um momento crítico. Eu preciso decidir nesse mo-
mento se faço ou não alguma coisa. E é um período ainda mais doloroso
para mim porque, atualmente, estou sempre indo de um lado para o outro
apresentando o meu filme e tenho horror em rever meus filmes, a tal ponto
que acabo odiando os meus filmes e odiando a mim mesma.
Se eu tenho algo a dizer para o público, só pode ser através dos meus filmes,
não falando com o público – até porque eu não falo francês muito bem.
Delahaye: As pequenas margaridas faz uma pergunta. Mas, ao mesmo
tempo, tem uma frase no final do filme que parece trazer uma resposta. A
questão, portanto, é: ela é uma resposta? Ou uma falsa resposta? Ou uma
outra forma de pergunta?
Chytilová: Poderíamos quase dizer que é os três ao mesmo tempo. Mas
vou tentar lhe responder de duas maneiras. Primeiro, eu certamente quis
O campo livre 43
falar, de uma maneira muito idiota, o que todo mundo já teria encontrado
no filme. Nesse sentido, talvez eu tenha dito aí uma coisa inútil. A menos
que suponhamos que ninguém pudesse encontrar isso por conta própria.
Nesse caso, eu teria dito alguma coisa muito inteligente e útil. Segundo, eu
cheguei de fato a um paradoxo com essa frase. Pois criei uma confusão so-
bre o sentido do filme e, conscientemente, levei o espectador rumo a essa
confusão. Sem dúvida, o espectador sabe ou deveria saber já há algum tem-
po que o filme não fala de saladas pisoteadas, mas de outra coisa. É que, a
partir do momento em que fica claro que o filme fala de outra coisa, aí a
gente pode se perguntar se, no fundo, ele não fala pura e simplesmente de
uma história envolvendo saladas.
Então, é sim ou não?... Essa dúvida que eu levanto significa questionar o filme.
Rivette: Em suma, está claro que o seu filme não é muito claro.
Chytilová: Sim, ele não pode ser claro. Ao mesmo tempo, é claro que ele
é mais complexo do que a pergunta: saladas ou não. Ele vai para outro lugar.
Delahaye: Em que momento você pensou em colocar a frase final? An-
tes da filmagem ou depois?
Chytilová: No final de tudo, na época em que eu resolvia a questão
da montagem e da música. Eu pensei, após algumas entrevistas com insti-
tuições que trabalham com cinema, que era necessário colocar essa frase.
Mas aí eles não ficaram muito contentes e me disseram que essa frase era
completamente supérflua, o que terminou me convencendo de que eu de-
veria mantê-la.
Delahaye: Você tinha um roteiro preciso para As pequenas margaridas
ou você partiu de linhas gerais que você foi modificando?
Chytilová: No começo, escrevi com Pavel Juracek um primeiro roteiro
que era muito realista. Depois, encontrei Krumbachova e vi que era possível
fazer alguma coisa um pouco diferente. Quando ela leu o primeiro roteiro,
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44 Vera Chytilová
achou que ele parecia um romance de Bromfield. Eu aí retrabalhei tudo com
ela. Em seguida, com o meu marido, nós decidimos não nos deixar limitar por
nada. Nadinha. Nós íamos nos livrar de todas as implicações da história para
manter somente os diálogos, muito precisos e muito fortes, que não seriam
mexidos em nada. Esses diálogos nos asseguravam, assim, uma base, eles ga-
rantiam que nós não abandonaríamos o sentido do filme, eles eram de alguma
forma os guardiões desse sentido.
A partir daí, nós nos sentimos livres para fazer de tudo com as imagens,
incluindo nos afastar meio que completamente do tema. Mas a construção
permanecia fixa. Por exemplo, nós sabíamos que íamos filmar a cena em
que as garotas começam a comer de um jeito louco na casa delas. Mas de
que jeito exatamente? Isso, nós não sabíamos. Só sabíamos que elas diriam
um diálogo. O sentido do diálogo era que elas duvidavam delas mesmas.
Mas eu ainda não tinha nenhuma ideia de como as coisas iam acontecer en-
tre elas e a comida. Eu e Krumbachova tínhamos escrito que elas ficariam
de costas uma para outra. Mas eu achei que não era uma ideia muito forte
e aí decidi que a discussão delas seria acompanhada de uma ação que iria
contradizer a própria discussão. Depois decidi que essa ação seria baseada
na destruição.
Na verdade, originalmente, nem era para ser um filme que falava sobre a
destruição ou sobre a vontade de destruir. O filme falava sobre como o
homem finge viver a partir de falsos valores e certos pretextos, que po-
dem macaquear os valores verdadeiros, tanto positivos quanto negativos.
A partir daí, o assunto do filme virou como nós perdemos o nosso próprio
interior, a nossa personalidade, a nossa alma, mas eu não tinha que descre-
ver o processo da perda porque eu partia de personagens que, na verdade,
não tinham existência. Foi assim que o filme se tornou um filme não tanto
sobre a perda, mas sobre a ausência dos valores, logo, sobre a inexistência
da interioridade e, portanto, sobre a superficialidade.
Mas na medida em que fui buscando essa reflexão por meio das ações des-
truidoras que eu ia imaginando, ele se tornou, pouco a pouco, um filme so-
bre a destruição ou contra a destruição – mas, de todo modo, um filme em
que a destruição dava unidade ao conjunto.
O campo livre 45
Delahaye: Talvez também seja um filme em que a destruição é o meio
de existir. Mas qualquer que seja o ângulo sob o qual se vê o filme, consta-
tamos que, se partirmos de fato da inexistência das duas garotas, elas, no
final das contas, existem muito bem, obrigado. Elas realmente têm um jeito
extraordinário de existir.
Chytilová: No final, constatamos que esse problema era um dos pro-
blemas fundamentais que se colocavam para os outros e para nós mesmos.
Um problema muito concreto, e eu fiquei muito surpresa em descobrir que
ele podia ser visto em muitos filmes: como viver através da recusa ou da
impossibilidade de existir, da vontade de rejeitar ou destruir tudo.
Eu vi em Bergamo um filme inglês1 em que um cara tinha vontade de se sui-
cidar, mas ele começava a negociar com antecedência o seu suicídio, ele o
vendia para fazer dinheiro. Antes, um conjunto de cenas mostrava a sua
posição de recusa – nada mais existia para ele – e muitas dessas cenas eram
sobre a destruição. Existe um vínculo entre as diferentes formas de repro-
vação ou de resistência, de recusa e de destruição das coisas. E como acon-
tece muitas vezes de as coisas em questão serem falsas, isso pode induzir
ao erro, pois a destruição pode, dessa forma, ter a aparência de uma ação
puramente positiva. Na verdade, talvez sempre haja um aspecto positivo
porque a destruição pode ser compreendida às vezes como uma determi-
nada expressão da liberdade.
Mas o que é importante é o ponto de vista do espectador. É em relação ao
espectador que se situa tudo que eu acabo de dizer. Por exemplo, eu digo
que acho que nada é proibido para mim. Mas ao mesmo tempo, sei bem que
tenho os meus limites interiores – ainda que eu não saiba exatamente quais
são eles, do mesmo modo que não posso saber sempre, exatamente, qual
o alcance dessa ou daquela coisa que faço. Mas o espectador pode muito
bem ter a explicação que me falta, com a condição de que ele saiba sair do
que eu faço e saiba também sair dele mesmo. Do mesmo modo, uma frase
como a que eu disse poderia se prestar a interpretações abusivas, pois, con-
siderada nela mesma, não se pode saber se ela vem de alguém tolerante ou
intolerante. Também aí, cabe ao espectador saber o que ele tem diante dele.
1 Herostratus (Don Levy, 1967).
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46 Vera Chytilová
Delahaye: Vendo o seu filme, a gente se pergunta qual foi a participa-
ção das suas duas atrizes, o que elas puderam contribuir com o filme, ainda
que não se saiba exatamente onde está a contribuição delas. Qual foi a im-
portância delas na realização do filme? E primeiro: elas são atrizes? Como
você as escolheu? Pelo seu aspecto físico ou, em vez disso, pela sua forma
de ver a vida?
Chytilová: Elas não são atrizes. Uma era vendedora, a outra era es-
tudante na escola de economia. Sobre a escolha, a dificuldade era que nós
não sabíamos exatamente em função do que nós íamos escolhê-las, porque
não sabíamos antes o que elas deviam ser exatamente. Sabíamos apenas
que, quando as víssemos, nós as reconheceríamos. Então, nós procuramos
e vimos, em todos os lugares, o maior número possível de garotas interes-
santes, sem saber como e por que elas nos interessavam, mas esperando
o momento em que nós poderíamos dizer, na frente de uma delas, que ela
correspondia à ideia que nós fazíamos do filme.
Depois de algum tempo, nós encontramos a loira. Parecia que já tínhamos
olhado quase todo mundo e que não havia mais a menor esperança de en-
contrar alguém. E essa garota era tão extraordinária que parecia ainda que
nunca conseguiríamos encontrar alguém que pudesse fazer par com ela.
Aí eu me resignei a procurar entre as atrizes. Não deu resultado. Por sor-
te, nós nos lembramos de algumas garotas que tínhamos encontrado numa
manifestação esportiva, a Spartakia, e que vinham mais ou menos de todas
as regiões do país. Nós as recusamos justamente porque não eram de Praga.
Como nós tínhamos guardado os seus endereços, demos uma andada por
aquelas bandas e foi assim que encontramos a morena: ela era uma das três
últimas que examinamos.
Mas nem tudo estava resolvido, pois ela tinha muito medo de fazer cinema.
Todo mundo tinha precavido contra os cineastas. Disseram que se ela an-
dasse com pessoas desse tipo, iam estuprá-la. Então, eu tive uma ideia. Disse
que o melhor jeito de se safar disso era sacaneando o assistente-cameraman.
Aí ela o chamou e, em seguida, enfiou o dedo no nariz. O rapaz, que, apesar
de tudo, sabia como se dar bem com as meninas, ficou completamente des-
concertado, começou a ficar vermelho de vergonha e foi embora. A garota,
depois disso, ficou bastante à vontade.
O campo livre 47
Rivette: No filme, há planos bem longos em que as duas garotas têm que
fazer muitas coisas. Elas, sem dúvida, tinham que inventar. Em que medida
elas contribuíram com alguma coisa?
Chytilová: Eu tenho que dizer, de cara, que acho que nenhuma atriz
já teve que viver algo tão penoso e fazer um trabalho tão ingrato quanto o
que elas fizeram comigo. No final do segundo dia, elas já tinham compreen-
dido que o tipo de cinema que elas iam fazer não tinha absolutamente nada
de engraçado e o seu desejo de se tornar atrizes se esvaiu na mesma hora.
Mas era apenas o começo porque, na sequência, elas tiveram não só que
cumprir as suas obrigações profissionais, como todas as trizes, mas também
aguentar condições muito penosas, que não se encontram todos os dias.
Elas tinham não só que interpretar constantemente as idiotas, o que não
era fácil, mas também fazer isso em condições físicas muito duras e, muitas
vezes, como se estivessem numa provação. Às vezes, até elas tinham medo
e foi necessária muita coragem. No final, teve a cena em que o lustre cai. Na
primeira vez, ele realmente se soltou.
Rivette: Elas se machucaram?
Chytilová: Não porque era eu que estava em cima do lustre. Eu queria
provar que elas não corriam nenhum risco. Eu tinha insistido tanto para
que o lustre fosse firmemente amarrado que, certamente, nenhum impre-
visto podia acontecer. Para defender o meu argumento, eu subi em cima do
lustre. Ele se desprendeu na hora. Felizmente, ele não se soltou completa-
mente. Ele desceu e balançou, mas eu consegui me segurar. É claro que la-
mentei imensamente que esse incidente divertido não aconteceu durante
as tomadas.
Mas o mais duro foi a sequência da grande refeição final, que levou uma
semana para filmar. A comida, que mal era aceitável desde o começo, ficou
bem pior já no final do primeiro dia. Eu deixo vocês imaginarem no que ela se
transformou depois de uma semana! E sob o calor dos refletores!... No entan-
to, era realmente necessário que elas comessem. Então, de tempos em tem-
pos, para evitar provações demais para elas, nós juntávamos algumas coisi-
nhas quase comestíveis com a porção de sobras que se acumulavam na mesa.
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48 Vera Chytilová O campo livre 49

Elas ainda precisavam ficar o dia todo na companhia dessa podridão e do
cheiro que vinha daí. Elas não eram as únicas, é claro, que aguentavam isso.
No final, a equipe dos assistentes se recusou firmemente a entrar no set.
Era horrível demais, eles não aguentavam mais. Nós continuamos mesmo
assim. Precisávamos continuar.
Logo depois, chegou o momento em que elas precisavam se bombardear
com essas coisas horríveis. Jogá-las na cara uma da outra. No começo, elas
se recusaram, depois... Felizmente, eu tinha tomado o cuidado de colocar
todas essas cenas no final da filmagem, avaliando que, depois disso, não se-
ria possível fazê-las fazer mais nada.
Delahaye: Sim, mas mesmo que se admita isso, a questão permanece: por
que partir desse motivo (aqui, o alimentar) em vez de outro (a sexualidade)?
Chytilová: Como comecei com esse elemento, a comida, quis continu-
ar com ele, para aprofundá-lo, variá-lo, de modo a tirar dele tudo que ele
podia dar. Eu sei que é realmente perigoso se ater sempre ao mesmo mo-
tivo, mas também sei que, ao fazer isso, podemos nos permitir muito mais
coisas, pois temos uma base bem determinada. Dentro dela, podemos ten-
tar de tudo. Eu também queria obrigar o espectador a passar por dentro de
um elemento para chegar a outros elementos.

Delahaye: A questão ainda permanece: por que partir justamente des-

Rivette: Há também uma coisa que impressiona no filme, uma coisa ób-
se elemento? Mas talvez possamos responder que, se você tivesse come-
via que é a importância extrema dada, desde o começo, à comida. Tudo é
çado pela sexualidade, em vez da comida, os espectadores ficariam ainda
feito em cima disso. Bem, há uma coisa que se espera – em todo caso, que al-
mais fechados nesse motivo, na medida em que ele é mais fascinante, mais
guns, como nós, esperam – que é o aparecimento de outro elemento, que é a
invasivo – e talvez esteja aí o seu perigo. Os espectadores não teriam visto
sexualidade. Mas somos sempre levados de volta à comida, como se ela fos-
nada mais que um filme sobre a sexualidade, em vez de enxergar nele um
se a única realidade por meio da qual fosse possível mostrar a destruição.
meio para falar sobre isso e sobre outras coisas ao mesmo tempo, por exem-
plo, sobre a destruição.
Chytilová: O filme é intencionalmente feito a partir de coisas elemen-
tares. Mas esses elementos primordiais também têm por função represen-
Chytilová: Nesse sentido, é verdade que, no meu filme, a comida é uma
tar todas as outras coisas possíveis. Logicamente, se eu represento, como
intermediária e que talvez eu não tivesse conseguido acomodá-la nesse
eu fiz, dois seres idiotas, que não pensam, que não existem, eu tenho que
papel de intermediária se eu começasse pela sexualidade. Mas ao mesmo
cercá-los da realidade que lhes convém, que corresponde ao seu estado de
tempo, eu tenho que reconhecer que seria possível fazer isso sim. Só que o
espírito. A comida é a realidade mais apropriada ao que elas são e ao que eu
filme seria completamente diferente. No início, apenas intui o vínculo que
queria fazer.
existe entre uma forma de inconsciência animal e uma espécie de assom-
bração da comida. Partindo daí, e com a vontade de explorar todas as di-
Rivette: Mas a sexualidade (que, mesmo assim, está no seu filme, ainda
mensões desse motivo, as coisas se desdobraram como eu contei.
que de maneira muito subterrânea e muito alusiva) também se manifesta sig-
nificativamente no nível animal, da mesma forma que a comida.
Rivette: Logo, no filme, a comida é a comida, mas é também, ao mesmo
tempo, todo o resto. Nesse sentido, as duas ou três cenas de refeições com
Chytilová: Existe precisamente uma certa gradação que, dentro da
os homens são realmente refeições, mas também são verdadeiras surubas.
comida, nos faz passar disso para outra coisa, a sexualidade, mesmo que
ela permaneça em segundo plano. A cena da refeição, por exemplo, parece
Chytilová: Esse filme é a consumação brutal de tudo e, no final, de si
falar também de outra coisa.
mesmo. E isso se expressa com base na comida, mas vale para todas as ou-
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50 Vera Chytilová
tras consumações. Partindo daí, eu queria, primeiro, mostrar a destruição
concreta de um objeto concreto – o próprio fato de comer é também uma
destruição da comida. Segundo, queria saber se essa destruição causa um
sentimento positivo ou negativo – ela lhe faz bem ou lhe faz mal? Mas no
caso das duas garotas, acontece também que, terceiro, tudo que elas fazem,
através do tesão que elas sentem em destruir, é feito de tal modo que se volta
contra elas. Pois elas sempre acrescentam ao ato de destruição normal al-
guma coisa que, normalmente, elas nunca fariam. O desejo profundo delas
é fazer alguma coisa proibida – aquilo que não se faz, aquilo que não se deve
fazer –, o fruto proibido. E por aí, elas destroem moralmente a elas mesmas.
E mais, elas não fariam o que fazem se não estivessem conscientes do
olhar do outro. É um elemento fundamental: sem essa consciência da pre-
sença do outro, não haveria nenhum interesse em fazer o que elas fazem.
Delahaye: Em suma, se as regras do bom comportamento colocaram
limites à destruição (alimentar ou não), o jogo delas será romper os limites
impostos a essa destruição para fazer, de uma forma mais franca e peri-
gosa, o que os outros fazem dentro dos limites. O seu prazer desemboca
talvez na sua própria destruição, mas, ao mesmo tempo, elas têm a satisfa-
ção de colocar em jogo a vida em sociedade e, com isso, colocar em jogo a
própria existência delas.
Chytilová: Sim, elas criam, com todas as peças, um drama e um jogo
ao mesmo tempo. Isso corresponde a uma expressão muito corrente que
temos em tcheco e que é como um desafio sobre as relações entre as pesso-
as que sabem e não sabem viver em sociedade: “isso pode te incomodar ou
isso não te incomoda!”. Tudo se torna um jogo prestigioso, pois, se tivermos
coragem, teremos que levantar sempre antes do desafio e, em última ins-
tância, até a morte.
É um pouco nesse sentido que elas sentem a necessidade de fazer algo que
as destrua moralmente, mas que, ao mesmo tempo, faça mal ao outro. E
dentro desse princípio, as coisas se desdobram em dois momentos: primei-
ro, a sua ação comum é dirigida contra o exterior; depois e aos poucos, a sua
força de destruição vai opor uma contra a outra e elas vão se destruir entre
si – ou se autodestruir, o que, no caso delas, dá quase na mesma. Aí também
O campo livre 51
eu volto ao que disse agora há pouco: nós temos variações sempre sobre o
mesmo tema.
Rivette: As duas garotas representam realmente duas garotas ou não é
a mesma garota em duas pessoas?
Chytilová: Veja bem, cada um pode ver a coisa toda como quiser. Mas
nós falamos agora há pouco da necessidade de ter uma testemunha. É essa
a substância do tema e não se pode nunca esquecer dela quando falamos
sobre o tema.
Rivette: Eu perguntei isso porque não acho que vi uma oposição entre
elas. Na verdade, elas são exatamente iguais.
Chytilová: Sim, é possível conceber que é uma única pessoa, que sen-
te a necessidade de ter um espelho para se assegurar da própria existência,
para ter uma prova da própria existência. E a destruição, precisamente,
como tínhamos previsto na origem do filme (havia somente algumas cenas
dessas), estava lá como um dos meios que elas usavam para confirmar a si
mesmas em sua existência. Acontece que essas cenas demonstraram a ne-
cessidade profunda do princípio que, pouco a pouco, se estendeu para todo
o filme.
Tudo isso faz algum sentido porque existe a possibilidade de explicar a
destruição como uma atividade criadora. Mesmo que o processo seja pu-
ramente negativo, ele trai, de certa maneira, uma necessidade positiva, a
necessidade muito normal de marcar a sua passagem, de deixar traços da
sua existência. Mas é óbvio que é infinitamente mais fácil satisfazer essa
necessidade por meio de uma criação negativa do que por uma criação po-
sitiva. É também mais rápido e, às vezes, mais atraente.
Rivette: Mas foi propositalmente que você colocou essas duas garotas
exatamente no mesmo plano? Eu parto do fato de que muitos cineastas te-
riam, sem dúvida, pensado o seguinte: como eu tenho essas duas garotas,
vou me empenhar em diferenciá-las. Uma terá isso, a outra terá aquilo, uma
será assim e a outra será completamente o contrário, etc. Bem, me pare-
 ›
52 Vera Chytilová
ce que você ignorou totalmente isso e até recusou isso, que você quis que
nada pudesse verdadeiramente separá-las – com a exceção de aspectos ele-
mentares que fazem com que você tenha uma morena e uma loira...
Chytilová: Isso vem, pura e simplesmente, do fato de que elas não são
muito marcadas psicologicamente, elas não têm características individuais
fortes. Elas só têm diferenças secundárias, como a cor dos cabelos e coisas
do tipo. Quando elas agem, sempre tem uma, necessariamente, que faz uma
coisa que a outra não faz, mas a outra é igualmente capaz de fazer isso, e a
prova disso é que ela vai lá e faz. Assim, uma hora é uma que lidera, noutra
hora é a outra. De qualquer forma, acredito que quem se deixa levar é tão
culpado quanto quem leva a fazer.
Rivette: Em resumo, as suas duas garotas são intercambiáveis. Mas nes-
se caso, por que duas garotas?
Chytilová: Porque as coisas andam sempre de duas em duas.
Delahaye: Também seria possível dizer que elas andam de três em três.
E muitas pessoas se sentem mais tocadas pelo três do que pelo dois.
Chytilová: Pois bem, digamos que eu me sinta mais tocada pelo fato de
que as coisas andam de duas em duas: tem o preto e o branco, o homem e a
mulher, etc., a noção de casal é muito reveladora e, talvez, a substância de
todas as coisas seja dual.
Delahaye: Então, está aí o seu modo de transcrição, o seu “código”, que
também era o código de Algo diferente. Você parecia muito atraída pela
ideia do duplo, do espelho...
Rivette: E também pela ideia do sósia. O sósia é e não é, ao mesmo tem-
po, o indivíduo de quem ele é o sósia. Ou, para fazer uma outra comparação,
é a ideia do gêmeo, que é igual e diferente.
O campo livre 53
Chytilová: Sim e, se você me diz isso, é justamente porque o núme-
ro dois, que é a menor quantidade, é o que permite dizer mais coisas. Bem,
se eu quiser generalizar, posso muito bem fazer isso. E preciso fazer isso
a partir dos meios mais elementares. É a partir das pequenas coisas que
podemos falar das maiores. Nunca vamos conseguir entender os maiores
problemas se não começarmos pelos mais simples. Logo, começar pela me-
nor quantidade possível vai perfeitamente ao encontro do que quero fazer.
Rivette: Mas ao mesmo tempo, ao meu ver, essa é só uma interpretação
ente outras possíveis. Se, nos seus dois filmes, aparecem os temas do casal
(e eu faço essa aproximação porque, apesar de tudo, não dá para fazer ou-
tra coisa, a não ser aproximar os diferentes filmes de uma mesma pessoa),
não é para levar as pessoas, se elas pensaram no início que as duas mulhe-
res eram diferentes, a descobrir que elas são, na verdade, muito próximas
uma da outra? E se as pessoas pensaram no início que as mulheres eram
parecidas, a ideia não era fazer as pessoas descobrirem que elas são dife-
rentes? Em resumo, com a sua maneira de mostrar as coisas, somos sempre
obrigados, em todos os casos, a acabar pensando o contrário do que pensá-
vamos inicialmente.
Chytilová: Em Algo Diferente, foi meio que isso o que eu quis fazer.
Todo o filme era sobre o tema: parecidas ou não parecidas? Iguais ou di-
ferentes? E a cada vez, descobríamos que elas eram algo diferente do que
pensávamos no início.
Rivette: Mas esse também é o princípio de As pequenas margaridas
(embora de maneira menos óbvia porque, no começo, as oposições entre
elas não estão demarcadas). O que quero dizer é que devemos pensar, em
determinado momento, que as duas garotas são exatamente iguais e per-
ceber num outro momento certas diferenças, pois cada uma delas acaba
adquirindo, no final, uma certa existência individual.
Chytilová: Sim, e o processo pode pender também para o outro lado.
No começo, podemos pensar que é a morena que tem o papel de guia ou
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54 Vera Chytilová
de líder e que ela vai manter esse papel, mas no final, percebemos que ela
não é o único diabo que conduz a valsa: a loira (que tem, no começo, uma
coroa, signo da inocência dos anjos ou das virgens) acaba tomando a inicia-
tiva também.
Delahaye: Um dos resultados curiosos do seu paralelo entre as duas
mulheres de Algo diferente é que a ousadia do filme faz com que ele seja
recusado com frequência pelo público. As pessoas se recusam a aceitar
até o que já está dado e, ainda mais, a reviravolta disso. Desde o começo, os
espectadores não conseguem evitar ver a atleta como uma mulher supe-
rior e a mulher casada como uma personagem sem sal, pelo simples fato de
que, para eles, a vida pública e o prestígio da atleta vêm necessariamente
acompanhados do sucesso e da felicidade, enquanto que a mulher casada,
desprovida desse prestígio exterior, só pode representar o fracasso e o té-
dio. Ela também representa para eles a eterna condição da mulher escrava
do lar, em oposição à atleta, uma mulher moderna e independente. Uma vez
que se admite essa hierarquia (quer aprovem ou não, todos eles estabele-
cem essa hierarquia), eles não saem dela e não conseguem nem perceber
tudo que você mostra sobre a solidão, a tristeza, o cansaço e o desencanta-
mento da atleta, assim como o que você mostra sobre as alegrias que a mu-
lher casada pode encontrar, enfim, o que você mostra sobre o modo como
todas as duas mulheres encontram, bem ou mal, um certo equilíbrio entre
a luta e a resignação. Nesse sentido, o seu filme é um verdadeiro teste sobre
as diferentes maneiras de reagir das pessoas.
Chytilová: Sim, eu também observei isso. As pessoas se recusam
completamente a comparar essas duas mulheres, pois seria necessário, no
início, colocá-las em pé de igualdade, o que elas se recusam a fazer. Que-
remos demais comparar os dois sentidos do filme, mas, de jeito nenhum,
as duas vidas... O que é curioso é a forma como as coisas se passaram com
a primeira mulher, a atleta. Ela era uma verdadeira ginasta e uma campeã,
tanto que ela acabou ganhando uma competição (ela fazia parte da equipe
nacional no Campeonato Mundial) durante a realização do filme. Eu não
podia prever isso. Aliás, as coisas teriam sido muito mais fáceis para mim se
ela tivesse perdido. Eu teria, de cara, o sentido do meu episódio, baseado no
fracasso e no fim.
O campo livre 55
Ao mesmo tempo, não fiquei insatisfeita com o que aconteceu porque eu
já tinha, de todo modo, o meu final, e esse final ganhava ainda mais força
quanto mais eu deixava a minha personagem viver, com as suas forças e
fraquezas, suas sortes e más sortes, com a sua própria batalha que ela po-
deria perder ou ganhar.
Mesmo com a sua vitória, o sentido do filme permanecia (após um desvio que
só ajudaria a reforçá-lo). Fracasso ou sucesso, a questão continuava sendo:
o que virá depois? Por qual resultado foram empreendidos tantos esforços
e sacrifícios? Pois a gente não pode nunca ganhar o tempo todo e quando a
gente para de ganhar... é o fim. Eu vi, portanto, ao longo do meu filme, as duas
vidas criarem o seu contraponto e vi no final que, quaisquer que fossem os
acontecimentos que marcavam essas vidas, o resultado era análogo.
Mas o espectador não consegue imaginar que a vida pública da atleta ter-
minou, que até isso tem um fim e que, depois, fica-se sem nada. E nenhum
espectador sequer percebeu que ele não poderia suportar, 24 horas, tudo
o que a minha campeã tinha que suportar, antes, durante e depois do seu
sucesso. Mas será que eu podia e devia intervir no filme para deixar essa
visão das coisas mais evidente? E será que isso mudaria realmente alguma
coisa no filme e nas reações das pessoas? Eu tinha que deixar essas duas
mulheres serem elas mesmas.
A mulher casada também é ela mesma, com a sua incapacidade de realmen-
te se encontrar. E ela vive algo que é tão insuportável quanto encontrar al-
guma coisa (como a atleta) que vai, necessária e rapidamente, acabar, algu-
ma coisa que, além disso, nós questionamos constantemente se correspon-
de mesmo ao que podíamos ou queríamos encontrar, se não é alguma coisa
que nos limita, se ela vale mesmo tudo que tivemos de aguentar e todas as
privações por que tivemos que passar. Todas as duas são elas mesmas na
forma de abordar esse problema: o que e como escolher?
Delahaye: Você vai muito ao cinema? Você pode mencionar alguns fil-
mes de que você gosta?
Chytilová: Olha, é cada vez mais raro ver filmes que me agradam total-
mente. Eu vi recentemente, em Nova York, alguns filmes do “Underground” e
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56 Vera Chytilová

teve um de que gostei muito, um filme de Ed Emshwiller, Relativity (1966), que

é, para mim, a prova de que se pode realmente falar de forma livre e direta.

Eu também acabei de ver, pela segunda vez, o filme magnífico que é Per-
sona, de Bergman. Eu sou muito sensível à força de Bergman e tudo que
ele faz me toca bastante. É para mim alguém de uma qualidade absoluta e,
não importam os meios que ele utiliza, suas criações são sempre das mais
extraordinárias.

(Entrevista feita com magnetofone por Michel Delahaye e Jacques Rivette.)

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Entrevista com Vera Chytilová 59

Entrevista
CAHIERS: O que você fazia antes de fazer cinema?

›
Vera Chytilová: Eu comecei estudando arquitetura, depois abando-

com Vera
nei por razões “pessoais”. Aí trabalhei como desenhista técnica num labo-
ratório de química, retocadora de fotografias, depois batendo claquete no
estúdio Barrandov e, por fim, trabalhei um pouco com roteiros e também

Chytilová
como assistente. Isso durou três anos, mas fui me dando conta de que eu
1 não era livre o suficiente. Tive, em seguida, uma breve passagem pela Aca-
demia de Belas Artes.

CAHIERS: Em que momento você decidiu fazer filmes?

por Serge Daney Chytilová: Ao final da faculdade na Academia de Belas Artes, eu era

e Bernard Gidel “oficialmente” diretora, mas isso era um desejo antigo e escondido que eu
nunca tinha ousado realizar. Eu pensava que, primeiro, precisava aprender
o máximo de coisas possível. Eu queria saber se eu era capaz de fazer isso.

CAHIERS: Você pode falar um pouco sobre os filmes que você dirigiu du-
rante a faculdade?

Chytilová: A faculdade durava cinco anos. Ao final de cada ano, para

passar para o próximo período, era preciso fazer um filme. No primeiro ano,
fiz um filme em 16 mm que se chamava Ao abrigo. No segundo ano, um filme
documentário intitulado A rua Verde, depois outro documentário sobre os
ferroviários, que me rendeu uma premiação no aniversário da República
Tchecoslovaca. Foi a primeira vez aqui em que uma premiação foi dada jun-
to com um prêmio em dinheiro! O mais engraçado é que o prêmio foi redu-
1 Publicado originalmente em Cahiers du Cinéma 193, setembro de 1967. Tradução de Pedro
Henrique Andrade.
zido porque eu era, na época, apenas uma estudante. Eles achavam que isso
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60 Vera Chytilová
era normal porque, sabe como é, os estudantes nunca têm dinheiro... No
terceiro ano, fiz algumas adaptações de contos de Kafka: numa delas, colo-
quei um monólogo na boca de um gato! Existia um contraponto entre esse
monólogo e o diálogo do filme, mas como isso era bastante novo na época,
tive medo de que não me deixassem terminar a faculdade. No quarto ano,
comecei o meu filme de conclusão de curso, que tinha que ter um compri-
mento de 800 m, mas que eu consegui aumentar no ano seguinte1. O filme
se chamava Teto (Strop, 1961) e seu comprimento final foi de 1.200 m. Nós
utilizamos todo o material à nossa disposição...
Eu sinto uma vergonha indescritível diante de todos os filmes que fiz, princi-
palmente Teto. Eu realmente não gosto mais dele. É preciso ver esses filmes
como o que eles são, isto é, filmes universitários que nós fazíamos gratuita-
mente. Nós não éramos pagos... Por exemplo, quando fizemos o filme sobre
os ferroviários, eram necessários uma locomotiva e 80 vagões e nós não sa-
bíamos o preço de locação. Foi depois de gravar que soubemos que o preço
de locação de uma locomotiva era 5.000 coroas (em torno de 1.500 novos
francos) por hora e, por um vagão, 400 coroas... Era o nosso fim! Eu comecei
a chorar, achava que iam me expulsar da escola... Mas tudo se arranjou. Todo
mundo foi maravilhoso, disseram para a gente: “não se preocupem, podem
rasgar as contas”. Havia somente uma condição: precisávamos gravar tudo
em um dia, quando, na verdade, nós tínhamos previsto uma semana de gra-
vação! Nós começamos às quatro horas da manhã e terminamos às dez ho-
ras da noite. Eu estava toda queimada de sol, não aguentava mais...
CAHIERS: O que lhe interessava em Kafka?
Chytilová: Sempre fui apaixonada por Kafka, desde os meus doces
anos de juventude, que nós vamos descrever como a “puberdade”. É claro
que eu conhecia os seus grandes romances e eu cheguei a conhecer um po-
eta que sabia de cor a obra de Kafka e que chegou até a traduzir alguns dos
seus pequenos contos. A ideia de filmar essa fábula, o gato e o rato, me veio
1 Forma de se referir à duração do filme com base no tamanho, em metros, da película final. Teto tem
pouco mais de 40 minutos, o que não significa, porém, que seja possível estabelecer uma proporção uni-
versal entre o comprimento informado por Chytilová e as durações de toda e qualquer película, pois o
tempo de filme também é determinado por outras variáveis, como o formato (16 mm, 35 mm). (N.T.)
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Entrevista com Vera Chytilová 61
depois de assistir a um concerto em que um jovem compositor, excelente
por sinal, fazia uma espécie de adaptação musical dela.
CAHIERS: Você viu filmes de outras mulheres cineastas? Da Agnès Var-
da, por exemplo.
Chytilová: Eu só vi Cléo (1962), que eu adoro porque existem algumas
relações entre ele e o meu próprio filme Teto. Acredito que a semelhança é
principalmente formal. Agnès Varda passou por Praga antes de se mandar
para Cuba, mas eu não a vi, apenas me disseram que ela ficou muito impres-
sionada com Teto.
CAHIERS: Os problemas de Cléo mexem com você?
Chytilová: Não quero definir esses problemas porque não consigo ima-
ginar como ela pôde continuar vivendo nessas condições. Eu não ousaria
gravar um filme como esse se não tivesse, eu mesma, vivido isso primeiro...
CAHIERS: E além de Agnès Varda?
Chytilová: Eu sei que elas existem. Estavam no meu programa na fa-
culdade. Vi o filme de Leni Riefenstahl sobre os Jogos Olímpicos. Também
vi A conexão (The Connection, 1962), de Shirley Clarke, que tem alguns as-
pectos formais que aprecio. Mas eu não gosto tanto desse tipo de filme...
Acho que é “naturalista” demais.
CAHIERS: Você acha que a mulher pode falar melhor do que os homens
sobre certas coisas?
Chytilová: É uma questão difícil. Acho que cada um pode falar melhor
do que os outros sobre certos assuntos. Quanto a mim, não faço diferença
entre os homens e as mulheres na direção. Mas os homens já me disseram
muitas vezes que havia, em meus filmes, uma maneira “feminina” de ver as
coisas, de observá-las... Alguma coisa que eles mesmos eram incapazes de
descrever. Mas é que eu não posso mostrar as coisas de um modo diferente.
 ›
62 Vera Chytilová
Não tenho a sensação de falar exclusivamente dos problemas femininos. É
por acaso que os meus personagens são principalmente mulheres. Em Algo
diferente (O něčem jiném, 1963), eu só queria saber se existia, de modo geral,
uma maneira mais harmoniosa, mais completa de viver. Poderíamos muito
bem substituir as minhas duas heroínas por dois homens, a questão conti-
nuaria válida.
CAHIERS: Não existe uma certa dose de humor negro nesse filme?
Chytilová: Me disseram isso muitas vezes. As pessoas que fazem essa
pergunta talvez não gostariam de viver uma segunda vez...
CAHIERS: Como você dirigiu os atores?
Chytilová: Para mim, os atores não precisam conhecer o significado
dos gestos que eles fazem. É a minha opinião pessoal sobre o trabalho dos
atores, ela só diz respeito a mim. O que eu vejo, antes de tudo, é o tempera-
mento deles, a personalidade... às vezes um rosto, mas durante a filmagem,
não ligo para o que pensam.
CAHIERS: Como você chegou a colaborar com Eva Bosakova2?
Chytilová: Foi muito simples. Tinha um programa para ser feito sobre
filmes esportivos. Alguém já tinha escrito um roteiro. Eu tinha acabado de
terminar a faculdade e estava sem trabalho na época, então me propuse-
ram esse roteiro. Eu li e fiquei assustada: era realmente muito ruim, de um
moralismo infantil. Era sobre uma atleta mais velha que era abandonada
pelos seus admiradores porque eles preferiam a sua rival mais jovem. O fil-
me tinha sido pensado para Eva Bosakova e eu indagava como é que pode-
ríamos filmá-lo melhorando o roteiro. Foi assim que me interessei pelo pro-
jeto. Eu queria falar da vida de uma atleta, mas sem fazer um filme de espor-
te. E aí eu pensei: podemos fazer um filme sobre qualquer coisa! Quase logo
depois, tive a ideia da outra personagem, a mulher casada, o que permitia
2 Eva Bosakova (1931-1991) foi uma ginasta tchecoslovaca, campeã olímpica da modalidade artística.
Em Algo Diferente, a atleta interpreta a si mesma. (N.T.)
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Entrevista com Vera Chytilová 63
abordar o problema de uma maneira mais geral. Foi assim que o projeto
inicial foi completamente invertido, virou realmente algo diferente.
CAHIERS: As pequenas margaridas (Sedmikrásky, 1966) é bem diferente...
Chytilová – De novo, estou sempre querendo fazer outra coisa... Penso
que esse primeiro filme já deu o que tinha que dar. Porque, de um lado, eu
fiz o que queria, mas, ao mesmo tempo, me dei conta de todos os defeitos do
filme. Eu via que não tinha esgotado inteiramente o problema que abordei.
Assim que termino um filme, prefiro esquecê-lo completamente. Mas em As
pequenas margaridas, eu realmente queria fazer o contrário do que eu tinha
feito errado em Teto. Nesse filme, os personagens eram simples demais, in-
gênuos demais, confiantes demais, como se bastasse querer intensamente
alguma coisa para compreender profundamente a vida! Em Algo diferente,
eu comecei a mostrar que as soluções não eram assim tão simples. Eu não
queria “heroínas positivas”. Enquanto que, com As pequenas margaridas, eu
quis fazer um verdadeiro “discurso sobe a destruição”.
Acredito que é essencial que nós indiquemos que existe um perigo na des-
truição, principalmente se for uma autodestruição e, ainda mais, se for
uma destruição inconsciente. É um filme de luta e, em toda luta, existe um
lampejo de esperança. Eu gostaria que falassem em ceticismo em vez de
pessimismo. Isso também equivale a dizer que existe um perigo. O público
é capaz de compreender.
CAHIERS: Qual perigo?
Chytilová: A indiferença.
CAHIERS: Em As pequenas margaridas, você improvisou muito?
Chytilová: No que diz respeito ao sentido do filme, eu não tinha o que
improvisar, cada cena tinha o seu objetivo preciso. Quanto à filmagem, eu não
podia improvisar demais porque, você sabe como é, mesmo quando a gente
grava um filme completamente louco, como As pequenas margaridas, sempre
tem um plano a ser respeitado, sempre tem ordens para dar aos arquitetos
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64 Vera Chytilová
dos cenários... Como o filme era muito estilizado, precisávamos inventar ob-
jetos e cenários do zero. Nós tínhamos limitações por causa do material, mas
sempre podíamos improvisar os diálogos, os movimentos de câmera, etc.
CAHIERS: Você prefere que o seu filme seja visto como uma comédia ou
uma parábola?
Chytilová: Eu deixo as pessoas livres para interpretarem o filme como
quiserem. Só gostaria que elas o vissem com muita atenção. Tem um ponto
em que quero insistir: é que esse filme não é realista. Mas se as pessoas não
percebem que se trata de um filme estilizado, como num teatro de marione-
tes, aí realmente a culpa não é minha!
CAHIERS: Como você trabalhou com a fotografia?
Chytilová: A colaboração com o meu marido, Kucera, foi bem estreita.
Nós já falávamos disso no estado de roteiro. Foi um filme em que eu não que-
ria deixar nada ser por acaso. Eu queria que cada detalhe tivesse a sua im-
portância e remetesse a um sentido interior. Por isso que eu não podia usar
cores banais ou de qualidade ruim. Meu marido chegou a inventar alguns
procedimentos. Algumas cenas no começo do filme são em preto e branco
porque não tínhamos película colorida suficiente. Mas como era um filme
sobre a destruição, eu quis que fosse também sobre a destruição das cores.
É uma história muito longa, a preparação durou um ano e meio. Desde o
começo, eu queria fazer um filme que ignorasse completamente as leis da
dramaturgia clássica. Eu queria criar uma espécie de corrente, de sucessão
de acontecimentos, mais ou menos como acontece em Cléo: sempre a mes-
ma realidade, mas vista sob ângulos diferentes. Não fico incomodada se o
meu filme choca os espectadores porque ele é feito para isso mesmo, para
alertá-los sobre o perigo da indiferença. O que eu buscava ao final do filme
era uma espécie de “ironia positiva”.
CAHIERS: Se as duas heroínas são estúpidas e insípidas, o filme não corre
o risco de perder um pouco da sua força satírica?
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Entrevista com Vera Chytilová 65
Chytilová – É um perigo que existe sempre, ainda mais porque o fil-
me continua sendo uma comédia, mesmo com os elementos trágicos.
Vão me dizer que um filme ganha em seriedade quando tem pessoas
inteligentes que fazem besteiras, mas com as minhas duas personagens de
idiotas, eu quis mostrar que o erro não era um privilégio da inteligência. Ao
mesmo tempo, era necessário que o erro delas tivesse um certo charme,
assim como o mal pode às vezes ser bonito...
CAHIERS: Você acha que um filme como esse poderia ser feito em qual-
quer outro país do mundo hoje?
Chytilová: Sim, acho. Com certeza, independentemente das questões
materiais.
CAHIERS: O que você acha da renovação do cinema tchecoslovaco?
Você tem consciência de que faz filmes bem diferentes dos que se faziam
há dez anos?
Chytilová: Estou espantada com você usando a palavra “renovação”.
Sem dúvida, são exibidos mais filmes tchecos em Paris agora, mas isso é uni-
camente uma questão de distribuição. Quanto às pessoas que faziam filmes
há dez anos, como Kadar e Klos, eles continuam a fazer filmes. Se existe uma
diferença, não é uma diferença de idade, mas de opinião. Tem tantas diferen-
ças entre os jovens cineastas tchecos quanto entre eles e os mais velhos. Não
tem choque de gerações. Às vezes, me sinto muito próxima, por exemplo, de
pessoas como Jiri Weiss ou Trnka.
CAHIERS: Quais filmes ou cineastas lhe influenciaram?
Chytilová: Cassavetes com Sombras (Shadows, 1959), Resnais com Hi-
roshima (1959). Tem alguns filmes que me causaram uma baita impressão.
Eu vi os filmes da Nouvelle Vague francesa na faculdade. O Godard de O
acossado (À bout de souffle, 1960) é muito significativo para mim. Acho que
existem semelhanças, no nível formal, entre um filme como Algo diferente
e os filmes da Nouvelle Vague francesa, mas as semelhanças param por aí.
 ›
66 Vera Chytilová

CAHIERS: Você pode falar sobre os seus projetos futuros?

Chytilová – Tenho vários em mente, um deles com Ester Krumbachova,

a roteirista das Pequenas Margaridas. Eu e meu marido gostaríamos de con-
tinuar aí as nossas experiências com a cor. Algumas delas não deram certo
em As Pequenas Margaridas. Para mim, o essencial é fazer “algo diferente”.

(Entrevista feita com magnetofone, em agosto de 1966, no Filmory Klub de Praga, por Serge
Daney e Bernard Gidel, com a gentil ajuda do tradutor Jan Hrosa.)
 Bonecas fragmentadas 69

Como disse a diretora Věra Chytilová, “cada um dos meus filmes encontrou

Bonecas certa resistência por parte da autoridade”2. As pequenas margaridas (Sed-

mikrásky, 1966) não foi exceção. Denunciada por deputados estaduais na

fragmentadas: Tchecoslováquia por “não ter nada em comum com nossa República, com o
socialismo e os ideais comunistas”3, a obra foi inicialmente banida e apenas
eventualmente era permitida uma exibição pública. A própria Chytilová foi
As pequenas margaridas (Sedmikrásky, proibida de realizar filmes entre 1969 e 1975.

1966) como alegoria feminista1 Produto de uma colaboração entre três importantes cineastas da Nouvelle
Vague Tcheca (Chytilová, Ester Krumbachová e Jaroslav Kucera)4, As pe-
quenas margaridas gira em torno das façanhas picarescas de duas lindas
Bliss Cua Lim garotas, Marie 1 e Marie 2 (interpretadas por duas não atrizes, Jitka Cerho-
vá e Ivana Karbanová, respectivamente), cujas travessuras destrutivas são
apresentadas em uma narrativa episódica que termina punindo-as pelas
suas muitas infrações e incapacidade de regeneração. Em entrevistas e do-
cumentos históricos, Chytilová sempre sustentou que ela pretendia que As
pequenas margaridas fosse uma crítica codificada a suas protagonistas. Em
sua opinião, os burocratas socialistas que denunciaram o filme por celebrar
suas heroínas depravadas - e por desperdício de comida – não souberam in-
terpretá-lo. Longe de defender as duas Maries como modelos de conduta,
Chytilová afirma que o filme é uma peça moralista, uma comédia “grotesca”

2 Painel de discussão com Věra Chytilová (tradutora Caterina Pavlitova), Milena Jelinek, Amos Vogel
e Jerry Carlson, 19 de novembro de 2000, Brooklyn Academy of Music, New York.

3 Discurso do deputado Pruzinec, proferido na Assembleia Nacional em 17 de maio de 1967 sobre o

filme “As pequenas margaridas” de Věra Chytilová, http://maxpages.com/czechcinema/21_Deputies_
Against_Daisies

1 Publicado originalmente em Camera Obscura 47 (Volume 16, Number 2), 2001. Tradução de 4 Chytilová e Krumbachová colaboraram no roteiro; Krumbachová foi responsável pelo design de
Joana Negri. Copyright, 2001, Camera Obscura. produção e Kucera, marido de Chytilová, foi o diretor de fotografia.
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70 Vera Chytilová Bonecas fragmentadas 71

ou distorcida que condena suas heroínas indisciplinadas por razões éticas5. deve ao duplo significado da alegoria, uma forma cuja obliquidade tem fre-
quentemente atraído artistas que trabalham em um contexto de repressão
Inicio essa análise recapitulando a discussão acirrada entre Chytilová e os
política. O uso que As pequenas margaridas faz da heroína-boneca explica
detratores do governo cuja desaprovação severa manteve essa diretora
a profunda ambivalência do filme em relação às protagonistas duplas: a bo-
brilhante e singular fora da produção cinematográfica por seis anos. Tra-
neca é o dispositivo satírico perfeito para caricaturar mulheres tão vazias
balhando dentro dos limites da produção cinematográfica supervisionada
e autoindulgentes que são praticamente marionetes vivas; mas a boneca
pelo Estado na Nouvelle Vague Tcheca dos anos 1960, Chytilová formulou
também é uma instanciação concreta de um ideal manifestamente patriar-
uma crítica “adequadamente revolucionária” sobre a existência burguesa
cal de feminilidade. Apesar de toda a sua adequação a um projeto que bus-
insípida da modelo de moda, um tema que ela havia perseguido em um filme
ca encontrar falhas em duas garotas rebeldes, a metáfora da boneca prova
anterior. Apesar da insistência de Chytilová de que o filme fosse visto como
ser um tropo de duas faces. Nesse sentido, As pequenas margaridas se as-
uma alegoria moral que criticava suas heroínas, os censores socialistas dis-
semelha ao trabalho das escritoras feministas Angela Carter (1940-1992) e
cordavam da representação (e aparente celebração) da juventude desperdi-
Rosario Ferré (n. 1938), cujas respectivas histórias The loves of Lady Purple
çada presente na obra.
(1974) e The Youngest Doll (1976 em espanhol, 1991 em inglês) viram o jogo
O ponto crucial de meu argumento é o seguinte: As pequenas margaridas contra a associação convencional de bonecas à feminilidade dócil.
pode ser interpretado de modo multivalente, permitindo tanto uma crítica
Enquanto os elementos do filme mais frequentemente comentados pelos
aos excessos das heroínas (correspondendo ao roteiro aprovado pelo Es-
críticos de cinema são o consumo e a destruição, eu me concentrarei, na
tado e às intenções declaradas de Chytilová) quanto um deleite feminista
parte final de minha discussão, na preocupação temática e formal de As
latente, evidenciado na habilidade das heroínas de operar inversões na or-
pequenas margaridas com a colagem e a fragmentação, no tocante a uma
dem patriarcal. Este estudo defende uma leitura de As pequenas margari-
ironia presente nas performances de gênero. Chytilová afirmou que o tema
das que não corresponde nem à explicação da diretora nem às objeções
do filme - uma crítica ética a suas protagonistas destrutivas - era inextri-
infundadas dos censores do filme. Embora minha leitura alegórica possa
cável de sua forma: “A forma do filme foi realmente derivada da sua base
estar em desacordo com a declarada intenção autoral, ela permanece gra-
conceitual. Como o conceito era a destruição, a forma também se tornou
ta ao forte acorde de resistência presente no filme que os funcionários do
destrutiva”6. A “forma destrutiva” que As pequenas margaridas emprega,
governo foram rápidos em contestar e Chytilová ávida em desmentir. Sob
com resultados magníficos, é uma colagem, fruto das experiências do di-
a aparente condenação a suas heroínas, minha leitura do filme identifica
retor de fotografia Jaroslav Kucera com a técnica. Os temas surrealistas da
uma alegoria feminista na qual a metáfora da boneca é reformulada como
montagem e da colagem em As pequenas margaridas são epitomizados em
uma celebração da recalcitrância feminina.
imagens impressionantes dos corpos das heroínas estilhaçados e recom-
A segunda e a terceira seção exploram o uso extensivo que As pequenas postos. Essas estratégias formais sugerem uma apropriação de princípios
margaridas faz da boneca como um dispositivo alegórico que engloba as di- surrealistas - incongruência e surpresa, negação da representação mimé-
versas alusões das heroínas a marionetes, manequins de moda e artifícios tica e o poder revelador da fragmentação - por uma cineasta feminista
femininos juvenis. A discrepância entre as intenções declaradas de Chyti- tcheca. Embora a colagem como estratégia formal visasse respaldar o aler-
lová e a reação dos censores socialistas à As pequenas margaridas - o filme ta do filme contra o vazio, ela também serve para desmascarar a ideia de
parece criticar as Maries por um lado, enquanto as celebra por outro – se atributos de gênero como máscaras naturalizadas. Os dispositivos formais

5 Chytilová, painel de discussão 6 Ibid.

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72 Vera Chytilová
de fragmentação (no som, imagem e espaço-temporalidade), bem como a
representação narrativa de corte e desmembramento ressaltam a repre-
sentação alegórica das heroínas como assemblages transgressivas dos atri-
butos de gênero.
Intenções contestadas ou “Um documentário filosófico sob a forma de
uma farsa”
Antonin J. Liehm descreve a situação dos cineastas na indústria cinema-
tográfica controlada pela Tchecoslováquia, durante o período da Nouvelle
Vague Tcheca:
O artista em uma indústria cinematográfica nacionalizada luta constante-
mente com seu primeiro espectador e produtor em uma só pessoa, o establish-
ment político...
Toda tentativa de criar uma obra de arte o levará ao contato direto com o es-
tablishment, onde o gosto oficial, recursos financeiros e interesses políticos do
momento são o tribunal de primeira e última instância. Esse contato sempre
implica conflito, no qual a sensibilidade social do artista é formada e aprimo-
rada7.
A observação de que os cineastas tchecos em uma indústria cinematográ-
fica controlada pelo Estado frequentemente se confrontavam com o gosto
oficial do establishment político é particularmente verdadeira em As peque-
nas margaridas8. “Estou exausta de toda a comoção em torno de As peque-
nas margaridas”, admitiu Chytilová, combalida a um entrevistador. “Quando
7 Antonin J. Liehm, “Introduction” [1973], Closely Watched Films: The Czechoslovak Experience
(White Plains, NY: International Arts and Sciences, 1974), 3–5
8 Sobre a Nouvelle Vague Tcheca e a indústria cinematográfica nacionalizada na Tchecoslováquia,
ver Peter Hames, The Checoslovak New Wave (Berkeley: University of California Press, 1985) e Bjorn
Ingvoldstad, After the Velvet Revolution: An Industrial Survey of the Czech and Slovak Film Industries
in the Cold War Era, http://www.mediaguide.hu/book/bookID19.html, que resume os efeitos da nacio-
nalização de 1945 da indústria cinematográfica tcheca. A Nouvelle Vague Tcheca refere-se ao “surgi-
mento de um grupo de jovens cineastas talentosos” durante o “degelo político da desestalinização” nos
anos 60. Essa era chegou ao fim em agosto de 1968, quando a “visão liberal do ‘socialismo com um rosto
humano”, defendida pelo presidente Alexander Dubcek, foi “destruída pela intervenção militar soviéti-
ca direta”. Alguns dos diretores associados à Nouvelle Vague partiram para o Ocidente (Milos Forman
e Jan Nemec), mas outros, como Chytilová, permaneceram na Tchecoslováquia “apesar de terem sido
impedidos de trabalhar no cinema por vários anos”. Além disso, “muitos filmes da Nouvelle Vague Tche-
ca foram ‘banidos para sempre’ por um decreto governamental subsequente” (Ingvoldstad).
Bonecas fragmentadas 73
você olha para trás, de repente você vê toda a energia que eles roubaram
o tempo todo, e quão pouco foi feito a longo prazo... Uma luta constante e
eterna com as condições externas pela oportunidade de trabalhar ”.9
Seis anos após a conclusão de As pequenas margaridas, uma “avaliação
complexa” por um comitê do partido recomendou a rescisão do contrato
de Chytilová com a Barrandov Film Studio, alegando que seus filmes eram
“experimentais por natureza, descomprometidos e pessimistas”, “elitistas”
e apreciados principalmente por críticos ocidentais e festivais de cinema.
Essa avaliação de seu trabalho foi veemente e profundamente contestada
por Chytilová, em uma carta escrita ao presidente Gustav Husak em 1975.
Respondendo às alegações da comissão de que ela “não tinha uma atitude
positiva em relação ao socialismo” e falhou em “entender” a cultura con-
temporânea política do Partido Comunista da Tchecoslováquia”, Chytilová
defendeu “o direito do artista de experimentar” e insistiu que todos os seus
filmes eram “engagé e portanto não poderiam ser [politicamente] descom-
promissados”. Chytilová sustentou que a oposição ao seu trabalho estava
enraizada na misoginia: “O verdadeiro problema. . . estava em outro lugar.
Eu era uma cineasta mulher”. 10
A carta de Chytilová de 1975 para o presidente continua sendo um sur-
preendente documento histórico sobre as vicissitudes enfrentadas pelos
cineastas da Bouvelle Vague tcheca. Com um ar de frustração palpável,
Chytrepórter, ilová observa que foi impedida de participar de vários fes-
tivais internacionais de cinema feminino para os quais foi convidada.11 No
entanto, a despeito de ter claramente ganhado reputação internacional
como uma cineasta feminista e caído em desgraça em seu país por conta
desse motivo, a descrição de Chytilová de suas intenções em As pequenas
margaridas é visivelmente silenciosa quanto às questões da mulher:
“As pequenas margaridas” foi uma peça de moralidade que mostra como o mal
não se manifesta necessariamente em uma orgia de destruição causada pela
guerra, mas que suas raízes talvez estejam ocultas nas brincadeiras maliciosas
9 Chytilová, entrevista com Liehm (outono de 1967), em Closely Watched Films, 242–43.
10 Chytilová, “I Want to Work,” Index on Censorship 5.2 (1976): 18–19.
11 Ibid., 18
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74 Vera Chytilová
da vida cotidiana. Escolhi como minhas heroínas duas jovens, porque é nessa
idade que a pessoa mais deseja se realizar e, se for deixada por conta própria,
sua necessidade de criar pode facilmente se transformar em seu oposto12.
Isso está em conformidade com as declarações de Chytilová a um crítico
de cinema francês vários anos antes. Em uma entrevista de 1966, Chytilo-
vá descreveu As pequenas margaridas como um “documentário filosófico
sob a forma de uma farsa”, uma “comédia bizarra com vertentes de sátira e
sarcasmo em relação às duas heroínas”, que ela definiu como Parasitas. Não
apenas em relação aos outros, mas também - e isso é fundamental - em rela-
ção a si mesmas...Nós [os cineastas] queremos desvendar a futilidade da vida
no círculo ilusório das pseudorelações e pseudovalores que necessariamente
levam ao vazio das formas vitais, sob o aspecto de corrupção ou de felicidade.13
A visão distanciada e depreciativa de As pequenas margaridas a respeito
de suas heroínas manequins é remanescente da narrativa sobre a “modelo
de moda regenerada” que Chytilová perseguiu em Teto (1961), seu filme de
formatura na FAMU (filmová a televizní fakulta AMU), a escola estadual de
cinema localizada em Praga. Tal como aquele filme anterior, As pequenas
margaridas é uma parábola sobre os males da ganância e do materialismo
burguês (simbolizados pelo consumo obsessivo e, por fim, destrutivo das
duas Maries). Essa narrativa adequadamente “revolucionária” estava pre-
sente em nível de roteiro em Teto, embora o crítico de cinema tcheco Jo-
seph Skvorecky note que, até mesmo naquele filme anterior, as inovações
vanguardistas de Chytilová minaram o núcleo moralista do roteiro: “Embo-
ra a moralidade esquemática tenha permanecido, a diretora a enfraqueceu
mudando completamente a ênfase para a forma”14. Skvorecky considerou
a ênfase de Teto na “comunhão Rousseauniana” deploravelmente didática,
12 Ibid., 17.
13 Chytilová, “Chytilová parmi les marguerites,” entrevista com Adriane Aprà, Cahiers du cinema
174 (1966): 14.
14 Josef Skvorecky, All the Bright Young Men and Women: A Personal History of the Czech Cinema,
trad. Michael Schonberg (Montreal: Peter Martin, 1971), 99–101. Pode-se especular que a mesma estra-
tégia de usar dispositivos formais para minar o didatismo do roteiro está em ação em As pequenas mar-
garidas. Diante disso, a observação de Chytilová de que ela, Krumbachová e Kucera concordaram em
não se “restringirem a nada”, exceto ao diálogo que “permaneceria absolutamente fixo”, pode ter sido
uma estratégia que serviu não apenas para “resguardar” o significado (como Chytilová sustentou),
mas também para dissimulá-lo. A entrevista de Chytilová em 1968 à Cahiers du cinema, com Jacques
Rivette e Michel Delahaye, é citada em Hames, The Czechoslovak New Wave, 212
Bonecas fragmentadas 75
exemplificando o “então em voga retorno ao povo para fins catárticos”15 e
julgou a clara alusão de Chytilová a Teto em As pequenas margaridas como
inequivocamente irônica no tom.
Cito os pontos de vista de Skvorecky a respeito do filme com certa minúcia,
porque seus comentários esclarecedores reconhecem que o tom “malicio-
so” de As pequenas margaridas é condicionado e produzido pela realidade
da indústria cinematográfica tcheca nacionalizada dos anos 60. Ele é o úni-
co comentarista sobre As pequenas margaridas que se envolve com duas
questões-chave que a maioria das pessoas sente falta: a qualidade irônica
do filme e a natureza excessivamente determinada e possivelmente estraté-
gica das intenções declaradas de Chytilová em relação à obra. Ele escreve:
De acordo com as palavras de Věra [Chytilová], “As pequenas margaridas” de-
veria ser “uma comédia bizarra com tons de sátira e sarcasmo direcionados
a ambas às protagonistas”. Inegavelmente era uma comédia bizarra, mas não
tenho certeza se a nuance satírica realmente tinha como alvo as duas impe-
tuosas protagonistas. Além disso, não estou certo se o filme realmente é “uma
parábola sobre a força destrutiva do niilismo e da provocação fútil”, mas sem
dúvida é um filme excelente, rico, ousado e feito maliciosamente. Ele começa
com uma montagem: uma explosão nuclear, tanques destruindo casas. Suspei-
to que as autoras acrescentaram a introdução grandiosa como uma contra-
medida às prováveis ​​críticas posteriores (suas intuições eram justificadas)... O
espetáculo culmina quando as garotas conseguem se enfiar em um elevador
de comida em um hotel e entram em um salão de festas, obviamente preparado
para algum excesso de indulgência oficial. Elas começam comendo e terminam
em uma batalha de bolo de creme. Nesse ponto, vem a última piada; é de fato o
auto-ridículo dirigido contra o fim moralista do primeiro filme de Věra, “Teto”,
sobre a modelo regenerada. As meninas percebem o que fizeram e rapidamen-
te se corrigem. Em uma cena onírica, cujo efeito é realçado pela ação desace-
lerada da câmera, as garotas, vestidas com roupas feitas de jornal (símbolo de
“condenação adequada”), varrem a bagunça em um ritmo mortal, arrumando
os restos arruinados de canapés e bolos nas toalhas sujas de mesa.16
15 Skvorecky, All the Bright Young Men and Women, 99–101.
16 Ibid., 108–9. My emphasis.
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76 Vera Chytilová
Concordo inteiramente com Skvorecky de que As pequenas margaridas
deve ser analisado a partir de uma relação ambivalente e tacitamente con-
traditória com os ditames da produção cinematográfica supervisionada
pelo Estado. Visto sob esta luz, torna-se possível para ele sugerir que a se-
quência de créditos de As pequenas margaridas, cujas imagens de explo-
sões e ataques aéreos ligam o consumo das heroínas à destruição social17,
pode ser uma tentativa consciente de evitar críticas. Dada a atmosfera de
intensa censura em torno das produções da Nouvelle Vague Tcheca, os co-
mentários de Skvorecky sugerem que o filme, assim como o discurso de
intenção autoral em torno dele, não são performances comunicativas di-
retas. Isso pode ajudar a elucidar por que Chytilová, cujo feminismo vee-
mente é constantemente discutido por críticos e pesquisadores de cinema,
repetidamente articula as críticas filosóficas presentes em As pequenas
margaridas, mas permanece surpreendentemente silenciosa em relação
ao conteúdo feminista tantas vezes detectado na obra18. Nem é necessário
atribuir um cálculo consciente ou astúcia aos cineastas, como faz Skvo-
recky, para insistir na natureza sobredeterminada da consideração de As
pequenas margaridas por suas heroínas. A indústria cinematográfica nacio-
nalizada e controlada pelo Estado forneceu simultaneamente condições de
possibilidade e exerceu restrições produtivas a As pequenas margaridas e
a sua diretora. Uma vez que o filme foi censurado por parecer endossar
suas heroínas indisciplinadas, sustentar o inverso é uma linha de defesa
compreensível e esperada.
Não obstante a crítica declarada de As pequenas margaridas as suas heroí-
nas demasiadamente indulgentes, o filme foi por algum tempo impedido de
exibição, devido ao clamor oficial sobre o “desperdício de comida”. O deputa-
17 Ver Claire Clouzot, Daisies, Film Quarterly 21.3 (1968): 35-36. Clouzot identifica “a equação consu-
mo = destruição” e escreve: “A gula e a devastação estão interligadas como um indício de que o con-
sumo e a destruição podem não estar tão distantes, mas Chytilová não proclama que seu filme tem
uma única interpretação. Parece que as pequeninas criaturas gananciosas são espécimes do impulso
capitalista (ou, melhor, socialista) de aquisição, a raiva pela apropriação; o fator conotativo de que elas
são “mendigas” ou “esponjadoras” transmite a ideia de parasitismo social ou econômico “(35-36).
18 Para os críticos que detectam uma sensibilidade feminista em As pequenas margaridas, ver Skvo-
recky, All the Bright Young Men and Women, 108; Barbara Quart, Three Central European Women
Directors Revisited,” Cineaste 19.4 (1993): 58; e Hames, The Checoslovak New Wave, onde ele escreve
que o ineditismo de As pequenas margaridas reside em sua mistura de forma radical e temática femi-
nista: “Em um nível superficial de interpretação - os problemas da juventude apática e ‘não-positiva’
- não havia nada realmente inovador. A novidade estava em uma forma estética ligada a uma declara-
ção feminista que era certamente original - e não apenas na Europa Oriental ”(222).
Bonecas fragmentadas 77
do Pruzinec, membro da Assembleia Nacional, repreendeu a representação
de orgias alimentares no filme “em uma época em que nossos agricultores,
com grandes dificuldades, estão tentando superar os problemas de nossa
produção agrícola”19. Na época, muitos tchecos consideravam que essa era
uma interpretação “inacreditável” acerca do filme. O apoio público a obra
finalmente convenceu o governo a permitir sua exibição, mas todo o fiasco
dá sentido à dedicatória final de As pequenas margaridas: “Este filme é dedi-
cado a todos aqueles indignados apenas com a visão da alface pisoteada!”20
Na conclusão de um painel com Chytilová, em dezembro de 2000, pergun-
tei sobre o que ela acreditava terem sido as verdadeiras razões da censura
a As pequenas margaridas, já que seu roteiro havia recebido aprovação do
estado. Primeiramente, Chytilová respondeu que, no contexto de uma crise
econômica, a questão do desperdício de alimentos era provocativa: “Naque-
la época, houve uma grave crise econômica e eles acharam realmente ul-
trajante que os alimentos fossem pisoteados no filme”. Mas quando expres-
sei surpresa que um roteiro aprovado pelo estado ainda assim fosse alvo de
um ataque tão amargo, ela observou que os funcionários do governo não
tinham realmente entendido o que haviam aprovado e, portanto, só regis-
traram seu protesto ao ver o produto final: “Eles [os funcionários do gover-
no] apenas o interpretaram no nível mais realista como um mau exemplo
para as crianças e mulheres, e [como resultado, sentiram que tinham que
sustentar] que a juventude tcheca não era tão má assim”21. Segundo Chy-
tilová, os censores acreditavam que ela estava sustentando essas heroínas
impróprias como exemplos de conduta e não conseguiram decifrar que o
filme era, na verdade, uma crítica a elas.
O fato de que a narrativa sobre modelos regeneradas, em As pequenas mar-
garidas, não tenha sido capaz, por alguma razão, de contornar a censura do
Estado sugere a mim que o filme opera em um nível semântico completa-
mente diferente, a respeito do qual o socialismo do establishment não era
19 Pruzinec citado em Skvorecky, All the Bright Young Men and Women, 109–110
20 Depois de 1968, Chytilová foi banida do cinema por seis anos: “Seu filme As pequenas margaridas,
admirado tanto na Tchecoslováquia quanto no exterior, foi tão inovador e provocativo que foi um dos
gatilhos para a repressão dos russos em 1968” (Quart, “Three Central Diretores Europeus de Mulhe-
res, ”58).
21 Chytilová, painel de discussão
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78 Vera Chytilová
propriamente receptivo. Em minha opinião, uma sutil estrutura alegórica
subjaz ao filme; suas antinomias são provocadas pelas camadas duplas de
significação em ação. Isto é, se a alegoria “diz uma coisa e significa outra”,
na frase convincente de Angus Fletcher22, então torna-se possível para As
pequenas margaridas repreender suas heroínas por um lado, enquanto se
deleita com suas transgressões por outro.
As pequenas margaridas revisado: Alegoria Feminista
A alegoria “destrói a expectativa normal que temos da linguagem, de que
nossas palavras ‘significam o que dizem’”. É um “uso irônico” capaz de “sub-
verter a linguagem”, apontando para um significado “diferente do que a
afirmação aberta e direta diz ao leitor”23. Em contraste com outras formas
de “organizar a atribuição de significado” que o consideram como “algo ine-
rente, a ser extraído das profundezas do próprio objeto”, a alegoria “assume
uma visão figurativa do significado”24. A abordagem figurativa do signifi-
cado, proposta pela interpretação alegórica, evita a noção da inerência ou
imanência em um texto. A relação figurativa entre duas ordens de signifi-
cado na alegoria (em que a discrepância entre os dois níveis é uma pré-con-
dição para o alegórico) nos permite ver por que uma antinomia aparente
entre duas ordens de interpretação pode ser mantida em uma mesma obra.
As pequenas margaridas denuncia suas heroínas (apaziguando, assim, o
censor do Estado socialista), ao mesmo tempo em que as celebra, ridicula-
rizando o moralismo dogmático prescrito pelo Estado. Essa estratégia du-
pla pode ter perturbado os censores; e certamente abre o filme para uma
reapropriação feminista. A leitura de Skvorecky de uma nuance irônica e
subversiva no filme é, portanto, implicitamente alegórica e é, de fato, um
reconhecimento perspicaz da astúcia política da alegoria. Como Fletcher
nos lembra, a alegoriaparece expressar conflito entre autoridades rivais, pois
em épocas de opressão política podemos recorrer a “linguagem Esopo” para
evitar a censura do pensamento dissidente. No centro de qualquer alegoria
22 Angus Fletcher, Allegory: Theory of a Symbolic Mode (Ithaca, NY: Cornell University Press, 1964), 2.
23 Ibid., 2.
24 Jonathan Culler, “Literary History, Allegory, and Semiology,” New Literary History 7
(1976): 263.
Bonecas fragmentadas 79
será encontrado esse conflito de autoridades... As alegorias são, com bem me-
nos frequência, os sistemas monótonos que têm reputação do que lutas simbó-
licas de poder.25
Artistas que lutam contra a repressão política frequentemente utilizam a
arte da alegoria. As restrições da produção cinematográfica nacionalizada
também eram paradoxalmente produtivas, inspirando “uma cultura cine-
matográfica oblíqua e codificada” que “podia contar verdades silenciosas,
muitas vezes dolorosas”, qualidades que uma indústria cinematográfica
submetida às vicissitudes do mercado nunca poderia ter mantido.26
A destreza política da alegoria deriva do que os estudiosos chamam de “dis-
junção de significados”, a “apreensão” que “exige pelo menos duas atitudes
mentais”27, um “grau maior de incompatibilidade manifesto entre o tenor e
o veículo” do que é habitual em outras formas de linguagem figurativa28. Na
medida em que essa disjunção entre tenor e veículo resulta em uma cisma
semelhante entre significados ou instâncias interpretativas, a alegoria se
dirige ao público em camadas, de modo que alguns veem o que outros não.
J. Hillis Miller nos lembra que, etimologicamente, alegoria significa falar
figurativamente, ou falar em outros termos, ou falar de outras coisas em
público. Do grego allegorein, allos, outro; mais agoreuein, falar (em público),
de ágora, uma assembleia, mas também um mercado ou local habitual de
reunião... A palavra alegoria sempre implica não apenas o uso de figuras,
mas também tornar público e disponível a ouvidos profanos algo que de
outra forma permaneceria secreto.29
25 Fletcher, Allegory, 23
26 Quart, “Three Central European Women Directors” 59. Os muitos casos em que a repressão esta-
tal paradoxalmente incitou explosões de criatividade confirmam a observação de Michel Foucault de
que a operação do poder nunca é apenas proibitiva ou repressiva; é também produtiva, criando con-
dições de possibilidade e estimulando a formação de conhecimento (por exemplo, a indústria tcheca
nacionalizada produz a Nouvelle Tcheca, bem como a dura censura que se empenhou em contê-la).
Foucault escreve: “a noção de repressão é bastante inadequada para captar o que é precisamente o
aspecto produtivo do poder”. Foucault, “Truth and Power,” entrevista com Alessandro Fontana and
Pasquale Pasquino, Power/Knowledge: Selected Interviews and Other Writings 1972–1977 (New York:
Pantheon, 1972), 119.
27 Fletcher, Allegory, 19.
28 J. Hillis Miller, “The Two Allegories,” Allegory, Myth, and Symbol, ed. Morton W. Bloomfield (Cam-
bridge: Harvard University Press, 1981), 356–57.
29 Ibid., 356–58.
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80 Vera Chytilová Bonecas fragmentadas 81

Pensar a alegoria como um “segredo público” falado para muitos, mas en- nada bem”, enquanto a imagem intercala brevemente uma fachada de prédio
tendido apenas por poucos, explica seu uso predominante e dissidente em colapso, como resultado de uma explosão ou tremor. O restante da cena
como um desafio disfarçado à autoridade e à censura. A alegoria, como se desenrola em plano-sequência, enquadrada em um plano de dois, no qual
uma forma, se presta à revelação seletiva, tornando certos significados dis- Marie 1, à esquerda, espelha, em movimento ou fala, Marie 2, à direita.
poníveis àqueles sintonizados com sua expressão bifurcada.
marie 1: Uma boneca! Eu sou como uma boneca, não sou? Eu sou uma boneca
Em As pequenas margaridas, o impulso alegórico para a interpretação figu-
marie 2: Uh-huh.
rativa é primeiramente provocado pelas duas próprias Maries. Na impor-
tante cena inicial que segue a sequência de créditos do filme, as meninas marie 1: Você entende?
resolvem que, como o mundo está indo mal, “também seremos más”. Refe-
marie 2: Ninguém entende nada.
rindo-se a si mesmas como “bonecas que ninguém entende”, e escolhendo
dali em diante a indisciplina, as duas heroínas combinam um poderoso uso marie 1: Ninguém nos entende!
do duplo (Marie 1 e 2 como espelhos loiros e morenos uma da outra) com
marie 2: Tudo está indo mal neste mundo.
a imagem da marionete. Em nosso primeiro vislumbre das protagonistas,
as jovens estão sentadas lado a lado, tomando sol de biquíni, mas suas pos- marie 1: tudo?
turas caídas, suas costas contra uma cerca e seus braços e pernas aber-
tos sugerem a flacidez das bonecas ou fantoches que não podem se sus- marie 2: tudo. . .
tentar, precisando, assim, ser apoiados contra uma parede. As duas Maries marie 1:. . . neste mundo.
sentam-se de frente para a câmera e suas posições são exatamente iguais
quando a cena tem início. marie 2: [se inclina para frente animadamente.] Você sabe, se tudo está
indo mal. . .
O notável uso do duplo no prólogo estabelece não apenas uma preocupa-
ção temática onipresente, mas também introduz o uso consistente do pla- marie 1: [Excitada. Rufar de tambores] Bem?
no de dois no filme, que enfatiza a noção da protagonista dual (as ações das marie 2: Nós vamos
duas Maries, juntas ou separadas, devem sempre ser vistas como dialetica-
mente relacionadas). A cena abre o filme com o curioso conceito de duas marie 1: Ser más
marionetes que reconhecem seus status como bonecas e decidem agir de marie 2: Também—
forma má - para incorporar de modo extremo a imagem convencional da
feminilidade excessiva, ligada por associação semântica a crianças refratá- marie 1: Nós também.
rias cuja incontrolabilidade é acompanhada por uma inclinação a resistir. [Seus movimentos são progressivamente acelerados e elas se movem a
Nesta cena inicial na piscina, os movimentos das duas garotas são ritmados cada fala até que estão de joelhos frente a frente.]
e deliberados, cada um deles pontuados por ruídos de rangido na trilha so- marie 2: Certo?
nora, como se suas articulações estivessem rígidas e precisassem de lubrifi-
cação. Marie 2, a morena, tenta tocar o trompete, o que resulta em um som marie 1: Isso importa? (Vadí?)
dissonante. Desanimada, ela se queixa à loira Marie 1 de que “não sabe fazer
marie 2: Não importa. (Nevadí.)
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82 Vera Chytilová
Em sua leitura atenta e perspicaz do filme, Peter Hames observa os “movi-
mentos dos membros e das mãos em estilo marionete” das duas Maries que
“se sentam como bonecas estáticas em seus biquínis”, jogando “um jogo de
‘Isso importa? ‘ ‘Não importa’ (‘Vadí?’ ‘Nevadí.’)”, um jogo que, repetido de
muitas formas ao longo do filme, leva à derrocada das garotas30. Os gestos
rimados, acompanhados de ruídos de rangidos na trilha, sublinham uma
impressão de ação mecanizada, rigidez e falta de espontaneidade que con-
trasta fortemente com as escapadas rebeldes que se dão em seguida. Essa
primeira imagem das garotas como marionetes que embarcaram em um
jogo mortal sugere que o tema das duas Maries como protagonistas duplas
e a recorrência do jogo niilista estão interligados. A dialética de afirmação
e negação de validade, que se repete ao longo do filme no jogo do “Vadí?”
“Nevadí”, necessariamente exige que ele seja jogado por duas pessoas.
Conhecemos as duas garotas no meio da história, no exato momento em
que reconhecem seus status como bonecas e se comprometem, em segui-
da, com a indisciplina e com um questionamento indiferente sobre a exis-
tência. Nós, como espectadores, nada sabemos a respeito de suas vidas an-
teriormente. O prólogo nos apresenta nossas heroínas no instante de sua
decisão de vacilar entre uma afirmação de significado e uma futilidade ge-
neralizada (“Isso importa?” / “Não importa”), seja em referência ao “mundo
mau” ou as suas próprias ações “más”. O filme, que traça as consequências
do jogo das personagens, tem seu desfecho nesse jogo. Na última cena de
As pequenas margaridas, antes do epílogo, as garotas sabotam suas tentati-
vas autosatisfeitas de modificação, primeiramente refletindo alegremente
sobre a capacidade de ambas de “colocarem tudo em ordem” e concluindo,
mais uma vez, que essa conquista não tem importância. Marie 1 declara:
“Estamos realmente felizes com a verdade”. Quando Marie 2 responde “Mas
isso não importa”, o candelabro se aproxima delas e o jogo acaba.
A imagem da marionete permeia As pequenas margaridas e não se restrin-
ge às sequências do prólogo e do desfecho em que as Maries são retratadas
como fantoches, através do movimento estilizado e da qualidade mecani-
zada e rígida das marionetes e autômatos. A semelhança das duas protago-
nistas com as bonecas é fundamental para o resto da crítica alegórica do
filme sobre o vazio das aparências superficiais.
30 Hames, The Czechoslovak New Wave, 213, 211.
Bonecas fragmentadas 83
Magras, vibrantes e sempre elegantemente vestidas, as duas garotas ao
mesmo tempo evocam outro manequim: a modelo de moda. Várias cenas
em vestiários, assim como imagens espirituosas que parodiam abertamen-
te desfiles de moda, tornam óbvio esse aspecto da metáfora da boneca no
filme. Em uma sequência no campo, as duas Maries, recém-egressas da ci-
dade, aparecem emergindo de uma pilha de detritos. Em nenhum outro lu-
gar o brilho do design de produção de Krumbachová é tão evidente quanto
na vestimenta irônica das heroínas. Marie 2 é mostrada usando um cha-
péu gigantesco cuja aba suporta uma pilha de lascas de madeira. Ela faz
beicinho e poses, fazendo uma alusão incongruente aos extravagantes e
estranhos trajes de alta moda de forma inconfundível. Ao mesmo tempo,
vemos Marie 1 usando uma estola composta de arame de cerca, e uma rá-
pida montagem de planos fixos de moda, em que rostos de mulheres são se-
dutoramente ofuscados por lenços ou véus de malha, destaca a referência.
Mais tarde no salão de festas, onde as garotas cometem seus crimes mais
sérios, elas pisam de salto alto em um rico banquete, subindo e descendo da
mesa de jantar – transformada em uma passarela - em roupas improvisadas
que simulam um vestido de noiva branco e um vestido de cocktail diáfano.
Em tais cenas, o tema das bonecas e da destruição/consumo se encontram,
resultando em uma crítica alegórica aos prazeres fáceis das mulheres in-
fantis, alheias a considerações éticas.
Perto do meio do filme, as duas garotas regridem aos movimentos de ma-
rionete do prólogo. Em uma coreografia estilizada de pulos e arrasta pés,
pontuada por notas em staccato na trilha sonora, as duas personagens
encaram a câmera lado a lado, como no prólogo, aparentemente falando
uma com a outra, mas dando a impressão inconfundível de que a câmera
e os espectadores estão sendo diretamente endereçados. Entediadas com
suas vidas, elas perguntam: “Não devemos tentar outros lugares?” Você se
importa (Vadí?)” “Eu não me importo (Nevadí) ”, responde a outra. “Deve-se
tentar todas as coisas uma vez!”, afirmam em uníssono. A cena seguinte as
mostra no campo, roubando milho de fazendeiros e tentando, sem suces-
so, chamar a atenção dos trabalhadores. Abatidas por sua incapacidade de
despertar o interesse dos homens do povoado, elas sucumbem brevemente
ao desespero: “Eu pensei que tivéssemos evaporado no ar!” Seus espíritos
se animam quando encontram um monte de cascas de milho descartadas,
os restos das refeições que roubaram. “Nós existimos afinal!”
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84 Vera Chytilová
Essas sequências provinciais, bem como uma cena anterior em que as
meninas se arrependem de ter roubado gorjetas de uma atendente do ba-
nheiro feminino, são notáveis por serem as únicas em que as personagens
mostram qualquer autocrítica ou arrependimento. Em contraste com to-
dos os outros personagens secundários do filme, a atendente do banhei-
ro e os trabalhadores do campo são poupados de crítica ou desprezo. Ao
contrário dos homens que desejam as Maries para gratificação sexual, a
atendente as trata com gentileza e os trabalhadores do sexo masculino não
as percebem. Refletindo sobre esses episódios, as duas Maries questionam,
por vezes, seu próprio egoísmo e autoimportância, e essa crítica por parte
heroínas contém uma dimensão de classe implícita.
Como mencionei anteriormente, a representação da viagem das heroínas ao
vilarejo rural, em As pequenas margaridas, foi lida como uma referência ao
filme de formatura de Chytilová, Teto, no qual “o tédio da vida de modelo é
repetidamente enfatizado e visto de um ponto de vista feminista”. Em Teto,
a heroína rompe com a “rotina de se comportar como um manequim vivo
para a costureira”, desiste de sua “vida superficial e materialista” e pega o
trem para o campo31. Em certo sentido, As pequenas margaridas claramente
dá continuidade às preocupações satíricas do trabalho anterior de Chytilo-
vá. Chytilová, ela mesma uma ex-modelo de moda e desenhista antes de ser
aceita na FAMU, pode muito bem ter considerado a modelo de moda uma
cifra alegórica da superficialidade e do consumo excessivo, atributos que as
protagonistas duplas de As pequenas margaridas possuem em abundância.
Revendo as entrevistas de Chytilová, nota-se uma densidade conceitual em
sua descrição das protagonistas. Como diz Chytilová, “fizemos as meninas pa-
recerem bonecas ou fantoches desde o começo, porque era nossa intenção
deixar claro que não se tratava de um retrato psicológico. Isso não era real-
mente realista”. Pelo contrário, o filme é uma alegoria que espera que o espec-
tador olhe por debaixo da superfície: “Em um nível superficial, As pequenas
margaridas é a história de duas garotas, mas trata-se realmente de uma his-
tória existencial...A ideia é que toda ação humana tem base na ética e não há
absolutamente nada que façamos que não tenha uma dimensão ética”.32
31 Ibid., 207–8.
32 Chytilová, painel de discussão
Bonecas fragmentadas 85
Para Chytilová, as duas Maries são menos personagens do que ideias
interagindo: são cifras para “pseudovalores” e excessos materialistas. A
apresentação do filme das duas Maries como bonecas facilita essa aborda-
gem, uma vez que As pequenas margaridas, nas mãos da Chytilová, mobiliza
o peso semântico da figura da boneca como algo inautêntico em prol da crí-
tica social. As duas Maries assemelham-se mais a manequins superficiais
do que a pessoas completas, e isso lhes permite incorporar aquela “cons-
trição de significado” que caracteriza a “transformação do real em uma
abstração” própria da caricatura alegórica. Tem sido dito que “a caricatura
é alegórica em essência, já que se esforça para simplificar personagens no
que diz respeito a traços únicos e predominantes”33. Isso permite que as he-
roínas se afastem dos personagens completos da convenção realista, a fim
de alcançar a legibilidade iconográfica das ideias personificadas - as Maries
são, de diversas maneiras, meninas burguesas más que precisam de cor-
reção ou castigo, mulheres tão insípidas que são literalmente “manequins
vivas”, um exemplo da feminilidade infantilizada e das abstrações da figura
da Mulher como uma boneca. No entanto, para aqueles que apreendem As
pequenas margaridas como uma alegoria feminista, essas heroínas são cati-
vantes não apenas por sua capacidade de revelar a feminilidade como uma
farsa naturalizada, mas por seu jogo decididamente perverso e desnatura-
do com esses símbolos.
As pequenas margaridas oferece mais de uma possibilidade de leitura ale-
górica: reivindicar, como faz Chytilová, que a obra é uma crítica velada às
heroínas que os censores do estado foram muito obtusos para perceber;
ou, seguindo a exata interpretação que irritou os censores até sua conclu-
são radical, notar que o filme tem uma satisfação encoberta nas heroínas
que professa condenar. O julgamento do espectador sobre as duas Maries
é profundamente ambíguo, porque, como Chytilová afirmou, a metáfora da
boneca encoraja o espectador a ver as heroínas não como pessoas reais,
mas como tipos, transformando seus personagens em agentes alegóricos.
Em As pequenas margaridas, o achatamento do personagem em favor da
significação alegórica abre as portas para a incerteza semântica e para lei-
turas diferentes daquelas que as cineastas autorizam.
33 Fletcher, Allegory, 32–34.
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86 Vera Chytilová
Deste modo, seria um equívoco enxergar o tom narrativo em relação às
duas heroínas malucas única e constantemente como uma crítica mordaz.
Em vez disso, minhas próprias sessões do filme, assim como as reações de
outros espectadores, me levam a suspeitar que, embora o público esteja
ciente da insensibilidade e superficialidade das protagonistas, uma pode-
rosa simpatia pelas heroínas está em ação em outro nível. Em certas cenas,
nós realmente torcemos por nossas protagonistas más, mesmo porque suas
vítimas dificilmente são menos culpáveis do que elas, e os excessos das ga-
rotas muitas vezes operam inversões nos papéis de gênero patriarcais - in-
versões que os espectadores costumam achar ultrajantes e extremamente
prazerosas por esse mesmo motivo. A “acrimônia debochada” do filme em
relação à “maioria dos personagens masculinos” permite que ele seja inter-
pretado como uma sátira feminista.34 O relato de Hames sobre o riso femi-
nino provocado por As pequenas margaridas é novamente uma evidência
de uma nuance feminista poderosa:
As exibições ocidentais contemporâneas do filme são frequentemente acompa-
nhadas por risadas exclusivamente femininas. Igualmente, os espectadores mas-
culinos constantemente sentem uma antipatia pelas “heroínas” do filme. Essa di-
visão, sem dúvida, tem relação em parte com o fato de que o filme está de acordo
com o objetivo pretendido e, em parte, com um senso de humor que, por vezes,
é “percebido” apenas por metade da audiência. Além disso, as meninas não se
conformam aos estereótipos esperados por um público masculino...o socialismo
na Tchecoslováquia tendia a institucionalizar as desigualdades existentes entre
os sexos, e As pequenas margaridas certamente constitui um ataque a alguns
alvos identificáveis.35
O relato de Hames se assemelha à minha experiência pessoal ao assistir o
filme. Em minha primeira exibição, um espectador masculino preocupado
expressou suas objeções às protagonistas, as quais ele descreveu como
“garotas imaturas irritantemente infantis”. Mesmo assim, senti que sua
compreensível interpretação do filme - confirmando os estereótipos misó-
ginos sobre mulheres como criaturas vaidosas e frívolas - apenas roçavam
a superfície de um texto sutil cujas heroínas discutíveis s​​ ão paradoxalmen-
34 Skvorecky, All the Bright Young Men and Women, 108.
35 Hames, The Czechoslovak New Wave, 222.
Bonecas fragmentadas 87
te uma fonte de alegria para muitas mulheres. Em exibições posteriores e
conversas com outras pessoas, comecei a identificar os contornos de uma
recepção feminista particular em As pequenas margaridas. Essa recepção,
apenas uma das muitas leituras feministas possíveis, é caracterizada pelo
prazer obtido na capacidade das heroínas diabólicas de contestar as expec-
tativas de gênero, mesmo quando parecem defendê-las, e por uma leitura
alegórica dupla do filme que permite que a monstruosidade dessas meni-
nas indisciplinadas se apresente como poderosamente positiva para as mu-
lheres. Foi esse o primeiro vislumbre da dissimulação radical em relação à
performance de gênero de As pequenas margaridas que estimulou minha
análise do entrelaçamento da alegoria com a recepção feminista.
Eu discordo, no entanto, da sugestão de Hames de que o filme necessaria-
mente divide opiniões por gênero. Sustento que ambos os vetores de sig-
nificação podem ser simultaneamente aparentes para os espectadores. Por
exemplo, enquanto a leitura de uma escritora acerca do filme está de acordo
com a afirmação de Chytilová de que ele trata das questões filosóficas do
niilismo e do parasitismo, ela observa que As pequenas margaridas manifes-
ta uma “reconsideração do papel feminino convencional...Chytilová exaus-
tivamente leva em consideração os sintomas de toda a síndrome”36. A visão
dupla interpretativa provocada pela alegoria pode explicar a recepção fe-
minista ao filme. Uma crítica do sexo feminino escreve com apreço sobre o
“talento para o deboche” de Chytilová e observa: “a perspectiva da mulher
também era, obviamente, crucial para a visão de As pequenas margaridas,
um filme extraordinário em parte por conta do modo surpreendente com
que lida com as políticas sexuais e com as duas estranhas figuras femininas
em seu centro”37. Apesar do distanciamento com que as duas garotas são
percebidas e a aparente abordagem contundente à falta de escrúpulos das
personagens, o filme não pode ser compreendido como fundamentalmente
avesso a suas heroínas. Em vez disso, ele caracteriza habilmente o lugar das
mulheres (uma posição que é, em muitos aspectos, análoga à condição de
uma marionete ou manequim) na sociedade de sua época.
36 Yvette Biró, “Pathos and Irony in East European Films,” Politics, Art, and Commitment in the East
European Cinema, ed. David W. Paul (New York: St. Martin’s, 1983), 42.
37 Quart, “Three Central European Women,” 58.
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88 Vera Chytilová
Assim, em vez de conceber as heroínas exclusivamente no âmbito da pre-
tendida crítica de Chytilová a manequins femininos superficiais, estou
preocupada com o uso das bonecas no filme como simulacros idealizados
de uma concepção patriarcal de feminilidade. Eu interpreto As pequenas
margaridas como uma narrativa de bonecas recalcitrantes que percebem
os limites de sua posição e decidem exagerar suas características cons-
truídas, ao ponto de cometerem infrações severas contra o próprio esta-
blishment masculino, o qual estabelece os termos de sua subjetividade.
Sua estratégia não é abandonarem a condição de bonecas; em vez disso, as
duas Maries começam a usar sua feminilidade com toda a autoconsciência
e toda a hipérbole da máscara, de modo que passam da docilidade (a sua
flacidez no prólogo) ao confronto (daí seu trágico fim). O conto sobre bone-
cas que despertam para uma vida de subversão liga o filme de Chytilová e
Krumbachová a outros textos que exploram a figura da boneca na crítica
feminista, como os contos da ficcionista britânica Angela Carter e da escri-
tora latino-americana Rosario Ferré.
Bonecas em sátiras feministas
O conto de Rosario Ferré, The Youngest Doll, versa sobre uma mulher por-
to-riquenha que consegue escapar de seu casamento insatisfatório co-
locando em seu lugar uma boneca que se parece exatamente com ela. O
nome da história vem da prática de uma velha tia solteira de criar bonecas
cada vez mais realistas à imagem de suas muitas sobrinhas. À medida que
suas jovens pupilas se casam, a tia dá a cada uma delas uma “exuberante bo-
neca feita a sua imagem e semelhança”, com as palavras enigmáticas: “Aqui
está a sua Páscoa de Ressurreição”. Com a fortuna da família chegando
ao fim, a sobrinha mais nova se casa com um médico pretensioso que a vê
apenas como uma esposa troféu e explora seu pedigree aristocrático para
atrair uma crescente clientela de pacientes. Mas o médico prova ser tão
insensível quanto cínico, e no dia em que arranca e penhora as pupilas de
diamantes da boneca, ele destrói o último pingo de consideração que sua
esposa tinha por ele, assim como oblitera o único traço de diferença entre
sua noiva e a boneca. Logo em seguida, sua esposa diz a ele que a boneca foi
consumida por formigas. Vários anos depois, o médico, grisalho por conta
da idade, nota que a beleza de sua esposa parece impermeável ao tempo e
Bonecas fragmentadas 89
percebe que ela há muito tempo fez bom uso de sua “Páscoa de Ressurrei-
ção”. Ela conseguiu uma espécie de morte e ressurreição, embarcando em
uma nova vida, ao colocar, em seu lugar, o seu duplo de porcelana, a boneca
mais nova.38
O estudo cuidadoso de Ksenija Bilbija sobre esse texto situa a boneca de
Ferré em meio à representação de outros tipos de simulacros humanos,
como golens e ciborgues. Examinando a representação de duplos mascu-
linos e femininos no mito e na literatura, Bilbija descobre que tais duplos
funcionam de maneira diferente com base em dois fatores: seu próprio
gênero e o gênero de seus proprietários ou criadores. Enquanto os golens
masculinos, como Frankenstein, exigem igualdade com seus criadores, o
que frequentemente leva ao patricídio; a golem feminina não disputa tra-
dicionalmente a autoridade com seu proprietário, mas sim funciona como
uma “substituta sexual”.39
Ao contrário do golem masculino, a golem feminina tem seu corpo cuidadosa-
mente trabalhado e aperfeiçoado, enquanto sua alma/mente quase não recebe
atenção alguma. A sua função, consequentemente, não é se envolver em um
debate sofisticado com seu Demiurgo, mas agradá-lo sexualmente...No caso
de uma mulher, trata-se geralmente de uma menina que brinca com bonecas
e que, através do jogo, aprende sobre maternidade e outras atividades relacio-
nadas à esfera doméstica da vida. No entanto, no caso de um homem maduro,
ela cumpre o papel de uma substituta sexual e é altamente erotizada. Em am-
bos os casos, a boneca é um simulacro híbrido que repete indefinidamente a
imagem da mulher como objeto.40
Como a boneca mais jovem da história de Ferré, Marie 1 e Marie 2, em As
pequenas margaridas, epitomizam uma manipulação decididamente mali-
ciosa da iconografia da jovem mulher atraente como uma “boneca”. Em três
cenas de restaurantes distintas que pontuam o filme, vemos as garotas con-
vencerem homens ricos e idosos a pagarem por uma refeição extravagante,
38 Rosario Ferré, “The Youngest Doll,” Papeles de Pandora: The Youngest Doll, trad. Rosario Ferré e
Diana Vélez (Lincoln: University of Nebraska Press, 1991), 1–6.
39 Ksenija Bilbija, “Rosario Ferré’s ‘The Youngest Doll’: On Women, Dolls, Golems, and Cyborgs,”
Callaloo 17.3 (1994): 878–88.
40 Ibid., 881–82.
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90 Vera Chytilová
na expectativa de favores sexuais que as duas garotas sempre conseguem
se esquivar. Nesse tocante, elas se assemelham à boneca trapaceira de Fer-
ré, cujo estratagema proporciona à mulher um meio de fuga das exigências
matrimoniais opressivas. Em todas as três cenas de restaurante, a impostu-
ra das meninas é evidente no uso de nomes falsos - Marie 2 é Jirinko com um
homem velho e Marcela com outro, enquanto Marie 1, posando invariavel-
mente como irmã de Marie 2, atende pelo nome de Jarmila com um homem
e Julie com outro pretendente. As duas supostas irmãs encenam um drama
convincente (e hilariante para o espectador) em que Marie 1 descobre Ma-
rie 2 em um encontro com um homem mais velho e muito provavelmente
casado. Marie 2, visivelmente constrangida e receosa da desaprovação de
sua irmã, suplica silenciosamente a seu amante que convide a irmã descon-
fiada para compartilhar a refeição. Uma vez sentada, Marie 1 se aproveita
cruelmente de sua vítima, pedindo uma incrível quantidade de comida e
vinho em sua conta. Marie 2 finge vergonha pelo comportamento rude de
sua irmã, mas claramente se deleita com a brincadeira. As duas consomem
enormes quantidades de comida, sorrindo abertamente, enquanto seu pa-
trocinador inadvertido fica cada vez mais indignado.
Essas longas sequências, que fazem uso frequente de saltos, mudanças
abruptas no som e nas cores para expressar a duração interminável da
refeição, são enquadradas principalmente como um plano de três, em que
Marie 2 fica de frente para a câmera, enquanto os outros dois personagens
sentam-se de perfil em lados opostos a ela na mesa, cada um exercitando
suas reivindicações sobre a personagem. A composição acentua a situação
triangulada e enfatiza a trapaça, na medida em que vemos claramente a
troca conspiratória de olhares entre Marie 2 e Marie 1, assim como o seu
olhar de súplica para o homem mais velho. O pretendente acha Marie 1 de-
sagradável; ele fica furioso por ela comer demais às suas custas e de per-
guntar sobre sua idade exata ou se ele tem filhos. Em uma cena, Marie 1
interrompe o velho pretendente enquanto este acaricia Marie 2, espetando
sua mão com o garfo e perguntando: “Que idade tem a sua velha esposa?”
O papel entre as duas Maries nas cenas de restaurante é claro: Marie 1 é
escalada como a megera, enquanto Marie 2 é a donzela tímida. Ao sinalizar
para sua irmã, Marie 2 está animadamente alerta, mas quando responde ao
homem, ela fala com os olhos baixos, em silêncio e chocada com os excessos
Bonecas fragmentadas 91
de sua irmã. As cenas de restaurante terminam sempre com a pergunta: “A
que horas é o seu trem?”, enquanto as meninas se esforçam para se livra-
rem da sua vítima, a pretexto de ajudá-la a pegar seu trem na hora certa. As
sequências na estação de trem, que inevitavelmente seguem as cenas do
restaurante, são um deleite em sua inversão de clichês cinematográficos
sobre mulheres de coração partido vendo seus amados indo em bora em
um trem. Tipicamente, Marie 2 se despede de sua irmã acenando, enquanto
está no trem com seu pretendente aliviado, que acredita que sua provação
no restaurante será finalmente recompensada quando ele estiver sozinho
com a garota e for capaz de obter favores sexuais. As garotas frustram esse
plano repetidas vezes, com Marie 2 sempre conseguindo se juntar a Marie
1 quando o trem parte.
As cenas de restaurante e de trem, em que as meninas aparecem no auge
(ou nas profundezas) de seu parasitismo econômico e total falta de com-
paixão são, no entanto, prazerosas por conta da subversão das estratégias
usuais de sedução masculina. As duas irmãs, trabalhando em conjunto,
subvertem a história previsível do homem mais velho que trai sua esposa
com uma jovem ingênua, a quem ele trata apenas como um objeto sexual
a ser descartado após o uso. Em As pequenas margaridas, não são as jovens
ingênuas que são enganadas; em vez disso, os homens é que são ridiculari-
zados ao acreditarem, a todo tempo, estar sendo bem-sucedidos em seus
disfarces como jovens solteiros. Essa inversão de gênero aproxima As pe-
quenas margaridas de The Youngest Doll, que inverte o clichê sobre o pre-
tendente experiente que engana uma garota virginal. As garotas astutas
de As pequenas margaridas e The Youngest Doll percebem que seus preten-
dentes são incapazes de distinguir entre as mulheres em suas vidas e suas
fantasias limitadas de Mulher. É essa cegueira hegemônica que permite
que nossas heroínas provocadoras passem (e se passem) incólumes.
Cínica ao extremo, Marie 2 encarna perfeitamente (ou convincentemente
finge ser) a boa jovem que teme as consequências escandalosas de sua falta
de decoro, caso venha a público que ela teve um caso ilícito. «Ela dirá que
eu ando por aí com velhos!», ela lamenta a um pretendente, enquanto chora
em seu ombro esperando conforto do homem que acabou de insultar. Da
mesma forma, Marie 1 mostra-se impiedosa, indiferente às súplicas de seu
jovem pretendente, um colecionador de borboletas (a borboleta é “uma re-
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92 Vera Chytilová
ferência especificamente tcheca ao sexo”)41. Em uma cena, as duas Maries
ouvem o ardente clamor do jovem ao telefone, enquanto mordem e cortam
vários objetos fálicos. Enquanto o jovem romantiza sobre amor verdadei-
ro, as Maries, indiferentes, empanturram-se em um piquenique no quarto
encenado para comunicar um fluxo constante de piadas sobre castração
- salmouras, salsichas, bananas e ovos são fatiados, espetados, cortados, es-
faqueados e devorados, ao mesmo tempo em que o pretendente implora e
seduz. Assim como acontece com os homens mais velhos nos restaurantes,
o filme sugere alguma razão para a severidade das meninas em relação ao
jovem. O colecionador de borboletas é caracterizado como um sedutor que
corteja Marie 1 com platitudes poéticas, ao mesmo tempo em que revela
motivações não-cavalheirescas: ele finge uma birra de amante na esperan-
ça de forçar Marie 1 a tirar a roupa que acabou de colocar. Finalmente, ele
não consegue se conter e arranca grosseiramente a borboleta do quadro
que Marie usa para esconder sua virilha.
Indiferentes aos sentimentos de seus amantes, as duas heroínas lembram
Lady Purple, de Angela Carter, uma “prostituta por quem os homens se
prostituíam”42, e a terrível boneca de Rainer Maria Rilke, aquele “corpo
estranho por quem desperdiçamos nosso mais carinho mais puro”43. Para
Rilke, a sua boneca de infância era uma torturadora que permanecia cruel-
mente indiferente ao seu afeto. Em contraste, nas narrativas de Chytilová e
Carter, a boneca indiferente não é acusada por seu desdém aos amantes do
sexo masculino; em vez disso, As pequenas margaridas e The Loves of Lady
Purple têm certo prazer no fato de que a indiferença das mulheres, a sua
ausência de necessidade por homens, é finalmente mais aterrorizante para
seus pretendentes do que a ansiedade da castração.
A figura da boneca indiferente torna-se carregada de sátiras feministas,
porque subverte o cenário habitual, no qual homens obtém afirmação por
meio da atenção de uma jovem criatura encantadora. As heroínas são, até
41 Hames, The Czechoslovak New Wave, 218.
42 Angela Carter, “The Loves of Lady Purple,” Fireworks: Nine Profane Pieces (New York: Penguin,
1987), 32.
43 De acordo com Eva-Maria Simms, a escrita de Rilke revela uma aversão às bonecas, devido a sua
indiferença às afeições da criança [masculina]. Ver Simms, “ “Uncanny Dolls: Images of Death in Rilke
and Freud,” New Literary History 27.4 (1996): 670
Bonecas fragmentadas 93
certo ponto, confiantes em sua crueldade, uma vez que sabem que podem
sempre contar com seus pretendentes para reificá-las em símbolos – me-
geras ou donzelas - imediatamente legíveis ao patriarcado por mais des-
medidas que sejam suas ações. A astúcia ardilosa das personagens é que a
aparente legibilidade delas como ícones - uma garota tão bonita que parece
uma boneca ou uma jovem vazia facilmente enganada por platitudes ro-
mânticas - está profundamente em conflito com a utilização rebelde e sábia
desses símbolos.
Elegantemente trajadas com vestidos até o meio das coxas e com penteados
da moda, as duas jovens, bonitas e espirituosas Maries atraem amantes aos
montes porque parecem uma intensificação da Mulher, uma quintessência
da feminilidade erótica. As narrativas de bonecas frequentemente compar-
tilham essa concepção da boneca como uma destilação da feminilidade eró-
tica, e o enredo, muitas vezes, volta a sua atenção para questões de trans-
gressão sexual ou propriedade. Os homens desejosos nestas narrativas são
apaixonados por uma coisa (“Mulher”) totalmente diferente de sua masculi-
nidade, mas que ainda exige ser possuída como uma extensão de si mesmos.
Histórias de homens apaixonados pelas mulheres artificiais que criam são
essencialmente histórias sobre a obsessão por uma musa feminina que in-
corpora uma concepção inteiramente patriarcal de perfeição feminina.
The Loves of Lady Purple de Carter, a história de uma marionete que ga-
nha vida e mata seu mestre de fantoches, tematiza a circularidade do que
Judith Butler chama de “ficções reguladoras” de gênero. Lady Purple, uma
magnífica marionete em tamanho natural, é a estrela de uma peça sobre
uma prostituta tão cruel, amoral e lasciva que finalmente perde sua huma-
nidade e se petrifica na própria boneca que representa na peça. As tauto-
logias da história atingem o auge quando a boneca ganha vida, assassina
seu proprietário e sai em busca de um bordel. A ambivalência da história
em relação à Lady Purple se assemelha ao tratamento dado por As peque-
nas margaridas às duas Maries, na medida em que o célebre momento de
insurreição também é submetido a uma crítica da agência limitada da(s)
heroína(s): “Teria a marionete, a todo tempo, parodiado a vida, ou estava
ela agora viva, parodiando sua própria performance como marionete?”44
44 Angela Carter, “The Loves of Lady Purple,” 38–39.
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94 Vera Chytilová
A pergunta ressonante de Carter sobre a paródia de gênero prefigura as
palavras de Butler:“ A repetição paródica do original... revela que o original
não é mais do que uma paródia da ideia do natural e do original ”.45
Tanto em As pequenas margaridas como em The Loves of Lady Purple, as
mulheres se conscientizam de seu posicionamento como bonecas e se es-
forçam para reescreverem os termos de seus “eus” sexuais, em vez de tenta-
rem escapar completamente a essas invenções. Como Lady Purple, as duas
Maries são bonecas que despertam para rebelarem-se. A imagem de uma
marionete que se solta de suas cordas é especialmente potente em sátiras
feministas, porque a marionete é convencionalmente sempre um espaço
reservado para um “ator oculto”. Desprovida de agência, ela é o “local de
[uma] significação” que se origina a partir de outra pessoa, o marionetista
escondido nas asas46. Isso explica o fascínio da boneca recalcitrante como
uma figuração da ira das mulheres. Recusando as restrições dos interesses
patriarcais oclusos, as Maries não são apenas bonecas que aproveitam sua
própria “Páscoa de Ressurreição”, mas manequins em rebelião. Sob as Ma-
ries pode pesar a acusação de meramente se duplicarem, defendendo, des-
te modo, as próprias ficções que tentam expor, mas, como adverte Butler,
essa repetição é inescapável. Ela escreve:
O fato de os regimes de poder do heterossexismo e do falocentrismo busca-
rem incrementar-se pela repetição constante de sua lógica, sua metafísica e
suas ontologias naturalizadas não implica que a própria repetição deva ser
interrompida - como se isso fosse possível. E se a repetição está fadada a per-
sistir como mecanismo da reprodução cultural das identidades, daí emerge a
questão crucial: que tipo de repetição subversiva poderia questionar a pró-
pria prática reguladora da identidade? 47
A questão não é, portanto, se essas bonecas ganham vida para ensaiarem
suas velhas (im) posturas, mas como elas encenam e administram perfor-
mances de gênero que são derivadas e ainda assim contrárias às concep-
45 Judith Butler, Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity (New York: Routledge,
1990), 31.
46 Steve Tillis, “The Actor Occluded: Puppet Theater and Acting Theory,” Theatre Topics 6.2 (1996):
111–12.
47 Butler, Gender Trouble, 32.
Bonecas fragmentadas 95
ções hegemônicas. Na descrição de Carter de uma cena em um bordel,
nota-se um deslizamento deliberado entre as prostitutas enquanto mu-
lheres reais pagas para realizarem serviços sexuais e enquanto simulacros
inanimados de um ideal feminino. O trecho distingue entre suas “caracte-
rísticas reais” e a “abstração simbólica” de seus rostos pintados, contudo
borra as fronteiras entre eles, na medida em que as prostitutas estão deli-
beradamente posando como “ídolos imóveis”. Esse deslizamento prefigura
a própria transformação de Lady Purple de mulher para fantoche, da sábia
autoestilização de uma prostituta para o erotismo petrificado de um autô-
mato feminino:
Pelas ruas, as mulheres à venda, os manequins do desejo, eram exibidas em
gaiolas de vime para que os clientes em potencial pudessem passear por elas,
inspecionando-as nas horas vagas. Essas prostitutas elevadas permaneciam
imóveis como ídolos. Sobre suas características reais foram pintadas abstra-
ções simbólicas de vários aspectos do fascínio... os gestos dessas heterae eram
tão estilizados como se tivessem sido programados...cada uma era tão absolu-
tamente circunscrita quanto uma figura em retórica, reduzida pela disciplina
rigorosa de sua vocação à essência inominável da ideia de Mulher, uma abs-
tração metafísica da mulher que podia, mediante o pagamento de uma taxa es-
pecífica, traduzir-se instantaneamente em um esquecimento doce ou terrível,
dependendo da natureza de seus talentos.48
Nesse trecho, Carter denuncia o que permite que uma marionete seja con-
fundida com uma mulher (como em The Youngest Doll) e, inversamente, o
que permite que uma mulher passe por uma boneca (como em As pequenas
margaridas). A associação convencional entre bonecas e feminilidade não
decorre do espelhamento entre manequins e mulheres, mas da expectativa
de que as mulheres se moldem de acordo com as “abstrações simbólicas” do
fascínio feminino para se apresentarem conforme a essência inominável
da ideia de Mulher, uma abstração metafísica da mulher”, assemelhando-se
ao máximo a “manequins do desejo”. O caráter radical da apropriação femi-
nista da boneca como mulher figurativa é que a concepção aparentemente
autoevidente da mulher como algo dado (o caráter “natural” da feminili-
dade) revela-se como “tão absolutamente circunscrita quanto uma figura
48 Carter, “The Loves of Lady Purple,” 31. Ênfase minha
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96 Vera Chytilová
em retórica”. Em The Youngest Doll, essa percepção conduz ao subterfúgio
(uma mulher se deixa passar por uma boneca), enquanto em The Loves of
Lady Purple o deslizamento entre bonecas e mulheres permite que um
manequim desperte para a rebelião. Ambos os estratagemas – passagem e
confronto declarado - estão em ação em As pequenas margaridas.
A manipulação feminista das repetições de gênero em As pequenas mar-
garidas pode explicar por que as acusações contra as duas Maries, quando
vistas à distância, se voltam contra elas mesmas. Em vez de evocar o desejo
para disciplinar o desvio, o filme incita o apoio à má conduta das heroínas.
Em outras palavras, a conquista de As pequenas margaridas como alegoria
feminista reside em sua aparente capacidade de confirmar visões misógi-
nas, ao mesmo tempo em que estimula uma profunda acrimônia em relação
à ordem patriarcal. Além da reiteração subversiva do filme sobre a musa
feminina - as inocentes manequins de beleza infantil que se tornaram des-
trutivas -, o que é realmente extraordinário no filme é o modo através do
qual uma sensibilidade feminina positiva é alcançada pela representação
aparentemente monstruosa da Mulher como uma boneca predatória, vai-
dosa e autoindulgente. Paradoxalmente, a antimusa (a boneca diabólica),
nem maleável nem palatável, é frequentemente uma representação mais
eloquente e satisfatória das mulheres do que sua idealização (a dócil ma-
rionete). A política representacional de As pequenas margaridas não é de
positividade, mas de monstruosidade obstinada. Embora a narrativa con-
sidere suas heroínas de maneira dissociada, outro tipo de engajamento é
alcançado com e em prol das desajustadas.
Feminismo / Surrealismo: Colagem, Montagem e Fragmentação
Em As pequenas margaridas, a montagem disjuntiva, saltos, relações espa-
ciais instáveis, mudanças abruptas no tom da cor para fraturar tomadas
longas e um uso consciente de pontes sonoras e matches on action, a fim de
dar a impressão de que a diegese continua através de elipses temporais e
espaciais, oferecem ao espectador uma narrativa picaresca que, por vezes,
se aproxima da incoerência. Em uma sequência fantástica, as duas Maries
apontam suas tesouras uma para a outra em um jogo surpreendente. Uma
Marie perde o braço e, indignada, decapita o outro; depois, rindo, elas inten-
Bonecas fragmentadas 97
sificam o jogo e a imagem na tela se quebra em incontáveis fragmentos como
um quebra-cabeça, transformando seus corpos em inúmeros fragmentos di-
nâmicos e divertidos (apesar da fratura visual, a ação ainda é bem visível - as
garotas, aos risos, se perseguem ao redor do quarto e sobre a cama). 49
Essa cena é o culminar de uma série de sequências anteriores que enfati-
zam o corte (de papel, de comida) e a colagem. O apartamento das meninas
é transformado ao longo do filme, de modo que seu espaço e sua carga se-
mântica nunca são estáveis -​​ ele é alternadamente recoberto com folhas (um
jardim interno), rabiscado com números de telefone (um catálogo cheio de
velhos amantes) ou coberto com fotografias. Na altamente irônica cena de
piquenique que mencionei anteriormente, o espetar do picles, o cortar dos
ovos e o morder das salsichas são acompanhados pela música coral e pelo
som melodioso da voz de um jovem dirigindo-se a Marie 1. O colecionador
de borboletas implora: “Não seja má comigo agora que você sabe que eu te
amo....Agora eu sei o que significa o amor”. “Outro pedaço de carne”, Marie 2
comenta em um duplo sentido hilário. Marie 1, fingindo insensibilidade, faz
menção de enfiar o garfo no corpo de Marie 2, mas esta protesta e, em vez
disso, ambas saciam seu apetite recortando imagens de comida em papel. Al-
gum tempo depois, enquanto se banham em seu quarto, Marie 1 medita sobre
os acontecimentos da cena anterior, perguntando: “Por que alguém diz eu te
amo? Por que não “ovo”, por exemplo? ”, enquanto corta a foto de um homem
musculoso em uma revista, com a tesoura pausando em sua virilha.
Essas cenas relacionam os temas do corte e do consumo de As pequenas mar-
garidas (castração de homens e desmembramento de mulheres) às imagens
surrealistas da mulher como um louva-a-deus que devora seu companhei-
ro50. Para os surrealistas do sexo masculino, a “voracidade do louva-a-deus
fazia dele o símbolo perfeito da mãe fálica, fascinante, petrificante, castra-
49 Clouzot escreve: “O uso da técnica de animação, evidenciada no balé mecanizado de corpos des-
membrados voando por toda a tela quando as meninas se cortam, estabelece o ritmo cômico respon-
sável pelo humor em As pequenas margaridas.” Ver “Daisies”, 36
50 O louva-a-deus predatório encontra a elegante manequim na fotografia de 1937 da boneca de Mas-
son, de Raoul Ubac, Mannequin (1937), reproduzida como a figura 68 em L’Amour Fou: Photography
and Surrealism [(New York: Abeville, 1985), 76], de Rosalind Krauss e Jane Livingston, lançado junta-
mente com uma exposição realizada na Corcoran Gallery of Art (Washington, DC), de setembro a
novembro de 1985.
 ›
98 Vera Chytilová
dora”51. A caracterização das duas protagonistas como mulheres predató-
rias pode ser interpretada como correspondente à preocupação temática
e formal do filme com a separação e recombinação de elementos na forma
de colagens surrealistas e fotomontagem, evidenciada na justaposição ra-
pidamente editada de vários planos fixos que continuamente irrompem na
diegese. Em algumas dessas sequências aceleradas, o efeito da fotomonta-
gem é alcançado temporalmente por meio da edição conjunta de planos de
curta-duração em rápida sucessão (Chytilová lembra que alguns pedaços de
As pequenas margaridas foram editados quadro a quadro)52; em outras, esse
primeiro dispositivo de montagem temporal é ainda reforçado pelo fato de
que as imagens nas tomadas são colagens, aumentando assim o efeito frené-
tico. A impressão frenética cultivada nessas sequências rapidamente edita-
das prefigura o delírio da cena das meninas com as tesouras, na qual a forma
rápida e fraturada utilizada para interromper a diegese finalmente se torna
uma parte dela, enquanto fragmentos dos corpos das garotas tremem e sal-
tam através do enquadramento. A cena da tesoura foi caracterizada como
“correlativa ao estilo de edição do filme, em si uma montagem fragmentada”.53
Seria um erro, no entanto, alegar que o uso desses dispositivos formais no
filme meramente quebra relações entre objetos, locais, tempos e aconteci-
mentos. A colagem e a fotomontagem estão vinculadas por sua capacidade
de destacar elementos de suas relações habituais, a fim de conectá-los de
novas maneiras, de modo que o espaço entre coisas que se encontram em
estranha companhia é, ao mesmo tempo, o “espaço em comum de um en-
contro”54. André Breton descreveu as colagens de Max Ernst nestes termos:
O objeto externo havia se separado de seu ambiente habitual. Suas partes
componentes se libertaram do objeto de tal maneira que puderam estabelecer
relações inteiramente novas com outros elementos, escapando do princípio de
realidade e também ganhando certa importância no plano real (ruptura da
noção de relação).55
51 Krauss, “Corpus Delicti,” L’Amour Fou, 70
52 Chytilová, painel de discussão
53 Hames, The Czechoslovak New Wave, 217.
54 Linda Williams, Figures of Desire: A Theory and Analysis of Surrealist Film (Urbana: University of
Illinois Press, 1981), 11–12.
55 André Breton, “Genesis and Perspective of Surrealism in the Plastic Arts” [1942], What Is Surrea-
lism? Selected Writings, ed. Franklin Rosemont (New York: Pathfinder, 1978), 223.
Bonecas fragmentadas 99
A colagem recorre à fragmentação e à recombinação para configurar um
objeto desabituado, agora ajustado em novas relações semânticas, abrindo-
-o, assim, à significação disruptiva. Em As pequenas margaridas, pontes so-
noras, mistura de cores, edição rítmica e matches on action correlacionam
espaços divergentes e cronicidades ambíguas, de modo que maçãs verdes
em um jardim distante caem no quarto das meninas; cidade e vilarejo, sepa-
rados apenas por um frame, são playgrounds adjacentes para as heroínas;
e as duas Maries podem conduzir alegremente uma orgia alimentar em um
momento, e em seguida quase se afogarem em mar aberto.
Em seu estilo fílmico e também na ação narrativa da cena da tesoura, As
pequenas margaridas nos apresenta fragmentos que, vistos como uma
assemblage, são tão eloquentes quanto surpreendentes. Rosalind Krauss
escreve que as “lacunas enfáticas” entre os espaços são um pré-requisito
da significação na colagem e na montagem. Ambas as técnicas recorrem
à fragmentação porque “deixar as lacunas ou buracos ou espaços de uma
página em branco” destrói o realismo da fotografia e resulta em um “efeito
de linguagem”:
Normalmente, a fotografia está tão longe quanto possível de criar tal efeito...
Ao carregar em sua superfície contínua o traço ou a impressão de tudo o que
a visão capta em um único relance, a fotografia normalmente funciona como
uma espécie de declaração de uniformidade da própria realidade. É essa uni-
formidade que a fotocolagem interrompe, na tentativa de infiltrar a realidade
com interpretação, com significação... Convulsionar a realidade a partir de
dentro, mostrá-la como fraturada pelo espaçamento, tornou-se o resultado
coletivo dessa vasta gama de técnicas às quais os fotógrafos surrealistas re-
correram e compreenderam como produtoras das características do signo.56
56 Rosalind Krauss, “Photography in the Service of Surrealism,” L’Amour Fou, 28. A colagem e a mon-
tagem parecem ser usadas quase indistintamente por Krauss, mas o início de uma distinção histórica
(primeiramente, as colagens de Ernst e depois a montagem na fotografia de Man Ray) é evidente na
discussão de Williams, na qual ela situa a colagem e a montagem dentro do mesmo espectro de expe-
rimentos combinatórios que objetivavam situar objetos em novas relações entre si: “Nas colagens de
Ernst, objetos reais foram separados de seu ambiente costumeiro e recombinados em novas relações
com outros objetos. O resultado dessas recombinações foi o famoso département ou desorientação tão
típico da arte surrealista...O desenvolvimento de um procedimento combinatório similar na fotografia
foi um passo lógico após as colagens de Ernst. O uso que Ray Man faz dos processos de montagem em
seus “rayogramas” conferiu um efeito similar de département “(Williams, Figures of Desire, 11-12).
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100 Vera Chytilová
A colagem e a montagem surrealista empenharam-se para tornar as ima-
gens enfaticamente textuais e para destruir o aparente mimetismo do filme,
aproximando a imagem da palavra. A separação e recombinação da cola-
gem e da montagem produziram sintaxe linguística através do espaçamen-
to, fraturando a uniformidade do realismo e fazendo com que a imagem, an-
teriormente inteira, falasse a partir da separação dos signos linguísticos57.
Em mais de uma ocasião, as técnicas de Chytilová foram criticadas por sur-
realistas “ortodoxos”58. O ponto do meu argumento aqui não é estabelecer
Chytilová retrospectivamente como uma surrealista “encontrada” ou até
então não reconhecida, mas sim investigar sua utilização particular de téc-
nicas associadas ao trabalho surrealista - a desorientadora recombinação
de elementos fraturados e a exploração do choque e da surpresa para fins
de significação disruptiva.
Textos surrealistas canônicos e imagens de artistas masculinos das dé-
cadas de 1920 e 1930 (Man Ray, Max Ernst, André Breton e Hans Bellmer,
para citar alguns) foram acusados de misoginia por alguns, uma vez que os
dispositivos estéticos de fragmentação e distorção, visando à significação
provocativa, produziram, muitas vezes, imagens brutais de corpos de mu-
lheres mutilados ou desmembrados. Uma enorme quantidade de estudos
feministas sobre o surrealismo tem insistido no caráter de gênero do cor-
po sobre o qual as experiências surrealistas são realizadas59. A mulher é o
tropo surrealista mais difundido e o principal objeto do arsenal estético do
movimento. Não surpreende, portanto, que a fragmentação e a ruptura da
colagem visassem principalmente imagens de mulheres: “A prática de ex-
trair algo de seu contexto original para associá-lo a alguma outra imagem
similarmente descontextualizada foi metaforicamente percebida como um
defloramento sexual brutal, pura e simplesmente”60. As críticas feministas
57 Krauss, “Photography,” L’Amour Fou, 28.
58 Skvorecky, All the Bright Young Men and Women, 112.
59 Ver Rudolph E. Kuenzli, “Surrealism and Misogyny,” Surrealism and Women, ed. Mary Ann Caws,
Rudolph E. Kuenzli, and Gwen Raaberg (Cambridge: MIT Press, 1991), 23–25
60 Robert J. Belton, “Speaking with Forked Tongues: ‘Male’ Discourse in ‘Female’ Surrealism?” Surre-
alism and Women, 51.
Bonecas fragmentadas 101
têm acusado, portanto, as políticas sexuais patriarcais de frequentemente
sustentarem o léxico surrealista.61
Embora eu não concorde com a ideia de que imagens de violência contra
mulheres sejam necessariamente misóginas (como argumentei em relação
à cena das tesouras, uma certa violência em relação ao corpo das meninas
é representada para fins feministas em As pequenas margaridas), sinto que
a antipatia pelas mulheres é bastante evidente em bonecas que podem ser
instrutivamente contrastadas com as de Chytilová: as do surrealista Bell-
mer. Como disse Breton, as bonecas de Bellmer são imagens da “mulher
eterna, pivô da vertigem do homem...[como uma] adolescente62. ”Seus ta-
bleaux de bonecas de manequins sem rosto, mutilados, muitas vezes dupli-
cados, com seus membros faltando, grotescamente multiplicados ou bulbo-
samente enxertados uns nos outros em imagens de fecundidade obscena,
representam fantasias de desmembramento63. Essas fantasias malignas,
situadas nos corpos inexpressivos de bonecas em tamanho natural, foram
interpretadas como figuras da ansiedade da castração que acabam “miti-
gando o horror”, pois substituem o pênis, cuja ausência [em uma mulher] é
a causa do horror”. 64
Em minha opinião, As pequenas margaridas parece uma réplica radical à
animosidade em relação às mulheres encontradas nas bonecas de Bell-
mer. Assim como suas bonecas, as duas Maries são adolescentes duplas,
mulheres manequins que se envolvem no complexo de castração. No en-
61 Kuenzli destaca que a feminilidade do corpo que é mutilado é muitas vezes ignorada por histo-
riadores de arte excessivamente apreciativos: “Estes não são apenas ‘corpos’; eles são sempre figuras
femininas....a subjetividade sem forma produzida na fotografia surrealista é somente a subjetividade
feminina ”(Kuenzli, Surrealism and Misogyny, 23-25).
62 Breton, “Genesis and Perspective of Surrealism in the Plastic Arts,” What Is Surrealism? 229.
63 Ver, por exemplo, reproduções de obras de Bellmer em L’Amour Fou. Em particular, ver a figura
83, Doll (La Poupée), 1936/1949, e a figura 36, La Poupée, 1934. As bonecas de Bellmer, comparáveis à
imagem das duas Maries de As pequenas margaridas, estão na figura 23, Doll (La Poupée), 1935, e na
figura 24, Doll (La Poupée), 1935. Ambas mostram dois pares de pernas de meninas adolescentes sexu-
almente sedutoras, em sua elasticidade e, ao mesmo tempo, infantilizadas por seus sapatos e meias de
colegial. Os pares de pernas gêmeas estão unidos um ao outro, em vez de a torsos separados, resultan-
do em uma imagem impressionante de duplicidade e desmembramento monstruoso.
64 Krauss, “Corpus,” L’Amour Fou, 86
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102 Vera Chytilová
tanto, apesar de toda a sua semelhança com certos aspectos do trabalho de
Bellmer, elas aludem a esse vocabulário surrealista apenas para destruí-lo,
já que frustrariam as acusações lançadas por Rilke sobre a cruel indiferen-
ça das bonecas que nunca corresponderam ao seu afeto. Ao contrário das
femmes enfants de Bellmer, as Maries promovem cenários de castração,
mas não os mitigam. Isso porque o superinvestimento patriarcal no falo é
visto no filme com ironia e humor. A risada jocosa das duas Maries, enquan-
to cortam salsichas e roupas íntimas masculinas, não oferece nenhum con-
solo à perspectiva freudiana que concebe as mulheres fundamentalmente
em relação a sua ausência de pênis.
Muitas feministas investigaram as formas através das quais as mulheres
surrealistas reagiram à imagem da Mulher como musa no surrealismo (a
Mulher Automática da ecriture automátique, a femme-enfant, a femme sor-
cière e a femme-végétale, por exemplo)65. Madeleine Cottenet-Hage, em seu
estudo sobre a escrita surrealista feminina, questiona: “Como elas [mulhe-
res surrealistas] deveriam reagir a imagens do corpo feminino desmontado,
desmembrado, agredido, virado do avesso e recomposto para agradar às
mais loucas fantasias eróticas dos homens?...Sobre qual outro fundamento
se apoia o imaginário de seus próprios corpos, que, por vezes, parecem tão
similares, desordenados e frequentemente sujeitos a tanta violência?66
Um plano de corpo inteiro revela os corpos de nossas heroínas em sua hora
final, dispostas em uma mesa de banquete. As bonecas estão apavoradas,
olhando para o lustre prestes a desabar sobre elas. Amarradas com bar-
bantes em roupas feitas de jornais, ambas se assemelham a figuras de papel
machê e a assados de carne enrolados, exceto que elas estão longe de se-
rem inanimadas. A encenação de suas mortes é carregada de significado:
as duas garotas, desesperadas, estão lado a lado, como pratos duplos em
65 O que Madeleine Cottenet-Hage chama de “típica imagem surrealista masculina de ‘la femme vé-
gétale’ (o corpo da ‘amada’ está em uma cama coberta de grama)” é análogo às cenas do jardim-cama
em As pequenas margaridas, nas quais as duas Maries repousam em cima de uma cama coberta de
grama; a imagem surrealista das femme-enfant está em toda parte no filme, já que as Maries se deno-
minam garotas infantis ingênuas em corpos de mulheres jovens. Para mais informações sobre essas
imagens surrealistas de mulheres, ver Cottenet-Hage, The Body Subversive: Corporeal Imagery in
Carrington, Prassinos and Mansour,” Surrealism and Women, 76–77, 87–88; ver também Katharine
Conley, Automatic Woman: The Representation of Woman in Surrealism (Lincoln: University of Ne-
braska Press, 1996).
66 Cottenet-Hage, “The Body Subversive,” 76; see also Conley, Automatic Woman.
Bonecas fragmentadas 103
uma mesa de banquete, em um filme que enfatiza o consumo. Essa imagem
remete ao famoso assado do artista surrealista Meret Oppenheim, Ma gou-
vernante (1936), em que um par de sapatos femininos, brancos e com baba-
dos, é exibido como uma ave e servido em uma travessa, uma imagem reve-
ladora da feminilidade ofertada ao consumo67. É infligido a nossas heroínas
indomáveis um corretivo severo - a morte -, ainda que aqui o filme consiga
desestabilizar a lógica dessa punição. As duas Maries, vorazes comedoras
que esmagam os alimentos, são reduzidas a oferendas na mesa de jantar,
mas o desespero cômico em seus rostos sugere que elas nunca poderiam
ser palatáveis aos gostos convencionais.
As pequenas margaridas tem em comum com o trabalho de mulheres surrea-
listas o que Cottenet-Hage chama de “um redesenhar das representações
corporais tradicionais”. As obras de Gisèle Prassinos, Leonora Carrington
e Joyce Mansour contestam “o corpo simétrico, livre de excessos (de carne,
de movimento, de cor, de expressão), criando em vez disso “um corpo instá-
vel, feito de partes que podem ser desmontadas e recombinadas de maneira
fantasiosa...um corpo grotesco que põe em causa representações canônicas,
particularmente as do corpo feminino.
Tais imagens são radicais por conta da negação: “Elas apontam para uma ima-
gem ausente, a do corpo feminino harmonioso, jovem e castamente nu”.68
Os corpos indisciplinados das duas Maries, voando fragmentados pelo quar-
to, ecoam o repertório da colagem surrealista, mas transformam esse voca-
bulário estético, muitas vezes patriarcal, em prol do feminismo. Os corpos
lúdicos e grotescos das Maries contestam o corpo da Mulher canônica. Com
seus rostos de boneca jovens, contudo infantilizadas, as Maries nos atraem,
67 As Maries embrulhadas em jornais também lembram a Boneca de Bellmer (La Poupée), de 1934,
cujo rosto e corpo são obscurecidos por um gesso de papel machê, reproduzido como figura 76 em
L’Amour Fou. Renée Riese Hubert escreve sobre Ma gouvernante: “O assado feito de dois sapatos, em
vez de uma perna, é apresentado com cordas e folhos de papel....O artista problematiza o feminino sem
se referir diretamente a um corpo e muito menos a um rosto....Reduzidos ou elevados ao papel de um
assado recém-saído do forno, os sapatos dessas moças estão prontos para serem devorados pelos con-
sumidores (Hubert, “From Déjeuner en fourrure to Caroline: Meret Oppenheim’s Chronicle of Surrea-
lism,” Surrealism and Women, 39). A descrição de Hubert de uma instalação que não pude ver, Le Fes-
tin de Oppenheim - em que um manequim é esticado em uma toalha de mesa sob olhares masculinos,
situando em um mesmo espaço a comida e o corpo da mulher, a fome e o desejo - sugere que este plano
em As pequenas margaridas também se assemelha fortemente a esse trabalho. Ver Hubert, 40
68 Cottenet-Hage, “The Body Subversive,” 92.
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104 Vera Chytilová
inicialmente, com sua semelhança quase perfeita ao ideal patriarcal, apenas
para fraturar, desmembrar e cortar esses corpos, forjando novas significa-
ções que contrariam a corporeidade de gênero.
A pergunta de Cottenet-Hage acerca da carga semântica diferencial que
imagens de corpos de mulheres cortadas podem ter no trabalho de uma ar-
tista do sexo feminino é particularmente relevante para As pequenas mar-
garidas. O tropo da segmentação corporal no filme começa, primeiramente,
com piadas de castração que representam literalmente as ansiedades mas-
culinas sobre a mulher predatória, mas progride para a atomização corpó-
rea das próprias protagonistas - o corpo feminino primeiro se fragmentou
e depois se reconstruiu.
Conclusão
Esse estudo seguiu várias linhas de pesquisa em relação a As pequenas mar-
garidas. Dadas às restrições da indústria cinematográfica tcheca naciona-
lizada dos anos 1960, Chytilová alegou que o filme funcionava como uma
denúncia disfarçada de suas heroínas, duas mulheres jovens não positivas,
antiéticas e egoístas que se deparam com um final justo, embora terrível.
No entanto, esse didatismo declarado não é tudo o que se vê: As pequenas
margaridas permite uma visão alternativa que defende, com grande delei-
te, a indisciplina provocadora das heroínas que o filme parece depreciar.
Essa nuance irônica do filme, cujo potencial para críticas radicais tanto
alarmou os censores socialistas, é precisamente a leitura que tentei elabo-
rar e resgatar. Eu argumentei que a duplicidade de As pequenas margaridas
decorre de sua estrutura alegórica; crucialmente, o uso de bonecas como
cifras alegóricas do materialismo superficial e voraz abre caminho para
outra leitura do filme do ponto de vista de um humor feminista satírico. Os
estratagemas por meio dos quais a semelhança percebida entre mulheres
e bonecas é explorada impiedosamente pelas duas Maries estão no centro
da gozação do filme acerca da masculinidade cega.
Nas narrativas sobre bonecas de Chytilová, assim como nas de Ferré e Car-
ter, a metáfora da boneca é readaptada como uma artimanha feminista,
uma gozação a respeito das expectativas patriarcais de que uma mulher
Bonecas fragmentadas 105
parecida com uma boneca seja uma espécie de manequim vivo, erotica-
mente atraente e infantilmente vulnerável. Em tais narrativas, a boneca
fornece uma estrutura de passagem altamente convincente e uma via para
a subversão, permitindo que as mulheres posem como subordinadas se-
xuais ingênuas a seus amantes masculinos facilmente manipuláveis, e en-
tão consigam renegar os termos dessa dinâmica convencional através de
uma repetição subversiva das ficções regulatórias de gênero. A repetição
exagerada do ideal de gênero encarnado na boneca rompe com o aparen-
te caráter absoluto da Mulher. É por isso que a monstruosidade de nossas
protagonistas bonecas, longe de confirmar estereótipos misóginos, acaba
fomentando uma espécie de visão perspicaz sobre os interesses patriarcais
oclusos presentes em uma concepção essencialista de feminilidade. A te-
mática feminista de As pequenas margaridas é aprofundada por técnicas
formais de colagem e montagem, dispositivos surrealistas postos a serviço
de categorias de gênero aparentemente naturais e universais em disputa.
A impossibilidade de uma feminilidade unitária e imanente se manifesta
de forma mais potente naquelas cenas em que o próprio corpo feminino é
fragmentado e recombinado de maneiras inventivas e incongruentes.
Em vez de interpretar a representação da instabilidade corpórea em As pe-
quenas margaridas como uma representação da violência contra as mulhe-
res, eu diria que o uso do corte, da colagem e da fragmentação corporal no
filme é consistente com uma alegoria feminista que pretende perturbar a
uniformidade das ficções de gênero. A ação da diegese, que relata as faça-
nhas das várias imposturas das duas garotas - por vezes tímidas, estriden-
tes, mimadas, afetuosas ou cruéis - ecoa a fragmentação da colagem, uma
vez que as meninas performam fragmentos de feminilidade de tal modo
que as bordas ficam expostas.
A ingenuidade de uma mulher jovem e casta, acolhida por um homem
mais velho e desonroso, é inteiramente descontínua com a figura da “de-
voradora de homens” que se farta com gostosuras penianas enquanto seu
amante sofre. Os traços discrepantes dentro de cada uma das protago-
nistas duais são, portanto, análogos a uma colagem na qual reproduções
de performances de gênero díspares são coladas juntas. Essa miscelânea
de atributos femininos abole a integridade da mulher. Na narrativa de As
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106 Vera Chytilová

pequenas margaridas sobre bonecas indisciplinadas que mimetizam para

transgredir, o tema de corpos, narrativas, espaços e tempos fraturados e
refabricados reforça uma alegoria de gênero que estilhaça o espelho e fo-
tografa a reflexão resultante.

Este artigo é dedicado às duas pessoas com as quais eu mais amo assistir filmes: Joel Da-
vid, cujos sábios olhos detectam mais do que os meus podem ver, e Lauren Steimer, cujas
respostas afiadas sempre esclarecem meus próprios pensamentos oclusos. Tenho uma dí-
vida de gratidão com vários amigos e colegas: sem o encorajamento e a orientação de Jean
Gallagher e Chris Straayer nos estágios iniciais deste projeto, este ensaio não teria sido
concluído. Os mais profundos agradecimentos também a Richard Peña, em cuja aula sobre
cinema do Leste Europeu encontrei, pela primeira vez, Daisies; à Roger Hallas, cuja consi-
deração me deu a chance de estudar o filme de perto; à Ed Baluyut, que gentilmente ajudou
na tradução da entrevista; e à Carol Hau, que me deu minha primeira e muito apreciada
cópia de “The Loves of Lady Purple” há tantos anos atrás. Sou muito grata a Terry Geesken
e ao Museum of Modern Art Film Stills Archive por sua ajuda na obtenção das imagens
para este artigo. E sou profundamente agradecida a Patricia White por sua gentileza e
perspicácia - seus comentários aprofundaram e orientaram esse ensaio.
 Fruto do paraíso 109

Fruto
O filme vanguardista da Nouvelle Vague Tcheca Fruto do paraíso (Ovoce
stromu rajských jíme, 1970), tem deixado, com frequência, até mesmo pla-
teias de admiradores sem saber o que dizer. Estilizado, irreverente e icono-

do paraíso
graficamente ambíguo, o filme chegou fora de sintonia, tanto em sua estreia
na Tchecoslováquia, durante a repressão pós Primavera de Praga, quanto
em um circuito internacional de festivais2 nada acolhedor. Fruto do paraíso
suscitou conexões equivocadas plurais e duráveis, mas também mutáveis: o

(Ovoce stromu rajských jíme, 1970) filme frustrou as expectativas de seu público inicial no Oriente e no Ociden-
te, e continua a confundir os espectadores mais de quatro décadas depois,
de Věra Chytilová: Um conto sobre ainda que de novas maneiras. Segundo nossa experiência, os espectadores
atuais de Fruto do paraíso comumente o descrevem como belo e ousado,
uma estética feminina, cores dançantes um banquete visual, por assim dizer, mas depois o relegam como o irmão
e uma boneca que mata o diabo1 mais fraco de As pequenas margaridas3 (Sedmikrásky, Tchecoslováquia), o
mais conhecido filme de Chytilová, lançado em 1966. Ao contrário de tal
consideração gentil, gostaríamos de sugerir que a curiosa indigestibilidade

Iveta Jusova de Fruto do paraíso talvez esteja profundamente enredada a outras carac-
terísticas que o tornam notável e fascinante. Aqueles que estão simples-

e Dan Reyes mente à procura de uma sequência da sensibilidade feminista dissidente

da Nouvelle Vague Tcheca, encontrada por muitos em As pequenas marga-
ridas, têm geralmente se frustrado com Fruto do paraíso. Com As pequenas

2 Fruto do paraíso foi escrito e produzido entre 1967 e 1969, contemporaneamente ao breve desabro-
char e após a supressão ainda mais rápida da Primavera de Praga. Coproduzido pelo Estúdio estatal
tchecoslovaco Barrandov e pelo belga Elisabeth Films Bruxelles, o filme foi uma colaboração entre Věra
Chytilová (diretora e roteirista), Ester Krumbachová (roteirista e figurinista), Jaroslav Kučera (operador
de câmera, diretor de fotografia e marido de Chytilová na época) e atores do experimental Studio Ypsi-
lon (Jitka Nováková, Jan Schmid e Karel Novák). Zdeněk Liška, um célebre compositor tcheco, escreveu a
trilha sonora do filme. Os copatrocinadores belgas viabilizaram a inscrição de Fruto do paraíso no Festi-
val de Cinema de Cannes de 1970, embora este tenha obtido uma recepção decepcionante por lá.

1 Publicado originalmente em Camera Obscura 29 (Volume 3, Number 87), 2014. Tradução de 3 As Pequenas margaridas, também coproduzido por Krumbachová e Kučera, há muito tempo é re-
Joana Negri. Copyright, 2014, Camera Obscura. conhecido por estudiosas feministas por sua subversão impetuosa dos papéis tradicionais de gênero.
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110 Vera Chytilová
margaridas e sua insolência gritante e sem reservas de uma feminilidade
juvenil totalmente desinteressada em submeter-se às expectativas do esta-
blishment, Chytilová convida à reflexão como uma provocadora feminista,
mesmo resistindo a tal rótulo. Na superfície, parece menos provável que
Fruto do paraíso desperte a mesma impressão. Ainda assim, as implicações
político-culturais de gênero nos parecem não menos profundas em Fruto
do paraíso, e tais implicações talvez sejam mais complexas pelo modo como
se entrelaçam em uma obra que faz uso de seu mais completo vocabulário
sensorial e tonalidade emocional. Enquanto em As pequenas margaridas a
indignação feminista atinge o espectador como um grande lustre de cris-
tal sobre a sua cabeça, em Fruto do paraíso as implicações feministas são
mais sutilmente tecidas no fluxo das intensas experiências sensuais - tanto
visuais quanto musicais - que o filme produz. Uma vez que Fruto do paraí-
so é altamente expressivo e profundamente investido em experimentação
estilística e funciona, em grande parte, produzindo impressões sensoriais
potentes, argumentamos que um dos efeitos distintivos do filme é a repre-
sentação da diferença feminina de uma maneira cinematograficamente
única, vívida e multidimensional. Fruto do paraíso produz uma estética
feminina-feminista singular que, acreditamos, permite a leitura do filme
como uma versão cinematográfica da écriture féminine. Aplicando teorias
da diferença sexual, exploramos algumas das formas através das quais essa
estética feminina é representada e moldada por meio da cinematografia
experimental, do figurino e da cenografia cuidadosamente concebidos no
filme e de seu estilo de atuação deliberadamente ingênuo. Consideramos o
uso das cores por parte das cineastas particularmente digno de nota e ar-
gumentamos que a experimentação cromática de Fruto do paraíso sugere
intrigantes implicações de gênero para o campo da cor.
Feminismo com qualquer outro nome
O trabalho de Chytilová tem sido frequentemente rotulado como feminis-
ta, muitas vezes contra seus próprios desejos, inclusive em temas que não
guardam investimento aparente em questões de gênero. Em GEN (Galerie
elity národa) (Gallery of the Nation’s Elite, Česká televize, 1993), por exemplo,
uma série de documentários televisivos sobre a vida de tchecos influentes,
Chytilová foi apresentada de um modo que traduz a popular compreensão
Fruto do paraíso 111
tcheca acerca do feminismo: “Embora considerada uma feminista, ela tam-
bém é uma mãe amorosa.”4 Mais pertinentes aos nossos propósitos são as
explorações acadêmicas sérias, sutis e convincentes sobre o trabalho de
Chytilová a partir de perspectivas de estudos de gênero bem fundamen-
tadas, realizadas por Dina Iordanova, Petra Hanáková e outras. Uma nova
geração de críticas de cinema feministas e pesquisadoras que abordam o
cinema da Europa centro-oriental adquiriu importância e, dentro de seu
discurso crítico, As pequenas margaridas é celebrado como um “comentário
crítico sobre a cultura convencional dominada por homens”5, uma alegoria
feminista6, um filme que explora o desejo feminino rebelde e que gerou “fis-
suras subversivas”...no auge da Nouvelle Vague masculinizada.”7
Ao defender a relevância do gênero no trabalho de Chytilová, é importante
notar — e se possível apreciar — o que serve de base para o desconforto
que a diretora expressou em relação a seu relacionamento com tais pontos
de vista e rótulos. Chytilová refutou por muito tempo qualquer associação
com o feminismo, e ela o fez de modo particularmente vigoroso em uma
entrevista ao Guardian, em 2000. Kate Connolly, a entrevistadora, escreve:
Então, será que Chytilová se considera uma feminista e, em caso afirmativo,
como isso afeta seu cinema? “O seu jornal é sério?” Ela olha por cima de seus
grandes óculos escuros. “Você faz perguntas sem sentido e primitivas.” Cada
vez mais irritada, ela explica que não acredita no feminismo em si, mas no indi-
vidualismo. “Se há algo que você não gosta, não cumpra as regras – quebre-as.
Eu sou uma inimiga da estupidez e do simplismo em homens e mulheres e eu
purifiquei meu espaço de vida disso.”8
4 Martin Komárek, Jan Lipold e Roman Gallo, “Věra Chytilová”, em GEN: 100 Čechu˚ dneška (podle
TV projektu Fera Feniče) [GEN: 100 contemporary Czechs (baseado em um projeto para televisão de
Fero Fenič)] (Prague: Fischer, 1994), 148. Todas as traduções de fontes tchecas neste artigo foram rea-
lizadas por Iveta Jusová.
5 Malgorzata Radkiewicz, “Angry Young Girls: Gender Representations in Věra Chytilová’s Sedmi-
krásky and Pasti, pasti, pastičky,” Kinoeye 2, no. 8 (2002), www.kinoeye.org/02/08/radkiewicz08.php
6 Bliss Cua Lim, “Dolls in Fragments: Daisies as Feminist Allegory,” Camera Obscura, no. 47 (2001):
37–77.
7 Petra Hanáková, “Voices from Another World: Feminine Space and Masculine Intrusion in Sedmi-
krásky and Vražda ing. Čerta,” em East European Cinema, ed. Aniko Imre (New York: Routledge, 2005), 64.
8 Kate Connolly, “Bohemian Rhapsodist,” Guardian, 10 de Agosto de 2000, www.guardian.co.uk/
film/2000/aug/11/culture.features2
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112 Vera Chytilová
Notando uma relutância semelhante em aceitar o rótulo feminista em mui-
tas outras cineastas do Leste Europeu, cujo trabalho é claramente crítico
às relações tradicionais de gênero e busca subvertê-las, Iordanova comen-
ta acerca de “uma situação que nos deixa diante do curioso fenômeno de
cineastas feministas evidentemente comprometidas que, no entanto, resis-
tem em serem vistas como tal.”9
Existem várias razões legítimas que explicam a relutância de Chytilová ao
feminismo, que vão desde a pragmática da sobrevivência na indústria cine-
matográfica até as implicações sutis que o rótulo tende a carregar através
das fronteiras culturais. As mulheres tchecas têm um longo histórico de
encontros, por vezes infelizes, com feministas ocidentais tecendo suposi-
ções ofensivas sobre suas supostas irmãs do antigo bloco oriental. Em seu
clássico ensaio polêmico de 1998, “Why We Resist Western-Style Femi-
nism” (“Por que resistimos ao modelo ocidental de feminismo?”), Jiřina Ši-
klová escreve especificamente sobre as percepções tchecas do feminismo
ocidental e suas consequências para o feminismo tcheco. Ela considera os
efeitos da percepção de uma suposta posição de superioridade intelectual
com que as feministas ocidentais têm frequentemente abordado as mu-
lheres tchecas, especialmente nos anos 90; de um mal-estar das mulheres
tchecas a respeito da agressividade percebida e suposta atitude antimas-
culina do feminismo ocidental, consideradas irrelevantes num cenário em
que homens e mulheres lutavam contra o sistema social opressor; de uma
relutância das mulheres tchecas em relação à expectativa dada como certa
de que adotem conceitos prontos provenientes de um contexto linguisti-
ca e culturalmente estrangeiro; e da desconfiança geral pós-1989 acerca
de todas as ideologias e ismos10. Acrescentando à lista de Šiklová, Jiřina
Šmejkalová nos lembra da cobertura acrítica da imprensa tcheca de 1989
quanto aos preconceitos chauvinistas de alguns pesquisadores imigrantes
tchecos que, retornando do exílio na época, rotineiramente falavam do fe-
9 Dina Iordanova, Cinema of the Other Europe: The Industry and Artistry of East Central European
Film (London: Wallflower, 2003), 123.
10 Jiřina Šiklová, “Why We Resist Western-Style Feminism,” Transitions 5, no. 1 (1998), www.tol.org/
client/article/4975-why -we-resist-western-style-feminism.html.
Fruto do paraíso 113
minismo com zombaria, deboche e escárnio, gerando equívocos na consci-
ência cultural tcheca que se revelaram difíceis de eliminar.11
Independentemente de qualquer uma das situações acima ser capaz de
explicar a relutância da própria Chytilová de conceber seu trabalho como
feminista, contextualizar o rótulo feminista é relevante para nossa discus-
são acerca de como ela trata questões de gênero em sua obra. Escolher ou
recusar identificar-se como feminista é, naturalmente, diferente de traba-
lhar de forma criativa da perspectiva de uma mulher em busca de alcan-
çar o pleno potencial de sua voz em um campo e cultura dominados por
homens. É evidente em sua biografia que, nos anos 1960, Chytilová estava
claramente ciente do impacto das expectativas tradicionais de gênero em
sua própria vida e que lutou contra elas conscientemente. Tendo começa-
do sua carreira no cinema como assistente de set, Chytilová percebeu que,
ao contrário de seus colegas do sexo masculino, ela nunca poderia aplicar
suas próprias ideias na produção dos filmes. Essa constatação impulsionou
sua determinação em estudar na Film and TV School of the Academy of
Performing Arts (FAMU), em Praga: “Claro, eu pude ver ao meu redor que
os assistentes estavam se graduando para dirigir...mas com as mulheres
isso estava fora de cogitação.”12 Sua autobiografia de 2010, escrita com To-
máš Pilát, também sugere que, embora estivesse pronta para lutar contra
as expectativas convencionais de gênero que impediam seu potencial cria-
tivo, ela foi capaz de tirar partido delas em outras ocasiões. “Vocês falam
tanto sobre as mulheres e sobre a importância da maternidade para nossa
sociedade. Bem, eu sou uma mulher e uma mãe, então me deixem traba-
lhar!”, ela argumentou publica e veementemente, quando foi impedida de
produzir novas obras após 196913. Contudo, sua situação só começou a mu-
dar em 1975, o Ano Internacional da Mulher das Nações Unidas, em parte
11 Jiřina Šmejkalová, “Strašidlo feminismu v českém ‘porevolučním’ tisku: Úvaha, doufejme, histori-
cká” [Monster of feminism in Czech “postrevolutionary” media], em Žena a muž v médiích [Man and
woman in media], ed. Hana Havelková and Mirek Vodrážka (Prague: Gender Studies, 1998), 17.
12 Citada em Galina Kopaněvova, “Když se řekne Věra Chytilová” [When we say Věra Chytilová], Fil-
ma a doba 47, no. 1 (2001): 9.
13 Věra Chytilová e Tomáš Pilát, Věra Chytilová zblízka [Věra Chytilová em close-up] (Praga: Nakla-
datelství XYZ, 2010), 175–76.
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114 Vera Chytilová
em resposta a um apelo enviado ao presidente da Tchecoslováquia, Gustáv
Husák, pelo comitê francês do Festival of Women’s Authors que permitiu
que Chytilová participasse do festival. O próximo filme que Chytilová teria
permissão para dirigir, O jogo da maça (Hra o jablko, 1977), lidava com as
questões reconhecidamente femininas do parto e do aborto.
As questões de gênero desempenharam um papel central não apenas nos
primeiros filmes de Chytilová, mas também em sua vida e carreira ao longo
da década de 1960, tanto na forma de obstáculos impostos a ela como uma
mulher talentosa e determinada à procura de desenvolver seu potencial
em uma sociedade impregnada de expectativas de gênero convencionais,
quanto na forma de (possíveis) vantagens e aberturas (latentes) inscritas
na retórica socialista oficial da igualdade de gênero. Ao analisar o conjunto
da obra cinematográfica de Chytilová, suas próprias observações e inter-
pretações que aparecem, de forma alternada, entusiasticamente a favor ou
ceticamente contra a adequação a um rótulo feminista, o que talvez seja
negligenciado é a real complexidade da vida e da cultura vivida. A recusa
ocasionalmente raivosa de Chytilová em ser categorizada como feminista
parece se referir ao que é ofuscado quando declaramos ser apenas uma coi-
sa e indica sua preocupação com a negligência potencial de outras questões
sobre as quais ela se importava profundamente. A fim de abordar as limita-
ções com as quais se confrontou de um modo que permitisse uma libertação
polissêmica nos níveis artístico, pessoal e sociopolítico, parece que Chytilo-
vá julgou necessário resistir à redução a qualquer rótulo descritivo.
Fruto do paraíso
Fruto do paraíso foi concebido, escrito e produzido entre 1967 e 1969 - pou-
co antes, durante e imediatamente após a invasão da Thecoslováquia pelos
exércitos ostensivamente amigáveis do Pacto de Varsóvia, em agosto de
1968. O filme ainda tinha permissão para ser concluído, e foi lançado nos
cinemas da Thecoslováquia em 1969. Nas palavras de Chytilová, “Eles não
proibiram, porque ninguém o entendeu”. Chytilová recorda a confusa rea-
ção do público de Cannes ao filme, em 1970, explicando: “Os jornalistas per-
guntavam sobre o que exatamente se tratava o filme e o que havia aconteci-
do com meu estilo. E eu já não podia me expressar e me explicar livremente”.
Fruto do paraíso 115
Esta deve ter sido uma experiência frustrante para a diretora, especialmen-
te porque contrastava com os elogios que críticos internacionais haviam te-
cido a As pequenas margaridas. Em sua autobiografia, Chytilová, novamente
livre para se expressar, explica Fruto do paraíso da seguinte forma:
É uma história de amor, amizade e traição, construída em torno de um triân-
gulo de casamento clássico...Escrevemos o roteiro com Ester, como sendo uma
alegoria sobre o Paraíso, do qual fomos banidos porque descobrimos a verda-
de...Ester sugeriu que poderíamos basear o enredo em uma história real sobre
um assassino de mulheres que saiu no jornal. Ela achou que poderíamos utili-
zar esse enredo básico para examinar questões mais amplas sobre verdade e
mentira, amizade e traição, que preocupavam a sociedade em 1968.
Em uma entrevista de 1967 à Antonín J. Liehm (publicada pela primeira vez
em 1974), Chytilová falou sobre o roteiro - de autoria principalmente de
Ester Krumbachová, segundo a entrevista - como “o primeiro que eu gosto
muito”14. E sobre o que se tratava o roteiro nessa fase, de acordo com Chyti-
lová? Enfatizando que um produto final poderia acabar distante do ponto de
origem de um projeto, Chytilová respondeu: “Grosso modo, trata-se de uma
luta desigual entre homem e mulher. Acima disso, está a questão de saber se
alguém pode suportar a verdade ”(269).
É notável que Chytilová, em ambas as ocasiões, descreve o filme como uma
obra que envolve questões de gênero, enquanto ao mesmo tempo diminui
o peso desta interpretação, sugerindo que a mesma constitui apenas o pri-
meiro nível imanente do significado do filme. Chytilová reconhece que a
batalha dos sexos compõe o enredo básico. Mas, de acordo com os comen-
tários da cineasta, uma obra de arte precisa transcender o nível superficial
imediato e alcançar outra dimensão mais abstrata, evitando limitar-se a
um lugar comum banal. Embora se possa confundir as implicações sexistas
dessa linha de pensamento, que sugere que a realidade do patriarcado é
óbvia demais para constituir a essência da verdade ou mesmo o próprio
objeto de investigação, essa visão precisa ser considerada no contexto cul-
tural tcheco. Nesse contexto, as vozes e as histórias das mulheres têm sido
14 Antonín J. Liehm, Ostře sledované filmy: Československá zkušenost [Closely watched films: The
Czechoslovak experience] (Prague: Národní filmový archív, 2011), 267.
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116 Vera Chytilová
tradicionalmente mobilizadas para expressarem as aspirações de toda a
comunidade nacional, especialmente nos momentos em que as ambições
políticas da comunidade não podiam ser articuladas abertamente.
Remontando ao século XIX e à luta nacionalista tcheca contra a domina-
ção austro-húngara, os autores tchecos costumavam projetar o anseio da
nação por liberdade em histórias de mulheres sofridas. Por exemplo, Hana
Kvapilová, considerada a primeira atriz nacional tcheca, foi celebrada no
fin-de-siècle especificamente por conta de sua capacidade de retratar o de-
sejo de autorrealização de personagens femininas de um modo que expres-
sava o espírito e o anseio por liberdade de toda a nação15. A sobreposição
de significados narrativos, utilizada por escritores nacionalistas anteriores
e invocada agora, mais de meio século depois, nos comentários acima de
Chytilová, não é surpreendente ou estranha à Nouvelle Vague Tcheca. Tor-
nada necessária, desta vez, pela censura estatal e não pela dominação aus-
tríaca, a prática de trabalhar simultaneamente em vários planos narrativos
resultou em filmes da Nouvelle Vague Tcheca cuja complexidade foi sua
marca distintiva.
Em nossa leitura de Fruto do paraíso, a mensagem contida no centro da ale-
goria a qual Chytilová se refere em seus comentários vai além do enredo
básico de uma luta desigual entre homens e mulheres. Essa mensagem é
articulada e representada mais intricadamente através de uma estética fe-
minina alternativa e subversiva que corresponde ao que o filósofo francês
da diferença sexual Hélène Cixous denomina écriture féminine, um concei-
to também teorizado por Luce Irigaray e Julia Kristeva16. Debatendo sobre
a obra de Chytilová, Iordanova escreve que “seu ‘feminismo’ poderia ser
visto como mais complexo do que um simples engajamento com as causas
políticas do dia; é um feminismo encontrado em imagens e não em pala-
vras faladas.”17 De uma maneira mais elaborada, Hanáková sugere que o po-
15 Iveta Jusová, “Re-Inflecting Femininity on the Czech Fin-de-Siècle Stage: An Analysis of Hana Kva-
pilová’s Acting Style,” Theatre History Studies 24 (2004): 35.
16 Ver Hélène Cixous, “The Laugh of the Medusa”, em The Portable Cixous, ed. Marta Segarra (New
York: Columbia University Press, 2010), 27–39. O termo écriture féminine, como é usado aqui, aplica-
-se também ao trabalho de Irigaray e Kristeva. Questões de familiaridade com o trabalho dessas teóri-
cas específicas a parte, as sensibilidades da cultura intelectual francesa não poderiam ser ignoradas
por Chytilová, que era fluente em francês e sabia das raízes do cinema Nouvelle Vague na França.
17 Iordanova, Cinema of the Other Europe, 124
Fruto do paraíso 117
tencial feminista de As pequenas margaridas e o filme de 1970 de Krumba-
chová, Vražda ing. Čerta (Murder of Engineer Devi) reside em sua eruptiva
- “medusiano, anárquico, libertário” - estética feminista e ruptura da ordem
falocrática18. Essas estéticas, segundo Hanáková, contrastam notavelmente
com as dos filmes produzidos por diretores do sexo masculino da Nouvelle
Vague Tcheca, em que “os termos básicos da condição humana (as questões
de liberdade, veracidade e heroísmo) [também explorados por Chytilová]
frequentemente retornam a uma estrutura marcadamente conservadora
dos papéis e posições tradicionais de gênero”(63).
Nossa análise de Fruto do paraíso está de acordo com os insights e linhas
de pensamento de Iordanova e Hanáková a respeito de As pequenas marga-
ridas, e também consideramos o discurso da diferença sexual particular-
mente relevante para o contexto cinematográfico tcheco. Nossa atenção
à estética, na tradição das considerações de teóricos da diferença sexual
sobre questões de estilo, também é congruente com o argumento clássico
de Susan Sontag contra a tendência da crítica de arte em separar forma
de conteúdo, tratando conteúdo como essencial e forma como algo irre-
levante ou secundário19. Essa abordagem, afirma Sontag, ignora que “a ca-
racterística distintiva [das obras de arte] não é que elas geram o conheci-
mento conceitual, mas algo como uma excitação” (21). O apelo de Sontag
serve como um lembrete particularmente pertinente ao engajamento dos
potenciais expressivos mobilizados em um filme afetivo como Fruto do pa-
raíso. Em vez de considerar a experimentação formal de Chytilová como
esteticamente desconectada, concebemos a saturação sensorial intensa,
mas deliberadamente descentralizada, como uma nova e contundente re-
presentação cinematográfica da diferença feminina.
Estranhamento
Fruto do paraíso deixa seu público com uma impressão arrebatadora de es-
tranheza - de ter realizado uma excursão peculiar ao absurdo. Esse efeito
corresponde ao que a equipe de filmagem conscientemente buscou alcan-
18 Hanáková, “Voices from Another World,” 63.
19 Ver Susan Sontag, “Against Interpretation,” em Against Interpretation and Other Essays (New
York: Farrar, Straus and Giroux, 1966), 8.
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118 Vera Chytilová
çar e também é particularmente adequado para um trabalho produzido
sob as circunstâncias históricas surreais da invasão da Tchecoslováquia
em 1968. Em sua autobiografia, Chytilová se lembra de delimitar a locação
das cenas ao ar livre do filme, enquanto morava temporariamente na casa
de seus pais na Boêmia do Norte, onde ela e seu marido Jaroslav Kučera -
operador de câmera e diretor de fotografia de Fruto do paraíso – se refugia-
ram com seus dois filhos pequenos, ao ouvirem as notícias sobre os tanques
soviéticos se aproximando de Praga20.
Para explicar nossa intenção e inflexão ao utilizar os termos absurdidade e
alienação ou estranhamento neste artigo, referenciamos um trecho de uma
das cartas de Václav Havel a sua esposa, na qual ele eloquentemente capta e
descreve o sentimento de alienação e absurdidade que experimentou, junto
com outros tchecos intelectuais, quando confrontados com a censura e bu-
rocracia do socialismo de estado da Tchecoslováquia. Havel escreve sobre “a
impressão de que estou profundamente alienado do que acontece ao meu re-
dor, que não entendo [a] lógica e significado; a crença de que permanecerei,
provavelmente para sempre, distante, estrangeiro e incompatível com tudo
o que penso e sinto”.21
A tradução teatral da absurdidade e do estranhamento em Fruto do paraíso é
primeiramente produzida através do estilo performático dos atores Jitka No-
váková (Eva), Jan Schmid (Robert, o Diabo) e Karel Novák (Josef), todos mem-
bros do experimental Studio Ypsilon. Ypsilon desenvolveu e praticou um
estilo de atuação “ingênuo”, influenciado pela compreensão do pintor Henri
Rousseau sobre arte, pelo teatro de fantoches e pelo teatro do absurdo22. Ad-
miradora de suas experimentações, Chytilová, nas palavras de seu biógrafo,
“elevou seus estilos de atuação ao nível de princípio em Fruto do paraíso”.23
O estilo de atuação ingênua do Studio Ypsilon aproxima-se do Verfremdun-
gseffekt Brechtiano, na medida em que ambos buscam gerar um sentimento
20 Chytilová e Pilát, Věra Chytilová zblízka, 178.
21 Václav Havel to Olga Havlová, 21 March 1981, em Letters to Olga, ed. e trad. Paul Wilson (London:
Faber and Faber, 1988), 177.
22 Zdeněk Hořínek, “Mu˚ j život s Ypsilonkou” [My life with Ypsilon], em Čtení o Ypsilonce [About
Ypsilon], ed. Jaroslav Etlík and Jan Schmid (Prague: Studio Ypsilon, 1993), 6
23 Pilát, em Chytilová and Pilát, Věra Chytilová zblízka, 184.
Fruto do paraíso 119
de estranhamento e desfamiliarização na plateia. Conforme Bertolt Brecht
articula o conceito, “o objeto do artista [deve ser] parecer estranho e até
surpreendente para o público...As coisas cotidianas são assim elevadas aci-
ma do nível do óbvio e automático.”24 No entanto, os meios que os atores de
Fruto do paraíso empregam para alcançar o efeito de desfamiliarização são
diferentes daqueles encontrados na atuação Brechtiana, com sua ênfase
em um artista auto-observador e autoconsciente que está sempre pronto
para sair do papel e comentar criticamente sobre o que está acontecendo
no palco (93). Em vez disso, os atores do Ypsilon produzem uma sensação
de estranheza ao apresentar o mundo ao seu público como do ponto de vis-
ta de uma criança, um estranho ou um boneco vivo que caminha desorien-
tado por um mundo de convenções sem qualquer base para compreender
sua lógica. O princípio de sua atuação é, portanto, mais próximo do teatro
do absurdo, reconhecido por ter constituído a inspiração imediata para a
Nouvelle Vague Francesa, e que no contexto tcheco é melhor exemplifica-
do pelas peças de Havel.25
Nováková adota esse estilo de atuação de maneira particularmente magis-
tral, mobilizando-o para evocar uma ingenuidade infantil que é apropriada
à figura de Eva no paraíso e que também capta efetivamente o sentido das
circunstâncias históricas e políticas contemporâneas peculiares. Obser-
vando Nováková como Eva, temos a impressão, na primeira parte do filme,
de estarmos diante de uma jovem que dança divertidamente, em grande
parte inconsciente ou admirada com as convenções enigmáticas que do-
minam o lugar. É como se ela estivesse andando pela paisagem da vida
com uma certa confusão discreta, insegura de como agir ou de como tudo
funciona. Em uma cena particularmente bizarra e comicamente absurda,
Eva pega as cenouras que apanhou em um jardim atrás do muro do retiro
paradisíaco que ela e os outros personagens habitam e brinca de ser jardi-
neira, plantando alegremente as cenouras adultas em um trecho de solo
arenoso no meio dos pântanos. Elevando o absurdo da cena, ela se depara
com a mala do estranho e enigmático Robert enterrada na areia e nas fo-
24 Bertolt Brecht, “Alienation Effects in Chinese Acting,” em Brecht on Theatre: The Development of
an Aesthetic, ed. e trad. John Willett (New York: Hill and Wang, 1982), 92.
25 Sobre o teatro do absurdo e a Nouvelle Vague Francesa, ver Richard John Neupert, A History of the
French New Wave Cinema, 2nd ed. (Madison: University of Wisconsin Press, 2007), 24.
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120 Vera Chytilová
lhas caídas - estranhamente fora de lugar. Surpreendida por Robert, Eva
simula uma conversa agradável, embora qualquer um que a ouvisse ficaria
intrigado com sua descrição absurda do solo arenoso como duro e cheio
de lesmas. Essa conversa agradável entre conhecidos acerca de nada em
especial, uma cena bastante comum da vida real, é aqui exposta como um
enche-linguiça absurdo que permite que os envolvidos evitem falar sobre
o que realmente importa. É uma distração, um truque e um jogo que todos
os participantes são capazes de perceber, mas que continuam a fazer parte,
no entanto. Neste episódio em particular envolvendo a mala de Robert, Eva
usa o bate-papo para sair de uma situação que poderia ser perigosa, já que
o personagem se revela um assassino. O uso de uma lente grande angular
para exagerar a distância e a proporção introduz uma sensação de claus-
trofobia e vertigem à cena, de uma forma que perturba e desestabiliza ain-
da mais a pretensão de uma conversa fiada agradável.
O trabalho inovador de Kučera com a câmera e a película aumenta a im-
pressão geral do filme de estranheza ingênua e absurdidade. Escrevendo
sobre Fruto do paraíso em 1970, o crítico de cinema Jan Kučera (sem paren-
tesco aparente) descreve alguns dos truques que Jaroslav Kučera utilizou
ao filmar e desenvolver o filme. “A multiplicação de quadros individuais” –
técnica por meio da qual, no laboratório, um único quadro é copiado três
vezes, o próximo quadro apenas uma vez, o seguinte três vezes novamente,
e assim por diante - é um truque mencionado por ele que especificamente
intensifica o eventual movimento fantoche dos personagens, fazendo com
que seus movimentos físicos pareçam peculiarmente desarticulados, solu-
çantes, gaguejantes, hesitantes e tateantes26. Jan Kučera invoca o mundo
dos sonhos para caracterizar a ilusão que esse truque produz. Embora Ja-
roslav Kučera o utilize em vários momentos no filme, o efeito se torna com-
pleto no clímax enervante e assustador, em que Robert persegue Eva atra-
vés dos bosques. Aqui o trabalho de câmera, combinado com a atuação e a
música dramática de Zdeněk Liška, projeta e provoca um sentimento horri-
pilante e de paralisia assustadora da fuga fracassada. Usando uma câmera
de mão e aplicando, mais uma vez, a profundidade de campo distorcida da
grande angular, Kučera enfatiza dramaticamente a floresta e seus objetos,
26 Jan Kučera, “Eva neboli hledání” [Eve or searching], Film a doba 15, no. 7 (1970): 360.
Fruto do paraíso 121
dando vida à paisagem e produzindo a ilusão de uma floresta malévola e en-
cantada que tenta impedir Eva de escapar de Robert. Objetos inanimados
atrapalham a corrida de Eva pela vida, começando com uma faixa verme-
lha que Robert joga para ela e da qual a personagem tem dificuldades de se
desvencilhar, e depois com a moldura de uma janela francesa que, de algu-
ma forma, se coloca no caminho de seus pés, fazendo-a tropeçar. A bicicle-
ta de Robert deitada na grama fornece mais um obstáculo; então troncos
de árvores atrapalham o caminho de Eva, e galhos e ramos ganham vida
para envolvê-la, bloqueando seu progresso. Repetidamente, Eva tropeça,
levanta-se, mas cai de novo, como se o peso de tudo aquilo fosse demais
para ela. A floresta se torna um lugar estranho e animado, como que em-
prestado de um dos contos de fada dos irmãos Grimm. Outros momentos
de conto de fadas no filme incluem Eva adormecendo ao provar uma maçã,
lembrando “Branca de Neve” (“Šípková Ru˚ ženka”), e Eva exercitando sua
curiosidade ao destrancar e remexer a câmara de Robert, uma cena evo-
cativa de “O pássaro de Fitcher” (“Třináctá komnata”). A mansão em forma
de castelo, um pouco dilapidada e coberta de trepadeiras e rosas silvestres,
que faz parte da mise-en-scène, invoca “A Bela Adormecida”, assim como os
broches rosas e os véus coloridos que marcam o guarda-roupa de Eva. E a
roupa amarronzada felpuda de Robert lembrará o espectador tcheco dos
demônios (čerti), personagens frequentes e nem sempre assustadores do
folclore tcheco.27
Alguns dos outros dispositivos que Jan Kučera descreve que a equipe de fil-
magem utilizou para criar a ilusão de um lugar peculiar, distorcido e sobre-
natural incluem a filmagem sem horizonte de cenas ao ar livre, o que pro-
duz um senso de escala ambíguo no qual a natureza parece ser do mesmo
tamanho que as figuras humanas; uma eliminação consistente de sombras,
reminiscente das pinturas ingênuas, “que cria a sensação de uma estranha
realidade alienada da realidade do espectador”; e o uso de cores pastéis
quentes ao longo do filme, o que “produz uma sensação agradável na pla-
teia” que contrasta com o enredo28. Kučera também chama atenção para o
27 Roteirista e figurinista, Krumbachová publicou uma coletânea de contos de fada originais, e Jan Žal-
man observou a seu respeito: “ela pensa por meio de alegorias.” Jan Žalman, Umlčený film: Kapitoly z
boju˚ o lidskou tvář československého filmu IX [Silenced film: Chapters from battles for the human face
of the Czechoslovak film IX] (Prague: Národní filmový archív, 1993), 153
28 Kučera, “Eva neboli hledání,” 360–61.
 ›
122 Vera Chytilová
papel desempenhado pela música de Liška, revelando que a intenção origi-
nal era “ter os atores cantando os versos e produzindo um filme-ópera”(362).
Ainda que essa abordagem tenha sido eventualmente descartada, de acor-
do com Kučera, Chytilová trabalhou com a melodia e o tom das vozes dos
atores, modulando-as para obter um registro em dois níveis semânticos di-
ferentes: realista/informacional e alegórico/estilizado (363). Essa distinção
é clara no produto final, onde ocasionalmente os atores invadem um plano
narrativo diferente através da modulação vocal. Por exemplo, quando Josef
chega para buscar Eva de seu bizarro encontro planejado com Robert e a
encontra precariamente equilibrada em uma pedra no meio dos pântanos,
o personagem momentaneamente muda sua estilizada e heroica voz para
uma mais realista de modo a gracejar, “Como você chegou aí realmente? ”O
espectador é, portanto, lembrado da natureza construída do filme. Kučera
destaca que, quando os atores usam sua modulação de voz estilizada, eles
criam a impressão de que suas “vozes e ideias estão chegando ate nós de
outro mundo” (363). Para intensificar ainda mais o efeito bizarro e genera-
lizado de desfamiliarização do filme, o diálogo foi dublado na pós-produção
com pouca atenção à sincronização sonora e com as duas vozes principais
dos atores masculinos dubladas por atores diferentes, para seu desgosto.29
Como uma figura infantil, Eva a princípio parece não ter motivações cons-
cientes para suas ações, embora desde o início haja vislumbres de sua com-
preensão emergente. Até a conclusão do filme, o despertar de Eva parece
completo, embora as verdades com as quais ela se vê confrontada não se-
jam nem suaves nem fáceis. A dolorosa busca da verdade é o sentido pre-
tendido e explícito do filme em um nível abstrato e universal, como enfatiza
Chytilová em entrevistas. Interpretada a partir do contexto social em que o
filme foi realizado, essa busca poderia ser compreendida como uma repre-
sentação da maneira como os tchecos da geração da Primavera de Praga
perceberam a sua falta de liberdade absoluta para determinar o futuro de
seu país, dada a sua posição em um mundo mais amplo que eles não podiam
controlar. Dentro de uma perspectiva feminista, a narrativa guarda ainda
mais complexidade e sofisticação. A consciência que a protagonista alcan-
ça, ao final do filme, é específica de gênero, assim como os obstáculos que
29 Chytilová e Pilát, Věra Chytilová zblízka, 182.
Fruto do paraíso 123
impedem o progresso de sua chegada à mesma. Nas ocasiões em que Eva,
ainda em sua fase de menina, demonstra alguma consciência e curiosidade,
essas qualidades são imediatamente descartadas, ridicularizadas e banali-
zadas pelos outros dois personagens (masculinos). Por exemplo, quando o
marido Josef recebe uma carta perfumada, ele descarta a curiosidade de
Eva sobre seu correspondente com uma fala paternalista: “Você está de
mau humor de novo, não é?”
Há diversos momentos dramaticamente em primeiro plano em que a toma-
da de consciência de Eva é acelerada. O conhecimento que ela atinge nesses
momentos e que lhe permite gradualmente deixar para trás sua existência
infantil (ou paradisíaca) (e o paraíso) é notável do ponto de vista feminista.
Sua transformação, que ocorre em vários trechos, é marcada pela consta-
tação de que Robert é o assassino procurado de seis mulheres; que Josef, de
fato, foi infiel a ela, mas que ela, como mulher, deve permanecer fiel a ele;
que ninguém acreditará em suas fortes acusações sobre Robert, o assassi-
no; que a experiência de masculinidade une os dois homens contra ela en-
quanto mulher; que ela, consequentemente, precisa tomar as rédeas da situ-
ação sozinha; e finalmente, que ser uma mulher que age por conta própria
termina com a sua expulsão do paraíso. Assim, a verdade no âmago do filme,
suportada por uma Eva retratada com simpatia, é inequivocamente especí-
fica de gênero e tem a ver com preconceitos sexistas e injustiças de gênero.
É digno de nota que, à medida que Eva passa a reconhecer os estereótipos
sexistas que governam sua existência e como eles impedem o processo de
alcançar a justiça, ela os rejeita enfaticamente. Não mais uma figura infantil,
Eva seduz o sedutor e assassino de mulheres Robert e, em um jogo estilizado
de amizade, amor e traição, o mata com sua própria pistola.
Como mencionado acima, Eva é representada com simpatia, o que é notá-
vel em uma diretora conhecida por uma abordagem fria, satírica, crítica e
até sarcástica de seus personagens. Concordamos com a observação de Jan
Žalman de que, embora essas características típicas da abordagem de Chy-
tilová estejam presentes no tratamento dado a Robert e Josef, Eva é retrata-
da calorosamente e até mesmo com amor30. Os espectadores são solidários
ao ciúme semiconsciente de Eva sobre a carta perfumada endereçada a
30 Žalman, Umlčený film, 152.
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124 Vera Chytilová Fruto do paraíso 125

seu marido, desfrutam de sua energia lúdica, e se enfurecem quando Josef “Ne crede colori”
se dirige a ela de modo paternalista ou quando ele e Robert falam sobre ela
“Não confie nas cores”, escreveu Carlo Fracassati, cientista italiano do século
na terceira pessoa enquanto a mesma está presente. Sentimos a frustração
XVII31. Na seção final deste artigo, gostaríamos de examinar mais de perto a
de Eva quando Josef faz amizade com Robert em um vínculo que a exclui
estética feminina alternativa desenvolvida em Fruto do paraíso, enfocando
com base no senso compartilhado por ambos de um presumido fardo mas-
o papel que a cor - uma categoria que, como o feminino, tem sido marginali-
culino egoísta e chauvinista de ter que lidar com mulheres supostamente
zada na história da arte ocidental - é convocada a desempenhar nessa esté-
irracionais e mal-humoradas e no senso de superioridade desses homens
tica. Argumentamos que o filme explora as afinidades e suspeitas há muito
sobre o segundo sexo. Tememos pela vida de Eva, enquanto ela é persegui-
estabelecidas sobre o feminino e o cromático. Aqui, um pede ajuda ao outro,
da por Robert ao longo da floresta encantada. Obtemos certa satisfação ao
perturbando as duas versões da estética androcêntrica representada no
vê-la ser mais esperta do que Robert em seu próprio jogo, tirando proveito
filme: a masculinidade monótona, convencional e paternalista do bege mo-
do hábito do personagem de subestimar suas capacidades. E sentimos sua
nocromático Josef e a masculinidade misteriosa, carismática mas, em última
solidão e reconhecemos a injustiça quando ela, tentando retornar ao retiro
instância, ameaçadora do diabólico, avermelhado (do vermelho terra ao car-
/ paraíso, é repelida pela face chocada e horrorizada de Josef, que transmite
mesim) Robert.
a vergonha que ela deveria presumivelmente estar sentindo, comunican-
do-a de que ela não pertence mais a este mundo/ao mundo dele - que não há A cor é um tópico de discussão difícil para a crítica de cinema e de arte,
lugar aqui para alguém como ela. como Brian Price, Rosalind Galt e outros observam, de tal forma que alguns
estudiosos, como David Batchelor, postulam sua negligência como uma
À medida que uma Verdade alegórica e multidimensional é narrada através
forma de cromofobia32. Batchelor argumenta que desde a antiguidade, “a
do filme, a estrutura e a lógica do mundo em que essa verdade é apresenta-
cor tem sido objeto de extremo preconceito na cultura ocidental” e tem
da são expostas e desvendadas. Essa estrutura opera através de meios que
sido sistematicamente marginalizada e desvalorizada33. De acordo com
satisfazem o desejo sexual masculino e excluem ou frustram o feminino
Batchelor, essa “purificação da cor” acontece de duas formas: a cor é vista
ativo, cada vez mais representado por Eva. O filme expõe as maneiras pelas
como estranha e, portanto, perigosa, se relacionando ao estrangeiro, primi-
quais essa exclusão é orquestrada - tanto no nível da trama quanto no nível
tivo, feminino, infantil ou esquisito; ou a cor é tratada como um elemento
estético, como discutiremos a seguir. Ele representa a exclusão como injus-
suplementar, superficial e cosmético, indigno de grande atenção (22-23).
ta, encorajando o feminino ativo a perturbar a ordem falocrática e deixa ao
Kristeva comenta de modo similar sobre o medo tradicional e a desconfian-
espectador a imagem de um “não-lugar” feminino da cor como uma alterna-
ça acerca da cor na filosofia ocidental, especulando que a “experiência cro-
tiva possível, ainda que não resolvida. Três mulheres notáveis - a diretora
mática constitui uma ameaça para o eu [ao mesmo tempo em que também
determinada, a roteirista de contos de fada e amante de alegorias e a atriz
talentosa - uniram forças nos pântanos da Boêmia do Norte, produzindo
um filme no qual a batalha desigual dos sexos acaba constituindo muito
mais do que uma simples trama.
31 Carlo Fracassati, citado em Domenico Bertoloni Meli, “The Color of Blood: Between Sensory Ex-
perience and Epistemic Significance,” em Histories of Scientific Observation, ed. Lorraine Daston e
Elizabeth Lunbeck (Chicago: University of Chicago Press, 2011), 131.

32 Brian Price, introdução a Color: The Film Reader, ed. Angela Dalle Vacche and Brian Price (New York:
Routledge, 2006), 1; Rosalind Galt, “Pretty: Film Theory, Aesthetics, and the History of the Troublesome
Image,” Camera Obscura, no. 71 (2009): 4; David Batchelor, Chromophobia (London: Reaktion, 2000).

33 Batchelor, Chromophobia, 22.

 ›
126 Vera Chytilová
embala] a tentativa de reconstituição do eu”34. Junto com outros, Kristeva
observa que na civilização ocidental a cor tem sido habitualmente equipa-
rada à paixão imprópria, e ela mesma associa isso ao gozo, ao feminino (224)
e ao transgressivo:
A cor talvez...seja o espaço onde a proibição prevê e dá origem a sua própria
transgressão imediata. Ela alcança a dialética momentânea da lei - o estabe-
lecimento de Um Significado para que ele seja, de uma só vez, pulverizado e
multiplicado em significados plurais. A cor é a quebra da união. Assim, é atra-
vés da cor - cores - que o sujeito escapa à alienação dentro de um código (re-
presentacional, ideológico, simbólico e assim por diante) que ele, como sujeito
consciente, aceita. (221)
A desconfiança da cor, ao longo de grande parte da história da crítica de
arte ocidental e da ciência moderna, e a projeção relacionada de um poten-
cial disruptivo e subversivo à cor por pensadores dissidentes em busca de
alternativas à “Ordem do Uno” parecem se basear em sua natureza elusi-
va, subjetiva, construída, polissêmica e não confiável (porque não pode ser
fixada)35. Estudar a cor inevitavelmente coloca em primeiro plano a insta-
bilidade epistemológica e ontológica do mundo a nossa volta, o caráter ex-
periencial fugaz e precário das imagens e a absoluta ausência de quietude
nas percepções sensoriais através das quais o mundo atinge o olho. Con-
sistindo de luz efêmera, ondas e partículas; mudando conforme a fonte de
iluminação; e percebidas distintamente por diferentes sujeitos, as cores - e,
portanto, as imagens – se alteram constantemente, passando por mudan-
ças e transformações perpétuas. A cor é teimosamente fugaz, o epítome
da fluidez - outra qualidade que a associa ao feminino, como preconizado
pelos teóricos da diferença sexual.
Irigaray traça paralelos entre a exclusão do feminino da ordem simbólica
e a preferência da ordem simbólica por formas fixas e sólidos, em vez de
34 Julia Kristeva, “Giotto’s Joy,” em Desire in Language: A Semiotic Approach to Literature and Art,
ed. Leon S. Roudiez, trad. Thomas Gora, Alice Jardine, and Leon S. Roudiez (New York: Columbia Uni-
versity Press, 1980), 220.
35 Meli, “Color of Blood,” 119.
Fruto do paraíso 127
formas percebidas como fluidas36. Essa associação tem implicações para a
representação figurativa de Irigaray de uma linguagem da mulher e de uma
estética feminina. Crítica da convencional “encenação da representação
de acordo com parâmetros exclusivamente masculinos”(68) e buscando
vislumbrar novas maneiras de expressar o “feminino virtual”, tradicional-
mente mal concebido e suprimido, Irigaray esboça uma estética feminina
alternativa, invocando e recodificando modalidades - como fluidez, hetero-
geneidade, pluralidade, tato e proximidade - que são convencionalmente
associadas ao feminino e descartadas no imaginário androcêntrico. En-
quanto no sistema falocrático de representação “o feminino se encontra
definido pela falta e deficiência”, Irigaray reclama por um estilo de expres-
são que capture e liberte o “excesso disruptivo” (78) da diferença sexual
feminina. Mesmo quando reconhece até que ponto nossas gramáticas de
expressão foram constituídas e marcadas inescapavelmente dentro de sis-
temas simbólicos, Irigaray teoriza essa subjetividade feminina virtual al-
ternativa em termos de encontros intersubjetivos fluidos e dinâmicos.
Interpretando Fruto do paraíso à luz das observações de Irigaray e Kriste-
va, descrevemos a estética feminina alternativa que o filme desenvolve e
exploramos as maneiras pelas quais o vocabulário cromático de Chytilová
anima e por vezes permite certa dinâmica sensual que não permanece con-
tida dentro do quadro. Começamos com a distinção de Eric Rohmer entre
duas categorias dos “melhores filmes coloridos”. A primeira consiste em
filmes que “lembramos por sua harmonia, sua tonalidade geral, na qual o
diretor, o cenógrafo, o figurinista e o fotógrafo queriam criar um trabalho,
se não de pintores, pelo menos de homens sensíveis a assuntos pictóricos”.
A cor nesses filmes, segundo Rohmer, “toca, sublinha, substancia a textura
dramática, mas nunca é a sua única fonte”. A segunda categoria inclui fil-
mes em que “a cor está ocasionalmente, mas inquestionavelmente, no co-
mando. Esses filmes nos assombram não tanto por conta de seu clima geral
mas pelo poder de certos detalhes e objetos coloridos”37. Fruto do paraíso se
encaixa em ambas as categorias. Há momentos no filme em que a cor, junta-
mente com tecidos, texturas e a trilha sonora que a acompanha, desempe-
36 Luce Irigaray, This Sex Which Is Not One, trad. Catherine Porter com Carolyn Burke (Ithaca, NY:
Cornell University Press, 1985), 111.
37 Eric Rohmer, “Of Taste and Colors,” em Dalle Vacche and Price, Color, 123.
 ›
128 Vera Chytilová
nha uma função de apoio ao gerar certa ambiência na mise-en-scène, e há
ocasiões em que a cor ajuda a substanciar um significado particular. Mas
também há momentos comoventes e poderosos, quando a cor está “incon-
testavelmente no comando”, isto é, quando assistir ao filme se torna pura
experiência sensual.
Ao longo do filme, tons de terra quentes, acastanhados e não saturados, oca-
sionalmente alternados por uma combinação de tons bege e laranja igual-
mente quentes, são mobilizados para produzir uma ambiência outonal, qua-
se sempre calma e plácida. Se a atmosfera que essas cores evoca contrasta
com o “enredo básico de história criminal”38, como observa Žalman, os tons
de folhas em mudança e em decomposição e as bagas de outono também
evocam o mundo dos contos de fada, afinal de contas a maiorias destes se
passa em florestas misteriosas ou câmaras escuras. Contra este fundo calo-
roso e calmo, pode-se facilmente utilizar uma cor vermelha brilhante para
distinguir certos personagens, como acontece várias vezes ao longo do fil-
me. Conforme discutiremos, a cor vermelha desempenha um papel cada
vez mais central na obra, às vezes dominando inteiramente o campo visual.
Há outras maneiras pelas quais Chytilová e Krumbachová - a figurinista do
filme - empregam a cor para ajudar a sugerir um significado ou encobrir
personagens em um ambiente específico. Os tons das roupas de Josef nun-
ca saem da paleta cinza-bege, ajudando a criar uma impressão enfadonha,
monótona e pouca imaginativa do personagem. Cores muito mais intensas
e emotivas, especificamente o vermelho e o borgonha escuro, são usadas
ao longo do filme para estabelecer um elo visual entre Eva e o carismáti-
co, porém perigoso, Robert. Krumbachová preparou uma paleta de cores
intrigante para os guarda-roupas desses dois personagens, começando
com roupas feitas do mesmo tecido de veludo iridescente de tom borgo-
nha escuro com nuances de ferrugem difícil de definir. A cor iridescente
do tecido sublinha esses personagens - especialmente Robert, que o utiliza
durante todo o filme - como complexos, enigmáticos e evasivos. Além da
cor, o tecido distingue-se pela sua textura felpuda e aveludada, que soli-
cita o toque do espectador. A impressão tátil do pano felpudo e aveluda-
38 Žalman, Umlčený film, 151.
Fruto do paraíso 129
do de Robert e dos tecidos de veludo, renda e seda de Eva contrasta com
as vestimentas leves e unidimensionais de Josef, que refletem seu tipo de
masculinidade enfadonha, racionalmente fria, paternalista, burocrática e
autoritária. Essa estética cinza-bege, apreensiva de cores intensas (como a
última cena do filme sugere), demarca uma masculinidade cuja existência
parece exigir permanentemente a infantilização e asfixia da criatividade e
da imaginação de Eva.
Desde suas primeiras cenas, Eva compartilha algo da inclinação cromática
de Robert; ela usa, inicialmente, uma versão feminina da peça iridescente
de veludo borgonha escuro de Robert, complementada por um broche de
flor branca. A flor branca e a curiosidade ingênua de Eva sugerem uma ino-
cência infantil subjacente a qualquer destino que a aguarda. No início do
filme, uma cena icônica retrata Eva e Josef dormindo juntos como marido
e mulher. Suas peles nuas combinam com o roupão de seda creme de Eva
e os lençóis de cetim bege, convidando-nos, de certa forma, a vermos o ca-
sal como feitos do mesmo material bege ordinário. Mas, por mais que Josef
se mostre inflexível, Eva se molda como uma obra em progresso e como
um alvo em movimento. Seu próximo traje, um pequeno vestido branco
com um broche de flor rosa, transmite a impressão de uma adolescente
ousadamente curiosa; nessa vestimenta, ela transgride para o quarto de
um estranho. Esse traje sinaliza a transição de Eva de um personagem de
curiosidade irrefletida para alguém que reconhece o perigo. A sua subse-
quente transformação “rosa sobre rosa” ressalta o surgimento de sua re-
cém-descoberta confiança. Prenunciando um encontro mais potente que
ela terá com Robert, Eva usa desajeitadamente uma longa e fluida echarpe
rosa para tentar seduzir um garçom nessa cena. Josef e Robert a observam
de perto e riem de suas travessuras, mas Eva, não muito tempo depois, es-
timula as investidas de Robert e solicita seu convite para participarem de
uma excursão juntos. Posteriormente, vestida novamente em renda branca
formal por seu agora ciumento marido e sentada com Josef em uma mesa
chique, sorvendo vinho branco em uma taça de cristal, Eva usa um conjun-
to contendo um broche vermelho inequivocamente vívido. Seu comporta-
mento é agora controlado e desdenhoso, e ela calcula friamente o descarte
de seu cônjuge/guardião indesejado, enviando-o em uma desajeitada des-
ventura em uma pista de dança lotada. Em seu iminente encontro clímax
 ›
130 Vera Chytilová
com Robert, a cor vermelha toma o centro do palco, onde permanece com
ênfase dramática até a conclusão do filme, aproximando-se de uma modali-
dade constitutiva de voz cinematográfica.
Retornando às observações de Rohmer sobre a cor no cinema, notamos que
Fruto do paraíso contém numerosas cenas, que aumentam em frequência à
medida que a narrativa se desdobra, na qual a cor assume o controle e se
imprime na memória do espectador. Em Fruto do paraíso, essa função é re-
servada à cor vermelha que, como sugerido acima, desempenha um papel
cada vez mais dominante no filme. É utilizada pela primeira vez com Robert
para distingui-lo dos outros durante um jogo de bola de praia e, em seguida,
transferida à Eva (que antes usava borgonha, branco ou rosa), quando Ro-
bert a envolve em seu roupão vermelho felpudo e brilhante. O vermelho se
torna uma mancha ótica tremida na cena em que Eva - usando um vestido
vermelho - se esforça para simbolicamente cumprir o desejo de Robert de
colocá-la em um pedestal, equilibrando-se precariamente em uma pedra
que ele preparou para ela estranhamente no meio do pântano. Uma faixa
vermelha longa e brilhante, serpenteando através da floresta e dos prados,
conecta novamente os dois personagens quando Robert persegue Eva.
No final da perseguição, o vestido branco de Eva é transformado pelas
ações e desejos de Robert em vermelho brilhante. Naquele momento, o
vermelho ainda faz parte da paleta de cores de Robert, e ele contempla Eva
de vermelho com satisfação, tal qual um artista admirando o produto de
seu trabalho. De fato, a paixão de Robert é baseada em momentaneamente
contemplar a beleza das mulheres à distância antes de abandoná-las ou as-
sassiná-las e seguir para o próximo alvo. Mas embora a associação de Eva
com o vermelho tenha sido transmitida por Robert, ela finalmente expõe o
princípio predatório da estética masculinista do personagem, fazendo do
vermelho sua própria cor, central para sua própria estética especificamen-
te feminina. Em uma cena em vermelho, preto e branco, cuidadosamente
estilizada e visualmente hipnotizante, Robert, vestindo um casaco preto,
encara Eva, vestida de vermelho, contemplando-a à distância mais uma vez,
e Eva tira proveito da fraqueza masculina do personagem. Embora seja ca-
paz de assassinar mulheres, este Don Juan é incapaz de deixá-las sentirem
frio. Embrulhando seu casaco preto, com uma pistola no bolso, ao redor de
Eva, Robert sela seu próprio destino. No momento seguinte, a mulher se
Fruto do paraíso 131
levanta do pedestal, revelando sua vermelhidão completa e atira no assas-
sino. Nesse momento, Eva combina o preto com o vermelho, simbolizados
pela pistola preta e o broche de flor vermelha que ela segura em suas mãos.
Até a última cena, na qual a encarnação do vermelho por Eva, dramati-
camente intensificada por seu enquadramento preto intenso, finalmente
toma conta do campo visual, o espectador experiencia inúmeros episódios
nos quais a cor pode penetrar - borrando e desfocando —as linhas que de-
signavam suas fronteiras. Assim como em As pequenas margaridas, Chy-
tilová pressionou Kučera a aplicar suas experiências caseiras com a foto-
montagem colorida em Fruto do paraíso, e todo o coro bíblico prólogo ao
filme é dedicado às experimentações visuais de Kučera e de Liška. O tra-
balho cenográfico de Kučera abre o filme com desenhos de flores e folhas
vibrantes em dupla exposição sobre imagens de tableaux estilizados de ex-
tras nus posando como Adão e Eva, provocando uma poderosa experiência
sensual que é reforçada pelas cantatas corais de Liška. Ao longo do prólo-
go, o cromático reina visualmente e a dupla exposição da película produz
um desenho pictórico que exibe e explora o impacto sensual das fluidas
combinações de cores em mudança. Se a história da crítica de arte ociden-
tal, como Batchelor e outros notam, é marcada por uma luta geralmente
não reconhecida entre traço/desenho e cor - “disegno versus colore” - na
qual a cor é codificada como feminina e deve ser subordinada à “disciplina
masculina do esboço ou desenho”, esta prescrição é claramente desafiada
no prólogo de Fruto do paraíso39. Além disso, outros experimentos cenográ-
ficos, como o uso de diferentes velocidades de película, são mobilizados ao
longo da obra a fim de produzir imagens fora de foco nas quais as figuras
se movem tão rapidamente que suas cores mancham e borram. A cor aqui,
mais uma vez, escapa a sua submissão prescrita ao traço masculino, vazan-
do para fora de seus contornos.
Esse efeito visual é empregado especificamente como um realce enfático
indicativo da memória, imaginação ou estado de espírito de Eva, especial-
mente quando a personagem está em perigo. Enquanto as paletas estéticas
associadas à Eva e Robert têm algumas qualidades compartilhadas que os
distinguem claramente do torpor monótono e cinzento de Josef, elas tam-
39 Batchelor, Chromophobia, 28, 23
 ›
132 Vera Chytilová

bém diferem nos significados que emprestam a cada personagem. Com

Robert, o vermelho é usado para demarcá-lo visualmente como empolgan-
te (durante o jogo de bola de praia) ou agourento (quando ele empurra a
pedra preparada para o assassinato de Eva). Com Eva, diferentes tons de
rosa ou vermelho representam, através da mudança de cor de seu vestido e
seu broche de flor, os diferentes estados de sua feminilidade, com a combi-
nação final vermelho-e-preto brilhante sinalizando sua sexualidade e sen-
sibilidade maduras, conscientes e assertivas. Robert espera que Eva fique
parada, como uma boneca ou manequim, para que ele possa contemplá-la
melhor. Eva, no entanto, não fica parada: ela se recusa a se tornar um objeto
ou um cadáver e seus movimentos oscilantes imprevisíveis mantém longe
destinos mais perigosos.

Esse é o vermelho que Eva utiliza pela primeira vez e depois se desfaz para
oferecer a Josef na cena final, quando se aproxima dele à distância. A es-
tranheza se mistura com o estranhamento quando Josef se afasta de sua
investida e Eva se torna uma aparição embaçada. Eva e seu vermelho vivo
são rejeitados pelo olhar horrorizado e blindado de Josef, que se torna frio
e seguro de si mesmo antes de se desvencilhar, finalmente, dessa sedutora
dança das cores. E é com a imagem dessa dança de cacofonia vermelha e
preta ocupando quase todo o campo visual ao final - uma dança na qual a
cor se funde com o rosto de Eva até o ponto em que um se torna o outro
- que o filme se despede do público. É sua oferta final de uma estética al-
ternativa na qual o poder do desejo feminino cromático e ativo é liberado.
 Perfeitamente imprevisível 135

Introdução

Perfeitamente Věra Chytilová adorava contar a história de como ela conseguiu permis-

imprevisível:
são para o roteiro do filme de conclusão de curso dela Teto (Strop, 1961). O
chefe do Departamento de Roteiro na FAMU (Escola de TV e Cinema da
Academia de Arte Dramática em Praga), Frantisek Daniel, não aprovou ini-

Primeiros trabalhos de Věra Chytilová cialmente o roteiro porque era, na opinião dele, muito kitsch. Chytilová, no
entanto, se recusou a renunciar ao seu trabalho. Ela pediu pra seu colega
à luz da censura e de relatórios de classe, o aluno preferido de Daniel, Pavel Jurácek, para reescrever o ro-

de produção1 teiro dela de maneira que agradasse o professor. Quando a nova versão foi
aprovada, ela começou a rodar o filme usando seu roteiro original (Zlatá
sedesátá 2009). Essa anedota mostra a coragem e o temperamento pelos

Lukás Skupa quais Chytilová ficou famosa, e ao mesmo tempo, serve como exemplo de
um dos vários obstáculos dentro do mecanismo de aprovação. Nos anos
1960, o cinema tcheco não era tão liberal como muitos pensam. Ainda que
existisse espaço para cineastas ‘manobrarem’ de alguma maneira por entre
o sistema, eles frequentemente precisavam passar por negociações com-
plicadas. Se quisermos apurar como e em qual medida era possível manter
ao menos um controle parcial sobre o próprio projeto na época do sistema
de estúdios do cinema de Estado socialista, o trabalho de Věra Chytilová
representa um material de estudo muito interessante.

1 Publicado originalmente em Studies in Eastern European Cinema, 9:3, 233-249. Tradução de
Artur Ianckievicz. Copyright © 2018 Informa UK Limited
Desde seus primeiros trabalhos e por muitos anos depois, Chytilová foi
considerada ‘uma autora imprevisível’ cujas criações desafiavam conven-
ções dos estúdios e eram bastante difíceis de ‘controlar’. Entre outras coi-
sas, quase todos os filmes dela feitos nos anos 1960 (e mais adiante) causa-
ram problema por causa da diferença entre as visões e expectativas com
as quais os filmes foram feitos e a forma final deles. Contudo, até agora
ninguém havia tentado ir além das ‘anedotas do set de filmagem’ e recons-
 ›
136 Vera Chytilová
truir, usando fontes de arquivo, a posição real de Chytilová e de seu tra-
balho dentro das estruturas de cinema que necessariamente formaram
seus filmes2. Este estudo se concentra no contexto específico dos longas
metragens de Věra Chytilová produzidos durante os anos 1960 com ênfase
no processo de aprovação dentro dos Estúdios Barrandov (Filmové studio
Barrandov – FSB) e das instituições de censura. Seu objetivo não é somente
revelar os procedimentos que condicionavam a forma final dos filmes, mas
também de avaliar a posição do autor como ela se desenvolve dentro das
estruturas de cinema citadas acima.
Nós também vamos tentar oferecer uma análise mais minuciosa dos
métodos de trabalho de Chytilová, que eram considerados excepcionais no
contexto do cinema estatal da Thecoslováquia e que mais de uma vez re-
sultaram em conflitos e problemas com as autoridades homologadoras. Os
roteiros, ou mais precisamente, a comparação deles com a versão final dos
filmes vai servir de principal fonte para nos ajudar a determinar quais mu-
danças eram feitas nos projetos – elementos que desapareciam, aqueles que
eram adicionados e outros cujo significado foi mudado. Os arquivos da cen-
sura e relatórios de produção dos filmes de Chytilová dos anos 1960 – embo-
ra eles não tenham sido completamente preservados – nos habilitam a, pelo
menos parcialmente, deduzir os motivos por trás de tais mudanças e tam-
bém a interpretá-las. Eles nos dão uma ideia de como a própria Chytilová
lidava com os ajustes em questão e descrevem as reações à forma final dos
filmes dela em relação às autoridades envolvidas no processo de aprovação.
Vamos, portanto, refletir sobre as questões da censura que pareciam ser
uma parte inevitável da imagem pública de Chytilová. Em uma de suas en-
trevistas posteriores, ela declarou que, quando trabalhava no FSB, era co-
mum que ela enfrentasse dificuldades para justificar suas intenções para
os ‘censores do regime’ (Bednárová 2008, 58). É dentro desse espírito que
Chytilová é descrita como uma autora que sempre teve a coragem de se
rebelar e de defender sua visão artística sem quase nenhum espaço pra
2 Uma avaliação compreensiva do trabalho da diretora de qualquer estágio da carreira dela con-
tinua faltando. A maioria dos textos publicados sobre os filmes de Chytilová são mais uma análise
estética e deixam de fora o ponto de vista da produção aplicado nesse estudo. Dentro do ambiente
tcheco, diversas monografias extensas de várias qualidades têm sido publicadas. Elas são geralmente
parte biográficas e parte livro de memórias (Frys e Gajdosík 2006; Lukes e Lukesová 2009; Chytilová
e Pilát 2010.)
Perfeitamente imprevisível 137
concessões. Não temos intenção de negar tal imagem; contudo, essa ideia
disseminada de que Chytilová, junto com alguns de seus colegas do Nou-
velle Vague Tcheca, tiveram que lutar contra e que acabaram se tornando
vítimas de um sistema de aprovação hostil é muito limitada. As histórias
das vítimas e dos que lutaram contra a prática da censura não são somente
baseadas no princípio de decisões de mão única e ordens que os cineastas
deveriam obedecer sem exceção (Skupa 2016, 44-85).
Em termos simples – cineastas não eram, de maneira alguma, vítimas in-
defesas da censura. Várias pessoas, particularmente aquelas com postos
mais altos na liderança do Cinema Tchecoslovaco (Ceskoslovenský státní
film – CSF) e do FSB, participavam ativamente nas negociações da censura
e podiam afetar os resultados tanto positiva quanto negativamente. Junto
com as autoridades dos escritórios de censura, a saber, o Escritório Cen-
tral de Supervisão da Imprensa (Hlavní správa tiskového dohledu – HSTD)
e o Departamento de Ideologia do Comitê Central do Partido Comunista
da Tchecoslováquia (Ideologické oddelení ÚV KSC), eles podiam fazer su-
gestões em relação a projetos específicos. Tais sugestões, caso aceitas, não
necessariamente prejudicavam o filme. Ao contrário, elas podiam trazer
uma mudança no significado. A esse respeito, o trabalho de Věra Chytilová
oferece um amplo espectro de material – compreendendo desde projetos
rejeitados aos estímulos levando a soluções criativas e, em alguns casos,
resultados de melhor qualidade.
Veja quem trabalha diferentemente
Chytilová começou nos Estúdios Cinematográficos Barrandov como al-
guém que não seguiu as convenções de trabalho. Seu status era condiciona-
do por dois fatores básicos. Primeiro, havia a inevitável desproporção entre
o plano (roteiro aprovado) e o resultado (corte final), que os superiores dela
eventualmente precisavam lidar. No processo de aprovação, tanto a versão
‘literária’ quanto a versão rodada do script3 eram objetos da mais detalha-
da análise. Depois de ser aprovado por representantes do estúdio (não so-
mente pelos chefes dos grupos criativos responsáveis pela produção de
3 O chamado ‘roteiro literário’ (literární scénár) era um formato de roteiro inspirado na União Sovié-
tica - uma primeira versão que precedia a escritura de um tratamento final do script.
 ›
138 Vera Chytilová
filmes específicos, mas também pelo chefe do FSB ou pelo diretor do CSF),
o roteiro era examinado pelo HSTD, cujos funcionários discutiam possíveis
reprovações ou sugestões diretamente com os membros dos grupos criati-
vos do Barrandov ou as principais autoridades do FSB e do CSF. No caso de
questões mais sérias, o roteiro seria examinado mais profundamente pelo
Departamento de Ideologia do ÚV KSC. Um processo similar de aprovação
também acontecia durante a fase de pós-produção quando a atenção princi-
pal era dirigida nas chamadas ‘cópias de serviço’ (servisní kopie), que podia
ser editada suplementarmente (Skupa 2016, 51-63, 75-81). No entanto, a ava-
liação do roteiro ainda era de maior importância - era muito mais fácil livrar
o projeto de temas questionáveis nesse estágio e evitar a complicações pos-
teriores com a censura e possíveis quebras contratuais de produção.
O papel que o roteiro desempenhava nesse processo do trabalho criati-
vo de Chytilová é impressionante. Por exemplo, Otakar Vávra, professor
dela na FAMU, disse sobre sua antiga aluna que, “Ela nunca gastou muito
o cérebro sobra a narrativa, ela ajeitava o filme somente na sala de edição”
(Chytilová e Pilát 2010, 96). De fato, os filmes não seguem o desenvolvimen-
to escrito palavra por palavra – o processo de trabalho dela era um fluxo
constante de ideias inspiradas pelo roteiro. Em uma de suas entrevistas, ela
explicou como o material não parava de mudar nas suas mãos:
O cineasta [Vladimír] Cech costumava fazer filmes da seguinte maneira:
ele sentava em sua cadeira marcada ‘Diretor’, pegava uma régua, alguns
lápis de cor e depois de cada filmagem ele checava quais partes do rotei-
ro estavam prontas. Na sala de edição, eles simplesmente cortavam as cla-
quetes e grudavam o resto. Para mim, no entanto, a parte mais interessante
de se fazer filmes é a edição. Fisicamente a exigência não é tanta. Ainda é
bastante excitante, contudo, já que existem tantas versões que podem sair
de um mesmo material. É por isso que eu sempre filmo outras variações.
Eu sei que só vou conseguir tirar sentido delas na sala de edição. Algumas
vezes, sai o exato oposto do que eu tinha em mente quando estava rodando
a cena. O lixo de repente se transforma em pérola e o plano que deveria ser
importante se transforma em uma mera imagem descritiva (Motl 2000, 21)
Embora Chytilová ressalte sua preferência pelo processo de edição, não
podemos, em hipótese alguma, dizer que ela dependia de roteiros semifi-
Perfeitamente imprevisível 139
nalizados ou que ela subestimava a preparação dos mesmos. Ao contrário
- os scripts dos filmes de Chytilová, frequentemente feitos por ela mesma,
são muito profissionais e apresentam uma ideia clara do que cada uma das
cenas deve ser visualmente. Entretanto, os filmes dela diferem dos roteiros
originais não somente no diálogo, mas também na encenação e na edição de
cenas específicas e, eventualmente, também em significado. Desnecessário
dizer que tal fenômeno não é excepcional - é bastante normal que filmes
contenham elementos diferentes de suas intenções originais. No entanto,
no caso de Chytilová, é uma das marcas registradas de seu trabalho. Vários
comentários dos superiores de Chytilová sobre seu ‘incomum trabalho de
diretora’ confirmam tais premissas, bem como a convicção da própria au-
tora de que o script serve de um plano básico que não precisa ser seguido
a todo custo. A questão permanece se ela fez isso de propósito para ser
mais esperta que a censura – submeter uma versão do roteiro que mudaria
durante a produção e a pós-produção. Dadas as fontes disponíveis, não po-
demos ter certeza total de que essa declaração seja verdadeira. No entanto,
há uma chance de Chytilová ter deliberadamente usado isso como uma es-
tratégia pelo menos no caso de Teto e com certeza durante o trabalho dela
em outros projetos desde os anos 1970 até os anos 1980 – a chamada era da
normalização4.
O segundo fator que condicionou o status de Věra Chytilová é parente pró-
ximo do primeiro. Desde o começo de sua carreira, ela foi associada com
cinema experimental – desde seus anos de escola, quase todos os projetos
em que ela trabalhou foram acompanhados com incerteza em relação ao
resultado final. Em suas lembranças dos anos 1960, a diretora diz que não
havia muito espaço para improvisação durante as filmagens por causa da
distribuição limitada de negativos (Cieslar 2001a, 21). No entanto, como ve-
remos mais tarde, um determinado espaço para improvisação já estava in-
cluído nos roteiros dela. Isso pode ser relacionado ao fato de que Chytilová
gostava de escolher atores não profissionais e situava a trama do filme em
4 Os ‘jogos’ que Chytilová fazia com o sistema de aprovação da normalização podem ser facilmente
rastreados tanto nos estágios de pré quanto de pós-produção do filme Calamidade (Kalamita, 1981) - ela
seguiu as instruções do comitê e removeu certos temas do roteiro para ineri-los novamente de volta
sem que eles soubessem (ou os modificando ou colocando-os em outra parte do script) (Podskalský
2015, 35-39).
 ›
140 Vera Chytilová
um ambiente que, ou iniciava diretamente ou precisava de algum tipo de
improvisação. Em seus primeiros trabalhos, ela explorava a autenticidade
de atores não profissionais e das locações, o que era tido como uma introdu-
ção do cinéma vérité na Nouvelle Vague Tcheca. A abordagem experimen-
tal de Chytilová também se estendia aos seus trabalhos anti-realistas, nos
quais era reforçada por uma radical estilização formal sem precedentes no
contexto do cinema tcheco mesmo quando comparada com a maioria dos
filmes da Nouvelle Vague Tcheca. Nós vamos ver logo que a natureza ex-
perimental do trabalho de Chytilová encontrou reações contraditórias de
diferentes participantes no processo de aprovação.
Finalmente, não devemos nos esquecer de mais um traço, que foi necessa-
riamente determinado pelos dois fatores anteriores e deixá-lo de fora tor-
naria a imagem de Chytilová incompleta. O status de ‘encrenqueira’, que
foi atribuído a ela tanto pelo cinema quanto pelas autoridades da censura.
Começando com seu curta metragem Saco de pulgas (Pytel blech, 1962) - o
primeiro trabalho dela em um estúdio profissional - não há quase nenhum
título na filmografia de Chytilová que não tenha levantado preocupações
em relação a tramas e cenas controversas ou o significado geral do filme.
Mesmo quando discutido dentro da CSF, o trabalho dela nunca foi aceitado
tão espontaneamente quanto os filmes de Milos Forman e Jirí Menzel. Ela
se juntou ao grupo de ‘encrenqueiros’ lado a lado com Jan Nemec e Evald
Schorm, cujo trabalho era rotulado como o mais ‘problemático’.
Algo diferente: é essa a maneira de filmar?
Todas as características da identidade da autora já se manifestavam em seu
primeiro longa-metragem Algo diferente (O necem jiném, 1963). Graças ao
filme, Chytilová ganhou a reputação de uma ‘autora imprevisível’ aos olhos
de seus superiores e colegas. Não foi coincidência que o filme tenha sido
feito pelo grupo criativo do Barrandov: Bohumil Smída-Ladislav Fikar. Esse
grupo aspirava à dramaturgia progressiva; ele engajava jovens cineastas e
parcialmente se tornou o berço da Nouvelle Vague Tcheca. Depois do su-
cesso de Teto e Saco de pulgas, Chytilová teve a oportunidade de dirigir o
roteiro de Frantisek Kozik: Horké Vavríny/Bitter Laurels, um filme com tema
de esportes, inspirado na vida da famosa ginasta Eva Bosáková - sua car-
Perfeitamente imprevisível 141
reira, crises pessoais e um triângulo amoroso que envolvia o técnico dela
(Cieslar 2001b, 64). Chytilová partiu do roteiro original e abordou a história
como episódios narrados simultaneamente, tanto da vida da esportista de
sucesso Bosáková como de uma dona de casa comum, Vera.
Consultando os fragmentos dos arquivos referentes ao processo de apro-
vação, nós podemos presumir que, ao menos no começo, os métodos de
trabalho de Chytilová devem ter criado uma atmosfera de nervosismo. Di-
ferente da prática normal no FSB, era bastante incomum a pré-produção
de um filme começar sem um ‘roteiro literário’. Quando os chefes do grupo
criativo eram perguntados pelo HSTD por que eles não haviam mandado
um ‘roteiro literário’ para aprovação, eles respondiam que não havia ne-
nhum por conta da natureza documental do filme (Cenzurní karta 1962).
Chytilová admitiu mais tarde que quando ela devia ir com a equipe para
filmar o Campeonato Mundial de Ginástica Desportiva, no qual Bosáková
participou, no verão de 1962, o roteiro dela estava longe de estar completo
e o grupo recebeu somente versões rascunhadas (Cieslar 2001b, 64). Não
é de se espantar que o arquivo da censura de Algo diferente contenha uma
nota sobre o amadorismo de Chytilová. Uma abordagem como essa era bas-
tante rara nas práticas domésticas de estúdio.
Quando o HSTD perguntou de novo sobre o script, Fikar respondeu que
consultas com a diretora ainda estavam acontecendo e que o roteiro pro-
cederia tão logo os problemas com o script fossem resolvidos (Cenzurní
karta 1962). Infelizmente, nunca saberemos quais problemas Fikar tinha
em mente. Entretanto, duas versões do script foram encontradas e datam
de1962. Mesmo o script final contém rascunhos de situações que podem ter
gerado perguntas durante o processo de aprovação - por exemplo, as cenas
com Bosáková que deveriam parecer autênticas e que a diretora se referiu
brevemente como ‘diálogos de documentário’. O script final eventualmente
chegou ao HSTD. Embora tenha sido autorizado no final de 1962, o script
foi, em geral, não muito bem aceito, já que deu a impressão de uma ‘admira-
ção não-crítica por Eva Bosáková’. Os insights sobre a vida privada dela ini-
cialmente deveriam demonstrar seu ‘sacrifício de vida’ de uma maneira ne-
gativa. A repreensão mais importante foi apontada para o tema do aborto,
que o script tratava de uma ‘maneira socialmente errada’, já que Bosáková
sacrifica tudo por sucesso, mesmo a maternidade. O script supostamente
 ›
142 Vera Chytilová
glorificava tal comportamento como heroico, o que é algo a que a ética do
socialismo se opunha (Denní hlásení 1962).
Não é surpresa que esse assunto tenha recebido maior atenção - os
temas e motivos relacionados à ‘intimidade física’ foram especificamente
discutidos durante as negociações com a censura5. Em uma cena curta, Bo-
sáková está de pé diante do comitê de aborto cujo presidente pede para
que ela explique a razão de sua decisão. Ela responde: ‘Mas eu não quero
me livrar! Eu quero ficar com a criança! Eu sempre quis ter filhos. Acontece
que o Campeonato Mundial é em poucos meses. Estivemos nos preparando
para ele durante dois anos... então o que eu devo fazer?! (Chytilová 1962,
56). Embora o veredito do comitê não seja explicitamente mencionado no
script, alguns comentários (alguns deles são omitidos no filme) sugerem que
Bosáková passou pelo procedimento de aborto e a criança é exatamente o
que lhe falta na vida. Essa cena era para vir antes da visita de um repórter
e da confissão de Bosáková que, ‘Hoje em dia, ser uma atleta de ponta signi-
fica renunciar a todo o resto’. No contexto original, a reclamação apoiaria
a ideia inicial. Além disso, na cena logo após a vitória de Bosáková no Cam-
peonato Mundial, seu marido a conforta com as palavras que ela pode fi-
nalmente fazer tudo o que quiser. Mas Bosaková suspira para si mesma: ‘Eu
sei. Tudo menos aquilo.’ (125). No filme, no entanto, ela diz somente: ‘Eu sei’.
Se a cena que acontecia no comitê de abortos foi eventualmente filmada,
ela não entrou na ‘cópia de serviço’ do filme, já que o HSTD aprovou sem co-
mentários (Cenzurní karta 162). Esse exemplo certamente não representa
a única mudança feita em comparação com as intenções originais. Entre-
tanto, não há necessidade de atribuir as outras modificações à pressão dos
comitês de aprovação. Essa é uma típica característica do trabalho de Chy-
tilová: que o corte final seja significantemente diferente do roteiro apro-
vado. Algumas partes do script foram rearranjadas em ordem diferente (a
versão fílmica funciona consideravelmente melhor com uma montagem
de sequências da vida de Vera e do treino de Bosáková), outras passagens
diferem do script, foram editadas ou eliminadas completamente. O script
narra em detalhes a parte da trama do caso amoroso de Vera usando bas-
5 “Intimidade física” se refere aqui a assuntos relacionados à sexualidade, erotismo ou vários pro-
cessos íntimos ou tabus do corpo humano (incluindo o aborto). Para mais sobre esse tópico ver Skupa
e Frodlová 2014.
Perfeitamente imprevisível 143
tante diálogos dela com seu amante. O filme, ao contrário, apresenta essa
parte da trama em forma de pistas usando somente os momentos-chave e
frequentemente sem diálogo. Além disso, mesmo o diálogo difere em vá-
rios pontos do script final. No contexto geral do roteiro, o tema do aborto
é secundário, mas ainda assim, muito importante. Ele poderia ter trazido
um significado mais profundo para a história de Bosáková e talvez evitado
algumas das objeções dos críticos que diziam que Chytilová deveria ter re-
tratado a vida pessoal da atleta com maior profundidade.
Algo diferente também contribuiu para o status de Chytilová como ‘experi-
mentadora’. Em setembro de 1963, três meses antes da estreia oficial do fil-
me, um longo debate foi organizado entre jornalistas selecionados, cineas-
tas e representantes do FSB (Chrastil 1963). Eles discutiram a abordagem
pouco ortodoxa de Chytilová de justapor documentário e cenas encenadas
e se era realmente certo fazer um filme assim. A discussão não seguiu sem
comentários similares aos que o HSTD havia previamente mencionado –
reportando que o filme favorecia Bosáková e sua carreira profissional ex-
cluindo Vera e seu papel como mãe e esposa. Foi dito que da maneira com
que Chytilová retratou a vida de Bosáková, faltava a comparação de valo-
res que a diretora havia intencionado demonstrar com as duas persona-
gens. O fato de Bosáková ter tido que sacrificar algo trágico em sua vida
que não é mostrado no filme também foi mencionado durante o debate.
Chytilová não admitiu abertamente que um assunto trágico importante
havia sido removido do filme. A cineasta, no entanto, revelou que ela não
podia tornar público tudo sobre a vida pessoal de Bosáková, assim deixan-
do certas coisas em segredo (Chrastil 1963, 11).
Em 1963, o filme de estreia de Chytilová ganhou o Grande Prêmio no Fes-
tival Internacional de Cinema Mannheim-Heidelberg e também obteve
distribuição internacional6. Isso talvez explique o porquê ela foi a primei-
ra dentre seus colegas da Nouvelle Vague Tcheca a começar a trabalhar
em um novo roteiro chamado “Avaliação” (“Possudek”), renomeado depois
como Matylda Tomate (Rajce Matylda). O projeto no qual o roteirista Lud-
vik Askenazy e o diretor Jìrí Menzel trabalharam juntos com Chytilová foi
6 Entre 1963 e 1965, o filme Algo diferente foi distribuído em cinemas e em estações de televisão em 10
países diferentes (incluindo Bélgica, Noruega, Reino Unido, Egito e Lichtenstein) (Havelka 1975, 247)
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144 Vera Chytilová
iniciado em 1963 pelo mesmo grupo criativo Smída-Fikar mas permanece
não realizado (Chytilová, Askenazy, e Menzel 1963). A história de Matylda,
jovem estudante e atriz, que foi expulsa da escola devido a comportamen-
tos ‘inadequados’ e como castigo deveria passar um ano como trabalhadora
nas fábricas de Ostrava, provavelmente sequer passou pelo HSTD. O proje-
to retratava a experiência real de Helga Cocková, amiga de Chytilová, que
foi presa durante uma demonstração estudantil em maio de 1962. Como
resultado, a atriz foi expulsa da DAMU (Departamento de Teatro da Acade-
mia de Arte Dramática em Praga) e mandada para ser reeducada em uma
unidade industrial de Ostrava, trabalhando como eletricista assistente. O
projeto foi parado em março de 1965 pela direção de cinema com uma nota
lacônica explicando que a decisão fora tomada por ‘autoridades mais al-
tas’ que duvidaram do quão conveniente seria recontar ‘uma história como
essa’ (Rajce Matylda 1965).
Essa foi, no entanto, uma inesperada mudança de postura. No plano de dra-
maturgia do FSB para 1964, o filme ainda era descrito como um dos princi-
pais projetos do ano. Inclusive, de acordo com a política anunciada no 12o
Congresso do Partido Comunista da Tchecoslováquia (KSC), o filme deveria
‘lutar contra a distorção da ideologia socialista’ e mostrar o conflito da ge-
ração mais jovem com a hipocrisia na sociedade (Dramaturgický plán 1963,
3). No plano de 1965, no entanto, Matylda Tomate foi colocado de lado (Dra-
maturgický plán 1964, 7). Isso pode ter sido influenciado pelo fato de que
Chytilová estava ocupada trabalhando em Na cafeteria do mundo (Automat
Svet), um dos curtas da antologia de cinco partes Pérolas das profundezas
(Perlicky na dne, 1965). Enquanto isso, ela também começou a trabalhar no
roteiro de As pequenas margaridas (Sedmikrásky, 1966).
Chytilová tirou inspiração do script de Matylda Tomate das cartas que Hel-
ga Cocková lhe mandou de seu ‘internato de trabalho’. A cineasta afirma
que não lhe foi concedida permissão para filmar por causa de sua decisão
intransigente de escalar Cocková no papel principal (Kopanevová 2001, 11).
Existe, no entanto, uma versão mais crível. A época em que o projeto foi
definitivamente cancelado coincidiu com um assunto muito maior ligado
à censura e se relacionava a um grupo de chamados ‘filmes problemáticos’,
mais exatamente Coragem para todos os dias (Kazdy den odvahu, 1964) de
Evald Schorm e Josef Kilian (Postava k podpírání, 1963) de Pavel Jurácek e
Perfeitamente imprevisível 145
Jan Schmidt, os quais, de acordo com o HSTD e com o Departamento de
Ideologia do ÚV KSC, criavam uma falsa imagem tanto do passado do so-
cialismo como da situação atual. Como consequência, o chefe do CSF
cancelou diversos projetos que tinham o mesmo tipo de temas críticos e
se arriscassem a receber reações negativas (Skupa 2016, 104-115). Matylda
Tomate era muito provavelmente um deles, já que demonstrava claramente
que a classe trabalhadora deveria contribuir para a correção da heroína
não estava exatamente na posição de dar lições sobre o comportamento
de ninguém.
No entanto, o filme teria se ajustado dentro da visão aceita de Chytilová
e de seu estilo de trabalho. A explicação da diretora revela que partes do
roteiro relacionadas às cenas na fábrica de Ostrava estavam intencional-
mente incompletas já que ela planejava trabalhar diretamente com os per-
sonagens interpretados por não-atores. Haveria espaço para as sugestões
deles na encenação e no discurso autêntico, uma vez que Chytilová não
queria representar de forma errada o ambiente de Ostrava7. Enquanto isso,
a explicação dela implica que ela queria apresentar essa parte da história
de uma maneira grotescamente exagerada (Chytilová, Askernazy e Men-
zes 1963). Uma estratégia que refletia a posição de Chytilová e era típica de
seus projetos posteriores.
As pequenas margaridas: filmar ou não filmar?
O status de Chytilová como uma autora imprevisível foi aumentado quando
ela se afastou da poética do cinéma vérité e decidiu seguir o caminho de uma
estilização mais radical na forma e no uso de alegorias. Enquanto Algo dife-
rente - ‘inspirado por eventos imediatamente atuais’ - foi qualificado dentro
do CSF como um dos projetos-chave de 1963 (Polednák 1967, 9), As pequenas
margaridas era geralmente visto como um exemplo de ‘experimento’ que os
cineastas tchecos deveriam evitar. Falando desse tipo de trabalho, a avalia-
ção do Departamento de Ideologia do ÚV KSC diz: ‘Linguagem metafórica e
alegoria abrem espaço para interpretações ambíguas. [...] Uma obra de arte
deve falar por si própria. Se notas explicativas das intenções de um autor
7 Ostrava, onde Chytlová nasceu, é uma cidade industrial situada perto da fronteira com a Polônia,
conhecida por seu dialeto peculiar.
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146 Vera Chytilová
são necessárias, ou instruções para entendê-las envolvem longas discus-
sões, provavelmente há algo faltando.’ (Auersperg 1967, 5). O quartel general
do CSF adotou uma postura igualmente distante em relação à tendência da
estilização fílmica e da utilização de alegorias. O diretor geral do CSF, Alois
Polednák, disse: ‘Não é um sinal de potencial artístico no cinema, mas uma
falta de convicção mental quando o autor abraça a linguagem incompreen-
sível da metáfora e da alegoria que obscurece o significado real do filme e
permite interpretações múltiplas.’ (Polednák 1967, 11).
No início, nada sugeria que As pequenas margaridas se tornaria um filme
tão ambíguo e vigiado tão de perto, bem como um dos trabalhos mais dis-
cutidos da década inteira. A sinopse e a história do filme escritas em 1965
sob o nome de Chudobky (sinônimo tcheco para a palavra sedmikrásky) têm
muito pouco em comum com as versões posteriores do script e com o filme
resultante. A história se passava obviamente nos anos 1960 e era mais rea-
lista – retrata duas jovens garotas matando tempo com várias aventuras e
brincadeiras endereçadas principalmente aos homens até o momento em
que elas decidem descobrir se existe alguma ‘pessoa boa que elas possam
respeitar e que não pareceria ridículo’ (Chytilová e Jurácek 1965). Pavel Ju-
rácek, com quem Chytilová trabalhou na história original do filme, notou:
‘[...] quando eu penso em como ela discutia meu script com Suchý, Vyskocil8
e Krumbachová e pedia conselhos para eles, já que eu havia escrito uma
coisa que ela obviamente não poderia filmar, eu vejo pontos pretos na fren-
te dos meus olhos até agora.’ (Jurácek 2003, 474).
A participação de Ester Krumbachová, uma roteirista e artista multitalen-
tosa, no processo de escrita influenciou fundamentalmente o desenvol-
vimento do script. Duas jovens heroínas foram mantidas como o cerne da
narrativa. No entanto, só restaram fragmentos da trama original. A história
se desdobra de acordo com um jogo de ‘verdade ou desafio’ associado inti-
mamente ao princípio de destruição que acompanha toda a narrativa. Na
introdução às notas explicativas para o ‘roteiro literário’ de junho de 1965,
Chytilová salienta que ele não representa uma imagem realista das vidas
de duas garotas jovens com psicologia convencional. Ela define seu traba-
8 Jìrí Suchý - diretor de teatro, ator, cantor, compositor, poeta, escritor e cofundado do teatro de Praga,
Semafor, que experimentou uma era de ouro nos anos 1960. Ivan Vyskocil – escritor, dramaturgo, ator,
professor de teatro e cofundador de um teatro de Praga, Divadlo na zpabradlí.
Perfeitamente imprevisível 147
lho como um ‘documentário filosófico grotesco’ que pretende criticar um
estilo de vida cujos elementos são, em maior ou menor medida, parte de to-
dos nós (Chytilová e Krumbachová 165a, A-B). À época em que Chytilová e
Krumbachová estavam escrevendo o roteiro era evidente que o projeto Ma-
tylda Tomate não seria realizado. No FSB, as consequências dos problemas
com a censura mencionados acima com os ‘filmes problemáticos’ de
1965 se tornaram evidentes. Pessoas no departamento de dramaturgia e
encarregadas do processo de aprovação dentro de Barrandov ficaram mais
cuidadosas. No contexto das novas medidas rigorosas, As pequenas margari-
das não foi exceção. O projeto era visto como potencialmente problemático.
Os líderes do cinema começaram a ter ainda mais dúvidas uma vez que o
HSTD forneceu uma opinião extremamente negativa do ‘roteiro literário’
para As pequenas margaridas que também estava sendo avaliado pelo De-
partamento de Ideologia do ÚV KSC. Esse último sugeria mesmo que o pro-
jeto fosse abandonado (Denní hlásení 1965). O diretor geral do CSF, Poled-
nák, explicou em julho de 1965 em correspondência privada com o líder do
Departamento de Ideologia do ÚV KSC, Pavel Auesperg, que As pequenas
margaridas havia sido discutido no CSF muito antes que se tornasse uma
preocupação para as autoridades da censura. Polednák disse que Chytilová
foi persuadida a reescrever o script e era, portanto, bastante provável que
a revisão geral da história original do filme que ela havia escrito em coope-
ração com Jurácek surgisse de uma solicitação de seus superiores. Na cor-
respondência, Polednák falava sobre o roteiro como sendo uma ‘crítica da
superficialidade e das ilusões sobre a vida’ e um ‘experimento em todos os
aspectos’, Ele também mencionava o trabalho específico de Chytilová: ‘[...] os
scripts dela não podem ser lidos como um filme. Os roteiros dela são escritos
somente como uma planta baixa para o futuro filme.’ (Polednák 1965).
Mesmo assim, dessa vez, o trabalho típico de Chytilová recebeu uma su-
pervisão menos indulgente. A diretora foi aconselhada a fazer o seguinte:
especificar os personagens das heroínas, remover expressões vulgares e
descrever com profundidade o contexto e os traços de personalidade que
levam à ‘indiferença e falta de compreensão dos valores da vida por um
grupo específico de adolescentes’. Ela também deveria apagar todos os
sinais no comportamento das garotas que pudesse sugerir um subtexto
lésbico à relação delas. Polednák insinuou que a decisão final a respeito da
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148 Vera Chytilová
realização do filme deveria ser tomada depois que ela apresentasse uma
nova versão do roteiro revisada de acordo com as instruções. À própria
diretora também foi pedido que esclarecesse a ideia do filme (Polednák
1965). Os relatórios diários de produção mostram que a pré-produção de
As pequenas margaridas foi acompanhada não somente pela pressão de
apresentar o roteiro final, mas também preocupações se o filme seria mes-
mo realizado, ainda que as preparações para as gravações já houvessem
começado. De acordo com o relatório de 23 de julho de 1965, Polednák
iria ler o roteiro mais uma vez. Se ele não aprovasse, a produção seria sus-
pensa. Polednák também discutiu As pequenas margaridas com Bohumil
Smída, o diretor de produção do grupo criativo Smída-Fikar, que ordenou
que nenhuma outra cópia do roteiro fosse produzida sem a autorização do
diretor geral (Denní zprávy 1965).
Se nós compararmos o ‘literário’ e a versão final do roteiro, eles somente
diferem nas modificações requeridas pelas sugestões de Polednák e peas
autoridades da censura. As expressões vulgares usadas no diálogo não apa-
recem no roteiro final. Uma parte que incluía o que provavelmente não é o
mais explícito subtexto lésbico também foi deixada de fora - uma das ga-
rotas acaricia a outra até que intimidade se transforma em agressão com
implicações sexuais (Chytilová e Krumbachová 1965a, 60-62). Outra cena
representando o ‘trabalho socialista voluntário’ que preocupava o HSTD
também está faltando no roteiro final. Um jovem admite para a heroína
que ele não trabalha voluntariamente por convicção, enquanto outro, um
voluntário mais ‘consciente’, se oferece para acompanhar a garota até a
piscina e lhe empresta seu distintivo, ‘por uma Praga mais bonita’, o que é
oferecido como uma medalha de honra. A garota pendura o distintivo na
parte de cima de seu biquini (48-49). Graças às negociações de Polednák,
que convenceram Auesperg que o filme daria toda uma outra impressão
quando estivesse terminado (ainda melhor do que o próprio roteiro), a ver-
são final do roteiro foi eventualmente autorizada (Kovárik 1967). Em suas
entrevistas, Chytilová não diz muito sobre o processo de aprovação de As
Pequenas Margaridas. Ela apenas confirma brevemente o que já emerge
dos detalhes acima: no começo, os líderes do cinema não queriam lhe dar
permissão, mas, tendo em vista seus trabalhos anteriores, eles decidiram
confiar nela com o roteiro (Kopanevová 2001, 11).
Perfeitamente imprevisível 149
O processo de aprovação da pós-produção não foi poupado de complica-
ções. Não somente o primeiro corte que Chytilová apresentou às autorida-
des não foi aprovado, ele também dividiu opiniões entre os chefes do grupo
criativo Smída-Fikar. Bohumil Smída diz em suas memórias: ‘Na época em
que As pequenas margaridas foi feito, eu não era um fã de filmes de gênero
simbólico [...]. Devido à minha postura tendenciosa, esse possa ter sido um
erro da minha parte. Especialmente quando eu briguei por causa do pri-
meiro corte com meu mais próximo e certamente mais perceptivo amigo
Ladislav Fikar.’ (Smída 1980, 226). Eles recomendaram que Chytilová deve-
ria tornar os 2580 metros de filme mais curtos, já que era muito prolongado
e precisava de um corte revisado. Junto com Krumbachová, ela começou a
trabalhar em uma versão editada (Hájek 1966). Nesse ponto, nós devemos
notar o efeito construtivo do processo de aprovação, já que ele encorajou
as autoras a procurar por soluções mais criativas.
Certas passagens que as autoridades da censura já estavam preocupadas du-
rante o processo da primeira aprovação do script não estão na versão final do
filme. Por exemplo, uma das sequências-chave no final depois do momento
em que as garotas destroem o banquete, se balançam no candelabro e caem
na água, foi significantemente modificada. Na versão final do roteiro, as ga-
rotas pedem socorro e são abordadas por um barco a vapor com turistas
dançando e um ‘homem de preto’ que dirige um discurso de reprimenda a
elas. As garotas gritam que não querem mais ser más e imploram para subir
a bordo. O homem, no entanto, ignora o pedido delas – a pessoa deve merecer
estar a bordo, só pessoas que são boas e trabalhadoras podem chegar lá. An-
tes de o barco ir embora, ele recomenda que elas sejam boas meninas e tra-
balhem duro para serem felizes. Tão logo elas se tornem pessoas melhores e
consertem o que elas fizeram, elas poderiam se juntar à companhia a bordo
(Chytilová e Krumbachová 1965b, 93-97). A avaliação do HSTD mencionava
a figura simbólica do ‘homem de preto’ e criticava o roteiro por representar
uma sociedade que não tenta salvar as garotas (Skupa 2016, 137).
No filme, vemos somente os planos de Marie se afogando e Marie que está
tentando se segurar no mastro do barco a vapor e declama algumas das fa-
las do diálogo original com o ‘homem de preto’. Na cena que segue, as heroí-
nas tentam consertar o banquete destruído enquanto repetem partes das
frases do ‘homem de preto’ que elas, no entanto, modificam de acordo com
 ›
150 Vera Chytilová
o seu gosto (‘se nós trabalharmos duro, nós seremos boas e felizes’, ‘nós te-
mos que trabalhar duro para nos tornarmos boas’, etc.). O fato de o ‘homem
de preto’ ter sido cortado pode estar relacionado com as possíveis metá-
foras que ele pudesse representar e que não agradaram as autoridades da
censura. Como o relatório do HSTD sugere – o simbolismo era muito óbvio
nesse caso e poderia ter provocado a imagem de uma sociedade negligente.
Comparando com a forma final da cena, nós devemos, no entanto, declarar
que retirar essa figura excessivamente instrutiva e moralizadora do final
do filme foi uma boa decisão. Algumas das sequências programadas para a
piscina também foram cortadas ou diminuídas. Por exemplo, uma cena que
fazia referência à prostituição foi definitivamente removida – um homem
mais velho se dirige a uma das garotas notando que, com 19 anos de idade
ela parece ter 14 e a encoraja a se tornar acompanhante para um estrangei-
ro rico (Chytilová e Krumbachová 1965b, (49-51). Esse calha de ser um dos
poucos fragmentos da história original escrita por Chytilová e Jurácek que
também foi aceito no roteiro revisado.
De acordo com o relatório de produção, a extensão final do filme era de 1980
metres e confirmava o que já era conhecido – o resultado era significante-
mente diferente do seu roteiro, especialmente em seu conceito experimen-
tal. Ainda que o script indicasse que As pequenas margaridas seria experi-
mental e não-realista, o filme ultrapassou todas as expectativas. Várias notas
abordando a estratégia visual e a concepção da montagem estavam faltando
na versão final do roteiro. Muitas sequências foram enriquecidas com a in-
serção de colagens de imagens que realçaram a natureza única do trabalho
e deixava subentendido o tema da destruição. A ideia de enquadrar o filme
com imagens de explosões só apareceu durante a pós-produção. Polednák
aprovou a versão rearranjada em abril de 1966 (Hájek 1966). A projeção para
tomada de decisões de As pequenas margaridas aconteceu no final de julho
de 1966 na presença de representantes do Departamento de Ideologia do
ÚV KSC, Polednák e de outras autoridades do CSF. Baseado na declaração
final deles, nós podemos presumir que o argumento que contribuiu para a
aprovação de um filme tão problemático foi o dinheiro – o filme já havia sido
vendido para distribuidoras internacionais na época (Kovárik 1967).
A aprovação da cópia final não encerrou o caso de As pequenas margaridas
- negociações para a distribuição do filme nos cinemas da Tchecoslováquia
Perfeitamente imprevisível 151
começaram nos dias seguintes. Os relatórios do HSTD de agosto de 1966
confirmam que naquele período, ainda não estava claro quando e como o fil-
me entraria na distribuição regular. Sem consultar o HSTD, a imprensa não
tinha permissão para publicar nenhuma notícia sobre As pequenas marga-
ridas, incluindo informações sobre as razões pelas quais a exibição do filme
tinha sido adiada (Sesit HSTD 1966, 18). A estreia estava programada para o
fim de dezembro de 1966. No entanto, em maio de 1967, o filme ainda estava
sendo discutido pelo Parlamento e se tornou um dos casos mais famosos
mencionados em conexão com a censura no cinema tcheco durante os anos
1960. O deputado Jaroslav Pruzinec requisitou então banir a distribuição
não somente de As pequenas margaridas, mas também de A festa e os con-
vidados (O slavnosti a hostech, 1966) feito por Jan Nemec. Apesar do pedido
de Pruzinec, os filmes não foram tirados de distribuição - de acordo com as
instruções de Polednák, tanto As pequenas margaridas quanto A festa e os
convidados só deveriam ser exibidos em público em limitados círculos de
distribuição, principalmente em cineclubes (Skupa 2016, 141-142).
Fruto do paraíso (Ovoce stromu rajských jíme, 1970): filmar do jeito dela?
No outono de 1967, Chytilová disse em sua entrevista com A. J. Liehm que
ela sentiu pra baixo depois de tudo que aconteceu com As pequenas mar-
garidas e insinuou que poderiam haver mais obstáculos para seus traba-
lhos futuros (Liehm 2001, 266). O nome dela apareceu em um projeto novo
chamado “Certezas” (“Jistoly”) - uma narrativa amarga sobre um casal ido-
so que não quer considerar a possibilidade de se separar porque o medo
que têm da solidão é muito maior. De acordo com o plano de dramaturgia
de 1967, a diretora estava trabalhando no script com Zdena Skvorecká9. O
projeto, no entanto, nunca foi além (Dramaturgický plán 1966, 5). Chytilová
também admitiu na entrevista acima que, junto com Ester Krumbachová,
elas haviam terminado um roteiro novo e estavam tentando conseguir per-
missão para sua realização (Liehm 2001, 267).
A preparação para a filmagem da alegoria bíblica Fruto do paraíso come-
çou em julho de 1968. Nesse caso, os atrasos não se deviam a nenhuma com-
9 Zdena Skvorecka – escritora e tradutora, mulher do escritor Josef Skvorecký. Depois do ano de 1968,
ela emigrou junto com seu marido, encontrou uma editora em seu exílio ‘68 Publishers em Toronto.
 ›
152 Vera Chytilová
plicação com as aprovações, mas estavam ligados a problemas de coprodu-
ção. Chytilová havia assinado um contrato para seu próximo filme com uma
produtora canadense antes de ela e Krumbachová terem terminado o script
(Kunc 1968, 3). O coprodutor eventualmente rejeitou o roteiro e as autoras
tiveram que lidar com assuntos legais e encontrar um parceiro estrangeiro
diferente – a companhia belga Elisabeth Films. Pelo lado tcheco, um novo
grupo criativo Pavel Jurácek-Jaroslav Kucera10, que já havia recebido um
roteiro aprovado do grupo criativo Smída-Fikar, assumiu o projeto.
Comparado com os projetos anteriores de Chytilová, a produção deste fil-
me foi feita sob condições completamente diferentes. Em 1968, durante a
primavera de Praga, havia menos restrições no cinema. Depois de vários
meses de diminuição de poder dentro do escritório da censura, ele foi abo-
lido oficialmente em junho de 1968. No fim de janeiro de 1968, o ‘roteiro li-
terário’ de Fruto do paraíso foi aprovado pelo ‘Ústrední publikacní správa’
(antigo HSTD). A avaliação foi, mesmo assim, uma simples formalidade e
não houve sugestão para modificações (Cenzurní karta 1968). Isso dificil-
mente aconteceria um ano antes, se levarmos em consideração a postura
das autoridades da censura em relação ao uso de alegorias. O projeto tam-
bém recebeu um status completamente diferente por causa da co-produ-
ção. Cooperação com cinemas ocidentais era algo especialmente tentador
para cineastas tchecos de um ponto de vista financeiro; comparado com o
ambiente do cinema doméstico, era uma oportunidade muito mais lucrati-
va. No entanto, nesse caso em particular, podemos levar em conta pelo me-
nos uma outra motivação, uma vez que havia um investimento estrangeiro
em risco, o processo de aprovação ocorreu sem maiores complicações. En-
tão, podemos supor que depois dos problemas com As pequenas margari-
das, trabalhar em co-produção era mais conveniente para Chytilová.
Fruto do paraíso, portanto, desviou de todas as complicações possíveis du-
rante o processo de aprovação. Partindo da nossa perspectiva, a menção
ao trabalho é válida pelo fato de que todos os elementos da identidade de
Chytilová como uma autora imprevisível estavam presentes na produção
do filme. Respeitando a estratégia de trabalho de Chytilová e o conceito
10 Não confunda o diretor de produção Jaroslav Kucera com o diretor de fotografia e marido de Chyi-
lová de mesmo nome, com quem ela trabalhou nos filmes As pequenas margaridas e Fruto do paraíso.
Perfeitamente imprevisível 153
experimental do projeto, ambos os produtores concordaram em o roteiro
ser somente um ‘esboço dos contornos’ do filme. A forma final deveria ser
designada exclusivamente pela diretora (Hulík 2011, 222). Também, o dire-
tor da Filmexport, Ladislav Kachtík, que estava encarregado das relações
internacionais de cinema, confirmou que Chytilová possuía uma autono-
mia artística incomum especificada no contrato com a companhia de co-
-produção (Skopal 2012, 165). Embora a produtora belga Bronka Ricquier
reclamasse depois dos atrasos na produção, o diretor do FSB, Vlastimil
Harnach, a convenceu de que não havia maneira de influenciar o trabalho
de Chytilová, já que exercer pressão poderia levar a um resultado indese-
jado (Hulík 2011, 222).
De todos os filmes que consideramos até agora, esse, acima de todos, levanta
a questão do quanto as autoras pretendiam mudar o significado enquanto
trabalhavam nele. Toda uma sequência de cenas de diálogo é arranjada de
modo que não vejamos os rostos dos personagens. A câmera emprega ou
um plano aberto ou um plano enviesado, aonde não nos concentramos nas
expressões faciais ou no movimento dos lábios. É possível que essas estra-
tégias de composição tenham sido escolhidas para possibilitar uma dubla-
gem mais facilitada para o mercado de co-produção. No entanto, isso tam-
bém deixou os diálogos mais flexíveis e deu a chance a Chytilová de mudar
o significado de algumas cenas. Afinal de contas, ela não queria responder
quaisquer perguntas sobre suas intenções pessoais enquanto filmava Fruto
do Paraíso. Em uma entrevista para a revista Kino, ela declarou que estava
simplesmente preocupada que a mesma situação pudesse ocorrer sobre a
interpretação dos filmes anteriores dela – uma incompreensão baseada em
comparar as intenções originais com o resultado (Tunys 1969, 4).
O silêncio da diretora podia também estar relacionado a uma mudança de
eventos importante – a ocupação da Tchecoslováquia pelos exércitos das
nações do Pacto de Varsóvia, que aconteceu em agosto de 1968. O filme ain-
da estava no estágio de preparação e Chytilová decidiu mudar parcialmen-
te seu significado:
Eu adaptei o filme à corrente situação como uma alegoria, obviamente [...].
Nós escrevemos o script com Ester [Krumbachová] como uma parábola do
paraíso do qual fomos expulsos porque nós temos que saber a verdade. Es-
 ›
154 Vera Chytilová
ter apareceu com a ideia de basear a história em um assassinato real de
mulheres que foi publicado na imprensa. Ela chegou à conclusão que nós
podíamos usar nele algumas das questões gerais de verdades e mentiras,
amizade e traição, que ressoavam pela nossa sociedade em 1968. Existe
uma rejeição explícita em aceitar a verdade vivenciada (Chytilová e Pilát
2010, 181-182).
De acordo com Chytilová, depois dos eventos de agosto de 1968, o tema
principal do filme deveria ser a traição. Ainda que não possamos dizer que
exista uma mudança radical de direção no filme comparado com o roteiro, o
significado de algumas partes mudou. Não é coincidência que tenha envol-
vido as cenas em que a heroína Eva se encontra sozinha com Robert – um
estrangeiro e sedutor que se revela um assassino de mulheres. Esses diálo-
gos refletem sobre tópicos que poderiam se alinhar com a situação depois
da invasão de agosto. Um bom exemplo é a cena em um barco em que os
diálogos foram totalmente mudados – Eva está falando com Robert sobre
verdade e amizade, o que não pode acontecer sem confiança. Na cena final,
Eva mata Robert usando a arma dele. Ainda que essa sequência combine
com o roteiro (Chytilová e Krumbochová 1968, 78-80), ela foi desenvolvida
e ganhou um significado muito mais profundo – as palavras de decepção e
traição são abertamente pronunciadas nela.
A própria Chytilová salientou o significado específico da cena. É uma con-
clusão dramática para o relacionamento entre Eva e Robert, que é baseado
nas questões de mentiras e traições e encenada em um ambiente externo
cuidadosamente escolhido para parecer (em seu formato) com a fronteira
da Tchecoslováquia. Chytilová reclamou que a principal mensagem – para
a qual essa cena oferece uma chave - não foi compreendida na exibição do
filme no Festival de Cannes de 1970 (Zlatá sedesátá 2009). Deve ser ressal-
tado que o filme recebeu reações mornas mesmo dos críticos tchecos, que
acharam o filme por demais encriptado para qualquer pessoa exceto para
Chytilová e Krumbachová, que diziam ter criado o filme somente para si
mesmas (Hrbas 1970, 5).
Tudo sugere que Chytilová fez seu último filme dos anos 1960 da maneira
que ela queria. A censura foi reestabelecida em setembro de 1968, mas não
tinha mais um escritório designado especialmente para a produção cine-
Perfeitamente imprevisível 155
matográfica. Tão logo os líderes da nova normalização assumiram, os me-
canismos de censura foram reforçados diretamente através das estruturas
da indústria cinematográfica. Mesmo assim, a maior parte do trabalho em
Fruto do Paraíso foi feita durante a época da antiga administração do FSB e
do CSF. O filme foi terminado logo após a mudança na liderança do cinema
e a estreia oficial aconteceu em julho de 1970. Chytilová acreditava que,
diferentemente de outros de seus filmes do final dos anos 1960 que foram
colocados na lista negra11, esse não seria banido nunca porque ninguém en-
tendeu seu significado oculto (Chytilová 2008).
Conclusão: seis anos de um silêncio
O contexto da produção dos longas-metragens de Věra Chytilová dos anos
1960 revela o que foi, de alguma maneira, escondido – como a aprovação
dos filmes funcionava na Tchecoslováquia e como os resultados e também
a forma final do filme podia ser afetada por vários elementos envolvidos
nesse processo. A posição dos próprios autores e suas escolhas dentro do
processo de aprovação - parcialmente criativo, parcialmente acomodando
as demandas dos outros - também foram desvendados. O caso de Chytilová
é notável uma vez que a imprevisibilidade associada à feitura de seus filmes
complicava essa aprovação, mas, ao mesmo tempo, fornecia um argumento
para a defesa dos projetos da autora e seus status de extraordinários ou
experimentais. Embora um afastamento dos roteiros ou das intenções ori-
ginalmente anunciadas não seja raro na produção cinematográfica normal,
no contexto do cinema estatal da Tchecoslováquia nos anos 1960, esse era
um fenômeno incomum para dizer o mínimo. Ainda assim, graças à sua po-
sição de autora respeitada com uma reputação internacional que não para-
va de crescer, os superiores de Chytilová aprenderam a permitir e tolerar
essa faceta do trabalho dela, mesmo à custa de possíveis problemas.
No entanto, os três primeiros longas de Chytilová também podem nos dizer
algo sobre a era dos anos 1960, que continua a ser associada com ideias algo
11 Filmes feitos no final dos anos 1960 que apareceram na lista negra foram, por exemplo, Todos os bons
companheiros (Vsichni dobrí rodáci, 1968), A piada (Zert, 1968), Orelha (Ucho, 1969), Um domingo desperdi-
çado (Zabitá nedele, 1969), Andorinhas por um fio (Srkivánci na niti, 1969) e Cerimônias de enterro (Smutec-
ní slavnost, 1969). A proibição não foi propriamente reavaliada antes de 1988 e 1989 (Bláhová 2010).
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156 Vera Chytilová
simplistas sobre o afrouxamento gradual do regime totalitário e de seu sis-
tema político e cultural. O que costuma ser chamado de ‘os anos dourados’
eram, na verdade, uma era bastante dinâmica, com anos de repressão e de
relaxamento se sucedendo com relativa rapidez. Entre 1962 e 1964, quando
Chytilová fez seus primeiros filmes profissionais sem quaisquer problemas
significativos, podemos falar realmente sobre tempos consideravelmente
relaxados que se manifestaram na descentralização da dramaturgia, na
chegada dinâmica da Nouvelle Vague Tcheca e em uma preferência pelo
cinema autoral para servir como modelo para um festival de sucesso e para
produtos tipo exportação. Comparado a isso, depois de 1965 houve um res-
surgimento de tendências políticas conservadoras e as condições se tor-
naram mais restritivas – o cinema não foi poupado e como consequência,
os planos prévios para a dramaturgia foram revisados. O cancelamento do
projeto de Matylda Tomate, que parecia inadequado naquele contexto es-
pecífico, e, especialmente, o complicado processo de aprovação de As pe-
quenas margaridas tanto no estágio de pré quanto no de pós-produção for-
nece evidências para isso. No ano de 1968, durante o que chamamos de Pri-
mavera de Praga e com o fim da censura, a situação mudou de novo. Embora
a censura tenha sido restaurada logo depois da ocupação de agosto de 1968,
ainda no ano de 1969 havia projetos preparados pela ‘antiga’ dramaturgia,
que continuaram a serem desenvolvidos sob condições relativamente au-
tônomas, incluindo filmes que dificilmente teriam sido aprovados nos anos
anteriores (e também nos posteriores). A parábola Fruto do paraíso é um
exemplo perfeito.
Desde mais ou menos a metade de 1969, a situação foi afetada por medidas
promovidas pelas novas pessoas designadas para as principais posições no
FSB e no CSF, que eram leais às políticas de normalização e que viram o cine-
ma entrar em uma ‘nova’ era. Em 1970, o FSB introduziu novas medidas – um
chamado ‘teste de valores e crenças políticas’ (‘stranická proverka’) que ro-
tulou Chytilová como persona non grata. Embora os filmes de Chytilová não
tenham desaparecido oficialmente da distribuição, eles foram projetados
em público somente esporadicamente nos anos seguintes. Ela só voltou à
direção de longas metragens seis anos depois, dessa vez não para Barran-
dov, mas para o Short Film Studios (Krátký film) aonde ela pôde fazer O jogo
da maçã (Hra o jablko, 1977). Embora Chytilová tenha planejado fazer vários
Perfeitamente imprevisível 157
filmes durante os anos anteriores, nenhum deles passou da fase do roteiro.
O destino desses projetos pertencia a uma era diferente da era considera-
da nesse estudo. Mas, para concluir, podemos discuti-los brevemente já que
eles sustentam a afirmação sobre a ‘imprevisibilidade’, que continuou a ser
uma característica do trabalho dela na era da normalização.
No começo dos anos 1970, o novo grupo dramatúrgico de Vojtech Cach co-
meçou a trabalhar em uma sinopse para um projeto sobre Bozena Nemco-
vá. O script para O rosto da esperança (Tvár nadeje), baseado em um estudo
detalhado do legado do renomado escritor tcheco foi escrito por Chytilová
em 1972 (Hulík 2011, 223). Anúncio de morte (Smrt na inzerát) deveria ser
uma adaptação de uma história de detetive escrita por Eva Kacírková e foi
oferecido ao grupo de Karel Cop em 1973. A personagem principal está ten-
tando se lembrar através de flashbacks do misterioso caso de duas mortes
– a do marido dela e de uma amiga – e descobre que o alvo original era ela
própria (Kacírková 1973). Em 1973, Chytilová trabalhou em mais um projeto
para Cop – uma comédia musical chamada Como se tornar um homem (Jak se
státi muzem) em cooperação com Zdenek Sverák e Milon Cepelka, atores
do popular teatro Cimrman, que haviam acabado de entrar no mundo do
cinema. Era a história de um jovem comum que se torna um cantor famoso
e experimenta os dois lados da fama. Seu estilo de vida agitado é interrom-
pido por um acidente de carro que o força a começar novamente do zero e,
com sorte, de maneira diferente (Severák, Cepelka e Chytilová 1973).
Pelo resto de sua carreira, Chytilová tentou fazer O Rosto da Esperança, in-
felizmente sem resultado. Anúncio de Morte foi rejeitado com as palavras
de que haviam histórias de detetive demais no plano de dramaturgia da-
quele ano (Cop 1973). O projeto de Como se Tornar um Homem foi recusado
porque foi dito que as autoras não haviam apresentado a primeira versão
do roteiro a tempo e, ademais, que Chytilová teria pedido indevidamente
seu adiantamento (Cop 1974). O intervalo involuntário de seis anos endos-
sou sua reputação de cineasta que se recusava a fazer concessões para
continuar trabalhando. Ainda assim, alguns de seus projetos não realizados
trazem uma coisa absolutamente nova – a atração inesperada da autora por
gêneros que são mais próximos do espectador e, aparentemente, tinham o
potencial de dar a ela uma chance de voltar. No entanto, considerando tudo
que descobrimos sobre o trabalho de Chytilová, podemos ter quase certeza
 ›
158 Vera Chytilová
que esses roteiros algo conformistas eventualmente se transformariam em
algo completamente diferente na tela do cinema. A falta de apoio dos líde-
res do cinema obviamente não era causada pelos próprios scripts, mas sim
pelo método de trabalho de Chytilová, que, nos anos da normalização, não
receberam a mesma tolerância e compreensão de antes.
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 Eu quero trabalhar 163

Eu quero
Carta de Věra Chytilová ao então presidente da República Tcheca Gustav
Husák, escrita no outono de 1975.

Estou recorrendo a você, pois não vejo outra saída. Todos os meus esforços

trabalhar
para encontrar trabalho foram em vão e deposito minha última esperança
1 em seu senso de justiça.

Eu sou uma diretora de cinema. Quando entrei na indústria cinematográfi-

ca, há 21 anos como operadora de claquete nos Estúdios de Cinema de Bar-
›

VEra Chytilová
randov, fiquei tão interessada na área que prestei vestibular para Faculda-
de de Cinema e me matriculei para estudar aos 27 anos. Graduei-me com
honras e voltei para o Barrandov.

Eu fiz cinco filmes ao todo: Teto (Strop, 1961), Saco de pulgas (Pytel blech, 1962),
Algo diferente (O něčem jiném, 1963), As pequenas margaridas (Sedmikrásky,
1966) e Fruto do paraíso (Ovoce stromu rajských jíme, 1970).

Permita-me descrevê-los brevemente.

Teto era minha obra de formatura na faculdade; nela eu tentei fazer com
que o espectador refletisse sobre o “teto” das possibilidades humanas, sobre
como muitas vezes, seja por apatia ou covardia, não temos coragem de exi-
gir mais de nós mesmos e perceber que ainda há tempo de começar de novo.

O documentário Saco de pulgas tratava de jovens trabalhadores têxteis,

meninas aprendizes e desenhadores, chamando atenção para o importan-
tíssimo papel daqueles que são responsáveis pelos jovens, seus professores
e instrutores.

Em Algo diferente, eu tentei, ao contar as histórias de vida aparentemente

desconexas de duas mulheres, mostrar o significado por trás do esforço hu-
1 Publicado originalmente em The Palach Press n.5, v.2, junho de 1976. Tradução de Maria Almeida. mano, revelar o que constrói ou destrói nossa auto-realização.
 ›
164 Vera Chytilová
As pequenas margaridas era uma peça de cunho moral que mostrava como
o mal não se manifesta necessariamente em uma orgia de destruição cau-
sada pela guerra, que suas raízes podem estar escondidas nas brincadeiras
maliciosas da vida cotidiana. Escolhi como minhas heroínas duas jovens,
porque é nessa idade que a pessoa mais deseja se realizar e, se deixadas por
conta própria, sua necessidade de criar pode facilmente transformar-se
exatamente no oposto.
Em meu último filme, Fruto do paraíso, voltei ao assunto da relação entre
um homem e uma mulher, o problema de descobrir a verdade por trás des-
se relacionamento e a força para viver com essa verdade.
Desde que terminei este filme, em 1970, não fui autorizada a trabalhar em
nenhum dos meus roteiros, a despeito do fato de alguns deles terem sido
aceitos e aprovados anteriormente. Seus assuntos-tema variavam, mas eles
estavam em concordância com as necessidades da nossa indústria cinema-
tográfica. Eles incluem roteiros para filmes infantis, um musical, um thriller
de comédia, um cenário para o teatro Lanterna Mágica e, acima de tudo,
um roteiro engajado para um filme sobre [a romancista do século XIX]
Božena Němcová e um outro chamado The Apple Game , que tratava sobre
o problema populacional e que eu pretendia fazer para o Ano Internacio-
nal da Mulher.
Todos esses roteiros sofreram mais ou menos o mesmo destino: eles foram
aceitos e depois arquivados sob vários pretextos contraditórios, dos quais
é evidente que o objetivo principal é impedir que eu termine um único fil-
me e, assim, refutar as alegações de que “me falta uma atitude positiva em
relação ao socialismo ‘. O roteiro do filme sobre a vida e obra de Božena
Němcová foi primeiramente aprovado e depois abandonado, a justificativa
dada foi a de que o filme “poderia destruir as ilusões dos telespectadores
sobre Božena Němcová”.
O jogo da maça (Hra o jablko), que tratava do problema da paternidade res-
ponsável, abortos desnecessários e os aspectos morais e materiais da igual-
dade feminina em nossa sociedade, foi indicado para filmar em fevereiro
de 1974 em uma carta enviada ao editor-chefe de histórias, o camarada To-
man, pelos seus colegas, na qual eles diziam “... Acreditamos que, em toda a
Eu quero trabalhar 165
sua complexidade, o roteiro apresentado é uma das tentativas mais impor-
tantes até o momento de criar um filme verdadeiramente contemporâneo
com real interesse humano. Ele ajudará a preencher uma lacuna conside-
rável em nossa produção”. Em outubro, o diretor administrativo, Dr. Purš,
deu sinal verde para o filme ser feito, mas a gerência do estúdio recusou-se
a me informar sobre isso. Isso serve como uma ilustração realista da minha
posição. Já fazem cinco anos que eu vou de um chefe da indústria cinema-
tográfica para outro, todos eles me dizem que posso trabalhar e me incitam
a dizer isso aos jornalistas estrangeiros. Quando meus amigos soviéticos, o
diretor Gerasimov e a atriz Makarova quiseram me conhecer, disseram à
eles que eu estava trabalhando na Eslováquia. Os cineastas iugoslavos que
estavam interessados ​​em trabalhar comigo foram informados de que eu es-
tava muito ocupada filmando em casa.
A mesma razão foi dada quando eles recusaram um convite para que eu
participasse do Primeiro Festival Mundial de Mulheres Cineastas em Nova
York, que abriu com uma exibição do meu filme, Algo diferente. O State Film
também recusou convites que recebi para a abertura da nova cinemateca
francesa, sob os auspícios do ministro francês da Cultura, assim como minha
participação no festival europeu de diretores de cinema do ano passado, em
Paris. Foi apenas durante a visita de alguns dos principais representantes da
UNESCO a Praga há algumas semanas atrás que soube que mais um convite
para mim havia sido recusado, dessa vez para o simpósio de cinema “Wo-
men in Films”, realizado na Itália em julho, como parte do Ano Internacional
da Mulher. Tampouco me permitiram participar de outro festival de cinema
feminino realizado em setembro de 1975 em Caracas, e o diretor Fábera jus-
tificou isso dizendo que a organização do Partido em Barrandov era contra
minha ida. Essas recusas no boca-a-boca são um tanto típicas.
Existem também, no entanto, documentos escritos, em particular a “avalia-
ção complexa” que realizei este ano.
Isso foi feito para resumir as conclusões alcançadas no decorrer das mi-
nhas “exibições de filmes políticos” em 1972, o ano em que foi recomendado
ao Estúdio que prosseguisse com meu filme sobre Božena Němcová. Mas
isso nunca foi mencionado na avaliação, que também não dizia nada sobre
 ›
166 Vera Chytilová
a existência dos roteiros que submeti para aprovação. A conclusão foi que
meu contrato com os estúdios deveria ser rescindido. Dizia que eu não tra-
balhava há cinco anos, que meus filmes eram experimentais por natureza,
descomprometidos e pessimistas, que eu tinha contatos com pessoas liga-
das aos artistas nacionais Jiri Trnka e Jan Werich, que meus prêmios inter-
nacionais vinham principalmente de festivais ocidentais, que eu havia diri-
gido o Festival de Mannheim, que havia adotado uma postura elitista, que
eu ia muito mal de público, que meus filmes tinham sido supervalorizados
pelos críticos e que “não parecia” que eu havia “entendido a política cultu-
ral contemporânea do Partido Comunista da Tchecoslováquia”.
Recusei-me a aceitar críticas nessas linhas. Ninguém nunca condenou ex-
perimentos, muito ao contrário, em uma conferência em outubro de 1972
você, camarada Presidente, enfatizou o direito do artista de experimentar.
Meus filmes não são irreais - são realistas. Todos eles são engajados e, por-
tanto, não tem como eles serem descompromissados. Minha explicação de
seu significado e intenção, que fiz várias vezes, não foi refutada. Ter contato
com artistas nacionais dificilmente pode ser motivo para demissão. Meus fil-
mes foram apreciados não só no Ocidente, eles também ganharam prêmios
em países socialistas. Afora isso, no entanto, se aceitarmos os argumentos
do editor-chefe de histórias, Toman, não faria sentido nossa participação em
festivais de cinema ocidentais, uma vez que um cineasta socialista que fizes-
se seu filme como empregado da indústria cinematográfica nacionalizada
iria, por seu sucesso (tendo ganho um prêmio por um país socialista) correr
o risco de ser perseguido em seu próprio país. Essas atitudes devem ser par-
ticularmente deploradas em um momento de esforços crescentes para uma
coexistência pacífica, o que pressupõe riqueza, troca cultural e quando as
exigências de qualidade nas obras artísticas aumentam constantemente.
O último anuário estatístico sobre os filmes da Tchecoslováquia mostra
que, embora tenham sido exibidos apenas em cinemas que recebem con-
noisseurs da área, meus filmes atraíram audiências maiores, em média, do
que filmes tchecos atuais. E em todo caso, se meu trabalho não estivesse de
acordo com os requisitos socialistas, outros países socialistas dificilmente
buscariam minha colaboração e meus filmes não seriam exibidos lá e aqui,
como ainda é o caso. Quanto à minha atitude em relação à vida contem-
Eu quero trabalhar 167
porânea, as acusações feitas contra mim são falsas - eu apresentei vários
roteiros engajados, alguns dos quais foram aprovados para filmagem, mas
nenhum deles chegou a ser produzido.
Não quero incomodá-lo com muitos detalhes da discussão que se seguiu à
leitura feita pelo camarada Toman da minha “avaliação complexa” e à pro-
posta de que os estúdios colocassem um fim ao meu contrato. Eu rejeitei
isso e disse que não conseguia entender como tal sugestão poderia ter sido
feita para começo de história. Quando tentei responder às perguntas que
me foram feitas por membros da comissão, quando pedi a uma de suas in-
tegrantes que havia condenado meus filmes que me apontasse ao menos
uma ideia anti-socialista de qualquer um dos meus filmes, e ela não con-
seguiu fazê-lo - pois ela obviamente não os tinha assistido - o presidente
da organização do Partido, o camarada Leiter, me advertiu, dizendo que só
eles falavam e eu estava lá apenas para sentar e ouvir. Ele me disse que eu
não conhecia o código do Partido, e que era incapaz de pensar em termos
marxistas e leninistas. Uma das mulheres me ofereceu, sendo mãe de dois
filhos, um outro trabalho que não como diretora de cinema. Eu não enten-
di o motivo e ressaltei que eu tinha treinado para ser diretora de cinema
e tinha cinco filmes para comprovar isso. Ela disse que eu já devia ter es-
quecido como fazer filmes e devia aprender de novo. “E como eu vou fazer
isso?”, perguntei. “Talvez como uma operadora de claquete em um filme
feito sobre um dos meus roteiros aprovados?”. Eles disseram que eu tinha
uma atitude ruim em relação ao trabalho e que eu estava distorcendo as
palavras deles.
O diretor Fabera foi então chamado e me repreendeu por ser impaciente.
Ele disse que eu poderia começar a filmar na semana seguinte se eu me
comportasse humildemente e ficasse quieta. Esta foi uma afirmação sur-
preendente, visto que uma proposta escrita para me demitir estava sobre
a mesa e uma sugestão oral tinha sido feita para que eu aceitasse algum
outro ofício. Tudo isso mostrou que eles eram preconceituosos, eu disse
ao camarada Fábera, e ele próprio havia me advertido sobre isso: ‘Você
não sabe como lidar com as pessoas e isso é algo que um cineasta não pode
não saber’, ele disse, e isso foi tudo. Eu disse à comissão que tudo era bem
simples. Tudo o que eles tinham que fazer era me acusar de algo e, quan-
 ›
168 Vera Chytilová
do eu tentasse me defender, eles ficariam aborrecidos e indignados, pro-
vando assim que eu não sabia como lidar com as pessoas. E se você não
soubesse como lidar com pessoas, não poderia ser um diretor de cinema.
O problema real, no entanto, estava em outro ponto. Eu era uma mulher
cineasta. Mas eu também era mãe e cidadã de um país socialista e, como
tal, estava ciente dos meus direitos e sempre lutaria por eles. Eu não acei-
taria demissão do meu emprego por nenhuma razão válida, porque isso era
contrário ao espírito dos ideais socialistas. O presidente da organização do
Partido, o camarada Leiter, disse: “Há momentos em que o Partido tem o
direito de fazer o que quiser”. Alguém sentado ao lado dele acrescentou:
“E nem mesmo mil Purš e Klusáks irão ajudá-la”. Após um breve silêncio, o
camarada Leiter pediu-lhes que votassem se deveriam continuar na minha
ausência. Todos concordaram, menos eu. Antes de me retirar, lembrei-lhes
que recentemente o camarada Leiter havia me dito: “O pior de tudo, cama-
rada Chytilová, é que não temos nada contra você”. Esse parecia ser o caso.
Eu escrevi tudo isso antes ao Ministro da Cultura, Dr. Milan Klusák, em car-
tas datadas de maio de 1974 e julho de 1975. Eu não recebi nenhuma respos-
ta à minha primeira carta, a segunda foi respondida por alguém (assinatura
ilegível) em nome da Secretário-chefe do ministro, camarada Lumir Poli-
vka. Minha carta fora passada para o diretor administrativo da Czechoslo-
vak Films, o Dr. J. Purš, e minha comunicação anterior também. Portanto
posso apenas repetir algumas das conclusões em minha segunda carta:
“Lamento ter de lhe dizer que ainda sou vítima de discriminação injusta,
embora não haja a menor justificativa para isso pois está claro que toda a
oposição à mim é baseada em uma mistura de falsas suposições, hostilidade
pessoal e chauvinismo masculino.
“Espero que você não permita que isso torne-se um fato vergonhoso, que
num país que se orgulha de seus ideais socialistas uma diretora de cinema
cujos filmes trouxeram reconhecimento internacional ao seu cinema socia-
lista e que é a mãe de dois filhos seja injustamente perseguida e privada de
trabalho e da oportunidade de conhecer seus colegas no exato momento em
que celebramos o Ano Internacional da Mulher.”
Eu quero trabalhar 169
Desde julho, quando escrevi esta carta ao Ministro da Cultura, nada mu-
dou. Recentemente, uma oferta foi feita para que eu rodasse meu longa-
-metragem, O jogo da maça, no Short Film Studios. Não tenho objeções a
isso, especialmente porque a gestão deste último tem sido cooperativa e
concorda com essa sugestão. No entanto, o velho problema surgiu nova-
mente em um novo disfarce - para fazer um longa-metragem, o Short Film
Studios tem que conseguir, primeiramente, o apoio financeiro necessário
do pessoal do cinema, e há uma escassez de material cinematográfico.
Eu nunca desejei trabalhar no exterior. Por isso, recusei várias ofertas por-
que queria trabalhar em casa e ainda quero. Em 1970, participei do Festival
de Cinema de Cannes e voltei. No entanto, desde então, tenho experimen-
tado situações absurdas em que me são negadas permissões mesmo para
uma visita privada a um país socialista, com alegações de que “de lá você
também pode fugir para o exterior”. Eu rejeitei decisivamente uma ofer-
ta de emigração. Talvez esse convite tenha sido feito com uma gentileza,
por saberem que não estou autorizada a fazer filmes nem a produzir pe-
ças teatrais - meus empregadores, representados pela pessoa do camarada
Toman, justificam isso dizendo que um funcionário de cinema só pode ser
autorizado a fazer uma peça, muito embora eu esteja impedida de uma, que
seja - e, desde a nomeação de Milena Balášová, não posso trabalhar nem
mesmo na televisão.
O que eu devo fazer então? O que devo dizer aos meus amigos, tanto em
casa quanto no exterior? Por que eu não tenho feito nenhum filme? Como
posso defender minha atitude para com o socialismo quando não posso de-
monstrá-la em meu próprio ofício? E tudo isso numa época em que o mun-
do inteiro celebra o Ano Internacional da Mulher, para o qual eu gostaria
de contribuir com o meu trabalho; num momento em que as assinaturas
nos documentos de Helsinque abrem novos caminhos de cooperação cul-
tural e exigem um aumento constante em contatos com colegas estrangei-
ros, muitos dos quais são simpáticos ao socialismo e ao progresso; e no mo-
mento em que a força da cultura socialista precisa ser mostrada, acima de
tudo, pelo trabalho criativo.
 ›
170 Vera Chytilová

Como devo responder ao último convite para o Festival dos Filmes Femininos,
a ser realizado no Washington Kennedy Center de 1 a 7 de dezembro de 1975?

Estou me recorrendo à você, camarada Presidente, na esperança e confian-

ça de que você analisará meu caso, e outros semelhantes, e cuidará para
que a justiça seja feita.

Como cidadã, mulher, mãe e cineasta, continuarei a lutar pelos ideais de

uma sociedade socialista e farei o máximo para conseguir que estes ideais
sejam colocados em prática.

Praga, 8 de outubro de 1975

 Em busca de autenticidade 173

Introdução

Em busca de Os cineastas da Nouvelle Vague Tcheca, incluindo Věra Chytilová, foram

sem dúvida influenciados pela abordagem do cinéma vérité francês, ainda

autenticidade: que os motivos pelos quais eles abraçaram os princípios da autenticidade e

da integridade fossem totalmente deles próprios, originando-se das expe-

Filmes de Věra Chitilová de duas eras1 riências políticas e sociais locais daquela época. Nos anos 1960, Chytilová
subverteu a ideologia não somente se concentrando na autenticidade, mas
também pela experimentação formal. Este artigo irá lidar com a seguinte

Jan Culík questão de pesquisa: Como as circunstâncias políticas e culturais em duas

eras diferentes, nos liberais anos 1960 e nos anos 1970 e 1980 pós-invasão,
influenciaram o método de trabalho de Věra Chytilová como cineasta e
suas possibilidades de expressar em seus filmes o que ela pretendia dizer.
Examinando o trabalho de Chytilová nos contextos político, social e cultu-
ral das épocas, o artigo vai usar a metodologia estruturalista padrão, anali-
sando o significado dos textos fílmicos de Chytilová usando o trabalho do
estruturalista tcheco Jan Murakovský como inspiração (Murakovský 1977).

Věra Chyitilová (1929-2014) foi a primeira mulher a obter permissão para estu-
dar direção cinematográfica na FAMU, a Academia de Cinema, em Praga (Br-
decková 2014). Ela era uma dos sete estudantes, escolhidos de um total de cem
candidatos, que foram aceitos na aula do diretor Otakar Vávra (Pawlikowski
19902; Chytilová 2009, 21; Cieslar 2003, 484-485) e que formaram a espinha
dorsal da Nouvelle Vague Tcheca, um movimento cinematográfico inventi-
vo e altamente criativo, característico da liberalizante Tchecoslováquia dos
anos 1960. Todos os outros membros da aula de Otakar Vávra eram homens.

2 Todas as traduções do tcheco e do francês são de Jan Culík. - o documentário de Pawel Pawlikowski
para a BBC Kids From FAMU (1990) sobre cineastas da Nouvelle Vague Tcheca dos anos 1960 contém
1 Publicado originalmente em Studies in Eastern European Cinema, 9:3, 198-218. Tradução de uma quantidade substancial de informação sobre estes cineastas tchecos bem como entrevistas com
Artur Ianckievicz. Copyright © 2018 Informa UK Limited eles explicando suas abordagens cinematográficas.
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174 Vera Chytilová
Chytilová tinha 28 anos quando foi aceita para estudar na Escola de Cinema
de Praga em 1957. Ela disse que uma das razões pelas quais ela foi aceita foi
que Vávra queria ter ao menos alguns estudantes ‘maduros’ em sua classe.
Ela começou a estudar na FAMU quando a liberalização cultural e política
estava começando vagarosamente na Tchecoslováquia pós-Stalinista, então
sua postura não ortodoxa, desafiante e provocativa não foi imediatamente
punida (Chytilová 2009, 21-22; Cieslar 2003, 485).
Antes de ser admitida para estudar na FAMU, Chytilová teve alguns falsos
começos. Ela começou a estudar arquitetura na universidade em Brno, e
quando largou, trabalhou como desenhista técnica e assistente de labora-
tório, então, em 1953-1957, em vários trabalhos de assistência nos Estúdios
Cinematográficos Barrandov de Praga. Essas primeiras experiências são
extremamente importantes para o seu desenvolvimento como artista. Seus
primeiros filmes são um reflexo do desapego e da confusão existencial de
seus anos mais jovens. No entanto, em meio a todos os regimes que experi-
mentou, ela sempre manteve sua feroz independência, exigindo o direito de
tomar todas as decisões sobre seu fazer cinematográfico. Isso nem sempre
foi fácil ou possível. Em todos os períodos de sua vida, os filmes dela foram
considerados como ultrajantes por algumas pessoas, ou por causa de sua
ousada experimentação formal ou por seu engajamento político e social.
Os filmes de Chytilová dos anos 1960 são cheios de energia e inovação. Mas,
no surgimento da ‘normalização’, logo depois de agosto de 1968, a invasão
da Tchecoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia, Chytilová foi impe-
dida de fazer filmes por seis anos. Quando ela pôde voltar a fazer cinema,
no meio da década de 1970, foi sob condições de censura e abuso adminis-
trativo. Como essa nova situação impactou no estilo e na mensagem dos
filmes dela? Este artigo vai lidar com a contribuição de Chytilová para o
cinema mundial nos anos 1960, quando ela podia trabalhar sem pressão
ideológica ou comercial, e com a transformação da abordagem de Chyti-
lová sob a pressão da era da normalização. O quanto de sua visão original
e filosofia ela conseguia reter na atmosfera mudada dos anos 1970 e 1980?
Olhando em retrospecto, parece claro que o método de trabalho, a filoso-
fia e as crenças de Chytilová eram resultado de suas experiências pessoais
de se tornar adulta no período final do Stalinismo e no começo da liberali-
Em busca de autenticidade 175
zação da segunda metade dos anos 1950. Ela foi sem dúvida influenciada
como cineasta pela atmosfera relativamente livre na Academia de Cinema
de Praga durante o tempo em que ela estudou lá.
Os jovens cineastas da Nouvelle Vague Tcheca ficavam irritados pela pro-
paganda política e pela abordagem ideológica que eles ainda enxergavam
em toda parte. Em resposta a isso, eles decidiram reexaminar a realidade,
independentemente de qualquer ideologia. Eles respeitavam que a vida é,
basicamente, incognoscível:
Nós queríamos ir para as ruas, filmar com facilidade, mas filmar a vida real.
Mas não conectá-la. Conservar o mistério no que filmássemos. Não guiar o
espectador para que ele saiba de tudo. Não dizer o que não sabemos. Não
tomar decisões. Não oferecer soluções, disse Chytilová sobre a abordagem
deles. Ivan Passer completou: ‘estávamos fazendo perguntas: O que é a rea-
lidade? Era uma busca por uma definição de coisas bastante simples. Por-
que elas estavam todas deformadas’ (Pawlikowski 1990).
Essa era uma característica única do fazer cinematográfico na Tchecoslo-
váquia nos anos 1960, quando cineastas estavam quase totalmente livres
das imposições comerciais do mercado. Como resultado, uma cultura de
elitismo surgiu e diretores, incluindo Chytilová, se sentiram livres para ex-
perimentar com seu suporte. ‘Eles me avisaram no estúdio que eu iria que-
brar meu pescoço [fazendo As pequenas margaridas (Sedmikrásky)], disse
Chytilová. ‘Mas eu não queria quebrar meu pescoço’ (Pawlikowski 1990)3.
A noção de elitismo operando na Tchecoslováquia na segunda metade dos
anos 1960 deve ser explicada. Uma sociedade que não era governada pelo
princípio comercial tinha nascido. Então, escritores, artistas e cineastas
eram cada vez mais livres para dirigirem-se à sociedade com seus traba-
lhos experimentais. Ao mesmo tempo, a maioria deles, como Chytilová, es-
tavam profundamente interessados em se comunicar com o público. E o
público estava interessado no trabalho deles porque, em uma atmosfera de
autoritarismo, ele assumiu o papel do discurso político público.
3 No filme de Pawlikowski, Chytilová diz que quando As pequenas margaridas foi exibido nos Esta-
dos Unidos, os americanos ficaram espantados que um filme tão experimental pudesse ser feito em
um estúdio profissional de propriedade do Estado e rodado em 35mm.
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176 Vera Chytilová
Um grande número de comentadores enxerga Chytilová como uma femi-
nista precoce (Lim 2001; Hanáková 2007; Frank 2010; Jusová e Reyes 2014).
É verdade que seus poderes de observação são mais largos e mais profun-
dos do que eram os poderes de observação do cineasta homem padrão à
época (Hanáková 2007)4.
Ela estava tentando olhar para o mundo do ponto de vista das mulheres,
e permitia que elas falassem porque ela as respeitava como seres huma-
nos. Mas ela negava ser uma feminista5. Ela disse que não acreditava no
feminismo, mas no individualismo. ‘Eu era uma inimiga da estupidez e da
pobreza de espírito em homens e em mulheres’, ela disse várias vezes (ver
Connolly 2000).
Chytilová simpatizava com mulheres jovens e, incomumente para sua épo-
ca, lhes dava espaço e analisava suas tentativas de interação com o mundo
ao redor delas. Ela mostrou que, para vários homens, mulheres eram se-
res inferiores ou objetos sexuais, condenadas a fazer somente papéis de
coadjuvantes. Chytilová teve várias protagonistas mulheres em seus filmes
e sua simpatia pelas situações difíceis enfrentadas por elas permaneceu
inalterada por toda sua carreira cinematográfica. Ainda assim, ela era bru-
tal quando mostrava a idiotia dos homens e das mulheres.
Através de seu trabalho como diretora de cinema, Chytilová era compro-
metida com moralidade, engajamento cívico e oposição à ‘estupidez’ (in-
cluindo a do Estado). Ela estava preocupada com a passagem implacável do
tempo, repetidamente advertindo que nosso tempo nesta terra é limitado
e que não devíamos desperdiçar nossa vida com besteiras. A passagem im-
placável do tempo é um tema que aparece na maioria dos filmes dela, implí-
cita ou explicitamente.
4 Hanáková argumenta que Chytilová é uma feminista porque, em filmes tradicionais, ‘papéis e posi-
ções de... gênero continuam intactos. A versão masculina da história era universal’. Os filmes de Chyti-
lová e Krumbachová ‘dirigem-se às questões do desejo e do prazer feminino, e a mulher atua como um
agente causador’ (Hanáková 2007).
5 Negando ser feminista, ela aparentemente achou que ‘feministas’ lutam pelos direitos das mulheres às
custas dos homens, enquanto ela estava interessada tanto em mulheres quanto em homens igualmente.
Em busca de autenticidade 177
O Método de trabalho de Chytilová
Desde o começo de sua carreira, Chytilová foi elogiada por ter criado o
gênero do ‘filme sociológico’ na Tchecoslováquia. Comentadores tentaram
definir esse gênero como ‘documentário com forte interesse em questões
sociais’ (Cincerová-Sirotková 1980, 7). Nisso, ela foi, sem dúvida, influencia-
da pelas técnicas do ‘cinéma vérité’. No entanto, os documentários ‘socio-
lógicos’ de Chytilová foram cuidadosamente roteirizados e atuados. Ainda
assim, o script era somente um ponto de partida. Chytilová era capaz de
mudar totalmente a direção de seus filmes no set6. A maior parte do tra-
balho criativo de Chytilová sempre foi feito na sala de edição. Ela se espe-
cializou, em cooperação com seus editores, em criar colagens sofisticadas,
concentrando-se em inter-relações escondidas entre temas e o significado
de cada plano.
Jan Kucera vê Chytilová, junto com outros cineastas do Nouvelle Vague
Tcheca, como parte de uma vanguarda europeia dos anos 1960. Em sua vi-
são, eles estavam interessados na ‘região interna do mundo que não pode
ser compreendida pelos sentidos’. Eles criaram uma linguagem fílmica
específica para expressar a realidade espiritual da existência humana. En-
quanto no ocidente esses experimentos terminavam em pessimismo, na
desconfiança dos cineastas em relação à razão humana e à liberdade de
ação, cineastas tchecos eram geralmente otimistas:
É verdade que os filmes feitos pela Nouvelle Vague Tcheca são comumente
criticados por serem incompreensíveis ou elitistas, mas as pessoas
precisam perceber que estes cineastas estavam tentando resolver novos
problemas e estavam tentando criar uma linguagem fílmica totalmente
nova. (Kucera 2016, 2097).
6 O filho dela, o cameraman Stepán Kucera, odiava isso: “Ela nunca escreveu um roteiro detalhado
e técnico, então ela só improvisa no set e ela não sabe o que está fazendo. São as pessoas da equipe de
produção que sofrem mais, ela é vulgar com eles e eu me sinto mal por eles. (...) Eu ficava mais irritado
sempre quando eu estava filmando alguma coisa e, antes de eu terminar, ela estava impacientemente
virando minha câmera pra outra coisa, dizendo que alguma outra coisa estava acontecendo. Ela des-
truía assim o que eu estava fazendo e eu não tinha tempo de filmar a outra coisa que ela queria. E en-
tão ela me criticou dizendo que eu não consegui filmar nenhuma das duas coisas. Eu estava irritado”
(Kucera 2009, 58).
7 Jan Kucera não é parente de Jaroslav Kucera, marido de Chytilová.
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178 Vera Chytilová
‘Eu sentia que não havia verdade nos filmes. Eu queria captar autentici-
dade, a arbitrariedade das coisas, até fingir imediatismo. Eu queria criar
composições de modo que elas parecessem amadorísticas, gravadas aci-
dentalmente’, disse Chytilová quando explicou o protesto de sua geração
de cineastas contra a artificialidade no fazer cinematográfico: ‘Eu quero
conduzir um diálogo com o espectador. Eu quero interferir na realidade.
Eu estou interessada em tudo, nas coisas do dia a dia, nos aspectos fedoren-
tos da vida’. (Chytilová in Cieslar 2003, 490-491, 498).
Em 1994, Věra Chytilová sintetizou sua visão sobre o que o cinema pode
alcançar e como ele comunica em um artigo teórico, publicado em Acta
academica:
Estilo individual enriquece o cinema dando-lhe significado adicional. A rea-
lidade externa é somente um condutor no cinema. É o objetivo do cinema
possibilitar a um indivíduo criar um impacto no mundo exterior pela sua
habilidade de unificar a realidade através de um gesto semântico subjetivo.
Os elementos característicos do gesto semântico de um filme dependem de
seu impacto estético, cujos dois principais aspectos são deformação e or-
ganização. É a função verdadeira de uma obra de arte renovar a relação en-
tre seres humanos e a realidade de tal forma que uma maneira nova, mais
adequada, de enxergar seja revelada na base na qual uma nova ordem de
coexistência humana possa ser construída. (Chytilová 1994)
A crença artística de Chytilová, citada acima, parece bem próximo dos
princípios da ostranenie (desfamiliarização) de Viktor Shklovsky (1965).
Como Frank Kessler explica, de acordo com Shklovsky:
as coisas que nos circundam se tornaram tão familiares que nossa percep-
ção delas está automatizada e elas se tornaram “invisíveis”. Para tornar um
objeto “desconhecido”, o artista deve adquirir algum tipo de compreensão
da maneira automatizada em que o objeto é normalmente percebido, para
que os dispositivos escolhidos possam funcionar contra isso (Kessler 2010)
Jan Mukarovský, o teórico estruturalista tcheco, também argumenta que
a arte proporciona novos insights pela estilização e pela desfamiliariza-
ção (1977).
Em busca de autenticidade 179
Chytilová teve sorte de emergir como cineasta na cena cinematográfica
tcheca mais ou menos à época em que diretores recebiam financiamento
livre do Estado e a pressão ideológica havia diminuído. Mas ela guardou
zelosamente sua independência mesmo depois da reimposição da censura
na Tchecoslováquia. Depois da invasão das tropas do Pacto de Varsóvia, em
1968, ela recusou uma oferta para ir ao ocidente porque ela temia perder
sua liberdade artística lá (Chytilová 2009, 47-48). Ela sentia pena de Mi-
los Forman, que ‘foi forçado a filmar coisas nos Estados Unidos que ele não
entendia’. A luta enérgica de Chytilová para manter sua independência e
liberdade criativa o tempo todo, no entanto, causou grandes prejuízos à di-
retora. ‘No final, eu vi na minha frente uma mulher cansada, cuja vida tinha
sido cheia de conflitos drásticos’, diz o crítico Jan Foll sobre seu encontro
com Chytilová em 2005 (Foll 2009, 43).
Nos anos 1960, Chytilová pôde subverter ideologia e hipocrisia experimen-
tando as duas coisas com novos tópicos e nova forma. Mas como o trabalho
dela foi influenciado pelos obstáculos administrativos e pelo ethos social
diferente nos anos 1970 e 1980? Vamos comparar os dois períodos.
Os anos 1960
‘Pseudo-documentários’ iniciais
Teto (Strop, 1961) é o filme de graduação de Chytilová. Ele é baseado em sua
própria confusão nos primeiros anos da vida adulta. ‘Ele lida com um tema
muito pessoal’, disse Chytilová. ‘Teto é sobre aquela inquietação que reside
naqueles seres humanos que sabem que eles estão travados no meio da
vida e que o teto do seu potencial é mais alto do que eles pensavam’ (Chy-
tilová in Cieslar 2003, 483). ‘Meu assunto era mostrar uma pessoa que per-
cebeu que ela foi iludida, gradualmente percebeu o que era importante e
chegou a uma decisão definitiva de mudar tudo’ (Chytilová in Cieslar 2003,
491). Chytilová, no entanto, sentia que a opinião pública havia falhado em
entender o filme corretamente. ‘Nesse sentido, é um fracasso pra mim’8.
8 Chytilová: ‘Eu queria desmascarar relacionamentos escondidos que levavam à insegurança, eu queria
mostrar o quão difícil é separar coisas autênticas das não autênticas. É o ângulo de visão que é decisivo.
Teto é uma moralidade razoavelmente esquemática. Eu queria revelar o processo de cognição que começa
quando ainda se é bastante jovem’ (Cincerová-Sirotková 1980, 20-21).
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180 Vera Chytilová
O filme retrata um dia comum na vida de uma garota comum que traba-
lha como modelo. Ela participa de um desfile de moda, mata tempo na ci-
dade, fala com estudantes em um refeitório estudantil durante o horário
de almoço (Chytilová usou atores e não-atores nessa cena), admite pra
eles que ela largou a escola de medicina, tem um encontro à noite com seu
namorado egoísta, que rejeita absolutamente a ideia de ter um filho com
ela (‘é caro demais’) e decide deixá-lo para assumir o controle da própria
vida. O filme é um estudo da situação de uma garota jovem que é cobiça-
da por homens9, tem que defender-se de conversas obscenas, e vive em
um ambiente egoísta de homens e mulheres incrivelmente superficiais
e motivados por sexo. Em meio a toda essa adversidade, a protagonista é
passiva e fica em silêncio durante a maioria das cenas. Esse tema, eloquen-
temente sintetizado pelo ditado em latim Dum tacent clamant: Enquanto
estão silenciosos, gritam, aparece nos filmes de Chytilová várias vezes e
pode provavelmente ser concebido como um exemplo de seu ‘feminismo’,
embora ela provavelmente interpretasse como um exemplo de compaixão
e compreensão por um ser humano negligenciado e menosprezado. ‘Marta
é uma vítima de um silêncio ainda mais descontente. Sua vida é governada
por palavras exóticas pronunciadas por homens’ (Cieslar 2003, 479).
Outra característica típica de muito do trabalho de Chytilová é que o som
do filme é construído independentemente das imagens e interage com elas
como um elemento autônomo, igual, ou até mais importante do que o vi-
sual10. Há bastante monólogo interno e conversas extremamente inciden-
tais, ilógicas. Partes delas são comentários não-diegéticos, uma série de
reações cômicas ao que é visto na tela, por uma voz masculina mais velha e
desconhecida (o ator Jìrí Sovák).
Como também é o caso na maioria dos filmes de Chytilová, a música tem um
papel importante. Chytilová constrói sistematicamente a imagem da vida
comum nas ruas de Praga no começo dos anos 1960 e usa canções pop do
9 No começo do filme, Marta posa para uma série de fotografias de moda. Peter Hames nota que o olhar
masculino é insustentável e evidentemente é uma das principais fontes da frustração da heroína: ‘Até os
pensamentos subjetivos da modelo são falados por um homem’ (Hames 1979, 169).
10 ‘Chytilová descobriu muito rapidamente a importância semântica do som. Ela usa as conversas
autenticamente captadas de seus personagens como contraponto aos recursos visuais’ (Cincerová-Si-
rotková 1980, 25).
Em busca de autenticidade 181
período para reforçá-la. Ela sempre prestou considerável atenção aos seus
esforços em capturar a atmosfera da época em que o filme se passa. Ela faz
isso geralmente pelo uso da música11.
O filme é um híbrido de elementos do documentário e do não-documentá-
rio. A personagem principal é interpretada por uma amadora, Marta Kano-
vská, uma modelo de verdade, que algumas vezes surpreendeu Chytilová
com suas contribuições espontâneas para o filme: ‘Nunca teria me ocorrido
que você pode largar seu namorado e não dizer uma palavra que você está
indo embora’. Assim como em todos seus ‘documentários’, Chytilová está
interessada em construir uma imagem de uma existência comum, casual,
mas o filme é, na verdade, bastante estilizado12. Algumas das cenas foram
filmadas com uma câmera silenciosa e o mosaico sonoro e o diálogo foram
criados por Chytilová a partir de material adicional gravado em outro lu-
gar. O irmão de Chytilová, Julian, interpretava o namorado egoísta, mas foi
dublado pela voz de outra pessoa.
O silêncio de uma jovem garota é mais uma vez o tema em Saco de pulgas
(Pytel blech, 1962), outro ‘pseudo-documentário’ inicial de Chytilová. Mais
uma vez, nesse filme, a trilha sonora tem uma existência totalmente inde-
pendente entrando como um parceiro semântico equivalente ao diálogo
dentro do visual do filme. A mensagem do filme é introduzida na trilha so-
nora no começo dos créditos introdutórios. Alguém está tentando tocar a
música ‘Za rok se vrátim (‘Eu voltarei daqui a um ano’) com um dedo no piano.
A música se refere ao serviço nacional compulsório, feito na Tchecoslová-
quia comunista por jovens garotos que precisavam deixar suas namoradas
para trás. Uma das personagens principais do filme, uma jovem aprendiz,
Jana, é carregada para um ‘tribunal popular’ semi-Stalinista formado por
funcionários públicos da fábrica aonde ela trabalha e do dormitório aon-
de ela dorme. Ela é criticada por faltar no trabalho, ser persistente e não
cooperativa. Como Marta em Teto, Jana é calada. Está além de sua digni-
dade pessoal dividir seus problemas pessoais com os funcionários idiotas.
Transparece que seu namorado deveria ir para o exército e ela faltou no
11 Chytilová usava música da Rádio Luxemburgo para cenas no seu apartamento e jazz tcheco.
12 Chytilová: ‘Meus filmes Teto, Saco de pulgas e Algo diferente são documentos fictícios, feitos de ma-
terial reencenado. Mas as pessoas que aparecem neles nunca dizem algo no qual elas não acreditam’
(Cieslar 2003, 490).
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182 Vera Chytilová Em busca de autenticidade 183

trabalho porque precisava se despedir propriamente dele. Mas por que di- inovadora, despertando interesse no exterior14. Neste que foi seu primeiro
vidir isso com esses idiotas? O desdém das jovens heroínas de Chytilová longa-metragem, Chytilová segue o puxado treino da ginasta tcheca Eva
direcionado à instituição majoritariamente masculina que as oprime é cla- Bosáková até ela vencer uma importante competição esportiva. As sequên-
ramente detectável. cias do treinamento podem parecer extensas e excessivamente técnicas,
mas elas intencionam comunicar o extremo esforço físico e psicológico ne-
Saco de Pulgas é outro exemplo do método de trabalho de Chytilová. Ele
cessários para conseguir sucesso no esporte. É surpreendente o quão bru-
se passa em um dormitório de jovens aprendizes mulheres, trabalhadores
tal o treinador de Eva é com ela. A certa altura, ele chega a estapeá-la. As
têxteis. Embora o filme passe uma impressão de documentário, ele foi qua-
extensas sessões de esforço esportivo são justapostas com a observação da
se completamente roteirizado por Chytilová e então interpretado pelas
vida de uma dona de casa de classe média que tem um marido não-comuni-
garotas13. ‘Existem cenas altamente estilizadas, cenas totalmente improvi-
cativo e um filho mimado de cinco anos. Enquanto o treinamento de Bosá-
sadas’ (Pavlásková 1984, 7), cenas roteirizadas. Há diálogos sincronizados,
ková progride, a dona de casa insatisfeita inicia um relacionamento tempo-
monólogos internos, diálogos não diegéticos. Desde sua origem, o filme é
rário com um jovem amante, mas ele só se importa consigo mesmo. Quando
baseado nos monólogos internos de um grupo de garotas. É um retrato ví-
o marido dela confessa que tem uma amante e quer o divórcio, a dona de
vido do dia a dia delas, da mentalidade delas, de suas maneiras de pensar.
casa faz uma cena, chantageando-o usando o argumento do bem-estar do
O que era impressionante era o fato de que Chytilová simplesmente deixa-
filho deles, então a unidade familiar sobrevive e continua sua existência in-
va as garotas falar (Merkleinová 1981, 24). Como em Teto, a trilha sonora é,
satisfatória. O mesmo sentimento de insatisfação envolve a ginasta Bosáko-
na maior parte, assíncrona, as discussões das garotas sobre garotos, sobre
vá - ela vence a competição nacional – mas, e daí? Ela é só um objeto. Ela é
amor, sobre cinema, sobre roupas, sobre o Velho Oeste, sobre costurar, so-
maltratada por seu treinador quase da mesma maneira que a dona de casa
bre fumar, sobre religião, muitas vezes acontece enquanto a câmera está
é maltratada por seu marido e por seu amante. Nenhuma comunicação real
olhando para outro lugar. Em uma impressionante sequência em que um
acontece. Chytilová está perguntando: Por que as pessoas não param e pen-
professor está tentando ensinar as garotas sobre a Escandinávia, nós ouvi-
sam sobre suas vidas? ‘Eu queria alguma coisa, mas eu não sei o que, agora...’
mos a voz dele por quase um minuto inteiro enquanto a câmera não mostra
é uma frase que a dona de casa repete duas vezes no filme (Cieslar 2003,
seu rosto. Ao invés disso, nós vemos close ups dos rostos das garotas. Atra-
480). A vida está em outro lugar, o filme insinua e pergunta, mas aonde?
vés de sua construção, a sequência demonstra convincentemente a falta
de interesse das garotas na lição. Como em Teto, a música representa um Algo diferente é um filme feminista? ‘Eu me concentrei em mulheres nesse
papel importante durante todo o filme, tanto a música pop de então quanto filme?’ Chytilová pergunta:
as canções ‘construtoras’ Stalinistas, contribuem em grande medida para a
Eu não teria dito isso. Eu não estou interessada em mulheres e nos proble-
atmosfera da época.
mas das mulheres. Para mim, tudo isso é só um pretexto para mostrar deter-
Duas mulheres estão no centro da atenção de Chytilová em seu terceiro minados relacionamentos. Estou interessada no quão impossível é para as
pseudo-documentário, Algo diferente (O necem jiném, 1963). A inclusão de pessoas aprenderem certas coisas. Estou interessada na subjugação que as
duas protagonistas femininas e uma decisão de comparar e contrastar suas mulheres criaram para si mesmas. (Chytilová in Cincera-Sirotková 1980, 46).
vidas, chegando à conclusão que ambas são insatisfatórias, era bastante

13 Chytilová: “Saco de pulgas é um documento fictício. Nós filmamos as garotas com uma câmera bem
barulhenta e gravamos o som separadamente. Tirando duas cenas, tudo tinha sido roteirizado. Eu 14 Na entrevista deles com Chytilová publicada em 1968, Jacques Rivette e Michael Delahaye ficaram
reconstruí situações que as garotas inspiraram, mas elas tinham que concordar com tudo” (Cieslar particularmente impressionados com as duas protagonistas e suas histórias em Algo diferente e pelas
2003, 501). duas heroínas de As Pequenas margaridas (Delahaye e Rivette, 1968).
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184 Vera Chytilová Em busca de autenticidade 185

Chytilová comunica sua mensagem nesse filme primariamente através de com elas no momento, com alguma coisa que elas ainda não estão a par.
técnicas do cinéma vérité, mas, de novo, o filme é estilizado. ‘Quando você (Chytilová in Cieslar 2003, 513)
filma eventos domésticos comuns e então os deforma na edição, você cria-
O nome do filme, Algo diferente, é sem fundo, diz Cieslar – ele continuamen-
rá um sentimento de que a vida é insuportável, que é uma prisão’ (Chytilová
te vai além. O filme insinua que deve haver algo mais na existência huma-
in Cieslar 2003, 505). As transições entre as duas narrativas são frequen-
na para além de treinos esportivos entediantes e além de uma existência
temente alcançadas por meio de close-ups. A ênfase é novamente colocada
banal em um casamento sem amor15. Aqui, Chytilová permanece fiel à sua
na independência e na autenticidade da trilha sonora com muitos diálogos
convicção de que filmes devem expressar mesmo o que é inexprimível so-
gravados enquanto a câmera está apontada em outra direção. A fotogra-
bre a vida e devem fazer perguntas sobre seu mistério.
fia de Jan Curík oscila entre cenas altamente estilizadas e altamente rea-
listas. Frequentemente, para enfatizar a autenticidade da interação entre
a esportista e seu treinador e entre a mãe e seu filho, o filme inclui longas Dois longas-metragens experimentais: As Pequenas Margaridas e Fruto
cenas sem qualquer corte (Cincera-Sirotková 1980, 44). Ocasionalmente, do Paraíso
imagens são enfatizadas em quadros congelados.
Na cafeteria do mundo (Automat svet, 1965), a contribuição de 22 minutos
Críticos têm frequentemente comentado sobre a natureza híbrida de Algo de Chytilová para Pérolas das profundezas (Perlícky na dne), uma coleção
diferente, salientando que esse é um filme que usa tanto a abordagem de um de cinco filmes curtos feitos por cineastas da Nouvelle Vague Tcheca de
documentário e a de um longa-metragem com atores. Chytilová se defende: contos do escritor Bohumil Hrabal (1914-1997), se situa na encruzilhada
entre o trabalho inicial de Chytilová na categoria dos ‘documentários’ fic-
Eu realmente não sei aonde fica a fronteira entre um documentário e um
cionalmente construídos e seus filmes experimentais dos anos 1960. Perto
longa-metragem com atores. Sabe, eu não conheço nenhum documentário
do fim de Na cafeteria do mundo a câmera de Jaroslav Kucera se torna bas-
que não tenha sido pelo menos parcialmente construído, encenado. Com
tante estilizada. O artista gráfico Vladimír Boudník e uma garota vestida
certeza, veracidade não é o resultado de um método cinematográfico, é o
de noiva andam pelo campo à noite, enfrentando uma tempestade e o ven-
resultado de uma ideia cinematográfica. (Chytilová in Pavlásková 1984, 12)
to transforma o vestido de noiva da garota em formas brancas fantastica-
O filme Algo diferente é perturbador porque as duas protagonistas operam mente contorcidas em contraste com a escuridão da noite:
em mundos que estão longe um do outro e ainda assim ambas são forçadas
Meu marido Jaroslav Kucera foi pintor antes de se tornar cameraman e
a lidar com questões similares. Nenhuma das duas protagonistas consegue
era profundamente interessado nos aspectos visuais da imagem fílmica...
mudar sua vida de maneira significativa. A conexão entre suas vidas para-
Depois de Na cafeteria do mundo nós percebemos que o cinema deveria
lelas é feita por meio de ‘uma sofisticada rede de ideias visuais originais e
expressar o que é inexprimível de qualquer outra maneira. A realidade de-
ligações pelo som. O filme é uma imagem complexa feita do movimento de
veria ser compreendida em sua completude. Nós sentíamos que o cinema
corpos desamparados e almas atormentadas. O filme faz a pergunta: “Qual
deveria estimular os expectadores visualmente, alargando a capacidade
é o sentido de tudo isso?’ Até Algo diferente, ninguém na Tchecoslováquia
de percepção deles. Nós queríamos descobrir se seria possível comunicar
tinha levantado a questão existencial “Qual é o sentido da vida?’ diz Jìrí
isso. Nós não sabíamos o quão longe podíamos ir, ande os limites poderiam
Cieslar (2003, 481, 511)
estar. (Chytilová 2009, 39)
Este filme tentou mostrar que tudo contém um significado adicional. Mes-
mo a vida mais superficial sempre contém algo extra, aponta para outra
15 Chytilová viajou pelo norte da França com Algo diferente e achou fascinante que as plateias fran-
coisa. Ambas as mulheres lutam com outra coisa que está acontecendo cesas continuavam descobrindo novos significados em seu filme (Cieslar 2003, 510).
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186 Vera Chytilová
Chytilová embarcou em um novo, ousado e altamente original estágio em
sua carreira quando ela se juntou com Jaroslav Kucera e com a roteirista e
designer Ester Krumbachová. Chytilová, Krumbachová e Kucera organiza-
vam sessões de brainstorm: ‘Nós dávamos total liberdade um ao outro para
falar enquanto procurávamos pelo limite externo da comunicabilidade de
ideias’, diz Chytilová, cotinuando:
Krumbachová me fez deixar de ser descritiva. Para Ester, análise era fun-
damental, ela pensava a respeito do significado mais profundo de cada
cena. Ela constantemente realçava o fato que cada tema levanta uma quan-
tidade de questões mesmo antes de você começar a escrever. Ela sabia que
nós precisávamos perguntar de novo e de novo do que se trata o tema, o
que nos interessa nele e o que queremos discutir com o espectador. Por
exemplo, se um filme mostra um assassinato, é sobre crueldade ou sobre
a habilidade de matar? Nós sempre pensamos que precisávamos plantar
uma semente e não sabíamos ainda o que surgiria dela. (Chytilová in Cies-
lar 2003, 511-512)
Na visão de Chytilová, As pequenas margaridas (Sedmikrásky, 1966) ‘é sobre
a habilidade das pessoas de destruir coisas, que é o oposto da criatividade,
mas existe uma certa atração criativa na destruição’ (Chytilová em Cieslar
2003, 512). ‘Nós queríamos fazer um filme que fosse esteticamente agradá-
vel e interessante, mas que fosse uma imagem de destruição’, ela acrescen-
tou (Chytilová 2009, 40). Todas as ações sórdidas e revoltantes são subme-
tidas a uma rígida ordem estética e alta estilização, para que mesmo o que
é nojento se torne bonito (Skála 1999, 21). As pequenas margaridas mostra
duas garotas jovens, Marie I e Marie II, que decidem que o mundo está es-
tragado, então elas mesmas se tornarão estragadas e destrutivas. Mas os
‘atos destrutivos’ que as garotas cometem são bastante ingênuos, inocen-
tes e infantis. As garotas falam, se comportam e se movem como marione-
tes16. Elas são esquemáticas e iguais (Skála 1999, 20). Há uma ausência de
sentido em suas vidas e em suas ações. A presença do tédio é quase palpá-
16 Jan Foll: ‘Os personagens de Chytilová em As pequenas margaridas não estão vivas. Elas são figuras
sem vida de recortes obscuros’. - ‘As pequenas margaridas ataca não somente o socialismo falacioso, mas
também o capitalismo consumista, seus empresários presunçosos e sua imprensa de tabloides obsce-
nos’ (Foll 2009, 42). ‘Enquanto as heroínas de Algo diferente nunca se encontram, em As pequenas marga-
ridas, as duas heroínas estão sempre juntas e nunca distintas de verdade’, diz Paul-Louis Martin (1996).
Em busca de autenticidade 187
vel. Elas parecem incapazes de experimentar qualquer coisa17. O filme tem
aspectos de uma farsa e é fortemente influenciado pela comédia pastelão
do cinema mudo. É uma simbiose bem-sucedida de brincadeiras e de auten-
ticidade. A estética do filme é baseada em tensão interna entre diferentes
tipos de estilização. Os elementos naturalísticos e de fantasia são unidos
pelas personagens das duas Maries. Elas simbolizam uma revolta contra as
boas maneiras, ou seja, contra o establishment (Parvulescu 2006).
Comentadores algumas vezes enxergaram esse filme como um manifesto
de liberação feminista18. Existe material no filme que parece encorajar essa
interpretação, em particular nas extensas sequências em que as duas ga-
rotas exploram e tiram sarro de vários homens mais velhos que estavam
em vão tentando levá-las para a cama. De novo, há o desejo masculino por
sexo, mas não há comunicação significativa. Se o mundo, representado por
homens mais velhos, está interessado somente em sexo com elas, parece le-
gítimo que as garotas se rebelem contra esse estado das coisas se tornando
‘travessas’. Mas enquanto o mundo dominado por homens é mau, as garotas
também estão agindo, ou fingindo agir como idiotas. O que é, por exemplo,
o caso em tolerar a companhia de homens mais velhos, de que elas tiram
sarro. A obsessão algo infantil delas com comida e com a destruição da co-
mida é uma expressão de seu desamparo social, devido à subjugação em
geral das mulheres? Em uma verdadeira tradição Svejkiana, isso pode ser
interpretado como protesto.
Ester Krumbachová criou os figurinos e símbolos no filme. Foi Krumbacho-
vá quem propôs que uma das garotas deveria ser associada a uma grinalda,
e outra a uma echarpe:
Foi por influência de Krumbachová que eu percebi que tudo no filme deve
ter um segundo significado, que cada ação deve ir além do que é meramen-
te mostrado na tela. Somente uma ação dessas deveria ser incluída no filme
que também carrega um segundo significado, ainda que muitas pessoas
17 Kathleen Bracke argumenta que em As pequenas margaridas, Chytilová foi influenciada pelos escri-
tos filosóficos de Jan Patocka e colocou a culpa da destrutividade das duas Maries na opressão do sistema
comunista que impedia que o indivíduo encontrasse um propósito na vida. De acordo com Patocka, ela
diz, ‘vida vazia de significado é uma vida destrutiva’ (Bracke 2012, 9-13).
18 Bliss Cua Lim: ‘As pequenas margaridas é uma alegoria feminista em que a metáfora da boneca é
retrabalhada como uma celebração da recalcitrância feminina’ (2001).
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188 Vera Chytilová
não estarão aptas a identificá-lo, diz Chytilová, apontando que a ideia de
‘destruição’ está presente em tudo, em cada movimento da câmera (Chyti-
lová 2009, 40).
O filme é notável também devido ao trabalho altamente original e criativo
do diretor de fotografia Jaroslav Kucera, que introduziu técnicas impres-
sionantes para tingir cenas de diferentes cores19 e uma série de rápidas e
caleidoscópicas sequências de close-ups que enfatiza a materialidade e o
colorido de várias texturas de uma maneira quase Svankmajeresca. As tra-
vessuras das garotas são quase totalmente relacionadas com a obsessão de-
las com comida e com comer e beber20. Isso, como nos filmes de Svankmajer,
acentua as texturas da comida e também sugere uma crítica ao consumo
irracional. A contribuição de Kucera para a criatividade visual dos filmes de
Chytilová foi substancial. As pequenas margaridas também possui uma tri-
lha sonora extremamente inventiva e é particularmente marcante por seu
uso irônico de várias peças de música clássica. A música é usada com ironia
desde o começo do filme, na sequência de créditos introdutórios o espec-
tador é ‘mobilizado pra dentro da guerra’ pelo som de uma corneta militar
acompanhada de um tambor. A música também é provocativa e destrutiva,
em particular durante as cenas de interação vazia com os homens mais ve-
lhos. A música coral de Mozart é usada ironicamente durante a conversa
por telefone de uma das garotas com um pretendente.
Estruturalmente, As pequenas margaridas é uma colagem no tempo e no
espaço (Durkovicová 1989, 12). Chytilová justapõe provocativamente ce-
nas, temas e sons que aparecem em diferentes momentos e em diferentes
lugares, examinando suas próprias inter-relações no processo. O filme não
é linear; sua estrutura depende das complexas inter-relações de suas par-
tes constituintes. Técnicas do cinéma vérité ainda são detectáveis, espe-
cialmente nas sequências protagonizadas por uma mulher que trabalha
em um banheiro. Estas cenas realísticas funcionam como elementos de
poesia no filme. Em As pequenas margaridas tanto quanto nos outros filmes,
Chytilová é obcecada com a preocupação de perder tempo e mais uma vez
19 Vermelho e rosa significam uma carga erótica, verde e azul cinismo, preto e branco contato com o
mundo (Skala 1999, 22-23).
20 Claire Clouzot aponta para a equação consumo=destruição. ‘Gula e devastação estão ligadas’
(1968, 36).
Em busca de autenticidade 189
urgentemente levanta questões sobre o sentido da vida. O tique-taque re-
corrente do relógio na trilha sonora é um aviso neste sentido, como o co-
mentário vazio da garota: ‘Nós ainda somos jovens e temos a totalidade das
nossas vidas pela frente’ (Skála 1999, 29-31).
Embora As pequenas margaridas seja geralmente visto hoje como parte do
cânone do cinema europeu clássico, o filme não foi sempre aceito. O Festi-
val de Veneza se recusou a exibi-lo (Cincerová-Sirotková 1980, 9). Em maio
de 1967, o membro do parlamento pelo Partido Comunista Pruzinec apre-
sentou uma reclamação oficial no Parlamento Tchecoslovaco. Ele estava
indignado que comida estava sendo destruída e desperdiçada nas cenas
finais do filme21.
Fruto do paraíso (Ovoce stromu rajských jíme, 1969) é talvez o filme mais ex-
perimental que Chytilová já fez. Era um testemunho dos impressionantes
níveis de liberdade criativa que os cineastas tchecos tinham em 1968-1969,
nos meses em que a Primavera de Praga estava morrendo depois da invasão
das tropas do Pacto de Varsóvia em agosto de 1968. O filme foi, mais uma
vez, resultado de um intenso brainstorm entre Chytilová, Kucera e Krum-
bachová. É altamente inovativo, especialmente devido ao trabalho de câ-
mera de Kucera. Exige bastante do espectador. Chytilová e Krumbachová
estavam interessadas em evocar a gama de significados que cada cena de
um filme pudesse comunicar, tanto quanto nos conjuntos de significados
suplementares que podem surgir da justaposição de diferentes cenas. Elas
claramente esperavam que o espectador pudesse construir seu próprio sig-
nificado deste filme.
O filme abre com uma sequência visual altamente estilizada mostrando a
expulsão de Adão e Eva do Paraíso. Quem também vive no Jardim do Éden é
Robert (o diabo), que está tentando tentá-los. Ele é um assassino que matou
seis mulheres. Ele está tentando matar Eva, mas ela eventualmente o des-
mascara e o mata. O filme acontece em um hotel no interior e em uma praia
e é baseado em uma série de encontros entre Eva e Robert22.
21 ‘Este trabalho não tem nada em comum com a nossa república, com o socialismo e com os ideais do
comunismo’ (Lukes, 66).
22 Para uma discussão mais detalhada, ver, por exemplo, Hames (1979, 69).
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190 Vera Chytilová
O roteiro do filme, escrito por Krumbachová, é uma paródia de um filme de
suspense, mas o filme de Chytilová deu ao trabalho uma série de comple-
xos significados, argumenta Jan Kucera. A introdução e a conclusão do filme
dizem ao espectador como interpretá-lo. Uma citação da Bíblia sobre o pe-
cado original é cantada na introdução. Isso, junto com as imagens de duas
pessoas nuas sem quaisquer características individuais, um homem e uma
mulher, define o filme como uma alegoria, como um mito com uma mensa-
gem ética. Então a diretora apresenta vagarosamente um mundo ‘normal’,
com dois personagens, Josef e Eva e uma trama relativamente banal, que
gira ao redor de um crime. De novo, como em seus filmes anteriores, Chy-
tilová combina temas realísticos com temas simbólicos e metafóricos. Al-
gumas cenas começam em um mundo comum, ‘real’, mas eles acabam com
o que é, à primeira vista, uma conclusão incompreensível. Em outras cenas
a ordem é invertida: elas começam com temas incompreensíveis que pre-
cisam ser decifrados e terminam com alguma banalidade corriqueira. Am-
bos os personagens principais, Eva e Robert, exibem características incon-
gruentes, conflitantes. Na visão de Jan Kucera, a mistura constante de carac-
terísticas realistas dos protagonistas com suas características simbólicas é
reminiscente da commedia dell’arte, o impacto também é baseado em uma
interligação de significados conflitantes (Kucera 2016, 133-150).
A fotografia experimental de Jaroslav Kucera enfatiza a estrutura dúbia do
filme. Cenas fotografadas realisticamente são justapostas a imagens alta-
mente estilizadas. Kucera usa a lente grande-angular que deforma o que
está sendo filmado. Em cenas selecionadas, ele interrompe a fluidez do mo-
vimento imprimindo quadros no filme com a proporção 3:1. Isso cria a im-
pressão de um movimento “gago”, dificultado. As sequências narrativas do
filme são fotografadas em um estilo ingênuo. Um elemento característico
disso é que não existem sombras nunca (Kucera 2016, 133-150). Quase todo
o filme foi rodado com cores quentes e elas carregam um importante signi-
ficado alegórico. As cores quentes também fazem com que o espectador se
sinta confortável. O significado simbólico importante é carregado pelas co-
res vermelha e azul, tanto que elas podem ser consideradas protagonistas
independentes do filme, argumenta Jan Kucera. A cor branca foi costumei-
ramente interpretada como um símbolo de inocência e ignorância, a cor
preta como um símbolo de perigo e morte, a cor vermelha como um símbo-
Em busca de autenticidade 191
lo de sabedoria e verdade. De acordo com Iveta Jusová e Dan Reyes, a cor,
assim como todos os elementos que são associados às mulheres, têm sido
vistos como suspeitos na cultura ocidental (2014). Mas Chytilova ressalta
as preocupações femininas e a cor, subvertendo assim a poética ocidental.
Fruto do paraíso inclui momentos ‘quando a cor está inquestionavelmente
no comando’ e assistir ao filme se torna pura experiência sensorial (Kucera
2016, 133-150).
Jan Kucera vê Fruto do paraíso como um filme-ópera, um trabalho único na
cinematografia tcheca e mundial. O filme possui uma impressionante trilha
sonora, composta por Zdenek Liska. Sua música inclui barulhos estilizados e
incorpora diálogos cantados. Os diálogos no filme se constituem de frases ex-
tremamente curtas, simples, ‘ocas’. Todos os diálogos foram regravados sem
deixá-los sincronizados com a imagem (encontramos essa abordagem em vá-
rios dos filmes anteriores de Chytilová, mas em Fruto do paraíso isso é espe-
cialmente exagerado). Assim, os diálogos parecem ‘crus, mortos, como vozes
de outro mundo’ (Kucera 2016, 147). Na visão de Kucera, em Fruto do Paraíso
Chytilová apresenta a narrativa como um jogo. O filme é uma alegoria sobre
buscar a verdade e sobre a necessidade de ir além disso. Jussová e Reyes ar-
gumentam que é um filme feminista, traçando o desenvolvimento da perso-
nagem Eva de uma pessoa ingênua, sofrendo sob o olhar condescendente
dos homens, em uma personalidade madura, plena e independente (2014).
Fruto do paraíso foi feito em coprodução com a produtora belga Elisabeth
Films e sua distribuição internacional no começo dos anos 1970 permane-
ceu limitada. Os chefes do Partido Comunista Tchecoslovaco se assegura-
ram que a distribuição do filme na Tchecolováquia também fosse extrema-
mente limitada (Srajer 2017). O filme foi exibido no Festival de Cannes em
1970, mas foi considerado basicamente incompreensível (Filmový prehled-
-Ovoce). O London Times o definiu como ‘um filme tchecoslovaco frouxo
com sentido mínimo’ (Srajer 2017).
Ainda assim, apesar das críticas, Fruto do paraíso pode ser encarado como o
ponto alto do primeiro período criativo dela, devido à sua ousada experimen-
tação estilística, conseguida em cooperação com a roteirista Ester Krumba-
chová e com o diretor de fotografia e artista visual Jaroslav Kucera. Neste
filme, Chytilová testou os verdadeiros limites do cinema como suporte.
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192 Vera Chytilová
Os anos 1970 e 1980
Sagacidade pública desafiadora sob o jugo da censura
A visão dos críticos no Festival de Cannes e no London Times de que Chyti-
lová produzia um trabalho ’frouxo’, ‘incompreensível’, experimental foi, sem
dúvida, acatada pelos novos chefes nos estúdios cinematográficos Barran-
dov em Praga, instalados lá não muito depois da invasão do Pacto de Varsó-
via em agosto de 1968, que acabou com a Primavera de Praga. Os líderes da
União Soviética e seus colaboradores tchecoslovacos estavam convencidos
de que a Tchecoslováquia ‘quase deixou’ o bloco comunista do leste euro-
peu nos anos 1960 por causa de atos de traição de algumas dezenas de mi-
lhares de intelectuais. Estes, escritores, jornalistas, acadêmicos e cineastas
agora precisavam ser expurgados e silenciados. De acordo com John Keane:
Pelo menos três quartos de um milhão de cidadãos do país perderam seus
empregos ou foram rebaixados ou foram seriamente discriminados – rara-
mente com um soco na boca, frequentemente com uma xícara de café ou
com um sorriso ou encolher de ombros, ou um aperto de mão dos autores.
(1999, 229)
Paradoxalmente, o primeiro ano da invasão do Pacto de Varsóvia, de agosto
de 1968 até setembro de 1969, foi o período mais livre da história do cinema.
Os gestores dos Estúdios Cinematográficos Barrandov sabiam que eles se-
riam demitidos,e permitiram a produção de filmes ainda mais subversivos.
Isso não teria sido permitido antes.
O Partido Comunista Tchecoslovaco reclamou que ‘a cinematografia tche-
coslovaca tinha sido influenciada pelos exemplos ideológicos e filosóficos
do ocidente, que estão em conflito com as visões Marxistas-Leninistas deste
setor’ (Zpráva). Todos os funcionários dos Estúdios Cinematográficos Bar-
randov passaram por entrevistas em 1970-1971 e dos originais 330 membros
do Partido Comunista, 187 foram expulsos. A maioria dos filmes da Nouvelle
Vague Tcheca foram banidos, a produção de vários filmes foi parada, mui-
tos diretores se tornaram persona non grata e alguns deles emigraram23. Os
Estúdios Cinematográficos Barrandov foram dominados por funcionários
23 Milos Forman, Jan Nemec, Vojtech Jasný e Ivan Passer, entre outros.
Em busca de autenticidade 193
de segundo e terceiro escalão que frequentemente não possuíam sequer as
qualificações básicas, como o próprio Partido Comunista Tchecoslovaco ad-
mitiu (Hulík 2009).
O regime da Tchecoslováquia pós-invasão não exigia que seus cidadãos
acreditassem em nada, mas requeria obediência e subserviência ritualís-
ticas. O regime decidiu neutralizar a comunicação através de artifícios
ideológicos. Todas as obras de arte que pertenceriam ao domínio púbico
precisariam ser ou ideológicos ou vazios24. Experimentos e ‘pessimismo’
eram desencorajados. É impressionante que nessas circunstâncias Chyti-
lová tenha conseguido fazer quaisquer filmes.
Ela foi banida da feitura de longas-metragens por seis anos. Ela não teve
permissão para fazer outro longa-metragem, O jogo da maçã (Hra o jablko),
até 197625. Quando agentes comunistas tentaram suprimir o trabalho dela
nos anos 1970 e 1980, Chytilová fez questão de discutir com eles pessoal-
mente em seus escritórios26 e algumas vezes conseguia convencê-los a
cancelar o banimento27. Nos anos restantes do regime comunista, Chytilo-
vá travou uma luta desigual por seus filmes contra os oficiais comunistas.
Durante este período, o fazer cinematográfico de Chytilová foi prejudicado
por uma censura contínua em todos os níveis. Estava fora de questão para
ela continuar com suas experimentações estilísticas e temáticas. Ela não
24 Petr Bílek mostra que sob tanta pressão das autoridades, o conteúdo das letras da música popular
tcheca nos anos 1970 se tornou ainda mais vazio (2010).
25 Não foi até ela escrever uma carta em 1975 para o líder do Partido Comunista Tchecoslovaco, Gustáv
Husák, na qual ela reclamava de ter sido impedida de trabalhar como diretora de cinema, que ela teve
permissão para voltar ao seu trabalho. Mas Chytilová não conseguiu fazer O Jogo da Maçã nos Estúdios
Cinematográficos Barrandov. Ela só conseguiu permissão para fazê-lo no Estúdio de Curtas Metragens,
Krátký. Ela foi chantageada para assinar um documento condenando o manifesto dos direitos humanos
Charter 77. Foi dito a ela que se ela não assinasse, O jogo da maçã não seria lançado nos cinemas. O crítico
Jan Lukes aprovou a decisão dela, que aparentemente permitiu que ela fizesse outros seis longas não
ortodoxos nos anos 1980 (67).
26 Chytilová: ‘Eu brincava com o fato de que cada um desses homens mais velhos provavelmente
tinha uma mulher em casa de quem ele tinha medo, então, eu agia como uma mulher histérica, incon-
trolável, sempre que eu entrava nos escritórios deles’ (Buchar 2000).
27 Em Chytilová (2009, 53-54), Chytilová fornece um relato minucioso de uma conversa tragicômica
que ela teve com o Camarada Müller, o chefe do Departamento de Cultura do Comitê Central do Par-
tido Comunista sobre por que O jogo da maçã havia sido banido. Para consolá-la, Müller lhe ofereceu
seu almoço.
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194 Vera Chytilová
podia mais trabalhar com Krumbachová28. Nos anos 1970, Chytilová se di-
vorciou de seu segundo marido, o diretor de fotografia Jaromír Kucera. Os
tempos da brilhante cooperação criativa entre Chytilová, Krumbachová e
Kucera haviam chegado ao fim. O controle ideológico e estilístico era tal
que a experimentação livre com estilos e ideias não era mais possível. A
única maneira de continuar seria incluir temas subversivos e anti-ideoló-
gicos nas narrativas de seus filmes, agora mais convencionais. Ela teve que
lutar muito por temas em suas narrativas e inventar explicações ideologi-
camente aceitáveis para eles, para que fossem aceitos pelos oficiais comu-
nistas. Os críticos de cinema tchecos gostaram muito de ela não ter desis-
tido e que uma voz de liberdade e inconformismo foi quase sempre ouvida
nos filmes dela dos anos 1970 e 1980. Assim mesmo, ela não conseguiu con-
tinuar desenvolvendo seu estilo. Do ponto de vista estilístico, ela estagnou.
Apenas ocasionalmente ela podia agora fazer referências visuais e inter-
textuais a suas realizações anteriores.
Ainda assim, em O jogo da maçã, Chytiová conseguiu de novo manifestar sua
postura cívica como uma lutadora pela verdade, igualdade entre homens e
mulheres, e pelos bons costumes. Somente a sequência introdutória deste fil-
me é visualmente estilizada. Ela consiste de imagens de maçãs em um pomar
no outono. Os close-ups das maçãs se fundem com imagens de cabeças de
bebês saindo dos úteros de suas mães durante o parto. A sequência cruza o
pecado original, as maçãs do Paraíso e trabalhos anteriores de Chytilová. É a
única sequência em que Chytilová usa metáforas visuais. O resto do filme é
visualmente bastante convencional.
O jogo da maçã é um retrato satírico de um ginecologista chauvinista e
mulherengo que se torna um símbolo do consumismo egoísta, imaturo e
individualista da era da ‘normalização’ na Tchecoslováquia dos anos 1970
e 1980. Como em outros trabalhos da época29, o filme mostra a sociedade
tcheca como profundamente classista e conservadora: Qualquer um que
28 Desde aproximadamente 1972, Krumbachová foi banida de ‘trabalhar de qualquer maneira na pro-
dução de qualquer longa-metragem’. Em 1983 Chytilová insistiu para que Krumbachová a ajudasse
na escrita do roteiro de A tarde de um Fauno (Faunovo prílís pozdní odpoledne), mas, depois disso,
Krumbachová foi banida de novo até 1988 (Krumbachová).
29 A série de TV de Jaroslav Dietl Uma mulher atrás do balcão (Zena za pultem) vem à mente, ver Culík
(2013).
Em busca de autenticidade 195
seja um médico homem é tratado com reverência enquanto enfermeiras,
que são todas mulheres, são tratadas com arrogância e condescendência.
Isso não impede o personagem principal, o Dr. Josef John, de fazer insinua-
ções sexuais inapropriadas às funcionárias. Uma vez que é impossível para
uma mulher ter um relacionamento razoável com qualquer homem (eles as
usam somente para sexo, de novo, não existe comunicação ou compreen-
são entre os gêneros), a única maneira de as mulheres se defenderem é ti-
rar sarro dos dirigentes chauvinistas e causar destruição - essa também
parece ser uma referência intertextual ao passado, dessa vez a As peque-
nas margaridas. Mas no pós-1968, a era da ‘normalização’ e do consumismo,
as mulheres também se dedicam à sedução e ao comportamento imoral, A
mulher do colega do Dr. John revela que ela gosta de ‘coisas imorais’.
Conjunto habitacional (Panelstory aneb jak se Rodí Sídliště, 1979) é também
prova da mudança de Chytilová para o engajamento cívico consciente,
dentro de uma estrutura visual convencional. De novo, talvez como uma
breve referência ao passado, a introdutória, afiada e brutalmente energé-
tica sequência de créditos deste filme, é visualmente inovadora. Conjun-
to habitacional é uma colagem de narrativas episódicas, algumas delas
documentais, algumas delas encenadas. O filme se passa em um conjunto
habitacional socialista que não está completamente terminado e continua
sendo construído, ainda que algumas pessoas já vivam lá por cerca de
sete anos. As pessoas são agressivas umas com as outras. Mulheres
comprometidas são histéricas. Homens são brutais. Chytilová reclama que
as pessoas perderam sua capacidade de compaixão.
Calamidade (Kalamita, 1980) se concentra em um jovem que larga a univer-
sidade em meio a confusões sobre o propósito de sua vida, como Chytilová
quando era mais jovem, e se torna maquinista nas estradas de ferro de sua
cidade nas montanhas, em busca de autenticidade. O problema é que ele
está tentando sobreviver em um ambiente extremamente autocentrado e
consumista. Em uma metáfora no final do filme, um trem com os protago-
nistas fica preso na neve e depois é coberto por uma avalanche. Quando
os vagões estão cobertos pela escuridão, isso intensifica as discussões dos
passageiros no trem. Chytilová parece estar avisando que, com seus níveis
extremos de egoísmo, as pessoas serão incapazes de enfrentar uma crise
social importante.
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196 Vera Chytilová
Questões de consumismo e egoísmo são novamente abordadas em A tarde
de um Fauno (Faunovo velmi pozdní odpoledne, 1983), o retrato de um sol-
teiro envelhecido, o funcionário do governo Karel, que está cada vez mais
consciente do perigo da morte e da futilidade de sua existência, que ele
tenta mitigar dando em cima de garotas jovens loucamente. Seus casos fre-
quentemente embaraçosos se tornam um redemoinho de falta de significa-
do. Com a ajuda do diretor de fotografia Jan Malír, Chytilová retorna à sua
linguagem visual estilizada, embora não haja progresso real para além de
suas experimentações dos anos 1960. As tentativas de Karel de conversar
com garotas são frequentemente justapostas com sequências rápidas de
close-ups editados mostrando padrões de folhas mortas e plantas e árvo-
res no outono, assim enfatizando o processo incontrolável de envelhecer.
Tudo isso é firmemente localizado nas pitorescas partes antigas de Praga.
As cenas de Praga são ‘peculiarizadas’ pelo estilo idiossincrático de câmera
de Chytilová: pans e zooms acelerados e sequências de cenas bem peque-
nas que são montadas próximas umas das outras.
O visualmente convencional Tainted Horseplay também conhecido como
Brincadeira Manchada (1987) transmite um forte senso de final dos anos
estagnantes do regime ‘normalizado’ da Tchecoslováquia pós-1968. O fil-
me destaca os elementos característicos dos anos finais do socialismo de
Estado, sendo as mais fortes o hedonismo e a sensação de que o dinhei-
ro não é o objetivo – uma postura que parecia bastante justificável em
uma economia não baseada no mercado. Os personagens de Chytilová
não têm futuro e nenhuma chance de fazer nada significativo. O filme é
sistematicamente interrompido com imagens transmitidas pelos canais
de televisão do regime, que os personagens assistem frequentemente. As
sequências granuladas filmadas da tela do aparelho de televisão salientam
a onipresença e a atmosfera de consumismo enfadonho30. ‘Será possível
nessa selva corrupta fazer alguma coisa que não seja fazer bagunça?’ diz
Josef Málek, um dos jovens protagonistas de Chytilová. Isso, é claro, serve
para ele e para seus amigos como uma desculpa conveniente para constan-
tes festas, bebedeiras e promiscuidade sexual. O ciclo termina com a desco-
30 Referindo-se à dormente e perniciosa influência da televisão, Chytilová antecipa aqui o cinema
tcheco pós-comunista, no qual os suportes, incluindo a televisão, são sempre retratados como uma
força do mal e de destruição (Culík 2012).
Em busca de autenticidade 197
berta chocante que um deles é HIV positivo. Não é nenhuma surpresa já que
todo mundo dorme com todo mundo o tempo todo, argumentando ‘Só se é
jovem uma vez’. O filme mais uma vez enfatiza a preocupação de Chytilová
de que não devemos perder tempo perseguindo besteiras e que devemos
viver nossas vidas de maneira significativa. É mais uma manifestação da sa-
gacidade pública de Chytilová e de responsabilidade cívica.
Dois excepcionais ‘semi-documentários’ foram feitos por Chytilová nos
anos 1980, excepcionais no sentido de que eles não foram totalmente sub-
metidos à censura pelas autoridades comunistas de Praga: eles foram fei-
tos no ocidente. Chytilová versus Forman (1981) feito para a TV belga, é um
retrato extremamente interessante de duas personalidades fortes. Chyti-
lová, com sua equipe reduzida, persegue Milos Forman enquanto ele vive e
trabalha nos Estados Unidos. Ela o ataca repetidamente com perguntas, o
interroga sobre suas experiências interculturais como tcheco vivendo na
América e pergunta sobre seu método de trabalho e seu pensamento teó-
rico que deveria, ela acredita, sustentar seus filmes. Ocasionalmente, o diá-
logo se transforma em feroz conflito verbal (ver Prádná 22009, 48). Chyti-
lová fala francês, Forman responde em inglês, quando o conflito se torna
verdadeiramente pessoal, eles mudam para tcheco. Forman se recusa a dis-
cutir teoria com Chytilová e evita suas perguntas filosóficas. Ele se recusa
a dizer o que para ele é o propósito da vida. Tudo que ele eventualmente
admite é: ‘Felicidade. Ser livre para perseguir a felicidade é a felicidade de-
finitiva. Felicidade é a estrada para a felicidade. Eu estou gostando de con-
tar histórias’. Ele não quer discutir teoria ‘porque isso é superficial. Se eu
quisesse falar sobre isso eu não estaria fazendo um filme. Tenho receio de
soar inteligente e esperto e quando o filme é um pedaço de merda?’ Então
ele admite que faz filmes porque ‘Eu sou fascinado pela ambiguidade das
coisas’. Aqui, parece existir consenso com Chytilová. Anda assim, a causa
do conflito é o fato de que o método de trabalho para ambos os cineastas é
diametralmente diferente. Chytilová desvaloriza Forman por ter se torna-
do somente uma engrenagem em um mundo cinemático comercial em que
ele se sente feliz em somente ‘contar histórias, escritas por outras pessoas’.
Forman contra-ataca: ‘Eu não posso funcionar como roteirista em um país
aonde eu não passei minha infância. Não me sinto seguro o bastante. Eu
devo depender de escritores locais. Mas eu devo apresentar minha própria
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198 Vera Chytilová
visão’. Visualmente, o filme mais uma vez usa uma câmera na mão que ba-
lança deliberadamente com rápidas pans e zooms frequentes, imagens his-
tóricas de monumentos culturais na Tchecoslováquia, filmes da segunda
guerra mundial e, mais uma vez, tem uma trilha sonora bastante forte que
usa jazz contemporâneo e composições clássicas de grandes compositores
tchecos, especialmente Janácek.
Praga - O incansável coração da Europa (Praha, neklidné srdce Evropy,
1984), é, sem dúvida, a culminação de seu trabalho feito no período da
‘normalização’. Ele foi feito nos estúdios Krátký, situados em Praga, como
contribuição para uma série sobre cidades europeias, transmitida pela te-
levisão italiana RAI (ver Chytilová 2009, 39). O filme é uma impressionante
e agitada colagem, documentando gradualmente a história da Boémia e da
Tchecoslováquia como ela se imprimiu nos prédios e locais históricos da
capital tcheca. Os principais monumentos em Praga, tais como o Castelo
de Praga, a Praça Wenceslas, as construções medievais da Universidade
Charles e várias catedrais funcionam como pontos de estabilização aos
quais Chytilová se refere várias vezes durante sua visita guiada pela his-
tória tcheca. Mas a maneira que Chytilová mostra essas construções para-
doxalmente as desestabiliza. O material visual é, mais uma vez, altamente
subjetivado pela câmera agitada de Jan Malír: há, novamente, frequentes
pans rápidas, zooms e até pixilation de imagens. Grande ênfase é dada aos
close-ups e à contínua interação entre padrões. Como sempre, um papel
importante é desempenhado pela música, clássica e moderna, e a direto-
ra cria surpreendentes conexões entre algumas composições musicais em
particular e as imagens visuais dela. Por exemplo, imagens da ocupação na-
zista na Tchecoslováquia, são acompanhadas pelo hino tcheco do século
onze Deus, tenha piedade de nós (Hospodine, pomilu ny).
Mutabilidade e a passagem do tempo, a chegada e a partida de diferentes
eras são constantemente enfatizadas, como é nosso dever ‘estar conscien-
te da continuidade histórica’ e sempre lutar para atingir os padrões mo-
rais mais elevados. As exortações de Chytilová são apresentadas em um
comentário em off, que se torna semelhante a um canto e frequentemente
consiste em citações de vários poemas tchecos. O comentário é inspirado
nos principais temas da obra de Chytilová: sua obsessão com a inexorável
passagem do tempo e suas questões sobre o sentido da vida. Já que enfren-
Em busca de autenticidade 199
tamos a morte, devíamos desistir de tentar acumular bens materiais e lutar
por ideais maiores para cumprir a responsabilidade cívica à qual estamos
ligados pela história.
Sinais de censura são evidentes: por exemplo, Chytilová não pôde mostrar
o presidente T. G. Masaryk ou qualquer outro político da era democrática
entre-guerras. O comunismo é representado por imagens do golpe comu-
nista de 1948 e então há um fast forward para um ‘Spartakiáda’ dos anos
1980, um festival de exercícios físicos, parecido com os da Coreia do Norte,
no qual uma massa de milhares de tchecoslovacos participaram. Chytilová
filma estes eventos inusitadamente, criando padrões.
As sequências históricas são constantemente interrompidas por imagens
contemporâneas de Praga. Jovens garotas encaram repetidamente a câme-
ra em close-up. No entanto, um ângulo crítico pode ser detectado: parece
que o presente não tem nada a oferecer em comparação com os eventos
marcantes do passado: a contemporaneidade é representada somente pela
agitada, acelerada trituração de multidões ou carros rodando em estradas.
A falta de significado e de perspectivas do mundo contemporâneo é acen-
tuada nas sequências finais do ‘Spartakiáda’ onde a nação tcheca se trans-
formou de uma comunidade de indivíduos em um gigante formigueiro de
seres robotizados. ‘O verdadeiro vazio não está ligado ao nosso envelheci-
mento, que nós não podemos parar, mas a uma vida que foi desperdiçada.
Esse parece ser o lema de toda a obra de Chytilová’, diz Jìrí Cieslar (2003).
Conclusão
Verá Chytilová aperfeiçoou seu estilo de fazer cinema nos anos 1960. Seu
objetivo sempre foi perturbar a hipocrisia, a ideologia e as convenções
usando abordagens originais. Como os outros cineastas da Nouvelle Vague
Tcheca, ela tinha total consciência de que a vida é incognoscível. Ela con-
servou elementos de mistério e ambiguidade em seu trabalho. Seus filmes
progrediram de uma abordagem híbrida de documentário, baseada em téc-
nicas do cinéma vérité, em direção a imagens fantásticas altamente meta-
fóricas e colagens complexas, nas quais um papel importante e subversivo
era constantemente desempenhado pela trilha sonora e pela música.
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200 Vera Chytilová
A comparação dos filmes feitos por Věra Chytilová nos liberais anos 1960
com os filmes feitos nos ‘normalizados’ anos 1970 e 1980, depois de seu pe-
ríodo de silêncio forçado, revelou a notável resiliência da cineasta quando
confrontada pela censura e por obstáculos administrativos na era Husák.
Enquanto nos anos 1960 Chytilová definia seus objetivos e desenvolvia
suas técnicas criativas, seu trabalho culminou em dois filmes altamente
originais e experimentais, no período de ‘normalização’ ela frequente-
mente desistiu de sua abordagem experimental. Mas, em um período ca-
racterizado por opressão, consumismo e hipocrisia política, ela manteve
sua integridade moral e uma ousada postura de ativismo cívico. Enquan-
to uma corrente moralista já estava presente nos ‘pseudo-documentários’
iniciais de Chytilová dos anos 1960, a tendência moralista de seus filmes
se tornou muito mais forte no período da normalização. Durante essa épo-
ca, Chytilová parece ter se tornado muito mais interessada em comunicar
uma mensagem social clara através de narrativa do que perder tempo em
experimentações estilísticas. Os espectadores gostaram disso: todo mundo
sempre soube o quão diferentes eram os filmes de Chytilová quando com-
parados com a produção convencional.
Agradecimentos
Eu gostaria de expressar meus agradecimentos a Zlata Faustusová, a biblio-
tecária da Academia de Cinema (FAMU) em Praga por sua ajuda excepcio-
nal quando eu estava juntando literatura complementar para este artigo.
Referências
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minuciosa de As Pequenas Margaridas, de Věra Chytilová.’ Film Matters 3(1): 9-13.
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kocovina, editado pode Miroslav Balastik, 52-61. Brno: Host.
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 Contra a destruição 205

Contra a -
A carreira de Věra Chytilová abrange três períodos da história Tcheca mo-
derna: a atmosfera liberal na década de 1960, que culminou em um “socia-
lismo com rosto humano”; a normalização, o período de repressão que se se-

destruicao:
guiu à invasão liderada pelos soviéticos; e a não menos turbulenta era pós-

,
Conjunto habitacional
-comunista. Em vista das diferentes circunstâncias políticas e sociais sob as
quais ela operou, Chytilová manteve ao longo de quatro décadas uma notá-
vel unidade temática e o mesmo interesse por um estilo mais experimental.

Entre seus temas principais estão os papéis de gênero, o que levou seu
(Panelstory, 1979)1 trabalho a ser rotulado como “feminista”. Embora seja certamente verda-
de que o trabalho de Chytilová produz frutos interessantes quando sub-
metido a uma leitura feminista, seria errado limitar suas ideias apenas a
Andrew James essa perspectiva. Seu trabalho geralmente aborda questões específicas da
sociedade - talvez associadas a papéis de gênero - e as usa como uma metá-

Horton fora para o estado mais amplo da humanidade.

Esta abordagem pode ser facilmente vista em seu filme Conjunto habitacio-
nal (Panelstory, 1979)2, um longa de mensagem feminista bem definida, mas
que também abrange temas muito mais universais. É o caso bem particular
- e recorrente ao longo da carreira de Chytilová - do tema da destruição que
anula um ato de criação ou um estado de paraíso.

Paraíso profanado

A ação se desenrola exclusivamente em um conjunto habitacional, que,

embora ainda esteja em processo de construção, já é habitado. Tal como
acontece com outros filmes de Chytilová (por exemplo, seu filme de 1966,

1 Publicado originalmente em Kinoeye, Vol 2, Nº8, 29 de abril de 2002. Tradução de Ana Moraes. 2 O título completo, tal como aparece nos créditos do filme, é Panelstory aneb jak se rodi sidliste, mas
Disponível on-line: http://www.kinoeye.org/02/08/horton08.php isso raramente é usado em outros contextos.
 ›
206 Vera Chytilová
As pequenas margaridas [Sedmikrasky]), a narrativa é fragmentada e a tra-
ma é pouco convencional.
Além disso, não existe um único personagem que possa ser considerado
como central (um dispositivo menos comum em Chytilová, mas também em-
pregado, por exemplo, em Banidos do paraído [Vyhnani z raje, 2001]). Entre
a fauna de protagonistas estão: um velho desdentado e de visão deteriora-
da, intrigado com uma velha senhora sentada imóvel perto de sua janela; um
ator famoso, mas obcecado por si mesmo, que não consegue fazer seu carro
funcionar; uma adolescente grávida, que não sabe como lidar com sua situa-
ção; um punhado de construtores sem entusiasmo; e uma criança pequena,
que fugiu de casa e se deleita em destruir coisas.
Os arranha-céus pré-fabricados (panelaky) são uma característica depri-
mente dos subúrbios de Praga, e uma visão que será familiar para qual-
quer um que tenha passado muito tempo na Europa central ou oriental.
No entanto, os próprios apartamentos foram concebidos como luminosos,
modernos e prontos para serem equipados com os eletrodomésticos mais
recentes - o aquecimento central era padrão e as máquinas de lavar rou-
pa eram uma aspiração social para muitos (algo que é retratado no filme).
Além disso, os imóveis eram grandes niveladores sociais, trazendo todo
tipo de pessoas para o mesmo distrito (ilustrado em Conjunto habitacio-
nal pela presença do conhecido ator que vive entre os trabalhadores). Em
suma, as propriedades foram planejadas como utopias de igualdade social
e conforto material que viveriam de acordo com o objetivo do Comunismo
de melhorar as circunstâncias materiais das pessoas. Sem mencionar o fato
de que eles ajudariam a aliviar uma crise imobiliária urgente que afligiu
todos os países comunistas a um custo comparativamente baixo.
A realidade, claro, era bem diferente. E se as propriedades parecem feias
agora, fica claro em Conjunto habitacional, que, em seu estado semi-cons-
truído, elas eram muito piores: no filme, restos de construção estão por
toda parte, não há por onde caminhar e a chuva tornou o solo algo incrivel-
mente lamacento, gambiarras são necessárias para subir pelas partes fal-
tantes das escadas, falhas de projeto são evidentes em todos os lugares, a
água é desligada em horários inconvenientes e o zumbido dos encanamen-
tos é um fundo sonoro permanente. Chytilová mostra tudo isso com o olhar
Contra a destruição 207
de uma documentarista3, enquanto imagens artisticamente emolduradas
de painéis pré-fabricados sendo encaixadas com um guindaste pontuam
regularmente o filme.
Preocupação moral Tcheca
Os imóveis de Praga que ela mostra não são apenas fisicamente disfuncio-
nais. Chytilová também destaca a corrupção, a preguiça e a imoralidade
sexual dos construtores que trabalham no panelaky. (Em sua representa-
ção da corrupção, o filme mostra paralelos próximos com a tendência con-
temporânea kino moralnego niepokoju [cinema de preocupação moral] na
Polônia.)
No entanto, apesar de toda essa crítica às próprias propriedades e às pesso-
as que as construíram, Chytilová realmente dirige seu vitríolo para as pes-
soas que vivem no panelaky. Nenhum de seus personagens é inocente. En-
tre eles estão as caricaturas hiperbólicas da imoralidade, mas a cineasta se
mostra ainda mais habilidosa quando estimula nos espectadores a simpatia
e o desgosto simultâneos em relação aos personagens demasiadamente hu-
manos (como, por exemplo, com a adolescente grávida e o garoto fugitivo).
As deficiências dos imóveis e de seus residentes são perfeitamente afina-
das, uma aumentando a outra, para criar um espaço moral simbólico - uma
área distinta de sua realidade geográfica que atua como um significante
tanto para a decadência social quanto para uma série de crises pessoais
individuais de moralidade. Isso dá ao filme uma universalidade que o eleva
além do nível de um ensaio sobre as implicações sociais do fracasso do pla-
nejamento urbano. Essa utilização da localização como específica e simbó-
lica é comum no trabalho de Chytilová, mas em Conjunto habitacional isso
chega a um extremo: em nenhum outro trabalho a localização é definida
com tanta precisão sendo ao mesmo tempo tão arquetípica.
3 2. A visão de Chytilová sobre o caos é de fato documental, e não exagerada, o que pode ser compro-
vando pelo documentário de 1963, Zblačené město, de Václav Taborský, também sobre uma proprieda-
de parcialmente habitada em construção. O filme tem uma trilha sonora de jazz animada e diz pouco
ou nada sobre as pessoas que vivem nas propriedades além de seus sorrisos. Mas em todos os outros
aspectos, o filme contém imagens muito semelhantes a Conjunto habitacional: por exemplo, mulheres
lutando com carrinhos de bebê em uma paisagem impossível, sapatos sendo perdidos na lama e uma
vidraça perdida em uma porta usada como saída por crianças pequenas.
 ›
208 Vera Chytilová
O espaço em Chytilová é altamente comprimido, e a atmosfera é de claus-
trofobia, alcançada através de uma estrutura narrativa em rápida mutação,
com vertentes constantemente sobrepostas, montagem, design de som, mi-
se-en-scène e composição de imagem compacta. Isso ocorre apesar do uso
periódico de vistas panorâmicas do topo do panelaky em ascensão para en-
fatizar a extensão da imensa propriedade. A compressão ainda traz toda a
África em uma sala de estar para uma mulher idosa que se senta na janela,
desencadeada por um inesperado intruso negro com boas intenções, uma
fita gravada de seu filho e um mapa do continente.
Um pequeno filme sobre destruição
O poder em Conjunto habitacional não aparece na apresentação de um es-
paço estático que já está em estado de ruína física e moral como, por exem-
plo, nos filmes de Bela Tarr4. Em vez disso, há um contraste, embora prin-
cipalmente implícito, entre a degradação das condições e a pureza de sua
concepção. Imagens de destruição são abundantes.
Após uma recente exibição de Conjunto habitacional em Londres5, Chytilo-
vá esteve presente para uma sessão de perguntas e respostas. Quando um
membro da plateia perguntou se ela procurava em seu filme culpar o re-
gime que fomentava essas monstruosidades arquitetônicas ou as pessoas
que viviam nelas, Chytilova respondeu:
“O que eu queria dizer era que o homem cria algo com uma respiração e
com a segunda respiração a destrói. Eu queria que o público estivesse cien-
te de como o comportamento do homem é contraditório. Não é uma reação
crítica ao regime; é mais uma visão do comportamento moral humano. Eu
acho que toda forma de comportamento tem um aspecto moral”.
4 3. Na época de Conjunto habitacional, Béla Tarr estava embarcando na fase inicial do realismo so-
cial de sua carreira, concentrando-se na vida real do povo húngaro comum com um tipo de realismo
crítico muito parecido com o praticado por Chytilová, mas sem o simbolismo e a estilização. O tercei-
ro de seus longas-metragens foi sua própria “história pré-fabricada”, Prefab People (Panelkapcsolat,
1982). Para uma análise desse filme e do início da carreira de Tarr, ver Hames, Peter “The Melancholy
of Resistance”. In: Kinoeye, 1.1, 3 de setembro de 2001.
5 Conjunto habitacional foi exibido no Riverside Studios em 19 de abril de 2001 como parte da pri-
meira retrospectiva britânica dos filmes de Chytilová, que, por sua vez, fazia parte do primeiro Staro-
pramen Prague on Film Festival.
Contra a destruição 209
A noção de que este interesse por um comportamento destrutivo em re-
lação à moralidade não seja específico ao Conjunto habitacional emergiu
quando, em uma parte anterior da discussão, ela descreveu a linguagem
formal do cinema de As pequenas margaridas (que ela negou ser vanguar-
dista) nestes termos:
“Não apenas no sentido dramatúrgico, mas no sentido filosófico e existen-
cial, queríamos ter personagens reais, pessoas reais, agindo como fanto-
ches. Queríamos que o espectador compreendesse realmente o significa-
do do filme. E esse significado foi um protesto contra a destruição. A des-
truição, em qualquer sentido do termo, em nossas vidas. A destruição está
acontecendo em nossas vidas e especialmente em nossos relacionamentos.
Então, nós queríamos usar a linguagem cinematográfica para mostrar isso”.
Considerando a propriedade (em sua fase de planejamento) como um pa-
raíso socialista, o filme pode ser visto em afinidade com outros filmes de
Chytilová que aludem ao Jardim do Éden: Fruto do paraíso (Ovoce stromu
rajskych jime, 1969), O jogo da maça (Hra o jablko, 1976) e Banidos do paraíso.
Este último é particularmente íntimo em espírito a Conjunto habitacional,
descrevendo um ato de criação equivocado (rodar um filme) que leva a uma
abominação moral.
Nos anos da chamada normalização, cineastas com uma mente independen-
te e uma visão crítica acharam difícil - se não totalmente impossível - fazer
filmes. (Por essa razão, Peter Hames considera Conjunto habitacional como
um dos filmes Tchecos mais críticos da era da normalização6.)
Conseguir lançar um filme independente era ainda mais difícil. Conjunto
habitacional foi banido logo após o seu lançamento e, no final dos anos 80,
ele ainda não havia sido exibido publicamente em Praga. O filme não foi
promovido internacionalmente e só conseguiu ganhar a medalha de ouro
no festival de cinema de San Remo em 1980, na Itália, porque Chytilová
transportou o filme para lá, sem sanção oficial, no porta-malas de seu carro.
No entanto, é preciso ter cuidado ao ler a recepção de Conjunto habitacio-
nal dentro da estrutura da Guerra Fria e avaliar os méritos de um filme de
6 Hames, Peter. “Czechoslovakia: After the Spring”. In: Daniel J Goulding (ed.). Post New Wave Cinema
in the Soviet Union and Eastern Europe. Indiana and Bloomington: Indiana University Press, 1989, p. 126.
 ›
210 Vera Chytilová

acordo com o nível de irritação que ele causava às autoridades comunistas:

muitos filmes de segunda categoria foram censurados nos países comunis-
tas, enquanto alguns filmes de primeira classe receberam aprovação oficial,
e os comentários da diretora deixam claro que o filme não foi concebido
como anti-regime. Acima de tudo, a postura moral inabalável de Chytilová
e a análise penetrante da criação e destruição, como é evidente em Conjun-
to habitacional, sem dúvida se destacariam na produção cinematográfica
de qualquer país, independentemente da forma de governo vigente.
 O vazio por trás da máscara Game-playing 213

Os filmes da diretora Tcheca Věra Chytilová provocam reações controver-

O vazio sas no público, bem como nos críticos de cinema. Seus filmes estão sempre
atualizados, avaliando com precisão o estado atual da sociedade e as fra-

por trás da quezas humanas universais.

A diretora usa muitas maneiras de articular sua posição em relação aos pro-

máscara blemas morais da sociedade contemporânea e sua percepção de mundo. Um

desses métodos é o uso do exagero, um meio que muitas vezes convida a

Game-playing
reações inconsistentes do público; outro é o uso de jogos, e é este último
dispositivo que vamos nos concentrar no texto a seguir.

Podemos encontrar vários exemplos de jogos e brincadeiras nos filmes de

nos filmes de Věra Chytilová1 Chytilová - não apenas como uma ocorrência no plano estrutural temático
dos filmes, mas também como um experimento criativo com a imagem ci-
›

Ivana Kosulicová
nematográfica ou como uma brincadeira alegre com a língua Tcheca. Neste
artigo, no entanto, nos concentraremos principalmente nos princípios do
jogo na estrutura narrativa de seus filmes.

Os princípios do jogo

Ao olhar para três filmes da Chytilová – As pequenas margaridas (Sedmi-

krasky, 1966), A tarde de um Fauno (Faunovo velmi pozdni odpoledne, 1983) e
Tainted Horseplay (Kopytem sem, kopytem tam, 1988) - podemos identificar
as principais características do jogo no trabalho da cineasta:

• O jogo é usado para expressar a passividade, a imobilização geral da so-

ciedade contemporânea e a formulação de princípios destrutivos.

• Os jogadores decidem jogar o jogo como uma resposta à situação social.

1 Publicado originalmente em Kinoeye, V. 2, Nº 8, 29 de abril de 2002. Tradução de Ana Moraes. O jogo se torna um substituto para a vida real. Permite aos jogadores
Disponível on-line: http://www.kinoeye.org/02/08/kosulicova08.php
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214 Vera Chytilová
criar uma nova existência, um novo modo de vida independente da reali-
dade, subordinado apenas às regras do jogo.
• O jogo só tem significado em si mesmo.
• Cada jogo tem suas próprias regras. Quebrar as regras faz o jogo chegar
ao fim.
• O jogo é ameaçado pela realidade. Elementos da realidade que invadem o es-
paço imaginário do jogo ameaçam sua existência e a dos próprios jogadores.
• O jogo não pode ser repetido porque é identificado, confundido com a
própria vida. O final do jogo é equivalente à morte dos jogadores.
Sistemas de jogo
Existem tipos de jogos muito específicos e distintos em cada um dos filmes
acima mencionados. Em As pequenas margaridas, assistimos a uma histó-
ria de duas meninas (Marie I, Marie II). O filme consiste em uma série de
episódios em que a ação acontece de acordo com o princípio do jogo que
elas jogam, “vadi-nevadi” (“importa-não importa”). Uma jogadora tem que
fazer qualquer coisa que sua parceira de jogo queira. Aquela que não fizer
isso, “mostrando respeito a certas normas e convenções, perde”.2 Ambas
as heroínas provocam-se e tentam revelar seus limites. Ambas as Maries
conduzem seu jogo como um ato livre ao extremo, onde o ato criativo é
transformado em destruição.
Podemos ver um tipo diferente de jogo no filme A tarde de um fauno, que
pode ser descrito como um jogo erótico. O velho herói, Faun, está “caçan-
do” as mulheres. Seu jogo tem apenas duas regras que não podem ser que-
bradas: nunca deixe uma mulher passar a noite em sua casa e nunca co-
mece nada com uma colega de trabalho. Quando Faun quebra a primeira
regra, sua vida começa a desmoronar. Quebrar a segunda regra do seu jogo
tem consequências catastróficas, provocando o fim do jogo.
O grupo de animais de festa da cidade termal no filme Tainted Horseplay
também cria um sistema de jogo específico - neste caso, um que poderí-
2 Klimeš, Ivan. “Hra”. In: Filmový sborník historický 4, 4/1993, p 59.
O vazio por trás da máscara Game-playing 215
amos chamar de “jogo-vida” porque eles transferem todas as suas ações,
toda a sua vida no jogo.
No começo, o mundo exterior parece ser um alvo que os jogadores atacam.
O jogo parece uma maneira de interromper as convenções e derrubar as
máscaras.
Mas logo percebemos que o jogo tem uma função completamente oposta. É
um “asilo de má consciência, uma defesa da apatia ao redor, [...] o grupo tri-
tura coisas sem importância, assim como urgentemente fundamentais, em
mingau confortavelmente digerível. O trio bon vivant ainda tem seu “sistema
sem sistema”, suas regras, sua linguagem e seus hinos”.3
A única coisa que ameaça este jogo é a realidade. Mesmo quando os joga-
dores subjugam a realidade, transformando-a em um jogo que eles jogam,
resta um último fato que não pode ser jogado: a morte. Neste caso, a morte
vem sob o disfarce da AIDS.
Mas há também a figura parcialmente alegórica de mulheres misteriosas
de rosto pálido, óculos escuros, vestindo um casaco com capuz. É este per-
sonagem, uma bela mulher francesa, que infecta Pepe com a doença mortal
em Tainted Horseplay. Uma mulher igualmente vestida (a personagem de
Sefka, a Chefe) representa a figura da Morte no filme A tarde de um fauno.
Escolha por máscaras
Uma das características básicas de qualquer jogo é a possibilidade de esco-
lher uma nova existência, um novo papel que o jogador irá desempenhar.
Na sequência da piscina em As pequenas margaridas, os personagens têm o
seguinte diálogo:
[Marie II coloca uma corrente de margarida na cabeça dela.]
Marie I: Co to delas? (O que você está fazendo?)
Marie II: Pannu Jsem takhle jako panna, ne? - Ja jsem panna. (Eu estou fazen-
do uma virgem. Eu pareço uma virgem assim, não é? Eu sou virgem).
3 Cieslar, Jiří. Concettino ohlédnutí (portréty, kritiky a eseje 1975-1995). Národní filmový archiv, Prague,
1996, p 178.
 ›
216 Vera Chytilová
Ambas as heroínas decidem ser mimadas. Eles elaboram várias maneiras
de perceber a sua desmoralização: elas usam velhos lascivos para comer
o que querem de graça, fumam e roubam apenas para cumprir sua reso-
lução de serem mimadas. Seu jogo “ser mimada” é focado principalmente
na manipulação e no uso dos homens. A existência básica que as heroínas
escolheram para si no jogo é a das meninas mimadas. Seu comportamento
é então subordinado a essa postura principal. De acordo com a situação, as
meninas colocam máscaras que as retratam como ingênuas, cínicas, atrevi-
das ou alegres.
O jogo expressa o conflito entre o humano e o mundo. Para os heróis dos fil-
mes de Chytilová, o jogo é a única resposta possível para a situação de vida
em que se encontram. Em As pequenas margaridas, as duas Marias iniciam
o jogo quando dizem:
Marie I: Vsechno se nám kazí na tom svété. Vís co?
Budeme zkazené eu meu! (Tudo está estragado neste mundo. Você sabe o
quê mais? Nós também nos estragaremos!).
Marie II: Vadí? (Isso importa?).
Mariel: Nevadí. (Não importa).
Em comparação com as figuras intencionalmente esquemáticas das duas
Marias na alegoria simbólica de As pequenas margaridas, a concepção do
filme A tarde de um Fauno é criada em uma relação mais próxima com a re-
alidade empírica. As únicas coisas com que Faun pode se relacionar em sua
existência são as mulheres. Chytilová enfatiza principalmente seu medo da
responsabilidade, escondido atrás de sua pose de sedutor. O papel escolhi-
do se torna uma maneira apropriada de cobrir sua frustração.
Tais motivos de frustração, desapontamento, desejo insatisfeito escondi-
dos no mundo do jogo também estão presentes em Tainted Horseplay. Os
três heróis tentam escapar de seus papéis na vida. Papéis que não combi-
nam com suas ideias originais sobre si mesmos.
O biólogo Dédek (Milan Steindler), que foi estudar ciência veterinária para
seguir sua paixão, tem que escrever uma tese para a filha do diretor, em
vez de trabalhar em sua pesquisa. O crítico cultural Frantisek (David Vá-
O vazio por trás da máscara Game-playing 217
vra) está desapontado por suas fracassadas ambições teatrais e o inspetor
de ações Pepe (Tomás Hanák) inibe sua existência no que diz respeito aos
assuntos eróticos. O jogo permite que os personagens esqueçam as reali-
dades de suas vidas. Suas máscaras de bon vivant lhes permitem enfrentar
a absurda situação social com uma atitude escapista que, através de sua
brincadeira, testemunha um “esquecer o propósito da vida”.4
O jogo se torna uma fuga da tristeza e de conflitos vivos. O jogo é a possibi-
lidade de criar um “novo mundo” onde podemos decidir as regras por nós
mesmos. Mas o êxtase que os heróis experimentam da súbita ação livre tem
que ser limitado pelo tempo. Nenhum jogo pode continuar perpetuamente,
completamente isolado da vida real. Os heróis não percebem isso, porque
perderam a fronteira entre o mundo real e o mundo do jogo.
A falta de propósito do jogo
O antropólogo francês Roger Caillois vê o jogo como um dos fenômenos
básicos da existência, tão original e peculiar como a morte, o amor, o poder
ou o trabalho. De acordo com Caillois, a única coisa que diferencia o jogo
dos fenômenos acima mencionados é o fato de que o jogo não tem um ob-
jetivo final.
Uma das características básicas do jogo que Chytilová enfatiza é a falta
de propósito. O jogo não tem outro propósito além de si mesmo. De uma
perspectiva existencialista, o ser é realizado em ato. Se limitarmos nossa
existência à nossa presença no jogo, nossa existência - dentro do sistema
sem objetivo do jogo - tem que ser absurda.
Chytilová permite que apenas alguns dos personagens (Faun, Pepe) saiam
do jogo e atinjam a realidade - entendendo o tempo, a velhice e a mortali-
dade. Para ambos os personagens, deixar o jogo significa a morte. Apenas
as duas “sedmikrásky” têm uma segunda chance, uma chance de expiação.
Mas é apenas uma mudança de posição, a troca das máscaras de “mimada”
para as máscaras de “feliz”.
4 Ibid.
 ›
218 Vera Chytilová O vazio por trás da máscara Game-playing 219

Marie II: Meu jsme prece obê tak stastné! Nenhum rekni, ze jsme stastné!
(Estamos tão felizes! Digamos que estamos felizes!)
Marie I: Um hrajeme na para? (E ainda estamos jogando?)
Marie II: Ne. Meu jsme prece doopravdy stastné. (Não. Nós estamos real-
mente felizes.)
Através do fenômeno do jogo, Chytilová testemunha não apenas as ideias
existenciais primárias, mas também o estado da sociedade contemporânea.
Ela conecta temas atemporais com uma descrição crítica do estilo de vida
atual da sociedade. Em seus filmes, ela cria uma forma específica de jogo
que sempre leva à destruição da existência humana e também à destruição
do mundo.

Marie I: Ale para nevadí. (Mas isso não importa.)
A luta permanente contra o nada
Acima de tudo, Chytilová compõe seus filmes como um apelo. O jogo se tor-
na uma ferramenta para a apresentação de um estilo de vida vazio e uma
existência frustrada. Ela provoca o espectador apontando a “superficiali-
dade de um certo modo de vida, a perigosa necessidade de prestígio huma-
no que leva a manter uma pose talvez até a morte, a incapacidade de ser
você mesmo e também a incapacidade de ser feliz”.5
Chytilová expõe personagens cuja vida infrutífera se revela gradualmente
na forma de um jogo que logo começa a expressar sua natureza grotesca
e trágica. A falta de propósito do jogo torna-se cada vez mais visível. A au-
sência de significado se torna o problema central da existência humana em
um mundo em que a diretora se envolve constantemente. O jogo tornou-se
uma maneira de formular a ideia de que o nada real não está no tempo, na
velhice ou na morte, mas numa existência absurda e sem sentido.

De seus filmes, podemos concluir que o sentido da existência está para

Chytilová na consciência de que existimos no tempo e, simultaneamente,
na consciência de nossa existência ser limitada pelo tempo. Isso parece le-
var à compreensão da história como uma unidade de tempo e eternidade.
A diretora usa o tema da história, tempo e existência mais claramente em
seus documentários O tempo é inexorável (Cas je neuprosny, 1978) e Praga:
O incansável coração da Europa (Praha, neklidne srdce Evropy, 1984).

Chytilová não percebe a condição humana como sendo aquela em que to-
das as decisões são predeterminadas. Por outro lado, para ela, a vida huma-
na se origina no nada e é criada apenas através de um esforço permanente.
De uma perspectiva existencialista, a auto-realização acontece através de
um projeto livre. Mas o nada do qual a vida humana é erguida espreita por
todo lugar o tempo todo; a liberdade humana está constantemente em pe-
rigo, ameaçada pela perspectiva de cair na letargia, na mera existência. Isso
significa que toda pessoa tem uma responsabilidade extraordinária - não
apenas consigo mesma, mas também com os outros. Nesta conexão inse-
parável entre a humanidade e o mundo, a vida social e política é formada.

5 Chytilová, Věra. “Sedmikrásky”. In: Film a doba 12, 4/1996, p 169.

 ›
VEra, a pedagoga 221

Vera, a
Eu estudei no Departamento de Direção na FAMU no fim de uma era. Sen-
do americana, eu era uma singularidade no departamento; a maioria dos
estudantes estrangeiros vinham de países de língua eslava como Eslová-

pedagoga:
quia, Polônia, ou das antigas repúblicas Iugoslavas, já que uma das exigên-
cias para o estudo era falar tcheco fluentemente. Estudantes estrangeiros,
no entanto, podiam se inscrever com um tradutor. Eu me inscrevi quando
a República Tcheca estava prestes a entrar na União Europeia, portanto,
Reflexões de uma estudante testes de admissão com idioma padronizado ainda não haviam sido implan-
tados. Já que era tão incomum uma estudante não-falante de língua eslava
americana de cinema na FAMU1 se inscrever na FAMU, o teste de admissão para estudantes estrangeiros
era na verdade bastante simples, e, miraculosamente, eu passei.

Asmara Beraki Ser aceita em um dos cinco mais cobiçados lugares no Departamento de
Direção era outra história totalmente: foi, de longe, o mais extenuante pro-

Marek cesso de candidatura pelo qual eu já passei. Tendo sido aceita em escolas
prestigiosas nos Estados Unidos – tanto como universitária quanto como
formada, eu achava que não tinha nada a temer. Vamos utilizar uma ana-
logia; se usarmos uma metáfora de corridas: Yale está para o jogging assim
como a FAMU está para a maratona. Ao passo que nos Estados Unidos você
simplesmente apresenta alguns ensaios, transcrições, todos os projetos in-
críveis que você fez para tornar o mundo um lugar melhor (as casas que
você construiu em países do terceiro mundo, as competições de música e
de esportes que você ganhou) e algumas brilhantes recomendações de an-
tigos instrutores agora estabelecidos, entrar no Departamento de Direção
na FAMU (a Escola Nacional de Cinema Tcheco, não os programas recentes
de língua inglesa desenvolvidos para estrangeiros) é como ser participante
de um daqueles programas que testam sua capacidade de sobrevivência.

1 Publicado originalmente em Studies in Eastern European Cinema, 9:3, 265-270. Tradução de

Naquela época você inscrevia uma série de projetos escritos e filmados: um
Artur Ianckievicz. Copyright © 2018 Informa UK Limited conto, um ensaio fotográfico, um curta-metragem de ficção, uma autobio-
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222 Vera Chytilová
grafia, assim como as transcrições necessárias. Sem recomendações. O cor-
po docente inteiro assiste mesmo todos esses filmes; já que cerca de 300 es-
tudantes podem se inscrever, essa é uma tarefa heroica. Eles não dividem o
trabalho do candidato em pilhas menores para fazer uma seleção uma vez
que têm receio de perder um diamante bruto que talvez um colega menos
astuto possa ter menosprezado. Todo mundo quer descobrir o próximo gê-
nio do cinema. A faculdade leva o processo de admissão bastante a sério. É
bastante comum que os candidatos tentem duas, três ou até cinco vezes até
serem aceitos. Enquanto jovens estudantes recém-saídos do ensino médio
são aceitos, experiência de vida é considerada uma vantagem; portanto, es-
tudantes mais velhos são considerados valiosos. A própria Věra Chytilová
começou na FAMU com 28 anos de idade.
Agora, se você calha de ser um dos trinta e poucos estudantes a conseguir
passar dessa primeira rodada, você é então convidado a fazer uma prova
artística e cultural. Essa prova dura o dia todo. Como eu disse, me era per-
mitido ter um tradutor junto e ela sentou comigo e traduziu todas as mi-
nhas respostas e ensaios para o idioma tcheco. Uma das partes da prova
é um exame de história da arte. A extensão do conhecimento é tão gran-
de que é impossível acertar mais de 30% desse teste. Talvez te seja pedido
para nomear todas as óperas de Richard Wagner. Ou talvez um dos peda-
gogos seja realmente curioso se alguém vai saber identificar o trabalho do
Captain Beefheart (eu deixei essa em branco). Uma coisa sobre estar com
artistas intelectuais europeus é que eles sabem mais sobre a vanguarda
americana do que você. Então, tivemos que escrever um conto sobre um
tema escolhido ali na hora. Nós também assistimos um filme (no meu ano,
O Desprezo/Le Mépris de Godard) e tivemos que escrever um ensaio sobre
os temas visuais e sobre a cor do filme. A prova escrita durou o dia todo.
Nossos nomes foram então colocados em lista depois de alguns dias e cerca
de 10 de nós foram selecionados para a terceira rodada. Agora vem a entre-
vista presencial. Mas foi mais como um interrogatório.
O corpo docente da faculdade toda senta no sentido longitudinal em uma
mesa. São cerca de 12 pessoas, mas parecem ser 20. Você não consegue
lembrar de todos os rostos ou olhar nos olhos de todos. No entanto, você
reconhece Věra porque ela está no centro e espreitando você por sobre os
óculos manchados, usando uma echarpe rosa ou outro adorno majestoso,
›
VEra, a pedagoga 223
e todos os outros cedem a ela, exceto por Jan Nemec, que se senta ao lado e
sempre parece pronto para partir. A essa altura, eles vão começar a fazer
perguntas detalhadas sobre o seu filme, que, no meu caso, eles gostaram,
mas tinham que ter certeza de que as decisões que eu tomei foram toma-
das conscientemente e que não era somente acaso. Talvez eles te peçam
pra discutir o trabalho do Antonioni (definitivamente é melhor você co-
nhecer todos os filmes do Antonioni). Eu tive sorte de ter minha tradutora
porque isso me deu um pouco mais de tempo pra pensar. Depois disso, nós
fomos convidadas para uma segunda entrevista e daí uma seleção de cinco
foi ranqueada. Eu consegui, e fui ranqueada em primeiro lugar, em grande
parte pela força do meu filme de inscrição Little Pickpocket (com certeza
não devido às minhas habilidades no idioma tcheco). Um evento organiza-
do em um cinema público poucos meses depois exibiu os trabalhos dos dez
finalistas para receberem notas do público e descobrir se as respostas cor-
respondiam às decisões da FAMU, e meu filme ficou em primeiro de acordo
com o público e de acordo com os críticos. Foi um filme no qual eu trabalhei
por um ano: eu o rodei três vezes e meia (meia porque um magazine estava
quebrado na terceira vez que eu o rodei, então eu perdi exatamente meta-
de de toda a minha filmagem).
Eu então ganhei um lugar nessa fenomenal academia de cinema. Eu escrevi
no começo que estudei na FAMU no fim de uma era. Enquanto estive lá, Věra
Chitilová era minha professora de cinema assim como Jan Nemec, os enfants
terribles da Nouvelle Vague Tcheca. Não somente eles, mas também Otakar
Vávra, um dos fundadores originais da FAMU (a FAMU é a quinta escola de
cinema mais antiga do mundo e começou em 1946), ainda estava ensinando
quando eu estava por lá. Em meu segundo ano, ele se aposentou depois de
60 anos dando aulas na FAMU, com 98 anos. Ele se parecia mais com uma
árvore do que com um homem pra mim. Eu estava presente na comemora-
ção do seu centésimo aniversário (as pessoas perguntavam se ele tinha uma
dieta especial. Ele disse que não, que comia linguiças, como qualquer outro
tcheco). Uma característica que eu notei sobre ele (e sobre outras pessoas
que alcançaram uma idade significativa): uma curiosidade sem fim sobre a
vida, uma ausência de amargura, alegria no dia a dia – ele comunicou isso
em seu pronunciamento de aposentadoria. O Departamento de Direção era
no segundo andar (terceiro no sistema americano; na República Tcheca o
 ›
224 Vera Chytilová
térreo conta como 0) e eu nunca o vi usar o elevador quando ele vinha tra-
balhar; ele sempre ia pelas escadas. Portanto, eu me senti consagrada pela
história dinâmica da FAMU, e Věra Chitilová representava a perspicácia e a
iconoclastia do cinema tcheco. Eu a admirava e a temia.
A sociedade tcheca valoriza títulos educacionais e o status que eles trans-
mitem, portanto, em caixas de correio e em cartas, você geralmente coloca
seu título. Você pode, portanto, também ser chamado de Senhor Mestre,
Doutor ou Senhora Formada em Engenharia, caso você o seja. Uma cine-
asta também é respeitada e Věra Chitilová podia ser chamada de Senho-
ra Diretora (Paní Rezisérka), ou talvez madame seria uma tradução mais
majestosa. Madame Diretora tinha uma energia elétrica e reconhecível,
mesmo quando ela tinha setenta ou oitenta anos, então você sempre sabia
quando ela estava na sala. Ela tinha uma personalidade dominadora e cons-
tantemente brincava e provocava seus colegas. Tendo passado tempo com
cineastas incríveis, eu descobri que eles compartilham as mesmas caracte-
rísticas de serem provocadores: desejando quebrar o status quo ou balan-
çar as coisas, rachar emoções de fachada, mover energia estagnada, mes-
mo correndo o risco de machucar, alienar ou humilhar o alvo escolhido.
Estudantes de direção do primeiro ano recebiam uma oficina com um ins-
trutor que devia nos ensinar o básico de narrativa, mas a partir do segun-
do ano, os estudantes ficam livres para escolher seu próprio instrutor. Eu
cuidadosamente evitei a oficina da Věra e fui para a da Jan Nemec. Não era
que eu não queria estar na oficina dela ou estar perto dela, mas eu conhecia
sua personalidade e simplesmente não queria suas provocações apontadas
pra mim. Eu discuti meus projetos com ela, mas mantive distância. O espaço
proporcionava um respeito distante, mas mútuo. Ela comentou sobre a mi-
nha vestimenta (ela tinha muita consciência da moda) e elogiou meu casaco
estampado, botas de couro preto até os joelhos com botões e costuras ver-
melhas, chamando meu estilo de elegante. Algumas vezes as pessoas velhas
usam roupas velhas: nunca Chitilová. Ela se preocupava com sua vestimenta,
usando roupas modernas, sem medo de colocar uma pitada de cor com uma
echarpe estilosa. Ela sempre usava os cortes pixie, sua marca registrada.
Estudantes na oficina dela ou nas aulas costumavam criticar seu estilo de en-
sino. A reclamação básica era de que não havia ensino. A postura na FAMU
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VEra, a pedagoga 225
era de que ali era um espaço para te dar liberdade como cineasta, de desen-
volver seu estilo, de criar seu filme. Ela achava que se você foi aceita, isso
significava que você era uma diretora. Ninguém pode te dizer como dirigir
seu filme. Ela não enxergava direção (como algumas escolas americanas
fazem) como uma linguagem específica ou fórmula pra seguir. Se você qui-
sesse orientação dela sobre como dirigir seu filme, ela respondia com essa
observação: ‘Se você está me perguntando então você não merece estar nes-
sa academia de cinema’. A direção de um filme não era escolher um ângulo
de câmera para criar um determinado plano, ou como arranjar uma cena de
mesa de jantar ou qualquer tipo de regra técnica. Um diretor, acima de tudo,
deve ter algo a dizer.
O destaque dramático no ano da FAMU significava a avaliação do proje-
to de filme no final do ano. Os estudantes e o corpo docente se juntavam
na sala de projeção no Lazansky Palác. Os filmes eram exibidos um após o
outro. Após cada projeção, os professores começavam a dilacerar seu fil-
me e transformá-lo em fiapos verbais. Você tinha sorte se Jan Nemec ainda
estivesse sentado na cadeira no final da projeção do seu filme porque ele
era propenso a sair em um acesso de frustração: ‘Essa é uma academia de
CINEMA: CINEMA! FILME! Isso não passa de TELEVISÃO!!! Aonde está a
linguagem fílmica?!’ (não importava se o trabalho fosse um televizní cvicení
ou exercício de televisão.
Věra tipicamente começava a projeção com uma brincadeira pré-filme,
como atacar a masculinidade de um colega mais jovem.
Věra: Você já engravidou uma mulher?
Colega Mais Jovem Pego de Surpresa e Prestes a Entrar em uma Armadi-
lha: Não.
Věra: Bem, meu amigo, isso significa que você é impotente
E as projeções começavam. As críticas da Senhora Diretora geralmente
eram uma espécie de apelo desesperado: ‘Co (on/ona) chce RICT?’ O que ele
ou ela quer DIZER? Se o filme não tivesse uma ideologia implícita ou uma
mensagem para o público, não era merecedor, para ela, de ser considerado
um filme. Um filme deveria encapsular uma crítica filosófica da sociedade
no qual o diretor era participante. Sem isso, o filme era passivo, morto, não
 ›
226 Vera Chytilová
funcionava, flácido: impotente. Ela procurava e procurava e procurava pela
crítica, pela declaração, pela afirmação, pela provocação e se ela não encon-
trasse, ela olhava ao redor, desamparada, como se estivesse flutuando em
um mar de nada, imaginando o que ela estava fazendo assistindo aquele fil-
me: o que ele ou ela quer dizer?
Todo mundo no departamento adorava fofocar sobre ela porque ela era le-
gendária. Sobre como ela conseguia financiamento para filmes seduzindo
um comunista, arranjando para que fotos fossem tiradas dos dois juntos
e depois ameaçando mandá-las para sua esposa. Verdade ou mentira, não
era de se duvidar que ela faria tudo ao seu alcance para terminar um filme.
Independentemente do que fosse, a sala se avivava com a presença dela.
E, ainda que os estudantes a criticassem por seu ‘não-ensino de direção’;
seu estilo não-intervencionista me revigorou e me inspirou. Eu descobri
que ela sempre se interessava pelo trabalho de cineastas jovens e separava
tempo para eles. Eu me lembro de ligar pra ela e perguntar se ela não se
importaria em dar uma olhada no primeiro corte do meu filme e ela redi-
recionou seu motorista para parar na minha casa quando ela voltava da
edição na Televisão Tcheca para pegar uma cópia para que ela pudesse as-
sistir (talvez tenha sido mais fácil pra mim porque depois da projeção do
meu documentário do segundo ano, ela se virou pro público e disse para
prestarem atenção porque essa diretora tinha algo a dizer). Eu dei o roteiro
da minha tese final pra ela e ela leu, me encontrando depois no clube da
FAMU para me dizer o que pensava. ‘Bom’, ela disse ‘não é um drama, então
não posso fazer críticas dramáticas sobre a estrutura. Mas você é a direto-
ra. Você vê algo nisso que eu não vejo. Você tem que seguir a sua visão da
história, confiar em você’. Se uma diretora de cinema como Věra Chitilová
senta na sua frente e te diz que você é a diretora, e que você deveria confiar
na sua intuição, e que, por consequência, ela acredita em você: eu fiquei
fortalecida para avançar, insegura como estava pelo resultado. Eu terminei
ganhando o prêmio de melhor filme no FAMU Film Festival com o projeto,
e acho que esqueci de agradecer a Věra Chitilová nos créditos. Então, eu
gostaria de lhe agradecer agora, Senhora Diretora.
Não quero dizer com isso que minha relação, distante como era, não tinha
alguns altos e proverbiais baixos. Věra tinha um cachorro de aparência
muito feroz (ele me lembrava dos demônios que cada pessoa possui, na sé-
›
VEra, a pedagoga 227
rie de fantasia de Philip Pullman). Você sabia que a Věra estava chegando
porque o boxer entrava atrevidamente no Departamento, estabelecendo
seu espaço. Talvez houvessem dois deles (ou o único deles saía e entrava tão
desapercebidamente que era como se fossem dois). Ele foi criado para ter
a pele com listras como as de um tigre. No aniversário de oitenta anos dela,
eu segurei meu filho pequeno para que ele entregasse algumas flores para
Věra. Havia uma multidão de pessoas e paparazzi tirando fotos, todo mundo
empurrando todo mundo. De repente, eu senti meu filho de dois anos sendo
puxado pra baixo e quase caindo dos meus braços. O cachorro, cujo nome
eu não me lembro, decidiu se aproveitar do caos e prendeu suas mandíbu-
las no pé do meu filho. Felizmente era inverno, então ele estava usando um
robusto par de botas. Isso não impediu o animal de chacoalhá-las pra frente
e para trás e eu me senti desamparada pra fazer qualquer coisa, já que eu
precisava manter meus braços ao redor dele pra não o deixar cair. Eu ten-
tei chutar o cachorro pra longe. Ninguém perto de mim parecia ver o que
estava acontecendo. Finalmente, ele largou e nós conseguimos entregar as
flores para Věra. No dia seguinte, no jornal, eu vi as flores que entregamos
pra ela perto do seu rosto sorridente.
Com a intenção de preservar um relacionamento cortês com Věra, como
eu disse, eu não participei da sua oficina, eu fiquei na da Jan Nemec (que
geralmente aparecia nas primeiras semanas e depois deixava o trabalho
para seu colega mais jovem, que me surpreendeu com seu conhecimento
sobre Marion Barry; meu filme-tese foi rodado em Washington, D.C. e con-
tinha um diálogo roteirizado sobre o prefeito controverso). No entanto, no
terceiro ano, uma matéria essencial fez com que eu não pudesse mais fugir
dela. Palestras na FAMU de cineastas que não tinham formação acadêmi-
ca e, portanto, não faziam plano de aula, podiam se tornar tortuosas. Não
somente Věra, mas em geral. Cineastas podiam nos deleitar por duas ou
três horas com o status de compra de sua nova televisão digital, ou analisar
um conto de Kafka, ou nos dar sua opinião pessoal a respeito dos namoros
modernos. Nesse dia de palestra, eu escolhi um lugar ruim, exatamente na
frente da Senhora Diretora e enquanto eu achava que estava prestando
atenção, na verdade minha mente estava vagando e eu não fazia absolu-
tamente nenhuma ideia do que a senhora estava falando. Naquele momen-
to, eu conseguia me comunicar e entender tcheco razoavelmente bem,
 ›
228 Vera Chytilová
mas manter minha atenção ainda requeria um alto nível de engajamento
da minha parte. Eu não podia simplesmente escutar passivamente e com-
preender. Eu tinha, portanto, passivamente recuado pra dentro dos meus
próprios pensamentos. De repente eu ouço ‘rosto africano degenerado’ e
eu olhei pra cima pra encontrar aqueles olhos me espreitando por cima da-
queles característicos óculos escuros me encarando diretamente. Bem, ela
tinha conseguido a minha atenção.
Věra me lembrava muito a minha avó. Minha origem vem de uma mistura
de raças; meu pai tem descendência africana e minha mãe tem descendên-
cia europeia. Tanto Věra quanto minha avó tinham um tipo físico similar,
altas e imponentes, ambas modelaram e minha avó tinha uma tendência a
tentar tirar reações das pessoas, gostava de mexer com os outros. Eu não
fiquei surpresa ou irritada com o que Věra fez. Era somente um jogo. Eu
sabia que aconteceria eventualmente. Foi por isso que eu não fiz a oficina
dela. Mas aqui estava eu e ela me passou a bola. Provocadores frequente-
mente testam limites. E, como cachorrinhos beliscando suas pernas, eles
estão lhe testando; internamente, eles gostam de brincar e querem que
você brinque também. Mas eles costumam fazer isso de uma maneira que
pode machucar. Isso machucou. Eu senti lágrimas prestes a cair pelo cho-
que. Eu não queria que ela me visse vulnerável, então eu pedi licença e fui
ao banheiro. Eu andei devagar, fui me acalmando e pensando no que eu de-
veria fazer. Se eu deixar essa passar, ela vai encarar como uma permissão
e eu estaria vulnerável a mais alfinetadas como essa. Eu respirei fundo e
decidi fazer uma simples declaração sem culpa, mas com a clara intenção
de comunicar que eu sabia o que ela estava tramando.
Eu voltei para a sala de aula, sentei no meu azarado lugar na frente dela, ou
talvez eu tenha dito a minha fala em pé, antes de me sentar, um pouco es-
nobe e sem qualquer emoção, eu disse descaradamente: ‘Senhora Diretora,
eu não tinha percebido que a senhora era racista’. Bem, eu não me lembro
exatamente o que ela disse àquela altura, mas ela recuou e se transformou
de volta na sua personalidade de menina e nunca batemos de frente assim
de novo.
Eu gostava da Věra. Eu a admirava. Eu me sentia honrada por estar em um
departamento de cinema com uma mulher cineasta no controle. Não sendo
›
VEra, a pedagoga 229
particularmente próxima dela, me surpreendi quando eu senti uma tristeza
profunda e real quando ela faleceu. Eu derrubei lágrimas. Eu senti realmente
como se uma luz tivesse se apagado na República Tcheca e no mundo. Exis-
tem algumas pessoas que você sente, independentemente do quão difíceis
elas possam ser, nunca serão desonestas, vão sempre dizer a verdade aos
poderes estabelecidos, mesmo que isso signifique que o destino delas esteja
selado em sofrimento, e simplesmente não irão concordar por concordar, e
Věra era esse tipo de pessoa. As sociedades precisam dessas pessoas para
mantê-las na linha.
No funeral dela, eu cometi uma gafe cultural sem saber. Todo mundo em
fila na minha frente na loja perto da sala do velório estava comprando
duas flores e eu achei que duas flores me pareciam algo esquisito, então
comprei só uma. Uma única rosa branca com uma fita preta para deixar
no caixão dela. Eu percebi depois que, na República Tcheca, flores em nú-
mero ímpar são para ocasiões felizes e flores em números pares são para
funerais e eventos de condolência. Eu provavelmente deixei a única flor
sozinha do funeral todo. Eu senti falta de sentir o espírito dela no evento.
O estilo tcheco de funeral é pesado e lúgubre, com o caixão à mostra como
se fosse um proscênio enquanto músicas sisudas tocam em aparelhos de
som. Houve um momento de leveza quando um dos atores de Věra, Tomás
Hanák, arriscou uma divertida imitação da voz dela na varanda; uma estu-
dante de direção compartilhava as observações extremamente críticas de
Věra sobre o trabalho dela (confortando a minha decisão de não participar
da oficina mais uma vez), mas eu senti que a música, a atmosfera, o clima
pesado não combinavam com a persona de Věra. Eu também estava em
Praga quando Václav Havel faleceu e embora eu não tenha ido ao funeral,
eu fui em um concerto em tributo a ele que aconteceu poucos dias depois
do seu falecimento no Lucerna Music Bar. Suzanne Vega tocou junto com
uma seleção de bandas tchecas, uma banda revival do Velvet Underground
(‘bandas revival’, bandas tchecas que tocam música de bandas americanas,
uma anomalia cultural nova pra mim), e a banda psicodélica de resistên-
cia - The Plastic People of the Universe. Quando eles tocaram, era possível
sentir perfeitamente o espirito de Havel sendo conjurado entre as pessoas.
Na FAMU, um memorial subestimado aconteceu. Em uma sala, filmes de fa-
mília em 16-mm rodados pelo marido e colaborador de Věra, o diretor de
 ›
230 Vera Chytilová

fotografia Jaroslav Kucera, projetados em silêncio o dia todo. Věra brinca

alegremente com suas crianças, parecendo vibrante e linda, sem a cara
fechada que algumas vezes aparecia nas fotos dela dirigindo filmes. Věra
era uma mulher fenomenal, uma persona multi-facetada que nunca tinha
medo de ser verdadeira consigo mesma e verdadeira em relação ao que ela
acreditava. Ela era uma luz da verdade para o mundo.

Agradecimentos

A autora deseja agradecer: Pavel Marek por ter me encorajado a estudar

na FAMU e por seu apoio durante esse período, a Pavel Jech por ter me
aceito no programa internacional na FAMU aonde eu filmei meu curta de
inscrição Little Pickpocket, à equipe no CIEE Praga por me informar dessa
oportunidade de escrever, e à própria Věra Chytilova por me inspirar como
mulher cineasta, por confiar em mim como diretor, e pela graciosa avalia-
ção de que eu “tinha algo a dizer”.
 Alegoria nua: Banidos do paraíso 233

Alegoria
A intransigente diretora Věra Chytilová, conhecida por seus ataques du-
ramente zombeteiros às falhas e fragilidades das pessoas, criou uma nova
parábola fílmica sobre a fraqueza humana com Banidos do paraíso (Vyh-

nua:
nani z raje, 2001). Embora totalmente dentro da tradição Chytilová de
apimentar a fábula moral, o filme teve uma recepção morna dos críticos
Tchecos e internacionais.

Banidos
A história principal de Banidos do paraíso gira em torno do diretor de cine-
ma Rosta (Bolek Polivka). Ele está rodando um filme em uma praia de nudis-
mo2. Todos na equipe de filmagem têm ideias diferentes sobre o gênero e

do paraíso
o estilo do longa que está sendo filmado: o diretor tenta criar um trabalho
artístico, uma metáfora experimental sobre Adão e Eva; o produtor russo
Igor (Milan Steindler) espera ver um erotismo amoroso; e o roteirista (inter-
pretado pelo diretor de teatro e dramaturgo J A Pitinsky) pretende expres-
(Vyhnâni z râje, 2001), sar sua filosofia positiva sobre a humanidade através do filme.

de Věra Chytilová 1 O filme dentro do filme é chamado Paradiso, mas parece mais um inferno
do que um paraíso. Corpos nus monstruosos estão na praia como se esti-
vessem em um quadro do apocalipse. Nós observamos o diretor em esta-
Dora Viceníková do de crise pessoal. Ele experimenta mal-entendidos com sua esposa (in-
terpretada pela atriz francesa e ex-esposa de Polivka, Chantal Poullain) e
também as complicações no relacionamento com sua amante (que é a filha
do produtor de Paradiso e também passa a ser a atriz principal do filme).
As respectivas histórias de cada personagem em Banidos do paraíso não se
somam a uma unidade coerente, mas compõem um mosaico que Chytilová
usa para criar uma imagem de declínio moral.

1 Publicado originalmente em Kinoeye, V. 2, Nº 8, 29 de abril de 2002. Tradução de Ana Moraes. 2 Bolek Polivka, um colaborador regular da Chytilova, participou do roteiro de Banidos do paraíso,
Disponível on-line: http://www.kinoeye.org/02/08/vicenikova08.php#2 como fez em O bobo da corte e a Rainha (Sasek a kralovna, 1987) e A herança (Dedictvi, 1992).
 ›
234 Vera Chytilová
Documento e estilização
Chytilová combina duas tendências estilísticas que já haviam aparecido no
início de sua carreira cinematográfica: o estilo do cinema vérité, que podemos
ver nos filmes Teto (Strop, 1962), Saco de pulgas (Pytel blech, 1962), Algo dife-
rente (O necem jiném, 1963), e a simbolização, usada em filmes como As peque-
nas margaridas (Sedmikrâsky, 1966) e Fruto do paraíso (Ovoce stromü rajskÿ-
ch jime, 1969). O cinéma vérité tende a fazer um registro autêntico da realida-
de através de câmeras na mão, atores amadores, filmagem em exteriores ou
fragmentação de histórias. Tais filmes tendem a ser objetivos e sociológicos.
A tendência simbolista, por outro lado, prefere expor os sujeitos humanos,
sonhos íntimos através da estilização da imagem e trabalhar com signos e
significantes. Os criadores que preferem essa tendência expõem aspectos
metafísicos da natureza humana; eles se interessam por questões morais e
filosóficas. Os filmes são alegóricos, sem conexões com a realidade concre-
ta. Eles estão frequentemente situados em espaços arquetípicos, que não
podem ser amarrados a um local específico (bosque, vila etc.). Em Banidos
do paraíso essas duas tendências são reunidas. O filme equilibra a reprodu-
ção direta da realidade (gravação em estilo documental da filmagem de Pa-
radiso) e alta estilização (algumas das cenas lembram as imagens de Peter
Breughel, especialmente a massa de corpos femininos na areia).
Chytilová constantemente descobre o animalismo e a carnalidade em seus
personagens. Ao consistentemente e impiedosamente mostrar corpos hu-
manos com feiura desagradável, ela reduz a multidão humana a uma massa
de formas corporais envelhecidas e deselegantes. A juventude e a beleza,
que também estão presentes, são removidas de quaisquer conotações eró-
ticas ou sensuais. Figuras femininas enormes eclipsam a carnalidade mas-
culina e o heroísmo masculino é ridículo. A malícia e a agressão degradam
os seres humanos até o nível dos instintos, e talvez apenas as crianças sejam
capazes de compreensão e compaixão.3
3 O uso de crianças por Chytilová em um filme de nudismo causou-lhe alguns problemas durante as
filmagens na Alemanha. Enquanto filmava as sequências de abertura (usando seus netos como atores),
Chytilová e outros dois membros da equipe foram detidos pela polícia alemã, que suspeitava que eles
estivessem fazendo pornografia infantil. Mais tarde, ela foi libertada sem acusação. As sequências
em questão permanecem no filme e são totalmente inócuas e incontroversas. Veja, por exemplo, Kate
Connolly. “Bohemian rhapsodist. In: The Guardian, 11 de agosto de 2000.
Alegoria nua: Banidos do paraíso 235
Uma reunião de Brecht e Stanislavsky
A forma de “filme dentro de um filme” oferece a Rosta, como diretor de Pa-
radiso, uma posição privilegiada - a do manipulador principal. Ele está no
centro da narrativa, mas o quadro usual de crise criativa em filmes sobre
filmes é um tanto problemático aqui. Seus sentimentos sobre as limitações
de seus colaboradores, mal-entendidos com sua esposa e sua própria crise
interna não são convincentes. A atuação expansiva de Polivka, com uma
posição permanentemente destacada e um sorriso irônico, cria uma dis-
tância intransponível entre o personagem do diretor (e também um papel
fictício de médico que Rosta interpreta no filme Paradiso) e a narração.
Polivka não distingue as duas partes diferentes que ele interpreta. Desde o
início, é muito difícil perceber em que papel ele está em determinado mo-
mento. Ambos os mundos - o mundo do filme fictício e o mundo do filme
principal - estão intimamente conectados, e somente através dos efeitos
alienadores (como a aparição na tela de uma câmera, claquete ou cinegra-
fista, ou por alguém que o chame “Diretor”) o espectador pode saber qual
mundo estamos assistindo.
O efeito resultante da atuação de Polivka oscila entre a superficialidade,
a ironia e a sinceridade. Polivka como Rosta desencadeia algumas cenas
que são altamente carregadas emocionalmente, especialmente aquelas en-
volvendo discussões matrimoniais. Essas cenas se assemelham a uma con-
fluência dos métodos de Stanislavski e Brecht. A histeria “real” de Chantal
Poullain (usando o método de Stanislavsky) produz um efeito cômico não
intencional, enquanto no fundo a face irônica de Polivka (empregando o
princípio do teatro de Brecht) está continuamente presente. O constante
equilíbrio entre seriedade e afetação e entre ficção fílmica e realidade é
intencionalmente confuso.
Temas nobres em uma narrativa superficial
As mudanças na narração fílmica com a estrutura do filme dentro de um
filme (e finalmente com uma sequência de sonhos) fazem de Banidos do pa-
raíso uma substância instável, que desliza entre os dedos do espectador e
os impede de identificação ou imersão em uma narrativa. Quando o espec-
 ›
236 Vera Chytilová

tador perde o estado de alerta por um breve momento (por exemplo, quan-
do se sente tocado pela morte de um cavalo usado em Paradiso no final do
filme), ele é rapidamente surpreendido e sua misericórdia é satirizada. O
espectador é dominado pela manipulação, assim como os atores nus.

No final, o diretor perde sua posição privilegiada de manipulador e se torna

uma vítima. Ele é pego em seu próprio jogo cruel. Ele é culpado da mor-
te de outro homem. O final do filme é pouco claro e inconsistente. O filme
“comum” sobre o filme fala sobre as limitações e dificuldades no processo
criativo, artístico, mas aqui Chytilová ri da criação de Rosta. Em vez de arte,
uma zombaria grotesca é apresentada. Através desta alegoria, Chytilová
fala sobre a nossa sociedade, sobre o tempo em que estamos vivendo. Ela
constrói seu testemunho sobre temas como liberdade e moralidade en-
quanto a linha temática paralela expressa a provação da criação na arte.
 Em Memoriam: Vera Chytilová (1929-2014) 239

Em uma época de censura e austeridade durante a ocupação comunista

Em Memoriam: da Tchecoslováquia após a Segunda Guerra Mundial, sua Nouvelle Vague

cinematográfica surgiu como um veículo de rebelião política e expressão

Vera Chytilová estética que causaria agitação tanto na consciência cinematográfica quan-
to no cinema de arte internacional. Věra Chytilová era uma integrante e a

(1929-2014)
única mulher proeminente no círculo de cineastas tchecos que, durante
1
os anos sessenta, criaram filmes que desafiavam as convenções do cinema
clássico e desafiavam o opressivo regime político-cultural.

Meredith Slifkin
Chytilová nasceu na cidade de Ostrava, na Morávia, em 1929. Ela acabaria
por deixar sua cidade natal e sua rigorosa educação católica (temas religio-
sos críticos apareceriam mais tarde em seus filmes) para trabalhar como
modelo e, em seguida, como operadora de claquete para os Estúdios de Ci-
nema Barrandov, em Praga, antes de estudar produção de filmes na FAMU
(Academia de Artes Performáticas de Praga). Outros notáveis ​​graduados
da FAMU e amigos e colaboradores da Chytilová incluíam Jiři Menzel, Ivan
Passer, Miloš Forman e Jan Nemec - os quais viriam a definir este período da
Nouvelle Vague Tcheca com filmes como Trens estreitamente vigiados (Os-
tře sledované vlaky, 1966), O baile dos bombeiros (Hoří, má panenko, 1967) e
A piada (Zert, 1969), que focava no surrealismo e no humor negro do coti-
diano e da identidade nacional sob o regime Comunista.

Embora o nome de Forman seja frequentemente o mais lembrado, é Chy-

1 Publicado originalmente em Film Comment em 19 de março de 2014. Tradução de Maria Almeida.
Disponível on-line em: https://www.filmcomment.com/blog/in-memoriam-vera-chytilova/
tilová cujo trabalho se destaca como o mais radical, experimental, icono-
clasta e abertamente feminista entre seus colegas (não apenas dessa nova
onda, mas talvez de qualquer nova onda européia). Seus primeiros traba-
lhos, Teto (Strop, 1962), Saco de pulgas (Pytel blech, 1962) e Algo diferente (O
něčem jiném, 1963), que enfocam as questões da indústria da moda, educa-
ção feminina e vida doméstica respectivamente, estabeleceram Chytilová
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240 Vera Chytilová Em Memoriam: Vera Chytilová (1929-2014) 241

como não apenas uma força artística a ser considerada, mas como uma di- Ao longo de sua carreira, Chytilová provou ser uma artista estilisticamen-
retora feminina despreocupada em assimilar-se a suas contrapartes mas- te iconoclasta e absolutamente essencial para a formação da Nouvelle Va-
culinas. Ao invés disso, Chytilová dedicou-se com fervor revolucionário a gue Tcheca - um movimento cinematográfico com mais em jogo do que a
quebrar as convenções da representação feminina na tela. Nouvelle Vague Francesa, obcecada com a representação nas telas da bur-
guesia, com a identidade nacional e as implicações sociopolíticas da arte
As pequenas margaridas (Sedmikrásky, 1966) é seu filme mais famoso e mais
revolucionária. Com sua morte, a comunidade cinematográfica tcheca e in-
experimental e que perturbou as convenções políticas, artísticas e de gê-
ternacional perde uma artista visionária e ativista, bem como um exemplo
nero da época. A descrição mais simples do filme (e não há descrição sim-
pioneiro para diretoras do todo o mundo.
ples) é de que se trata de duas amigas que, completamente entediadas com
tudo, decidem causar estragos aos homens que encontram e à sociedade
de consumo em geral. O sonho febril existencial que é seu filme faz com
que Spring Breakers (2012), de Harmony Korine, pareça um passeio no par-
que, enquanto as duas meninas mergulham em vinhetas surrealistas que
tomam a forma de um conto cômico e ridículo sobre a moralidade (o título
em tcheco do filme é Sedmikrásky, que também pode ser traduzido como
“sete belezas” - uma brincadeira com os sete pecados capitais).

O filme é repleto de narrativas e de rupturas formais, bem como usos ex-

pressivos de cor e imagens bíblicas, resultando em um opus magnum visual
que é tão despretensiosamente bem humorado como é duramente crítico
da sociedade tcheca e dos papéis determinantes atribuídos às mulheres.
É um manifesto da Terceira Onda do feminismo antes mesmo de tal coisa
existir. As pequenas margaridas também marca uma colaboração significa-
tiva entre Chytilová e seu marido, Jaroslav Kučera, o diretor de fotografia
do filme, e amiga Ester Krumbachová, o chefe roteirista e designer de pro-
dução (com quem ela iria colaborar em 1969 em Fruto do paraíso [Ovoce
stromu rajských jíme], uma releitura do conto de Adão e Eva).

Chytilová seguiu fazendo muitos filmes depois do final da Primavera de

Praga de 1968, quando os comunistas soviéticos impuseram leis ainda mais
rígidas de censura, e muitos de seus colegas do sexo masculino fugiram do
país. Consequentemente, seus trabalhos posteriores nunca obtiveram o
mesmo nível de distribuição e reconhecimento de seus filmes anteriores,
embora ela continuasse testando os limites ao criticar a vida sob o comu-
nismo (Conjunto habitacional [Panelstory aneb jak se Rodí Sídliště, 1979]) e
ao fazer um dos primeiros filmes a retratar a AIDS (Tainted Horseplay, 1989).
 Filmografia 243

Green Street
Zelená ulice, 9 min, 1960

Direção: Věra Chytilová

Produção: Věra Chytilová
Roteiro: Věra Chytilová

Filmografi a Um enorme comboio de mercadorias com 68 vagões, 140 eixos e 18 mil

toneladas de carga sai de Praga. Um elaborado exercício de montagem
feito a partir de imagens espetaculares.
mostra realizada no CCBB
Distrito federal, CCBB Rio de
Miado
Janeiro e CCBB São Paulo Kocicina, 11 min, 1960

Direção: Věra Chytilová

Produção: Věra Chytilová
Roteiro: Věra Chytilová
e Jan Hartmann

Chytilová inspira-se nos escritos de Franz Kafka em um raro exemplo de

adaptação literária em um de seus filmes. O Sr. K guarda jóias roubadas em
casa e raramente deixa sua esposa usá-las. Um vizinho curioso, o Sr. B, faz
uma visita de surpresa. Um gato observa tudo.
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244 Vera Chytilová Filmografia 245

Teto Algo diferente

Strop, 42 min, 1961 O něčem jiném, 82 min, 1963

Direção: Věra Chytilová Direção: Věra Chytilová

Produção: Věra Chytilová
Roteiro: Věra Chytilová
e Pavel Jurácek
Aqui o foco de Chytilová é em uma modelo, alguém constantemente
vestida e preparada para ser observada e analisada. Ao expor o crescente
aborrecimento e desconforto físico de sua protagonista, a diretora
explora também as nuances do controle masculino presente no universo
da moda.
Produção: Jirí Pokorný
Roteiro: Věra Chytilová
Elenco principal: Vladimir Bosak,
Eva Bosáková
Duas histórias, uma documental, outra ficcional, desenrolam-se em
paralelo: os preparativos da ginasta Eva Bosáková para o seu último
campeonato mundial e a dona de casa Vera, que assume todo o
trabalho doméstico de seu lar. As pressões sofridas por Eva e a falta de
reconhecimento na vida de Vera são colocadas lado a lado, assim como os
dois mundos igualmente dominados pelos homens.

Saco de pulgas
Pytel blech, 45 min, 1962

Direção: Věra Chytilová

Produção: Věra Chytilová
Roteiro: Věra Chytilová

O filme mostra o dia-a-dia de um internato numa pequena e típica cidade

na Tchecoslováquia socialista. Jana se rebela contra a estrutura rígida do
instituto e é admirada por Eva, recém-chegada
ao local.
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246 Vera Chytilová
Pérolas das
profundezas
Perlicky na dne, 106 min, 1965
Direção: Jiří Menzel, Jan Němec,
Evald Schorm, Věra Chytilová,
Jaromil Jireš
Produção: Frantisek Sandr
Roteiro: Jiří Menzel, Jan Němec,
Evald Schorm, Věra Chytilová,
Jaromil Jireš
Elenco principal: Pavla Marsálková,
Ferdinand Kruta, Alois Vachek 
Cinco curtas baseadas em cinco histórias de Bohumil Hrabal. O segmento
de Chytilová, “Na Cafeteria do Mundo”, talvez seja o mais sombrio e
surreal. Dois acontecimentos têm lugar numa cantina ao mesmo tempo:
uma mulher jovem morre enquanto se realiza um banquete de casamento.
Filmografia 247
As pequenas
margaridas
Sedmikrásky, 73 min, 1966
Direção: Věra Chytilová
Produção: Karel Lier
Roteiro: Věra Chytilová, Ester
Krumbachová, Pavel Jurácek
Elenco principal: Ivana Karbanová,
Jitka Cerhová, Marie Cesková 
Duas garotas, ambas chamadas Marie, reconhecem que o mundo
está corrompido e decidem embarcar em uma série de brincadeiras
destrutivas que consomem e destroem o que está ao redor delas. Carro-
chefe da Nouvelle Vague Tcheca, o filme é um exercício audiovisual
extravagante, anarquista e dadaísta, com uma explosão de cores
psicodélicas e símbolos do inconsciente. A diretora definiu o filme como
“uma farsa filosófica feminista”.
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248 Vera Chytilová
Fruto do paraíso
Ovoce stromu rajských jíme,
96 min, 1970
Direção: Věra Chytilová
Produção: Pavel Jurácek, Jaroslav
Kucera, Bronka Ricquier
Roteiro: Věra Chytilová,
Ester Krumbachová
Elenco principal: Jitka Nováková,
Karel Novak, Jan Schmid
Eva é uma jovem obcecada por um homem vestido de vermelho, que não
se sabe quem é, o que faz, e se apresenta algum perigo. Até o dia em que
Eva e seu namorado passam o dia em um spa surrealista, onde deparam-se
com a Tentação. Fábula visual que recria de forma alegórica e psicodélica
a história de Adão e Eva, é um filme cheio de sobreposições de cores,
colagens e texturas. 
Camarada
Kamarádi, 41 min, 1971
Direção: Věra Chytilová
Roteiro: Věra Chytilová
Elenco principal: Jirí Kodet,
Jan Kanyza, Václav Knop
Chytilová foi proibida de realizar filmes durante 6 anos. A única exceção
foi este filme, pouco conhecido pelo grande público e exibido em raras
ocasiões. Produzido para a televisão, relata uma tensa história sobre três
soldados e um disparo fatídico.
Filmografia 249
O tempo é inexorável
Cas je neúprosný, 16 min, 1978
Direção: Věra Chytilová
Produção: Věra Chytilová
Roteiro: Věra Chytilová
Chytilová trata as histórias de um grupo de idosos com o máximo respeito
e tato e forja uma rica experiência, tão visual quanto visceral, através de
técnicas de montagem intrincadas. Ao mesmo tempo, começa a dar forma
à suas ruminações posteriores sobre idade e o sentido da vida.
Conjunto
habitacional
Panelstory aneb jak se Rodí Sídliště,
96 min, 1979
Direção: Věra Chytilová
Produção: Miroslav Smrcek
Roteiro: Věra Chytilová,
Eva Kacírková
Elenco principal: Lukás Bech,
Antonín Vanha, Eva Kacírková 
Em Praga, um senhor perambula por um conjunto habitacional mal
sinalizado e ainda em construção, procurando o bloco para onde ele irá
se mudar com a família de sua filha. O ancião oriundo do campo gosta de
conversar, nada escapa de seus olhos e ele quer dar a todos uma ajuda.
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250 Vera Chytilová
Calamidade
Kalamita, 96 min, 1981
Direção: Věra Chytilová
Produção: Bohumil Pokorný
Roteiro: Věra Chytilová,
Josef Silhavý
Elenco principal: Bolek
Polívka, Dagmar Bláhová,
Jana Synková  Este documentário autoral de Věra Chytilová tem o formato de um
Tour de force sobre a vida cotidiana no final da Tchecoslováquia, realidade
que Chytilová conhecia intimamente. Calamidade também marca a
primeira colaboração da diretora com o dramaturgo Bolek Polívka, que
entraria em muitos dos seus filmes.
Chytilová
Versus Forman
84 min, 1981
Direção: Věra Chytilová
Roteiro: Věra Chytilová
Elenco principal: Milos Forman
Documentário. Um combate intelectual entre dois artistas drasticamente
distintos: um permanentemente inseguro, frustrado
e que questiona tudo, outra uma surpreendente contadora de histórias
perfeitamente em paz, pouco ligada à introspecção
e confiante na intuição.
Filmografia 251
Praga - O incansável
coração da Europa
Praha - neklidné srdce Evropy,
60 min, 1984
Direção: Věra Chytilová
Roteiro: Věra Chytilová
Elenco principal: Miroslav
Machácek
ensaio sobre uma cidade dos tempos antigos que adota um estilo de
vida moderno. Os temas em foco são analisados através de uma divisão
inusitada: paganismo, expansão do cristianismo, a renascença e o barroco
são colocados lado a lado com suas ramificações e consequências na vida
moderna de Praga.
O chalé do Lobo
Vicl Bouda, 92 min, 1986
Direção: Věra Chytilová
Roteiro: Věra Chytilová,
Daniela Fischerová
Elenco principal: Miroslav
Machácek, Tomás Palatý,
Stepánka Cervenková
Ficção. A única incursão de Chytilová no terror adolescente tem também
uma pitada de ficção científica. Um grupo de adolescentes faz uma viagem
de esqui supervisionado por instrutores estranhos. Uma avalanche os
isola do mundo e os suprimentos são limitados. Cruzamento peculiar
entre filme de gênero, fábula e alegoria política.
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252 Vera Chytilová
O bobo da corte
e a Rainha
Sasek a Kralóvna, 112 min, 1987
Direção: Věra Chytilová
Produção: Miroslav Smrcek
Roteiro: Věra Chytilová,
Bolek Polívka
Elenco principal: Bolek Polívka,
Chantal Poullain, Jirí Kodet
O filme, uma sátira de elementos quixotescos, alterna entre personagens
reais e os seus correspondentes fantasiosos: um morador de um pequeno
vilarejo tcheco ajuda um casal alemão a procurar javalis selvagens,
enquanto em uma narrativa paralela um bobo-da-corte entretém um rei
alemão e sua esposa francesa.
Filmografia 253
Tainted Horseplay
Kopytem Sem, kopytem tam,
129 min, 1988
Direção: Věra Chytilová
Produção: Zbynek Hloch
Roteiro: Věra Chytilová,
Pavel Skapík
Elenco principal: Tomás Hanák,
Milan Steindler, David Vávra 
Para três amigos a vida é uma diversão sem fim. Conquistam
garotas aos montes indo de festa em festa, até que descobrem
que um deles é soropositivo. Primeiro filme do bloco do leste sobre AIDS,
Tainted Horseplay é considerado um dos filmes do ciclo “mulherengo” de
Chytilová.
Tomas Garrigue
Masaryk
TGM Osvoboditel, 61 min, 1990
Direção: Věra Chytilová
Roteiro: Věra Chytilová
Elenco principal: Tomas
Garrigue Masaryk
A vida de Tomáš Garrigue Masaryk, o primeiro presidente eleito da
Tchecoslováquia depois da queda do império austro-húngaro em 1918.
Material audiovisual de arquivos, fotos e dramatizações de sua infância
tecem uma história intimamente ligada ao passado do país.
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254 Vera Chytilová
Os cidadãos de Praga
me entendem
Mí Pražané Mi rozumějí,
60 min, 1991
Direção: Věra Chytilová
Produção: Vera Lastuvkova
Roteiro: Věra Chytilová, Zdenek
Mahler
Elenco principal: Milan Steindler,
Tereza Kucerová, Lenka Loubalová
Uma comédia maliciosa em que Chytilová relaciona o legado de Mozart
com a arquitetura contemporânea de Praga, através de um relato
ficcional da estadia do compositor na cidade. O filme nega qualquer
verossimilhança ou relação com fatos históricos.
Filmografia 255
A herança
Dedictví aneb Kurvahosigutntag,
120 min, 1992
Direção: Věra Chytilová
Produção: Jirí Jezek, Pavel Solc
Roteiro: Věra Chytilová,
Bolek Polívka
Elenco principal: Bolek Polívka,
Miroslav Donutil, Anna Pantuckova
Um caipira herda milhões e vai para a cidade, deixando sua vila para
ir viver como rico na República Tcheca pós-comunista. Colaboração
entre Chytilová e Polívka, que co-escreveu o argumento e interpretou o
protagonista, o filme é uma comédia politicamente incorreta e um registro
impagável da transição da antiga Tchecoslováquia para o capitalismo
selvagem, a busca por dinheiro fácil e alpinismo social.
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256 Vera Chytilová Filmografia 257

Armadilhas Banidos do paraíso

Pasti, Pasti, Pastičky, 112 min, 1998 Vyhnání z Ráje, 125 min, 2001

Direção: Věra Chytilová Direção: Věra Chytilová

Roteiro: Věra Chytilová, Produção: Viktor Shwarcz
Tomás Hanák, Eva Kacírková, Roteiro: Věra Chytilová, Bolek
Michal Laznovsky Polívka, Desmond Norris
Elenco principal: Zuzana Stivínová, Elenco principal: Bolek Polívka, Jan
Miroslav Donutil, Tomás Hanák  Antonín Pitínský, Milan Steindler 
Dois homens raptam e estupram uma jovem mulher para quem dão Nada parece dar certo para Rosta, um cineasta que está dirigindo um
carona, sem saber que ela era uma veterana de guerra. Ela os droga e filme chamado “Paradiso” em uma praia nudista. Desde o primeiro dia de
remove seus testículos. Drama que mescla momentos de humor absurdo filmagem ele se encontra em situações de conflito com sua equipe, seu
com protestos políticos. elenco e sua esposa. Comédia ousada que cita elementos do filme anterior
de Chytilová, Frutos do Paraíso.

Vôos e quedas
Vzlety a Pády, 110 min, 2000 Jornada - Um retrato
de Vera Chytilová
Direção: Věra Chytilová
Cesta - Portret Věra Chytilová,
Roteiro: Věra Chytilová 54 min, 2004
Elenco principal: Václav Chochola,

›
Karel Ludwig, Zdenek Tmej  Direção: Jasmina Bralic
Produção: Kateřina Černá 
Roteiro: Jasmina Bralic
Documentário pouco conhecido sobre a cultura oculta do mundo artístico
tcheco da primeira metade do século XX. Um capítulo crucial da obra de Documentário intimista sobre a cineasta Věra Chytilová. Dessa vez por
de não-ficção de Chytilová sobre a Tchecoslováquia, dessa vez por meio trás das câmeras, ela fala sobre como chegou ao cinema, sua vida pessoal e
das vidas de três fotógrafos tchecos: Václav Chochola, Karel Ludwig e sua carreira.
Zdeněk Tmeje. Chytilová regressa aos locais de Pérolas das Profundezas,
filme de sua juventude.
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258 Vera Chytilová

Procurando Ester
Pátráni po Ester, 119 min, 2005

Direção: Věra Chytilová

Produção: Vratislav Slajer
Roteiro: Věra Chytilová
Elenco principal: Ester
Krumbachová, Věra Chytilová,
Ivan Balada 

Ester Krumbachová colaborou com Chytilová nos seus projectos mais

célebres, como As pequenas margaridas, Fruto do paraíso e A tarde do
Fauno, além de ter realizado um filme como diretora. Coração e alma
da Nouvelle Vague Tcheca, Krumbachová sempre inspirou os que a
rodeavam. Agora Chytilová se pergunta: quem era Ester?

Momentos agradáveis
Hezké Chvilky bez Záruky, 113 min,
2006

Direção: Věra Chytilová

Produção: Adam Polák
Roteiro: Věra Chytilová
Elenco principal: Jana Janeková,
Jana Krausová, Bolek Polívka

Apesar de ela própria estar à beira de um esgotamento nervoso, a

psicóloga Hana atende um grupo de pacientes complexos. O última longa-
metragem de Chytilová é uma tragicomédia humana e uma história de
tormento diário.
 Sobre os autores 261

Jan Culík

Jornalista e acadêmico que detém a posição de Professor Associado em

Estudos Tchecos na Universidade de Glasgow, Escócia. Ele é o autor de
diversas publicações neste campo, incluindo o primeiro estudo detalha-
do sobre a literatura dos imigrantes tchecos, Knihy za ohradou: Ceska li-
teratura v exilových nakladatelstvítch 1971-1989 (Livros Atrás da Cerca:

Sobre os Literatura Tcheca em Editoras Emigrantes 197-1989, Trizonia, Praga, 1991),

e um estudo do sistema de valor do longa-metragem tcheco feito na era
pós-comunista (Uma Sociedade em Perigo: A Imagem da República Tcheca

autores
nos Longas-Metragens Tchecos Contemporâneos, Sussex Academic Press,
Londres e Brighton, 2012).

Serge Daney

Um dos críticos mais importantes da história do cinema. De 1973 a 1981, foi

editor-chefe da Cahiers du Cinéma. Após o período nos Cahiers, escreveu
para o jornal Libéracion e fundou a revista Trafic. Nunca escreveu um livro,
embora diversas edições com críticas suas tenham sido publicadas em va-
riadas línguas, como, por exemplo, A rampa (Cosac & Naify, 2007).

Michel Delahaye (1929 – 2016)

Famoso pela sua versatilidade, foi jornalista, crítico de cinema (sobretudo

a Cahiers du Cinéma), ator e realizador francês.
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262 Vera Chytilová
Gwendolyn Audrey Foster
Prolífica cineasta e pesquisadora de cinema com foco nos seguintes te-
mas: gênero, raça, ecofeminismo, sexualidade queer, eco-teoria e estudos
de classe no cinema. Foi co-editora junto com Wheeler Winston Dixon
da Quarterly Review of Film and Video. Em 2016, foi nomeada Willa Cather
Professor de Inglês na Universidade de Nebraska.
Bernard Gidel
É um crítico de cinema, jornalista, ator e romancista francês.
Andrew James Horton
Crítico e pesquisador de cinema. Foi editor-chefe da Kinoeye e editor de cul-
tura da Central Europe Review. Também escreve sobre a cultura da Europa
Central para outros periódicos, organizou o e-book The Celluloid Tinderbox e
realiza pesquisa (com financiamento da Leverhulme Trust) sobre a reestru-
turação dos mercados de imagens da Europa Central.
›
Ivana Kosulicová
Doutoranda no departamento de estudos de cinema da Universidade Ma-
saryk em Brno. Contribui para o jornal em língua checa Film a doba.
Bliss Cua Lim
Professora assistente na Film Studies Program na University of California,
Irvine. Seu trabalho sobre cinema já apareceu em Positions: East Asia Cul-
tures Critique, The Velvet Light Trap, Asian Cinema, The Journal of English
Studies and Comparative Literature, Philippine Critical Forum, e na antologia
Geopolitics of the Visible: Essays on Philippine Film Cultures (Ateneo De Ma-
nila Univ Pr, 2001). Seus interesses de pesquisa incluem teoria do cinema e
estudos de gênero, cinema fantástico e filosofia da história, pós-colonialis-
mo, cinema feminista, filipino e chinês.
Sobre os autores 263
Asmara Beraki Marek
Roteirista, diretora e produtora. Fundou a produtora Cinema Belongs To Us,
s.r.o. em Praga e KINOVAT, Inc. nos Estados Unidos. Ela acabou de lançar uma
websérie chamada THE ESTABLISHMENT e está preparando seu longa de
estreia, O Retrato da Artista Quando Jovem. Ela atualmente também dá pa-
lestras na American University em Washington D.C.
Boris Nelepo
Crítico de cinema e programador de filme baseado em Moscou. É editor
chefe do jornal de cinema Kinote e colaborador da revista Séance. Fez a
curadoria de vários festivais de cinema e o seu trabalho já foi publicado
em diversas publicações, como Trafic, Cinema Scope, MUBI, Moving Image
Source, De Filmkrant e Lumière. É consultor de cinema russo para o Festival
Internacional de Filme de Locarno.
Dan Reyes
Professor visitante na Antioch University, lecionando estudos culturais
e filosofia. Atua, com frequência, como professor visitante do Miami Uni-
versity’s Department of Architecture and Interior Design. Suas áreas de
pesquisa incluem estudos culturais visuais, juntamente com estudos filo-
sóficos em educação. Suas contribuições apareceram nos seguintes veícu-
los: Social Text; Review of Education, Pedagogy, and Cultural Studies; Taboo;
Philosophical Studies in Education.
Jacques Rivette (1928 – 2016)
Um dos cineastas e críticos mais importantes da história do cinema. Foi edi-
tor chefe da Cahiers du Cinéma em meados dos anos 1960 e formou ao lado
de Franços Truffaut, Jean-Luc Godard, Claude Chabrol e Eric Rohmer o
núcleo duro da chamada Nouvelle Vague. Dirigiu 29 filmes, entre os quais:
Amor louco (L’amour fou, 1969), Out 1 (1971) e A bela intrigante (La Belle Noi-
seuse, 1991).
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264 Vera Chytilová

Steven Shaviro

É De Roy Professor na Wayne State University em Detroit. Autor de The

Cinematic Body (Minneapolis: University of Minessota Press, 1993), Doom
Patrols: A Theoretical Fiction About Postmodernism (Londres: Serpent’s Tail,
1997) e Connected, Or, What It Means to Live in the Network Society (Minne-
apolis: University of Minessota Press, 2003), entre outros. Publica regular-
mente no blog The Pinochio Theory: http://www.shaviro.com/blog.

Lukás Skupa

Pesquisador autônomo, professor, jornalista e programador de festivais,

recebeu seu PhD no Departamento de Estudos Cinematográficos e de Cul-
tura Audiovisual na Universidade Masaryk, em Brno. Como historiador de
cinema, é especialista em cinema tcheco depois de 1945 (relações entre o
cinema e a censura, cinema tcheco dos anos 1960, Cinema Novo Tcheco e a
história dos filmes tchecos para crianças).

Meredith Slifkin

Doutoranda na Escola de Cinema Mel Hoppenheim da Universidade Con-

cordia, em Montreal. Fez mestrado em Estudos de Cinema pela Tisch Scho-
ol of the Arts da Universidade de Nova York e tem publicado artigos na
CineAction, Film Comment e Feminist Media Histories. Sua pesquisa se con-
centra no melodrama transnacional.

Dora Viceníková

Pesquisadora, produtora e dramaturga. Formada pela Universidade Ma-

saryk e doutora pela

Brno University of Technology. Trabalhou para a Czech Radio e a Czech

Television. Entre 2005 e 2007, fez parte do corpo da NDB’s Mahen Drama.
Desde 2005, tornou-se membra do Conselho Dramatúrgico do Internatio-
nal Theater Festival de Pilsen e do Josef Balvín Jury Award.
 Créditos
Patrocínio Legendagem Eletrônica
Banco do Brasil Tomás Ribeiro
Pâmela Simas
Realização
Ministério da Cidadania Assessoria de Imprensa
Centro Cultural Banco do Brasil Paulo C. Ferraz (SP)
Tato Comunicação (DF)
Produção
Cláudia Oliveira (RJ)
Firula Filmes
Catálogo
Curadoria
Idealização
Rosa Monteiro
Jaiê Saavedra, Julio Bezerra, Rosa Monteiro, José de Aguiar e Marina Pessanha
Coordenação de produção
Organização Editorial
Jaiê Saavedra
Rosa Monteiro, Jaiê Saavedra e Julio Bezerra
Julio Bezerra
Tradução de textos
Produção Executiva
Maria Almeida
Marina Pessanha
Pedro Henrique Andrade
José de Aguiar
Artur Ianckievicz
Assistente de produção Arthur Imbassahy
Rafael Bezerra Ciro Lubliner
Ana Moraes
Produção Local Joana Negri
Eduardo Reginato (RJ)
Daniela Marinho e Rafaella Rezende (DF) Revisão
Renata da Costa (SP) Ana Moraes

Identidade Visual e Projeto Gráfico-Editorial 

PANTALONES Comunicação Visual | pantalones.com.br
As imagens publicadas neste catálogo e as cópias que vieram a compor esta retrospectiva têm
Carina Olival como detentoras as seguintes produtoras/distribuidoras/acervos: Národní filmový archiv (NFA),
Igor Moreira Czech Television, Mr. Viktor Schwarcz, Bontonfilm, FAMU, Bionaut, Negativ Film, Space Films e
Krátký Film. A organização da mostra lamenta profundamente se, apesar de nossos esforços, por-
Jandê Saavedra Farias ventura houver omissões à listagem anterior - bem como alguma questão envolvendo os artigos
Ricardo J Souza deste catálogo. Comprometemo-nos a reparar tais incidentes.
 Agradecimentos

Czech Centre London Jan Machonin

Aaron Cutler Boris Nelepo
Pierre Drouot Maxim Pavlov
Eva Gardini Miguel Ribeiro
Peter Hames Joana Sousa
Eva Holzova Olga Ulybysheva
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Vera Chytilová: a grande

dama do cinema Tcheco

CCBB BRASÍLIA
26 de Março a 14 de Abril de 2019

CCBB RIO DE JANEIRO

17 de Abril a 6 de Maio de 2019

CCBB SÃO PAULO

24 de Abril a 13 de Maio de 2019

FICHA CATALOGRÁFICA
V473 Věra Chytilová : a grande dama do cinema tcheco /
organizado por Jaiê Saavedra, Julio Bezerra e Rosa
Monteiro -- Rio de Janeiro : Firula Filmes, 2019.
268 p. : il. ; 16x24 cm.
ISBN 978-85-68159-08-8
1. Chytilová, Věra, 1929-2014 . 2. Cinema – República Tchca
– História. 3. Diretores e produtores de cinema – República
Tcheca. 4. Cinema – República Tcheca – Biografia.
I. Saavedra, Jaiê. II. Bezerra, Júlio. III. Monteiro, Rosa.
CDU 791(437.3)-051
CDD 791.43094371

Elaborada pela Bibliotecária Josiane Alcântara CRB-7 Reg. 6217

 Apoio Institucional Produção

Realização