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SEMIÓTICA E TEXTO 207

Imaginário urbano: relendo o texto praça


Susana Gastal1

Giulio Carlo Argan, na sua condição de uma alma, um espírito, uma entidade filo-
ex-prefeito de Roma e especialista em história sófica»7, mas é composto de relações a serem
da arte e da cultura, lamentava que os gestores concebidas e construídas pelo pensamento.
públicos tivessem «deixado de sonhar Roma, Para o filósofo, esta posição significa olhar
para projetá-la»2, pois, para ele, a estrutura a Cidade como texto escrito e a realidade
do espaço não estaria na realidade objetiva, Urbana como conjunto de signos, um campo
mas no pensamento que a percorre e cria. De de relações de espaços e tempos compostos
concluir, também, que uma cidade «não se por ritmos cíclicos e durações lineares,
funda, se forma»3 e, para termos uma Cidade «significantes cujos significados procura-
melhor, preciso, antes, acalentar no imaginá- mos»8, isto, realidades prático-sensíveis que
rio a Cidade que desejamos. permitam realizar o significante no espaço.
Na busca de um melhor entendimento do Percorrer a construção de significado do
fenômeno urbano, uma presença absoluta no Urbano pode ser uma maneira enriquecedora
mundo globalizado, talvez seja conveniente de alcançar uma aproximação mais precisa
abandonar os conceitos quantitativos – nú- para a compreensão da Cidade: como, em
mero de habitantes, dimensões físicas, capa- diferentes tempos e locais, a Cidade induziu
cidade econômica e outros – ou mesmo os a comportamentos e maneiras de pensar que
conceitos qualitativos – sua hegemonia sobre extrapolaram o momento histórico específi-
regiões do entorno, sua antiguidade, sua co que os gerou, e passaram a povoar um
produção cultural... –, e propor uma leitura imaginário que viria a constituir os signos
semiótica da Cidade como uma outra forma Urbanos. Solucionar esta equação significa
de encaminhar novos olhares que possam buscar como a Cidade, mais do que
identificar problemas e refletir sobre suas vivenciada, foi sonhada em diferentes mo-
possíveis soluções. mentos e como este sonho marcou, ou, como
Pensar a Cidade a partir de um olhar prefere Lefebvre, fecundou9 os momentos
semiótico, supõe uma primeira aproximação posteriores na forma de novos imaginrios
que exige aprofundar os conceitos Cidade e sobre a Cidade. Ou ainda, como proposto por
Urbano, entendendo-se a primeira como o Walter Benjamin, citando Jules Michelet,
espaço físico e as inter-relações sócio- como «cada época sonha a que lhe seguir».10
econômicas ali efetuadas e, o segundo,
implicando um modo de vida, uma sensibi- 1. O olhar semiótico sobre a cidade e o
lidade e uma cultura, vivenciadas como urbano
imaginário4. O Urbano nasceu na Cidade, mas
se espalhou para além dos seus limites, de Para Roland Barthes, a possibilidade de
maneira que, hoje, «para lá da cidade, ainda uma semiótica da cidade é uma prática
cidade»5. Mas seria uma ilusão pós-moderna recente e enriquecedora. O semiota cita Kevin
pensar que o Urbano pode viver sem a Cidade Lynch para sugerir a metodologia de traba-
como suporte físico de experincias e fazeres: lho: «pensando-a com os próprios termos da
como o pastoral estaria para o campo, o consciência que dela se apercebe, isto é,
Urbano está para a Cidade, alimentado por pretendendo reencontrar a imagem da cidade
visões de realidades urbanas densas6. nos leitores dessa cidade»11.
Henry Lefebvre outro que compartilha Na cidade submetida ao olhar semiótico,
a diferenciação entre Cidade e Urbano, vendo Barthes vê um conflito entre a funcionali-
na primeira a realidade imediata e, no se- dade «e aquilo que eu chamarei o seu
gundo, a realidade social, pois o «urbano não conteúdo semântico (...) (por exemplo) que
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Roma provoca um conflito permanente entre O terceiro conselho de Barthes encami-


as necessidades funcionais da vida moderna nharia ao pós-moderno, embora o semiólogo
e a carga semântica que lhe é comunicada francês não utilize esta categorização: «a
pela história»12. A cidade seria um tecido semiologia nunca postula a existência de um
formado não de elementos iguais, mas de significado definitivo. O que quer dizer que
elementos fortes e elementos neutros «ou, os significados são sempre significantes para
como dizem os lingüistas, de elementos os outros, e reciprocamente».19 Para Barthes,
marcados e de elementos não marcados (...). vista desse modo, a Cidade apresentará uma
Como é evidente, cada cidade possui essa dimensão, que ele chama de dimensão eró-
espécie de ritmo (...)»13. E Barthes conclui: tica:

A cidade é um discurso, e esse dis- O erotismo da cidade é o ensinamento


curso é verdadeiramente uma lingua- que podemos tirar da natureza infi-
gem: a cidade fala aos seus habitan- nitamente metafórica do discurso
tes, nós falamos à nossa cidade, a urbano. Utilizo a palavra erotismo no
cidade onde nos encontramos simples- seu sentido mais lato (...) emprego in-
mente quando a habitamos, a percor- diferentemente erotismo ou
remos, a olhamos. (...). O verdadeiro socialidade. A cidade, essencial e
salto científico será conseguido quan- semanticamente, é o lugar do encon-
do se puder falar da linguagem da tro com o outro, e é por essa razão
cidade sem metáforas14. que o centro é o ponto de reunião de
toda a cidade; o centro-da-cidade é
O problema colocado pelo teórico aos instituído, antes de mais nada, pelo
investigadores é justamente como passar da jovem, pelo adolescente.20
metáfora à análise, nas aproximações do
objeto cidade. E sobre isso, Barthes dá três Barthes prefere deixar claro que não está
conselhos. No primeiro, lembra que o sim- propondo uma metodologia de análise da
bolismo, enquanto discurso geral em relação Cidade, porque na aproximação com o fe-
à significação, já não pode ser concebido nômeno é recomendável tentar compreender
como a «correspondência regular entre o seu jogo de signos, a exemplo do leitor
significantes e significados»15, tornando a de um poema:
significação semântica – isto é, uma lista de
significados e seus correspondentes (...) a cidade é uma escrita; quem se
significantes – «caduca» e levando ao des- desloca na cidade, isto é, o utente da
crédito a «palavra «símbolo», pois esse ter- cidade (o que todos nós somos), é uma
mo deixou sempre supor, até hoje, que a espécie de leitor que, conforme as
relação significante se apoiava na presença obrigações e os seus deslocamentos,
do significado»16. Em termos de análise da faz um levantamento antecipado de
Cidade, isto significa recusar uma divisão fragmentos do enunciado para os
entre lugares com função significante e outros actualizar em segredo.21
com função de significado. Um mesmo bairro
pode ter vários significantes: «os significa- Seguindo Barthes, olhar a Cidade e o
dos passam, os significantes ficam»17. Urbano primeiro nos seus signos e nos seus
O segundo conselho de Barthes alerta textos, seria buscar compreendê-la na sua
que «o simbolismo deve ser definido essen- riqueza maior e, talvez, desvendar um pouco
cialmente como o mundo dos significantes, da sua complicação22, do seu sentido. David
das correlações, que nunca podemos fechar HARVEY busca Saussure para afirmar que
numa significação plena, numa significação o sentido é determinado na relação entre
última (...). Assim descobrimos que, quando palavras, não destas com a coisa em si.
se quiser fazer a semiologia da cidade, pro- Aplicado ao espaço, significa dizer que
vavelmente será necessário levar mais lon- ele só ganha expressão em estruturas de
ge e com uma minúcia maior a divisão relacionamentos significantes, e não na sim-
significante».18 ples distribuição de objetos – casas, edifíci-
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os, ruas, praças, monumentos... – na sua compreensiva (definir «o que quer


superfície. Daí o Urbano, mas, de muitas dizer» a obra), mas metonímica; o
formas, também a Cidade, serem o resultado trabalho das associações, das conti-
da rede de tecituras entre o que é fixo no güidades, das referências coincide
espaço e o que flui em forma de desloca- com uma libertação da energia sim-
mentos de pessoas, bens materiais e simbó- bólica (...). A obra (...) é mediocre-
licos, comportamentos e culturas, para os mente simbólica (...); o Texto é ra-
quais contribuem as percepções presentes, dicalmente simbólico: uma obra de
assim como a memória e as utopias. A Cidade que se concebe, percebe e recebe a
é um texto; se texto, escrita, um sistema de natureza integralmente simbólica, é
significação alimentado por códigos. O um texto.26
mesmo se dá com o Urbano.
Se significante, o texto é plural; ser plural
2. Retomando a teoria do Texto não implica ser ambíguo em termos de
conteúdo, mas carregar uma «pluralidade
A categoria Texto, como colocado para esteneográfica dos significantes que o tecem
fins desta análise, leva a retomar-se Roland (etimologicamente o texto é um tecido)»27,
Barthes em “Da obra ao texto”, no qual o sua metáfora é a rede.
semiota francês teoriza sobre a abrangência Outro teórico que se dedica à reflexão
e implicações da substituição da categoria sobre o texto é Umberto Eco. Para Eco, o
obra pela categoria texto. «Perante a obra texto é um artifício, «objeto que a interpre-
– noção tradicional, por muito concebida, e tação constrói na tentativa de validar-se como
ainda hoje, de uma maneira, se assim se pode base naquilo que constitui»28. Para atingir esse
dizer, newtoniana – produz a exigência de objetivo de construir o objeto texto, há «um
um objeto novo, obtido por deslize ou in- sistema de relações internas que atualiza
versão das categorias anteriores [marxismo, certas ligações e narcotiza outras»29, mas
freudismo e estruturalismo]. Esse objeto é o dentro de sua própria ontologia, que deve ser
Texto» 23. Mais do que um objeto, para respeitada.
Barthes, o texto é um campo metodológico, O texto é um mundo possível30, uma
pois, ao contrário da obra, também estaria cadeia de enunciados, ligados por vínculo de
aberto à contradição, por seu repúdio ao coerência, emitida ao mesmo tempo com base
nominalismo das teorias tradicionais, isto é, em diferentes sistemas semióticos. «A noção
das formas universalizantes e gerais, «e a de mundo possível é útil para uma teoria da
intensificação do desejo do estético de se narratividade porque ajuda a decidir em que
identificar cada vez mais de perto com o aqui sentido uma personagem narrativa não pode
e o agora de uma situação única e de uma comunicar com suas contrapartes do mundo
expressão única» 24 . Esse texto-campo- atual».31
metodológico «só se experimenta num tra- Esse mundo possível do texto exige não
balho, numa produção»25. apenas um leitor receptor, como o tratava a
Se a obra centra-se no campo do signi- Teoria da Comunicação nos seus primeiros
ficado, o texto passos. O Umberto Eco de Estrutura ausente
falava em código como «modelo de uma série
(...) pratica o recuo infinito do sig- de conversões comunicacionais que se pos-
nificado (...), o seu campo é o do tula existir como tal, para explicar a possi-
significante; o significante não deve bilidade de explicação de certas mensagens»32
ser imaginado como a «primeira parte e exige um leitor em condições de compar-
do sentido», o seu vestíbulo material, tilhar, portanto, decifrar, a mensagem. O
mas sim, ao contrário, como seu código «estabelece que um determinado
recuo; do mesmo modo, o infinito do significante denota um determinado signifi-
significante não remete para qualquer cado»33. O código, como apresentado nos
idéia de inefável (de significado primeiros escritos do teórico italiano, carre-
inomeável), mas para a de jogo (...); garia valores de determinado grupo, em
a lógica que rege o texto não é determinada época, que se definiriam pelo
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modo como se opusessem a outros elemen- do imaginário Urbano que, por sua vez, será
tos do sistema. É, portanto, fenômeno de perseguido na construção da Cidade. A Cidade
cultura. não como um padrão repetido em diferentes
Em suas reflexões mais recentes, Umberto espaços, mas a Cidade como o conjunto de
Eco, embora trabalhando com a mesma diferenças entre as cidades, nas diferentes
questão, amplia e aprofunda os conceitos, formas de recuperação do Urbano.
passando a considerar o texto em seu mo- No recorte proposto, a Praça é, talvez,
mento gerativo, no qual o leitor tem parti- a matriz mais forte, pela sua reiterada pre-
cipação ativa, já que o texto, agora, é visto sença desde os primórdios helênicos. Outra
como o tal objeto que a interpretação cons- matriz importante é o Monumento, que na
trói. Desaparece, portanto, a figura do recep- sua origem junto a natureza, servia para
tor como figura passiva, subjugada ao saudar a divindade, urbanizou-se e, a partir
autoritarismo de uma obra e de um autor, da Renascença, na forma de prédios ou ruínas
ou mesmo de um código rígido – como o da cultura grega e romana, agregou-se à
do dicionário –, acrescido o conceito de Cidade e ao imaginário Urbano,
enciclopédia, como apresentado adiante. semantizando-se em novo texto. Cujo
Para o Eco dos anos 1980, a semiótica significante seria o passado como um outro
tem «estatuto teórico epistemológico»34, um tempo, diferente do atual, e, na sua sucessão,
sistema em que o plano da expressão/forma/ a idéia de História. Outro importante legado
substância está em correlação arbitrária com do período medieval ao imaginário coletivo
o plano do conteúdo/forma/substância. Essa será a matriz Palco. O Palco tem no teatro
organização sistemática do mundo, por ar- o seu significado maior, mas não são apenas
bitrária, requer um leitor apto à recepção, para os atores – que, aliás, transformam a praça,
que então se dê a semiose, pois o que as escadarias da igreja e outros fóruns em
caracteriza o sistema semiótico é a sua espaço de atuação – que vivem papéis e
interpretabilidade, não a sua monoplana- almejam a visibilidade. A Cidade passará a
ridade»35. ter no Palco um dos seus textos mais im-
Na teoria textual, leitor é uma posição portantes, pois, para além do espaço físico
a ser preenchida dentro do texto, num pro- teatro, a cidade feita Palco será o lugar que
cesso de geração de sentido que envolveria todo urbanita buscará para o exercício do
também o contexto. No contexto enunciativo olhar e ser olhado, a visibilidade como valor
estará o locus do sentido, não mais pura e significante.
simplesmente centrado no autor, no texto ou Os textos Praça, Palco e Monumento
no mesmo no leitor, isolados e tinham em comum a exaltação ao espaço
descontextualizados. Daí o texto ser aberto, público como significantes do encontro, da
instigante, plural, em diálogo com um con- troca (de mercadorias, de bens simbólicos,
texto e com um sujeito leitor. Se aberto e de crenças, saberes e história) e da celebra-
plural, o texto é o território onde interagem ção. A inter-relação complexa desses
outros textos, nos levando a outra das con- significantes marcará o Urbano e
tingências semióticas da pós-modernidade: a transparecerá na Cidade concreta na forma
intertextualidade envolvendo todos os con- de prédios e distribuição espacial.
textos – histórico, social, econômico, Aprofundando o texto Praça, se a sua
lingüístico e mesmo o psicológico –, que se construção de sentido inicia entre os gregos,
dão enquanto textos. onde a praça será o espaço das trocas e das
Daí a proposta de uma aproximação a decisões políticas, a Praça medieval agregará
Cidade e ao Urbano e, mais especificamen- a função de espaço de trocas de trocas de
te, à Praça enquanto Textos. mercadorias, ao se instituir como mercado.
Na Idade Média, o espaço do mercado
3. O Texto Praça acabará sendo o local de referência não só
para as trocas de mercadorias, como espaço
Submetidos à diversidade e riqueza de para o encontro e a festa, legando à
estímulos, alguns textos serão especialmente contemporaneidade um imaginário no qual
importantes para alimentar a intertextualidade a Praça, independente do espaço físico assim
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denominado, «pode estar onde quer que haja a isso que, agora, muitas mercadorias tam-
divertimento, convergência de curiosos, bém se dão na forma de fluxos. Os fluxos,
consumo cultural diversificado».36 tão importantes quanto os fixos para cons-
O texto Praça alimentará com estes tituição da Cidade enquanto um lugar, se
significantes um imaginário Urbano que a submetidos à velocidade, contribuirão para
Cidade buscará materializar nos séculos sua desconstituição; sob a lógica do desa-
subseqüentes, quer no centro do núcleo parecimento ante os sentidos, fato e imagi-
interiorano, quer nas ruas comerciais das nação não mais, necessariamente, se fundem.
grandes metrópoles. Um texto que no ima- Sob influência dos fluxos cria-se o que Marc
ginário pós-moderno, ao procurar reconstituir Auge38 e outros têm denominado de não-
espaços de festa e de encontro, das trocas lugar. O não-lugar associa-se aos fluxos,
de bens materiais e de bens simbólicos com caracterizando-se não apenas pelo seu uso,
liberalidade de acesso e informalidade de uso mas também pelas relações que os indiví-
– ou seja, a Praça –, permanecerá ativo. Na duos desenvolvem com ele, implícita uma
alma dos shoppings centers metropolitanos, desmaterialização e uma forma específica de
nos hall de entrada de hotéis e edifícios comunicação.
corporativos, nos bares da Cidade ou na roda Nesta lógica dos não-lugares, a Praça –
do cafezinho em escolas e escritórios, lá estará na sua origem, um fixo – fórum da festa e
a Praça. da sociabilidade e do encontro, torna-se cada
Se a Cidade é a materialização, no es- mais um fluxo. Na condição de fluxo, aban-
paço, do Urbano, esta materialização não se dona os espaços públicos de livre acesso, para
restringe aos seus elementos fixos: praças, transitar por espaços privados ou privatizados:
monumentos, igrejas, indústrias, casas, ruas shoppings centers, casas noturnas, parques
e muitos outros. Em torno e no interior dos de lazer diversos, postos de gasolina... A Praça
fixos há todo um mundo em movimento, onde abandona os lugares, para freqüentar, não
circulam pessoas, mercadorias, relações raro, esses ditos não-lugares.
sociais, manifestações culturais, para além do Seria necessário, ainda, lembrar que, na
simples trânsito de veículo individuais ou Idade Média, as trocas culturais se davam
coletivos. Eles constituem os fluxos que, junto na Praça. Ao longo da modernidade, as
com os fixos, formam a Cidade. Daí a tese atividades econômicas e a cultura erudita
de Argan de que a Cidade se forma. Ou talvez, deixam a Praça para abrigar-se em espaços
tornando a questão mais complexa, a Cidade fechados, os fixos. Na contemporaneidade,
se constituiria não apenas na soma, mas no a cultura, que era um produto, aparece cada
conflito dos fluxos com os fixos. vez mais como um serviço. E este serviço,
Se na pré-modernidade os fluxos cons- antes intrínseco a um fixo – galeria de arte,
tituíam-se dos diversos movimentos que museu, teatro – passa a estar na fábrica, no
levavam à cidade os produtos que ela não campo de futebol, no meio do parque, in-
produzia no seu interior, mais recente, os centivando sua condição de fluxo, diminu-
fluxos correspondem aos deslocamentos do indo a importância do lugar para sua rea-
sujeito na própria Cidade: o sujeito que vai lização. Na transição da cultura produto à
de casa para o trabalho tem no seu universo cultura serviço, também se passa do fixo ao
sensível não apenas o lugar de moradia e, fluxo. Os novos fluxos culturais, liberados
na outra ponta, o lugar da atividade profis- dos espaços auráticos modernos, recons-
sional, mas a Cidade será, cada vez mais, tituirão a Praça onde quer que pousem na
o trajeto entre os dois, o que leva Virilio a suas migrações.
afirmar que não habitamos o estacionário, mas A Praça, por sua vez, ela mesma, tam-
o tempo gasto mudando de lugar. Nesta bém dar-se-á agora, cada vez mais, como
lógica, o território percorrido será, cada vez fluxo. Submetida à hegemonia dos fluxos, a
mais, condenado à invisibilidade.37 Praça enquanto um fixo parece fragilizada.
Outra questão contemporânea, os deslo- Mas, como demonstrado por Kevin Lynch39,
camentos no território ampliam-se em velo- são os fixos – a Praça entre eles – que marcam
cidade e diversidade de origem, tanto das concretamente as Cidades como lugares e
mercadorias como dos fluxos. Acrescente-se orientam o traçado do deslocamento dos
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fluxos. Os marcos – como Lynch denomina E a Praça? A Praça manter-se-á tanto


os fixos que se destacam no imaginário que como um fixo, em novos espaços públicos
cada morador constrói da Cidade – contri- como as ruas, ocupadas por caminhantes de
buiriam para a familiaridade do observador fim-de-semana, adolescentes em skates ou
com o entorno. Também serviriam para fixar crianças em bicicletas; ou, ainda, em Praças
e fortalecer um centro ou centralidades em criadas nos shoppings com a finalidade de
torno dos quais a Cidade se organiza. incentivar o encontro. Mas, cada vez mais,
Mas há, ainda, um fluxo que se impõe a a Praça será um fluxo que se dá onde quer
essa Cidade já submetida à desmaterialização: que haja o desejo do estar-juntos para con-
o tempo. A Cidade constrói-se no tempo e fraternização, trocas de mercadorias ou tro-
ocupa um território, onde entrecruzam-se fixos cas simbólicas. A Praça ainda será central
e fluxos, lugares e não-lugares; nos lugares, nos projetos de revitalização das Cidades,
as marcas do local construídas no tempo; nos quando surgem as demandas por resignifi-
não-lugares, o espaço dos fluxos e da cação de fixos, cada vez mais abandonados
atemporalidade. O lugar tem pouco espaço para pelos fluxos econômicos, na sua peregrina-
a dimensão dos fluxos contemporâneos, o não- ção em busca de vantagens comerciais.
lugar se antepõe aos fixos. A Cidade do lugar e, por excelência a
Embora as leituras tradicionais da Cida- Cidade da Praça como expressão genuína do
de em geral restrinjam-se a destacar o con- lugar, vê seu significante migrar das imagens
flito entre os fixos dos lugares e o avanço aos imaginários, ao mesmo tempo em que
dos fluxos na forma de trânsito de veículos, a Cidade desmaterializa-se ante o olhar de
propõe-se aqui demonstrar que essa contra- seus usuários. A Praça sobrevive como
dição pode envolver fluxos e fixos mais sutis, demanda das comunidades, porque está
como a cultura e as transações comerciais, solidamente consolidada no imaginário Ur-
os lugares e os não-lugares. A tecnologia
bano e, como tal, continua a alimentar a
levará a questão a outro patamar.
Cidade.
O conflito entre fluxos e fixos, em ter-
mos tecnológicos, se dá porque a tecnologia,
4. Encaminhamentos complementares
em especial a de comunicação, vive do
Urbano, alimentada e alimentando um ima-
A Cidade na era da reprodutibilidade
ginário de festa, saber e visibilidade, em que
audiovisual40, será composta por várias ci-
a Praça, o Palco, o mercado, a escola e mesmo
dades na Cidade e da hegemonia absoluta
a fé – vide os inúmeros programas religiosas
do Urbano sobre o rural: da terra como
ou a aquisição de canais de rádio e televisão
por grupos religiosos – teriam seu fórum laboratório da experiência humana, passa-se
virtualizado nos meios de comunicação, uma à Cidade como espaço de elaboração cultu-
construção de imaginário mais sofisticada do ral. Fragmentada, vê-la como montagem e
que dos filmes e vídeos a recriar a Cidade simultaneidade atinge uma radicalidade não
nos seus temas e cenas. pensada pelo primeiro momento moderno, e
A Cidade, enquanto a presentificação dos diversidade parece uma palavra insuficiente
fixos, está cada vez mais reduzida à imagem para as possibilidades que ela apresenta,
vista da janela do carro, do ônibus ou do representa e mantém em ação e suspensão.
trem, no percurso entre a moradia e o tra- McLuhan, nos seus textos fundadores,
balho, um espaço de desaparição e, nesta falava na Cidade que se avizinhava como uma
contingência, um vazio a ser preenchido por aldeia global. Embora seja discutível utilizar
imaginários. A questão dialética é a inversão: a expressão aldeia para caracterizar a Cidade
o imaginário Urbano, apropriado pelos meios sob a égide dos meios de comunicação, já
de comunicação, apresenta-se como imagem que no contexto utilizado pelo teórico ca-
e, assim, é ele a Cidade. E a Cidade, que nadense a expressão carregaria o recuo do
deveria se dar ao sensorial como imagem, significante para um momento anterior,
na desmaterialização a que é submetida no quando os aglomerados urbanos seriam
percurso, torna-se espaço aberto ao preen- menos densamente povoados, mas em que
chimento por imaginários. prevaleceria uma certa ingenuidade, franque-
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za e afetividade permeando as relações nomia está enraizada no turismo, esportes,


sociais: o utopismo dos anos 1960 via essa cultura e entretenimento, construindo o
possibilidade, de um retorno ao pastoral, nos imaginário da Cidade em festa a partir, em
meios de comunicação que avançavam sobre muito, da tecnologia acumulada pelo grupo
o mercado. Sob um novo internacionalismo (de comunicação) Walt Disney. Se antes a
global, fronteiras espaço-temporais seriam fantasy city ficava restrita aos parques
derrubadas. temáticos, ela agora ocupa o espaço urbano
Se a metáfora da aldeia global foi útil em experimentos nos quais Barcelona foi uma
no que se refere à difusão do imaginário das pioneiras, ao transformar o porto local
tecnológico implícito nos meios de comuni- em área de lazer.
cação, em termos de imaginário Urbano ela A exemplo da Disneylândia, espera-se
demarcará menos esse sentimento moderno- nesses espaços a materialização em Praças
pastoral implícito na idéia de aldeia e mais e Palcos da imaginação aliada à tecnologia,
o sentimento pós-moderno de globalização, com um visual de grande beleza cênica. Como
no avanço de um imaginário Urbano que Barcelona consagrou, o empreendimento
privilegia a cidade como grande e complexa baseia-se em uma estrutura que atenda quatro
que é, em si, o oposto da aldeia. eixos: Comprar, Divertir-se, Comer e Dor-
A importância da mídia na elaboração do mir. HANNIGAN, ao sistematizar o assunto,
imaginário Urbano seria de domínio do senso propõe um quinto eixo: Educação e Cultura.
comum: filmes como Blade Runner impõem A filosofia desta urbanização explicita-se
uma visão de Cidade, e nos muitos títulos de quando o autor fala em shopertaiment,
Woody Allen, Nova York e seu way of life eatertaiment, edutaiment.
são actantes, com função importante na A fantasy city recuperará o imaginário
construção do enredo. Já a presença da mídia Urbano no qual a cidade é o local da Festa,
no espaço da Cidade pode ser menos óbvia. do Saber, da Cultura, da Representação. Mas,
Para David Harvey41, mudanças na maneira agora, Festa, Saber, Cultura e mesmo o Palco
como pensamos, imaginamos e racionalizamos da Representação, são produtos cuidadosa-
estão fadadas a terem conseqüências materi- mente comercializados, na sua exaltação de
ais, e os meios de comunicação, em especial um Urbano que, reprimido na modernidade
os audiovisuais, marcam imaginários e modo sob o imaginário da poluição e precária
de pensar. As cidades seriam compostas por qualidade de vida, serão justamente as
«redes sociais no espaço, criadas, mantidas e matrizes que o pós-moderno irá recuperar.
manipuladas por uma série ampla dos meios E como os meios de comunicação são uma
de comunicação de massa»42. presença efetiva na construção e reprodução
Depois, por um lado, a realidade será do imaginário Urbano, cada vez mais,
montada para imitar imagens da mídia e por marcam o próprio texto da Cidade.
outro, politicamente mais complexo, há a Seguindo o que este texto buscou per-
questão de o espaço ser conquistado pela seguir a partir dos enfoques utilizados por
produção do espaço43. O mesmo com os teóricos que se debruçam sobre a Cidade, em
meios de comunicação: as redes criadas pela geral houve um recuo do significado Praça,
mídia impressa e eletrônica e, mais recen- como um fixo na Cidade, e um avanço dos
temente, pelos computadores, constroem significantes festa e espaço de trocas sim-
novos espaços, que só existem enquanto e bólicas a ela agregados. Cada vez mais, as
se redes de informação, independentes do cidades que alcançam ser denominadas
território percorrido. metrópoles pós-modernas têm na sua dimen-
Da mídia enquanto modelo à Cidade da são buscarem constituir-se enquanto prazer,
reprodutibilidade audiovisual daí decorrente, lazer e, de modo mais factual que o sentido
é a fantasy city44 que se impõe, cuja eco- figurado utilizado por Barthes, erotismo.
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4
Bibliografia David Harvey, A condição pós-moderna, São
Paulo, Loyola, 1992, p. 265.
5
Argan, Giulio Carlo, História da arte Giulio Carlo Argan, /Histria da arte como
como história da cidade. São Paulo, Martins história da cidade, São Paulo, Martins Fontes,
1992, p. 222.
Fontes, 1992. 6
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Edições 70, 1987b. Paulo, Moraes, 1991, p.127.
10
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11
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Perspectiva/Edusp, 1971.
Lisboa, Edições 70, 1987, p. 183.
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SEMIÓTICA E TEXTO 215

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