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Introdução
Este artigo tem como objetivo investigar no documento curricular para Língua
Portuguesa como a identidade e a diferença são consideradas, para isso propõe-se
primeiro abordar sucintamente a identidade e a diferença com especial atenção para o
que elas podem velar, revelar ou desvelar. O ponto de partida será o conto Famigerado,
que está no livro de Guimarães Rosa, Primeiras Histórias. A seguir será feita uma
incursão no texto objeto dessa análise para verificar como estão propostas e articuladas
a identidade e a diferença e a partir de que pressupostos teóricos.
(...)
“O que frouxo falava: de outras, diversas pessoas e coisas, da Serra, do São Ão,
travados assuntos, inseqüentes, como dificultação. A conversa era para teias de aranha.
Eu tinha de entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios.
Assim no fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava: E, pá:
— “Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é:
fasmisgerado… faz-megerado… falmisgeraldo… familhas-gerado…?
(...)
— “Vosmecê declare. Estes aí são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo, pra
testemunho…”
(...)
Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroço: o verivérbio.
— Famigerado é inóxio, é “célebre”, “notório”, “notável”…
— “Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é
desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?”
— Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos…
— “Pois… e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?”
— Famigerado? Bem. É: “importante”, que merece louvor, respeito…
(...)
Damazio diz que a palavra “famigerado” lhe fora dirigida por um outro; seu
objetivo ao procurar o médico era saber se fora ofendido ou elogiado. O médico ao
tomar conhecimento da identidade do jagunço, (“Damázio, quem dele não ouvira? O feroz
de estórias de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo .”) age sob o
amparo do sentimento de medo, por isso hesita em responder, mas toma a decisão de só
revelar o que era positivo do sentido da palavra e agradaria a Damazio. Oculta que pode
significar também bandido, malfeitor, mau-caráter. Observe-se que subjaz no enredo do
conto uma questão de identidade: o jagunço prevê que, por sua identidade profissional,
um médico tem conhecimento diferenciado, sabe coisas que uma pessoa comum não
sabe, portanto, pode revelar se a pessoa que viu na identidade dele um famigerado está
lhe atribuindo uma característica boa ou ruim. O médico teme o jagunço por ver em sua
identidade um homem perigoso capaz de colocar em risco a vida do outro, contrapondo-
se a ele, cuja profissão é cuidar ou salvar a vida do outro; por isso oculta a parte
negativa do sentido da palavra, não declara todo o “verivérbio”.
Não revelar todos os sentidos da palavra é uma estratégia nesse confronto entre
duas identidades que se opõe. O médico está fazendo o jogo do eu dentro dos limites da
experiência momentânea que ele julga ser perigosa, dada a identidade do jagunço. O
médico, do seu lugar social teme o jagunço, mas pressupõe, que este, do seu lugar
social, não tem conhecimento formal, escolar, por isso não terá condições de perceber a
omissão relativa ao significado da palavra. Nesse momento de representações, de
simulacros, nessa tensão eu / outro, entram em ação os polos do autorreconhecimento (o
médico que se vê e é visto como o detentor do conhecimento formal) e do
heterorreconhecimento (o outro como aquele que não partilha dos mesmos valores, nem
do mesmo saber do médico). Há no texto uma cena teatral em que o leitor é a plateia
que olha de fora a tensão e deve ter o domínio dos jogos de palavras que os personagens
colocam no palco para compreender o enredo.
O conto pode ser lido como uma metáfora da identidade como um “sistema de
relações e representações” (Mellucci,2004, p. 50) em que se toma contato com uma
das faces dos indivíduos, naquilo em que cada um deles reconhece (ignorância do
jagunço) e é reconhecido pelo outro (a sabedoria do médico), o que permite concluir
que no olhar para si desenha-se a subjetividade e no olhar para o outro é aparece a
diferença.
A língua, como sistema simbólico constituinte, portanto, parte da Cultura, é
fundamental na construção da identidade e da diferença. É por meio da língua e da
linguagem que os sujeitos aderem aos mais diversos papéis sociais e/ ou procuram
contestá-los, transformá-los; esse processo que é possível pela experiência, é
imanentemente discursivo e tem como consequência a construção de identidades
coletivas e individuais. É pela língua que nos identificamos “eu sou” e nos
diferenciamos “eu não sou”. Essas realizações discursivas podem estar carregadas de
positividade (famigerado como notável) ou de negatividade, (famigerado como
malfeitor). Tomás Tadeu Silva (2000) enfatiza esse caráter discursivo da produção da
identidade e da diferença quando a intitula como “ato de criação linguística”:
“Além de serem interdependentes. Identidade e diferença partilham de uma
importante característica: elas são o resultado de atos de criação linguística.
Dizer que são o resultado de atos de criação significa dizer que não são
‘elementos’ da natureza, que não são essências, que não são coisas que
estejam simplesmente aí, á espera de serem reveladas ou descobertas,
respeitadas ou toleradas. A identidade e a diferença têm que ser ativamente
produzidas. Elas não são criaturas do mundo natural ou de um mundo
transcendental, mas do mundo cultural e social.” (p. 76)
Sonia Kramer (1997, p. 21) vê “uma nova proposta para a educação, um novo
currículo como um convite, um desafio, uma aposta (...) parte de uma política pública
com um projeto político de sociedade e um conceito de cidadania, de educação e de
cultura”. A Coleção Componentes Curriculares em Diálogos Interdisciplinares a
Caminho da Autoria representava mais que um desafio, mais que uma aposta , era uma
ousadia porque tinha como base a descolonização do currículo a partir da autoria
docente e discente, a interdisciplinaridade e a crença na intelectualidade do professor,
para desconstruir narrativas hegemônicas e dar voz aos sempre silenciados. Outro foco
era colocar a centralidade nas aprendizagens como direito em cada disciplina, o que
posicionava o aluno no papel do sujeito com voz mais ativa dentro do processo
educacional. A introdução do documento afirma:
“... a razão de ser do nosso trabalho são as educandas e os educandos, e seus
direitos enquanto cidadãos no tempo presente; são crianças e jovens e seus
direitos à proteção e ao desenvolvimento plenos, estão sob responsabilidade
também do Poder Público. No caso do direito à educação, somos todos
agentes públicos. Por nossa responsabilidade passam a garantia pelas
aprendizagens a que os estudantes têm acesso no processo educativo e que
vivenciam especialmente na Rede Pública Municipal.”
(Direitos de Aprendizagem dos Ciclos Interdisciplinar e Autoral- Coleção
Componentes Curriculares em Diálogos Interdisciplinares a Caminho da
Autoria., 2016, p. 8)
Ocorre que a memória curricular presente nas escolas tendia a ver expectativas
como direito e vice-versa o que implicou em criar um programa de formação capaz de
convencer os docentes a pensar papéis e concepções diferentes para alunos,
professores, escola e modelo de sociedade. Saliente-se que as “Orientações
Curriculares e Proposição de Expectativas de Aprendizagem - Ensino Fundamental II -
Língua Portuguesa” do governo de Gilberto Kassab é um documento bastante técnico,
privilegia um aspecto muito prático do ensino da língua, não se propõe a elaborar um
discurso filosófico ou sociológico sobre as implicações do ensino da língua como
discurso político que cria, neutraliza, naturaliza, distorce ou nega representações que
tem sérias implicações na construção das identidades dos sujeitos, considerando a
linguagem a criação simbólica que institui os sujeitos no mundo da cultura
humanizando-os ou desumanizando-os.
1
Orientações curriculares: ensino fundamental II- Língua Portuguesa, São Paulo, SME/DOT,2007, p. 10
2
Programa Mais Educação São Paulo, SME/DOT, 2014, p.16
a Educação Étnico-Racial” que abrange a educação infantil, o ensino fundamental e o
médio. Não há, entretanto, nenhum documento que faça referência a gênero.
3
Direitos de Aprendizagem dos Ciclos interdisciplinar e autoral- Coleção Componentes Curriculares em
Diálogos a Caminho da Autoria, São Paulo, SME/COPED,2016, p. 15 e 16.
4
Direitos de Aprendizagem dos Ciclos interdisciplinar e autoral- Coleção Componentes Curriculares
em Diálogos a Caminho da Autoria, São Paulo, SME/COPED,2016, p. 28
2 – Concepção;
4 – Estratégias e ações.
Na apresentação o leitor depara-se com os versos “Quando a gente fala nóis vai/
É porque nós vamos mesmo” de autoria de Sergio Vaz, por si só tais versos já
apresentam uma subversão em relação às prescrições anteriores, porque propõe
desconstruir o preconceito linguístico que paira sobre a variedade linguística popular,
deixando claro que a opção por essa variedade não anula o ato, significado pelo verbo
ir; em outras palavras na variedade culta, também expressa no poema (nós vamos) ou na
popular a comunicação acontece e o ato é praticado. A epígrafe coaduna-se com o
propósito geral do currículo, qual seja, o de dar lugar aos conhecimentos menos
prestigiados, dos menos prestigiados, respeitando suas identidades e colocando-os no
mesmo patamar daqueles sempre evidenciados e valorizados, para provocar
questionamentos e revisão das epistemologias que tem tido lugar de destaque na escola,
que cristalizam papéis sociais, homogeneízam e tratam as diferenças apenas como
diversidade, elidindo o caráter político de categorias como gênero e raça que, para além
da diversidade, trazem a marca da discriminação, da perpetuação da desigualdade e da
violência. Esse pressuposto é claramente colocado em passagens como:
A diversidade tornou-se lugar-comum nos discursos sobre educação a partir do final dos
anos 90, sobretudo com os PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) em que se colocou
a pluralidade cultural como tema transversal. É tratada no documento do ponto de vista
da cultura, considerando-se as diferentes representações dos variados grupos que
5
Coleção Componentes Curriculares em Diálogos a Caminho da Autoria – Língua Portuguesa, São
Paulo, SME/COPED,2016, p.7
compõem a sociedade brasileira. Posta dessa maneira, é apenas um dado tangível e
como tal pode ser apenas constatada e tolerada, o que não significa considerar as
identidades dos diversos, nem as desigualdades evidentes no plano social. Reconhecer a
diversidade cultural, não significa, portanto, olhar para o fato de que esse discurso não
critica as diferenças de tratamento entre os diversos. Como direito à diferença, a
diversidade articula-se à exigência de reconhecimento na esfera pública e política de
grupos definidos como ‘minoritários’, ’subalternos’, e por certas formas de feminismo”
(Moehlecke, p. 463, 2009). A proposta dos Diálogos Interdisciplinares a caminho da
autoria é priorizar os minoritários, os subalternos, os silenciados da escola pública para
criar uma narrativa que possibilite aos alunos e alunas da escola pública questionar as
bases econômicas, políticas e educacionais em que a sociedade está assentada.
6
Idem, p,12
“o currículo pode (...) associar-se à formação de identidade das/os educandos,
de forma a afetá-las positiva ou negativamente. Isso porque se compreende
que tudo aquilo que se constitui no ‘exterior’ como informações e conceitos,
modos de vida, valores e até julgamentos das/os professores, incorpora-se aos
sujeitos, às suas percepções e opiniões, participando da definição de seus
destinos e da conformação à ordem social.”7
Essas mudanças produzidas ou influenciadas por uma realidade cada vez mais
fluída, mais “líquida” dificulta a apreensão e ameaça as certezas, descentra as
identidades e podem fazer surgir ondas conservadoras que tem efeitos nefastos e
desagregadores. Em que pesem todas as transformações culturais e sistêmicas,
viralizadas pelas redes sociais em tempo real ou por mensagens instantâneas, o que dá à
realidade uma dimensão inescapável, persistem contradições com as quais sempre
convivemos: como mulheres ganhando menos que homens e negros com o dobro da
taxa de desemprego que brancos, mortalidade maior de LGBTs em relação a outros
grupos, o que tem estreita ligação com a questão da construção das identidades e da
discriminação por causa das diferenças. Os currículos escolares não têm como ignorar
essas realidades, porque elas estão presentes nas subjetividades e chegam todos os dias
nas escolas.
Conclusão
Em Famigerado, o narrador- doutor afirma a necessidade de entender as mínimas
entonações, seguir os propósitos e silêncios do jagunço Damazio, assim como a fala
de Damazio, currículos tem propósitos claros, mas têm muitos silêncios. Tanto o que
está revelado, quanto o que está velado formam identidades. O narrador que se
esforça para ouvir os silêncios pode ser comparado à professores e outros educadores
que devem ter a curiosidade e o desejo de estudar para entender os silêncios dos
currículos a fim de desvelar para os estudantes o que os currículos pretendem e
podem fazer com as próprias identidades.
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