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em identidades culturais, nada é mais falso vocalizando identidades nacionais. Por meio
do que o adágio clássico do liberalismo: qui- da cultura material, forneceu matéria-prima
eta non movere – não se deve tocar no que palpável para a elaboração de símbolos na-
está quieto (Foucault 2004: 3). Se as insti- cionais e vinculações ancestrais (Atkinson et
tuições estão em repouso, se nada se abala all 1996). Estabeleceu as regras de uma gra-
ou subleva, se não há descontentamento ou mática da pertença, incutindo nas comuni-
revolta, deixemos tudo como está. Entretan- dades o sentimento de pertencimento a uma
to, no tocante à definição de identidades cul- nação e a um território nacional.
turais, sobretudo quando elas se reportam à A Arqueologia também foi prolífico ins-
Arqueologia e ao patrimônio cultural, nada trumento do colonialismo. Sem dúvida, ao
está quieto, mas em ebulição. Elas se mo- lado do nacionalismo e do imperialismo, o
vem em mar agitado. Não transcendem o colonialismo esteve entre os mais importan-
mundo cotidiano, mas sim infundem noções de tes fatores estruturais da Arqueologia (Trigger
governamentalidade e inculcam normas para o 1984). As pesquisas arqueológicas foram en-
governo de populações (Bhabha 1994). São, tusiasticamente endossadas pelas potências
portanto, fontes perenes de combatividade. coloniais da Europa por meio da organiza-
Assim, argumento aqui que a Arqueolo- ção de museus e explorações científicas
gia comunitária, como uma das vertentes da (Lyons e Papadopoulos 2002: 2). Compassa-
pesquisa arqueológica mundial, está cons- das com os levantamentos topográficos e
tantemente sob fogo cruzado. Primeiro, por- descrições geográficas, as pesquisas arque-
que ela (e o mesmo aplica-se aos demais ológicas adentraram o “Coração das Trevas”;
campos de trabalho em Arqueologia) não timbraram os territórios nativos com a noção
pode furtar-se de um legado duradouro: as de terra nullius (terras que não pertencem a
relações históricas que a disciplina manteve ninguém), isto é, classificando-os como espa-
com o nacionalismo e o colonialismo. Segun- ços plenamente selvagens, demograficamente
do, porque ela, para firmar-se como gênero vazios, esparsamente povoados por grupos
de pesquisa, deve enfrentar as ambivalências “bárbaros” e “primitivos” (Wobst 2005). O
das políticas de representação do patrimônio que permitiu concebê-los como sujeitos de
cultural. Contudo, seus métodos, que apre- evicção de Direito, legitimando-se, assim, o
sentarei no tópico final deste artigo, podem colonialismo (Patterson 1997).
trazer uma série de benefícios, tanto para Como diria Johannes Fabian (1983), os
as comunidades quanto para a interpreta- contatos entre arqueólogos e antropólogos
ção arqueológica. metropolitanos e comunidades do mundo
colonial caracterizaram-se pela “negação da
contemporaneidade”: os povos nativos, como
Equação da Distância e Outro cultural, foram colocados num tempo
Gramática da Pertença diferente àquele do observador, que seria
representante do progresso e da evolução;
A Arqueologia comunitária percorre a essa equação da distância redundou na clas-
esteira do movimento crítico aos modelos sificação dos povos nativos como essencial-
normativos de cultura, que definem identida- mente “primitivos” e congelados no tempo.
des culturais como estanques e ontologicamente Durante o século XIX e mesmo até meados
fechadas. Insere-se na margem oposta das dos anos 1950, essa taxonomia fundou-se,
correntezas políticas que constituíram histo- ademais, nas escavações arqueológicas. Pois
ricamente a Arqueologia. Herdeira do nacio- os depósitos arqueológicos “mostravam” que
nalismo e do imperialismo do século XIX os ancestrais dos atuais “primitivos” usavam,
(Díaz-Andreu 2007), a Arqueologia esteve a basicamente, os mesmos tipos de ferramen-
serviço do Estado (Kohl e Fawcett 1995, Fowler tas e organizavam-se em estruturas sociais
1987). A Arqueologia institucionalizou-se fundamentalmente semelhantes.
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dicionalmente trabalha com o lixo, com os e destruição lhes fossem naturais e ineren-
restos deixados por outras sociedades e que tes, e não produtos das escolhas de como
se depositaram nos arquivos da terra. Se o preservar e para quem preservar. Destrui-
lixo tem e pode ter valor simbólico, também ção e perda não são imanentes ao patrimônio
os artefatos e monumentos, por meio dos cultural. Resultam das seleções deliberadas
quais se interpreta e representa o passado das políticas de representação. É preciso lem-
ou o presente, apontam significativamente brar, como o fez recentemente Jody Joy
para as escolhas seletivas que constituirão o (2004), que artefatos e monumentos só se
patrimônio cultural. tornam significativos quando são cultural-
Isso fica claro, por exemplo, nas discus- mente constituídos como tais. As relações
sões dos arqueólogos especializados em res- sociais não se dão simplesmente entre pes-
tauro de artefatos. Em seu trabalho rotinei- soas e grupos; elas sempre envolvem arte-
ro, o arqueólogo restaurador altera fisica- fatos. Assim, as relações sociais entranham-
mente os artefatos em nome da preserva- se na materialidade. A cultura material, por-
ção. Foca-se, em geral, nos métodos físico- tanto, não é apenas um adendo epidérmico
químicos para a preservação dos artefatos da sociedade, mas pulsa no coração da vida
(Cf., p. ex: Applebaum 1987, Caldararo 1987), social (Thomas 2005). Assim é que a pre-
e não nas culturas que no-los criaram e con- servação do patrimônio cultural, ao contrá-
tinuam, algumas vezes, a usá-los. Esse índi- rio do que comumente se pensa, não é ape-
ce seletivo da conservação arqueológica é nas para o futuro, mas, sobretudo, para o
devotado a garantir a longevidade e essên- presente, para o aqui e agora, pois ele ocu-
cia dos artefatos (cf., p. ex: Silverm & Parezo pa lugar central nos processos de socializa-
1992). Contudo, a escolha sobre o que e ção e conflitos sociais.
como conservar, como diz Glenn Wharton Se isto é claro no que se refere aos cri-
(2005), afeta irremediavelmente nossa per- térios de restauração arqueológica, torna-se
cepção sobre a cultura material exibida nos ainda mais transparente em alguns enuncia-
museus. Por meio de suas intervenções, o dos da Arqueologia de contrato e das
arqueólogo restaurador imprime os valores metodologias arqueológicas de campo. Como
e padrões ocidentais na cultura material dos notaram Ian Hodder e Asa Berggren (2003)
povos indígenas (Johnson 1993, 1994). Ins- a respeito da Arqueologia de contrato que
taura, portanto, suas próprias premissas cul- se faz em boa parte do mundo, esta, além
turais nos artefatos, perpetuando-as. Como de não atentar para o lugar social dos ar-
afirma Miriam Clavir (1996), o resultado des- queólogos, seccionam em fases distintas os
tes critérios unilaterais e seletivos da con- processos de escavação e interpretação dos
servação arqueológica é que os povos indí- sítios arqueológicos. Mas este não é o único
genas e, de um modo mais abrangente, as problema. Em seu furor para “resgatar” e
comunidades locais, são majoritariamente preservar artefatos para o futuro, a Arqueo-
alijadas dos processos de interpretação e das logia de contrato, animada por espírito
políticas de representação do patrimônio cul- salvacionista, tem se inclinado para a des-
tural (Clavir 1996). truição planejada de sítios. Em alguns dos
Poder-se-ia com razão argumentar que setores mundiais da Arqueologia de contra-
não há como restaurar um artefato sem to, é perfeitamente aceitável que arqueólo-
adulterá-lo. Ou ainda, como o faz Cornelius gos destruam propositalmente sítios, desde
Holtorf (2006), que destruição não é antíte- que façam registros detalhados dos contex-
se de preservação e da idéia mesma de tos de deposição dos artefatos e que os or-
patrimônio cultural, tanto mais na “Era do ganizem em reservas técnicas para pesqui-
terrorismo”. Mas tal argumento essencializa sas futuras (Lucas 2001).
as ambivalências das políticas de represen- Minha intenção não é detratar a Arqueo-
tação do patrimônio cultural, como se perda logia de contrato, que, diante da crescente
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Abstract: The aim of this paper is to discuss the methods of the Community
Archaeology. It argues before that the Community Archeology, as one element
of the world archaeological research, falls almost always in the heart of
social conflicts. Firstly, because it cannot escape of the a lasting legacy: the
historical relations that related Archeology to nationalism and colonialism.
Secondly, because to establish itself as sort of research it should confront
the ambivalencies of the policies of representation of the cultural property.
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