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A SOCIEDADE COMPREENDIDA DIALETICAMENTE: SANTO


AGOSTINHO E PENTECOSTAIS BRASILEIROS

João Mateus Ferreira Silva1

RESUMO: No presente artigo, partindo de uma análise da dialética entre a “cidade de Deus”
e a “cidade dos homens” na obra De Civitate Dei, de Santo Agostinho, e no contexto de
produção desta mesma obra, no início do século V, faz-se uma ponte com o presente, analisando
como grupos pentecostais brasileiros, em especial a Assembleia de Deus, cria uma concepção
dialética na sua percepção da sociedade moderna em suas questões, fazendo a distinção entre a
Igreja (cidade de Deus) e o restante do mundo (cidade dos homens). A partir disto, são
mostradas as ações de lideranças da denominação para manter esta separação dos fiéis do
mundo, através de regulamentações institucionais, entre outros instrumentos de regulação.

Palavras-chave: Agostinho; dialética; Assembleia de Deus; doutrinas; costumes.

ABSTRACT: In the present article, starting from an analysis of the dialectic between the "city
of God" and the "city of men" in the work De Civitate Dei, of Saint Augustine, and in the
context of the production of this same work, a bridge with the present, analyzing how Brazilian
Pentecostal groups, especially the Assembly of God, creates a dialectical conception in their
perception of modern society in their issues, distinguishing between the Church (city of God)
and the rest of the world (city of men). From this, the actions of leadership of the denomination
are shown to maintain this separation of the faithful from the "world", through institutional
regulations, among other instruments of regulation.

Keywords: Augustine; dialectic; Assembly of God; doctrines; customs.

1
Graduando em História (PUCG/UFF); e-mail: joaomateus@id.uff.br.
2

Vida de Santo Agostinho e a sociedade romana de seu período

Santo Agostinho nasceu nas possessões do Império Romano no norte da África,


território da atual Argélia, em 354, pleno século IV, período de transições e tensões religiosas
no império. Desde o Édito de Milão2, promulgado sob Constantino em 313, o cristianismo
passava a adquirir legitimidade junto ao Estado romano, até sua oficialização definitiva como
religião do império em 380, sob Teodósio I. O paganismo perde hegemonia, mas não entra
imediatamente em hiato, continua sendo praticado até por parte da aristocracia, o que leva a
sociedade romana a um intenso dualismo “cristãos versus pagãos” durante este período, que
pode-se chamar de “transição religiosa”. Essa dicotomia religiosa era tão presente no cotidiano
dos romanos que Santo Agostinho, por exemplo, cresceu em um lar onde sua mãe, Mônica, era
uma cristã fervorosa e seu pai, Patrício, um pagão convertido ao cristianismo apenas no leito
de morte, conforme o próprio Agostinho narra em suas Confissões.

Mostrando aptidão intelectual desde muito cedo, Agostinho estudou lógica, gramática e
retórica, formando-se um excelente orador. Lecionou retórica em Roma e Milão, onde
surpreendeu-se com a desonestidade de seus alunos, que não lhe pagavam pelos cursos
ministrados. Na busca pela “verdade”, certamente influenciado pelos embates religiosos que
presenciava nos seios familiar e social, tentou, ainda sem muito amparo teológico, encontrá-la
nas Escrituras Sagradas e acabou caindo, por um curto período de tempo, no Maniqueísmo3.
Frustrado com o líder maniqueísta Fausto, Agostinho se torna um cético. Em seu ceticismo,
acaba por descobrir a filosofia Neoplatônica, que o leva a concepção de um “mundo espiritual”
e, consequentemente, da existência de Deus, antes mesmo de sua conversão ao cristianismo.

A conversão de Agostinho à “verdadeira religião”, aos 32 anos de idade, é marcada por


um episódio místico. Após ouvir a história da vida de Santo Antão contada por um amigo, uma
figura infantil surge e lhe entrega um exemplar das Escrituras, ao qual abre no texto de
Romanos, capítulo 13, de que Agostinho destaca os versículos 13 e 144 em suas Confissões.
Este episódio é comemorado pelo calendário litúrgico da tradição católica no dia 24 de abril.

2
Também referenciado como Édito da Tolerância, declarava que o Império Romano seria neutro em relação ao
credo religioso, acabando oficialmente com toda perseguição sancionada oficialmente, especialmente do
cristianismo. O édito foi emitido nos nomes do tetrarca ocidental Constantino I, o grande, e Licínio, o tetrarca
oriental.
3
Filosofia religiosa dualista e sincrética, surgida no século III, que afirmava a matéria como intrinsecamente má
e o corpo como intrinsecamente bom, sendo o mundo um intenso conflito entre as forças do bem (Deus) contra
as forças do mal (Diabo).
4
“Não caminheis em glutonarias e embriaguez, nem em desonestidades e dissoluções, nem em contendas e
rixas; mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis a satisfação da carne com seus apetites.” (Rom.
13:13-14 In: AGOSTINHO, 1980, VIII, 12).
3

Após sua “entrega a Jesus Cristo”, Agostinho presencia a morte de sua mãe, pouco tempo
depois, e quatro anos após foi ordenado sacerdote, tendo já escrito uma analogia apologética
sobre a “Santidade da Igreja Católica”, tornando-se bispo na cidade de Hipona, no norte da
África (atual Argélia)5. Torna-se um dos grandes pensadores da religião cristã, recebendo o
título de “Doutor da Igreja”. Seus tratados teológico-filosóficos influenciam até os dias atuais
a soteriologia, a eclesiologia, a hamartiologia, a escatologia e a antropologia das mais diversas
correntes cristãs-teológicas em todo o mundo. Faleceu em Hipona em 430, aos 75 anos.

“A cidade de Deus” e “a cidade dos homens”

De Civitate Dei (A Cidade de Deus), uma das principais obras de Agostinho, foi escrita
no contexto do saque de Roma pelos visigodos, em 410. Este episódio fez com que os cidadãos
romanos passassem a questionar a nova realidade religiosa do império, a chamada Tempora
Christiana. Para defender o cristianismo das críticas pagãs que tentavam relacioná-lo com a
decadência vivida por Roma na antiguidade tardia, e reforçá-lo como a “religião verdadeira”,
Santo Agostinho imprime na obra, escrita em 22 livros entre 412 e 426, a forma como ele via o
mundo ao seu redor, dividido entre dois grupos totalmente opostos, ou “as duas cidades”, como
chama. “A cidade dos homens”, também chamada por ele de “cidade terrena”, “Babilônia”
(confusão), entre outros nomes, seria o mundo tangível, onde as coisas são imperfeitas e
corrompidas, onde os homens, presos a uma falsa religião (paganismo), vivem os prazeres da
carne, em devassidão e subversividade. “A Cidade de Deus”, “cidade celeste” ou “Jerusalém
Celestial”, estaria localizada no plano espiritual, sendo a morada de Deus e, por conta disto,
onde todas as coisas – a beleza, a felicidade, a santidade – são encontradas em suas plenitudes6.

Esta visão dialética da realidade leva Agostinho a formular também duas sociedades
distintas, cada uma ligada a uma destas “cidades”, baseado na concepção bíblica de salvação e
perdição. A “sociedade terrena”, para qual está reservada a “cidade dos homens”, aglutina os
não-cristãos, aqueles que não foram salvos por Deus, em última instância, os pagãos. A “cidade
de Deus” tem como cidadãos os “santos”, aqueles que aceitaram à “verdadeira religião”, ou
seja, a Igreja de Cristo. É interessante observar que, na concepção agostiniana linear da

5
Cf. AGOSTINHO, S. Confissões; De Magistro. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980. Coleção Os Pensadores.
passim.
6
COELHO, F. S. Agostinho e a dialética das duas sociedades: a cidade de Deus e a cidade terrena. Ágora,
Vitória, n. 15, p. 120-131, 2012.
4

história7, os cristãos ainda não atingiram a “cidade de Deus”, só a atingirão no fim de todas as
coisas, quando então serão plenamente santos, felizes e belos. Mas, a partir do momento em
que se convertem ao cristianismo, já se constituem, de antemão, como “cidadãos dos céus”,
porém, habitando a “cidade dos homens” como peregrinos em terra estranha até o Apocalipse.

A percepção da realidade em dois planos distintos – o tangível e o intangível –


demonstra a clara influência neoplatônica nos escritos de Santo Agostinho. Os objetos do plano
terreno são sempre corrompidos pelo pecado dos homens e a perfeição está neste “mundo das
ideias”, da mesma forma pensada por Platão8. Em Agostinho, esta perfeição seria representada
na figura do próprio Deus, que habita neste plano espiritual. O bispo de Hipona se utiliza desta
dialética na percepção do “outro”, do “diferente”, que estaria fora deste plano espiritual perfeito
por não seguir o cristianismo e que, portanto, pertenceria ao inimigo de Deus, Satanás. O
“outro” é visto em Agostinho como agente diabólico, que age sempre contra a vontade divina.

O pentecostalismo brasileiro: origens e costumes

Falar em um “pentecostalismo brasileiro” no sentido stricto é bastante problemático. O


movimento pentecostal é heterogêneo, multifacetado e, por vezes, até conflitante em si mesmo.
As contradições teológicas que compõem os retalhos do pentecostalismo brasileiro se dão por
fatores culturais e temporais, que estão em constantes derivações e revisões. Não há consenso
nem mesmo quanto à origem do movimento no Brasil, com ao menos dois grupos requerendo
o título de “pioneiros” para si: a Congregação Cristã no Brasil e a Assembleia de Deus. Para
evitar ao máximo equívocos, ateremo-nos a este último grupo, considerado de vanguarda do
movimento pentecostal em terras brasileiras, em nossa exposição acerca das origens do mesmo
e de seus costumes e também na análise teórica que faremos mais adiante. Sempre que nos
referirmos a um “pentecostalismo brasileiro” será no sentido lato, compreendendo as
particularidades e contradições existentes no “movimento”.

A doutrina pentecostal que dá origem à Assembleia de Deus tem influência dos


movimentos de renovação espiritual estadunidenses do início do século XX, sobretudo o de
Azusa Street, em Chicago, liderado por William J. Seymour e considerado o berço do

7
Baseada na linearidade da narrativa bíblica. A humanidade teve seu início com a criação no Gênesis, tem seu
desenrolar ao longo da história e terá seu fim no Juízo Final, o Apocalipse. Todas as ações humanas no decorrer
da história, não importando qual sejam, culminarão em um fim inevitável, para o qual a humanidade caminha.
8
Cf. GODOY, W. Teoria das ideias de Platão. Filosofia na Escola, s. d. Disponível em:
<https://filosofianaescola.com/platao/teoria-das-ideias-de-platao/>. Acesso em: 6 jul. 2019.
5

pentecostalismo moderno. A doutrina chega ao Brasil através de dois missionários suecos que
viviam nos Estados Unidos: Adolph Gunnar Vingren (1879-1933) e Gustav Daniel Högberg,
ou simplesmente Daniel Berg (1884-1963).9 Educados como batistas na Suécia, os jovens se
conheceram já em terras americanas, após terem tido contado com o movimento carismático e
já tendo ambos recebido o “batismo no Espírito Santo”10. A vocação missionária dos dois foi
confirmada por “revelação divina” durante uma reunião de “Pentecostes”, como Gunnar
Vingren relata em seus diários, junto à confirmação do local para onde seriam enviados a pregar
a “segunda benção reservada aos crentes”: Belém do Pará, no Brasil.

Vingren e Berg aportam em Belém em novembro de 1910 e são acolhidos pela Primeira
Igreja Batista do Pará, em uma estadia cercada de polêmicas. Os suecos teriam forjado
documentações para dizer que eram missionários enviados pela Junta de Richmond, ligada à
Convenção Batista do Sul dos EUA11, que com frequência enviava pessoas ao país até primeira
metade do século XX. A partir disto, os missionários puderam organizar reuniões particulares
com membros da igreja, onde começaram a introduzir elementos da doutrina pentecostal, com
pessoas afirmando terem sido “batizadas no Espírito Santo”, com a evidência da glossolalia. As
reuniões de Vingren e Berg foram proibidas pela liderança batista e a igreja, em assembleias
gerais realizadas em junho de 1911, optou por desligar os missionários da comunhão, bem como
outros 18 adeptos das práticas pentecostais. Era o início da Assembleia de Deus no Brasil.12

Fundada no proselitismo, importante em seu surgimento e em seu constante crescimento


até os dias de hoje, a Assembleia de Deus – até 1918, Missão de Fé Apostólica13 – expandiu-se
sobremaneira pelo território nacional, chegando a incríveis 12,3 milhões de membros (IBGE,
2010)14, tendo abrangido inicialmente as regiões mais pobres do país, Norte e Nordeste. O
fenômeno pentecostal foi facilmente adequado ao discurso conservador e fundamentalista
predominante em suas áreas iniciais de expansão. Peter Berger (2000) afirma que: “O
componente mais numeroso dentro da explosão evangélica é o pentecostal, que combina
ortodoxia bíblica e uma moralidade rigorosa com uma forma extática de culto e uma ênfase na

9
Cf. MATOS, A. S. O Movimento Pentecostal: reflexões a propósito do seu primeiro centenário. Fides
Reformata, São Paulo, v. 11, n. 2, p. 23-50, 2006.
10
“O batismo dos pentecostais não é um batismo sacramental, é um batismo emocional. O batismo no Espírito
Santo é um sentimento místico do contato com Deus. Esse sentimento manifesta-se na glossolalia (“falar em
línguas”) do qual a igreja é testemunha.” (CORTEN, 1996, p. 44 apud. OLIVEIRA, 2011, p. 248).
11
Cf. NOBRE, R. P. Nossa correspondencia. O Jornal Baptista, Rio de Janeiro, v. 11, n. 29, p. 4-5, 20 jul. 1911.
12
Cf. VINGREN, I. Diário do Pioneiro Gunnar Vingren. 5. ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2000. p. 18-44.
13
Cf. Ibidem, p. 65.
14
Cf. 25 maiores grupos religiosos do Brasil, segundo o IBGE (2010). BOL, 2015. Disponível em:
<https://www.bol.uol.com.br/listas/2015/09/15/25-maiores-grupos-religiosos-do-brasil.htm>. Acesso em: 7 jul.
2019.
6

cura espiritual”15. A moralidade da qual Berger trata é fundada sobre os pilares dos
mandamentos bíblicos, das tradições e doutrinas da igreja e dos costumes locais.

O combate ao “paganismo moderno”

Assim como Santo Agostinho em De Civitate Dei reconhecia o paganismo como o


inimigo diabólico da “verdadeira religião” e punha os pagãos em um plano distinto dos cristãos,
os grupos pentecostais fundamentalistas, em especial a Assembleia de Deus, fazem-no com
pautas e ideias trazidas pela modernidade, conflitantes com os pilares da moralidade cristã,
como expostos no tópico anterior. Assim como fez Agostinho, esses grupos enxergam a
necessidade de reafirmar sua fé e suas doutrinas em combate ao “progressismo”, que critica
diversos pontos da moral cristã conservadora e acaba convencendo alguns cristãos. Os líderes
pentecostais reconhecem nisto uma ameaça à igreja de Cristo, pois tenderia a quebrar a linha
tênue, baseada na moralidade, que separa os cristãos do “mundo”.

Os líderes assembleianos, através de mecanismos de educação cristã, que são postos em


contraponto com a dita “educação secular”, tem ensinado em suas igrejas o combate às pautas
e discursos da modernidade, tais como a igualdade (ideologia) de gênero, a união homoafetiva,
o aborto, a sexualidade fora do casamento (fornicação), entre outros. Estas pautas e aqueles que
as propagam são reconhecidos formalmente como inimigos da igreja e são apontados como
instrumentos diabólicos, os crentes são convidados a se apartarem destes. Este discurso
dialético é bem perceptível em uma edição da revista Lições Bíblicas, da Casa Publicadora das
Assembleias de Deus (CPAD), publicada no 2º trimestre de 2018 e utilizada nas Escolas
Dominicais em várias AD’s pelo Brasil. O título da edição é “Valores cristãos: enfrentando as
questões morais de nosso tempo”. A ideia de combate a algo contrário já é exposta logo no
título, com o uso do termo “enfrentando”. Dentro da revista, 13 lições apontavam como o crente
deveria se posicionar, biblicamente e de acordo com os costumes da igreja, perante as questões
da modernidade aqui já apontadas, sempre as contrapondo à “ética cristã”. Logo na lição que
introduz a revista, uma passagem resume a percepção dialética de mundo construída:

O homem, imerso no pecado (Rm.3:9-12,23), separado de Deus (Is.59:2),


cegado pelo deus deste século (II Co.4:4), não pode ter senão comportamentos
e condutas que desagradam a Deus, estabelecendo-se, pela arrogância dos

15
BERGER, P. A dessecularização do mundo: uma visão global. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 21, n.
1, p. 9-24, 2000. p. 15.
7

homens, um relativismo ético, ou seja, um conjunto de condutas e de regras


de comportamento que se alteram conforme a conveniência e de acordo com
as circunstâncias, a gerar uma tolerância ilimitada, um verdadeiro caminho
largo, em que tudo é permitido (Mt.7:13). (Lições Bíblicas, 2º trim. 2018, lição
1).

Nada, talvez, demonstre mais essa necessidade de reafirmar suas doutrinas perante o
mundo moderno do que a formulação da Declaração de Fé das Assembleias de Deus, aprovado
na 43ª Assembleia Geral Ordinária da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil
(CGADB), em abril de 2017. Pela primeira vez, em 106 anos de AD no Brasil e 87 de CGADB,
viu-se a necessidade de sistematizar o sistema de crenças e doutrinas da denominação em um
documento único, como “instrumento maior para conscientizar toda a Igreja Assembleia de
Deus no Brasil.” (p. 13)16. Quanto ao contexto atual, o documento afirma em sua introdução:
“O contexto social e político por si só exige uma definição daquilo em que a Igreja crê e daquilo
que professa desde as suas origens.” (p. 17-18)17, deixando claro que a motivação na
sistematização das crenças da igreja é conscientizar politicamente os fiéis assembleianos. A
concepção dialética, nos moldes de Agostinho, é percebida em diversos pontos do documento,
principalmente nos concernentes ao “homem” e à “vida vindoura”. Falando sobre os dois
destinos possíveis ao espírito humano após a morte, a Declaração de Fé expõe: “Ensinamos
que, na morte física do ser humano, [...] os cristãos que partiram desse mundo são chamados de
‘espíritos dos justos aperfeiçoados’ (Hb 12.23), e os demais, de ‘espíritos em prisão’ (1 Pe
3.19).” (p. 81), fazendo distinção clara entre a perfeição que há de ser alcançada pelos cristãos
e a “prisão eterna” reservada aos incrédulos.

Os usos e costumes e a modernidade

Falar das doutrinas da Assembleia de Deus é também falar de seus usos e costumes, um
dos pilares da moralidade assembleiana e, talvez, o que mais caracterize publicamente o grupo,
entre outros segmentos pentecostais. A origem desses usos e costumes é incerta na história da
denominação, mas o fato é que sua existência se baseia em passagens bíblicas que falam sobre
santidade e separação do mundo, como a de 1 Tessalonicenses 5:2318. Para os pentecostais, a

16
COSTA, J. W. B. Apresentação da nossa Declaração de Fé. In: CGADB. Declaração de Fé das Assembleias
de Deus. Rio de Janeiro: CPAD, 2017. p. 13-14.
17
SILVA, E. S. Introdução. In: ibidem. p. 15-19.
18
“E o mesmo Deus de paz vos santifique em tudo; e todo o vosso espírito, e alma, e corpo, sejam plenamente
conservados irrepreensíveis para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo.” (1 Tes. 5:23, ACF).
8

santificação é um processo pelo qual o cristão passa após a conversão, através da ação do
Espírito Santo. Este processo de separação do pecado e do “mundo” é radical e deve abranger
corpo, alma e espírito, conforme a passagem bíblica supracitada. Há aqui um conceito de
santificação refletida no corpo e nas práticas cotidianas, que nem sempre existem em outros
grupos evangélicos. O primeiro registro de institucionalização dos costumes na Assembleia de
Deus data de 1946, quando a liderança da Assembleia de Deus em São Cristóvão, no Rio de
Janeiro, assinou um documento impondo regras de vestimentas às mulheres da igreja, com
ameaça de excomunhão às “irmãs” que não seguissem o estatuto. Entre as restrições de
vestimentas, destacam-se a proibição à depilação, ao uso de vestidos acima do joelho e mangas
acima do cotovelo, às pinturas de rosto, ao uso de cabelo curto e de joias em geral.19

O segundo estatuto que regulamenta os usos e costumes, expedido em assembleia geral


pela CGADB, é a “Resolução de Santo André”, datada de 1975. Esta resolução ratifica com
acréscimos as restrições às mulheres expedidas em 1946 e acrescenta restrições aos de sexo
masculino, como a proibição ao uso de cabelo e barba crescidos, uso de bermudas e camisetas,
etc; e alguns pontos válidos para ambos os gêneros, como restrição ao uso de aparelhos de rádio
e televisão, a jogos em geral e a bebidas alcoólicas. Vê-se uma adequação a novas tecnologias
e costumes surgidos no intervalo de tempo entre uma resolução e outra20. A última resolução
de usos e costumes, conhecida como “Resolução ELAD”, foi expedida em 1999 e é baseada na
relativização da maioria dos códigos enumerados. As restrições totais tornam-se “restrições ao
excesso”, mantendo-se apenas as proibições às bebidas alcoólicas, a tatuagens corporais
(acrescentada) e ao uso de “traje masculino” (calça comprida) pelas mulheres.21

Para além dos códigos institucionais, localmente, muitas igrejas e líderes moldaram os
usos e costumes de acordo com necessidades pontuais e/ou culturais22, vide o caso da
Assembleia de Deus no Brás, em São Paulo, que praticamente aboliu qualquer uso e costume
de suas igrejas23. Entretanto, os grupos mais conservadores, que observam a necessidade de
separação cada vez mais evidente da igreja de um mundo cada vez mais “decadente”, evocam

19
Cf. PANCIERI, A. C. G. Os usos e costumes nas Assembleias de Deus do Brasil. Unitas, Vitória, v. 5, n. 1, p.
96-107, 2017. p. 102.
20
Cf. ALMEIDA, J. B. O sagrado e o profano: construção e desconstrução dos usos e costumes nas
Assembléias de Deus no Brasil. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Presbiteriana
Mackenzie, São Paulo, 2007. p. 60-65.
21
Cf. PANCIERI, op. cit., p. 104.
22
Cf. ALMEIDA, op. cit., p. 83-109.
23
Cf. CAVALLERA, R. Filho do pastor Manoel Ferreira ganha fama com sua Assembléia de Deus moderna,
sem usos e costumes. Gospel Mais, 2011. Disponível em: <https://noticias.gospelmais.com.br/pastor-ferreira-
fama-assembleia-deus-usos-costumes-20041.html>. Acesso em: 7 jul. 2019.
9

este caráter expositor de santidade dos usos e costumes e voltam a afirmá-lo e a impô-lo sobre
os fiéis. O caso mais claro na decisão da Convenção dos Ministros e das Assembleias de Deus
no Estado de Mato Grosso (COMADEMAT) de reafirmar os pontos da “Resolução de Santo
André”, de 1975, em maio de 201924. A resolução na íntegra está na imagem 1.

Imagem 1: Resolução da COMADEMAT, maio de 2019 (Fonte: JM Notícia).

24
Cf. CONVENÇÃO evangélica emite resolução e proíbe ver TV, cortar cabelo e usar barba. JM Notícia, 2019.
Disponível em: <https://www.jmnoticia.com.br/2019/06/03/convencao-evangelica-emite-resolucao-e-proibe-ver-
tv-cortar-cabelo-e-usar-barba/>. Acesso em: 7 jul. 2019.
10

Considerações finais
Por fim, o que tento mostrar neste artigo é a relação ente a concepção dialética da
sociedade de seu tempo em Santo Agostinho e a mesma concepção da atualidade, sobretudo
entre líderes da Assembleia de Deus. Fica bem claro, a partir do exposto, a tentativa de reforçar
a fé cristã através de tratados teológicos, institucionais e políticos, artefatos educacionais e a
imposição de costumes em comum ao grupo na tentativa de se separar ao máximo do restante
da sociedade, assumindo a identidade de “povo santo e eleito do Senhor”, separado por ele para
“viver na glória”. Agostinho faz o mesmo ao escrever De Civitate Dei, perante a sociedade
romana duvidosa da religião cristã, exaltando o cristianismo como a “religião verdadeira”,
reafirmando sua fé.

Outro aspecto em comum em ambos é a percepção do “outro” nesta concepção dialética.


Para Agostinho, o “outro” é o pagão, infiel, o cidadão da “cidade terrena”, visto como diabólico,
inimigo da fé cristã. Para os assembleianos mais conservadores, o “outro” é aquele que defende
pautas da modernidade, como o casamento civil igualitário, o direito ao aborto, entre outras, e
é igualmente visto como infiel, diabólico e inimigo da fé cristã, deve ser combatido. Entre os
assembleianos, vê-se ainda o zelo para que a igreja não seja “corrompida” com essas doutrinas,
consideradas não apenas falsas, mas "satânicas”. A influência agostiniana e, consequentemente,
platônica na cosmovisão pentecostal, tem se tornado cada vez mais evidente conforme as pautas
“contrárias à fé” avançam no ideário popular e vê-se documentos como os aqui analisados, que
têm o objetivo, por vezes implícito, de não deixar que crentes assumam também este ideário.
11

Referências bibliográficas:

AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus. 2. ed. Lisboa: Fund. Calouste Gulbenkian,


1996/2000. 3 vols.

______. Confissões; De Magistro. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980. Coleção Os
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evangelica-emite-resolucao-e-proibe-ver-tv-cortar-cabelo-e-usar-barba/>. Acesso em: 7 jul.
2019.
12

CONVENÇÃO Geral das Assembleias de Deus no Brasil. Declaração de Fé das Assembleias


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