Sie sind auf Seite 1von 12

A SOCIEDADE COLONIAL NA AMÉRICA PORTUGUESA: ENTRE A

SUBORDINAÇÃO ABSOLUTA E A RELATIVA AUTONOMIA

João Mateus Ferreira Silva

Os estudos historiográficos sobre o Brasil colonial vêm passando por significativas


mudanças, talvez a de maior destaque seja a adoção do termo “império” para definir o conjunto de
relações que ocorriam no interior do complexo ultramarino português durante a Modernidade. Faz-
se necessária a opção pelo conceito de “império” quando a tradicional relação entre colônia e
metrópole se torna insuficiente na compreensão das complexidades das redes que interligavam os
domínios ultramarinos portugueses entre si e com o centro da monarquia. Os historiadores
agregaram às suas intepretações os variados objetos destes domínios: cidades, feitorias,
estabelecimentos, fortalezas, regiões, territórios, pessoas e bens administrados pela Coroa;
ampliando e pluralizando o contexto, comparado à forma como antes era compreendido. Neste
trabalho, buscaremos mostrar como o conceito e as dinâmicas do “império” romperam com
conceitos presentes em obras clássicas da historiografia, a partir das “noções de redes, conexões e
das relações entre centro e periferia; poder central e poder local.”1

O conceito de “império português” aparece já nas obras do historiador inglês Charles R.


Boxer, na década de 1960, para discutir o domínio português sobre áreas fisicamente distantes e
culturalmente distintas – “do Maranhão a Macau” – unindo redes comerciais, campanhas militares
e missionárias, e a administração imperial em si. Outro historiador britânico que envereda pelos
caminhos de Boxer é Anthony John R. Russell-Wood. Seu livro O mundo em movimento: os
portugueses na África, Ásia e América, é uma importante chave interpretativa para compreender a
complexidade do império ultramarino português.

1
Cf. BICALHO, Maria Fernanda. Da colônia ao império: um percurso historiográfico. In: SOUZA, Laura de Mello
e; FURTADO, Júnia Ferreira; BICALHO, Maria Fernanda (Orgs.). O Governo dos Povos. São Paulo: Alameda,
2009. p. 91-105. p. 91.
1
Historiografia clássica

A historiografia brasileira fica, durante algum tempo, aquém dos conceitos inicialmente
suscitados por historiadores britânicos, cujas obras receberam as primeiras traduções para o
português já no século XXI. Isto se deu porque os historiadores brasileiros tomaram, a partir da
década de 1940, um outro caminho na compreensão teórica do período colonial, que também tem
seu valor, influenciados pela tese do “sentido da colonização”, de Caio Prado Júnior em sua obra
Formação do Brasil Contemporâneo, que fundamentado em motivações econômicas, apresentava-
se como decorrência do desenvolvimento comercial europeu, visando a transição do feudalismo
para o capitalismo na Europa, ou, mais ainda, para possibilitar a revolução industrial inglesa no
século XIX2. Outro importante autor que se pautou na mesma análise foi Celso Furtado, que, nos
anos 1950, introduziu um aprimoramento ao modelo pradiano a partir da ideia de que as flutuações
econômicas da colônia eram ditadas pelo desenvolvimento do mercado europeu. Para Furtado, a
economia colonial era incapaz de ter dinâmica própria.

Uma vez que a economia colonial se organizava em torno de interesses a ela exteriores, a
contradição entre os dois polos dessa economia é inevitável. A teoria de Prado Júnior quis mostrar
que tudo, ou senão, os fatores de primeira ordem, giravam em torno de uma “mola mestra”, ou seja,
a economia voltada ao mercado externo. Nas palavras do próprio autor: “tudo mais que nela existe,
e que é aliás de pouca monta, será subsidiado e destinado unicamente a amparar e tornar possível
a realização daquele fim essencial”3. Desta forma, as pequenas propriedades produtoras, a
produção para subsistência e o trabalho autônomo possuíam ínfima importância se comparados aos
grandes latifúndios monocultores e adeptos da mão de obra escravizada, cujo estabelecimento era:

[…] em benefício exclusivo da metrópole; êste benefício se realiza pela produção


e exportação, para ela, de gêneros de que necessita, não só para si própria, mas
para comerciar com o supérfluo no estrangeiro; que, finalmente, o povoamento e
organização das colônias deve subordinar-se a tais objetivos, e não lhes compete
se ocuparem em atividades que não interessam o comércio metropolitano. Admite

2
Cf. FRAGOSO, João. Modelos explicativos da chamada ‘economia colonial’ e a ideia de Monarquia
Pluricontinental: notas de um ensaio. História, São Paulo, v. 31, n. 2, p. 106-145, 2012. p. 107.
3
Cf. PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo: colônia. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1961. p.
113.
2
no máximo, mas como exceção apenas, a produção de certos gêneros estritamente
necessários à subsistência da população e que seria impraticável trazer de fora.4

Em suma, as linhas historiográficas seguidas por Caio Prado Júnior e Celso Furtado, entre
outros, segundo Stuart B. Schwartz:

[…] chegaram a um consenso quanto à idéia do Brasil como uma colônia


mercantilista cuja economia se estruturava no latifúndio escravista orientado para
exportação, liderada por uma aristocracia de fazendeiros que determinava de
várias formas sua vida social, mesmo nas regiões não dedicadas a produtos de
exportação.5

Assim sendo, por esta perspectiva, teria se construído no Brasil um ambiente voltado às
necessidades alheias, caracterizado, principalmente, pela firme presença da escravidão africana, e
majoritariamente formado pelas grandes unidades monocultoras, com uma profusa quantidade de
trabalhadores a elas subordinados6. Seriam, portanto, os produtos disponíveis na colônia
interessantes ao comércio europeu, o interesse dos empresários reinóis em explorar esses produtos
e a mão de obra escravizada que resultam no “sentido da colonização” em Prado Júnior, e que,
desta forma, iriam determinar os rumos da história do Brasil do descobrimento em diante.

Era uma característica da historiografia brasileira, até os anos 1960, relacionar temas do
presente com as conjunturas do passado, buscando nisso um sentido para o contexto
contemporâneo. Para entender, portanto, os problemas enfrentados pelo Brasil naquele momento,
era necessário recorrer à história, sobretudo ao período colonial, encontrando na superação do
mesmo a “chave” para a solução dos percalços. Estes são os chamados “ensaios”, cuja característica
não é trabalhar com um tempo delimitado, mas sim com a inter-relação entre passado, presente e
futuro. As análises de Prado Júnior e Furtado consolidaram uma historiografia pouco contestada
até a década de 1980 e, ainda hoje, marcam presença em boa parte dos livros didáticos7.

4
PRADO JÚNIOR, op. cit., p. 120.
5
SCHWARTZ, Stuart B. Mentalidades e estruturas sociais no Brasil colonial: uma resenha coletiva. Economia e
Sociedade, Campinas, n. 13, p. 129-153, 1999. p. 129.
6
Cf. PRADO JÚNIOR, op. cit., p. 23.
7
Cf. MENDES, Claudinei Magno Magre. A historiografia brasileira relativa à colonização: uma nova tendência.
Academia.edu, s. d. p. 1-4.
3
Outro expoente dessa historiografia clássica é Fernando A. Novais, que compartilha da
visão de desenvolvimento da colônia a partir de fatores externos. Em Portugal e Brasil na crise do
Antigo Sistema Colonial, Novais formula, a partir da exploração do sentido mercantil da
colonização, o conceito de “pacto colonial”, fundamentado na prática do exclusivo metropolitano,
um mecanismo essencial para a explicação da relação de dependência e subordinação da colônia
para com a metrópole e do favorecimento de grupos de comerciantes estabelecidos no Reino, que
possibilitaram o processo de acumulação primitiva de capital, marco da economia mercantilista
europeia na era moderna. Segundo o autor:

O monopólio do comércio das colônias pela metrópole define o sistema colonial


porque é através dele que as colônias preenchem sua função histórica, isto é,
respondem aos estímulos que lhes deram origem, que formam a sua razão de ser,
enfim, que lhes dão sentido.8

Entende-se, desta forma, que o caráter mercantil da metrópole, em prol de seus próprios
interesses, condenava o desenvolvimento interno da colônia, ou seja, com o intuito de enriquecer,
a metrópole subordinava a colônia através de uma política exclusivista de extração de riquezas
autoritariamente9. Insere-se isso ao contexto mais amplo de acumulação de capital, afinal:

[…] uma parte significativa da massa de renda real gerada pela produção da
colônia é transferida pelo sistema de colonização para a metrópole e apropriada
pela burguesia mercantil; essa transferência corresponde às necessidades
históricas de expansão da economia capitalista de mercado na etapa de sua
formação.10

A linha de análise seguida por Novais privilegia os aspectos econômicos do processo de


colonização. Em termos políticos, o “pacto colonial”, segundo Novais, era fundado nas relações
entre dois elementos: a metrópole como o centro das decisões e a colônia, totalmente subordinada
à primeira. O que Novais faz é uma análise estrutural, de cunho marxista, que, embora se atente
aos aspectos políticos e administrativos dos domínios portugueses na América, relega a um plano
de subordinação todo o complexo formado pelas redes de poder, de parentesco, de interesses e de

8
NOVAIS, Fernando A. O Brasil nos quadros do Antigo Sistema Colonial. In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.).
Brasil em Perspectiva. 9. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Difel, 1977. p. 47-63. p. 51, grifos do autor.
9
Cf. FRAGOSO, op. cit., 2012, p. 107-108.
10
NOVAIS, op. cit., p. 52.
4
negócios entre o centro da monarquia e as várias regiões ultramarinas do império português, cuja
análises hoje se tornam cruciais para os arranjos da dinâmica imperial.

Sumariamente, ao analisar a historiografia brasileira tradicional, observamos que seus


expoentes elaboraram um modelo historiográfico tendo como princípio o entendimento da história
do Brasil em sua relação com Portugal. Mais que isso, entenderam que as estruturas econômicas
da colônia desenvolveram-se em prol da metrópole e do contexto histórico no qual se inseria. Para
Fernando Novais, “é desta estrutura básica que, a nosso ver, se tem de partir, se se pretende
compreender os movimentos históricos, em todos os seus níveis, dos três séculos de nossa formação
colonial, […]”11

Novas abordagens

As novas interpretações das relações econômicas e de poder no império português surgiram


há poucos anos, quando historiadores voltaram suas pesquisas às bibliotecas e arquivos públicos,
sobretudo nas cidades do Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e Minas Gerais, antigos centros de
poder no período colonial e que, portanto, possuem um vasto acervo de memórias, documentos,
manuscritos e inventários remontantes aos séculos de colonização. Essas fontes acabaram por
revitalizar a análise histórica, ofertando aos historiadores do Brasil colonial novas possibilidades
de interpretação e escrita dessa história e trazendo a retomada de aspectos dos estudos coloniais
que, durante longo tempo, não tiveram prioridade nos trabalhos historiográficos, sendo “relegados
a um segundo plano pouco honroso.”12

Um grupo de historiadores brasileiros se destaca dentre os expoentes desta nova escola, tais
como João Fragoso, Antônio Carlos Jucá de Sampaio e Manolo Florentino, entre outros.
Historiadores portugueses também agregam a esta nova análise, destacando-se António Manuel
Hespanha e Nuno Gonçalo Monteiro, que não chegam a centrar suas análises no Brasil, atendo-se
mais a explorarem Portugal na era moderna, mas inevitavelmente suas obras acabam respingando
na América portuguesa e complementando as investigações por aqui feitas. Esses novos estudos

11
NOVAIS, op. cit., p. 63.
12
SOUZA, Laura de Mello e. Política e administração colonial: problemas e perspectivas. In: idem. O sol e a
sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Cia. das Letras, 2006. p. 27-
77. p. 27.
5
têm por característica a expansão dos campos de análise, mostrando um período colonial
multifacetado. São abordados, além da economia, a administração, a diplomacia, os aspectos
culturais, as relações de poder, etc., suscitando inúmeros elementos importantes para a
compreensão histórica do período analisado, mas o aspecto mais enunciado é, justamente, a ruptura
com as abordagens históricas tradicionais.

Enquanto as análises anteriores pautavam-se na dependência da colônia em relação à sua


metrópole, através do comércio exclusivamente exterior, os estudos de João Fragoso, por exemplo,
observam as estruturas internas da colônia, inclusive explicitando uma relativa autonomia frente
aos compassos do mercado externo. Mais do que trazer uma nova interpretação, Fragoso
confrontou a tese pradiana, visto que as novas análises proporcionaram não apenas o surgimento
de novos elementos, mas fizeram emergir novas abordagens. Desta forma, um simples olhar
panorâmico sobre as obras da nova historiografia revela uma significativa distância entre as duas
abordagens. A seguir, esmiuçaremos algumas das reflexões e conclusões apontadas por essas novas
interpretações da história do Brasil colonial.

As críticas às abordagens feitas por Caio Prado Júnior, Celso Furtado e Fernando Novais
surgem a partir da década de 1970 e tomam corpo nos anos 1990. Historiadores vinculados à
chamada Escola do Rio foram os incumbidos de repensar os conceitos trazidos pelos autores
clássicos13. Dentre os objetivos desses pesquisadores, um dos principais era demonstrar que “a
empresa colonial fez aparecer sociedades com estruturas internas que possuem uma lógica que não
se reduz à sua vinculação externa com o comércio atlântico e com as suas respectivas metrópoles
políticas […]”14. Em tais estudos, a colônia teria desenvolvido mecanismos próprios,
independentes do mercado externo e, notou-se também, que o controle exercido pela metrópole
não era total, sendo frequentemente confrontado e contrariado pelos órgãos locais de poder político.
De acordo com A. J. R. Russell-Wood:

O que os historiadores têm demonstrado é que a visão de pacto colonial, baseada


em posições dualistas, polarizadas, ou mesmo bipolarizadas, necessita ser
recolocada a partir de uma perspectiva mais aberta, mais holista e flexível, que

13
Cf. SILVA, Caio Cobianchi da; SILVA, Karla Maria. O Brasil colonial: possibilidades interpretativas. Mosaico,
Goiânia, v. 8, n. 1, p. 59-64, 2015. p. 62.
14
CARDOSO, Ciro Flamarion S.; BRIGNOLI, Héctor Pérez. História Econômica da América Latina. Rio de
Janeiro: Graal, 1983. p. 63.
6
seja mais sensível à fluidez, permeabilidade e porosidade dos relacionamentos
pessoais, do comércio, da sociedade e do governo dos impérios, assim como da
variedade e nuança de práticas e crenças religiosas.15

O foco da análise migrou da dicotomia colônia-metrópole para a dinâmica interna da


América portuguesa, observando-se as necessidades das pessoas que nela viviam. Uma das
principais conclusões destes estudos está na existência de um mercado interno de grande dimensão,
além da compreensão de que, a partir de determinado contexto, o controle do comércio de africanos
passou a ser feito a partir da própria América16, pelos comerciantes de grosso trato aqui
estabelecidos. Isso possibilitou a acumulação interna de capital, contrariando a tese de Fernando
Novais de que todo o excedente colonial tinha a metrópole como destino. Vale ressaltar que os
estudos de Fragoso e de outros historiadores da Escola do Rio não rejeitam completamente a
perspectiva pradiana. Na introdução de sua principal obra, João Fragoso reforça que o escravismo
e a exportação eram, de fato, traços estruturais da economia no sentido mais amplo, entretanto, esta
economia era mais complexa do que propunham os clássicos modelos explicativos, pois outros
traços estruturais, além das formas de produção escravista e monocultora, a compunha17.

Dadas as variadas formas de produção e reprodução de poder, João Fragoso cunha o


conceito de governo polissinodal, ou seja, uma formação social corporativa. O rei constituía a
cabeça desse corpo social e não se confundia com ele. Sua função era mais de árbitro nos embates
entre os diversos “sínodos” da sociedade e distribuidor das benesses e mercês. O poder era
exercido, em suas diversas instâncias, pelos membros das elites que ocupavam os “cargos
honrosos” nas repúblicas (entende-se por municípios). Além do poder local, prevalecia a
dominação régia através do Governo Geral e, posteriormente, Vice-reino. Fragoso deixa claro que
havia conflitos e negociações entre essas diversas instâncias autônomas de poder, às quais
incluíam-se os poderes concelhios, e também entre eles e a Coroa, ao que Fragoso atribui um outro
conceito chamado de “monarquia pluricontinental”, que está, de certa forma, atrelada à ideia de
“império português”, compreendendo as conquistas ultramarinas lusas em três continentes18.

15
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Brazilian Archives and Recent Historiography on Colonial Brazil. Latin American
Research Review, v. 36, n. 1, p. 75-105, 2001. p. 89 apud. SILVA; SILVA, op. cit., p. 62.
16
Cf. MENDES, op. cit., p. 17-18.
17
Cf. FRAGOSO, João. Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de
Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. p. 25 apud. SILVA; SILVA, op. cit., p. 62.
18
Cf. FRAGOSO, op. cit., 2012, p. 117-118.
7
Por este e outros motivos, no interior da ideia sistêmica de monarquia
pluricontinental devemos sublinhar a ação dos municípios entendidos como
repúblicas. Especialmente nas conquistas, pois nelas estava a escravidão e,
portanto, o sustento da monarquia. Tanto em Portugal como nas conquistas, o
município surgia como poder concorrente, pois os oficiais da Câmara eram
escolhidos por um colégio eleitoral formado por homens bons, cabendo a eles o
cuidado com o bem público.19

Esta perspectiva suscitada por Fragoso influencia reinterpretações historiográficas do


contexto político nas revoltas e inconfidências na Capitania das Minas Gerais, no século XVIII. O
autor salienta que no período áureo da exploração aurífera nas Minas, a arrecadação dos quintos
do ouro era feita pelas elites locais de cada município, e não por oficiais régios, mas sim por
funcionários ligados às Câmaras Municipais20. Surgem, portanto, novas análises, como as feitas
por João Pinto Furtado. Em contraponto à ideia clássica de contestação da ordem absolutista
monárquica através das revoltas contra os impostos abusivos sobre o ouro recolhidos pela Coroa,
influenciados pelo liberalismo europeu e com um projeto político nacional pautado no
republicanismo, Pinto Furtado afirma que esses movimentos se davam em torno de contestações
de ordem local, pontual e cotidiana, como crises de abastecimento, por exemplo. O máximo de
organização política contestado era o local ou o regional, haja vista os colonos compreenderem que
eram os governadores da capitania que regulavam os impostos21. A própria ideia de absolutismo é
também contestada, suscitando a ideia de corporativismo social, como já vimos.

Compreendendo ainda mais a lógica interna dessa sociedade, levemos em conta a condição
do Brasil enquanto parte constituinte do Império Ultramarino português. Entendendo que os
homens de todo o império compartilhavam visões de mundo particulares, determinadas pela intensa
circulação de mercadorias, pessoas e ideias. A nova abordagem historiográfica afirma que, apesar

19
Ibidem, p. 119, grifo do autor.
20
FRAGOSO, op. cit., 2012, p. 118.
21
FURTADO, João Pinto. “Viva o rei, viva o povo, e morra o governador”: tensão política e práticas de governo nas
Minas do Setecentos. In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral (Orgs.). Modos de Governar:
idéias e práticas políticas no império português. 2. ed. São Paulo: Alameda, 2007. p. 403-412.
8
das singularidades de cada porção imperial, todas elas “acabaram resultando na formação de
sociedades reguladas pela economia e pela cultura política do Antigo Regime português.”22

Guilherme Pereira das Neves e Ronaldo Vainfas definem “Antigo Regime” como uma
sociedade “estruturada por uma complexa hierarquia de status, em que nem sempre a riqueza
exercia papel determinante, e na qual era a busca da distinção que comandava as aspirações de
ascensão social.”23 Ou seja, a reprodução dessa sociedade hierarquizada dependia dos favores
régios, sobretudo, pois enquanto a Coroa assegurava sua integridade, determinava quem faria parte
do império e quem seria excluído, tornando a sociedade, em seus diversos segmentos, dependente
da sua vontade. Segundo Russell-Wood: “na raiz deste processo emergia o sistema que
caracterizava o Antigo Regime e que assumia a de mercês reais, de doações régias, concessões de
direitos monopolistas, concessão de privilégios e grupos corporativos e isenções a outros setores”24.

Como já vimos, em Fernando Novais, a época das navegações significava a transição do


feudalismo para o capitalismo na Europa, através da acumulação primitiva de capital. Entretanto,
João Fragoso contrapõe essa ideia, mostrando que as conquistas ultramarinas reforçaram a
permanência das antigas estruturas econômicas e de poder, e não a transição. A sociedade
portuguesa do período dos descobrimentos seria aristocrática em sua essência e os privilegiados,
obviamente, tinham interesse em manter a ordem hierárquica. Quando da crise agrária em Portugal,
a nobreza debilitada viu uma chance de subsistência na centralização do Estado. Assim, o Estado
forte pôde recolher os impostos sobre a totalidade da população e acumular recursos o suficiente
para o investimento no mercado. Entretanto, ao atuar como um “empresário”, o Estado incentivava
o crescimento, não da produção, mas da burocracia, surgindo “como variável fundamental para a
reprodução da sociedade pré-capitalista”25.

A partir dessa conjuntura, configuraram-se três estamentos: o Estado, atuando como


empresário; a aristocracia, disposta a aderir ao mercantilismo; e a burguesia, que a partir da
associação com o Estado viu a possibilidade de ascender às posições de prestígio social. Entende-

22
FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). Antigo Regime nos Trópicos:
a dinâmica imperial portuguesa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 23-24 apud. SILVA; SILVA, op.
cit.; p. 62.
23
NEVES, Guilherme Pereira das; VAINFAS, Ronaldo. Antigo Regime. In: VAINFAS, Ronaldo (Dir.). Dicionário
do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 44-46. p. 44, grifos dos autores.
24
RUSSELL-WOOD, op. cit., p. 16-17 apud. SILVA; SILVA, op. cit., p. 62-63.
25
FRAGOSO, op. cit., 1998, p. 81 apud. Ibidem, p. 63.
9
se por isso que, o investimento na exploração marítima tinha por objetivo “o surgimento e a
manutenção de uma estrutura parasitária, consubstanciada em elementos como a hipertrofia do
Estado e a hegemonia do fidalgo-mercador e de sua contrapartida, o mercador-fidalgo”26

Deste modo, temos de um lado a interpretação de Fernando Novais, segundo a qual os


descobrimentos teriam dado início a uma nova fase da história portuguesa, com a burguesia
ascendida e o capitalismo em desenvolvimento, e a análise de João Fragoso, apontando o
favorecimento dos descobrimentos à permanência das antigas estruturas. Além do mais, a própria
burguesia, para inserir-se aos meios da aristocracia, utilizaria aparatos do Antigo Regime para tal.
Esta ótica é importante para entender os desencadeamentos no âmbito colonial, já que as pessoas
que para a colônia se dirigiram estavam imersas nesse contexto. Segundo Russell-Wood, da nova
historiografia “destaca-se uma reavaliação do Antigo Regime e do grau no qual o Brasil e outras
partes do império encontravam-se perpassados pelas mentalidades e práticas do Antigo Regime”27.

Deve-se destacar, portanto, duas contribuições de pesquisas da dita Escola do Rio para se
pensar, ou melhor, se repensar a América portuguesa: primeiramente, a análise dos mecanismos
internos da sociedade colonial, buscando compreender como que os portugueses estabelecidos no
além-mar lá desenvolveram mecanismos e instituições que se adequavam às necessidades reais dos
mesmos; e, em segundo, refletir como as práticas de Antigo Regime se espelharam na sociedade
colonial e ajudaram a configurá-la, enquanto parte de um “Império ultramarino” ou uma
“monarquia pluricontinental”; ambas possibilitando novas formas de compreensão e análise das
formas de agir e pensar dos indivíduos inseridos na sociedade do período colonial.

26
FRAGOSO, op. cit., 1998, p. 81 apud. SILVA; SILVA, op. cit., p. 63.
27
RUSSELL-WOOD, op. cit., p. 16 apud. Ibidem.
10
Referências bibliográficas:

BICALHO, Maria Fernanda. Da colônia ao império: um percurso historiográfico. In: SOUZA,


Laura de Mello e; FURTADO, Júnia Ferreira; BICALHO, Maria Fernanda (Orgs.). O Governo
dos Povos. São Paulo: Alameda, 2009. p. 91-105.

CARDOSO, Ciro Flamarion S.; BRIGNOLI, Héctor Pérez. História Econômica da América
Latina. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

FRAGOSO, João. Modelos explicativos da chamada ‘economia colonial’ e a ideia de Monarquia


Pluricontinental: notas de um ensaio. História, São Paulo, v. 31, n. 2, p. 106-145, 2012.

MENDES, Claudinei Magno Magre. A historiografia brasileira relativa à colonização: uma nova
tendência. Academia.edu, s. d. Disponível em:
<https://www.academia.edu/9928120/A_historiografia_brasileira_relativa_à_colonização._Uma_
nova_tendência>. Acesso em: 10 jul. 2019.

NEVES, Guilherme Pereira das; VAINFAS, Ronaldo. Antigo Regime. In: VAINFAS, Ronaldo
(Dir.). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 44-46.

NOVAIS, Fernando A. O Brasil nos quadros do Antigo Sistema Colonial. In: MOTA, Carlos
Guilherme (Org.). Brasil em Perspectiva. 9. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Difel, 1977. p. 47-63.

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo: colônia. 6. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1961.

11
SCHWARTZ, Stuart B. Mentalidades e estruturas sociais no Brasil colonial: uma resenha
coletiva. Economia e Sociedade, Campinas, n. 13, p. 129-153, 1999.

SILVA, Caio Cobianchi da; SILVA, Karla Maria. O Brasil colonial: possibilidades
interpretativas. Mosaico, Goiânia, v. 8, n. 1, p. 59-64, 2015.

SOUZA, Laura de Mello e. Política e administração colonial: problemas e perspectivas. In:


______. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII. São
Paulo: Cia. das Letras, 2006. p. 27-77.

12

Das könnte Ihnen auch gefallen