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Cf. BICALHO, Maria Fernanda. Da colônia ao império: um percurso historiográfico. In: SOUZA, Laura de Mello
e; FURTADO, Júnia Ferreira; BICALHO, Maria Fernanda (Orgs.). O Governo dos Povos. São Paulo: Alameda,
2009. p. 91-105. p. 91.
1
Historiografia clássica
A historiografia brasileira fica, durante algum tempo, aquém dos conceitos inicialmente
suscitados por historiadores britânicos, cujas obras receberam as primeiras traduções para o
português já no século XXI. Isto se deu porque os historiadores brasileiros tomaram, a partir da
década de 1940, um outro caminho na compreensão teórica do período colonial, que também tem
seu valor, influenciados pela tese do “sentido da colonização”, de Caio Prado Júnior em sua obra
Formação do Brasil Contemporâneo, que fundamentado em motivações econômicas, apresentava-
se como decorrência do desenvolvimento comercial europeu, visando a transição do feudalismo
para o capitalismo na Europa, ou, mais ainda, para possibilitar a revolução industrial inglesa no
século XIX2. Outro importante autor que se pautou na mesma análise foi Celso Furtado, que, nos
anos 1950, introduziu um aprimoramento ao modelo pradiano a partir da ideia de que as flutuações
econômicas da colônia eram ditadas pelo desenvolvimento do mercado europeu. Para Furtado, a
economia colonial era incapaz de ter dinâmica própria.
Uma vez que a economia colonial se organizava em torno de interesses a ela exteriores, a
contradição entre os dois polos dessa economia é inevitável. A teoria de Prado Júnior quis mostrar
que tudo, ou senão, os fatores de primeira ordem, giravam em torno de uma “mola mestra”, ou seja,
a economia voltada ao mercado externo. Nas palavras do próprio autor: “tudo mais que nela existe,
e que é aliás de pouca monta, será subsidiado e destinado unicamente a amparar e tornar possível
a realização daquele fim essencial”3. Desta forma, as pequenas propriedades produtoras, a
produção para subsistência e o trabalho autônomo possuíam ínfima importância se comparados aos
grandes latifúndios monocultores e adeptos da mão de obra escravizada, cujo estabelecimento era:
2
Cf. FRAGOSO, João. Modelos explicativos da chamada ‘economia colonial’ e a ideia de Monarquia
Pluricontinental: notas de um ensaio. História, São Paulo, v. 31, n. 2, p. 106-145, 2012. p. 107.
3
Cf. PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo: colônia. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1961. p.
113.
2
no máximo, mas como exceção apenas, a produção de certos gêneros estritamente
necessários à subsistência da população e que seria impraticável trazer de fora.4
Em suma, as linhas historiográficas seguidas por Caio Prado Júnior e Celso Furtado, entre
outros, segundo Stuart B. Schwartz:
Assim sendo, por esta perspectiva, teria se construído no Brasil um ambiente voltado às
necessidades alheias, caracterizado, principalmente, pela firme presença da escravidão africana, e
majoritariamente formado pelas grandes unidades monocultoras, com uma profusa quantidade de
trabalhadores a elas subordinados6. Seriam, portanto, os produtos disponíveis na colônia
interessantes ao comércio europeu, o interesse dos empresários reinóis em explorar esses produtos
e a mão de obra escravizada que resultam no “sentido da colonização” em Prado Júnior, e que,
desta forma, iriam determinar os rumos da história do Brasil do descobrimento em diante.
Era uma característica da historiografia brasileira, até os anos 1960, relacionar temas do
presente com as conjunturas do passado, buscando nisso um sentido para o contexto
contemporâneo. Para entender, portanto, os problemas enfrentados pelo Brasil naquele momento,
era necessário recorrer à história, sobretudo ao período colonial, encontrando na superação do
mesmo a “chave” para a solução dos percalços. Estes são os chamados “ensaios”, cuja característica
não é trabalhar com um tempo delimitado, mas sim com a inter-relação entre passado, presente e
futuro. As análises de Prado Júnior e Furtado consolidaram uma historiografia pouco contestada
até a década de 1980 e, ainda hoje, marcam presença em boa parte dos livros didáticos7.
4
PRADO JÚNIOR, op. cit., p. 120.
5
SCHWARTZ, Stuart B. Mentalidades e estruturas sociais no Brasil colonial: uma resenha coletiva. Economia e
Sociedade, Campinas, n. 13, p. 129-153, 1999. p. 129.
6
Cf. PRADO JÚNIOR, op. cit., p. 23.
7
Cf. MENDES, Claudinei Magno Magre. A historiografia brasileira relativa à colonização: uma nova tendência.
Academia.edu, s. d. p. 1-4.
3
Outro expoente dessa historiografia clássica é Fernando A. Novais, que compartilha da
visão de desenvolvimento da colônia a partir de fatores externos. Em Portugal e Brasil na crise do
Antigo Sistema Colonial, Novais formula, a partir da exploração do sentido mercantil da
colonização, o conceito de “pacto colonial”, fundamentado na prática do exclusivo metropolitano,
um mecanismo essencial para a explicação da relação de dependência e subordinação da colônia
para com a metrópole e do favorecimento de grupos de comerciantes estabelecidos no Reino, que
possibilitaram o processo de acumulação primitiva de capital, marco da economia mercantilista
europeia na era moderna. Segundo o autor:
Entende-se, desta forma, que o caráter mercantil da metrópole, em prol de seus próprios
interesses, condenava o desenvolvimento interno da colônia, ou seja, com o intuito de enriquecer,
a metrópole subordinava a colônia através de uma política exclusivista de extração de riquezas
autoritariamente9. Insere-se isso ao contexto mais amplo de acumulação de capital, afinal:
[…] uma parte significativa da massa de renda real gerada pela produção da
colônia é transferida pelo sistema de colonização para a metrópole e apropriada
pela burguesia mercantil; essa transferência corresponde às necessidades
históricas de expansão da economia capitalista de mercado na etapa de sua
formação.10
8
NOVAIS, Fernando A. O Brasil nos quadros do Antigo Sistema Colonial. In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.).
Brasil em Perspectiva. 9. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Difel, 1977. p. 47-63. p. 51, grifos do autor.
9
Cf. FRAGOSO, op. cit., 2012, p. 107-108.
10
NOVAIS, op. cit., p. 52.
4
negócios entre o centro da monarquia e as várias regiões ultramarinas do império português, cuja
análises hoje se tornam cruciais para os arranjos da dinâmica imperial.
Novas abordagens
Um grupo de historiadores brasileiros se destaca dentre os expoentes desta nova escola, tais
como João Fragoso, Antônio Carlos Jucá de Sampaio e Manolo Florentino, entre outros.
Historiadores portugueses também agregam a esta nova análise, destacando-se António Manuel
Hespanha e Nuno Gonçalo Monteiro, que não chegam a centrar suas análises no Brasil, atendo-se
mais a explorarem Portugal na era moderna, mas inevitavelmente suas obras acabam respingando
na América portuguesa e complementando as investigações por aqui feitas. Esses novos estudos
11
NOVAIS, op. cit., p. 63.
12
SOUZA, Laura de Mello e. Política e administração colonial: problemas e perspectivas. In: idem. O sol e a
sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Cia. das Letras, 2006. p. 27-
77. p. 27.
5
têm por característica a expansão dos campos de análise, mostrando um período colonial
multifacetado. São abordados, além da economia, a administração, a diplomacia, os aspectos
culturais, as relações de poder, etc., suscitando inúmeros elementos importantes para a
compreensão histórica do período analisado, mas o aspecto mais enunciado é, justamente, a ruptura
com as abordagens históricas tradicionais.
As críticas às abordagens feitas por Caio Prado Júnior, Celso Furtado e Fernando Novais
surgem a partir da década de 1970 e tomam corpo nos anos 1990. Historiadores vinculados à
chamada Escola do Rio foram os incumbidos de repensar os conceitos trazidos pelos autores
clássicos13. Dentre os objetivos desses pesquisadores, um dos principais era demonstrar que “a
empresa colonial fez aparecer sociedades com estruturas internas que possuem uma lógica que não
se reduz à sua vinculação externa com o comércio atlântico e com as suas respectivas metrópoles
políticas […]”14. Em tais estudos, a colônia teria desenvolvido mecanismos próprios,
independentes do mercado externo e, notou-se também, que o controle exercido pela metrópole
não era total, sendo frequentemente confrontado e contrariado pelos órgãos locais de poder político.
De acordo com A. J. R. Russell-Wood:
13
Cf. SILVA, Caio Cobianchi da; SILVA, Karla Maria. O Brasil colonial: possibilidades interpretativas. Mosaico,
Goiânia, v. 8, n. 1, p. 59-64, 2015. p. 62.
14
CARDOSO, Ciro Flamarion S.; BRIGNOLI, Héctor Pérez. História Econômica da América Latina. Rio de
Janeiro: Graal, 1983. p. 63.
6
seja mais sensível à fluidez, permeabilidade e porosidade dos relacionamentos
pessoais, do comércio, da sociedade e do governo dos impérios, assim como da
variedade e nuança de práticas e crenças religiosas.15
15
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Brazilian Archives and Recent Historiography on Colonial Brazil. Latin American
Research Review, v. 36, n. 1, p. 75-105, 2001. p. 89 apud. SILVA; SILVA, op. cit., p. 62.
16
Cf. MENDES, op. cit., p. 17-18.
17
Cf. FRAGOSO, João. Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de
Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. p. 25 apud. SILVA; SILVA, op. cit., p. 62.
18
Cf. FRAGOSO, op. cit., 2012, p. 117-118.
7
Por este e outros motivos, no interior da ideia sistêmica de monarquia
pluricontinental devemos sublinhar a ação dos municípios entendidos como
repúblicas. Especialmente nas conquistas, pois nelas estava a escravidão e,
portanto, o sustento da monarquia. Tanto em Portugal como nas conquistas, o
município surgia como poder concorrente, pois os oficiais da Câmara eram
escolhidos por um colégio eleitoral formado por homens bons, cabendo a eles o
cuidado com o bem público.19
Compreendendo ainda mais a lógica interna dessa sociedade, levemos em conta a condição
do Brasil enquanto parte constituinte do Império Ultramarino português. Entendendo que os
homens de todo o império compartilhavam visões de mundo particulares, determinadas pela intensa
circulação de mercadorias, pessoas e ideias. A nova abordagem historiográfica afirma que, apesar
19
Ibidem, p. 119, grifo do autor.
20
FRAGOSO, op. cit., 2012, p. 118.
21
FURTADO, João Pinto. “Viva o rei, viva o povo, e morra o governador”: tensão política e práticas de governo nas
Minas do Setecentos. In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral (Orgs.). Modos de Governar:
idéias e práticas políticas no império português. 2. ed. São Paulo: Alameda, 2007. p. 403-412.
8
das singularidades de cada porção imperial, todas elas “acabaram resultando na formação de
sociedades reguladas pela economia e pela cultura política do Antigo Regime português.”22
Guilherme Pereira das Neves e Ronaldo Vainfas definem “Antigo Regime” como uma
sociedade “estruturada por uma complexa hierarquia de status, em que nem sempre a riqueza
exercia papel determinante, e na qual era a busca da distinção que comandava as aspirações de
ascensão social.”23 Ou seja, a reprodução dessa sociedade hierarquizada dependia dos favores
régios, sobretudo, pois enquanto a Coroa assegurava sua integridade, determinava quem faria parte
do império e quem seria excluído, tornando a sociedade, em seus diversos segmentos, dependente
da sua vontade. Segundo Russell-Wood: “na raiz deste processo emergia o sistema que
caracterizava o Antigo Regime e que assumia a de mercês reais, de doações régias, concessões de
direitos monopolistas, concessão de privilégios e grupos corporativos e isenções a outros setores”24.
22
FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). Antigo Regime nos Trópicos:
a dinâmica imperial portuguesa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 23-24 apud. SILVA; SILVA, op.
cit.; p. 62.
23
NEVES, Guilherme Pereira das; VAINFAS, Ronaldo. Antigo Regime. In: VAINFAS, Ronaldo (Dir.). Dicionário
do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 44-46. p. 44, grifos dos autores.
24
RUSSELL-WOOD, op. cit., p. 16-17 apud. SILVA; SILVA, op. cit., p. 62-63.
25
FRAGOSO, op. cit., 1998, p. 81 apud. Ibidem, p. 63.
9
se por isso que, o investimento na exploração marítima tinha por objetivo “o surgimento e a
manutenção de uma estrutura parasitária, consubstanciada em elementos como a hipertrofia do
Estado e a hegemonia do fidalgo-mercador e de sua contrapartida, o mercador-fidalgo”26
Deve-se destacar, portanto, duas contribuições de pesquisas da dita Escola do Rio para se
pensar, ou melhor, se repensar a América portuguesa: primeiramente, a análise dos mecanismos
internos da sociedade colonial, buscando compreender como que os portugueses estabelecidos no
além-mar lá desenvolveram mecanismos e instituições que se adequavam às necessidades reais dos
mesmos; e, em segundo, refletir como as práticas de Antigo Regime se espelharam na sociedade
colonial e ajudaram a configurá-la, enquanto parte de um “Império ultramarino” ou uma
“monarquia pluricontinental”; ambas possibilitando novas formas de compreensão e análise das
formas de agir e pensar dos indivíduos inseridos na sociedade do período colonial.
26
FRAGOSO, op. cit., 1998, p. 81 apud. SILVA; SILVA, op. cit., p. 63.
27
RUSSELL-WOOD, op. cit., p. 16 apud. Ibidem.
10
Referências bibliográficas:
CARDOSO, Ciro Flamarion S.; BRIGNOLI, Héctor Pérez. História Econômica da América
Latina. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
MENDES, Claudinei Magno Magre. A historiografia brasileira relativa à colonização: uma nova
tendência. Academia.edu, s. d. Disponível em:
<https://www.academia.edu/9928120/A_historiografia_brasileira_relativa_à_colonização._Uma_
nova_tendência>. Acesso em: 10 jul. 2019.
NEVES, Guilherme Pereira das; VAINFAS, Ronaldo. Antigo Regime. In: VAINFAS, Ronaldo
(Dir.). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 44-46.
NOVAIS, Fernando A. O Brasil nos quadros do Antigo Sistema Colonial. In: MOTA, Carlos
Guilherme (Org.). Brasil em Perspectiva. 9. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Difel, 1977. p. 47-63.
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo: colônia. 6. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1961.
11
SCHWARTZ, Stuart B. Mentalidades e estruturas sociais no Brasil colonial: uma resenha
coletiva. Economia e Sociedade, Campinas, n. 13, p. 129-153, 1999.
SILVA, Caio Cobianchi da; SILVA, Karla Maria. O Brasil colonial: possibilidades
interpretativas. Mosaico, Goiânia, v. 8, n. 1, p. 59-64, 2015.
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