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INTRODUÇÃO
Essa pesquisa analisa as idéias abolicionistas do direito penal, através de seu conceito,
origem e desenvolvimento, seus principais defensores e opressores e respectivas sustentações.
Com esse enfoque, disserta sobre os pontos positivos e negativos de seus fundamentos para,
então, concluir se a teoria abolicionista se ajusta a realidade atual brasileira, ou se há outra
política criminal mais adequada e o que esta sustenta. Ademais, a ciência penal é colocada em
discussão através do movimento abolicionista, o qual defende algumas soluções extremas, o
que propicia expor a todos que o direito penal não atinge a maioria de seus objetivos e, assim,
estimular um senso crítico social que minimize a inclinação à vingança punitiva arraigada na
consciência popular.
justiça criminal, sem perder de vista a abordagem do direito penal, o qual é considerado seu
núcleo central.
Como explica Chauí, para Thomas Hobbes (século XVII) e Jacques Rousseau (século
XVIII), essas condições configuravam o chamado “estado de natureza”, o qual era visto de
maneira um pouco distinta entre os dois pensadores. Hobbes defendia que o “estado de
natureza” era a maneira de viver isoladamente numa situação permanente de guerra, onde
predominava o medo da morte violenta. Dessa forma, como meio de defesa surgiram as armas
e iniciou-se a demarcação de territórios. Entretanto, tal atitude era inútil, pois não havia
garantias, e a única segurança era que o mais forte sempre vencia.2 Já Rousseau aduzia que
1
COTRIM, Gilberto. História global: Brasil e geral. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 13.
2
CHAUÍ, Marilena. Filosofia. 6 ed. São Paulo: Ática, 1997, p. 399.
3
Idem.
12
coordenarem entre si, diante da desagregação e da desorganização em que viviam, pois esses
fatores retardavam o seu desenvolvimento.
Foi a partir da idade dos metais4, ainda na época pré-histórica, que surgiu a civilização
como conseqüência de uma organização social de homens que fatigados
4
COTRIM, Gilberto, op. cit. p. 16.
5
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Editora Martin Claret, 2003, p. 19.
6
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 19 ed. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 76.
13
[...] pode-se dizer que existem dois fatores determinantes para a disciplina
do controle social. O primeiro, a fixação de valores tidos como consensuais,
que se sobrepõe à vontade individual, concretizando uma pressão sobre o
indivíduo para que tenha certos comportamentos e, principalmente, se
abstenha de outros. Essa determinação é a base do conceito de bem-estar
comum. O segundo, consectário do primeiro: a necessidade de garantir a
ordem contra os comportamentos desviantes.8
O controle possui total vinculação com a existência da vida social, pois ele surge a
partir da sociedade e para ela. Lakatos referencia que, na concepção do sociólogo Edward
Ross (autor da primeira obra sobre controle social), o homem já nasce com os instintos da
simpatia, da sociabilidade, do senso de justiça e do ressentimento aos maus tratos, o que o
torna apto a estabelecer um convívio equilibrado com os demais. Se não houvesse as
alterações complexas das sociedades, essa harmonia se tornaria mais fácil de ser conquistada.
Portanto, é nesse ponto que o controle social mostra-se necessário, e os recursos íntimos do
controle humano passam a ser substituídos por mecanismos artificiais como a lei, a opinião
pública, a crença, a religião, a sugestão social (tradição, convenções) a influência de certas
personalidades marcantes, a ilusão e a avaliação social.9
Nesse diapasão, verifica-se que os meios de controle social são plúrimos, não bastando
somente o seu exercício através do Estado. Assim, podem ser informais (internos), como o
exercício da própria consciência através de valores e de princípios pessoais desenvolvidos
7
LAKATOS, Eva Maria. Sociologia Geral. 5 ed. São Paulo: Atlas, 1986, p. 239.
8
SICA. Leonardo. Direito penal de emergência e alternativas à prisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002,
p. 28.
9
LAKATOS, Eva Maria, op. cit. p. 247.
14
durante toda a vida, ou formais (externos), estabelecidos para a convivência social. Mais
especificamente, pode-se dizer que os
Ainda, cabe dizer que algumas classes privilegiadas, tanto econômica quanto
intelectualmente, utilizam-se de interesses e de discursos próprios para desenvolver um maior
controle sobre outras com menos privilégios. Uma amostra exorbitante disso é o poder
influenciador da mídia que, através da maneira pela qual transmite uma informação, consegue
induzir conclusões e modificar pensamentos. Neste sentido, os
10
SICA, Leonardo, op. cit. p. 29.
11
LAKATOS, Eva Maria, op. cit. p. 249.
12
Ibidem, p. 150.
15
Com fulcro nesse discurso punitivo, a mídia promove a divulgação dos conflitos
penais repetidamente, de modo exacerbado e com fundo emocional, intensificando o terror e a
insegurança gerada pela violência com o intuito de elevar a audiência popular. Desse modo, a
“[...] força ideológica da enganosa publicidade do sistema penal cria a falsa crença que faz
com que o controle social, fundado na intervenção do sistema penal, apareça como única
forma de enfrentamento de situações negativas ou condutas conflituosas”.15
Nesse sentido, são as outras esferas de controle que devem se consolidar. Conforme
Queiroz “o Sistema Penal tem, dentro do controle social global, um papel secundário,
puramente confirmador de outras instâncias,”16 ou seja, caso a família, a escola, e as outras
13
KARAM, Maria Lúcia.Pela Abolição do Sistema Penal. In: PASSETI, Edson (Org.). Curso livre de
abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 77,78.
14
ZAFFARONI, José Henrique Pierangeli; Eugenio Raúl. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 4 ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 69.
15
KARAM, Maria Lúcia, op. cit. p 103.
16
QUEIROZ, Paulo. Eficientização do controle social não-penal , IBCCRIM. Disponível na internet:
<http://www.ibccrim.org.br..html> Acesso em: 08 ago. 2005.
16
instituições sociais falharem ou não forem totalmente exploradas, o controle penal deve agir.
Nessa mesma direção, Queiroz defende que fundamental
Entretanto, é flagrante que o controle social não ocorre desse modo, porque se realiza
por diversos âmbitos e em diferentes intensidades, tendo em vista a preferência de interesses e
a urgência do controle. Em conformidade, Zaffaroni e Pierangeli ressaltam que o
[...] controle social se vale, pois, desde meios mais ou menos “difusos” e
encobertos até meios específicos, como é o sistema penal (polícia, juízes,
agentes penitenciários, etc.). A enorme extensão e complexidade do
fenômeno do controle social demonstra que uma sociedade é mais ou menos
autoritária ou mais ou menos democrática, segundo se oriente em um ou
outro sentido a totalidade do fenômeno e não unicamente a parte do controle
social institucionalizado ou explícito. 18
Enfim, é possível dizer que o controle social se manifesta através de diversas facetas
no cotidiano de todos os cidadãos, tanto por estímulos internos, como por instrumentos
externos, os quais muitas vezes inobservados, ocasionam determinadas punições aos membros
da sociedade. O controle social se demonstra mais eficiente e útil na medida em que se
valoriza o conjunto de suas esferas, priorizando aquelas com menos prejuízos às pessoas. Para
tanto, cabe aos cidadãos uma maior conscientização sobre as intenções de controle, bem como
uma mobilização a favor de políticas públicas para um maior direcionamento ao controle
informal, através de implementação de programas de apoio e de desenvolvimento para a
17
QUEIROZ, Paulo. Eficientização do controle social não-penal , IBCCRIM. Disponível na internet:
<http://www.ibccrim.org.br..html> Acesso em: 08 ago. 2005.
18
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique, op. cit. p. 61,62.
17
19
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 6.
20
MOSSIN, Heráclito Antônio. Curso de processo penal. vol. 1. São Paulo: Atlas, 1998, p. 75.
21
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, op.cit. p. 6.
18
22
ZEIDAN, Rogério. Ius puniendi, estado e direitos fundamentais: aspectos de legitimidade e limites da
potestade punitiva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002, p. 36.
23
Ibidem, p. 143.
24
BECCARIA, Cesare, op. cit. p. 20.
19
A exigência da lei certa diz com a clareza dos tipos, que não devem deixar
margens a dúvidas nem abusar do emprego de normas muito gerais ou tipos
incriminadores genéricos, vazios. Para que a lei penal possa desempenhar
função pedagógica e motivar o comportamento humano, necessita ser
facilmente acessível a todos, não só aos juristas.26
25
LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. 2 ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003, p. 23, 24.
26
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 29.
27
BOSCHI, José Antonio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. Porto Alegre: Livraria dos
Advogados, 2000, p. 45.
20
Diante dos três preceitos expostos, vale salientar que o princípio da legalidade se
realiza ao determinar a fixação normativa do conteúdo penal, a forma e o tempo em que ele
atua. Nesse proceder, é através da lei que cabe ao Estado o poder de instituir as condutas
consideradas como proibidas e prejudiciais à vida social e as suas respectivas penas. No
entanto, isso se faz com devidas restrições de como tais normas devem funcionar, para
garantir proteção àqueles que se subjugam a elas.
28
ZEIDAN, Rogério, op. cit. p. 64.
29
BOSCHI, José Antonio Paganella, op.cit p. 50.
30
ZEIDAN, Rogério, op. cit. p. 71.
21
O princípio da culpabilidade é outro que deve ser mencionado, pois aduz que ninguém
será incriminado sem ser culpado. Desse modo, a apuração da culpa na conduta do agente da
conduta danosa é pressuposto indisponível para penalização daquele. Nesse propósito, o
Por sua vez, o princípio da proporcionalidade, apesar de ser utilizado em diversas áreas
legais, é cabível de destaque na esfera penal. A partir dele, exige-se a existência de equilíbrio
entre a gravidade do delito praticado pelo delinqüente e a pena a ele aplicada. De acordo com
Côrrea Júnior e Shecaira, para uma sanção ser determinada devem ser observados o bem
jurídico protegido, os meios utilizados para a penalização e os fins alcançados ou
objetivados.32 Mais especificadamente, os autores argumentam:
31
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 8 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 103.
32
CORRÊA JUNIOR, Alceu. SHECAIRA, Sérgio Salomão. Teorias da pena: finalidades, direito positivo,
jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 89.
p. 89.
33
Idem.
22
pela incriminação direta de atitudes internas ou pela punição de fatos carentes de lesividade,
utilizados como mero sintoma de ânimo”.34
34
ZEIDAN, Rogério, op. cit. p. 60.
35
Ibidem, p. 61.
36
Ibidem, p. 55.
37
DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral.Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 4.
23
Dentre os sistemas jurídicos, faz-se presente o sistema penal, que se diferencia dos
demais por fazer uso do ius puniendi para atuar e ser entendido como um conjunto de meios
relacionados, inclinados à análise do fenômeno delitivo e de seus agentes, à criação de normas
penais e ao cumprimento destas. Outrossim, atua através de seus elementos punitivos impondo
normas de conduta. Se as mesmas não são obedecidas, configura-se a existência de um delito,
com o que se inicia o chamado processo de criminalização. Nessa linha de raciocínio,
Zaffaroni e Pierangeli referem que
Dessa forma, o sistema penal utiliza diferentes setores para exercer suas atividades e,
como explica Bianchini, é abrangido por agentes de criação (Legislativo), de aplicação
(Judiciário e aparelhos policiais) e de execução, além dos cidadãos, que também são partes
atuantes e interferem nos demais agentes citados.39 Sabe-se que as “[...] funções típicas do
Poder Legislativo são legislar e fiscalizar,”40 mas, especificadamente no direito penal, cabe-
lhe a elaboração de normas tipificadoras das condutas delitivas, como também daquelas
responsáveis pela sua prevenção, pela sua punição e pela sua persecução. No concernente aos
agentes de aplicação, cabem aos órgãos policiais impor as devidas limitações aos bens
jurídicos individuais (polícia administrativa), prevenir a prática delitiva (polícia de segurança)
e investigar e apurar os delitos buscando seus responsáveis (polícia civil).41 De outro modo,
“[...] cumpre aos juízes e tribunais declarar o delito e determinar a pena proporcional aplicável
[...].”42 Ainda nessa mesma categoria, deve-se salientar a participação do Ministério Público,
o qual defende os interesses da sociedade, sendo fiscal da lei e pólo ativo em várias ações
38
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique, op.cit. p. 70.
39
BIANCHINI, Alice. A seletividade do controle penal. Revista IBCCRIM, São Paulo, ano 8, n. 30, abr/jun,
2000 , p. 60.
40
MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 361.
41
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. op.cit. p. 58,59.
42
LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen
Júris, 2003, p. 7.
24
penais.43 Finalmente, aos órgãos de execução toca o cumprimento da decisão judicial. Esse
setor constitui-se por meio das instituições carcerárias e do Judiciário, que fiscaliza o
cumprimento das penas privativas de liberdade e restritivas de direitos.
43
Ver artigo 129 da Constituição Federal Brasileira.
44
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique, op. cit. p. 144.
45
Norberto Bobbio, em sua obra Teoria do ordenamento jurídico (p.77/80, 1999) explica três diversos
fundamentos históricos e filosóficos para um conjunto de normas ser denominado como sistema. No primeiro,
defende-se que a organização sistêmica das normas deve-se à constatação que todas elas resultam de princípios
gerais, os quais são postulados de derivação.O segundo fundamento é sustentado através de um processo
indutivo, em que se constroem conceitos sempre mais gerais a partir do conteúdo de simples normas e, assim
ocorrendo, o ordenamento do material jurídico.Por fim, a terceira argumentação apóia-se na incompatibilidade
das normas, ou seja, devem ser compatíveis, demonstrando, assim, um certo relacionamento entre elas, o qual
não possibilitará qualquer norma desarmônica.
25
Tal importância se explica diante da análise de que inexistindo o crime, o qual é oriundo do
direito penal, não subsiste o sistema penal, pois este perde sua razão de ser.
Já, no entendimento de Dotti, o direito penal é um complexo de leis que, por meio de
interpretação do Estado, expressa o interesse público ao prever e ao estabelecer as condutas
proibidas e suas sanções e ao empregar normas para manter o convívio em sociedade e bens
jurídicos fundamentais resguardados.49 Ademais, o direito penal pode ser percebido por duas
direções. Objetivamente, reputa-se como a totalidade de regras e de princípios de direito
público, responsáveis pela regulação dos comportamentos delituosos. Por um viés subjetivo,
pode ser verificado como o próprio direito de punir (ius puniendi). 50
46
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral. vol. 1. 3 ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002, p. 289.
47
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique, op. cit. 443.
48
BITENCOURT, César Roberto. Manual de direito penal: parte geral. vol. 1. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2000,
p. 2.
49
DOTTI, René Ariel, op. cit. p. 48.
50
ZEIDAN, Rogério, op cit. p. 51.
26
Por meio dessas últimas características, referencia-se a grande valia atribuída à pena
para a realização dos encargos penais. Tal importância se evidencia também na constatação de
51
DOTTI, René Ariel, op. cit. p. 50.
52
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique, op. cit. p. 102.
53
BITENCOURT, César Roberto, op. cit. p. 62.
54
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique, op. cit p. 100.
55
BITENCOURT, César Roberto, op. cit. p. 4.
27
que “[...] todos os mecanismos de atuação do sistema penal confluem para a imposição da
pena, meio pelo qual o sistema efetivamente se concretiza”.56
Seguindo a mesma linha, Hegel posiciona-se afirmando que a pena é resultado jurídico
e necessário do crime, e dialeticamente é a negação da negação do direito, como instrumento
restaurador da ordem atingida.59 Desse modo, é a partir desses posicionamentos que a teoria
absoluta passa a ser desenvolvida e, assim, entendida como aquela que
56
SICA, Leonardo, op. cit. p. 32.
57
Art. 59. “O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos
motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá,
conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I- as penas aplicáveis dentre as
cominadas; II- a quantidade da pena aplicável, dentro dos limites previstos; III- o regime inicial de cumprimento
da pena privativa de liberdade; IV- a substituição da pena privativa de liberdade aplicada, por outra espécie de
pena se cabível.”
58
CORRÊA JUNIOR, Alceu . SHECAIRA, Sérgio Salomão, op. cit. p.130.
59
SICA, Leonardo, op. cit. p. 57.
28
60
CORRÊA JUNIOR,Alceu. SHECAIRA, Sérgio Salomão, op. cit. p. 130.
61
SICA, Leonardo, op. cit. p. 57.
62
Ibidem, p. 59.
63
TOLEDO, Francisco de Assis, op.cit. p. 3.
29
[...] punição serviria também como bom exemplo para que os outros não
sigam os mesmos passos do criminoso. Desse modo, ainda na base da teoria,
castiga-se o criminoso para que a sociedade permaneça em estado de alerta,
reforce o sentimento de confiança no direito e, ao mesmo tempo, também
disponha de uma boa defesa contra o criminoso e crime.64
64
BOSCHI, José Antonio Paganella, op. cit. p. 113.
65
Sobre a linha teórica deste autor, vide Um novo sistema de direito penal: considerações sobre a teoria de
Güinter Jakobs, escrito por Enrique Peñaranda Ramos, Carlos Suárez Gonzáles e Manuel Cancio Meliá,
traduzido por André Luiz Callegari e Nereu José Giacomolli. Barueri. São Paulo: Manole, 2003.
66
BITENCOURT, Cézar Roberto, op.cit. p. 86.
67
CORRÊA JUNIOR, Alceu. SHECAIRA, Sérgio Salomão, op. cit. p. 133.
30
neutralização destes acontece, pois, nesse período não praticam delitos na sociedade e nem
causam danos a seus membros. Entretanto, é inegável que, por intermédio da pena, deve-se
reeducar o condenado com a pretensão de reintegrá-lo futuramente na vida social, através de
um processo de ressocialização, e, assim, impedi-lo de incidir em novos crimes. Essa posição
se evidencia na legislação penal brasileira através do artigo 1º da Lei de Execução Penal. 68
Ademais, é considerável referir também que, diante das teorias expostas, há ainda
aqueles que abrigam as teses de retribuição e de prevenção concomitantemente, as quais são
nomeadas como ecléticas. Em consonância a isso, Boschi relata que, no viés dessa teoria
mista, além desse binômio de retribuir e de prevenir, a pena tem como principal missão
defender a sociedade e, secundariamente, reinserir o criminoso na sociedade sem danos a
ele.69
Em suma, é possível averiguar que o sistema penal existe com a pretensão de amparar
bens jurídicos de intensa importância para as relações em sociedade. Mostra-se como uma
expressão do controle social ao servir-se do direito de punir do Estado para desempenhar suas
funções através da pena, a qual, fundamentada por diferentes feições de retribuição e
prevenção, é atribuída aos indivíduos que descumprem os preceitos comportamentais
impostos pelas normas do direito penal. Este, além de definir fatos tipificados como crime e
suas respectivas penas, é integrado por princípios orientadores, que também são
indispensáveis à vida social e, principalmente, à garantia do direito de liberdade dos cidadãos
frente ao Estado. Apesar disso, cabe analisar se tais princípios são realmente verificados e se
as funções de controle penal realmente se efetivam.
68
Art 1º. “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e
proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.”
69
BOSCHI, José Antonio Paganella, op. cit. p. 128.
31
2 A TEORIA ABOLICIONISTA
De acordo com Garcia e Molina, “[...] desde o final dos anos 60, surgiram nos países
anglo-saxônicos movimentos de opinião favoráveis à busca de vias alternativas ao sistema
legal (diversion), isto é, instâncias não-oficiais e mecanismos informais que possam resolver
70
DOTTI, René Ariel. op. cit, p. 143.
71
Ibidem, p. 144.
72
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5. ed.
Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 89.
32
com eficácia e menor custo os conflitos.”73 Com esse pensamento, com o passar dos anos, o
movimento abolicionista firmou-se e “[...] organiza duas vezes por ano, desde 1983, uma
Conferência internacional, através de um organismo especialmente constituído para tratar do
assunto: a Conferência Internacional sobre Abolição Penal”74 (ICOPA). Nesse evento, em sua
sexta edição, em 1993, o doutrinador holandês Louk Hulsman apresentou uma síntese de sua
posição abolicionista, que veio a ser, posteriormente, publicada em seu livro Penas perdidas.75
Através do sua obra Penas perdidas76, Louk Hulsman, juntamente com Jacqueline
Bernat de Celis, expõe vários princípios e fundamentos abolicionistas. Primeiramente, para
ele, não “[...] existe uma realidade ontológica do crime”, 77 ou seja, não há uma real existência
do delito, pois os fatos que, para o direito penal, são denominados “crime”, na perspectiva
abolicionista, são eventos criminalizáveis, ou seja, acontecimentos que por meio das leis e da
justiça criminal podem vir a se tornar crimes. Esses mesmos eventos criminalizáveis se, por
um lado, se mostram um problema para algumas pessoas, não são considerados de tal forma
para outras, tendo como única semelhança entre eles a atuação do sistema penal, 78 que, por
seu turno, também entendido como justiça penal, corresponde, para Hulsman, a um conjunto
de entes cooperados em que
73
GARCIA, Antônio. MOLINA, Pablos de. Criminologia. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 524.
74
DOTTI, René Ariel, op. cit. 28.
75
HULSMAN, Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas Perdidas: o sistema penal em questão. 2 ed. Niterói:
Luam, 1997, p. 150.
76
Não há duvida de que a expressão peines perdues, originalmente grafada por Louk Hulsman e Jacqueline
Bernart de Celis, sugere a lembrança de um clássico da literatura mundial: À la recherche du temps perdu (À
procura do tempo perdido) de Marcel Proust (1871-1922). Para o romântico escritor francês, o objeto da obra
literária é descrever o universo refletido porém deformado pelo espírito. A vida qual se escoa não é mais que
tempo perdido; o tempo só pode verdadeiramente se reencontrado e salvo sob o aspecto da eternidade, que é
também o da arte. (DOTTI, René Ariel, op. cit. p. 29.)
77
HULSMAN,Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de, op. cit. p. 150.
78
Ibidem, p. 150.
33
[...] cada órgão ou serviço trabalha isoladamente e cada uma das pessoas que
intervém no funcionamento da máquina penal desempenha seu papel sem ter
que se preocupar com o que se passou antes dela ou com o que se passará
depois. Não há uma correspondência rigorosa entre o que um determinado
legislador pretende num momento dado – o que ele procura colocar na lei, no
Código Penal – e as diferentes práticas das instituições e dos homens que as
fazem funcionar. Tais instituições não têm nada em comum, a não ser uma
referência genérica à lei penal e à cosmologia repressiva, liame
excessivamente vago para garantir uma ação conjunta e harmônica. Tais
instituições estão, de fato, compartimentalizadas em estruturas
independentes, encerradas em mentalidades voltadas para si mesmas.[...]
Cada corpo desenvolve, assim, critérios de ação, ideologias e culturas
próprias e não raro entram em choque, em luta aberta uns contra os outros.79
79
Ibidem, p. 59.
80
Ibidem, p. 56.
81
KARAM, Maria Lúcia.Pela Abolição do Sistema Penal. In: PASSETI, Edson (Org.), op. cit. p.78.
82
HULSMAN,Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de, op. cit. p. 156.
83
PRATA, Vitorino. Apud FERNANDES, Newton. FERNANDES, Valter. Criminologia Integrada. 2 ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.466, 467.
34
sistema penal. Diante dele, inicialmente, realça a necessidade de valorizar os reais interesses e
condições da vítima, visto que ela
[...] não pode mais fazer parar a “ação pública”, uma vez que esta “se pôs em
movimento”; não lhe é permitido oferecer ou aceitar um procedimento de
conciliação que poderia lhe assegurar uma reparação aceitável, ou – o que,
muitas vezes, é mais importante – lhe dar a oportunidade de compreender e
assimilar o que realmente se passou; ela não participa de nenhuma forma da
busca da medida que será tomada a respeito do “autor”; ela não sabe em que
condições a família dela estará sobrevivendo; não faz nenhuma idéia das
conseqüências reais que a experiência negativa da prisão trará para a vida
deste homem; ela ignora as rejeições que ele terá que enfrentar ao sair da
prisão.84
Nessa seara, o sistema penal pretende a resolução do conflito das pessoas, ao mesmo
tempo em que atribui etiquetas às pessoas envolvidas, como vítimas ou criminosos.85 Salienta-
se, na obra em análise, que o rótulo de criminoso é incutido nos cidadãos através do processo
judicial e da vida no cárcere, pois, em
Com esse pensar, Dotti assinala que a prisão é o monocórdio imposto para executar a
grande sinfonia do bem e do mal. Por força desse fenômeno, os problemas sociais e culturais
que vertem no crime e na conduta de seu agente estão imersos no espectro da desgraça e da
maldição.89 Diante disso, percebe-se que os direitos humanos de alguns cidadãos são
derrogados quando é conveniente para o sistema penal para a proteção do direito de outros.
Nessa esteira, evidencia-se a incompatibilidade de muitos preceitos fundamentais com as
facetas do sistema penal.90
Nesse contexto, a pena, instrumento basilar da justiça penal, passa a ser vista como
ilegítima diante da imposição de castigos de intensa danosidade aos agentes delitivos e por
mera relação de poder, pois, na maioria das vezes, não é aceita pelo condenado, o que
demonstra a inexistência de concordância entre as partes da relação jurídica: Estado e réu.
Daí que, não havendo uma relação entre aquele que pune e aquele que é
punido, ou ausente o reconhecimento da autoridade, estaremos diante de
situações em que se torna extremamente difícil falar de legitimidade da pena.
Se a autoridade for plenamente aceita, poderemos falar de uma pena justa.
Se, ao contrário, houver uma total contestação da autoridade, não teremos
mais uma pena verdadeira, mas pura violência. 91
Ademais, Hulsman assinala que tal penalização não é aplicada a todos que realizam
condutas tipificadas como crime, sendo evidente que é irrisório o número de criminosos que
são descobertos pelas autoridades policiais, originando, assim, a chamada “cifra-negra”.
88
HULSMAN,Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de, op. cit. p. 62.
89
DOTTI, René Ariel. Bases e alternativas para o sistema de penas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p.
28.
90
HULSMAN, Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de. op.cit, p. 159,160.
91
Ibidem, p. 87.
36
Além disso, há um número menor ainda daqueles que são processados penalmente, como
também há uma minoria absoluta daqueles que são condenados e submetidos a uma pena.92
Com esse mesmo enfoque Karam se posiciona:
92
HULSMAN, Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de, op.cit, p. 65.
93
KARAM, Maria Lúcia. Pela Abolição do Sistema Penal. In: PASSETI, Edson (Org.) op. cit. p. 91.
94
HULSMAN,Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de, op. cit. p. 65,66.
95
Ibidem, p. 66.
37
Diante de todos esses fatores e evidenciando-se que o discurso oficial da justiça penal
mostra-se diverso do que realmente acontece na prática, passa a ser visto como
deslegitimado, atribuindo essa característica ao sistema penal como um todo. Desse modo,
Hulsman propõe um processo de mudança através de uma conversão coletiva da linguagem
penal por outra mais benéfica à realidade atual e do modo pelo qual as pessoas encaram os
fatos considerados criminosos,96 visto que “a limitação das situações problemáticas à
terminologia utilizada pela justiça penal (crime) é uma forma diversa de compreensão dos
fatos e de providenciar resoluções.”97 Dessa forma, é possível privilegiar os procedimentos
não penais de controle e a maior participação dos envolvidos. Assim,
Destarte, a algumas relações pessoais poderiam ser aplicadas medidas acordadas entre
as próprias partes e que melhor se ajustassem às suas necessidades. Já, em outros, nos quais
se mostra necessária a intervenção de um ente estatal, as pessoas poderiam servir-se da justiça
cível para a resolução de seus conflitos.99 Com essa ótica, Hulsman fundamenta:
96
HULSMAN, Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de, op.cit, p. 96.
97
CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op. cit. p. 15.
98
HULSMAN,Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de, op. cit. p. 102.
99
Ibidem, p. 120.
100
Ibidem, p. 131.
38
Nessa perspectiva, os juízes passariam a atuar somente no âmbito cível quando fosse
necessário para garantir os direitos dos homens não defendidos por outras formas de controle.
Já os órgãos policiais seriam agentes de paz, procurando evitar que as questões chegassem ao
Judiciário.101 Nesse diapasão, Hulsman entende tais órgãos como mecanismos de urgência e
afirma:
Dessa forma, o autor não retira a importância da atividade judiciária e policial para o
exercício da coerção, no entanto defende um modo diferenciado de atuarem e interferirem na
vida dos cidadãos. Para isso, há necessidade de solidariedade e intenção de mudança entre as
pessoas com o intento de abrangência das relações comunitárias e informais. Com essa
perspectiva, Hulsman afirma que seria possível abolir o sistema penal e
É possível perceber, então, que, com sua obra Penas perdidas, Hulsman expressa seu
modo de entender as situações que, atualmente, na justiça penal são vistas como crimes.
Demonstra a forma danosa como tal justiça exerce suas atividades e afirma que os prejuízos
resultantes dessas são responsáveis pela “perda das penas”, ou seja, pelo não alcance dos fins
penais e, conseqüentemente, pela perda de todo o sistema penal. Diante disso, propugna outros
101
HULSMAN, Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de. op.cit, p.113.
102
Idem.
103
HULSMAN,Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de. op. cit. p. 91.
39
meios para a resolução de tais situações, os quais sejam mais adequados aos interesses de
ambas as partes e originem menores prejuízos as essas. Para esse fim, seria necessário uma
mudança da linguagem penal para outra, não punitiva, ocasionando, conseqüentemente, a
abolição dos instrumentos penais de controle e a oportunização de utilização de outros meios,
menos prejudiciais e desumanos.
Com fulcro na teoria abolicionista exposta por Louk Hulsman em seu livro Penas
perdidas, o doutrinador penalista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni realiza um ensaio crítico
através de sua obra Em busca das penas perdidas, escrita em 1989, na qual explana sua
posição sobre o sistema penal e sobre sua deslegitimação na atualidade. Além disso, traz a
lume fundamentos próprios e peculiares dos países da América Latina, aos quais denomina
como “regiões marginais”.
Inicialmente, em sua obra, o pensador “reprova vigorosamente o discurso jurídico-
penal, averbando-o de perverso e falso porque procura contornar, com inteligência, as mazelas
da realidade operacional do sistema”.104 Isso é facilmente visualizado na medida em que
104
DOTTI. René Ariel. Curso de Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 29.
105
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit, p. 12.
106
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência à violência do
controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 312.
40
Como isso não ocorre, Zaffaroni constata o descompasso do discurso penal com a
realidade atual, o que acarreta a perda de racionalidade do sistema penal, elemento
indispensável para legitimá-lo. Ademais, tal racionalidade depende também de uma coerência
interna, na qual seus preceitos não se contradigam. Isso é essencial visto que a mera legalidade
não legitima o sistema penal, pois é evidente que seus órgãos não exercem o “seu poder de
acordo com a programação legislativa tal qual como expressa o discurso jurídico penal”.108
Com esse enfoque, Passetti salienta que as corrupções e acordos entre agentes da lei e
infrator provocam a filtragem e seleção daqueles que serão os criminosos da justiça criminal.
Assim, demonstra-se que o sustentado lema de defesa da sociedade não ocorre, prevalecendo a
defesa dos interesses dominantes.110
107
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 18.
108
Ibidem, p. 21.
109
Ibidem, p. 29.
110
PASSETTI, Edson. A atualidade do abolicionismo penal. In: PASSETI, Edson (Org.). Curso de
abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 26.
41
Em que pese a tudo isso, Zaffaroni justifica que o sistema penal ainda se mantém por
ser considerado uma forma de segurança para muitas pessoas que se deixam influenciar pelas
ideologias dos meios de comunicação de massa, que “ocupam-se da precoce introjeção do
modelo penal como pretenso modelo de solução dos conflitos”111 e “ têm a função de gerar a
ilusão de eficácia do sistema”112. Isso ocorre através da falsa publicidade, que propaga a idéia
de que, nos dias de hoje, predomina uma intensa violência na vida social. Logo, o autor
conclui:
111
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 128.
112
Ibidem, p. 129.
113
Ibidem, p. 128.
114
Ibidem, p. 130.
42
Nessa percepção, Cervini ensina que os internos aprendem uma nova forma de viver,
com novos hábitos, linguagens, usos e costumes porque não têm outra alternativa. Esse
aprendizado evidencia os efeitos negativos do aprisionamento a qualquer ressocialização, pois
na prisão os detentos não aprendem a viver em sociedade, pelo contrário, se integram com
mais intensidade à vida criminosa, mudando para pior e captando valores negativos para
futura vida social livre.116
115
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 149.
116
CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 41.
117
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 152.
118
Ibidem, p. 149.
43
Nesse passo, para Zaffaroni, é constatada a fraqueza de conteúdo das teorias da pena
perante a situação atual da justiça penal, visto que não sustentam a legitimação desta. Nesta
esteira, Andrade acrescenta que,
Além disso, Zaffaroni alude à irracionalidade da pena por ser mera manifestação do
poder. Ainda, por todo esse entendimento, conceitua-a como “qualquer sofrimento ou
privação de algum bem ou direito que não resulte racionalmente adequado a algum dos
modelos de solução de conflitos dos demais ramos do direito”.120
Enfim, o pensador explica que todos esses apontamentos negativos sobre a justiça penal
são decorrentes do processo histórico da América Latina, o qual, englobado pelo período
colonialista e neocolonialista, incorporou uma espécie de “controle social punitivo
transculturado”121 em vários países latinos, ocasionando a desigualdade, a dependência e a
fragilidade econômica, geradoras do grande grupo populacional pobre existente nessas regiões
e principal alvo do sistema penal. A partir disso, o autor propõe “a busca das penas perdidas”
através um marco teórico que, inspirado nas referências teóricas centrais (como o
abolicionismo), adapte-se à realidade das chamadas “regiões marginais”. Destarte, sugere uma
reinterpretação do direito penal122 através de uma visão ética e otimista do mesmo. Para esse
escopo, primeiramente, o direito penal deve ser recebido como uma
119
ANDRADE, Vera Regina de, op. cit. p. 291.
120
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 204.
121
Ibidem, p. 119.
122
DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 29.
44
Isso não deve se suceder bruscamente, de um momento para outro, mas desenvolver-
se de modo progressivo e atingindo gradualmente determinadas padronizações capazes de
serem observadas pelos operadores do sistema penal em seus diferentes tempos. Porém, a
123
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 206.
124
Ibidem, p. 201.
125
KARAM, Maria Lúcia. Pela Abolição do Sistema Penal. In: PASSETI, Edson (Org.), op. cit. p. 72.
126
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 235.
45
Em síntese, pode-se analisar que Zaffaroni concorda com vários aspectos da teoria
abolicionista explanada por Hulsman, tanto no tocante às objeções feitas ao sistema penal
como às possíveis medidas a serem tomadas diante dos efeitos negativos dele. Porém, também
se verifica que, ao inclinar-se à situação atual dos países da América Latina, Zaffaroni propõe
uma solução mais ajustada à realidade subdesenvolvida em que se encontram. Sugere que, no
momento atual, o sistema penal ainda seja utilizado para a resolução de um pequeno
quantidade de conflitos, restringindo em etapas a sua atuação e, assim, se possa, futuramente,
abolir a justiça penal em sua completude.
127
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 237.
128
Ibidem, p. 106.
46
Mathiesen, o qual segue uma linha de pensamento muito próxima do marxismo, que, como
ensina Chauí, sustenta que o
[...] poder político sempre foi de maneira legal e jurídica pela qual a classe
economicamente dominante de uma sociedade manteve seu domínio. O
aparato legal e jurídico apenas dissimula o essencial: que o poder político
existe como poderio dos economicamente poderosos, para servir seus
interesses e privilégios e garantir-lhes a dominação social. 129
Nesse sentido, Mathiesen faz uma ligação entre a atual sociedade capitalista de
dominação e o sistema penal, outra forma prejudicial de poder. A partir disso, sugere que não
só o sistema penal seja abolido como também qualquer outra forma de poder opressivo,130
sendo necessário, para isso, que o abolicionismo tenha permanente relação de oposição e
competição com o sistema que deseja abolir.131
Alternando um pouco a linha de pensamento, outro doutrinador que não deve ser
olvidado é o escritor norueguês Nils Christie. Apesar de apresentar vários entendimentos
comuns ao pensamento de Hulsman, cabe realçar que Christie possui uma característica
peculiar: dar ênfase às suas experiências históricas.133 Além disso, o autor posiciona-se como
um abolicionista-minimalista, afirmando contrariar Hulsman ao defender a necessidade de
manter algumas garantias legais, visto que o sistema penal, com fulcro nas leis penais, é o
melhor limitador de alguns comportamentos absolutamente inaceitáveis numa sociedade em
129
CHAUÍ, Marilena, op cit. p. 409.
130
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 99.
131
Ibidem, p. 100.
132
Idem.
133
Idem.
47
que nada importa e onde o freio da vergonha não existe. 134 Nessa linha de raciocínio, Christie
justifica sua posição afirmando:
Entretanto, tal encarceramento deve ser limitado para que não aconteça o que já está
ocorrendo em alguns países no tocante ao crescimento populacional carcerário. Sobre essa
visão, Christie elaborou o livro A indústria do controle do crime, no qual faz críticas ao
controle penal nos Estados Unidos, com enfoque ao ampliado número de presos nesse país, os
quais são os objetos centrais da indústria controladora de delitos. O autor explica:
134
OLIVEIRA, André Isola Fonseca; Ana Sofia Schimidt de. Conversa com um abolicionista minimalista.
Revista IBCCRIM, nº 21, ano 6, janeiro /março,1998. p.16
135
Ibidem, p. 22.
136
CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 122.
137
Ibidem, p. 4.
138
Ver item 7.1 da obra “A indústria do controle do crime” de Nils Christie.
48
Por esse motivo, o autor em questão é conhecido como ferrenho crítico das idéias de
Durkheim, o qual afirmava que o processo de modernização faz a sociedade progredir, 140 não
considerando que tal modernização propícia também a ampliação da indústria do controle do
crime. Diante desse entendimento, “Christie destaca expressamente a destrutividade das
relações comunitárias do sistema penal, seu caráter dissolvente das relações de
horizontalidade e os conseqüentes perigos e danos da verticalização corporativa”. 141 Dessa
maneira, simpatizante da resolução de conflitos de forma comunitária, Nils Christie valoriza
a existência de sociedades limitadas, pensamento que se deve ao fato de que nessas
sociedades ocorre uma espécie de solidariedade, com a impossibilidade de substituição de
seus membros. Assim, a
Nessa linha, seria possível devolver os conflitos às vítimas, os quais, de acordo com
Christie, são bens subtraídos, freqüentemente, em nossa justiça penal. Ademais, conforme o
referido pensador, os conflitos são elementos importantes à vida social, pois, apesar de
ferirem as pessoas envolvidas e o sistema social, podem ser bem usados como experiências
para a vida dos envolvidos. Todavia, para tanto, as partes das situações conflituosas não
podem tê-las roubadas pelos seus advogados.143
139
OLIVEIRA, André Isola Fonseca; Ana Sofia Schimidt de, op. cit. p. 18.
140
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. op.cit, p.101.
141
Idem.
142
CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime. op. cit, p. 45.
143
OLIVEIRA, André Isola Fonseca; Ana Sofia Schimidt de, op. cit. p. 14.
49
Enfim, as idéias de Christie aqui expostas podem ser facilmente identificadas como
parte dos fundamentos abolicionistas, no entanto, o autor não deixa de salientar sua posição
minimalista diante da atual realidade. Ademais, explica:
144
CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime. op. cit, p. 14.
145
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista do Tribunais, 2002, p.
272.
50
Além disso, a última forma de controle estatal disciplinar seria a mais perigosa, pois
poderia ocasionar o exacerbado controle policial, através de carros-tanques nas ruas, de
policiais “nas costas” dos cidadãos, de interceptações telefônicas e, no futuro, do uso de
câmeras nos lugares de trabalho e divertimento, com controle a distância. Enfim, esse seria um
sistema muito mais detalhado e penetrante na vida dos cidadãos.147
146
FERRAJOLI, Luigi, op. cit. p. 273.
147
Idem .
148
FERRAJOLI, Luigi, op.cit. p. 203.
51
Diante disso, Ferrajoli refere a importância dos princípios penais garantidores para a
configuração menos violenta do sistema penal:
149
FERRAJOLI, Luigi, op. cit. p. 275.
150
Ibidem p. 277.
151
Ibidem p. 203.
52
Enfim, diante do conteúdo teórico trazido à baila neste capítulo, é possível concluir
que o abolicionismo penal apresenta os mais diversos argumentos para sua sustentação, os
quais, são defendidos por um grande número de doutrinadores que se posicionam de acordo
com suas culturas e realidades. Com base nisso, é possível compreender o contraste entre a
idéia radical de abolição propugnada por Hulsman e os pensamentos mais moderados de
Zaffaroni e Christie, que acreditam na utilização preliminar do direito penal mínimo para
alcançar, de repente, um dia a total abolição da justiça penal. Ainda, há autores como Ferrajoli
que, apesar de serem favoráveis aos princípios minimalistas, não os vêem como uma etapa
para o abolicionismo, pois não acreditam na possibilidade da efetivação deste, tampouco, que
gere benefícios à vida em sociedade. Ademais, essas várias concepções de abolição propiciam
uma análise crítica sobre o sistema penal, auxiliando na busca de uma solução ideal que
minimize os danos gerados por ele.
152
FERRAJOLI, Luigi, op. cit. p. 204.
53
Ademais, calha espancar que Ferrajoli reconhece a importância das idéias abolicionistas
para desenvolvimento da criminologia crítica, para os estudos sociais e culturais sobre os
153
CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.). Teoria Agnóstica da Pena: o modelo garantista de
limitação do poder punitivo. Criticas à Execução Penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002, p. 17.
54
delitos, para a exposição das doutrinas penais dominantes e para atribuição do ônus da
justificação aos justificacionistas.154
Não obstante todo o pensamento crítico trazido à baila pelo abolicionismo à ciência
penal, deve-se advertir sobre a existência de várias debilidades em suas propostas, as quais
impossibilitam que suas teses sejam aplicadas, integralmente, à realidade brasileira.
Primeiramente,
Logo, é impossível colocar em prática, nos países latinos subdesenvolvidos, uma teoria
que foi formulada com inspiração em condições de vida totalmente diversas daqueles, em
nações de Primeiro Mundo, como a Holanda, Inglaterra, Noruega e demais países europeus.
Além disso, é flagrante a insegurança diante do fato de que, abolido o sistema penal, a
violência entre as pessoas venha a se dissipar cada vez mais diante da inexistência de um
controle penal estatal. Nesse pensar, comungando com as idéias Ferrajoli, expostas no capítulo
anterior, Carvalho registra com maestria:
154
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista do Tribunais, 2002, p.
203.
155
CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.). Teoria Agnóstica da Pena: o modelo garantista de
limitação do poder punitivo. Criticas à Execução Penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002, p. 37.
55
156
CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op. cit. p. 18.
157
Ibidem, p. 25.
158
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal.: introdução à sociologia do direito
penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 206.
56
[...] medida que o Estado se fortalece, consciente dos perigos que encerra a
autodefesa, assumirá o monopólio da justiça, produzindo-se não só a revisão
da natureza contratual do processo, senão a proibição expressa para os
particulares de tomarem a justiça por suas próprias mãos. Frente à violação
de um bem juridicamente protegido, não cabe outra atividade que não a
invocação da devida tutela jurisdicional. Impõe-se a necessária utilização
da estrutura preestabelecida pelo Estado- o processo judicial- em que,
mediante a atuação de um terceiro imparcial, cuja designação não
corresponde à vontade das partes e resulta da imposição da estrutura
institucional, será solucionado o conflito e sancionado o autor.162
159
JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense,1999, p.1.
160
MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2 ed. Campinas: Millennium, 2000, p. 3.
161
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Prática de Processo Penal. 24 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 85.
162
LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen
Júris, 2003, p. 3.
163
CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op cit. p. 23.
57
Por isso, sustenta-se que a justiça penal, por meio de seus órgãos, é indispensável ao
mínimo controle das reações de violência entre as pessoas e ao respeito dos direitos
fundamentais.165 Diante disso, manifesta-se débil a intenção abolicionista de resolver as
relações conflitivas de maneira informal, sem a intervenção estatal, com a participação
direita da vítima. Não obstante, tal debilidade se consolida pelo fato
164
CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op cit. p. 25.
165
SBARDELOTTO, Fábio Roque. Direito Penal no Estado Democrático de Direito: perspectivas (re)
legitimadoras. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2001, p. 202.
166
CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op cit. p. 19, 20.
167
Ibidem p. 20.
168
CARVALHO, Salo. Pena e Garantias: Uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de
Janeiro: Lúmen Júris, 2001, p. 277.
58
Por fim, deve-se rebater também a assertiva dos abolicionistas de que a justiça criminal
impossibilita a reparação dos danos gerados às vítimas dos delitos. Diante disso, não se pode
olvidar os ensinamentos de Frederico Marques, sobre as diferentes funções do direito penal e
170
do direito civil, de que cabem a este último as sanções, especificamente, reparatórias.
Nesse sentido, propugnar
Em suma, são várias as razões que impedem a abolição da esfera penal: as condições
em que as teses abolicionistas foram criadas, a segurança propiciada por aquela no resguardo
dos direitos humanos, as funções insubstituíveis do âmbito criminal, entre outros fatores.
Desse modo e diante dos malefícios do sistema penal hodierno nos países subdesenvolvidos,
cabe encontrar uma alternativa ajustada a ele.
169
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op cit. p. 246.
170
MARQUES, Frederico. Apud CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op. cit. p. 21.
171
CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op cit. p. 20.
59
principal função que é proteger os direitos dos homens, e ter seus efeitos negativos limitados.
Com base nisso, consolida-se a necessidade de um direito penal mínimo e garantista como
recurso adequado à situação atual da justiça criminal nos países latinos. Em consonância,
Ferrajoli aduz que tal modelo corresponde a um meio-termo ideal entre um modelo máximo
de direito penal e entre o abolicionismo.172 Nessa esteira, as penas são compreendidas como
um “mal menor”,173 devendo serem
[...] dirigidas para a tutela dos direitos fundamentais dos cidadãos contra as
agressões de outros associados. Significa, antes, que o direito penal tem
como finalidade uma dupla função preventiva, tanto uma como outras
negativas, quais sejam a prevenção dos delitos e a prevenção geral das penas
arbitrárias ou desmedidas. A primeira função indica o limite mínimo, a
segunda função indica o limite máximo das penas. Aquela reflete o interesse
da maioria não desviante. Esta, o interesse do réu ou de quem é suspeito ou
acusado de sê-lo. Os dois objetivos e os dois interesses são conflitantes entre
si, e são trazidos pelas duas partes do contraditório no processo penal, ou
seja, a acusação, interessada na defesa social e, portanto, em exponenciar a
prevenção e punição dos delitos, e a defesa, interessada na defesa individual,
e via de conseqüência, a exponenciar a prevenção de penas arbitrárias. 174
172
QUEIROZ, Paulo. A justificação do direito de punir na obra de Luigi Ferrajoli: algumas observações críticas.
Revista IBCCRIM, São Paulo, n. 27, ano 7, jul/set, 1999, p. 145.
173
FERRAJOLI, Luigi, op. cit. p. 271.
174
Ibidem, p. 269.
175
Ibidem, p. 270.
176
Ibidem, p. 267, 268.
60
Pode-se afirmar que nas duas últimas décadas um dos temas de maior
ressonância no panorama crítico do sistema penal tem sido hiperinflação
legislativa fazendo com que se reduza intensamente o poder coercitivo do
Direito Penal em face da rotineira criação de tipos que não satisfazem as
exigências de proteção dos bens jurídicos fundamentais. Tem sido uma
constante o recurso às leis penais para atender interesses conjunturais do
Estado ou de grupos de pressão.180
Ocorre que esse intenso apelo às leis penais ocasionou o desenvolvimento de algumas
correntes minimalistas que desejam contê-lo, as quais propugnam pela descriminalização e a
despenalização das condutas tipificadas como crime.
177
QUEIROZ, Paulo, op. cit. p.145.
178
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal. 5 ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2004, p. 341.
179
DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 37.
180
Idem.
181
CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 72.
61
182
renúncia jurídica de agir num conflito pela via do sistema penal , ou seja, a lei deixa de
prever um fato como crime e, conseqüentemente, de penalizá-lo. Já a segunda, de acordo com
Aniyar de Castro, ocorre “quando o sistema penal deixa de funcionar sem que formalmente
tenha perdido competência para tal, quer dizer, do ponto de vista técnico-jurídico, nesses
casos, permanece ileso o caráter de ilícito penal, eliminado-se somente a aplicação efetiva da
pena”.183 Com essa ideação, a autora compreende essa forma de descriminalização como uma
modalidade de despenalização,184 que, por sua vez, é definida, por Zaffaroni como o ato de
“degradar” a pena de um delito sem descriminalizá-lo, no quê entraria toda a possível
aplicação das alternativas às penas privativas de liberdade.185 Para Baratta, a despenalização
trata de aliviar a pressão negativa do sistema punitivo sobre as classes menos favorecidas
economicamente e de diminuir seus efeitos negativos sobre elas. Além disso, tais alternativas
propiciam a substituição das sanções penais por outros meios de controle legal não
estigmatizantes e de maior aceitação social.186 Ademais, Cervini opina que às
182
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal. 5 ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2004 , p. 340.
183
CASTRO, Aniyar de. Apud CERVINI, Raúl, op. cit. p. 74.
184
Ibidem, p. 74.
185
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal. 5 ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2004, p.341.
186
BARATTA, Alessandro, op. cit. 202.
187
CERVINI, Raúl, op. cit. p. 76.
62
Tais princípios, ordenados e conectados, são “as regras do jogo” do direito penal, ou
seja, possibilitam estabelecer a responsabilidade penal;193 são, segundo Ferrajoli, as
194
respostas de várias questões, que possibilitam o exercício do direito penal. Nesse
diapasão, os três primeiros princípios, respondem a quando e como se deve punir alguém.195
O princípio da retributividade ou da sucessividade da pena perante o delito expressa que a
penalização deve ocorrer como retribuição à realização de um crime, o qual é pressuposto
para uma sucessiva punição.196
192
QUEIROZ, Paulo, op. cit. 145.
193
FERRAJOLI, Luigi, op. cit. p. 75.
194
Ibidem, p. 75.
195
Idem.
196
QUEIROZ, Paulo, op. cit. p. 145.
197
COPETTI, André. Direito Penal e estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000,
p. 111.
64
Diante disso, Ferrajoli, com seu enfoque garantista, criou um modelo normativo
fundado na legalidade estrita ou substancial, o qual é definido como uma técnica legislativa
que pretende evitar convenções penais arbitrárias e discriminatórias dirigidas às pessoas.
Com ela, deseja-se que as normas penais sejam, apenas, “regulamentares” dos delitos, não
“constitutivas”. Diante disso, concede-se aos cidadãos a possibilidade de fazer qualquer coisa
não proibida em lei, pois não serão penalizados por fato que não esteja legalmente tipificado.
198
DOTTI, René Ariel, op. cit. p. 69.
199
COPETTI, André, op. cit. p. 123, 124.
65
ordenamento constitucional e penal, a lesão efetiva a bens jurídicos não se apresentaria como
pressuposto necessário para que condutas (comissivas ou omissivas) venham a ser tipificadas
como crime no sistema penal.200 Em conformidade, o princípio da materialidade prevê a
necessidade de que os danos causados aos bens legalmente protegidos tenham
exteriorizações, ou seja, tenham materialidade. Já, o princípio da culpabilidade, analisado no
primeiro capítulo, define que um delito não é proibido se não for culpável. Para Bitencourt,
este princípio é recebido em três sentidos:
Por fim, os princípios restantes arrolados são utilizados para solucionar a dúvida de
quando e como julgar. O princípio da verificação determina que o ônus probatório cabe à
acusação, isto é, o acusador deverá trazer ao processo as provas do que alegou sobre o fato
delituoso.202 O princípio do acusatório traz à lume “a regra da igualdade processual, segundo a
qual as partes – acusadora e acusada – se encontram no mesmo plano, com iguais direitos.”203
Assim, a paridade entre partes previne que alguma delas obtenha qualquer vantagem no
decorrer processual. Com esse viés, o princípio do contraditório, versado no artigo 5º, inciso
200
COPETTI, André, op. cit. 124.
201
BITENCOURT, César Roberto. Manual de Direito Penal: Parte Geral. 5. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1999, p. 44, 45.
202
QUEIROZ, Paulo, op. cit. 145.
203
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. vol. 1. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 50.
66
LV, da Constituição Federal,204 sustenta a concessão do direito de defesa aos acusados, com a
possibilidade de produzir todos os meios de prova legais necessários.
Assim, de acordo com tal princípio, a defesa não pode sofrer restrições,
mesmo porque o princípio supõe completa igualdade entre acusação e
defesa. Uma e outra estão situadas no mesmo plano, em igualdade de
condições, e, acima delas, o Órgão Jurisdicional, como órgão “superpartes”,
para, afinal, depois de ouvir as alegações das partes, depois de apreciar as
provas, “dar a cada um o que é seu”.205
Enfim, compete dizer que, como explica Lopes Júnior, os dez princípios garantidores
ora apresentados foram deslocados por Ferrajoli da concepção de confinamento que possuem
para serem inseridos no centro do sistema penal.208 Como aponta Ibãnez, “não se trata de
garantir unicamente as regras do jogo, mas sim, um respeito real e profundo aos valores do
jogo, com os que – agora - já não cabe jogar.”209 Desse modo, tais preceitos devem ser
orientações vinculadas a qualquer exercício do sistema penal.
204
Art. 5º. LV- “Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados
o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”
205
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. vol. 1. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 49.
206
LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit. p. 13.
207
QUEIROZ, Paulo, op. cit. 145.
208
LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit. p.13.
209
IBÃNEZ. Apud, LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit. p.13.
210
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Apud CARVALHO, Salo de. Teoria Agnóstica da Pena: o modelo garantista de
limitação do poder punitivo. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op. cit. p. 27.
67
direciona a este poder e, sim, ao juiz, enquanto, a punição ocorre no âmbito administrativo e
não judiciário.211
No que corresponde às teorias preventivas, pode-se dizer que são os principais focos
de críticas dos garantistas e minimalistas.Inicialmente, a prevenção geral
Dessa maneira, nota-se que as pessoas não se abstêm de delinqüir por existir a previsão
de uma pena à sua conduta. Ademais, as [...] teorias preventivas, como as retributivas, não
conseguem sair de outro entrave: sua impossibilidade de demonstrar quais são os
comportamentos diante dos quais o Estado tem legitimidade para intimidar e, assim, sendo
não define também o âmbito do punível.214
211
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Apud CARVALHO, Salo de.Teoria Agnóstica da Pena: o modelo garantista de
limitação do poder punitivo. In: CARVALHO, Salo de (Org.). op. cit. p. 28.
212
ZAFFARONI, José Henrique Pierangeli; Eugenio Raúl. Manual de Direito Penal. 5 ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004, p. 342.
213
BITENCOURT, César Roberto. Manual de Direito Penal: Parte Geral. 5. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1999, p. 110.
214
Idem.
68
215
OLIVEIRA, Edmundo. Apud SICA, Leonardo, op. cit. 46.
216
CERVINI, Raúl, op. cit. p 45.
217
CERVINI, Raúl, op. cit. p. 34.
218
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 202.
219
CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op. cit. p. 29.
69
política da sanção,220 a qual precisa ser mantida como o mínimo de coerção necessária para o
controle social.221 Tal necessidade de manutenção integra as bases teóricas do utilitarismo
reformado de Ferrajoli,222 pelo qual argumenta que a pena é instrumento necessário nos dias
de hoje, porém com as devidas limitações na sua aplicação. Assim, “[…] o modelo garantista
recupera a funcionabilidade da pena na restrição e imposição de limites ao arbítrio
sancionatório judicial e administrativo.”223
[…] concebe o fim da pena não apenas como prevenção aos injustos delitos,
mas também, e principalmente, como esquema normativo de prevenção da
reação informal, selvagem, espontânea, arbitrária que a falta das penas
poderia ensejar. Desde este ponto de vista, a pena se apresenta como guardiã
do direito do infrator em não ser punido senão (proporcionalmente) pelo
estado, redimensionado a função do direito e do processo penal à proteção da
pessoa que se encontra em situação de violência.224
Desse modo, tanto a existência, como a (re) legitimação do direito penal vinculam-se
diretamente ao dever de os direitos fundamentais nortearem sua aplicação, intentando a
220
CARVALHO, Salo. Penas e Garantias: uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de
Janeiro: Lúmen Júris, 2001, p. 283.
221
SICA, Leonardo, p. 44.
222
CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op. cit. p. 34.
223
Ibidem, p. 33.
224
CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op. cit. p. 34.
225
COSTA, Renata Almeida da. Abolicionismo utópico e garantismo penal tópico. Revista Justiça do Direito.
vol. 1, n. 16. ano 2002, p. 77.
226
SBARDELOTTO, Fábio Roque. Direito Penal no Estado Democrático de Direito: perspectivas (re)
legitimadoras. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2001, p. 201.
70
minimização dos prejuízos gerados por aquele. Ademais, isso não parece impossível, pois tais
garantias já estão inseridas no sistema normativo penal, bastando efetivá-las. De tal sorte,
diferentemente do abolicionismo, que ainda se demonstra uma utopia, o minimalismo e o
garantismo apresentam-se como solução adequada e tópica à realidade atual,227 que vem
necessitando, urgentemente, de mudanças voltadas a humanização de seus mecanismos de
controle.
227
COSTA, Renata Almeida da, op. cit. p. 77.
71
CONSIDERAÇÕES FINAIS
humanos. Com isso e por ser mera manifestação de poder, aplicada a uma minoria descoberta
pelo sistema criminal, a pena é taxada como ilegítima. Contudo, para ofuscar tais evidências,
cria-se uma falsa ilusão à coletividade, pelos meios de comunicação de massa, sobre a
maximização da violência social, o que dissipa a impressão de que somente a justiça criminal
é capaz de contê-la.
Outrossim, percebeu-se que no entendimento abolicionista, a vítima é parte excluída
pelo sistema penal, o qual desconsidera os interesses daquela. Logo, com o intuito de acabar
com tais danos, a teoria abolicionista se revelou propugnar pela solução comunitária e
informal dos dissídios entre os cidadãos, sustentando que a intervenção estatal se resuma à
esfera cível, quando esta for realmente necessária. Para isso, asseverou-se que o
abolicionismo advoga por uma mudança da linguagem hodierna por outra não-punitiva,
voltada a alcançar maiores benefícios às partes do litígio e, conseqüentemente, à
coletividade, através da paz social. Nesse diapasão, a doutrina abolicionista é de grande valia
à ciência penal, pois evidencia de forma radical os defeitos da justiça criminal e, assim,
revela que modificações devem ocorrer urgentemente.
não existência de um sistema jurídico responsável à contenção das ofensas aos bens jurídicos
de profunda proeminência individual e coletiva.
Contudo, advertiu-se que não estão sendo aceitas as falhas do sistema penal ao ser
sustentada a sua necessidade, pois junto a isso foi proposta uma outra alternativa a ele, que
visa, pelo menos, minimizar os prejuízos que ocasiona. Tal alternativa teve seu fulcro
ressaltado num direito penal garantista e mínimo, assentado no exercício de uma justiça
criminal garantidora e presente quando mister. Nesse magistério, foi indispensável referir a
ligação existente entre a linha garantista e a minimalista do direito penal, porquanto de serem
demonstradas a valorização dos princípios constitucionais, por parte da primeira, e do
surgimento da segunda através do princípio da intervenção mínima.
Por sua vez, compreendeu-se direito penal mínimo, ou minimalismo, como uma
limitação à ciência penal, pois essa se mostrou útil somente quando as demais esferas de
controle da sociedade forem ineficazes. Com isso, denotou-se que o direito penal não deve ser
suprimido, porém vinculado a atuar limitadamente e a agir com cautela para não dissipar
danos em ocasiões não oportunas. Nessa seara, algumas linhas teóricas, como a
descriminalização e a despenalização, se consolidam com o condão de implantar o
minimalismo de forma prática na realidade cotidiana, sustentando, respectivamente, que
74
alguns crimes deixem de ser tipificados e que outros não sejam punidos com penas privativas
de liberdade, a principal responsável pelos malefícios do sistema criminal.
Nessa linha, observou-se que a pena se mantém, ainda, pela função limitativa que
exerce sobre as reações ilegais e irrestritas da população e do Estado. Por conseguinte, a pena
possui um caráter, eminentemente, político, servindo como mero instrumento de fato para o
controle social estatal. Esse viés político advém, principalmente, da forma como os fatos
delitivos são estabelecidos, através da ideologia de políticos que integram o Poder Legislativo,
e que criam os tipos penais.
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