Sie sind auf Seite 1von 71

9

Críticas Ao Sistema : O Abolicionismo Penal.


Priscila Formigheri Feldens

INTRODUÇÃO

O presente trabalho se constitui em uma monografia jurídica, destinada a servir como


requisito parcial para a obtenção do título de bacharel em Direito. O tema escolhido versa
sobre o sistema penal brasileiro e a teoria do abolicionismo penal. O estudo em análise é
bastante oportuno porque seus conteúdos fazem parte da ciência criminológica contemporânea
e vêm sendo estudados em vários países do mundo. Ademais, questões como a fragilidade das
teorias da pena, impunidade pelas autoridades, a estigmatização gerada por um processo
criminal, a seletividade dos delitos, a corrupção dentro dos órgãos controladores, são
argumentos abordados pela teoria abolicionista e que possibilitam a indagação sobre o número
de benefícios e ônus do direito penal.

Essa pesquisa analisa as idéias abolicionistas do direito penal, através de seu conceito,
origem e desenvolvimento, seus principais defensores e opressores e respectivas sustentações.
Com esse enfoque, disserta sobre os pontos positivos e negativos de seus fundamentos para,
então, concluir se a teoria abolicionista se ajusta a realidade atual brasileira, ou se há outra
política criminal mais adequada e o que esta sustenta. Ademais, a ciência penal é colocada em
discussão através do movimento abolicionista, o qual defende algumas soluções extremas, o
que propicia expor a todos que o direito penal não atinge a maioria de seus objetivos e, assim,
estimular um senso crítico social que minimize a inclinação à vingança punitiva arraigada na
consciência popular.

Nessa esteira, a resposta sobre a possibilidade de aplicação das propostas


abolicionistas, ou de outra mais adequada, é revelada no transcorrer do trabalho, em seus três
capítulos. Inicialmente, apresenta-se o surgimento do controle social, desde o período do
contrato social, em que se ergueu o ius puniendi, até os dias de hoje, manifestado pelo
exercício do sistema penal. Destarte, são analisadas a definição, a estrutura e a função da
10

justiça criminal, sem perder de vista a abordagem do direito penal, o qual é considerado seu
núcleo central.

Posteriormente, num segundo capítulo, é exposto o ideário do abolicionismo penal nos


vieses de seus diferentes sustentadores e de seu mais conhecido crítico, Luigi Ferrajoli. Por
derradeiro, verifica-se a adequação da teoria em questão à realidade social do Brasil, bem
como a possível existência de outra doutrina mais ajustada.

O marco teórico deste estudo centra-se, principalmente, no pensamento de Louk


Hulsman, Eugenio Raúl Zaffaroni e Luigi Ferrajoli. Outrossim, o método de abordagem
utilizado para o desenvolvimento desta pesquisa é o método dialético, o qual analisa um
objeto (o sistema penal) em sua atividade contínua, tentando demonstrar o que é falso e
verdadeiro, através de debates, questionamentos e argumentos.
11

1 O CONTROLE SOCIAL PENAL

Desde os tempos primitivos, no período paleolítico da pré-história1, havia conflitos


entre os seres humanos que viviam isolados e com o intuito único de sobrevivência. Tais
conflitos eram resolvidos diretamente entre as partes, de acordo com suas intuições, visto que
não possuíam regra alguma que regulasse suas relações. Assim, cabia às pessoas daquele
tempo a legitimidade para solucionar tais questões.

Como explica Chauí, para Thomas Hobbes (século XVII) e Jacques Rousseau (século
XVIII), essas condições configuravam o chamado “estado de natureza”, o qual era visto de
maneira um pouco distinta entre os dois pensadores. Hobbes defendia que o “estado de
natureza” era a maneira de viver isoladamente numa situação permanente de guerra, onde
predominava o medo da morte violenta. Dessa forma, como meio de defesa surgiram as armas
e iniciou-se a demarcação de territórios. Entretanto, tal atitude era inútil, pois não havia
garantias, e a única segurança era que o mais forte sempre vencia.2 Já Rousseau aduzia que

[...] em Estado de Natureza, os indivíduos vivem isolados pelas florestas,


sobrevivendo com o que a Natureza lhes dá, desconhecendo lutas e
comunicando-se pelo gesto, o grito e o canto, numa língua generosa e
benevolente. Esse estado de felicidade original, no qual os humanos existem
sob a forma do bom selvagem inocente, termina quando alguém cerca um
terreno e diz:“É meu”. A divisão entre o meu e o teu, isto é, a propriedade
privada, dá origem ao Estado de Sociedade, que corresponde, agora, ao
Estado de Natureza hobbesiano da guerra de todos contra todos. 3

Com o passar dos séculos, e a evolução humana, as pessoas começaram a sentir a


necessidade de acabar com essa exposição contínua à ameaças, como também, de melhor se

1
COTRIM, Gilberto. História global: Brasil e geral. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 13.
2
CHAUÍ, Marilena. Filosofia. 6 ed. São Paulo: Ática, 1997, p. 399.
3
Idem.
12

coordenarem entre si, diante da desagregação e da desorganização em que viviam, pois esses
fatores retardavam o seu desenvolvimento.

1.1 Controle Social

Foi a partir da idade dos metais4, ainda na época pré-histórica, que surgiu a civilização
como conseqüência de uma organização social de homens que fatigados

[...] de só viverem em meio a temores e de encontrar inimigos em toda parte,


cansados de uma liberdade cuja incerteza de conservá-la tornava inútil,
sacrificaram uma parte dela para usufruir do restante com mais segurança. A
soma dessas partes de liberdade, assim sacrificadas ao bem geral, constituiu
a soberania da nação; e aquele que ficou encarregado pelas leis como
depositário dessas liberdades e dos trabalhos da administração foi
proclamado o soberano do povo. 5

Nesse magistério, Rousseau e outros pensadores, no século XVIII, desenvolveram a


teoria do contrato social, sustentando que todos os cidadãos realizam um acordo com um
poder maior, o Estado, limitando parcela de suas liberdades e obedecendo a determinadas
normas estabelecidas em função do alcance de um escopo: o bem comum. Desse modo, a
concessão voluntária de parte da liberdade por cidadãos em situação de igualdade legitima o
contrato social e forma a chamada “vontade geral”, que deverá ser seguida e respeitada por
todos. A respeito disso, Foucault manifesta:

Ao nível dos princípios, essa nova estratégia é facilmente formulada na


teoria geral do contrato. Supõe-se que o cidadão tenha aceito de uma vez por
todas, com leis as da sociedade, também aquela que poderá puni-lo. O
criminoso aparece então como um ser juridicamente paradoxal.Ele rompeu o
pacto, é portanto inimigo da sociedade inteira, [...].
Efetivamente a infração lança o indivíduo contra todo o corpo social; a
sociedade tem o direito de se levantar em peso contra ele, para puní-lo. Luta
desigual: de um só lado todas as forças, todo o poder, todos os direitos. E
tem mesmo que ser assim, pois aí está representada a defesa de cada um. 6

4
COTRIM, Gilberto, op. cit. p. 16.
5
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Editora Martin Claret, 2003, p. 19.
6
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 19 ed. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 76.
13

Todavia, o exercício da punição daqueles que descumprem o contrato social é


delegado ao Estado, que é o representante do povo e possui a responsabilidade de criar as leis,
de acordo com os anseios e com os princípios gerais da coletividade e, conseqüentemente, de
observar seu cumprimento, exercendo o chamado controle social.

Dentro de um paradigma sociológico, Lakatos afirma que o controle social conceitua-


se como a reação a uma conduta desviada através de suas sanções, que objetivam punir tal
desvio, impedir sua repetição e modificar as condições que o propiciaram. 7 Essa reação se
intensifica na medida dos valores e dos princípios da coletividade controlada, sempre
direcionada à busca da solidariedade e do bem estar de seus componentes. Seguindo essa
linha, o jurista Sica afirma que

[...] pode-se dizer que existem dois fatores determinantes para a disciplina
do controle social. O primeiro, a fixação de valores tidos como consensuais,
que se sobrepõe à vontade individual, concretizando uma pressão sobre o
indivíduo para que tenha certos comportamentos e, principalmente, se
abstenha de outros. Essa determinação é a base do conceito de bem-estar
comum. O segundo, consectário do primeiro: a necessidade de garantir a
ordem contra os comportamentos desviantes.8

O controle possui total vinculação com a existência da vida social, pois ele surge a
partir da sociedade e para ela. Lakatos referencia que, na concepção do sociólogo Edward
Ross (autor da primeira obra sobre controle social), o homem já nasce com os instintos da
simpatia, da sociabilidade, do senso de justiça e do ressentimento aos maus tratos, o que o
torna apto a estabelecer um convívio equilibrado com os demais. Se não houvesse as
alterações complexas das sociedades, essa harmonia se tornaria mais fácil de ser conquistada.
Portanto, é nesse ponto que o controle social mostra-se necessário, e os recursos íntimos do
controle humano passam a ser substituídos por mecanismos artificiais como a lei, a opinião
pública, a crença, a religião, a sugestão social (tradição, convenções) a influência de certas
personalidades marcantes, a ilusão e a avaliação social.9

Nesse diapasão, verifica-se que os meios de controle social são plúrimos, não bastando
somente o seu exercício através do Estado. Assim, podem ser informais (internos), como o
exercício da própria consciência através de valores e de princípios pessoais desenvolvidos
7
LAKATOS, Eva Maria. Sociologia Geral. 5 ed. São Paulo: Atlas, 1986, p. 239.
8
SICA. Leonardo. Direito penal de emergência e alternativas à prisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002,
p. 28.
9
LAKATOS, Eva Maria, op. cit. p. 247.
14

durante toda a vida, ou formais (externos), estabelecidos para a convivência social. Mais
especificamente, pode-se dizer que os

[...] primeiros são os processos pelos quais a sociedade busca educar o


indivíduo, desde a infância (família, escola, igreja etc.), interiorizando
valores e, em suma, formando uma consciência que impeça ou reprove a
prática de condutas que se desviem do padrão ético-social de
comportamentos. Já os externos são os mecanismos, em regra punitivos,
estabelecidos institucionalmente para reprimir e, em tese, prevenir e reprimir
atos atentórios às normas. Aqui se corporificam as instâncias formais de
controle, dentre as quais o sistema penal.
As instâncias formais atuam sempre a posteriori, ou seja, como reação à
desviação. Por isso o recuso àquelas (informais) há que ser valorizado,
devendo ter preferência de atuação, pois pela sua atuação -única e
exclusivamente- podem ser definidas as bases de consenso as quais deve
operar o sistema penal.10

Dentre as formas de sua efetivação, o controle social desenvolve-se com viés


orientador (positivo), quando é demonstrado como determinados cidadãos devem se portar, e
com intuito repressor (negativo), quando esses são censurados pelo descumprimento de
determinada instrução.11 Ele também ocorre de maneira institucional, através do Estado, com
a exigência do cumprimento das normas, e não-institucional, com os ensinamentos recebidos
diante da proliferação de princípios e de valores resultantes do simples convívio grupal. Como
agentes deste último se incluem a família, a escola, a igreja, o clube, os grupos econômicos,
políticos e qualquer outro agrupamento de pessoas que possuem ideais próprios a serem
seguidos.12 Assim, o controle social se efetua de acordo com o tamanho de cada grupo, com
as pessoas que nele se encontram, com os objetivos e com a intensidade de inter-relação das
mesmas. Além disso, varia conforme os instrumentos utilizados para seu exercício.

Ainda, cabe dizer que algumas classes privilegiadas, tanto econômica quanto
intelectualmente, utilizam-se de interesses e de discursos próprios para desenvolver um maior
controle sobre outras com menos privilégios. Uma amostra exorbitante disso é o poder
influenciador da mídia que, através da maneira pela qual transmite uma informação, consegue
induzir conclusões e modificar pensamentos. Neste sentido, os

10
SICA, Leonardo, op. cit. p. 29.
11
LAKATOS, Eva Maria, op. cit. p. 249.
12
Ibidem, p. 150.
15

[...] habitantes do mundo pós-moderno já se acostumaram a apreender o real


através da intermediação midiática, já se acostumaram a trocar as
experiências direitas da realidade pelas experiências do espetáculo da
realidade, a trocar até mesmo sua identificação, sua comunicação e muitos de
seus afetos por vivências transmitidas e emoções formadas pela televisão,
pelas revistas e pelos jornais. 13

É por intermédio desse controle realizado pelos meios de comunicação que se


intensificam as exigências de outra instância de controle, a do sistema penal. Essa esfera é,
segundo Zaffaroni, “a parte do controle social que resulta institucionalizado em forma
punitiva e com discurso punitivo [...]”14

Com fulcro nesse discurso punitivo, a mídia promove a divulgação dos conflitos
penais repetidamente, de modo exacerbado e com fundo emocional, intensificando o terror e a
insegurança gerada pela violência com o intuito de elevar a audiência popular. Desse modo, a
“[...] força ideológica da enganosa publicidade do sistema penal cria a falsa crença que faz
com que o controle social, fundado na intervenção do sistema penal, apareça como única
forma de enfrentamento de situações negativas ou condutas conflituosas”.15

O sistema penal estabelece um controle sobre a sociedade através do Estado, que é o


responsável pela mantença da ordem em prol do bem-estar social. Quando as leis impostas
pelo Estado são violadas, cabe-lhe aplicar uma sanção, a pena, que, além de punir, objetiva
prevenir a prática de novos crimes pelo acusado e servir de exemplo aos outros cidadãos para
que também não o façam. É nessa seara que a mídia interfere com seu discurso emocional,
provocando a comoção social e apelando para o rigorismo das sanções com um controle mais
rígido pelos órgãos estatais, além de estimular estes a tomarem providências em que diversas
vezes não cabem a eles.

Nesse sentido, são as outras esferas de controle que devem se consolidar. Conforme
Queiroz “o Sistema Penal tem, dentro do controle social global, um papel secundário,
puramente confirmador de outras instâncias,”16 ou seja, caso a família, a escola, e as outras

13
KARAM, Maria Lúcia.Pela Abolição do Sistema Penal. In: PASSETI, Edson (Org.). Curso livre de
abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 77,78.
14
ZAFFARONI, José Henrique Pierangeli; Eugenio Raúl. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 4 ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 69.
15
KARAM, Maria Lúcia, op. cit. p 103.
16
QUEIROZ, Paulo. Eficientização do controle social não-penal , IBCCRIM. Disponível na internet:
<http://www.ibccrim.org.br..html> Acesso em: 08 ago. 2005.
16

instituições sociais falharem ou não forem totalmente exploradas, o controle penal deve agir.
Nessa mesma direção, Queiroz defende que fundamental

[...] é privilegiar outras instâncias de controle social (família, escola,


informação, etc.), por meio sobretudo da democratização da prevenção e da
eficientização do controle administrativo, reservando a intervenção penal
para situações absolutamente irrenunciáveis, segundo os princípios de
adequação, lesividade, proporcionalidade, porque, definitivamente, o
controle da criminalidade tem, em verdade, pouco a ver com o controle
penal. 17

Entretanto, é flagrante que o controle social não ocorre desse modo, porque se realiza
por diversos âmbitos e em diferentes intensidades, tendo em vista a preferência de interesses e
a urgência do controle. Em conformidade, Zaffaroni e Pierangeli ressaltam que o

[...] controle social se vale, pois, desde meios mais ou menos “difusos” e
encobertos até meios específicos, como é o sistema penal (polícia, juízes,
agentes penitenciários, etc.). A enorme extensão e complexidade do
fenômeno do controle social demonstra que uma sociedade é mais ou menos
autoritária ou mais ou menos democrática, segundo se oriente em um ou
outro sentido a totalidade do fenômeno e não unicamente a parte do controle
social institucionalizado ou explícito. 18

Enfim, é possível dizer que o controle social se manifesta através de diversas facetas
no cotidiano de todos os cidadãos, tanto por estímulos internos, como por instrumentos
externos, os quais muitas vezes inobservados, ocasionam determinadas punições aos membros
da sociedade. O controle social se demonstra mais eficiente e útil na medida em que se
valoriza o conjunto de suas esferas, priorizando aquelas com menos prejuízos às pessoas. Para
tanto, cabe aos cidadãos uma maior conscientização sobre as intenções de controle, bem como
uma mobilização a favor de políticas públicas para um maior direcionamento ao controle
informal, através de implementação de programas de apoio e de desenvolvimento para a

17
QUEIROZ, Paulo. Eficientização do controle social não-penal , IBCCRIM. Disponível na internet:
<http://www.ibccrim.org.br..html> Acesso em: 08 ago. 2005.
18
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique, op. cit. p. 61,62.
17

família, a escola, a igreja e outras instituições, assim se mostrará desnecessária a intervenção


formal em diversos casos.

1.2 Ius puniendi

Como explicado anteriormente, em certo momento de progressão da sociedade foi


concedido ao Estado, como manifestação de sua soberania, o encargo de exercer determinado
controle social. Para isso, criou normas com o propósito de proteger os interesses dos
cidadãos.

No entanto, verificada a possibilidade de a proteção normativa falhar, ou constatada a


não observância dos mandamentos legais por todos os integrantes da sociedade, foi outorgado
unicamente ao Estado o exercício de um poder-dever denominado ius puniendi. Este, ao
mesmo tempo em que é entendido como um direito, demonstra uma obrigação estatal de punir
o indivíduo que perturba a harmonia social ao não considerar o preceito das normas. Dessa
maneira, o direito de punir se exibe abstratamente com a instituição das leis ao prever uma
possível pena a ser empregada àqueles que as infrinjam. Entretanto, quando essa violação
legal se concretiza, cabe ao Estado o dever efetivo de aplicar a punição adequada ao
responsável transgressor.19

Conforme Mossin, o “dever concreto de punir do Estado decorre de sua própria


atividade política voltada ao interesse coletivo, ao equilíbrio societário que deve haver entre
os cidadãos”. 20 É nesse supedâneo que se alicerça a legitimação do poder estatal em limitar o
jus libertatis dos cidadãos, à medida que isso seja necessário para conservar o bem estar
social. “Desse modo, o estado pode exigir que o interesse do autor da conduta punível em
conservar a sua liberdade se subordine ao seu, que é o de restringi-la com inflição de pena”. 21

É importante acentuar, entretanto, que o dever-poder do Estado de diminuir a liberdade


de agir das pessoas também possui suas restrições. Foi a partir do desenvolvimento das
doutrinas liberais do iluminismo no século XVIII, resultante na queda dos governos
absolutistas, que passaram a ser desenvolvidas idéias de contenção do poder estatal, como
explica Zeidan:

19
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 6.
20
MOSSIN, Heráclito Antônio. Curso de processo penal. vol. 1. São Paulo: Atlas, 1998, p. 75.
21
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, op.cit. p. 6.
18

Na doutrina do liberalismo, o Estado foi sempre o fantasma que atemorizou


o indivíduo. O poder, de que não pode prescindir o ordenamento estatal
aparece, de início, na moderna teoria constitucional como maior inimigo da
liberdade, levando efetivamente a reconstituição da autoridade, em bases
completamente novas que dessem ao indivíduo, com a Carta de seus direitos
fundamentais, ideologia fundada em valores rígidos e absolutos. 22

De acordo com Zeidan, a eclosão da Revolução Francesa, com a intensa propagação de


seu lema “liberdade, fraternidade e igualdade”, foi um marco histórico para a garantia dos
direitos dos cidadãos frente a eles mesmos e ao Estado.23 Ademais, nesse mesmo período, com
a Declaração dos Direitos do Homem, em 1791, muitos princípios defensivos da atuação
limitada do poder estatal foram expressos, entre eles o princípio da legalidade, em seus artigos
7º e 8º.

Anteriormente, o pensador marquês de Beccaria já explanava o princípio da legalidade


em seu livro Dos delitos e das penas (1764) ao declarar que “[...] apenas as leis podem indicar
as penas de cada delito e que o direito de estabelecer leis penais não pode ser senão da pessoa
do legislador, que representa toda a sociedade ligada por um contrato social”.24

Hodiernamente, o referido princípio se faz presente na atual Constituição Federal


brasileira através de três diferentes acepções: a reserva legal, a taxatividade e a
irretroatividade. A reserva legal, estabelecida expressamente no artigo 5º, inciso XXXIX, da
Constituição Federal, sustenta-se por meio da máxima latina nullum crimen, nulla poena sine
lege, ou seja, não há crime, nem pena, sem lei. Melhor delineando, deve-se dizer que existe a
exigência concreta de que, para um fato ser considerado crime e serem aplicadas medidas
sancionadoras ao seu autor, haja uma lei, elaborada anteriormente, que determine ser o
referido fato um ilícito penal. Dessa forma, tal ideário afirma-se como uma forma de
resguardo humano diante de possíveis arbitrariedades daqueles que detêm o poder. Com esse
sentir, Luisi ensina que ao

22
ZEIDAN, Rogério. Ius puniendi, estado e direitos fundamentais: aspectos de legitimidade e limites da
potestade punitiva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002, p. 36.
23
Ibidem, p. 143.
24
BECCARIA, Cesare, op. cit. p. 20.
19

[...] reiterar na Constituição de 1988 o postulado da Reserva Legal, o


constituinte brasileiro não somente manteve um princípio já secularmente
incorporado ao direito pátrio, mas se aliou às Constituições e ao Código
Penais de quase totalidade das Nações já que o mencionado princípio é uma
essencial garantia a liberdade e de objetiva justiça.25

Quanto à concepção da taxatividade derivada do princípio da legalidade, pode-se


entendê-la como a necessidade de a lei ser clara e determinada, não passível de ambigüidades,
de compreensão ampla, ou então, de espaço aberto para vastas interpretações. Diante disso,
Toledo explica que

A exigência da lei certa diz com a clareza dos tipos, que não devem deixar
margens a dúvidas nem abusar do emprego de normas muito gerais ou tipos
incriminadores genéricos, vazios. Para que a lei penal possa desempenhar
função pedagógica e motivar o comportamento humano, necessita ser
facilmente acessível a todos, não só aos juristas.26

Por sua vez, o postulado da irretroatividade legal, capitulado no artigo 5º inciso XL da


Constituição Federal, exprime a impossibilidade de a lei retroagir no tempo, exceto para
beneficiar o réu. Dessa maneira, se a lei que vier a viger for mais benéfica ao acusado, esta
será aplicada ao caso, mesmo que tenha sido anterior à lei. Entretanto, se a nova lei puder
causar algum dano ao agente delitivo, não será empregada. É possível, portanto, afirmar que a

[...] regra da retroatividade benigna, ao projetar seus efeitos para o passado,


acaba atuando como fator de equalização das diferenças, de tal modo que o
indivíduo condenado sob o império da lei mais gravosa possa vir também a
se beneficiar dos efeitos da lei posterior, instrumentalizadora da nova visão
da sociedade sobre o mesmo fato.27

25
LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. 2 ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003, p. 23, 24.
26
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 29.
27
BOSCHI, José Antonio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. Porto Alegre: Livraria dos
Advogados, 2000, p. 45.
20

Diante dos três preceitos expostos, vale salientar que o princípio da legalidade se
realiza ao determinar a fixação normativa do conteúdo penal, a forma e o tempo em que ele
atua. Nesse proceder, é através da lei que cabe ao Estado o poder de instituir as condutas
consideradas como proibidas e prejudiciais à vida social e as suas respectivas penas. No
entanto, isso se faz com devidas restrições de como tais normas devem funcionar, para
garantir proteção àqueles que se subjugam a elas.

Como o princípio da legalidade, há outros princípios expressos ou implícitos na


Constituição Federal que servem como limitadores do ius puniendi e que devem ser
examinados. Entre esses, primeiramente, é oportuno destacar o princípio da intervenção
mínima, o qual defende que a atividade penal deve proceder somente subsidiariamente, ou
seja, ser utilizada em última hipótese para a resolução dos conflitos e não protegendo de forma
absoluta os interesses sociais. Destarte, deve-se dar preferência legislativa a outras esferas de
controle, que não sejam a penal, com o intuito de se precaver dos possíveis prejuízos que a
interferência rígida do sistema criminal possa causar.28 Não obstante, tal atuação, entendida
como rígida ou severa, não é descartada, pois é utilizada na ocorrência de lesões graves a bens
jurídicos de grande relevância à sociedade. Ainda, Boschi destaca:

O princípio da intervenção mínima e fragmentária do direito penal, na


concepção garantista, traduz, portanto, proposição substitutiva do Estado
Penal por um Estado (mais) Social, de modo a que o direito penal, como
soldado de reserva, só seja convocado a atuar como derradeira alternativa. 29

O princípio da humanidade, encontrado em vários artigos da Constituição Federal,


também se apresenta como princípio constitucional limitador e delimita, no plano penal, a
aplicação desmedida da pena sem considerar os valores basilares da dignidade humana. Até
porque, como expressa Zeidan, é

[...] inadmissível que, num Estado Democrático de Direito, ao exercitar a


potestade punitiva, submeta as pessoas a tratamento desumano ou
degradante. Se o Estado consagra o princípio da humanização como Direito
Fundamental, não o pode, mesmo no exercício do ius puniendi, transgredi-lo
em desfavor de seu povo.30

28
ZEIDAN, Rogério, op. cit. p. 64.
29
BOSCHI, José Antonio Paganella, op.cit p. 50.
30
ZEIDAN, Rogério, op. cit. p. 71.
21

O princípio da culpabilidade é outro que deve ser mencionado, pois aduz que ninguém
será incriminado sem ser culpado. Desse modo, a apuração da culpa na conduta do agente da
conduta danosa é pressuposto indisponível para penalização daquele. Nesse propósito, o

[...] princípio da culpabilidade deve ser entendido, em primeiro lugar, como


repúdio a qualquer espécie de responsabilidade pelo resultado, ou
responsabilidade objetiva. Mas deve igualmente ser entendido como
exigência de que a pena não seja infligida senão quando a conduta do sujeito,
mesmo associada causalmente a um resultado, lhe seja reprovável.31

Por sua vez, o princípio da proporcionalidade, apesar de ser utilizado em diversas áreas
legais, é cabível de destaque na esfera penal. A partir dele, exige-se a existência de equilíbrio
entre a gravidade do delito praticado pelo delinqüente e a pena a ele aplicada. De acordo com
Côrrea Júnior e Shecaira, para uma sanção ser determinada devem ser observados o bem
jurídico protegido, os meios utilizados para a penalização e os fins alcançados ou
objetivados.32 Mais especificadamente, os autores argumentam:

Em matéria penal, o princípio da proporcionalidade deve ser observado em


três momentos distintos, ou seja, no momento legislativo de cominação da
sanção penal, no momento judicial de aplicação da pena em concreto e
também no momento da execução da pena. No primeiro momento, o
legislador deve considerar a conduta que está tipificando e cominar uma
pena proporcional à gravidade do delito. Por outro lado, no segundo
momento, o juiz deve considerar a conduta efetivamente praticada pelo
agente e aplicar uma pena proporcional à gravidade objetiva do fato
praticado. 33

Com outra orientação, o princípio do fato é contemplado implicitamente em alguns


dispositivos constitucionais, ao determinar que qualquer indivíduo se sujeita a uma punição
conforme o crime cometido, não por fatores pessoais e íntimos, como a maneira de pensar ou
viver. Na posição de Zeidan, o “[...] princípio do fato pode ser violado através de duas formas:

31
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 8 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 103.
32
CORRÊA JUNIOR, Alceu. SHECAIRA, Sérgio Salomão. Teorias da pena: finalidades, direito positivo,
jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 89.
p. 89.
33
Idem.
22

pela incriminação direta de atitudes internas ou pela punição de fatos carentes de lesividade,
utilizados como mero sintoma de ânimo”.34

Por fim, compete atentar-se ao princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos,


segundo o qual, como a própria denominação demonstra, o sistema penal deve ser acionado
somente para o amparo de bens jurídicos protegidos legalmente e, quando atingidos, causem
sérios danos aos cidadãos. “Esse princípio impede que o Direito Penal sirva à proteção de todo
e qualquer tipo de interesse, de estratégias ou de convicções morais, cuja lesão careceria de
uma autêntica repercussão negativa na sociedade”.35

Diante do exposto, cabe notar que o Estado detém soberanamente o poder-dever de


punir os integrantes da vida social, desfrutando dos instrumentos normativos para tal
finalidade. Todavia, mais evidente ainda é o fato de que é das próprias normas que emergem
os limites do ius puniendi, o que revela a existência de garantias aos cidadãos perante o Estado
e que “[...] o poder de um Estado social e democrático de Direito não é um poder absoluto,
mas submetido a limites”. 36

1.3 Sistema penal

A palavra “sistema” pode ser conceituada como um complexo de instrumentos


interligados e ordenados, que se dirigem a um determinado fim, ou como melhor explica
Dotti:

O vocábulo sistema tem origem grega (systema) e significa reunião,


conjunto, método, organização, totalidade. Pode-se definir sistema como um
conjunto de dois ou mais elementos que satisfazem três condições: a) o
comportamento de cada elemento afeta o comportamento do todo; b) o
comportamento dos elementos e dos seus efeitos no todo são
interdependentes; c) nenhum dos elementos tem um efeito autônomo. É
possível, então, falar-se em sistema de Governo, sistema econômico, sistema
monetário, sistema de trabalho, sistema métrico, etc., bem como de um
sistema jurídico que é instituído para regular as atividades dos indivíduos, da
sociedade e do Estado em suas relações determinadas pelo Direito. Dentro do
sistema jurídico se estabelecem os vários regimes jurídicos e se fundam
várias instituições legais. 37

34
ZEIDAN, Rogério, op. cit. p. 60.
35
Ibidem, p. 61.
36
Ibidem, p. 55.
37
DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral.Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 4.
23

Dentre os sistemas jurídicos, faz-se presente o sistema penal, que se diferencia dos
demais por fazer uso do ius puniendi para atuar e ser entendido como um conjunto de meios
relacionados, inclinados à análise do fenômeno delitivo e de seus agentes, à criação de normas
penais e ao cumprimento destas. Outrossim, atua através de seus elementos punitivos impondo
normas de conduta. Se as mesmas não são obedecidas, configura-se a existência de um delito,
com o que se inicia o chamado processo de criminalização. Nessa linha de raciocínio,
Zaffaroni e Pierangeli referem que

[...] chamamos de “sistema penal” ao controle social punitivo


institucionalizado, que na prática abarca a partir de quando se detecta ou
supõe detectar-se uma suspeita de delito até que se impõe e executa uma
pena, pressupondo uma atividade normativa que cria a lei, que
institucionaliza o procedimento, a atuação dos funcionários e define os
casos e condições para esta atuação.38

Dessa forma, o sistema penal utiliza diferentes setores para exercer suas atividades e,
como explica Bianchini, é abrangido por agentes de criação (Legislativo), de aplicação
(Judiciário e aparelhos policiais) e de execução, além dos cidadãos, que também são partes
atuantes e interferem nos demais agentes citados.39 Sabe-se que as “[...] funções típicas do
Poder Legislativo são legislar e fiscalizar,”40 mas, especificadamente no direito penal, cabe-
lhe a elaboração de normas tipificadoras das condutas delitivas, como também daquelas
responsáveis pela sua prevenção, pela sua punição e pela sua persecução. No concernente aos
agentes de aplicação, cabem aos órgãos policiais impor as devidas limitações aos bens
jurídicos individuais (polícia administrativa), prevenir a prática delitiva (polícia de segurança)
e investigar e apurar os delitos buscando seus responsáveis (polícia civil).41 De outro modo,
“[...] cumpre aos juízes e tribunais declarar o delito e determinar a pena proporcional aplicável
[...].”42 Ainda nessa mesma categoria, deve-se salientar a participação do Ministério Público,
o qual defende os interesses da sociedade, sendo fiscal da lei e pólo ativo em várias ações

38
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique, op.cit. p. 70.
39
BIANCHINI, Alice. A seletividade do controle penal. Revista IBCCRIM, São Paulo, ano 8, n. 30, abr/jun,
2000 , p. 60.
40
MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 361.
41
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. op.cit. p. 58,59.
42
LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen
Júris, 2003, p. 7.
24

penais.43 Finalmente, aos órgãos de execução toca o cumprimento da decisão judicial. Esse
setor constitui-se por meio das instituições carcerárias e do Judiciário, que fiscaliza o
cumprimento das penas privativas de liberdade e restritivas de direitos.

Cada uma dessas agências penais é parcela indisponível para o funcionamento


coordenado do sistema penal, as quais pressupõem uma organização entre si de forma
ordenada e interligada, com auxílio recíproco para todas atingirem seus fins. Em
contrapartida, Zaffaroni e Pierangeli declaram:

O complicado jogo de identidades artificiais, criadas pelo próprio exercício


do poder do sistema penal, introduz antagonismos entre os operadores das
diferentes agências do poder. Estes antagonismos provocam a imputação
recíproca de que aquilo que se considera falhas conjunturais do sistema
penal, na realidade são características estruturais dos mesmos.
Estas imputações recíprocas provocam uma “compartimentalização” das
agências do sistema penal, já que cada um deve defender seu próprio
exercício de poder frente às outras. Ao encastelar-se para defender seu poder,
cada agência o exerce com absoluta indiferença - e até desconhecimento ou
ignorância - em relação às restantes e, muito mais ainda, em relação ao
resultado final da operacionalidade do conjunto, sobre o qual não tem sequer
a possibilidade de se informar.
Desta forma, não é correto referir-se a um “sistema penal” quando, em
realidade, trata-se de um conjunto heterogêneo de agências
compartimentalizadas, razão pela qual usamos a expressão apenas por sua
consagração técnica. Na realidade, por “sistema penal” entendemos
simplesmente a soma dos exercícios de poder de todas as agências que
operam independentemente e, de modo algum, aquilo que a palavra
“sistema” quer assinalar no terreno da biologia ou em outros análogos. 44

De qualquer modo, presente ou não uma interdependência entre os setores penais,


todos se consolidam por meio de um mesmo núcleo denominado “direito penal”, refletido
como um sistema normativo45 que se insere dentro do sistema penal como base indissolúvel.

43
Ver artigo 129 da Constituição Federal Brasileira.
44
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique, op. cit. p. 144.
45
Norberto Bobbio, em sua obra Teoria do ordenamento jurídico (p.77/80, 1999) explica três diversos
fundamentos históricos e filosóficos para um conjunto de normas ser denominado como sistema. No primeiro,
defende-se que a organização sistêmica das normas deve-se à constatação que todas elas resultam de princípios
gerais, os quais são postulados de derivação.O segundo fundamento é sustentado através de um processo
indutivo, em que se constroem conceitos sempre mais gerais a partir do conteúdo de simples normas e, assim
ocorrendo, o ordenamento do material jurídico.Por fim, a terceira argumentação apóia-se na incompatibilidade
das normas, ou seja, devem ser compatíveis, demonstrando, assim, um certo relacionamento entre elas, o qual
não possibilitará qualquer norma desarmônica.
25

Tal importância se explica diante da análise de que inexistindo o crime, o qual é oriundo do
direito penal, não subsiste o sistema penal, pois este perde sua razão de ser.

O delito existe a partir do momento em que determinado ato é cometido em desacordo


com ordenamento penal, produzindo a realização de um tipo penal, que consiste na “[...]
descrição abstrata de um fato real que a lei proíbe [...]”.46 O intuito de tal vedação é a proteção
de bens de intensa proeminência individual e social, como a vida, a liberdade, a intimidade, a
integridade física e vários outros.

Nas palavras de Zaffaroni e Pierangeli o “[...] tipo penal é um instrumento legal,


logicamente necessário e de natureza predominantemente descritiva, que tem por função a
individualização de condutas humanas penalmente relevantes (por estarem penalmente
proibidas)”.47 Nesse sentido, os tipos penais são constituídos através da atividade legislativa
por meio de normas incriminadoras, originando, assim, junto a outras categorias de leis, o
direito penal. Nessa linha, Bitencourt acrescenta que o

[...] Direito Penal apresenta-se como um conjunto de normas jurídicas que


tem por objeto a determinação de infrações de natureza penal e suas
sanções correspondentes - penas e medidas de segurança. Esse conjunto de
normas e princípios, devidamente sistematizados, tem a finalidade de tornar
possível a convivência humana, ganhando aplicação prática nos casos
ocorrentes, observando rigorosos princípios de justiça.48

Já, no entendimento de Dotti, o direito penal é um complexo de leis que, por meio de
interpretação do Estado, expressa o interesse público ao prever e ao estabelecer as condutas
proibidas e suas sanções e ao empregar normas para manter o convívio em sociedade e bens
jurídicos fundamentais resguardados.49 Ademais, o direito penal pode ser percebido por duas
direções. Objetivamente, reputa-se como a totalidade de regras e de princípios de direito
público, responsáveis pela regulação dos comportamentos delituosos. Por um viés subjetivo,
pode ser verificado como o próprio direito de punir (ius puniendi). 50

46
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral. vol. 1. 3 ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002, p. 289.
47
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique, op. cit. 443.
48
BITENCOURT, César Roberto. Manual de direito penal: parte geral. vol. 1. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2000,
p. 2.
49
DOTTI, René Ariel, op. cit. p. 48.
50
ZEIDAN, Rogério, op cit. p. 51.
26

O direito penal possui características peculiares e devidas ao seu objeto, função,


âmbito de atuação, entre outros fatores. Explicitamente, é considerado normativo por utilizar
normas para realizar suas atividades e através daquelas, existir. Também, “[...] é direito
público por excelência, posto que os objetos da tutela jurídica são os bens que dizem respeito
à comunidade organizada em Estado. A sanção penal é aplicada pelos órgãos estatais e sempre
no interesse coletivo”.51 Mostra-se autônomo dos demais ramos jurídicos ao reger-se por
princípios e por normas próprias.

Quanto a um traço constitutivo, Zaffaroni explica que tal característica é excepcional


no direito penal, que contribui para a criação da antijuridicidade somente em alguns casos,
tendo manifestado, em sua maior parte, seu caráter sancionador.52 Em contraponto, Bitencourt
defende que

[...] é preciso reconhecer a natureza primária e constitutiva do Direito Penal-


e não simplesmente acessória-, pois protege bens e interesses não protegidos
por outros ramos do Direito, e, mesmo, quando tutela bens já cobertos pela
proteção de outras áreas do ordenamento jurídico, ainda assim, o faz de
forma peculiar, dando-lhes nova feição e com distinta valoração. 53

As feições sancionadora e coercitiva do direito Penal manifestam-se pelo emprego de


sanções (penas e medidas de segurança) para a prevenção e repressão de atos que
desobedeçam às leis penais. Outrossim, Zaffaroni e Pierangeli destacam que a forma pela qual
o direito penal provê a segurança jurídica, através da coerção penal, diferencia dos demais
ramos.54 É nesse sentido, da sanção e da coerção, que o caráter preventivo do direito penal
apresenta-se, pois “[...] antes de punir o infrator da ordem jurídico-penal, procura motivá-lo
para que dela não se afaste, estabelecendo normas proibitivas e cominando as sanções
respectivas, visando evitar a prática do crime”.55

Por meio dessas últimas características, referencia-se a grande valia atribuída à pena
para a realização dos encargos penais. Tal importância se evidencia também na constatação de

51
DOTTI, René Ariel, op. cit. p. 50.
52
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique, op. cit. p. 102.
53
BITENCOURT, César Roberto, op. cit. p. 62.
54
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique, op. cit p. 100.
55
BITENCOURT, César Roberto, op. cit. p. 4.
27

que “[...] todos os mecanismos de atuação do sistema penal confluem para a imposição da
pena, meio pelo qual o sistema efetivamente se concretiza”.56

A pena é um instrumento peculiar do sistema penal utilizada para o controle social, o


que se realiza por meio das funções conferidas àquela. Na legislação brasileira, tais funções
podem ser verificadas no artigo 59 do Código Penal 57, ao estabelecer que a pena, sua
quantidade, seu regime e possível substituição por outra espécie, serão aplicadas conforme
seja necessário e suficiente para a reprovação e a prevenção do crime.

Os encargos atribuídos à pena de reprovar e de prevenir o delito se originaram de


diferentes teorias. A primeira é a chamada “teoria absoluta ou retribucionista”, que teve como
propulsor o filósofo Emmanuel Kant, o qual sustentava

[...] que a aplicação da pena constituía-se em um imperativo categórico,


resumindo sua posição retribucionista (retribuição moral) da seguinte forma:
caso um Estado fosse dissolvido voluntariamente, dever-se-ia antes executar o
último assassino que estivesse no cárcere, a fim de que sua culpabilidade não
recaísse sobre todo o povo que deixou de exigir a sanção. Se assim não
procedesse o povo, poderia então ser considerado partícipe da lesão pública
da justiça.58

Seguindo a mesma linha, Hegel posiciona-se afirmando que a pena é resultado jurídico
e necessário do crime, e dialeticamente é a negação da negação do direito, como instrumento
restaurador da ordem atingida.59 Desse modo, é a partir desses posicionamentos que a teoria
absoluta passa a ser desenvolvida e, assim, entendida como aquela que

56
SICA, Leonardo, op. cit. p. 32.
57
Art. 59. “O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos
motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá,
conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I- as penas aplicáveis dentre as
cominadas; II- a quantidade da pena aplicável, dentro dos limites previstos; III- o regime inicial de cumprimento
da pena privativa de liberdade; IV- a substituição da pena privativa de liberdade aplicada, por outra espécie de
pena se cabível.”
58
CORRÊA JUNIOR, Alceu . SHECAIRA, Sérgio Salomão, op. cit. p.130.
59
SICA, Leonardo, op. cit. p. 57.
28

[...] atribui à pena um caráter retributivo, ou seja, a sanção penal restaura a


ordem atingida pelo delito. Essa repristinação, pretendida pelos adeptos da
teoria absoluta, ocorre com a imposição de um mal, isto é, uma restrição a
um bem jurídico daquele que violou a norma. Com efeito, a teoria absoluta
encontra na retribuição justa não só a justificativa para a pena (legitimação
da intervenção penal), mas também a garantia de sua existência e o
esgotamento de seu conteúdo. Assim todos os demais efeitos (intimidação,
correção, supressão do meio social) não guardariam qualquer relação com a
natureza da pena.60

Sucintamente, a posição absoluta da pena pretende retribuir o dano causado a bem


jurídico penalmente protegido, através de um castigo. Afinal, como alega Sica, é difícil não
haver o entender de pena como castigo, visto que tal pensamento está arraigado à idéia da
correspondência de um mal por outro, demonstrando uma reação irracional do homem que
perdura há anos, acompanhando a história da pena. 61

Em desconformidade com esse raciocínio, alguns estudiosos passam a analisar


diversamente as finalidades providas da pena. Ainda como Sica explica, foi através de Ferri,
Lombroso e Garófalo, que compunham a Escola Positiva e se direcionavam mais
intensamente ao estudo do criminoso do que ao delito em si, que foi impulsionada a idéia de
tratar e de neutralizar os condenados através da aplicação da pena. 62 Nesta perspectiva, a pena
passou a ter o encargo de prevenção anteriormente citado, originando a teoria relativa ou
prevencionista da pena, que se ocupa desta para prevenir que os membros da sociedade
cometam crimes como os delinqüentes apenados e que esses, por sua vez, não incidam no
mesmo erro novamente. Nessa esteira, Toledo traduz as idéias relativas afirmando que

“[...] por meio de cominação de penas, para o comportamento tipificado


como ilícito penal, visa o legislador atingir o sentimento de temor
(intimidação) ou o sentimento ético das pessoas, a fim de que seja evitada a
conduta proibida (prevenção geral). Falhando essa ameaça, ou esse apelo,
transforma-se a pena abstratamente cominada, com a sentença criminal, em
realidade concreta, e passa, na fase de execução, atuar sobre a pessoa do
condenado, ensejando sua possível emenda efetiva neutralização (prevenção
especial).”63

60
CORRÊA JUNIOR,Alceu. SHECAIRA, Sérgio Salomão, op. cit. p. 130.
61
SICA, Leonardo, op. cit. p. 57.
62
Ibidem, p. 59.
63
TOLEDO, Francisco de Assis, op.cit. p. 3.
29

No concernente à primeira espécie de prevenção penal, denominada como “geral”, são


constatáveis duas modalidades prevencionistas: uma negativa e a outra positiva. De um lado, a
prevenção negativa objetiva que as pessoas se omitam de se comportar ilicitamente ao
conhecerem suas conseqüências, ou como ensina Boschi, a

[...] punição serviria também como bom exemplo para que os outros não
sigam os mesmos passos do criminoso. Desse modo, ainda na base da teoria,
castiga-se o criminoso para que a sociedade permaneça em estado de alerta,
reforce o sentimento de confiança no direito e, ao mesmo tempo, também
disponha de uma boa defesa contra o criminoso e crime.64

De outro lado, a concepção positiva ou integradora de prevenção geral pretende


relembrar o dever de obediência às normas impostas pelo Estado e reforçar a possibilidade de
alcance da justiça. Além disso, possui duas linhas de orientação, conceituadas como
fundamentadora e limitadora.

A perspectiva fundamentadora alega que a pena exerce uma função de amparo a


valores éticos que devem ser mantidos na vida social. Quando as normas são violadas, tal
objetivo demonstra-se não atingido. Desse modo, a pena direciona-se ao estímulo das
condutas em conformidade com as leis e com os princípios. Bitencourt refere em destaque
Güinter Jakobs65 como um dos representantes dessa linha teórica, entretanto explica que em
sua formulação, Jakobs não acredita que se intente a proteção de valores ou de bens jurídicos
por meio da prevenção penal.66 Em relação à função limitadora da prevenção geral positiva, é
defendido que a penalização deve ocorrer de forma limitada. Tal limite é estabelecido por
princípios protetivos, que devem ser seguidos e servirem como orientação na prevenção
através da pena.

No tocante à segunda espécie de prevenção, qualificada como “especial”, menciona-se


o ensejo de impedir que o agente de um crime reitere tal prática. Shecaira e Corrêa Júnior
ensinam que atualmente, “[...] também se divide a prevenção especial em dois sentidos, ou
67
seja, um negativo (neutralização pela prisão) e outro positivo (reinserção social)”. Nesse
sentido, tem-se verificado que enquanto os delinqüentes são mantidos no cárcere, a

64
BOSCHI, José Antonio Paganella, op. cit. p. 113.
65
Sobre a linha teórica deste autor, vide Um novo sistema de direito penal: considerações sobre a teoria de
Güinter Jakobs, escrito por Enrique Peñaranda Ramos, Carlos Suárez Gonzáles e Manuel Cancio Meliá,
traduzido por André Luiz Callegari e Nereu José Giacomolli. Barueri. São Paulo: Manole, 2003.
66
BITENCOURT, Cézar Roberto, op.cit. p. 86.
67
CORRÊA JUNIOR, Alceu. SHECAIRA, Sérgio Salomão, op. cit. p. 133.
30

neutralização destes acontece, pois, nesse período não praticam delitos na sociedade e nem
causam danos a seus membros. Entretanto, é inegável que, por intermédio da pena, deve-se
reeducar o condenado com a pretensão de reintegrá-lo futuramente na vida social, através de
um processo de ressocialização, e, assim, impedi-lo de incidir em novos crimes. Essa posição
se evidencia na legislação penal brasileira através do artigo 1º da Lei de Execução Penal. 68

Ademais, é considerável referir também que, diante das teorias expostas, há ainda
aqueles que abrigam as teses de retribuição e de prevenção concomitantemente, as quais são
nomeadas como ecléticas. Em consonância a isso, Boschi relata que, no viés dessa teoria
mista, além desse binômio de retribuir e de prevenir, a pena tem como principal missão
defender a sociedade e, secundariamente, reinserir o criminoso na sociedade sem danos a
ele.69

Em suma, é possível averiguar que o sistema penal existe com a pretensão de amparar
bens jurídicos de intensa importância para as relações em sociedade. Mostra-se como uma
expressão do controle social ao servir-se do direito de punir do Estado para desempenhar suas
funções através da pena, a qual, fundamentada por diferentes feições de retribuição e
prevenção, é atribuída aos indivíduos que descumprem os preceitos comportamentais
impostos pelas normas do direito penal. Este, além de definir fatos tipificados como crime e
suas respectivas penas, é integrado por princípios orientadores, que também são
indispensáveis à vida social e, principalmente, à garantia do direito de liberdade dos cidadãos
frente ao Estado. Apesar disso, cabe analisar se tais princípios são realmente verificados e se
as funções de controle penal realmente se efetivam.

68
Art 1º. “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e
proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.”
69
BOSCHI, José Antonio Paganella, op. cit. p. 128.
31

2 A TEORIA ABOLICIONISTA

Como visto no capítulo anterior, o sistema penal possui características peculiares, as


quais são definidas pela forma como se organiza, pelos instrumentos que utiliza para suas
atividades, pelos preceitos que o orientam e pelo fim que pretende atingir. Entretanto, são
essas mesmas características que, a partir da eclosão do movimento iluminista (século
XVIII)70, passam a ser o alvo de críticas por vários pensadores, entre eles Beccaria, que,
com sua obra Dos delitos e das penas “desenvolveu as mais variadas frentes de crítica ao
sistema penal daquele tempo[...]”71. Ao longo dos anos, várias linhas teóricas foram
desenvolvidas, demonstrando o entendimento de doutrinadores sobre a situação da justiça
criminal em diferentes tempos.

Entretanto, faz-se mister afirmar que duas correntes político-criminais destacaram-se


nas últimas décadas ao apontarem a deslegitimação do sistema penal: o direito penal mínimo e
o abolicionismo penal. O direito penal mínimo recusa a legitimidade do sistema penal atual,
propondo a sua substituição por outro sistema criminal de interferência mínima. De outro
ângulo, a teoria abolicionista sustenta a ilegitimidade do sistema penal hodierno, como
também de qualquer outro futuro, postulando por instâncias informais de solução de
conflitos.72 Desse modo, resta evidente que a teoria abolicionista penal se apresenta como a
proposta de maior radicalismo acerca do sistema penal.

De acordo com Garcia e Molina, “[...] desde o final dos anos 60, surgiram nos países
anglo-saxônicos movimentos de opinião favoráveis à busca de vias alternativas ao sistema
legal (diversion), isto é, instâncias não-oficiais e mecanismos informais que possam resolver

70
DOTTI, René Ariel. op. cit, p. 143.
71
Ibidem, p. 144.
72
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5. ed.
Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 89.
32

com eficácia e menor custo os conflitos.”73 Com esse pensamento, com o passar dos anos, o
movimento abolicionista firmou-se e “[...] organiza duas vezes por ano, desde 1983, uma
Conferência internacional, através de um organismo especialmente constituído para tratar do
assunto: a Conferência Internacional sobre Abolição Penal”74 (ICOPA). Nesse evento, em sua
sexta edição, em 1993, o doutrinador holandês Louk Hulsman apresentou uma síntese de sua
posição abolicionista, que veio a ser, posteriormente, publicada em seu livro Penas perdidas.75

2.1 Hulsman e as Penas perdidas

Através do sua obra Penas perdidas76, Louk Hulsman, juntamente com Jacqueline
Bernat de Celis, expõe vários princípios e fundamentos abolicionistas. Primeiramente, para
ele, não “[...] existe uma realidade ontológica do crime”, 77 ou seja, não há uma real existência
do delito, pois os fatos que, para o direito penal, são denominados “crime”, na perspectiva
abolicionista, são eventos criminalizáveis, ou seja, acontecimentos que por meio das leis e da
justiça criminal podem vir a se tornar crimes. Esses mesmos eventos criminalizáveis se, por
um lado, se mostram um problema para algumas pessoas, não são considerados de tal forma
para outras, tendo como única semelhança entre eles a atuação do sistema penal, 78 que, por
seu turno, também entendido como justiça penal, corresponde, para Hulsman, a um conjunto
de entes cooperados em que

73
GARCIA, Antônio. MOLINA, Pablos de. Criminologia. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 524.
74
DOTTI, René Ariel, op. cit. 28.
75
HULSMAN, Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas Perdidas: o sistema penal em questão. 2 ed. Niterói:
Luam, 1997, p. 150.
76
Não há duvida de que a expressão peines perdues, originalmente grafada por Louk Hulsman e Jacqueline
Bernart de Celis, sugere a lembrança de um clássico da literatura mundial: À la recherche du temps perdu (À
procura do tempo perdido) de Marcel Proust (1871-1922). Para o romântico escritor francês, o objeto da obra
literária é descrever o universo refletido porém deformado pelo espírito. A vida qual se escoa não é mais que
tempo perdido; o tempo só pode verdadeiramente se reencontrado e salvo sob o aspecto da eternidade, que é
também o da arte. (DOTTI, René Ariel, op. cit. p. 29.)
77
HULSMAN,Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de, op. cit. p. 150.
78
Ibidem, p. 150.
33

[...] cada órgão ou serviço trabalha isoladamente e cada uma das pessoas que
intervém no funcionamento da máquina penal desempenha seu papel sem ter
que se preocupar com o que se passou antes dela ou com o que se passará
depois. Não há uma correspondência rigorosa entre o que um determinado
legislador pretende num momento dado – o que ele procura colocar na lei, no
Código Penal – e as diferentes práticas das instituições e dos homens que as
fazem funcionar. Tais instituições não têm nada em comum, a não ser uma
referência genérica à lei penal e à cosmologia repressiva, liame
excessivamente vago para garantir uma ação conjunta e harmônica. Tais
instituições estão, de fato, compartimentalizadas em estruturas
independentes, encerradas em mentalidades voltadas para si mesmas.[...]
Cada corpo desenvolve, assim, critérios de ação, ideologias e culturas
próprias e não raro entram em choque, em luta aberta uns contra os outros.79

Além disso, conforme o pensamento hulsmaniano, a justiça criminal limita-se ao


condão de culpar alguém e, junto com a dramatização repetida da mídia, dá origem a
personagens do mal, as quais, desse modo, se diferenciam das demais.80 Karam explica essa
idéia, sustentando que por meio da publicidade midiática enganosa divulga-se a noção de que
a maioria dos delitos provém de agentes e ações individualizadas, que aumentariam cada vez
mais de forma descontrolada. Assim, conduzem todos a acreditarem que a punição desses
criminosos específicos seria a única forma de resolução de toda a violência, dos perigos e das
ameaças existentes atualmente.81
Com essa acepção, Hulsman se posiciona sobre política criminal, definindo-a como
aquela correspondente tão-somente aos crimes e criminosos, quando deveria ser mais ampla e
multifocal, voltada ao desenvolvimento de seus órgãos, à análise dos fatos que devem se
submeter ao sistema penal e à forma como os membros da sociedade podem agir diante das
situações problemáticas.82 Nessa linha, Vitorino Prata observa que a melhor política criminal
não é aquela que privilegia a repressão criminal como forma de solucionar o problema da
violência e da criminalidade na sociedade, mas aquela que, antes de tudo, realiza uma
prevenção efetiva, constante e diuturna,83 o que impediria, assim, a ocorrência dos fatos
puníveis e a imersão de seus responsáveis no sistema penal. Outrossim, o pensamento
abolicionista hulsmaniano alude ainda várias outras considerações sobre o funcionamento do

79
Ibidem, p. 59.
80
Ibidem, p. 56.
81
KARAM, Maria Lúcia.Pela Abolição do Sistema Penal. In: PASSETI, Edson (Org.), op. cit. p.78.
82
HULSMAN,Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de, op. cit. p. 156.
83
PRATA, Vitorino. Apud FERNANDES, Newton. FERNANDES, Valter. Criminologia Integrada. 2 ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.466, 467.
34

sistema penal. Diante dele, inicialmente, realça a necessidade de valorizar os reais interesses e
condições da vítima, visto que ela

[...] não pode mais fazer parar a “ação pública”, uma vez que esta “se pôs em
movimento”; não lhe é permitido oferecer ou aceitar um procedimento de
conciliação que poderia lhe assegurar uma reparação aceitável, ou – o que,
muitas vezes, é mais importante – lhe dar a oportunidade de compreender e
assimilar o que realmente se passou; ela não participa de nenhuma forma da
busca da medida que será tomada a respeito do “autor”; ela não sabe em que
condições a família dela estará sobrevivendo; não faz nenhuma idéia das
conseqüências reais que a experiência negativa da prisão trará para a vida
deste homem; ela ignora as rejeições que ele terá que enfrentar ao sair da
prisão.84

Nessa seara, o sistema penal pretende a resolução do conflito das pessoas, ao mesmo
tempo em que atribui etiquetas às pessoas envolvidas, como vítimas ou criminosos.85 Salienta-
se, na obra em análise, que o rótulo de criminoso é incutido nos cidadãos através do processo
judicial e da vida no cárcere, pois, em

[...] inúmeros casos, a experiência do processo e do encarceramento produz


nos condenados um estigma que pode se tornar profundo. Há estudos
científicos sérios e reiterados, mostrando que as definições legais e a rejeição
social por elas produzida podem determinar a percepção do eu como
realmente “desviante” e, assim, levar algumas pessoas a viver conforme esta
imagem, marginalmente.86

Assim, percebe-se que “Hulsman descreve as funções de seletividade, etiquetamento e


estigmatização operada pela incidência arbitrária, e não-paritária como quer a tradicional
doutrina liberal, do modelo nos diferentes estratos sociais”.87 Ainda, o encarceramento gera
vários outros malefícios à pessoa do condenado ao submetê-lo ao degradante cotidiano das
prisões e ao privá-lo de vários benesses do exterior. Com esse entendimento, Hulsman
expressa que
84
HULSMAN,Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de, op. cit. p. 82,83.
85
Ibidem, p. 82.
86
Ibidem, p. 69.
87
CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.). Teoria Agnóstica da Pena: o modelo garantista de
limitação do poder punitivo. Criticas à Execução Penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002, p. 15.
35

[...] o condenado à prisão penetra num universo alienante, onde todas as


relações são deformadas. A prisão representa muito mais do que a privação
de liberdade com todas as suas seqüelas. Ela não é apenas a retirada do
mundo normal da atividade e do afeto; a prisão é, também e principalmente,
a entrada num universo artificial onde tudo é negativo. Eis o que faz da
prisão um mal social específico: ela é um sofrimento estéril.88

Com esse pensar, Dotti assinala que a prisão é o monocórdio imposto para executar a
grande sinfonia do bem e do mal. Por força desse fenômeno, os problemas sociais e culturais
que vertem no crime e na conduta de seu agente estão imersos no espectro da desgraça e da
maldição.89 Diante disso, percebe-se que os direitos humanos de alguns cidadãos são
derrogados quando é conveniente para o sistema penal para a proteção do direito de outros.
Nessa esteira, evidencia-se a incompatibilidade de muitos preceitos fundamentais com as
facetas do sistema penal.90

Nesse contexto, a pena, instrumento basilar da justiça penal, passa a ser vista como
ilegítima diante da imposição de castigos de intensa danosidade aos agentes delitivos e por
mera relação de poder, pois, na maioria das vezes, não é aceita pelo condenado, o que
demonstra a inexistência de concordância entre as partes da relação jurídica: Estado e réu.

Daí que, não havendo uma relação entre aquele que pune e aquele que é
punido, ou ausente o reconhecimento da autoridade, estaremos diante de
situações em que se torna extremamente difícil falar de legitimidade da pena.
Se a autoridade for plenamente aceita, poderemos falar de uma pena justa.
Se, ao contrário, houver uma total contestação da autoridade, não teremos
mais uma pena verdadeira, mas pura violência. 91

Ademais, Hulsman assinala que tal penalização não é aplicada a todos que realizam
condutas tipificadas como crime, sendo evidente que é irrisório o número de criminosos que
são descobertos pelas autoridades policiais, originando, assim, a chamada “cifra-negra”.

88
HULSMAN,Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de, op. cit. p. 62.
89
DOTTI, René Ariel. Bases e alternativas para o sistema de penas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p.
28.
90
HULSMAN, Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de. op.cit, p. 159,160.
91
Ibidem, p. 87.
36

Além disso, há um número menor ainda daqueles que são processados penalmente, como
também há uma minoria absoluta daqueles que são condenados e submetidos a uma pena.92
Com esse mesmo enfoque Karam se posiciona:

A impunidade não acontece apenas por questões conjunturais ou por


deficiências operacionais. As estatísticas indicadoras do número reduzido de
ocorrências que chegam a resultar em processos e, nestes, em condenações,
sempre divulgadas como se fossem um retrato aberrante de um quadro
excepcional a ser enfrentado com mais repressão, com maior aparelhamento
das agências policiais ou da justiça criminal, com novas leis penais ou
processuais penais, ou com investigações conduzidas por anunciadas
comissões internas ou externas, na verdade, apenas refletem a realidade
global de que o sistema penal somente se sustenta na medida de sua
seletividade, incerteza e ausência de efetividade, a seleção de apenas alguns
dos responsáveis por condutas criminalizadas, para que, processados e
condenados, sejam exemplarmente identificados como “criminosos”,
constituindo-se em uma característica inseparável do funcionamento penal. 93

Seguindo esse viés, conforme o pensar hulsmaniano, o próprio conceito de crime é


atingido no momento em que vários fatos considerados como delituosos pelo sistema penal
não são constatados por este, tampouco avaliados pelos atingidos, mostrando-se de diferente
natureza daqueles que foram verificados pela justiça criminal.94 Por conseguinte, essa posição

[...] constitui um ponto de partida extraordinariamente importante, dentro de


uma reflexão global sobre o sistema penal. Como achar normal um sistema
que só intervém na vida social de maneira marginal, estatisticamente tão
desprezível? Todos os princípios ou valores sobre os quais tal sistema se
apóia (a igualdade dos cidadãos, a segurança, o direito à justiça, etc...) são
radicalmente deturpados, na medida em que só se aplicam àquele número
ínfimo de situações que são os casos registrados. O enfoque tradicional se
mostra, de alguma forma, às avessas. A cifra negra deixa de ser uma
anomalia para se constituir na prova tangível do absurdo de um sistema por
natureza estranho à vida das pessoas. Os dados das ciências sociais
conduzem a uma contestação fundamental do sistema existente. E longe de
parecer utópica, a perspectiva abolicionista se revela uma necessidade lógica,
uma atitude realista, uma exigência de equidade.95

92
HULSMAN, Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de, op.cit, p. 65.
93
KARAM, Maria Lúcia. Pela Abolição do Sistema Penal. In: PASSETI, Edson (Org.) op. cit. p. 91.
94
HULSMAN,Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de, op. cit. p. 65,66.
95
Ibidem, p. 66.
37

Diante de todos esses fatores e evidenciando-se que o discurso oficial da justiça penal
mostra-se diverso do que realmente acontece na prática, passa a ser visto como
deslegitimado, atribuindo essa característica ao sistema penal como um todo. Desse modo,
Hulsman propõe um processo de mudança através de uma conversão coletiva da linguagem
penal por outra mais benéfica à realidade atual e do modo pelo qual as pessoas encaram os
fatos considerados criminosos,96 visto que “a limitação das situações problemáticas à
terminologia utilizada pela justiça penal (crime) é uma forma diversa de compreensão dos
fatos e de providenciar resoluções.”97 Dessa forma, é possível privilegiar os procedimentos
não penais de controle e a maior participação dos envolvidos. Assim,

[...] seria preciso devolver às pessoas envolvidas o domínio sobre seus


conflitos. A análise que elas fazem do ato indesejável e de seus verdadeiros
interesses deveria ser o ponto de partida necessário para a solução a ser
procurada. O encontro cara-a-cara deveria ser sempre possível, pois as
explicações mútuas, a troca das experiências vividas e, eventualmente, a
presença ativa de pessoas psicologicamente próximas, podem conduzir, num
encontro desta natureza, a soluções realistas para o futuro.98

Destarte, a algumas relações pessoais poderiam ser aplicadas medidas acordadas entre
as próprias partes e que melhor se ajustassem às suas necessidades. Já, em outros, nos quais
se mostra necessária a intervenção de um ente estatal, as pessoas poderiam servir-se da justiça
cível para a resolução de seus conflitos.99 Com essa ótica, Hulsman fundamenta:

Não há qualquer razão para se acrescentar um poder de punir a tribunais


repressores, a fim de que, em determinados conflitos, escolhidos de
maneira discutível, algumas pessoas sejam tratadas como culpados que
devem ser castigados. Se repensarmos as diferentes linhas de aproximação
possíveis diante de uma situação conflituosa, veremos claramente que o
enfoque cível – nos limites postos pelo campo institucional - sempre poderá
ser uma linha adequada, qualquer que seja o conflito. Todos os tribunais
chamados de “cíveis”, com algumas modificações que teríamos que
considerar, podem ou deveriam poder intervir de maneira mais útil para os
interessados do que o atual sistema penal.100

96
HULSMAN, Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de, op.cit, p. 96.
97
CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op. cit. p. 15.
98
HULSMAN,Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de, op. cit. p. 102.
99
Ibidem, p. 120.
100
Ibidem, p. 131.
38

Nessa perspectiva, os juízes passariam a atuar somente no âmbito cível quando fosse
necessário para garantir os direitos dos homens não defendidos por outras formas de controle.
Já os órgãos policiais seriam agentes de paz, procurando evitar que as questões chegassem ao
Judiciário.101 Nesse diapasão, Hulsman entende tais órgãos como mecanismos de urgência e
afirma:

Estou convencido de que a abolição do sistema penal num país determinado


não aumentaria ali os riscos reais de graves enfrentamentos ou violências. De
um lado, porque as situações em questão passariam a ser examinadas a partir
de uma aproximação humana. Por outro lado, porque a perspectiva
abolicionista reconhece a necessidade de manutenção de mecanismos de
urgência a que se deve recorrer em tempos, ou intervalos, de crise.102

Dessa forma, o autor não retira a importância da atividade judiciária e policial para o
exercício da coerção, no entanto defende um modo diferenciado de atuarem e interferirem na
vida dos cidadãos. Para isso, há necessidade de solidariedade e intenção de mudança entre as
pessoas com o intento de abrangência das relações comunitárias e informais. Com essa
perspectiva, Hulsman afirma que seria possível abolir o sistema penal e

[...] romper os laços que, de maneira incontrolada e irresponsável, em


detrimento das pessoas diretamente envolvidas, sob uma ideologia de outra
era e se apoiando em um falso consenso, unem os órgãos de uma máquina
cega cujo objeto mesmo é a produção de um sofrimento estéril.103

É possível perceber, então, que, com sua obra Penas perdidas, Hulsman expressa seu
modo de entender as situações que, atualmente, na justiça penal são vistas como crimes.
Demonstra a forma danosa como tal justiça exerce suas atividades e afirma que os prejuízos
resultantes dessas são responsáveis pela “perda das penas”, ou seja, pelo não alcance dos fins
penais e, conseqüentemente, pela perda de todo o sistema penal. Diante disso, propugna outros

101
HULSMAN, Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de. op.cit, p.113.
102
Idem.
103
HULSMAN,Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de. op. cit. p. 91.
39

meios para a resolução de tais situações, os quais sejam mais adequados aos interesses de
ambas as partes e originem menores prejuízos as essas. Para esse fim, seria necessário uma
mudança da linguagem penal para outra, não punitiva, ocasionando, conseqüentemente, a
abolição dos instrumentos penais de controle e a oportunização de utilização de outros meios,
menos prejudiciais e desumanos.

2.2 Zaffaroni e sua busca pelas penas perdidas

Com fulcro na teoria abolicionista exposta por Louk Hulsman em seu livro Penas
perdidas, o doutrinador penalista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni realiza um ensaio crítico
através de sua obra Em busca das penas perdidas, escrita em 1989, na qual explana sua
posição sobre o sistema penal e sobre sua deslegitimação na atualidade. Além disso, traz a
lume fundamentos próprios e peculiares dos países da América Latina, aos quais denomina
como “regiões marginais”.
Inicialmente, em sua obra, o pensador “reprova vigorosamente o discurso jurídico-
penal, averbando-o de perverso e falso porque procura contornar, com inteligência, as mazelas
da realidade operacional do sistema”.104 Isso é facilmente visualizado na medida em que

[...] tornou-se comum a descrição da operacionalidade real dos sistemas


penais em termos que nada têm a ver com a forma pela qual os discursos
jurídico-penais supõe que eles atuem. Entre outros termos, a programação
normativa baseia-se em uma “realidade” que não existe e o conjunto de
órgãos que deveria levar a termo essa programação atua de forma
completamente diferente.105

Na compreensão de Andrade, é impossível que a operacionalidade de um sistema penal


se adeque a sua programação, pois isso constitui uma marca estrutural do exercício do poder
que não pode ser eliminada sem, conseqüentemente, suprimir totalmente o referido
sistema106. Apesar disso, no entender de Zaffaroni, o discurso penal poderia ser socialmente
verdadeiro, se obedecesse a dois níveis de verdade social:

104
DOTTI. René Ariel. Curso de Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 29.
105
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit, p. 12.
106
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência à violência do
controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 312.
40

a) um abstrato, valorizando em função da experiência social, de acordo com o


qual a planificação criminalizante pode ser considerada como o meio
adequado para a obtenção dos fins propostos [...].
b)outro concreto, que deve exigir que os grupos humanos que integram o
sistema penal operem sobre a realidade de acordo com as pautas
planificadoras assinaladas pelo discurso jurídico-penal.107

Como isso não ocorre, Zaffaroni constata o descompasso do discurso penal com a
realidade atual, o que acarreta a perda de racionalidade do sistema penal, elemento
indispensável para legitimá-lo. Ademais, tal racionalidade depende também de uma coerência
interna, na qual seus preceitos não se contradigam. Isso é essencial visto que a mera legalidade
não legitima o sistema penal, pois é evidente que seus órgãos não exercem o “seu poder de
acordo com a programação legislativa tal qual como expressa o discurso jurídico penal”.108

Para Zaffaroni, os órgãos penais atuam de maneira militarizada e verticalizadora,


demonstrando uma face configuradora do poder da justiça penal, não simplesmente repressiva,
visto que interioriza a presença de uma autoridade centralizadora que disciplina a vida dos
cidadãos através de uma vigilância constante. Ademais, muitas vezes, além de o poder penal
agir fora da legalidade, atua contrariamente a ela, mostrando-se intensamente violento. Nesse
sentido, o autor enfatiza que a

[...] estas violações devem ser acrescentadas a corrupção, as atividades


extorsivas e a participação nos benefícios decorrentes de atividades como o
jogo, a prostituição, o contrabando, o tráfico de drogas proibidas, dados
geralmente não registrados nos informes dos organismos de direitos
humanos, apesar de pertencerem à inquestionável realidade de nossos
sistemas penais marginais.109

Com esse enfoque, Passetti salienta que as corrupções e acordos entre agentes da lei e
infrator provocam a filtragem e seleção daqueles que serão os criminosos da justiça criminal.
Assim, demonstra-se que o sustentado lema de defesa da sociedade não ocorre, prevalecendo a
defesa dos interesses dominantes.110

107
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 18.
108
Ibidem, p. 21.
109
Ibidem, p. 29.
110
PASSETTI, Edson. A atualidade do abolicionismo penal. In: PASSETI, Edson (Org.). Curso de
abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 26.
41

Em que pese a tudo isso, Zaffaroni justifica que o sistema penal ainda se mantém por
ser considerado uma forma de segurança para muitas pessoas que se deixam influenciar pelas
ideologias dos meios de comunicação de massa, que “ocupam-se da precoce introjeção do
modelo penal como pretenso modelo de solução dos conflitos”111 e “ têm a função de gerar a
ilusão de eficácia do sistema”112. Isso ocorre através da falsa publicidade, que propaga a idéia
de que, nos dias de hoje, predomina uma intensa violência na vida social. Logo, o autor
conclui:

Sem os meios de comunicação de massa, a experiência direta da realidade


social permitiria que a população se desse conta da falácia dos discursos
justificadores; não seria, assim, possível induzir os medos no sentido
desejado, nem reproduzir os fatos conflitivos interessantes de serem
reproduzidos em cada conjuntura, ou seja, no momento em que são
favoráveis ao poder das agências do sistema penal.113

Outrossim, no pensar Zaffaroniano, são esses mesmos meios de comunicação que


criam o estereoótipo de “criminoso” a determinadas pessoas, selecionando-as como aquelas
que sofrem os efeitos negativos do sistema penal, o que ocorre, muitas vezes, por terem tido
um mero contato com ele através de alguma de suas agências. “Estes esteriótipos permitem a
catalogação dos criminosos que combinam com a imagem que corresponde à descrição
fabricada, deixando de fora outros tipos de delinqüentes (delinqüência de colarinho branco,
dourada, de trânsito, etc).”114 Tais status se afirmam, ainda, através da forte carga estigmática
que a punição penal acarreta com a pena prisional, que insere na vida nos detentos um vasto
número de malefícios, os quais acompanham e prejudicam além do cumprimento da pena.
Nessa mesma ótica, o doutrinador salienta:

111
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 128.
112
Ibidem, p. 129.
113
Ibidem, p. 128.
114
Ibidem, p. 130.
42

O efeito da prisão, que se denomina prisionização, sem dúvida é deteriorante


e submerge a pessoa numa “cultura de cadeia”, distinta da vida do adulto em
liberdade.
Esta “imersão cultural” não pode ser interpretada como uma tentativa de
reeducação ou algo parecido ou sequer aproxima-se do postulado da
“ideologia de tratamento”; suas formas de realização são totalmente opostas
a este discurso, cujo caráter escamoteador é percebido até pelo menos
avisados.115

Nessa percepção, Cervini ensina que os internos aprendem uma nova forma de viver,
com novos hábitos, linguagens, usos e costumes porque não têm outra alternativa. Esse
aprendizado evidencia os efeitos negativos do aprisionamento a qualquer ressocialização, pois
na prisão os detentos não aprendem a viver em sociedade, pelo contrário, se integram com
mais intensidade à vida criminosa, mudando para pior e captando valores negativos para
futura vida social livre.116

Diante disso, na obra de Zaffaroni, expõe-se a ocorrência da deteriorização dos direitos


humanos, tanto na vida dos criminosos como dos próprios agentes do sistema penal, que
sofrem uma crise de identidade pela incongruência existente entre a forma como atuam e o
que o discurso oficial prevê. Não obstante, há outra parte também prejudicada pela justiça
penal, a vítima, pois aquela, com intuito centralizador, “provoca o desaparecimento dos velhos
mecanismos de solução entre partes em confronto, produzindo-se a expropriação dos conflitos
(dos direitos da vítima), assumindo o soberano o lugar da “única vítima”[...]”.117

Diante desse pensamento, o doutrinador considera:

Enquanto os direitos humanos assinalam um programa realizador de


igualdades de direitos de longo alcance, os sistemas penais são instrumentos
de consagração ou cristalização da desigualdade de direitos em todas as
sociedades. Não é por acaso que os dispositivos dos instrumentos de direitos
humanos referentes aos sistemas penais sempre sejam limitadores,
demarcadores de fronteiras mais ou menos estritas do seu exercício de poder:
fica claro que os direitos humanos se defrontam ali com fatos que desejam
limitar ou conter.118

115
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 149.
116
CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 41.
117
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 152.
118
Ibidem, p. 149.
43

Nesse passo, para Zaffaroni, é constatada a fraqueza de conteúdo das teorias da pena
perante a situação atual da justiça penal, visto que não sustentam a legitimação desta. Nesta
esteira, Andrade acrescenta que,

[...] comparando-se a programação teleológica do sistema penal, isto é, as


funções instrumentais e socialmente úteis declaradas pelo seu saber oficial
com as funções reais da pena e do sistema pode-se concluir que estas não
apenas têm descumprido, mas sido opostas às declaradas.
Enquanto a função de proteção de bens jurídicos universais atribuída ao
Direito Penal revela-se como proteção seletiva de bens jurídicos; a pretensão
de que a pena possa cumprir uma função instrumental de efetivo controle (e
redução) da criminalidade e de defesa social na qual se baseiam as teorias da
pena deve, através de pesquisas empíricas nas quais a reincidência é uma
constante, considerar-se como promessas falsificadas ou, na melhor das
hipóteses, não verificadas nem verificáveis empiricamente. 119

Além disso, Zaffaroni alude à irracionalidade da pena por ser mera manifestação do
poder. Ainda, por todo esse entendimento, conceitua-a como “qualquer sofrimento ou
privação de algum bem ou direito que não resulte racionalmente adequado a algum dos
modelos de solução de conflitos dos demais ramos do direito”.120

Enfim, o pensador explica que todos esses apontamentos negativos sobre a justiça penal
são decorrentes do processo histórico da América Latina, o qual, englobado pelo período
colonialista e neocolonialista, incorporou uma espécie de “controle social punitivo
transculturado”121 em vários países latinos, ocasionando a desigualdade, a dependência e a
fragilidade econômica, geradoras do grande grupo populacional pobre existente nessas regiões
e principal alvo do sistema penal. A partir disso, o autor propõe “a busca das penas perdidas”
através um marco teórico que, inspirado nas referências teóricas centrais (como o
abolicionismo), adapte-se à realidade das chamadas “regiões marginais”. Destarte, sugere uma
reinterpretação do direito penal122 através de uma visão ética e otimista do mesmo. Para esse
escopo, primeiramente, o direito penal deve ser recebido como uma

119
ANDRADE, Vera Regina de, op. cit. p. 291.
120
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 204.
121
Ibidem, p. 119.
122
DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 29.
44

[...] reconstrução discursiva que interpreta as leis de conteúdo punitivo (leis


penais) para dotar a jurisdição dos limites exatos para o exercício de seu
poder decisório e de modelos ou opiniões não contraditórios para os
conflitos que o poder das demais agências seleciona a fim de submetê-los à
sua decisão, de modo a proceder de forma socialmente menos violenta.123

Necessita-se, assim, que o direito penal assuma a função de um direito humanitário


que se empenhe na “defesa de lugares ou espaços de poder comunitário, controle e limitação
de poder verticalizador e, finalmente, enfraquecimento do instrumental de dependência”.124
Destarte, as idéias de Zaffaroni dão enfoque aos princípios limitadores da justiça criminal
como direitos humanos e à necessidade da sua real efetivação, visto que a “desmedida
ampliação do poder do Estado de punir produz leis de exceção que, vulnerando princípios e
garantias essenciais ao funcionamento do Estado Democrático de Direito, ameaçam a sua
própria subsistência [...].”125 Nessa perspectiva, o doutrinador assinala:

É absurdo pretender que os sistemas penais respeitem o princípio da


legalidade, de reserva, de culpabilidade, de humanidade e, sobretudo, de
igualdade, quando sabemos que, estruturalmente, estão preparados para os
violar a todos. O que se pode pretender - e fazer - é que a agência judicial
empregue todos os seus esforços de forma a reduzir cada vez mais, até onde
o seu poder permitir, o número e a intensidade dessas violações, operando
internamente a nível de contradição com o próprio sistema, a fim de obter,
desse modo, uma constante elevação dos níveis reais de realização operativa
desses princípios.126

Isso não deve se suceder bruscamente, de um momento para outro, mas desenvolver-
se de modo progressivo e atingindo gradualmente determinadas padronizações capazes de
serem observadas pelos operadores do sistema penal em seus diferentes tempos. Porém, a

123
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 206.
124
Ibidem, p. 201.
125
KARAM, Maria Lúcia. Pela Abolição do Sistema Penal. In: PASSETI, Edson (Org.), op. cit. p. 72.
126
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 235.
45

[...] única forma de se manter esta progressividade da limitação repressiva e


de fazer com que os princípios penais permaneçam sempre “abertos” ou
“inacabados” consiste em sustentar um certo grau de contradição entre o
discurso jurídico-penal da agência de reprodução ideológica e o padrão
obtido pelas agências judiciais.127

De tal sorte, é possível verificar se o conteúdo do discurso jurídico do sistema criminal


está de acordo com a forma como seus órgãos verdadeiramente atuam e se estes acatam os
preceitos garantidores previstos e indispensáveis para alcançar o término dos conflitos de
maneira mais humanista. Com essa acepção, Zaffaroni pretende o resgate gradativo dos
instrumentos não penais para solucionar os dissídios entre os cidadãos, reduzindo, cada vez
mais, a interferência violenta das agências criminais nas relações sociais. Para esse fim, o
direito penal mínimo, interferência mínima e em última esfera do sistema penal, é exposto
como uma alternativa e “[...] de maneira inquestionável, uma proposta a ser apoiada por
todos os que deslegitimam o sistema penal, não como meta insuperável e, sim, como
passagem ou trânsito para o abolicionismo, por mais inalcançável que este hoje pareça;
[...].”128

Em síntese, pode-se analisar que Zaffaroni concorda com vários aspectos da teoria
abolicionista explanada por Hulsman, tanto no tocante às objeções feitas ao sistema penal
como às possíveis medidas a serem tomadas diante dos efeitos negativos dele. Porém, também
se verifica que, ao inclinar-se à situação atual dos países da América Latina, Zaffaroni propõe
uma solução mais ajustada à realidade subdesenvolvida em que se encontram. Sugere que, no
momento atual, o sistema penal ainda seja utilizado para a resolução de um pequeno
quantidade de conflitos, restringindo em etapas a sua atuação e, assim, se possa, futuramente,
abolir a justiça penal em sua completude.

2.3. Outros pensadores e suas correntes

Além de Hulsman e Zaffaroni, outros pensadores construíram uma posição crítica


acerca do abolicionismo penal, entre os quais se pode referir, primeiramente, o inglês Thomas

127
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 237.
128
Ibidem, p. 106.
46

Mathiesen, o qual segue uma linha de pensamento muito próxima do marxismo, que, como
ensina Chauí, sustenta que o

[...] poder político sempre foi de maneira legal e jurídica pela qual a classe
economicamente dominante de uma sociedade manteve seu domínio. O
aparato legal e jurídico apenas dissimula o essencial: que o poder político
existe como poderio dos economicamente poderosos, para servir seus
interesses e privilégios e garantir-lhes a dominação social. 129

Nesse sentido, Mathiesen faz uma ligação entre a atual sociedade capitalista de
dominação e o sistema penal, outra forma prejudicial de poder. A partir disso, sugere que não
só o sistema penal seja abolido como também qualquer outra forma de poder opressivo,130
sendo necessário, para isso, que o abolicionismo tenha permanente relação de oposição e
competição com o sistema que deseja abolir.131

Outrossim, defende que toda construção teórica deve se mostrar inacabada e em


constante superação de limites, possibilitando o verdadeiro retrocesso de poder, não parciais
retrocessos, como as descriminalizações e as penas alternativas de prisões, que são utilizadas
como táticas para neutralizar as teorias contrárias ao poder. Tais táticas intentam definir o que
está “dentro” e “fora” dele, para, conseqüentemente, conseguir englobar o que está “fora”
através do referido retrocesso estratégico.132

Alternando um pouco a linha de pensamento, outro doutrinador que não deve ser
olvidado é o escritor norueguês Nils Christie. Apesar de apresentar vários entendimentos
comuns ao pensamento de Hulsman, cabe realçar que Christie possui uma característica
peculiar: dar ênfase às suas experiências históricas.133 Além disso, o autor posiciona-se como
um abolicionista-minimalista, afirmando contrariar Hulsman ao defender a necessidade de
manter algumas garantias legais, visto que o sistema penal, com fulcro nas leis penais, é o
melhor limitador de alguns comportamentos absolutamente inaceitáveis numa sociedade em

129
CHAUÍ, Marilena, op cit. p. 409.
130
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 99.
131
Ibidem, p. 100.
132
Idem.
133
Idem.
47

que nada importa e onde o freio da vergonha não existe. 134 Nessa linha de raciocínio, Christie
justifica sua posição afirmando:

Meu primeiro, e talvez, mais importante ponto é que os abolicionistas estão


corretos em seu posicionamento de buscar a solução dos conflitos em outro
campo que não o direito penal. A maioria dos casos deveria ser resolvida por
meio de diálogo entre as partes, por intermédio do Juízo Cível, com base na
reparação do dano. Esta deveria ser a principal solução para os conflitos, mas
resta, ainda, um pequeno problema, que deveria ser mantido tão pequeno
quanto possível. Nesses casos, talvez, é que devêssemos utilizar o poder
estatal, através do encarceramento.135

Entretanto, tal encarceramento deve ser limitado para que não aconteça o que já está
ocorrendo em alguns países no tocante ao crescimento populacional carcerário. Sobre essa
visão, Christie elaborou o livro A indústria do controle do crime, no qual faz críticas ao
controle penal nos Estados Unidos, com enfoque ao ampliado número de presos nesse país, os
quais são os objetos centrais da indústria controladora de delitos. O autor explica:

A população potencialmente perigosa é afastada e colocada sob completo


controle, como matéria-prima para uma parte do próprio complexo industrial
que os tornou supérfluos e ociosos fora dos muros da prisão. Matéria prima
para o controle do crime ou, se quiserem, consumidores cativos dos serviços
da indústria do controle.136

Com direcionamento histórico, Christie explica que a expansão da denominada


“indústria controladora dos delitos” teve origem com o término da Guerra Fria, período de
intensa recessão econômica no qual as nações industriais não tinham mais inimigos externos
e passaram a se voltar, com prioridade máxima, aos inimigos internos.137 Desse modo,
propiciou-se o aumento da população carcerária não pelo aumento da criminalidade em si,
mas pelo o crescimento de interesses econômicos (como a construção de prisões, gestão
dessas e equipamento para o controle carcerário).138

134
OLIVEIRA, André Isola Fonseca; Ana Sofia Schimidt de. Conversa com um abolicionista minimalista.
Revista IBCCRIM, nº 21, ano 6, janeiro /março,1998. p.16
135
Ibidem, p. 22.
136
CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 122.
137
Ibidem, p. 4.
138
Ver item 7.1 da obra “A indústria do controle do crime” de Nils Christie.
48

Diante disso, um grande número de detentos sofre, hodiernamente, com as


degradantes condições penitenciárias, visto que, como Christie declara, “[...] quando você
está nesta situação indigna de ser um prisioneiro, perde traços de sua personalidade que faz
com que os outros tenham alguma identificação com você. Quando você está atrás das grades
é mais difícil vê-lo como ser humano”.139

Por esse motivo, o autor em questão é conhecido como ferrenho crítico das idéias de
Durkheim, o qual afirmava que o processo de modernização faz a sociedade progredir, 140 não
considerando que tal modernização propícia também a ampliação da indústria do controle do
crime. Diante desse entendimento, “Christie destaca expressamente a destrutividade das
relações comunitárias do sistema penal, seu caráter dissolvente das relações de
horizontalidade e os conseqüentes perigos e danos da verticalização corporativa”. 141 Dessa
maneira, simpatizante da resolução de conflitos de forma comunitária, Nils Christie valoriza
a existência de sociedades limitadas, pensamento que se deve ao fato de que nessas
sociedades ocorre uma espécie de solidariedade, com a impossibilidade de substituição de
seus membros. Assim, a

[...] prosperidade favorece a tolerância, a tradição torna compartilhar menos


ofensivo e a população pequena e homogênea cria inibições contra a
exclusão de pessoas visivelmente necessitadas. Também ajuda a estabilizar
uma situação instável, a sociedade reconhecer que existem alguns critérios
diferentes quanto aos objetivos da vida, e ter alguma consideração pelos
“pobres mas puros”, ou respeitar mais a generosidade do que a eficiência.142

Nessa linha, seria possível devolver os conflitos às vítimas, os quais, de acordo com
Christie, são bens subtraídos, freqüentemente, em nossa justiça penal. Ademais, conforme o
referido pensador, os conflitos são elementos importantes à vida social, pois, apesar de
ferirem as pessoas envolvidas e o sistema social, podem ser bem usados como experiências
para a vida dos envolvidos. Todavia, para tanto, as partes das situações conflituosas não
podem tê-las roubadas pelos seus advogados.143

139
OLIVEIRA, André Isola Fonseca; Ana Sofia Schimidt de, op. cit. p. 18.
140
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. op.cit, p.101.
141
Idem.
142
CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime. op. cit, p. 45.
143
OLIVEIRA, André Isola Fonseca; Ana Sofia Schimidt de, op. cit. p. 14.
49

Enfim, as idéias de Christie aqui expostas podem ser facilmente identificadas como
parte dos fundamentos abolicionistas, no entanto, o autor não deixa de salientar sua posição
minimalista diante da atual realidade. Ademais, explica:

O que o abolicionismo quer é encolher o sistema penal. Alguns querem


encolhê-lo tanto até o ponto da não existência. Outros, tanto quanto
politicamente possível em uma sociedade leniente. O meu interesse pessoal é
propiciar o desenvolvimento de um senso crítico em relação ao sistema penal
para que não se torne opressivo. 144

Como contrapartida ao conteúdo teórico abolicionista explanado neste capítulo, é


proeminente trazer a lume a acepção do pensador Luigi Ferrajoli, não por integrar o
movimento abolicionista, mas por ser opositor a ele. De acordo com sua ideação, a abolição
penal seria a causa de dois custos: o abandono social através das reações selvagens e
desregradas às ofensas e a regulamentação disciplinar da sociedade, ocasionado meios ainda
mais onerosos que a pena.145 Mais detalhadamente, Ferrajoli aduz que com a abolição penal
prevaleceriam quatro tipos de controles sociais arbitrários, os quais são:

144
CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime. op. cit, p. 14.
145
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista do Tribunais, 2002, p.
272.
50

a) os sistemas de controle social-selvagem, que vêm historicamente


expressos em todos os ordenamentos arcaicos onde a reação à ofensa vem
confiada não à pena, mas, sim, à vingança individual ou por força de
parentesco, como as vinganças de sangue, os duelos, e outros similares, com
livre espaço para a lei do mais forte; b) os sistemas de controle estatal
selvagem, tais como aqueles historicamente realizados quer em
ordenamentos primitivos de caráter despótico, quer em muitos ordenamentos
autoritários modernos, onde a pena é distribuída com base em procedimentos
potestativos orientados pelo arbítrio ou pelos interesses contingentes de
quem a comina, sem garantias que tutelem o condenado; c) os sistemas de
controle social-disciplinar, ou auto-regulamentados, também característicos
de comunidades primitivas, mas, em geral, de todas as comunidades
fortemente ideologizadas e éticas, sujeitas à ação de rígidos conformismos,
operantes em formas autocensuráveis, bem como às pressões de
observadores coletivos, de policiamentos morais, de “panoptismos” sociais
difusos, de implacáveis perseguições de opiniões, de ostracismos e de
demonizações públicas; d) os sistemas de controle estatal-disciplinar, que
são um produto tipicamente moderno e, sobretudo, um perigo futuro,
caracterizados pelo desenvolvimento das funções preventivas de segurança
pública, mediante técnicas de vigilância total, tais como aquelas consentidas
para espionagem dos cidadãos pelos potentes polícias secretas, bem como
dos atuais sistemas informáticos de controle audiovisual e de fichamento
generalizado.146

Além disso, a última forma de controle estatal disciplinar seria a mais perigosa, pois
poderia ocasionar o exacerbado controle policial, através de carros-tanques nas ruas, de
policiais “nas costas” dos cidadãos, de interceptações telefônicas e, no futuro, do uso de
câmeras nos lugares de trabalho e divertimento, com controle a distância. Enfim, esse seria um
sistema muito mais detalhado e penetrante na vida dos cidadãos.147

Ademais, Ferrajoli adverte que a teoria abolicionista evita especificações acerca da


deslegitimação do direito penal, “confundindo em uma rejeição única modelos penais
autoritários e modelos penais liberais, e, portanto, não oferecendo nenhuma contribuição à
solução dos difíceis problemas ligados à limitação e ao controle do poder punitivo.” 148 Dessa
forma, ao mesmo tempo em que o abolicionismo propugna pela abolição de todo e qualquer
sistema penal, não considera os instrumentos de garantias que nele estão contidos e não
encontra, por isso, adaptação à presente realidade. Nesse sentido, Ferrajoli afirma:

146
FERRAJOLI, Luigi, op. cit. p. 273.
147
Idem .
148
FERRAJOLI, Luigi, op.cit. p. 203.
51

O abolicionismo penal – independentemente dos seus intentos liberatórios e


humanitários - configura-se, portanto, como uma utopia regressiva que
projeta, sobre pressupostos ilusórios de uma sociedade boa ou de um Estado
bom, modelos concretamente desregulados ou auto-reguláveis de vigilância
e/ou punição, em relação aos quais é exatamente o direito penal- com o seu
complexo, difícil e precário sistema de garantias - que constitui, histórica e
axiologicamente, uma alternativa progressista.149

Diante disso, Ferrajoli refere a importância dos princípios penais garantidores para a
configuração menos violenta do sistema penal:

Enquanto existirem tratamentos punitivos e técnicas institucionais de


prevenção que incidam sobre os direitos e as liberdades dos cidadãos, a sua
justificação residirá, unicamente, no sistema de garantias penais e
processuais que lhe assistirão. Mesmo em uma improvável sociedade
perfeita do futuro, na qual a delinqüência não existisse, ou pelo menos, não
se advertisse a necessidade de reprimi-la, o direito penal, com todos os seus
códigos de garantias, deveria, contudo, remanescer somente para aquele
caso que poderia, excepcionalmente, produzir-se de reações institucionais
coativas a um fato delituoso. 150

Entretanto, é relevante aludir que, apesar de todas as suas objeções às idéias


abolicionistas, Ferrajoli aponta nelas também alguns fatores positivos. Primeiramente, defende
o valor das teorias do abolicionismo ao beneficiar a autonomia da criminologia crítica, ao
incentivar as pesquisas sobre a origem cultural do delito e sobre a modificação dos interesses
penalmente protegidos no transcorrer da história.151 Além disso, salienta existir mais um

149
FERRAJOLI, Luigi, op. cit. p. 275.
150
Ibidem p. 277.
151
Ibidem p. 203.
52

[...] mérito, que igualmente deve ser reconhecido ao abolicionismo teórico e


que possui um caráter mais especificadamente eurístico e metodológico.
Deslegitimando o direito penal de um ponto de vista radicalmente externo e
denunciando-lhe a arbitrariedade, bem como os custos e os sofrimento que o
mesmo traz, os abolicionistas despejam sobre os justificacionistas o ônus da
justificação. Justificações adequadas daquele produto humano e artificial que
é o direito devem conseguir reproduzir, convincentemente, o desafio
abolicionista, fazendo ver não apenas que os custos que aquele comporta são
inferiores às suas vantagens bem como às suas penas individualmente
consideradas, às suas proibições concretas e às suas efetivas técnicas de
verificação processual. E, exatamente porque o ponto de vista externo dos
abolicionistas compreende aquele dos destinatários das penas, também no
que tange a eles, as justificações devem ser moralmente satisfatórias e
logicamente pertinentes. 152

Enfim, diante do conteúdo teórico trazido à baila neste capítulo, é possível concluir
que o abolicionismo penal apresenta os mais diversos argumentos para sua sustentação, os
quais, são defendidos por um grande número de doutrinadores que se posicionam de acordo
com suas culturas e realidades. Com base nisso, é possível compreender o contraste entre a
idéia radical de abolição propugnada por Hulsman e os pensamentos mais moderados de
Zaffaroni e Christie, que acreditam na utilização preliminar do direito penal mínimo para
alcançar, de repente, um dia a total abolição da justiça penal. Ainda, há autores como Ferrajoli
que, apesar de serem favoráveis aos princípios minimalistas, não os vêem como uma etapa
para o abolicionismo, pois não acreditam na possibilidade da efetivação deste, tampouco, que
gere benefícios à vida em sociedade. Ademais, essas várias concepções de abolição propiciam
uma análise crítica sobre o sistema penal, auxiliando na busca de uma solução ideal que
minimize os danos gerados por ele.

152
FERRAJOLI, Luigi, op. cit. p. 204.
53

3 A UTOPIA ABOLICIONISTA E O DIREITO PENAL


MÍNIMO E GARANTISTA COMO POSSÍVEL
ALTERNATIVA AO SISTEMA PENAL ATUAL

Como é possível verificar no capítulo precedente, a teoria do abolicionismo penal


coloca em evidência várias falhas da justiça criminal e a fragilidade de seus fundamentos,
fatores que, conseqüentemente, acarretam sua deslegitimação. Dessa forma, os postulados da
teoria abolicionista propiciam uma análise crítica acerca do sistema penal hodierno. Ademais,
como Carvalho ressalta:

[...] Entendemos que várias matizes do abolicionismo são (a) são


extremamente úteis e importantes para a avaliação fenomenológica da
(in)eficácia do sistema penal; (b) seus fundamentos teóricos-doutrinários,
ancorados no paradigma da reação social, são irreversíveis, do ponto de vista
acadêmico, na ciência criminológica; e (c) algumas de suas propostas,
fundamentalmente aquelas que dizem respeito à abolição da pena privativa
de liberdade cumprida em regime carcerário fechado, aos processos de
descriminalização e à negativa da ideologia do tratamento, são viáveis como
projeto político criminal.153

Ademais, calha espancar que Ferrajoli reconhece a importância das idéias abolicionistas
para desenvolvimento da criminologia crítica, para os estudos sociais e culturais sobre os

153
CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.). Teoria Agnóstica da Pena: o modelo garantista de
limitação do poder punitivo. Criticas à Execução Penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002, p. 17.
54

delitos, para a exposição das doutrinas penais dominantes e para atribuição do ônus da
justificação aos justificacionistas.154

3.1 Objeções à teoria abolicionista

Não obstante todo o pensamento crítico trazido à baila pelo abolicionismo à ciência
penal, deve-se advertir sobre a existência de várias debilidades em suas propostas, as quais
impossibilitam que suas teses sejam aplicadas, integralmente, à realidade brasileira.
Primeiramente,

[...] as teorias abolicionistas foram criadas a partir da realidade totalmente


distinta da realidade marginal latino-americana. É proposta gerada no interior
de sociedades nas quais o Estado efetivamente cumpriu seu papel, ou seja,
em países nos quais a existência do Estado liberal e do Estado Social é
notória, países em que as promessas da modernidade saíram do papel e
integraram o cotidiano das pessoas. 155

Logo, é impossível colocar em prática, nos países latinos subdesenvolvidos, uma teoria
que foi formulada com inspiração em condições de vida totalmente diversas daqueles, em
nações de Primeiro Mundo, como a Holanda, Inglaterra, Noruega e demais países europeus.
Além disso, é flagrante a insegurança diante do fato de que, abolido o sistema penal, a
violência entre as pessoas venha a se dissipar cada vez mais diante da inexistência de um
controle penal estatal. Nesse pensar, comungando com as idéias Ferrajoli, expostas no capítulo
anterior, Carvalho registra com maestria:

154
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista do Tribunais, 2002, p.
203.
155
CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.). Teoria Agnóstica da Pena: o modelo garantista de
limitação do poder punitivo. Criticas à Execução Penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002, p. 37.
55

Entendemos como um dos grandes problemas das teorias abolicionistas a


possibilidade de conversão do sistema formal de controle processual penal
em modelos desregulamentados de composição dos conflitos, que tendem
reeditar esquemas pré-contratuais (sociedade primitiva) e/ou formar
modelos disciplinares (panoptismo social), ou ainda a criação de instâncias
formais civil-administartivas isentas das garantias típicas do processo
penal. O primeiro modelo revela um estado isento de legalidade e limites às
liberdades, configurando um modelo de resposta irracional à violação dos
direitos, ou instaura modelos pedagógicos de higienização sócio-política de
sociedades de tecnologia maximizada e total. O segundo modelo,
administrativizado, acaba por ser um dos modelos vigentes na estrutura
processual contemporânea (modelos anteriores e superveniente ao processo
penal de cognição), e representa sistema de extrema violência aos direitos
fundamentais. 156

Nesse diapasão, a justificativa abolicionista, de que o sistema penal é o grande


responsável pela deturpação dos direitos humanos, não procede na medida em que, por meio
do direito material e processual penal, concede-se o mínimo de garantias aos cidadãos.157
Nessa senda, explicita-se a necessidade de manter o controle da resolução dos litígios na
esfera estatal, pois é nesta que o direito penal é utilizado, amparando e efetivando alguns
direitos assegurados às pessoas. Por isso, Baratta assevera:

A contração ou “superação” do direito penal deve ser a contração e


superação da pena, antes de ser superação do direito que regula o seu
exercício. Seria muito perigoso para a democracia e para o movimento
operário cair na patranha, que atualmente lhe é armada, e cessar de defender
o regime de garantias legais e constitucionais que regulam o exercício da
função penal no Estado de direito.158

Assim, as classes mais pobres, principais prejudicadas na atual sociedade de interesses


econômicos, seriam intensamente atingidas com a falta de uma esfera penal-estatal que
proteja seus direitos. Além disso, a relevante interferência do Estado nas relações dos
cidadãos pode ser embasada pela sua própria origem, conceito e função. Segundo Jardim, o
Estado foi criado pelo homem, um ser eminentemente social. Assim, é entendido como uma

156
CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op. cit. p. 18.
157
Ibidem, p. 25.
158
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal.: introdução à sociologia do direito
penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 206.
56

instituição necessária e natural, utilizada, em certa etapa do processo civilizatório, como


instrumento humano para alcançar interesses e fins,159 entre eles, a solução dos conflitos
existentes entre os cidadãos, com fulcro na paz social. Por isso, entende-se que o Estado
tutela bens jurídicos de interesse de toda a sociedade, o que lhe atribui o dever de reagir
contra quem os viola.160 Contudo, o Estado não pode agir com uso direto da força, e, sim,
respeitando a dignidade humana, subsumindo ao império da lei por meio de formalidades
legais e de seus órgãos jurisdicionais.161 Em tal grau, à

[...] medida que o Estado se fortalece, consciente dos perigos que encerra a
autodefesa, assumirá o monopólio da justiça, produzindo-se não só a revisão
da natureza contratual do processo, senão a proibição expressa para os
particulares de tomarem a justiça por suas próprias mãos. Frente à violação
de um bem juridicamente protegido, não cabe outra atividade que não a
invocação da devida tutela jurisdicional. Impõe-se a necessária utilização
da estrutura preestabelecida pelo Estado- o processo judicial- em que,
mediante a atuação de um terceiro imparcial, cuja designação não
corresponde à vontade das partes e resulta da imposição da estrutura
institucional, será solucionado o conflito e sancionado o autor.162

Portanto, por meio do processo, a jurisdição penal demonstra-se um objeto limitado e a


serviço do aperfeiçoamento da convivência humana. Destarte, é interessante referir que
todas as objeções feitas à jurisdição penal, no atinente à violação de direitos humanos,
originam-se em dois momentos administrativos: na atividade policial (inquérito) e na
atividade executiva (sistema penitenciário).163 Tais procedimentos,

159
JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense,1999, p.1.
160
MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2 ed. Campinas: Millennium, 2000, p. 3.
161
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Prática de Processo Penal. 24 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 85.
162
LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen
Júris, 2003, p. 3.
163
CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op cit. p. 23.
57

[...] que orbitam na esfera do direito processual penal (inquérito e execução


penal), regem-se pela inquisitorialidade. O inquérito policial, p. ex., em
decorrência de sua natureza prevalentemente administrativa, não comporta as
garantias fundamentais do modelo acusatório, como o contraditório, a ampla
defesa, a publicidade, a presunção de inocência, o duplo grau de jurisdição
(requisitos mínimos do processo penal no Estado Democrático de Direito).
Igualmente no que tange à execução penal, estrutura híbrida na qual os
direitos e garantias do apenado ficam subordinadas às praticas
administrativas (disciplina carcerária e laudos criminológicos). Representam,
dessa forma, momento no qual inexiste controle eficaz e substantivo,
vislumbrado somente nas estruturas judicializadas.164

Por isso, sustenta-se que a justiça penal, por meio de seus órgãos, é indispensável ao
mínimo controle das reações de violência entre as pessoas e ao respeito dos direitos
fundamentais.165 Diante disso, manifesta-se débil a intenção abolicionista de resolver as
relações conflitivas de maneira informal, sem a intervenção estatal, com a participação
direita da vítima. Não obstante, tal debilidade se consolida pelo fato

[...] de que o sujeito envolvido com o conflito não tem “capacidade de


sublimação”, ou seja, de sair do próprio conflito e, ao observá-lo de fora,
verificar imparcialmente a resposta adequada ao caso. Pelo contrário,
entendemos que pelo fato de estar intrinsecamente envolvido na contenda
acaba por internalizar desejos de vingança, respondendo irracionalmente
(desproporcionalmente) ao agressor.166

De tal sorte, o Estado é visto como meio racional necessário à composição de


conflitos, sendo que não só “deve realizar a expropriação do “direito” (natural) da vítima,
como esta não tem, e nem deve ter interesse penal”.167 No entanto, é importante destacar que
não se pretende ignorar as falhas do poder estatal na execução de suas funções penais e sua
tendência ao autoritarismo, o que ora se explana é, apenas, a (re)afirmação do contrato
social.168 Outrossim, Zaffaroni leciona que a

164
CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op cit. p. 25.
165
SBARDELOTTO, Fábio Roque. Direito Penal no Estado Democrático de Direito: perspectivas (re)
legitimadoras. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2001, p. 202.
166
CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op cit. p. 19, 20.
167
Ibidem p. 20.
168
CARVALHO, Salo. Pena e Garantias: Uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de
Janeiro: Lúmen Júris, 2001, p. 277.
58

[...] decisão criminalizante da agência judicial é sempre “má”, mas menos


“má” que a decisão arbitrária do poder de outras agências, de modo que nos
pouquíssimos casos a ela submetidos melhor é que os decida, porque poderia
ser muito pior se não o fizesse.
Reconhecer a legitimidade da intervenção decisória da agência judicial como
“valor inconcluso” não implica introduzir nenhuma racionalidade no
exercício do poder do sistema penal, e sim apenas limitar sua irracionalidade
operativa em curso a tal ponto que a agência possa exercer o seu poder neste
sentido. 169

Por fim, deve-se rebater também a assertiva dos abolicionistas de que a justiça criminal
impossibilita a reparação dos danos gerados às vítimas dos delitos. Diante disso, não se pode
olvidar os ensinamentos de Frederico Marques, sobre as diferentes funções do direito penal e
170
do direito civil, de que cabem a este último as sanções, especificamente, reparatórias.
Nesse sentido, propugnar

[...] a reparabilidade do dano pela via processual penal é (con)fundir as


esferas de ilicitude e os graus quantitativos e qualitativos entre os ilícitos
criminais e os demais (civil administrativa, tributária e trabalhista et
coetera). A dogmática penal, ao elaborar a estrutura propedêutica da ciência
criminal, diferencia o ilícito penal dos demais ramos fundamentalmente pela
sanção aplicada.171

Em suma, são várias as razões que impedem a abolição da esfera penal: as condições
em que as teses abolicionistas foram criadas, a segurança propiciada por aquela no resguardo
dos direitos humanos, as funções insubstituíveis do âmbito criminal, entre outros fatores.
Desse modo e diante dos malefícios do sistema penal hodierno nos países subdesenvolvidos,
cabe encontrar uma alternativa ajustada a ele.

3.2 O direito penal mínimo e garantista como alternativa à realidade atual

Pelos fundamentos abrangidos, explicita-se a indispensabilidade do ramo jurídico


penal, material e processual à vida em sociedade.Todavia, esse ramo deve se voltar a sua

169
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op cit. p. 246.
170
MARQUES, Frederico. Apud CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op. cit. p. 21.
171
CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op cit. p. 20.
59

principal função que é proteger os direitos dos homens, e ter seus efeitos negativos limitados.
Com base nisso, consolida-se a necessidade de um direito penal mínimo e garantista como
recurso adequado à situação atual da justiça criminal nos países latinos. Em consonância,
Ferrajoli aduz que tal modelo corresponde a um meio-termo ideal entre um modelo máximo
de direito penal e entre o abolicionismo.172 Nessa esteira, as penas são compreendidas como
um “mal menor”,173 devendo serem

[...] dirigidas para a tutela dos direitos fundamentais dos cidadãos contra as
agressões de outros associados. Significa, antes, que o direito penal tem
como finalidade uma dupla função preventiva, tanto uma como outras
negativas, quais sejam a prevenção dos delitos e a prevenção geral das penas
arbitrárias ou desmedidas. A primeira função indica o limite mínimo, a
segunda função indica o limite máximo das penas. Aquela reflete o interesse
da maioria não desviante. Esta, o interesse do réu ou de quem é suspeito ou
acusado de sê-lo. Os dois objetivos e os dois interesses são conflitantes entre
si, e são trazidos pelas duas partes do contraditório no processo penal, ou
seja, a acusação, interessada na defesa social e, portanto, em exponenciar a
prevenção e punição dos delitos, e a defesa, interessada na defesa individual,
e via de conseqüência, a exponenciar a prevenção de penas arbitrárias. 174

Essas duas espécies de prevenção são, conjuntamente, responsáveis pela legitimação


da necessidade política do direito penal, como instrumento de tutela aos direitos fundamentais,
os quais protegem bens que não podem ser atingidos nem com ofensas de delito, nem com
punições.175 Com essa perspectiva, o direito penal mínimo e garantista deve causar, “além do
máximo bem-estar possível dos não desviantes, também o mínimo mal-estar necessários dos
desviantes”.176 Nesse viés, Ferrajoli conceitua, especificadamente, direito penal mínimo como
um

172
QUEIROZ, Paulo. A justificação do direito de punir na obra de Luigi Ferrajoli: algumas observações críticas.
Revista IBCCRIM, São Paulo, n. 27, ano 7, jul/set, 1999, p. 145.
173
FERRAJOLI, Luigi, op. cit. p. 271.
174
Ibidem, p. 269.
175
Ibidem, p. 270.
176
Ibidem, p. 267, 268.
60

[...] direito penal maximamente condicionado e maximamente limitado, isto


é, limitado às situações de absoluta necessidade - “pena mínima necessária”-
que corresponda, assim, não só ao máximo grau de tutela de liberdade dos
cidadãos frente à potestade punitiva do Estado, senão também a um ideal de
racionalidade e de certeza, razão pela qual não terá lugar a intervenção penal
sempre que sejam incertos ou indeterminados os seus pressupostos. 177

Em outros termos, o direito penal mínimo resume-se àquele utilizado em mínimas


ocasiões, quando efetivamente necessário, em razão do “efeito freqüentemente
contraproducente da ingerência penal do Estado”,178 que gera intensos malefícios àqueles
que são submetido a ele. Segundo Dotti, esta linha do direito penal, identificado pelo
princípio constitucional da intervenção mínima, constitui-se um destacado movimento crítico
de avaliação a crise do sistema positivo, diminuindo a insegurança jurídica e a ineficiência
responsável pela hipercriminalização.179

Pode-se afirmar que nas duas últimas décadas um dos temas de maior
ressonância no panorama crítico do sistema penal tem sido hiperinflação
legislativa fazendo com que se reduza intensamente o poder coercitivo do
Direito Penal em face da rotineira criação de tipos que não satisfazem as
exigências de proteção dos bens jurídicos fundamentais. Tem sido uma
constante o recurso às leis penais para atender interesses conjunturais do
Estado ou de grupos de pressão.180

Ocorre que esse intenso apelo às leis penais ocasionou o desenvolvimento de algumas
correntes minimalistas que desejam contê-lo, as quais propugnam pela descriminalização e a
despenalização das condutas tipificadas como crime.

A descriminalização é “sinônimo de retirar formalmente ou de fato do âmbito do


Direito Penal certas condutas, não graves, que deixam de ser delitivas”. 181 Em consonância, é
entendida através de duas facetas: de jure e de facto. A primeira é conceituada como a

177
QUEIROZ, Paulo, op. cit. p.145.
178
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal. 5 ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2004, p. 341.
179
DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 37.
180
Idem.
181
CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 72.
61

182
renúncia jurídica de agir num conflito pela via do sistema penal , ou seja, a lei deixa de
prever um fato como crime e, conseqüentemente, de penalizá-lo. Já a segunda, de acordo com
Aniyar de Castro, ocorre “quando o sistema penal deixa de funcionar sem que formalmente
tenha perdido competência para tal, quer dizer, do ponto de vista técnico-jurídico, nesses
casos, permanece ileso o caráter de ilícito penal, eliminado-se somente a aplicação efetiva da
pena”.183 Com essa ideação, a autora compreende essa forma de descriminalização como uma
modalidade de despenalização,184 que, por sua vez, é definida, por Zaffaroni como o ato de
“degradar” a pena de um delito sem descriminalizá-lo, no quê entraria toda a possível
aplicação das alternativas às penas privativas de liberdade.185 Para Baratta, a despenalização
trata de aliviar a pressão negativa do sistema punitivo sobre as classes menos favorecidas
economicamente e de diminuir seus efeitos negativos sobre elas. Além disso, tais alternativas
propiciam a substituição das sanções penais por outros meios de controle legal não
estigmatizantes e de maior aceitação social.186 Ademais, Cervini opina que às

[...] vezes considera-se mais conveniente manter a ilicitude do fato,


eliminando-se somente a pena, evitando um possível excesso da conduta
nessas áreas, e ratificando a suposta tarefa de docência moral da legislação.
Por isso, a chamada descriminalização integral, ou desinteresse total do
sistema por ações que eram puníveis, ocorre com pouca freqüência.187

De qualquer modo, tanto a modalidade de descriminalização como a de despenalização


pretendem diminuir a interferência penal na vida das pessoas e, assim, difundem o ideário do
minimalismo penal, manifestando a aplicação prática do mesmo e, conseqüentemente, do
garantismo. Isso ocorre porque os fundamentos minimalistas estão totalmente interligados às
concepções garantistas, pois, sendo a intervenção mínima um princípio constitucional, não há
como se desvincular do garantismo que se dirige à proteção dos direitos fundamentais e,
assim, à valorização dos princípios limitadores do ius puniendi.

182
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal. 5 ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2004 , p. 340.
183
CASTRO, Aniyar de. Apud CERVINI, Raúl, op. cit. p. 74.
184
Ibidem, p. 74.
185
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal. 5 ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2004, p.341.
186
BARATTA, Alessandro, op. cit. 202.
187
CERVINI, Raúl, op. cit. p. 76.
62

No pensar de Ferrajoli, o garantismo pode ter três diferentes significados:

Segundo um primeiro significado, “garantismo” designa um modelo


normativo de direito: precisamente, no que diz respeito ao direito penal, o
modelo de “estrita legalidade” SG, próprio do Estado de direito, que sob o
plano epistemológico se caracteriza como um sistema cognitivo ou de
poder mínimo, sob o plano político se caracteriza como uma técnica de
tutela idônea a minimizar a violência e a maximizar a liberdade e, sob o
plano jurídico, como um sistema de vínculos impostos à função punitiva do
Estado em garantia dos direitos dos cidadãos. É, conseqüentemente,
“garantista” todo sistema penal que se conforma normativamente com tal
modelo e que o satisfaz efetivamente.188

Por um segundo significado, Ferrajoli sustenta que o “garantismo” representa a


diferença existente entre o complexo normativo e as práticas operacionais, ou seja, entre o
“dever ser” e o “ser”. Corresponde a uma teoria jurídica que entende a “validade” e a
“efetividade” como categorias distintas, pois as normas são válidas e não efetivas, ao passo
que a prática operacional é efetiva, mas inválida.189

Segundo um terceiro significado, por fim, “garantismo” designa uma


filosofia política que requer do direito e do Estado o ônus da justificação
externa com base nos bens e nos interesses dos quais a tutela ou garantia
constituem a finalidade. Neste último sentido o garantismo pressupõe a
doutrina laica da separação entre direito e moral, entre validade e justiça,
entre ponto de vista interno e ponto de vista externo na valoração do
ordenamento, ou mesmo entre “ser” e o “dever ser” do direito. E equivale à
assunção, para os fins da legitimação e da perda da legitimação ético-
política do direito e do Estado, do ponto de vista exclusivamente externo.190

Sinteticamente, “garantismo penal é um esquema tipológico baseado no máximo grau


de tutela dos direitos e na fiabilidade do juízo e da legislação, limitando o poder punitivo e
garantindo a(s) pessoa(s) contra qualquer tipo de violência arbitrária, pública ou privada.”191
Nesse sentido, embasa-se em vários preceitos teóricos, mais especificamente, em dez
garantias penais fundamentais.
188
FERRAJOLI, Luigi, op. cit, p. 684.
189
Idem.
190
FERRAJOLI, Luigi, op. cit p. 685.
191
CARVALHO, Salo. CARVALHO, Amilton Bueno de. Aplicação da Pena e Garantismo. 2 ed. Rio de
Janeiro: Lúmen Júris, 2002, p. 21.
63

Ei-las: 1. princípio de retributividade ou da sucessividade da pena frente ao


delito; 2. princípio da legalidade; 3. princípio da necessidade ou da economia
do direito penal; 4. princípio da lesividade ou da ofensividade do ato; 5.
princípio da materialidade ou da exterioridade da ação; 6. princípio de
culpabilidade ou de responsabilidade pessoal; 7. princípio da jurisdição; 8.
princípio acusatório; 9. princípio de verificação; 10. princípio do
contraditório e da ampla defesa.192

Tais princípios, ordenados e conectados, são “as regras do jogo” do direito penal, ou
seja, possibilitam estabelecer a responsabilidade penal;193 são, segundo Ferrajoli, as
194
respostas de várias questões, que possibilitam o exercício do direito penal. Nesse
diapasão, os três primeiros princípios, respondem a quando e como se deve punir alguém.195
O princípio da retributividade ou da sucessividade da pena perante o delito expressa que a
penalização deve ocorrer como retribuição à realização de um crime, o qual é pressuposto
para uma sucessiva punição.196

Relacionado a essa idéia, o princípio da legalidade, como já abordado no primeiro


capítulo, estabelece que não existe um crime e, conseqüentemente, uma pena sem que haja
previsão legal que o estipule. Com isso, evita-se que os cidadãos sejam intitulados
criminosos e, também, punidos por qualquer fato valorado negativamente.

A importância do princípio da legalidade ou da reserva legal, especialmente


no campo penal, adquire sua máxima relevância ao referir-se ao caráter
forma ou legal da definição da desviação, seja por vincular a lei como
condição necessária da existência do delito, seja por submeter o juiz à lei.
Pela reserva da lei, não pode o juiz qualificar como delitos os fenômenos que
considera imorais ou merecedores de sanção segundo sua consciência ou
juízo de valores e, mas somente aqueles que, com independência de suas
valorações, vêm formalmente designados pela lei como pressupostos de uma
pena, de forma precisa, taxativa, com o menor índice possível de termos
imprecisos ou que demandem uma extensão hermenêutica muito ampla no
momento da tipificação.197

192
QUEIROZ, Paulo, op. cit. 145.
193
FERRAJOLI, Luigi, op. cit. p. 75.
194
Ibidem, p. 75.
195
Idem.
196
QUEIROZ, Paulo, op. cit. p. 145.
197
COPETTI, André. Direito Penal e estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000,
p. 111.
64

Diante disso, Ferrajoli, com seu enfoque garantista, criou um modelo normativo
fundado na legalidade estrita ou substancial, o qual é definido como uma técnica legislativa
que pretende evitar convenções penais arbitrárias e discriminatórias dirigidas às pessoas.
Com ela, deseja-se que as normas penais sejam, apenas, “regulamentares” dos delitos, não
“constitutivas”. Diante disso, concede-se aos cidadãos a possibilidade de fazer qualquer coisa
não proibida em lei, pois não serão penalizados por fato que não esteja legalmente tipificado.

Ainda relacionado a esses dois princípios, há o princípio da necessidade, o qual


defende que seja evitada a utilização do direito penal, ocorrendo somente quando necessária.
O princípio da necessidade ou da economia do direito penal foi proclamado pela Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), a qual, em seu artigo 8º, versa que “a lei
apenas deve estabelecer penas estritas e evidentemente necessárias [...].”198 Ademais, tal
preceito é de suma importância pois sua ausência

[...] dá margem ao surgimento de uma série de situações vexatórias, para não


dizer de um sistema punitivo vexatório. A presença do princípio da economia
ou da necessidade não expressa propriamente uma técnica punitiva, mas um
critério de política criminal, cuja satisfação está condicionada, mas não é
condicionante das demais garantias. Essa deficiência de nosso sistema tem
possibilitado a presença em nossos textos legais de proibições e penas
supérfluas que se chocam frontalmente com as razões de utilidade individual
e coletiva que justificam o direito penal; tem tornado também possível a
previsão legislativa de proibições penais totalmente injustificadas por elas
mesmas serem lesivas de direitos fundamentais, não só pela impossibilidade
de sua execução, mas também por não estabelecerem proteção a nenhum
bem jurídico, bem como por se absolutamente possível a sua substituição por
proibições civis ou administrativas; e, por fim, tem facilitado
significativamente a inserção no sistema legal de penas injustificadas por
serem totalmente excessivas, não pertinentes ou desproporcionais em relação
à relevância do bem jurídico tutelado.199

De outro modo, os princípios da lesividade, da materialidade e da culpabilidade


servem como a resposta ao questionamento de quando e como proibir. O princípio da
lesividade ou da ofensividade do ato disciplina que para uma conduta ser proibida deve
causar dano real a um bem jurídico protegido. Se esse princípio não estivesse presente no

198
DOTTI, René Ariel, op. cit. p. 69.
199
COPETTI, André, op. cit. p. 123, 124.
65

ordenamento constitucional e penal, a lesão efetiva a bens jurídicos não se apresentaria como
pressuposto necessário para que condutas (comissivas ou omissivas) venham a ser tipificadas
como crime no sistema penal.200 Em conformidade, o princípio da materialidade prevê a
necessidade de que os danos causados aos bens legalmente protegidos tenham
exteriorizações, ou seja, tenham materialidade. Já, o princípio da culpabilidade, analisado no
primeiro capítulo, define que um delito não é proibido se não for culpável. Para Bitencourt,
este princípio é recebido em três sentidos:

Em primeiro lugar a culpabilidade - como fundamento da pena- refere-se ao


fato de ser possível ou não a aplicação de uma pena ao autor de um fato
típico e antijurídico, isto é, proibido pela lei penal. Para isso, exige-se a
presença de uma série de requisitos – capacidade de culpabilidade,
consciência de ilicitude e exigibilidade da conduta - que constituem os
elementos positivos específicos do conceito dogmático de culpabilidade. A
ausência de qualquer destes elementos é suficiente para impedir a aplicação
de uma sanção penal.
Em segundo lugar, a culpabilidade – como elemento de determinação ou
medição da pena. Nesta acepção a culpabilidade funciona não como
fundamento da pena, mas como limite desta, impedindo que a pena seja
imposta aquém ou além da medida prevista pela própria idéia de
culpabilidade, aliada, é claro, a outros critérios como importância do bem
jurídico, fins preventivos etc.
E, finalmente, em terceiro lugar, a culpabilidade - como conceito contrário à
responsabilidade objetiva. Nesta acepção, o princípio de culpabilidade
impede a atribuição de responsabilidade objetiva. Ninguém responderá por
um resultado absolutamente imprevisível, se não houver obrado com dolo ou
culpa.201

Por fim, os princípios restantes arrolados são utilizados para solucionar a dúvida de
quando e como julgar. O princípio da verificação determina que o ônus probatório cabe à
acusação, isto é, o acusador deverá trazer ao processo as provas do que alegou sobre o fato
delituoso.202 O princípio do acusatório traz à lume “a regra da igualdade processual, segundo a
qual as partes – acusadora e acusada – se encontram no mesmo plano, com iguais direitos.”203
Assim, a paridade entre partes previne que alguma delas obtenha qualquer vantagem no
decorrer processual. Com esse viés, o princípio do contraditório, versado no artigo 5º, inciso

200
COPETTI, André, op. cit. 124.
201
BITENCOURT, César Roberto. Manual de Direito Penal: Parte Geral. 5. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1999, p. 44, 45.
202
QUEIROZ, Paulo, op. cit. 145.
203
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. vol. 1. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 50.
66

LV, da Constituição Federal,204 sustenta a concessão do direito de defesa aos acusados, com a
possibilidade de produzir todos os meios de prova legais necessários.

Assim, de acordo com tal princípio, a defesa não pode sofrer restrições,
mesmo porque o princípio supõe completa igualdade entre acusação e
defesa. Uma e outra estão situadas no mesmo plano, em igualdade de
condições, e, acima delas, o Órgão Jurisdicional, como órgão “superpartes”,
para, afinal, depois de ouvir as alegações das partes, depois de apreciar as
provas, “dar a cada um o que é seu”.205

Outrossim, complementando esses três últimos princípios, o principio da jurisdição


expressa a exclusividade do poder jurisdicional, o direito ao juiz natural, à independência e
imparcialidade da magistratura com exclusiva submissão à lei, servindo como orientação à
206
relação do juiz com as partes da lide Portanto, com esse princípio, institui-se o direito do
réu de ter um processo público e preestabelecido, com um juiz eminentemente imparcial.207

Enfim, compete dizer que, como explica Lopes Júnior, os dez princípios garantidores
ora apresentados foram deslocados por Ferrajoli da concepção de confinamento que possuem
para serem inseridos no centro do sistema penal.208 Como aponta Ibãnez, “não se trata de
garantir unicamente as regras do jogo, mas sim, um respeito real e profundo aos valores do
jogo, com os que – agora - já não cabe jogar.”209 Desse modo, tais preceitos devem ser
orientações vinculadas a qualquer exercício do sistema penal.

Com base nesses princípios, os defensores do garantismo e do minimalismo criticam,


veementemente, as teorias justificadoras da pena, principal instrumento da atividade penal.
Nesse senda, Zaffaroni “[...] questiona a necessidade teórica (do professor de direito penal) e
prática (do operador jurídico penal) de um modelo explicativo da sanção no terceiro
milênio.210 O autor refere ainda que a teoria da pena é uma disciplina dogmática, a qual realiza
uma tarefa estéril ao tentar justificar o poder de punir, pois a legitimação da dogmática não se

204
Art. 5º. LV- “Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados
o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”
205
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. vol. 1. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 49.
206
LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit. p. 13.
207
QUEIROZ, Paulo, op. cit. 145.
208
LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit. p.13.
209
IBÃNEZ. Apud, LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit. p.13.
210
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Apud CARVALHO, Salo de. Teoria Agnóstica da Pena: o modelo garantista de
limitação do poder punitivo. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op. cit. p. 27.
67

direciona a este poder e, sim, ao juiz, enquanto, a punição ocorre no âmbito administrativo e
não judiciário.211

Nessa esteira, constata-se a ineficácia das diferentes teorias de justificação da pena, as


quais se tornam desnecessárias por não conseguirem legitimar a pena e, tampouco, o sistema
penal. Especificadamente no tocante às teorias retributivas, Zaffaroni declara que são falhas
por perderem o dado da realidade ao tentarem aplicar a justiça de retribuição em países pobres
e injustos, como são os integrantes da América Latina. Logo, as classes menos privilegiadas
economicamente são os principais alvos dos “castigos” penais, resultando novamente
prejudicadas pelos detentores do poder,212 reforçando as desigualdades já existentes.

No que corresponde às teorias preventivas, pode-se dizer que são os principais focos
de críticas dos garantistas e minimalistas.Inicialmente, a prevenção geral

[...] não demonstrou os efeitos preventivos gerais proclamados. É possível


aceitar que o homem médio em situações normais seja influenciado pela
ameaça da pena. Mesmo assim, a experiência confirma, isso não acontece em
todos os casos, estando aí, como exemplos os delinqüentes profissionais, os
habituais ou os impulsivos ocasionais.213

Dessa maneira, nota-se que as pessoas não se abstêm de delinqüir por existir a previsão
de uma pena à sua conduta. Ademais, as [...] teorias preventivas, como as retributivas, não
conseguem sair de outro entrave: sua impossibilidade de demonstrar quais são os
comportamentos diante dos quais o Estado tem legitimidade para intimidar e, assim, sendo
não define também o âmbito do punível.214

Já a prevenção especial é fortemente atacada diante dos altos índices de reincidência


criminal, resultado dos efeitos intensamente danosos da pena privativa de liberdade, os quais
Edmundo Oliveira descreve:

211
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Apud CARVALHO, Salo de.Teoria Agnóstica da Pena: o modelo garantista de
limitação do poder punitivo. In: CARVALHO, Salo de (Org.). op. cit. p. 28.
212
ZAFFARONI, José Henrique Pierangeli; Eugenio Raúl. Manual de Direito Penal. 5 ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004, p. 342.
213
BITENCOURT, César Roberto. Manual de Direito Penal: Parte Geral. 5. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1999, p. 110.
214
Idem.
68

[...] a) não serve para o que diz servir; b) neutraliza a formação ou o


desenvolvimento de valores; c) estigmatiza o ser humano; d) funciona como
máquina de reprodução da carreira do crime; e) introduz na personalidade a
prisionização e g) legitima o desrespeito aos direito humanos.215

Nesse sentido, inexistem condições de efetivar a chamada “ideologia de tratamento”, a


qual pretende ressocializar o criminoso e prepará-lo para viver em sociedade.216 Outrossim,
essa impossibilidade se afirma pelo fato de que as próprias normas sociais não

[...] podem determinar unilateralmente o processo interativo, sem contar com


a vontade do indivíduo afetado por este processo, pois as normas sociais não
são algo imutável e permanente, mas o resultado de uma correlação de forças
submetidas a influências que mudam. Em outras palavras, ressocializar o
delinqüente sem avaliar, ao mesmo tempo, o conjunto social no qual se
pretende incorporá-lo significa, pura e simplesmente, aceitar a ordem social
vigente como perfeita, sem questionar nenhuma de suas estruturas, nem
sequer aquelas mais diretamente relacionadas com o delito cometido. 217

Portanto, verifica-se haver vários argumentos capazes de desqualificar as teses de


justificação da pena como um objeto eficiente do sistema criminal. Diante disso, Zaffaroni
aponta para a visão da pena como um instrumento, apenas, de caráter político, ao passo que
os delitos e suas penas provêm de mera decisão do Poder Legislativo, o qual é uma agência
eminentemente política, e não tem a capacidade de superar todo o limite da irracionalidade e
218
de estipular o que é “pena” e o que não é, de dizer o que é “doloroso” e o que não é. Com
essa lógica, Carvalho demonstra ser indispensável reconhecer que negar

[…] as teorias da pena possibilita eliminar do discurso penal seu viés


declarado (e não cumprido) que mascara a real funcionabilidade de sanção,
retomando, seu identificador essencial que radica na esfera da política. Em
suma: a pena seria uma manifestação fática, em essência política, isenta de
qualquer fundamentação jurídica racional.219

Diante disso, denota-se que para o garantismo e minimalismo penal, é impossível a


(re) legitimação da pena, e, sim, do direito, que é visto como regulador e inibidor da violência

215
OLIVEIRA, Edmundo. Apud SICA, Leonardo, op. cit. 46.
216
CERVINI, Raúl, op. cit. p 45.
217
CERVINI, Raúl, op. cit. p. 34.
218
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 202.
219
CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op. cit. p. 29.
69

política da sanção,220 a qual precisa ser mantida como o mínimo de coerção necessária para o
controle social.221 Tal necessidade de manutenção integra as bases teóricas do utilitarismo
reformado de Ferrajoli,222 pelo qual argumenta que a pena é instrumento necessário nos dias
de hoje, porém com as devidas limitações na sua aplicação. Assim, “[…] o modelo garantista
recupera a funcionabilidade da pena na restrição e imposição de limites ao arbítrio
sancionatório judicial e administrativo.”223

É dentro dessa ótica que Ferrajoli

[…] concebe o fim da pena não apenas como prevenção aos injustos delitos,
mas também, e principalmente, como esquema normativo de prevenção da
reação informal, selvagem, espontânea, arbitrária que a falta das penas
poderia ensejar. Desde este ponto de vista, a pena se apresenta como guardiã
do direito do infrator em não ser punido senão (proporcionalmente) pelo
estado, redimensionado a função do direito e do processo penal à proteção da
pessoa que se encontra em situação de violência.224

Destarte, “[…] o direito penal mínimo e o garantismo monstram-se tendentes a realizar


a aplicação da pena e a proteger o acusado do arbítrio e do poder demasiado do Estado.”225
Logo, a política criminal voltada ao minimalismo e ao garantismo,

[…] que se presta de modo incomparável para uma abordagem


relegitimadora do Direito Penal, é fundamental para a constatação no sentido
de que o Direito não pode ser justificado como um valor intrínseco somente
por estar vigente. O poder não se sustenta somente por ser poder ou por
derivar do Estado. 226

Desse modo, tanto a existência, como a (re) legitimação do direito penal vinculam-se
diretamente ao dever de os direitos fundamentais nortearem sua aplicação, intentando a

220
CARVALHO, Salo. Penas e Garantias: uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de
Janeiro: Lúmen Júris, 2001, p. 283.
221
SICA, Leonardo, p. 44.
222
CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op. cit. p. 34.
223
Ibidem, p. 33.
224
CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op. cit. p. 34.
225
COSTA, Renata Almeida da. Abolicionismo utópico e garantismo penal tópico. Revista Justiça do Direito.
vol. 1, n. 16. ano 2002, p. 77.
226
SBARDELOTTO, Fábio Roque. Direito Penal no Estado Democrático de Direito: perspectivas (re)
legitimadoras. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2001, p. 201.
70

minimização dos prejuízos gerados por aquele. Ademais, isso não parece impossível, pois tais
garantias já estão inseridas no sistema normativo penal, bastando efetivá-las. De tal sorte,
diferentemente do abolicionismo, que ainda se demonstra uma utopia, o minimalismo e o
garantismo apresentam-se como solução adequada e tópica à realidade atual,227 que vem
necessitando, urgentemente, de mudanças voltadas a humanização de seus mecanismos de
controle.

Enfim, é possível analisar que, apesar de os argumentos abolicionistas se revelarem


altamente valorosos à crítica do sistema penal, os fundamentos de manutenção deste se
sobressaem diante dos perigosos danos que sua ausência possa causar às garantias
fundamentais dos cidadãos. Destarte, é indispensável a existência do sistema penal para o
mínimo controle da sociedade, contudo aquele deve ter em seu centro um direito penal que
vise, principalmente, diminuir os malefícios que a justiça penal acarreta, utilizando-a como
meio eficaz de resguardo aos direitos constitucionais de todas as pessoas, inclusive do réu.

227
COSTA, Renata Almeida da, op. cit. p. 77.
71

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A realização da presente monografia jurídica coroou o desenvolvimento de uma


pesquisa iniciada há três anos, durante o curso de Direito, no grupo de pesquisa em ciências
criminais. Daquelas primeiras leituras, foi possível desenvolver o projeto de monografia que
resultou neste texto. Dessa forma, este trabalho possibilitou a utilização dos conhecimentos
adquiridos sobre a ciência penal durante o período acadêmico, como também, o
aprofundamento dos mesmos. Ademais, oportunizou a construção de uma análise crítica
sobre o sistema penal em sua totalidade.

Restou demonstrado ao longo da exposição que, dentre as várias formas de


manifestação do controle social, faz-se presente o sistema criminal, o qual se serve do ius
puniendi, para perseguir a ordem e o bem comum, quando as demais facetas de controle não
atingirem seus fins. Para levar a efeito o controle social penal, a justiça criminal dispõe de
uma estrutura que proporciona o seu funcionamento e, conseqüentemente, atribui-lhe
características peculiares.

Ocorre que, conforme se depreendeu, nas últimas décadas, vários elementos


definidores do sistema penal têm sido fortemente criticados por algumas linhas teóricas de
política criminal. Nessa senda, o movimento abolicionista penal surge, explicitando várias
debilidades da justiça penal e adscrevendo os efeitos danosos causados àquelas pessoas que
nela estão inseridas. Nesse sentido, dentre vários fatores, a teoria abolicionista alega a
dissonância entre as agências penais como uma das causas de ineficiência das mesmas. Aduz
também que o sistema penal se restringe a estigmatizar pessoas como criminosos no momento
em que denomina determinados fatos como crimes e encontra culpado para eles.

Ainda, verificou-se que o abolicionismo realça os malefícios que o cárcere gera


àqueles que estão submetidos a ele, explicitando o desrespeito da justiça criminal aos direitos
72

humanos. Com isso e por ser mera manifestação de poder, aplicada a uma minoria descoberta
pelo sistema criminal, a pena é taxada como ilegítima. Contudo, para ofuscar tais evidências,
cria-se uma falsa ilusão à coletividade, pelos meios de comunicação de massa, sobre a
maximização da violência social, o que dissipa a impressão de que somente a justiça criminal
é capaz de contê-la.
Outrossim, percebeu-se que no entendimento abolicionista, a vítima é parte excluída
pelo sistema penal, o qual desconsidera os interesses daquela. Logo, com o intuito de acabar
com tais danos, a teoria abolicionista se revelou propugnar pela solução comunitária e
informal dos dissídios entre os cidadãos, sustentando que a intervenção estatal se resuma à
esfera cível, quando esta for realmente necessária. Para isso, asseverou-se que o
abolicionismo advoga por uma mudança da linguagem hodierna por outra não-punitiva,
voltada a alcançar maiores benefícios às partes do litígio e, conseqüentemente, à
coletividade, através da paz social. Nesse diapasão, a doutrina abolicionista é de grande valia
à ciência penal, pois evidencia de forma radical os defeitos da justiça criminal e, assim,
revela que modificações devem ocorrer urgentemente.

Entretanto, averiguou-se que muitos fundamentos do abolicionismo são objeto de


censura por alguns pensadores. Primeiramente, notou-se que as doutrinas abolicionistas se
erigiram em sociedades que possuem condições de vida totalmente diversas daquelas
presentes nos países latino-americanos, ou seja, advieram da cultura de países desenvolvidos
em que o Estado propicia grande parte da assistência e segurança de que a população
necessita. Contrariamente, nas nações latinas, o Estado não aplaca, muitas vezes, nem o
essencial à dignidade humana.

Ademais, constatou-se que, com a abolição penal, o mínimo de proteção


proporcionada pelo Estado aos cidadãos deixaria de existir, eis que várias garantias
constitucionais são reconhecidas àqueles através da realização dos processos judiciais
criminais. Nessa esteira, outras formas de controle ainda mais maléficas poderiam
predominar, pois as limitações impostas ao ius puniendi perderiam seu apoio e se
oportunizaria a atuação estatal arbitrária, como nos períodos ditatoriais, em que os agentes do
Estado utilizavam-se do poder de maneira ilimitada, violenta e quando era conveniente a
repressão e punição da coletividade. Outrossim, dificultar-se-ia mais ainda a resolução dos
litígios entre as pessoas, visto que elas, muitas vezes, quando envolvidas no conflito, perdem a
capacidade racional de autodeterminação e agem impulsivamente diante de um abalo
emocional. Logo, a vingança privada poderia voltar a prevalecer nas relações sociais frente à
73

não existência de um sistema jurídico responsável à contenção das ofensas aos bens jurídicos
de profunda proeminência individual e coletiva.

Além disso, o estudo do abolicionismo, permitiu refletir sobre a possibilidade de


injustiças e de dominação por parte daqueles que detêm o poder na sociedade sobre os
economicamente oprimidos, a partir do fim do processo legal. Afinal, estes não teriam, nem
mais, o resguardo do devido processo para serem acusados e punidos. Portanto, percebeu-se
que, apesar de todas as objeções feitas ao sistema penal pela teoria abolicionista, aquele possui
função indispensável para a mínima manutenção da ordem e da paz entre os seres humanos.
Assim, considerou-se que entre a insegurança gerada pela abolição penal e os malefícios
gerados pela justiça criminal, esta se mostra de menor danosidade.

Contudo, advertiu-se que não estão sendo aceitas as falhas do sistema penal ao ser
sustentada a sua necessidade, pois junto a isso foi proposta uma outra alternativa a ele, que
visa, pelo menos, minimizar os prejuízos que ocasiona. Tal alternativa teve seu fulcro
ressaltado num direito penal garantista e mínimo, assentado no exercício de uma justiça
criminal garantidora e presente quando mister. Nesse magistério, foi indispensável referir a
ligação existente entre a linha garantista e a minimalista do direito penal, porquanto de serem
demonstradas a valorização dos princípios constitucionais, por parte da primeira, e do
surgimento da segunda através do princípio da intervenção mínima.

Mais especificadamente entendeu-se como direito penal garantista aquele


impulsionado a efetivar as garantias humanas constitucionais através de preceitos jurídicos
materiais e processuais, os quais estabelecem restrições ao Estado e procedimentos a serem
seguidos na busca dos agentes criminosos e na penalização dos mesmos. De tal sorte,
constatou-se que o garantismo concede uma segurança aos cidadãos: a impossibilidade de a
justiça penal agir com total discricionariedade e liberdade para atingir seus fins.

Por sua vez, compreendeu-se direito penal mínimo, ou minimalismo, como uma
limitação à ciência penal, pois essa se mostrou útil somente quando as demais esferas de
controle da sociedade forem ineficazes. Com isso, denotou-se que o direito penal não deve ser
suprimido, porém vinculado a atuar limitadamente e a agir com cautela para não dissipar
danos em ocasiões não oportunas. Nessa seara, algumas linhas teóricas, como a
descriminalização e a despenalização, se consolidam com o condão de implantar o
minimalismo de forma prática na realidade cotidiana, sustentando, respectivamente, que
74

alguns crimes deixem de ser tipificados e que outros não sejam punidos com penas privativas
de liberdade, a principal responsável pelos malefícios do sistema criminal.

Nessa perspectiva, corroborou-se a incapacidade das doutrinas justificacionistas de


demonstrarem uma boa razão para pena. As teorias retributivas revelam-se injustas na medida
que, diante da situação atual de desigualdade, as classes baixas são as principais afetadas e
prejudicadas com o castigo da pena. Já as teorias preventivas, geral e especial, mostram-se
visivelmente ineficientes diante da quantidade de crimes praticados entre as pessoas, bem
como o alto índice de reincidência penal. Diante disso, os fundamentos aludidos pelas
referidas teorias foram identificados como falsos perante a situação da realidade, entendendo-
se a penalização como algo carente de juridicidade.

Nessa linha, observou-se que a pena se mantém, ainda, pela função limitativa que
exerce sobre as reações ilegais e irrestritas da população e do Estado. Por conseguinte, a pena
possui um caráter, eminentemente, político, servindo como mero instrumento de fato para o
controle social estatal. Esse viés político advém, principalmente, da forma como os fatos
delitivos são estabelecidos, através da ideologia de políticos que integram o Poder Legislativo,
e que criam os tipos penais.

Assim, verificou-se que os defensores do garantismo e do minimalismo penal não


vêem na pena a possibilidade de (re)legitimação mas, sim, no direito penal, através de uma
(re)interpretação do mesmo, amparada nos princípios constitucionais, com a priorização dos
direitos fundamentais no sistema penal, que atuará quando for realmente conveniente ao
resgate da harmonia social.

A partir disso, pode-se constatar que o direito penal explicita um duplo


direcionamento: proteger os cidadãos de vinganças individuais e resguardar os direitos do réu
integrante do sistema penal. Destarte, o direito penal assumirá uma feição mais humanitária,
diminuindo a interferência prejudicial causada por ele.

Enfim, concluiu-se que, diante das deficiências sociais presentes no panorama da


América Latina, torna-se inviável, hodiernamente, o ideário abolicionista. No entanto, isso
não significa a inércia de mudanças positivas nas condições do sistema criminal. Ao contrário,
propõe-se um direito penal mínimo e garantista como solução ideal ao presente momento da
vida em sociedade e como passo intermediário para quiçá, um dia, a possível abolição penal.
75

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência
à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à


sociologia do direito penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2002.

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 8 ed. Rio de Janeiro: Revan,
2002.

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 2003.

BIANCHINI, Alice. A seletividade do controle penal. Revista IBCCRIM, São Paulo, ano 8, n.
30, p. 51- 64, abr/jun, 2000.

BITENCOURT, César Roberto. Manual de direito penal: parte geral. vol. 1. 6 ed. São Paulo:
Saraiva, 2000.

__________________________. Manual de Direito Penal: parte geral. 5 ed. São Paulo:


Revista dos Tribunais, 1999.

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico .16 ed. Brasília: UNB, 1999.

BOSCHI, José Antonio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. Porto Alegre:
Livraria dos advogados, 2000.

CARVALHO, Salo. Pena e Garantias: Uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no


Brasil. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001.
76

________________ . Teoria Agnóstica da Pena: o modelo garantista de limitação do poder


punitivo. In: CARVALHO, Salo de (Org). Criticas à Execução Penal. Rio de Janeiro: Lúmen
Júris, 2002.

_______________ . CARVALHO, Amilton Bueno de. Aplicação da Pena e Garantismo. 2


ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002.

CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1995.

CHAUÍ, Marilena. Filosofia. 6 ed. São Paulo: Ática, 1997.

CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

COPETTI, André. Direito Penal e Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2000.

CORRÊA JUNIOR, Alceu. SHECAIRA, Sérgio Salomão Shecaira. Alceu. Teorias da pena:
finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002.

COSTA, Renata Almeida da. Abolicionismo utópico e garantismo penal tópico. Revista
Justiça do Direito, vol. 1, n. 16. p. 73-78, 2002.

COTRIM, Gilberto. História global: Brasil e Geral. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1998.

DOTTI, René Ariel. Bases e alternativas para o sistema de penas. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1998.

_________________. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

FERNANDES, Newton. FERNANDES, Valter. Criminologia Integrada. 2 ed. São Paulo:


Revista dos Tribunais, 2002.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002.
77

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 19 ed. Petrópolis: Vozes, 1987.

GARCIA, Antônio. MOLINA, Pablos de. Criminologia. 4 ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002.

HULSMAN, Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas Perdidas: o sistema penal em
questão. 2 ed. Niterói: Luam, 1997.

JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.

KARAM, Maria Lúcia. Pela Abolição do Sistema Penal. In: PASSETI, Edson (Org.). Curso
livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004.

LAKATOS, Eva Maria. Sociologia Geral. 5 ed. São Paulo: Atlas, 1986.

LOPES JÚNIOR, Aury. Sistema de Investigação Preliminar no Processo Penal. 2 ed. Rio de
Janeiro: Lumen Júris, 2003.

LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. 2 ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,
2003.

MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2 ed. Campinas:


Millennium, 2000.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2000.

MOSSIN, Heráclito Antônio. Curso de processo penal. Vol. 1. São Paulo: Atlas, 1998.

QUEIROZ, Paulo. A justificação do direito de punir na obra de Luigi Ferrajoli: algumas


observações críticas. Revista IBCCRIM, São Paulo, , ano 7, n. 27, p. 143- 148, jul/set, 1999.

______________. Eficientização do controle social não-penal, IBCCRIM. Disponível na


internet: <http://www.ibccrim.org.br..html> Acesso em: 08 ago. 2005.

OLIVEIRA, Ana Sofia Schimidt de. FONSECA, André Isola. Conversa com um abolicionista
minimalista. Revista IBCCRIM, nº 21, ano 6, p.13 – 22, janeiro /março,1998.
78

PASSETTI, Edson. A atualidade do abolicionismo penal. In: PASSETI, Edson (Org.). Curso
de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004.

PRADO, Luis Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral. vol. 1. 3 ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002.

SBARDELOTTO, Fábio Roque. Direito Penal no Estado Democrático de Direito:


perspectivas (re) legitimadoras. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2001.

SICA, Leonardo. Direito Penal de emergência e alternativas a prisão. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002.

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva,
1994.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Prática de Processo Penal. 24 ed. São Paulo:
Saraiva, 2002.

_________________________________. Manual de Processo Penal. 4 ed. São Paulo:


Saraiva, 2002.

_________________________________ . Processo Penal. vol. 1. 15 ed. São Paulo: Saraiva,


1994.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do


sistema penal. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

________________________. PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal


brasileiro: parte geral. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

__________________________________________________. Manual de direito penal


brasileiro: parte geral. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

ZEIDAN, Rogério.Ius puniendi, estado e direitos fundamentais: aspecto de legitimidades e


limites da potestade punitiva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002.
79

Das könnte Ihnen auch gefallen