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Missões Evangélicas em Áreas Indígenas

Ronaldo de Almeida
USP/CEBRAP

Resumo

Esta comunicação trata do movimento de expansão evangélica realizado por agências


missionárias que atuam em áreas indígenas no Brasil. Foram objetos de investigação os
princípios religiosos que orientam esta atividade, sua lógica interna e suas estratégias de
ação para inserir o cristianismo evangélico em sociedades indígenas da Amazônia Legal
pouco ou não cristianizadas. Os campos de pesquisa foram basicamente dois. As várias
experiências missionárias entre etnias indígenas da Amazônia, mais precisamente as da
região do Oiapoque (Galibi-Marworno, Karipuna, Palikur do Brasil e de Saint-Goerges de
l’Oyapoc), na fronteira do Brasil com a Guiana Francesa, e da reserva do Tumucumaque
(Wayana-Aparai), no Pará, próximo à fronteira com o Suriname. Foram ainda investigados
os centros de formação missionária em São Paulo (Faculdade Teológica Batista e a
Universidade Metodista de São Bernardo do Campo), com a finalidade de compreender o
perfil técnico e religioso desejado para o missionário que atua em áreas indígenas.

1. O movimento missionário evangélico

A expansão do protestantismo evangélico em escala mundial intensificou-se a partir do


final do século XVIII, quando organizações especializadas na atividade missionária
extrapolaram as fronteiras européias em busca de novos territórios e culturas nas quais o
cristianismo deveria ser anunciado1 . Até o século XVIII, o protestantismo da Reforma
estava mais preocupado com sua sobrevivência em meio à formação de algumas nações
européias, de tal maneira que o surgimento das novas igrejas era muito mais o resultado de
cismas, migrações e conflitos políticos do que de um projeto de expansão religiosa.
Ademais, a doutrina calvinista, cujos princípios influenciaram outras orientações teológicas
daquele período, imobilizava qualquer iniciativa missionária2 . Foi necessária uma
renovação teológica, conhecida como o primeiro e o segundo “despertar evangélico”,
ocorrida na Europa, no final do século XVIII, e nos Estados Unidos, em meados do XIX,
1
O moderno movimento missionário iniciou-se na Inglaterra com as chamadas sociedades bíblicas. A
primeira foi a English Baptists (1792), depois vieram a London Missionary Society (1795), Anglican
Evangelical Church Missionary Society (1799) e British and Foreign Bible Society (1804). Os Estados
Unidos criaram o American Board of Commissioners for Foreign Missions (1810) e o American Baptists
Missionary (1814). Após as iniciativas anglo-saxães, seguiram-se as missões européias da Suiça (1815),
Dinamarca (1821), França (1822), Suécia (1835) e outras mais (Neil,1997:258).
2
. Refiro-me aqui especificamente à doutrina da predestinação para a qual a conversão de um indivíduo
ocorreria num tempo designado e conhecido somente por Deus. A conversão ao cristianismo dependia da
vontade divina do que propriamente da prática da evangelização. As formulações teológicas de “envio” ou de
“anúncio do Evangelho” são estranhas ao pensamento calvinista, pois estão submetidas à de “eleição” do fiel.
2

para que os protestantes se lançassem de forma definitiva na atividade missionária, há


muito iniciada pelo catolicismo romano. Atualmente, poucas partes do planeta encontram-
se fechadas à expansão dessas missões, cujos focos emissores principais são Inglaterra e
Estados Unidos.

No sentido religioso lato, qualquer atividade religiosa que visa à conversão de um indivíduo
pode ser considerada missão, na medida em que todos os cristãos estão imbuídos do dever
de propagar o Evangelho àqueles que não o conhecem. Contudo, uso o termo missão no seu
sentido restrito, que é a propagação do Evangelho em lugares pouco ou não cristianizados,
mais precisamente, onde a ordem social não está estruturada sob aquilo que genericamente
chamamos de cultura cristã. Dois trabalhos importantes da sociologia da religião partem
deste pressuposto: Stephen Neil, que na década de 60 historiou a expansão do cristianismo
no mundo, e R. C. Fernandes do ISER que, no final dos anos 70, analisou a presença
missionária protestante no Brasil. Para eles, missão é a ponta-de-lança de um movimento
transnacional que se expande para atingir populações não cristianizadas.

Acrescente-se, no entanto, que, mais do que um movimento transterritorial ou


transfronteiriço, trata-se de uma atividade transcultural que leva o cristianismo para países
islâmicos, budistas, hinduístas, etnias da África ou para as sociedades indígenas no Brasil,
entre outros exemplos. Assim sendo a atividade religiosa, por excelência, responsável pela
inserção de um conjunto de crenças em outro universo cultural, que se torna a unidade
mínima a partir da qual sua prática é formulada. Isto é, na boa tradição protestante, a
conversão é individual, pois confronta o pecador e sua culpa com a oferta de redenção dado
por deus, entretanto, a atividade missionária, mais do que converter indivíduos, tem como
finalidade criar condições simbólicas e materiais para que a mensagem cristã se
universalize em diferentes contextos sócio-culturais. Mais do que o proselitismo de
indivíduos, o cálculo missionário busca formular um campo simbólico comum no qual
noções como a de pecado, culpa, conversão e salvação, entre outros, façam sentido para o
indivíduo alvo da evangelização. Mas do que evangelizar, a missão provoca o contato
cultural visando à tradução de elementos da religiosidade cristã para diferentes contextos
sócio-culturais.

Imbuído dessa tarefa, o protestantismo missionário atingiu o Brasil somente a partir do


século XIX. Com exceção de uma comunidade de franceses huguenotes, no Rio de Janeiro,
durante cinco anos do século XVI, e dos vinte quatro anos do calvinismo holandês de
Mauricio de Nassau, em Pernambuco, a presença protestante no período colonial não teve
importantes impactos sobre a religiosidade e a demografia brasileiras. Segundo a tipologia
formulada por Mendonça Gouveia (1991), o tipo de inserção do protestantismo no Brasil
ocorreu no século XIX por meio de imigração e, principalmente, através de missões
religiosas. Os ecos do protestantismo inglês chegaram ao Brasil, por volta de 1810, pela
imigração de alguns grupos anglicanos e reformados fortemente influenciados pelo
calvinismo. Mas foram os pietistas luteranos trazidos da Alemanha como mão-de-obra para
a área rural que, em 1824, apresentaram uma expressiva presença demográfica que resultou
na formação de comunidades permanentes.

Os primeiros protestantes enviados em missão chegaram ao Brasil somente a partir da


década de 1850, vindos dos Estados Unidos; e antes da virada do século, o campo do
3

protestantismo histórico brasileiro estava formado por presbiterianos, batistas, metodistas,


episcopais, congregacionais e luteranos do Sínodo de Missouri. As missões norte-
americanas vieram para evangelizar os brasileiros, que, embora católicos, não conheciam a
Verdade cristã. A Idolatria, a confissão, o batismo de crianças, a infabilidade papal, a
universalidade da Igreja, a hierarquia eclesial, o purgatório, o mistério da
transubstanciação, o culto aos santos e a Maria - e tantos outros dogmas e ritos - foram
condenados pelo protestantismo, que não reconhecia o carisma do catolicismo romano.
Numa posição sectária e anti-católica, o protestantismo missionário atribuiu à Igreja a má
catequese dos brasileiros que resultou em cristianismo distorcido e péssimo cenário sócio-
econômico. Daí o investimento missionário no setor de educação para formar uma elite
protestante que pudesse modernizar o Brasil. Para tanto, foram criados bons colégios,
institutos bíblicos, além das Universidades Metodistas de Piracicaba e de São Bernardo do
Campo, o Instituto Metodista Bennett, no Rio de Janeiro, o presbiteriano Mackeinze, em
São Paulo, a luterana Universidade de São Leopoldo, no Rio Grande de Sul, e outros tantas
instituições protestantes dedicadas ao ensino secular.

No início do século houve uma tentativa de articulação internacional das instituições


missionárias evangélicas. O primeiro grande encontro ocorreu, em 1910, em Edimburgo,
tornando-se referência principal para o setor ecumênico, cuja instituição mais
representativa é o Conselho Mundial de Igrejas (CMI). Uma das diretrizes do encontro foi
de não enviar missionários para países de tradição católica. As igrejas de perfil ecumênico
consideram esses países como atingidos pelo Evangelho, embora não pertençam ao
segmento protestante. Em 1916, contudo, um segundo encontro, realizado no Panamá,
decidiu pela evangelização de países católicos. Esta diretriz foi adotada devido à grande
presença das igrejas norte-americanas, cujo perfil teológico fundamentalista acredita na
redenção de uma pessoa somente mediante uma conversão tipicamente evangélica, que
implica, entre outras coisas, na mudança de filiação religiosa; na regeneração moral
acompanhada de mudança de comportamento; e uma emotividade no momento da adesão
religiosa que pode culminar em catarse (Fernandes,1979:42).

Muito embora os diferentes ramos do protestantismo presentes no Brasil possuam “formas


de governo” e referências teológicas diferentes (como calvinismo, pietismo, arminianismo,
metodismo e outros mais), pode-se afirmar que o movimento missionário norte-americano
que chegou ao Brasil pautou-se, em linhas gerais, por uma teologia da salvação armino-
wesleyana. Em outros termos, a crença de que a salvação ocorreria pela consciência de
culpa e um ato voluntário de aceitação do perdão divino - o que se opõe à consciência
calvinista da predestinação. E mais, “A conversão era individual e consistia no rompimento
abrupto do indivíduo com seu meio cultural através da adoção de novos padrões de conduta
opostos àqueles em que havia sido criado” (Gouveia,1991:32). Em suma, as missões norte-
americanas - influenciadas pelo metodismo de John Wesley que pautou o “despertar
evangélico” acima citado - marcaram o protestantismo brasileiro, e também o
pentecostalismo que chegaria anos mais tarde com uma teologia missionária conversionista.

Do ponto de vista evangélico, o Brasil já é considerado um país “alcançado pelo


Evangelho” - para usar uma expressão nativa. Embora a maioria dos brasileiros seja
católica, a presença de protestantes e pentecostais em áreas urbanas e rurais já conta, há
muito tempo, com uma estrutura econômica, administrativa e teológica com plena
4

autonomia. Embora enfatize teologicamente a conversão, o proselitismo empreendido pelo


protestantismo histórico atual é tímido, principalmente no protestantismo de imigração, que
permanece com crescimento praticamente vegetativo, em particular nas classes médias do
sudeste e do sul, e nas áreas rurais dos estados do sul. A exceção são os batistas que
disputam com as igrejas pentecostais e carismáticas a liderança numérica dos evangélicos
brasileiros. Boa parte dessa expansão deve-se ao pentecostalismo que, além de suas igrejas,
dinamizou o protestantismo, dando origem aos carismáticos - assim como ocorreu com o
catolicismo3 .

Acompanhando o movimento de expansão, o Brasil tornou-se também um dos maiores


emissores de missionários para diversas partes do mundo. Se as missões evangélicas
tiveram como pólo irradiador a Europa e os Estados Unidos, nos séculos XVIII e XIX,
hoje, o quadro é muito mais descentralizado, e o Brasil ocupa lugar de destaque. A missão
deu lugar a uma igreja e a um pastorado nativos, que têm como diretriz, entre outras, o
envio de missionários para “povos não-alcançados”4 .

Se uma parte do movimento expande-se a partir do Brasil, é fato também que as áreas
indígenas em território nacional, há pelo menos cinqüenta anos, estão recebendo de maneira
acentuada missões estrangeiras e, há algumas décadas, brasileiras. Na mesma intensidade
em que os evangélicos avançam pelos vários países católicos da América Latina e da África
portuguesa, tal esforço prosélito está direcionado também para as sociedades indígenas. A
atividade missionária no campo evangélico brasileiro, portanto, ocorre de duas maneiras:
ou as igrejas enviam missionários para outros países; ou grupos étnicos em território
nacional recebem missões brasileiras e estrangeiras, principalmente norte-americanas.
Nosso foco de análise restringe-se ao segundo caso, mais especificamente aos grupos
indígenas da Amazônia, que apresentam, em muitas delas, um significativo distanciamento
sócio-cultural da cristianizada sociedade brasileira.

Se no cenário nacional encontramos a estagnação do protestantismo histórico e a ascensão


vertiginosa do pentecostalismo, na área indígena, ao contrário, há uma timidez pentecostal,
e, diria, uma indiferença do chamado neopentecostalismo, que se dedica às chamadas
missões urbanas ou transnacionais5 . A exceção é a Assembléia de Deus, que dedica-se, há
algumas décadas, à missão entre os índios do Brasil. O protestantismo histórico (luteranos,
presbiterianos, episcopais e metodistas), por sua vez, tem presença considerável em áreas
indígenas tendo em vista o quadro nacional, com destaque novamente para a Igreja Batista,
que é a denominação mais atuante entre as denominações evangélicas.

3
. Refiro-me às igrejas protestantes históricas como Presbiteriana, Batista, Metodista e outras mais onde houve
a pentecostalização de alguns grupos que geraram a Prebisteriana Renovada, a Batista Nacional, a Metodista
Wesleyana etc.
4
. Segundo o glossário missiológico de uma importante “missão de apoio”, a SEPAL (Serviço para a
Evangelização da América Latina), “povo não-alcançado” é “um grupo humano (povo) dentro do qual não
existe uma comunidade de crentes que dispõe de pessoas ou recursos suficientes para evangelizar o restante
do próprio povo e, portanto, precisam de um esforço missionário de fora, principalmente transcultural.”
5
. Principalmente em países africanos de língua oficial portuguesa, e latino-americanos, em especial nos do
Cone Sul.
5

Como indicado no quadro 1, o que predomina entre os evangélicos são as chamadas


“missões de fé” - agências inter-denominacionais ou para-eclesiásticas - que realizam um
serviço religioso especializado e têm participantes de diferentes denominações. Os
missionários trouxeram o modelo denominacionalista, tipicamente norte-americano, onde
“a cada nome corresponde uma congregação, uma confissão, uma comunhão”
(Fernandes,1992), diferente da universalidade da Igreja Católica e das igrejas nacionais do
protestantismo europeu. Este tipo de institucionalização que se caracteriza pela autonomia
teológica e administrativa da denominação marcou o campo evangélico brasileiro e o
modelo missionário que está estruturado em um número grande de agências. Logo, não há
uma instância reguladora como a hierarquia eclesial católica, por exemplo. Disto resultam
essas organizações “transversais” como as missões de fé que mobilizam várias
denominações no trabalho missionário. Sociedade Internacional de Lingüística (SIL),
Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), Missão Evangélica na Amazônia (MEVA), Juntas
das igrejas batistas, presbiteriana, metodista e da Assembléia de Deus, e outras mais. É uma
quantidade de agências, creio, quase equivalente ao número de denominações. Muitas delas
eram de origem estrangeira e, com o passar dos anos, a direção foi sendo transferida aos
brasileiros – ou aos “nacionais”, como dizem os missionários. Os estrangeiros procuram
atuar mais no apoio técnico e teológico do que na ação direta com a população. Esta fica
por conta da “igreja nativa”, a saber, os evangélicos com algum tempo de conversão e de
treinamento.

Segundo o levantamento de Marina Kahn (1995), o quadro das áreas indígenas da


Amazônia Brasileira com presença missionária é o seguinte:

Quadro 1:

Batistas....................................................34
IECLB.....................................................21
Presbiterianos e Metodistas.....................14
Adventista...............................................08
Episcopal.................................................07

Total de Protestantes.......................................................82

Assembléia de Deus..................................15
Congregação Cristã...................................02
Igreja Universal e Igreja Quadrangular.... 02
Total de Pentecostais.........................................................19

Novas Tribos...........................................52
SIL...........................................................44
Meva.......................................................14
Missão Caiuá..........................................15
Outras Missões de Fé..............................37
Total de Missões de Fé.....................................................162

Evangélicas não definidas...................................................30


6

Total de Missões Evangélicas.......................................................................178

Ordens e Congregações...........................28
Dioceses..................................................52
CIMI.......................................................14

Total de Missões Católicas.............................................................................84

Total de Áreas indígenas da Amazônia Legal com Missões........................262

2. Formação Missionária

A ação missionária visa à constituição de uma “igreja autóctone” com “lideranças


nacionais” que promovam novas missões. Para tanto, é necessário capacitar o missionário
para a tarefa de tradução do Evangelho e de mediação cultural. Como sujeito desenraizado
dos pontos de vista cultural, geográfico e lingüístico, o missionário é treinado para adaptar-
se ao novo meio e implantar um conjunto de valores, crenças e comportamentos. Para tanto,
duas grandes orientações estruturam o currículo: o aprendizado da língua e o conhecimento
da cultura, que ocorreriam em conjunto e resultariam, em termos ideais, na tradução da
Bíblia. Parte dos missionários tem formação em lingüística ou um mínimo de conhecimento
de línguas indígenas para viabilizar a comunicação. Como complementar, valem-se
também de um conhecimento de antropologia, que é formulado a partir de um referencial
teológico6 . Pode-se afirmar que essas duas disciplinas são as principais referências para a
formulação dos princípios, métodos e técnicas de evangelização – além, evidentemente, da
teologia.

A preparação deste profissional ocorre em seminários denominacionais (que pertencem a


uma igreja evangélica, como a Faculdade Teológica Batista, Universidade Metodista de
São Bernardo do Campo, Instituto Bíblico da Assembléia de Deus etc) ou
interdenominacionais (como a SIL, MEVA, Novas Tribos etc) que arregimentam
vocacionados das igrejas fundamentalistas. A Novas Tribos – agência missionária mais
ativa atualmente depois de anos de predomínio do SIL - possui quatro centros: o Instituto
Bíblico Peniel (Jacutinga-MG), o Instituto Bíblico e Missionário Macedônia (Recife-SP), o
Instituto de treinamento Sheikinah (MS) e o Instituto Lingüístico Ebenezer (GO). A
primeira etapa da formação é realizada nos dois primeiros centros, enquanto a segunda e a
terceira são realizadas nos dois últimos que estão localizados em lugares isolados e de
difícil acesso7 .

6
. Gallois & Grupioni (1998) discutem como os conceitos antropológicos estão submetidos ao ideal
universalista da salvação cristã, o que para os autores inviabiliza a diferença cultural em sua radicalidade.
7
O currículo está estruturado em três níveis. “Teológico” com duração de três anos. Além das matérias
teológicas, são ministradas as disciplinas Antropologia Cultural, Introdução à Pedagogia e Língua
Estrangeira. No segundo, a duração é de um ano. As disciplinas principais são Comunicação Transcultural,
Noções Básicas de Mecânica e Enfermagem (Primeiros Socorros, Noções de Diagnóstico Clínico, Sinais
Vitais, Prevenção em Saúde, Noções sobre Doenças Tropicais). Por fim, com duração de um ano;
7

A descentralização geográfica da formação já constitui em si um treinamento para os


missionários, que são forçados a abandonar seus parentes e amigos, e viver juntos de outros
vocacionados - pessoas dotadas de certas habilidades e disposição para o trabalho árduo da
evangelização transcultural. A atividade exige do missionário, por um lado, o
desprendimento e a renúncia de viver com seus próximos, parentes e amigos, e por outro, a
disposição de criar laços religiosos e de fraternidade com pessoas com hábitos e costumes
distintos dos seus. O propósito é acostumar o missionário a conviver com as adversidades
como a distância da família e sobreviver em um ambiente hostil e com poucos recursos
materiais. Para tanto, aprendem a construir suas próprias casas com os recursos naturais
disponíveis, a calcular e a administrar as mercadorias trazidas do meio urbano como
ferramentas e suprimentos.

Além de serem treinados em técnicas de sobrevivência na selva e em lugares com


dificuldades equivalentes, os missionários e sua família têm sua “espiritualidade”
trabalhada a partir da “teologia do sofrimento”, que lhes possibilitaria tolerar as
adversidades materiais e culturais no campo de missão. O modelo bíblico é a vida de Paulo
e o livro Atos dos Apóstolos. Um processo pedagógico em que são desenvolvidas as
vocações religiosas, período em que lhes é inculcada a convicção de ser um dos chamados
por Deus para dedicar dezenas de anos da vida à “conquista de povos distantes para o
cristianismo”. Em suma, um exercício da disposição do agente que lhe oferece condições
de suportar a distância dos parentes, da “comunidade dos irmãos” e da cidade de origem.
Após anos de distância - interrompida por curtos períodos de férias que acontecem com
pouca freqüência -, os missionários aposentam-se e só então retornam ao local de origem,
que na maioria das vezes são os Estados Unidos. Com viagens esporádicas, os missionários
voltam para supervisionar o campo e manter ativa a religiosidade evangélica.

3. Modelos de ação missionária

3.1 Ação ecumênica

A missão evangélica contemporânea está estruturada em dois modelos que lidam de


diferentes maneiras com a universalidade da mensagem cristã e a diversidade cultural
(Wright, 1999; Deher, 1992). De um lado, a posição ecumênica, para a qual a conversão
não seria o foco central da atividade missionária. Partindo da perspectiva teológica liberal,
abandona-se a idéia de conversão como ruptura da trajetória de vida (Szwetsch,1997).
Segundo esses religiosos, a cultura deve ser valorizada em detrimento de um universalismo
que submeteria a humanidade à necessidade da fé cristã. Deve-se, portanto, evitar a
introdução de uma religiosidade do tipo européia ou norte-americana e descobrir na própria
cultura os chamados “valores do Reino de Deus”. Essa perspectiva aproxima-se do
movimento católico romano e sua maior expressão é o Conselho Mundial de Igrejas,

“Lingüístico Cultural”, com as disciplinas Introdução à Pedagogia e Princípios de Didática, Introdução à


Antropologia Cultural, Alfabetização Bilingüe, Produção de Material Bilíngüe, Código Fonético Universal de
Codificação e Transcrição, e Princípios Gerais de Tradução.
8

instituição mais representativa do ecumenismo protestante, onde se encontram anglicanos,


luteranos, metodistas, presbiterianos, episcopais e reformados.

A atuação desses religiosos aproxima-se muito das ações católicas de caráter ecumênico,
como o CIMI, e vale-se também dos princípios da “inculturação” para elaborar uma
reflexão teológica protestante sobre o contato com as culturas indígenas. Destacam-se nesta
posição as atividades das pastorais metodistas e episcopais; o GTME (Grupo de Trabalho
Missionário Evangélico), que possui uma organização e proposta de ação semelhante ao
CIMI; além de outros protestantes (luteranos, em particular) que atuam no próprio CIMI. E
a Igreja Luterana do Brasil (IECLB) que, assentada numa região ocupada por imigrantes,
adotou como política institucional a intervenção social em apoio à sua comunidade e à
população mais carente das áreas rurais e, mais recentemente, das áreas indígenas.

A missão ecumênica tem como objetivo recuperar as tradições locais, inclusive as


religiosas, e contribuir para a autonomia dessas sociedades através da capacitação de
lideranças políticas nativas para a defesa da cultura e da posse da terra. Numa perspectiva
semelhante à inculturação católica, a atividade missionária seria o “processo pedagógico”
para capacitar as sociedades indígenas na luta pela sua “autodeterminação” e reação frente
ao contato com a sociedade envolvente. Processo que seria ativado pelo despertar dos
valores cristãos entre os índios sem que houvesse necessariamente a adesão ao credo
cristão.
“O alvo que este trabalho missionário persegue é o desenvolvimento da comunidade
indígenas, a partir da cultura indígena, pela realização Evangelho. Para que este
Evangelho seja palavra viva no seio da comunidade indígena, é preciso que, nas
relações entre índios e não-índios, haja justiça. E esta justiça só pode se concretizar
com a liberação das terras indígenas para o uso exclusivo da comunidade indígena.
Daí que no trabalho missionário o tema terra desponta como prioritário.” (apud
Dreher, 1992)

3.2. A salvação fundamentalista

Em linhas gerais, as missões fundamentalistas no Brasil disputam com protestantes e


católicos ecumênicos tanto fiéis quanto um modelo de relação com as culturais locais.
Enquanto estes se debatem em torno dos limites da evangelização e das precauções com o
contato cultural, o projeto missionário evangélico faz parte de um movimento impulsionado
pela crença de que o homem é um ser “decaído” e que necessita de salvação, donde surge a
necessidade da conversão. Apesar da catequese católica anteceder em alguns séculos a
evangelização protestante, atualmente é nesta que o proselitismo apresenta-se de forma
mais acentuada. Contrariando o discurso da diferença cultural tal como vem sendo
elaborado por ONGs, acadêmicos, indigenistas, religiosos da Teologia da Inculturação ou
mesmo outras vertentes do catolicismo, sua prática orienta-se predominantemente pela
“salvação de almas” ao obedecer ao chamado da “Grande Comissão”8 , levando a Palavra de
Deus (a Bíblia) àqueles que não a conhecem.

8
. Nome dado ao chamado de Cristo à evangelização do mundo, segundo Marcos, 16:15.
9

O segmento evangélico-fundamentalista prega um salvacionismo onde se encontram, de um


lado, a situação de pecaminosidade do homem e, de outro, o amor e perdão de deus. A
evangelização é ainda animada por uma visão escatológica, que prega a volta de Jesus
Cristo após a propagação do Evangelho em todo o mundo. Este “todo” é entendido como o
conjunto dos povos do planeta, que são definidos dos pontos de vista religioso, cultural e
lingüístico. O princípio, portanto, não é propriamente de que cada indivíduo ouça e aceite o
Evangelho, mas que cada povo tenha a mensagem cristã anunciada em sua própria língua, o
que configuraria a situação ideal para o retorno de Cristo e o “juízo final”. Daí o esforço
monumental de codificação das línguas em escala planetária realizado pelo Summer
Institute of Linguistics, que é o maior empreendimento missionário na história do
protestantismo.

De acordo com aquele que foi considerado um dos pioneiros do movimento missionário
moderno, Willian Carey, a evangelização de uma sociedade deve obedecer a cinco etapas
básicas: vasta pregação do Evangelho por todos os métodos possíveis; distribuição e ensino
da Bíblia nas línguas locais; criação de uma igreja; estudo das tradições e do pensamento
dos povos não-cristãos; e preparação de sacerdotes nativos (Neil,1997:272). Ou ainda
segundo outro pioneiro do movimento missionário moderno,
“deve-se buscar a eutanásia da missão que ocorre quando um missionário, cercado
por igreja nativas bem treinadas, dirigidas por pastores nativos, é capaz de renunciar a
todo trabalho pastoral que está em suas mãos e gradualmente transferir todo o seu
trabalho de supervisão aos próprios pastores até que imperceptivelmente o seu
trabalho deixe de existir, quando, então, a missão passa a ser uma igreja cristã
estabelecida. A partir desse momento o missionário e todas as agências missionárias
devem ser transferidos para outras regiões ainda não alcançadas.” (Winter,1987:204)

Em termos práticos, a atividade missionária entre os índios envolve o aprendizado da


língua, a compreensão da cultura nativa, a formulação de uma gramática, a tradução da
Bíblia ou partes dela, a alfabetização dos índios, para que tenham acesso direto ao texto
sagrado e conheçam a verdade do Evangelho, o que resulta na substituição da oralidade
pela escrita, e, por fim, a formação de lideranças religiosas nativas que mantenham viva a
fé cristã após a saída da missão. A missão estrutura-se como se fosse uma etapa liminar da
igreja. Ela é lançada de dentro dela e idealmente desaparece para dar vida a um corpo
religioso autônomo. Um processo que, quando realizado integralmente, custa por volta de
vinte a trinta anos da vida de um missionário e de sua família. Nesta perspectiva encontra-
se uma idéia cara ao protestantismo: a evangelização implica a necessária passagem de um
estado missionário para o de “igreja autóctone”. Por mais que haja diferenças entre os
modelos, a missão evangélica tem no seu horizonte a inserção da religiosidade cristã, que
resultaria na formação de um corpo religioso autônomo, ou, no caso ecumênico, na
autodeterminação das sociedades indígenas efetivada em termos políticos e econômicos9 .

9
Segundo avaliação de uma importante agência de origem norte-americana responsável pela quantificação do
movimento de expansão missionária, a SEPAL (Serviço para a Evangelização da América Latina), apenas
oito etnias possuem “liderança autóctone”.
10

4. Missão na Fronteira Brasil/Guiana Francesa

Os poucos estudos sobre missões evangélicas na antropologia e sociologia da religião no


Brasil investigam o movimento igreja-missão, interpretando o segundo elemento (a missão)
a partir do sentido atribuído pelo primeiro (a igreja). Entretanto, nesta discussão, o percurso
ideal se fecha com a constituição de uma igreja nativa, e quando esta torna-se base de
lançamento de seus próprios missionários. Ao invés do movimento igreja-missão,
compreendo que o processo de assentamento do cristianismo evangélico em uma
determinada cultura ocorreria no movimento missão-igreja nativa-missão indígena. Em
termos ideais, o percurso de expansão compreende da entrada de missionários à saída de
missionários nativos. Ao estabelecer o circuito, penso o cristianismo evangélico no
movimento de inserção em um contexto não-cristão e o produto que pode advir deste
contato. Momento em que não apenas a cultura nativa está sendo afetada, mas também
como a religião evangélica está sendo incorporada. Um movimento, portanto, de duplo
sentido. Em suma, ninguém sai ileso de um contato cultural.

Na quase totalidade dos trabalhos de etnologia as missões evangélicas não constituem o


foco central das análises. Elas são tratadas na medida em que, como outros agentes (Igreja
Católica, políticos regionais, exército, garimpeiros, etc) interagem com as sociedade
indígenas. As coletâneas de Hefner (1993) e Wright (1999) são duas iniciativas importantes
que reúnem diversos trabalhos sobre a cristianização (protestante e católica) de culturas
“não-ocidentalizadas”. Esses trabalhos - além das observações de campo - indicam que a
missão protestante na Amazônia no início deste século foi realizada em boa medida pela
Igreja Adventista, que ainda é atuante na região, e pelas missões protestantes anglicanas e
reformadas vindas do Suriname e da República da Guiana, países de colonização
protestante. Neste período, o investimento missionário foi basicamente denominacional.
Nos anos 50 começa propriamente o período das “missões de fé”, vindas dos Estados
Unidos, principalmente o Summer Institute Linguistc e a New Tribes. Neste mesmo período
a Assembléia de Deus deu início à sua investida nas áreas indígenas. Atualmente cresce a
presença da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB) e da Missão Evangélica da Amazônia
(MEVA).

Para a realização desta pesquisa optei como método de investigação a comparação de


experiências que apresentassem diferentes etapas da evangelização. Três áreas indígenas no
estado do Amapá e Pará, que compreendem oito etnias, estão sendo estudadas. As etnias
apresentam diferentes etapas e modelos de ação missionária, variando, por um lado, de
acordo com a agência e, por outro, com o tempo em campo, o que é determinante no nível
de conhecimento da língua, na introdução da escrita e materiais didáticos (religiosos e
seculares), e na formação de lideranças religiosas nativas.

Até o momento, a maior parte da pesquisa foi realizada na região do Oiapoque, situada no
extremo norte do Brasil, no estado do Amapá, e que faz fronteira com um Departamento
Francês de Ultra-mar, a Guiana Francesa. São 300 km de encontro geográfico entre o
Amapá e a Guiana, mas o encontro entre brasileiros e guianeses ocorre numa curta faixa do
rio Oiapoque que separa os dois países. Duas localidades formam a situação de fronteira: a
cidade de Oiapoque e a de Saint-Georges de l’Oyapoc.
11

Próximo à cidade do Oiapoque, no lado brasileiro, estão localizadas as reservas indígenas


do Juminã, Galibi do Oiapoque, Uaça I e II, onde habitam quatro etnias: Karipuna, Galibi-
Marworno, Galibi-Kaliña e Palikur. No lado guianense, a população é basicamente formada
por criolos; Palikur que emigraram do Brasil e estão dispostos em duas aldeias; estudantes
Waiãpi subsidiados pelo Estado francês; Galibi-Kaliña que são o povo de origem daqueles
que se encontram no Brasil; soldados da Legião Estrangeira e alguns brasileiros que foram
à procura de trabalho ou casamento, e, conseqüentemente, da cidadania francesa. Subindo o
rio Oiapoque, existe ainda mais um outro agrupamento humano em situação de fronteira.
No lado brasileiro, encontra-se a Vila Brasil, formada por garimpeiros que na sua maioria
são migrantes do nordeste do Brasil, principalmente maranhenses. Em frente à Vila Brasil,
na Guaina, no município de Camopi, existem outro posto da Legião Estrangeira e uma
aldeia Waiãpi, parentes dos Waiãpi brasileiros localizados no centro-oeste do estado do
Amapá.

Como epicentro da região, a cidade de Oiapoque tem uma população flutuante que aumenta
quando recebe diversos grupos existentes em seu entorno para comerciar seus produtos:
indígenas que negociam sua produção de farinha, frutas e caça; garimpeiros que vendem o
ouro encontrado ao longo do rio; guianeses que consomem carne e frutas produzidas no
Brasil; além de um expressivo comércio em torno do turismo sexual de mulheres vindas de
Belém e Macapá que atendem aos garimpeiros, guianeses, e franceses em trânsito em Saint-
Georges, como legionários e turistas.

Devido às guerras e/ou alianças entre as etnias, à busca de melhores terras para a caça e
pesca, ou à manutenção da rede de parentesco, os índios são os que mais migraram pelos
dois países. Como as legislações brasileira e francesa são diferentes no tema referente às
populações indígenas, variam as motivações para permanecer em um ou em outro lado da
fronteira. Por ter o estatuto de departamento do Estado francês, os guianenses possuem a
cidadania francesa e os benefícios da política de bem-estar social que lhes garantem
educação, saúde e habitação, gratuitas e de qualidade, além de salário-desemprego, auxílio-
família e outros benefícios, o que torna pequena a parcela da população economicamente
ativa. Tal cidadania é extensiva também aos indígenas com algum tempo de moradia na
Guaina Francesa (Sztutman,1999) e aos brasileiros (na maioria mulheres) que se casam
com guianeses.

No Brasil, por sua vez, o regime de tutela e o processo de demarcação de terras garantiram
a algumas populações indígenas o direito à posse definitiva de partes do território nacional.
No estado do Amapá as três áreas indígenas (Uaça, Tumucumaque e Waiãpi) estão
demarcadas e homologadas. Com essas diferenças na legislação, cada uma oferece algum
tipo de benefício: no Brasil, a manutenção do modo de vida mais tradicional em aldeias
cravadas na selva amazônica; enquanto a Guiana oferece serviços públicos para uma vida
confortável na cidade, embora hostil para quem não conta com uma rede de parentes por
perto. As observações de campo mostram que os jovens são os mais atraídos para a cidade
de Oiapoque, Saint-Georges e Caiene, enquanto os mais velhos optam por continuar nas
aldeias.

O constante movimento pela fronteira e a necessidade de se relacionar com brasileiros e


guianenses possibilitou às populações indígenas falarem mais de uma língua. Entre os
12

Karipuna e Galibi-Marworno falam-se português e patois. Os Galibi-Kaliña falam galibi,


português, francês e patois. Os Palikur falam palikur, português, francês e patois. Os
Waiãpi falam waiãpi, francês e patois. A região do Oiapoque compreende cinco etnias
indígenas, além de brasileiros, criolos e franceses, que falam um total de seis línguas:
patois, francês, português, galibi, palikur e waiãpi. Cada língua indígena pertence a um
tronco lingüístico distinto: Karib, Aruak e Tupi, respectivamente. O patois é considerado a
língua dos criolos, mas é muito falada entre os índios, principalmente entre os Galibi-
Marworno, maior etnia de toda região. Em suma, um complexo cultural e lingüístico de no
máximo 11 mil pessoas dispostas na fronteira entre Brasil e Guiana Francesa.

As agências de contato na região são a Funai, cujos chefes de posto nas aldeias são índios; a
Fundação Nacional de Saúde (FNS); o Governo do Estado do Amapá (GEA), através da
Secretaria de Educação. Os índios estão organizados na Associação dos Povos Indígenas do
Oiapoque (APIO), que são a representação institucional de todas as etnias da região. Várias
ações têm sido realizadas em parceria com o GEA e a administração municipal do
Oiapoque, cujo prefeito é um índio Galibi-Marworno, eleito em 1996.

O GEA, desde 1997, promove a educação indígena bilíngüe e a formação de professores


indígenas, que foram iniciadas pelo CIMI. Dois grupos, em diferentes intensidades,
subsidiaram a produção de material didático e o treinamento de professores: acadêmicos
(lingüistas e antropólogos) e missionários. A maior parte do material didático em patois da
região do Oiapoque foi produzido por missionários do CIMI, mas são os missionários da
Novas Tribos que têm presença diária na escola, estão participando da formação de uma
geração de índios10 , e, paralelamente, traduzindo a Bíblia. Diferente do CIMI, as missões
SIL e Novas Tribos produzem este tipo de material com a finalidade explícita de
evangelização.

De forma resumida, a atividade missionária evangélica na região do Oiapoque foi ou está


sendo realizada pelas missões de fé SIL (entre os Palikur) e MNTB (Galibi-Kalinã e Galibi-
Marworno), igrejas Adventista do Sétimo Dia (Palikur da Guiana Francesa) e Assembléia
de Deus (Palikur do Brasil e da Guiana Francesa). As missões de fé chegaram a partir dos
anos 60 (Pollock, 1993; Capiberibe, 1998; Gallois e Grupioni, 1999); além da Assembléia
de Deus (Pollock, 1993; Capiberibe, 1998), que iniciou o trabalho entre os índios da
Amazônia somente neste período, apesar de já se encontrar na região norte desde 1911,
quando chegou ao Brasil, mais precisamente na cidade de Belém (Vingren,1991).

Há três anos, os Galibi-Marworno – que se encontram reunidos numa única aldeia,


Kumarumã, a maior em todo o estado do Amapá com cerca de 1.500 pessoas – convivem
com uma moça e um casal missionários da Novas Tribos e da Igreja Batista Missionária. O
“pastor” - como era chamado o missionário pelos índios - realizava cultos domésticos em
sua casa e na dos índios. Os missionários participavam do cotidiano indígena atuando na
escola como professores bilíngües, como enfermeiros do posto de saúde, nas reuniões
gerais da comunidade, no jogo diário de futebol, na contratação de mão-de-obra.

10
Embora estejam há alguns anos entre os Galibi-Marworno, os missionários já haviam atuado entre o Galibi-
Kalinã, da área Juminã por doze anos.
13

No depoimento dos líderes indígenas, o missionário era visto como possibilidade de


desenvolvimento da aldeia, seja pela mobilização de recursos seja por transmissão de
conhecimento. Entre alguns exemplos, isto ficou evidente na maneira como organizou a
preparação do seu terreno cedido pelo cacique para o cultivo e a construção de uma casa, a
melhor e a mais confortável da aldeia, que foi imediatamente invejada e parcialmente
reproduzida pelos índios. A casa, contudo, utilizou os recursos da própria floresta, enquanto
os índios traziam do Oiapoque, numa longa viagem de barco, tijolos e telhas de amianto,
completamente inapropriados para a região. Como trata-se de um povo com longo período
de contato, a aldeia já havia passado por uma precária urbanização com arruamento e casas
padrozinadas.

O trabalho de evangelização encontra-se no início, mas até o período em que estive pela
primeira vez em campo (08/98), os missionários foram bem recebidos pelos índios e eram
vistos como uma autoridade a ser consultada em alguns assuntos pelos conselheiros da
aldeia. O conselho dos Galibi-Marworno é formado pelo cacique, irmão do prefeito do
município de Oiapoque; pelo chefe do posto da Funai, que foi cacique e é o “historiador
oficial” desta etnia; um ex-pajé que não era considerado o mais poderoso, mas era
responsável pelo translado, via barco, da aldeia à cidade do Oiapoque; o chefe do posto de
saúde que é o “narrador oficial” dos mitos; e outros homens mais velhos. Os índios que
ocupam estes postos de mediação com a sociedade envolvente apropriaram-se da maior
parte dos benefícios gerados.

Dentre todas as etnias visitadas, os índios Wayana-Aparai (no Tumucumaque) e os Palikur


(no Uaça) são os que mais se aproximam do ideal missionário. Eles foram alvo da ação de
lingüistas norte-americanos do SIL nos anos 60 até meados da década de 80, quando
completaram um ciclo que culminou com a tradução do Novo Testamento. O SIL realizou
entre os Palikur e os Wayana-Aparai a codificação da língua, a produção de materiais
didáticos, a alfabetização dos índios e a tradução do Novo Testamento e trechos do Velho.
Atualmente, entre os Palikur, a religiosidade evangélica é ministrada por pastores nativos
da Assembléia de Deus, que foi fundada quase dez anos após a chegada do SIL
(Capiberibe, 1998). Quando estive em Saint-Georges de l’Oyapoc, em 1998, um pastor
índio proveniente do Brasil encaminhava-se à capital da Guiana Francesa, Caiena, a fim de
evangelizar seus parentes Palikur que para lá imigraram.

Os Wayana-Aparai, por sua vez, tiveram, em diferentes momentos a presença de


missionários. Sua reserva está localizada na fronteira do Pará e Amapá e, ao lado do
Suriname e Guaina Francesa. Os Wayana-Aparai são fruto da união de duas etnias que
pacificamente se juntaram através de alianças e casamentos. Cada uma tem língua própria
que pertencem ao tronco lingüístico Karib. Devido à proximidade com o Suriname, os
Wayana-Aparai habitam os dois lados da fronteira. No Brasil, juntos com os Tiriós, estão
organizados na Associação dos Povos Indígenas do Tumucumaque (APITU).

Os Wayana-Aparai no Brasil foram evangelizados pelo SIL, e no Suriname por uma igreja
batista norte-americana. Atualmente, no lado brasileiro, funciona uma igreja com a
participação de poucos índios nas reuniões. O culto é celebrado por um indígena que
conviveu, no Suriname, com os missionários batistas, tornando-se posteriormente um
pastor. Assim como os Palikur, os Wayana-Aparai têm o Novo Testamento traduzido para
14

o wayana. Os missionários fizeram também uma cartilha ilustrada com histórias do Velho
Testamento como “Moisés e o Mar Vermelho”, “Sansão e Dalila”, “Davi e Golias” e outras
mais. Há pouco tempo, esses índios convidaram um pastor da Assembléia de Deus para
“assistir espiritualmente” os convertidos e construir um novo templo na aldeia. Como
veremos adiante, a forma como a Assembléia de Deus estrutura-se em áreas indígenas não
obedece ao movimento mais cadenciado das missões de fé. Logo, em pouco tempo, essa
aldeia com cerca 300 índios terá dois templos evangélicos. O convite do cacique ao
missionário em parte deve-se à disputa pelo poder interno com o pastor. O atual templo e o
terreno destinado à construção da nova igreja estão localizados perto, respectivamente, da
casa do pastor e da do cacique, além dos seus parentes.

Nem toda missão consegue detonar um processo interno de reprodução da “religiosidade


indígena-evangélica” como ocorreu entre os Palikur e os Wayana-Aparai. A estadia de um
missionário em área indígena costuma ser difícil e instável, dependente em muito da
conjuntura política local e nacional. Cientes destas dificuldades, os missionários valem-se
da identidade de lingüístas e educadores para viabilizar sua entrada em áreas indígenas, sem
que os resultados dos trabalhos científicos justificassem sua permanência nessas áreas
(Leite,1981). O caráter denunciatória deste artigo soma-se ao de Cardoso de Oliveira e de
Seeger (1981), para os quais a inserção dos missionários do SIL no Brasil ocorreu pela
aproximação de círculos acadêmicos brasileiros durante os anos 60 e 70, mais
especificamente da Unicamp, UnB, e Museu Nacional. Com esses artigos, os autores
revelaram, em parte, uma das estratégias de penetração em áreas indígenas, qual seja,
situar-se institucionalmente em centros universitários ou órgãos governamentais como a
própria Funai, em nome de um trabalho lingüístico, pedagógico, antropológico e voluntário
que, em última instância, pretende viabilizar a evangelização. Ele ainda pode se tornar um
quadro efetivo do funcionalismo público como professor ou agente de saúde caso seja
aprovado em concurso público, e assim ter acesso mais fácil às áreas indígenas.

Esse foi o caso dos Waiãpi, em 1983, e os Zoé (estado do Pará), em 1981, que receberam o
trabalho assistencial e educacional das Novas Tribos e do SIL. Graças ao conhecimento da
língua e as noções elementares de lingüística, os missionários produziram diversos
materiais didáticos que alfabetizam os índios através de passagens bíblicas em waiãpi.
Constatou-se também que os velhos, apesar de não lerem, aprenderam a contar histórias da
Bíblia, principalmente, as do Velho Testamento. Entretanto, após confrontos que
envolveram, mineradoras, antropólogos, políticos locais, Funai, os missionários foram
expulsos da área e aguardam em Macapá a permissão para retornarem às aldeias. Como
trata-se de uma região rica em minério, a área Waiãpi é disputada por grandes mineradoras
e pequenos garimpeiros, além de madeireiros. Por causa desses embates, pelo menos quatro
casais de missionários trabalharam entre os Waiãpi em períodos diferentes. A rotatividade
não faz parte da estratégia de ação, pois seria contraproducente investir no conhecimento de
uma pessoa a respeito de uma sociedade e depois transferi-la. A rotatividade deve-se a
periódicos conflitos com outros agentes do contato que estão também em disputa neste
campo. Os Waiãpi estão organizados institucionalmente na APINA, que é o resultado da
atividade de uma ONG indigenista, o CTI.
15

5. Tradução e mudança cultural

Da mesma maneira que afirmam a separação de Deus como a condição humana, as missões
acreditam que qualquer sociedade tem a idéia de um ente superior aos homens a quem deve
temer. Um deus poderoso e “transcultural”. A concepção universalista que orienta o
discurso efetiva-se de diferentes maneiras, variando de acordo com a concepção de cultura;
mas todas partem do mesmo fundamento: a necessidade universal da salvação cristã. O
pressuposto é a existência de um conteúdo universal que se manifesta de maneira mais ou
menos explícita em qualquer cultura. Cabe ao missionário traze-lo à tona por um duplo
movimento: reinterpretação da cosmologia indígena e a “desculturalização” do Evangelho
da matriz judaico-cristã. Segundo depoimento do missionário entre os Galibi-Marworno ,
“Você ensina o desconhecido deles [dos índios] através do conhecido. Assim a gente
faz uma correlação. Mas o desconhecido já está na cultura deles.” 11

O ensino padrão de antropologia oferecido pelas agências, através de cursos e manuais,


entende cultura como a articulação de pelo menos cinco dimensões da vida social. A
primeira trata do controle da natureza para suprir as necessidades materiais, como a
produção de armas, de habitação, de vestuário e de alimentos (caça, pesca, agricultura).
Para a segunda, esta sociedade produtora existe em função da organização das relações
sociais incorporadas na tradição de um grupo, como as relações familiares e políticas. A
terceira compreende a maneira do homem se comportar frente a um código moral
defendido necessariamente por sua sociedade. Para a quarta, os mitos são a expressão oral
de um universo sobrenatural e os rituais a via de acesso à “cosmovisão indígena”. Por fim,
a cultura material seria a manifestação artística e/ou a expressão religiosa de um povo.

Influenciados pela antropologia cultural e pelo fundamentalismo religioso norte-


americanos, e pelo evolucionismo, os evangélicos consideram cultura como uma totalidade
composta de traços positivos e negativos (Gallois & Grupioni, 1999). Como qualquer
sociedade tem uma concepção de certo e errado, as missões afirmam que todas elas
possuem um conjunto de valores morais orientadores do comportamento. Os aspectos
negativos (embriaguez, adultério, brigas etc), que são definidos a partir da orientação
doutrinária de cada missão, devem ser abandonados e substituídos pela conduta mais
correta. Os positivos, por sua vez, devem ser mantidos ou mesmo descobertos no interior de
cada sociedade, como, por exemplo, a consciência de culpa e a idéia de um deus
sobrenatural e salvador.

Dentre os modelos de ação, a vertente fundamentalista do tipo pentecostal, cuja


representante maior é a Assembléia de Deus, entende como do âmbito da particularidade
cultural os hábitos e costumes, o modo de produção econômica e o artesanato. Logo,
considera legítimo uma sociedade manter seu padrão de produção material após uma
possível “conversão”. Esta procura afetar, principalmente, o comportamento dos índios,

11
. A referência constantemente citada pelos missionários é a passagem de Atos dos Apóstolos quando Paulo,
no Areópago, que exibia imagens dos deuses gregos, vê um pedestal vazio dedicado ao deus desconhecido. O
apóstolo disse que sua missão era anunciar aquele deus
16

como não adulterar, não se embriagar, não brigar e outros tantos orientados por princípios
de ordem moral. O fato das sociedades indígenas se organizarem em torno de um código
normativo inscritos na tradições e nos costumes autorizaria aos missionários afirmarem a
existência de uma moral de onde se depreende a universalidade da condição pecaminosa do
homem, quando não há mais uma situação de inocência na origem do mundo. Para os
missionários, os indígenas, por mais que necessitem da evolução, não se encontram no
estágio primordial, mas sim num período pós-queda. As culturas estariam para uma Babel e
não para Pentecostes (Sto Agostinho).

Pelas observações de campo, entre os Palikur de Saint-Georges, e Wayana-Aparai, a ação


desta igreja na aldeia em pouco difere do meio urbano, na sua forma de culto, na doutrina e
no padrão comportamental exigido.

O fundamentalismo evangélico, representado principalmente pelos batistas e as missões de


fé, admite as dimensões da vida cultural acima listadas, contudo, menos radical do que a
Assembléia de Deus, imprime um proselitismo mais lento e cadenciado, pois entende que é
necessário conhecer a língua, os hábitos e costumes indígenas, e só a partir deste momento
iniciar a evangelização. Para tanto, o método das missões pressupõe a vivência contínua nas
sociedades indígenas. Trata-se de uma imersão que visa ao conhecimento da língua nativa
para viabilizar a melhor tradução do universo cristão. Para a boa evangelização de um povo
é necessário conhecer a cultura nativa e buscar nela a idéia de Deus. Este conhecimento é
concomitante ao da língua, que seria a expressão codificada da cultura. Para os
missionários, só quando for possível se expressar na língua nativa será possível iniciar a
evangelização e a tradução. Mesmo que, de início, não façam nenhum proselitismo
explícito, os missionários acreditam que seu comportamento será observado de forma
positiva pelos índios, e, desta maneira, influenciará numa possível adesão à religiosidade
evangélica. Segundo seus depoimentos, eles temem que a precoce evangelização resulte
num sincretismo religioso. Esta atitude cautelosa não é característica da Assembléia de
Deus, que tem como orientação produzir adeptos no menor tempo possível.

Contudo, como traduzir um livro forjado na tradição judaico-cristã para outras sociedades,
sendo muitas delas ágrafas? Qual o impacto na cultura visto que a introdução da escrita
confere as essas sociedades um novo patamar de compreensão do mundo? Os missionários
usam como estratégia a tradução do Novo Testamento em primeiro lugar, onde estariam
contidos os elementos essenciais da salvação cristã, e, concomitantemente, algumas
histórias do Velho Testamento que, segundo eles, seriam narrativas mais próximas da
recitação dos mitos feita pelos índios. Menos conceitual do que as Epístolas Paulinas, por
exemplo, a vida de Jesus e as histórias do Velho Testamento são assimiladas facilmente.

Os missionários constantemente citam as lendas amazônicas (indígenas e caboclas) sobre


um cataclismo equivalente ao dilúvio, quando as águas de toda bacia amazônica subiram.
Para eles, a narrativa mítica seria o vestígio histórico de que os antepassados das sociedades
indígenas foram vítimas do mesmo dilúvio vivido por Noé e seus contemporâneos, quando
deu-se a origem de uma nova humanidade. A orientação, portanto, é procurar elementos na
cultura nativa que correspondam aos da judaico-cristã, embora uma das caraterísticas do
texto bíblico seja sua dimensão histórico-temporal, que é diferente das narrativas cíclicas e
atemporais dos mitos. Assim, trata-se não somente de um conteúdo religioso, mas também
17

da concepção da existência humana desenvolvida no tempo histórico que, em um


determinado momento, sofreu a intervenção de um ente sobrenatural: a encarnação do
Filho de Deus.

O ritual da santa ceia – momento em que se “come-se o corpo de Cristo”, através do pão, e
“bebe-se o seu sangue”, em forma de vinho – é descrito na Bíblia Wayana-Aparai como se
tivesse sido realizado com beiju (feito da farinha de mandioca) e vinho. Desta maneira, os
missionários encontraram o equivalente ao pão (feito da farinha de trigo), que por ser base
de alimentação dos judeus, é associado simbolicamente na Bíblia à própria vida. O vinho,
por sua vez, está associado aos rituais e festas coletivas, mas que se digerido em excesso
leva à embriaguez e à vergonha12 . Muito provavelmente o equivalente mais próximo ao
vinho seja o caxiri (ou caxixi, ou chicha), bebida alcóolica produzida a partir da
fermentação da mandioca que é usada em festas, rituais e no consumo cotidiano. No
entanto, como as missões pregam a abstinência alcóolica, a ingestão de caxiri é condenada
pela maioria delas. Na tradução batista dos Wayana vinho é o “suco da videira”, embora os
índios não saibam o que seja uma uva. Alguns missionários de formação presbiteriana (ao
contrário dos batistas) são mais tolerantes e consideram o caxiri algo “próprio da cultura”, o
que, neste caso, equivale dizer “natural”, logo, não sujeito ao código moral. Assim, o
missionário prebiteriano dos Waiãpi traduziu vinho por caxiri.

A poligamia – outro costume no qual as missões procuram interferir – é admitida pelos


missionários entre os Waiãpi e os Galibi-Marworno somente entre aqueles que já são
casados com mais de uma mulher. Isto é, em caso de conversão, a família monogâmica é a
referência das regras de casamento. Caso um homem se converta e já tenha algumas
mulheres, a recomendação não é optar por uma delas, mas mantê-las até o fim da vida, para
não romper os laços familiares. A poligamia aqui é um mal menor. Um traço negativo que
deve ser superado como princípio, mas administrado como uma difícil adequação dos
comportamentos. Segundo os depoimentos dos índios, essas restrições da missão são
responsáveis pelo abandono constante da religiosidade evangélica, principalmente pelos
homens13 .

Uma das principais discussões acerca da tradução diz respeito às manifestações rituais,
cultural material e a mitologia. Segundo os missionários, estes elementos expressam a
cosmovisão de cada sociedade. Isto é, o conjunto de crenças e divindades que gera a
compreensão errônea do mundo por camuflar a “Verdade”, a saber, a existência de um deus
sobrenatural e universal, com perfil judaico-cristão, mas que existiria embrionariamente em
todas as culturas. O erro nativo consiste em não entender que seus espíritos são
manifestações de seres malignos - o diabo e seus demônios. A missionária adventista
Sophie Müller associou os rituais Baniwa às manifestações diabólicas (Wright,1999).
Segundo o pastor da Assembléia de Deus dos Wayana-Aparai, “A pajelança está associada
ao espiritismo e à macumbaria. Tudo é coisa do diabo”. O pastor nativo Wayana, Waremã,
12
. O primeiro milagre de Jesus foi transformar água em vinho em um casamento, nas Bodas de Canã. A
primeira embriaguez da Bíblia foi, após o dilúvio, de Noé, que tirou as roupas e causou vergonha a toda sua
família. A história de Noé e o dilúvio é uma das primeiras a serem traduzidas do Velho Testamento.
13
O exemplo bíblico citado com freqüência pelos missionários para aceitar a poligamia é a vida de Abraão. A
presença feminina é muito maior, principalmente na Assembléia de Deus.
18

baseando-se numa passagem da Epístola a Tiago, pregou em um dos cultos que era
necessário tomar cuidado com o que se fala e se ouve, pois o diabo poderia estar por perto
tentando-o para pecar. Entre os Galibi-Marworno, o missionário da Novas Tribos
relacionou o diabo aos rituais do Turé, nos quais o pajé convocaria os espíritos malignos.

Se o diabo está camuflado em forma de espíritos, qual é, então, a face do deus cristão numa
sociedade indígena? O missionário que trabalha entre os Waiãpi afirmou que, como todos
os índios do tronco lingüístico tupi eram criacionista, bastava encontrar o nome do ser
criador e afirmar que este é o nome de deus. Entre os Waiãpi, o deus judaico-cristão é
Janejar. Alguns atributos de Janejar, contudo, desapareceram na tradução enquanto outros
são adicionados à sua figura. Segundo um velho Waiãpi, Janejar era um homem que vê
tudo e os índios somente pensam nele. Um jovem disse que se ficar bravo e fizer vingança
ou fazer sexo com outra mulher, “papai do céu” (Janejar) colocará o homem no fogo
grande para sempre e as portas do céu serão trancadas. Um outro velho disse que “papai do
céu” colocará uma pessoa em sua mão, caso esteja pesada, irá para o fogo grande, se estiver
leve, ficará do lado dele. Depois dessa história, narrada com a mesma performance de um
mito, o velho Waiãpi contou ainda que antes de Janejar os Waiãpi não sabiam fazer nada,
como plantar, ter filho, fazer caxiri, roça, flauta, turé etc.

A tradução missionária promove um encontro de cosmologias, embora alguns conceitos


cristãos não tenham correspondentes na cultura indígena ou são simplesmente contrários à
sua lógica. Os Wayana-Aparai, por exemplo, desconhecem a idéia de que existe um ser ou
um ato criador. Na sua Bíblia, o nome de deus é um conceito e não um ente como Janejar.
Ritonõpo é uma palavra composta que significa “aquele que faz”, e não aquele que criou.
Assim como a criação, conceitos como pecado, perdão, vida eterna, salvação, irmãos de fé
são de difícil tradução, na medida em que não se trata tão somente da transposição de
termos, mas de percepções do mundo muito distintas entre si.

As conclusões dos poucos trabalhos de etnologia caminham em duas direções: ou os


estudos levam à condenação das missões por provocarem mudanças na cultura nativa
(Gallois & Grupioni; Caixeta, 1999; Orlandi,1985; Leite,1981), ou que, apesar do impacto
causado, a pregação religiosa seria reelaborada por elementos estruturais da própria cultura
indígena. Em outros termos, essas sociedades ativam certos elementos estruturais numa
situação de contato que, em última instância, lhes garantiria a identidade indígena (Vilaça,
1996; Viveiros de Castro,1992).

No primeiro caso, Caixeta (1999) cita as mudanças na sociedade Waiwai causadas pela
Novas Tribos:
“abandono da casa comunal por habitações familiares; substituição de um sistema
político baseado na figura do xamã por um conselho de lideranças formado por
pastores “crentes”; concentração da população em grandes aldeias, acarretando o
escasseamento dos recursos necessários à sobrevivência do grupo e a sua
dependência de produtos da sociedade ocidental; a apropriação de instrumentos e
hábitos ocidentais (motores de popa, machado de ferro, roupas, anzóis etc) e o
consumo de açucar e sal; proibição da realização de festas, danças e rituais, nos quais
eram servidas bebidas fermentadas e alcóolicas; substituição da mitologia e
19

conhecimentos tradicionais pelos cultos cristãos e pelos ensinamentos da Bíblia; a


proibição da poligamia, a luta contra o divórcio e contra os tabus alimentares.”

Gallois & Grupioni (1999) vão na mesma direção ao descreverem parte dos Waiãpi que
foram atingidos por um longo período de contato com missionários da Novas Tribos:
Ambos artigos, na sua crítica à atuação das missões, acabam reafirmando pressupostos da
Antropologia Cultural, entendendo as mudanças a partir de alguns traços próprios da
sociedade envolvente que são assimilados mais facilmente pelos índios evangelizados.
“É entre eles que se nota um maior número de apropriação da cultura karai-ko [do
branco]: nomes de tradição evangélica substituem os nomes do estoque tradicional,
corte de cabelo à moda de Macapá, redução da vida ritual, especialmente das festas
de caxiri. É também a única aldeia que evita participar do movimento de fiscalização
e defesa territorial no qual estão envolvidos todas as outras aldeias da Área Indígena
Waiãpi” (115).

Gallois e Grupioni afirmam ainda que, no contato, os índios fazem escolhas e adaptações,
selecionando fragmentos da mensagem cristã, como se tivessem uma autonomia
considerável na preservação de suas tradições. Mas esse argumento foi melhor
desenvolvido por Vilaça ao estudar os índios Wari’, em Rondônia, que, antes da chegada
das Novas Tribos, tinham como projeção para o “mundo dos mortos” uma vida só entre
consangüíneos, sem afins. A relação de afinidade ocorreria somente neste mundo, e, mesmo
assim, o movimento da sociedade Wari’ é tentar elimina-la através da consangüinização
dos afins por meio da comensalidade e da coabitação. Consangüinização artificial que pode
ser rompida em caso de algum conflito pessoal entre os afins.

Com a chegada da Novas Tribos e a adesão em grupo à pregação dos missionários, os


Wari’ abandonaram as brigas de bordunas, a poligamia, o adultério, os rituais de
canibalismo funerário, e a bebida alcóolica, em resumo, aspectos da vida social que levam à
reafirmação da afinidade. Os missionários, ao contrário, pregavam um mundo entre “irmãos
de fé”, relação social que inclui consangüíneos e afins, e dilui a hierarquia entre eles. A
fraternidade universal cristã retira o indivíduo do seio da sua família ou grupo e o liga à
“comunidade de irmãos”. A disposição para aderir aos evangélicos foi resultado da
identificação, no ideário cristão, da fraternidade universal neste mundo com o constante
movimento de consangüinização dos afins.

Décadas depois, a religião evangélica foi abandonada porque o problema da afinidade se


sobrepôs à fraternidade universal apregoada pelos missionários, desestruturando as relações
entre os “irmãos de fé”. Segundo Vilaça, não havia ocorrido um encontro de cosmologias
como pensavam os missionários, mas um encontro de sociologias. Remetendo-se a Sahlins,
afirma ainda que o sucesso das missões deveu-se a um “mal-entendido” entre a
intencionalidade das missões e a recepção dos índios. Neste “mal-entendido” a estrutura
(cultura indígena) incorporou o evento (a missão). A ineficácia do discurso da missão - isto
porque não é o conteúdo doutrinário que gera a adesão e sim um “mal-entendido” com
outras dimensões da vida social - deveu-se, entre outras coisas, à incompatibilidade entre
formas de pensamento.
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“Um xamã wari’ é aquele que vê, enquanto um padre católico ou um missionário
protestante é aquele que crê, sem experiência objetiva do alvo de sua crença (e de
suas dúvidas).” E conclui, “O que fizeram não foi estabelecer com ele uma relação de
crença/dúvida, mas digeri-lo, incorporá-lo ao seu universo, despindo-o de seus
atributos divinos, humanizando-o e afinizando-o (116).

Gallois & Grupioni e Wright (1999), de maneiras diferentes, pensam também em termos de
“mal-entendido”, muito embora não tenham enunciado suas soluções nestes termos. Para os
dois primeiros, o pouco sucesso missionário entre os Waiãpi deveu-se ao assistencialismo
nas áreas de saúde e educação, que causou uma relação de dependência e enfraqueceu sua
capacidade de “auto-determinação”, e não propriamente à eficácia do discurso religioso.
Eles afirmam que a oferta de serviços não fornecidos pelo Estado - através da Funai ou da
Fundação Nacional de Saúde - são substituídos pela ação das missões que contam com
suporte material como transporte aéreo e fluvial, médicos e dentistas crentes que dedicam
algumas semanas do ano ao trabalho missionário-assistencialista.

Se estendermos o argumento de Vilaça – que se baseia na clássica distinção entre magia,


religião e ciência –, pode-se inferir que aqueles índios estão distante do pensamento
religioso e da lógica da intervenção divina, contudo, haveria uma equivalência entre o
controle da natureza proporcionado pelos xamãs e pela tecnologia trazida pelo missionário.
O sucesso do missionário em relação ao pajé deve-se não à maior eficácia do discurso
moral e sobrenatural, mas aos seus conhecimentos, tecnologias e mercadorias, que tornam
menos eficaz a concepção xamânica de mundo.

A etnografia dos Baniwa nos sugere ainda, diferente dos Wari’, que o evento não só foi
incorporado pela estrutura, mas também tornou-se estrutural. As etnias Kuripako, Kubeo,
Guayabero, Piapoco, Guahibo, Cuiva, Saliva e Baniwa, principalmente esta última,
passaram por três momentos de efervescência religiosa. Na segunda metade do século XIX,
os xamãs Anizetto e, décadas depois, Kamiko incorporaram elementos do cristianismo e
promoveram um movimento milenarista e messiânico que marcou essas sociedades. Em
1950, a missionária adventista, da Cruzada de Evangelização Universal, Sophie Müller foi
eficaz na conversão dos Baniwa por ter sido incorporada a uma estrutura pré-existente, que
a associou aos xamãs-profetas com apenas algumas diferenças. O salvacionismo
exclusivista de Sofhie recusou a manutenção de elementos da cultura Baniwa, como o
caxiri, xamanismo, tabaco e plantas sagradas, associando-os ao diabo. No entanto, sua
pregação escatológica fez com que os Baniwa a associassem aos milenaristas do século
XIX. Wright sugere uma associação inicial entre ela e os profetas Anizetto e Kamiko por
seu perfil messiânico, que só foi evitado pela missionária após algum tempo.

Pelos dados etnográficos e por boa parte da literatura etnológica, a adesão dos índios na
Amazônia à religião evangélica, e mesmo a católica, tem sido marcada pela inconstância
dos fiéis, que oscilam sua freqüência à igreja. Assim como aderem todos juntos, eles
abandonam também em grupo a religião (Capiberibe, 1998; Vilaça1996, Wright,1999).
Contudo, o fato é que a seqüência de movimentos evangélicos, como entre os Baniwa,
paulatinamente decantaram elementos que produziram algumas transformações, e não
apenas a reprodução do modelo. Wright ainda mostra a condensação de “ensinamentos
evangélicos [que] foram moldados a processos pré-existentes, particularmente relacionados
21

à produção de novas gerações de crentes adultos” na geração de crentes posterior ao


período de Müller (172). O movimento ideal missão-igreja nativa-missão indígena, na
prática, concretiza-se, - em algumas sim enquanto em outras não - muito provavelmente no
período de gerações.
22

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