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Nordestino:
invenção do "falo"
UMA HISTÓRIA DO GÊNERO 0u
V)
MASCULINO (1920-1940)
0c
ono
1.
2a Edição
intermeios
a Coleção «ntragftneroí ibn-i«
para a publicação de livros, ensaios, co
letâneas, nacionais ou estrangeiros, que
se situem no espaço da crítica às formas
contemporâneas de imposição de rígi
das identidades sociais, sexuais, étnicas
ou geracionais, e que promovam o de
bate acerca das questões de gênero e
sexualidade, ou aquelas relacionadas ao
corpo em distintas problematizações.
Tem como horizonte a crítica do presen
te, do patriarcalismo e do racismo. Visa
a divulgar obras que desestabilizem as
fronteiras do conhecimento e que se
pautem pela interdisciplinaridade, fun
damental para que possam ser apreen
didas outras realidades, invisíveis, mo
leculares e silenciadas no mundo con
temporâneo. Os estudos históricos, filo
sóficos, antropológicos, tanto quanto os
literários ou procedentes das áreas da
Psicanálise, Educação e Direito podem,
nesse sentido, fornecer importantes pis
tas para reflexões que contribuam para
diagnosticar a nossa atualidade e para
questionar as formas de pensar e agir
de que somos herdeiros/as, formas es
sas que não são naturais mas históricas,
portanto, passíveis de transformação.
Durval Muniz de Albuquerque Júnior
(Cortez/Massangana,1999), História: a
Coleção Entregêneros
Nordestino:
invenção do ralo
UMA HISTÓRIA DO GÊNERO MASCULINO
(1920-1940)
2a Edição
IIANAIII AHIISFIIVIIIIS
Editora Intermeios
Rua Luís Murat, 40 - Vila Madalena
CEP 05436-050 - São Paulo - SP - Brasil
Fone: 2338-8851 - www.intermeioscultural.com.br
•
CONSELHO EDITORIAL
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Vincent M. Colapietro (Penn State University)
Daniel Ferrer (ITEM/CNRS)
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Claudia Dornbusch (USP)
CDIJ 981:305
CDI) 981
Prefácio 13
Denise Bernuzzi de Sant’Anna
Introdução 17
A Feminização da Sociedade 27
Bibliografia 231
I ^efácio
(...)
Quem sabe/ 0 super-homem venha/ nos restituir a glória
Mudando como um deus/ o curso da história/por causa da mulher.
1. ALMEIDA, José Américo át. A bagaceira. Rio dc Janeiro: José ()lympio, 1988; ('(JNI IA,
Eudides da. Os sertões. 30. ed. Rio dc Janeiro: 1'rancisco Alves, 1981; ()UI IROZ, Radiei
de. Oauinze. Rio de Janeiro: José Olympio, 1948; Rl',( IO, José l .ins do. Meus verdes anos.
Rio dc Janeiro |ose ( Hynipio, |9S6,
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 19
K. PERRO I, Mkhcllc. Os excluídos du hi\/ríriu. Rio d< l.uirim !'• » Iriiii, |MKH
III' AUV( >1 R, Simone <lc. O \cvundo sexo. Silo Pillllo I hh I, 1’^» /J vol
IHIIIVA1. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 23
12. COSTA, Jurandir Freire. /I inocência e o vício. 3. ed. Rio de Janeiro: Relunie Dinnará, 1992.
13. CERTF.AIJ, Michel de. Of. cit.
14. Ideni.
1 S. 1'01 ICA1II .1, Michel. “A vida iIoh hoineiiH lllhinicH" In: <) i/in' <• uni uiifui I .ishoa: Vcga,
HUIIVAI. MUN1Z DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 25
um'. vidas de homens sem fama, vidas singulares tomadas como estranhos
pmi nas, vidas que transparecem de breves relatos, documentos, fábulas em
> |u> apresenta a dramaturgia de uma vingança, de um ódio, de um crime,
d> um adultério, textos cheios de amor, gritos, súplicas, choros, decepções,
ili intrigas de homens que não conseguiram ou não quiseram em suas
11 i|< lórias de vida atualizar o modelo de homem nordestino proposto pela
mdi in dominante, momentos de autoprodução, de uma escrita de si, da
iidoçao de um estilo de ação diferente, de subjetivação de possíveis novas
Intmas de ser homem.16
I )c um lado pilhas de imagens e textos definindo quais são os bons
u .os e costumes de um homem no Nordeste, de outro lado todos aqueles
apanhados em flagrantes de “maus costumes”, lados que se trocam, se
> iii/am, se embaralham. Não trabalhei nesta pesquisa os costumes como
implcs procedimentos estereotipados recebidos e reproduzidos por um
p.iupo, como procedimentos dotados de uma rigidez repetitiva e que
impõem lugares fixos, mas procurei as astúcias, as artimanhas na forma de
atualizar e repor esses costumes. Fiquei atento para como os contextos de
u i • lelativizaram esta rigidez dos códigos de costumes, como estes puderam
■ i vulgarizados, degradados, reinventados, dando origem a uma serie de
pioccdimentos que a polícia de costumes chamará de “maus costumes”.17
< nino estes sofreram efeitos imprevistos de criatividade, de resistência, de
mtidisciplina. Uma camada social de práticas sem discursos, de gestos sem
vi idades, que subverteram a tagarelice dos discursos, que tiveram efeitos
• Ir poder específicos, que obedeceram a funcionamentos lógicos próprios e
puderam produzir alterações nas instituições da ordem e do saber.
Quero, pois, neste texto, contar e narrar histórias de homens que
multipliquem o rosto do nordestino, retirem a sua seriedade, mostrem a sua
multiplicidade de ser. Relatos que atravessem e organizem lugares antes
insuspeitos para o ser masculino, questionando as identidades de gênero
i in nossa sociedade, produzindo outra geografia do desejo masculino, de
seus fluxos c trajetos, de suas maquinações, figurar, assim, um novo espaço
do prazer para o homem nordestino, como para a própria mulher que
com ele se relaciona. Cartografar as mudanças que, ao longo deste século,
ocorreram no significado do ser nordestino.18
lí. lilcin "A escrita de si". Iii: O que t um autor. Lisboa: Vcga, 1992.
17. (T.H Ti:AI I, Michel de. 0/>. cit.
i>< i n i i i r/i,< iiiii< ;i iar i ari. t <Iim ubn.>197.1.
A Leminização da Sociedade
() que nos chama atenção no discurso freyreano, que se inscreve numa série
ili discursos que podemos datar de pelos menos o final do século XIX, é que
i .!<■ perigo de quebra das hierarquias sociais e o consequente nivelamento dos
d d cientes grupos que segmentavam a sociedade são sempre descritos a partir de
im.ip.i ns que remetem à família e, mais particularmente, a uma ameaça ao Pai,
......... representante da autoridade, da ordem e da hierarquia. Como tentarei
ili in<instrar na primeira parte deste trabalho, todas as mudanças históricas que
imli.im ocorrendo, desde pelo menos o final do século passado, mas que se
1.1 ninaram após a Primeira Guerra Mundial, conforme os autores são quase
mi.mimes em reconhecer, são descritas como uma feminização do social, como
iim processo de horizontalização que este gênero representaria. Não é à toa que
< . 111 k i to Freyre descreve este processo como sendo aquele que levou ao declínio
iln que chamou de patriarcalismo, ou seja, uma sociedade onde o predomínio
iln homem, do macho, do Pai, não seria contestado, em que em torno destas
lijmias se estruturava toda a ordem social. Segundo poderemos perceber, ao
liinpo deste trabalho, o feminino é constantemente associado, nestes discursos,
i Imi izontalidade. A mulher no próprio ato sexual representaria esta posição,
i nquanto o homem, o poder, o domínio, o ativo, representaria a verticalidade,
i urdem hierárquica que não deveria ser ameaçada.
listes discursos masculinos falam com temor de um alastramento do
li iniiiino pela sociedade, trazido pela abolição das fronteiras entre etnias e raças
< m n a Abolição, pelo progressivo acesso ao mundo da política de parcelas da
i H iedade antes excluídas, com o advento da República, pela necessária ampliação
do espaço social para a inclusão de novos grupos que emergiam com crescente
mllucncia e poder como: os comerciantes, os industriais, os operários, a classe
media c, notadamente, as mulheres, surgidos todos com o processo de urbanização
i industrialização, vistos como agentes principais neste processo de desvirilização
■ l.i sociedade, trazido pela perda progressiva dos valores, sociabilidades e
i m.ibilidades descritas como patriarcais. Este temor se intensifica à medida que
i nirige o movimento feminista reivindicando mudanças na condição feminina.
( > mundo dos patriarcas paternais estava em ruína, um mundo feminino parecia
ivi/inhar-sc. Como evitar que isso viesse a ocorrer? Essa parece ser a preocupação
di ii ■. intelectuais c representantes das elites de que me ocuparei.3
I Sobre a crescente ansiedade masculina diante das mudanças no lugar do feminino no início
do século xx, ver: LE RiDER, Jacques. // modernidade vienense e as crises de identidades.
Rio de laneiro: CivilizaçAo Ihasilrira, 1992 c (JAY, Pcter. /I experiência burguesa da Rainha
I ifiHiaa 1'ieud a educação do\ sentidm Srto Paulo Companhia das Letras, 1988.
30 nordestino: invenção do “fai.o’
S O sujeito é visto neste trabalho como um lugar de agencia e de fala social e historicamente
definida. O sujeito não é tomado como um a priori seja do acontecimento, seja do discurso,
mas emerge no acontecimento e se inscreve no discurso. O sujeito é a resultante de um
11 unplexo processo histórico, é produto de uma fabricação para a qual contribuem inúmeros
processos sociais. A identidade do sujeito se define nas suas relações de poder e de verdade
r está permanentemente em elaboração, portanto os lugares de sujeito, mesmo aqueles
sustentados por uma poderosa institucionalização, nunca impedem o fluxo, estão em
permanente devir. Para esta discussão em torno das noções de sujeito, lugar do sujeito,
subjetividade e modo de produção da subjetividade, ver: FOUCAULT, Michel. Ditos e
estritos I (Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise). Rio de Janeiro:
f orense Universitária, 1999; História da sexualidade i - a vontade de saber. Rio de Janeiro:
(ítaal, 1990; FONSECA, Marco A. Michel Foucault e a constituição do sujeito. São Paulo:
F.d. da puc/sp, 1995; LINS, Daniel (Org.). Cultura e subjetividade. Campinas: Papirus,
1997; DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Fclix. O Anti-Édipo. Rio de Janeiro: Imago, 1976;
HIRMAN.Joel. Entre cuidado e saber de si. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000; PAIVA,
Antônio C. S. Sujeito e laço social. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000; GONÇALVES,
Rol >son P. Subjetividade e escrita. Bauru: Edusc; Santa Maria: ufsm,2000.
Sobie a noção de dcsterritorialização, ver: DEI .1 UZE, Gilles; GUATTARI, Fclix, OAnti-
/ dipn, r it. Paia a noção dc destradii ionalização, ver: GII1DENS, Anthony. As consequências
da modernidade. Sao Paulo: unesi', 1990.
I, III I,O, Júlio. A lemónas dc um senhm </<■ engenho. I ed Reiife f UNDARPE, 1985, pp. 185
186.
32 nordestino: invenção do “falo”
7. Ver: Idem, p. 193. Sobre as relações entre desejo, razão e história, ver: GIJATTARI,
Félix; ROlÀ^lK,Sue\y. Microf>olt'ticas: cartografias do <lesf/ri. .’ ed 1'etmpolis: Vozes, 1986;
DELEIJZE, (lilles; GliAI TARI, lelix. Mil plati* ca/‘ilali\ni“ , riyimzo/,<■/((« Rio de
Janeiro: Editora 34, 1995, 5 vols.; BESANÇON, Alaiit '<) llu iillsi lenli <> episódio da
prostituta em Que Faz,cr? F. em (1 Subsolo” In I I <i<>ll, |aii|m i NORA, 1’ierre,
llmoiia ii"i'ri> Rio de latieilo l iam is< o Alvi I'i>, pp i | I
HIHH U MtINIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 33
II Paia a discussão das noções de indivíduo e pessoa, ver: GIDDENS, Anthony; BECK,
I lliiili; I.ASH, Scott. Modernização reflexiva. São Paulo: unesp, 1995; GIDEENS,
Anthony. A transformação da intimidade. São Paulo: unf.sp, 1991; COS I A, Jurandir
I ieire. Ordem médica, norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1984; LASCEI, Cristopher.
.7 cultura do narcisismo. Rio de Janeiro: Imago, 1983. Sobre a psicologização dos sujeitos
na modernidade, ver: GAY, Petcr. Op. cit.; BIRMAN,Joe1. Op. cit.-, FOUCAULT, Michel.
"A es» rita de si”. In: O que é um autor. Lisboa: Vega, 1992, pp. 127-160; LIPOVETSKY,
< lilles. A era do vazio. I ásboa: Relógio IYÁgua, s/d.; DUMONT, Louis. O individualismo:
uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1985; MAUSS,
Maiiel, “Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a noção do eu”’. In:
Sm lologia e antropologia. São Paulo r ru/l iuiNi', 1974, vol. 1,|’p. 207-241.
9 Ver I UEYRI'., Gilberto. Op. p. XXXI,
34 nordestino: invenção do “falo”
Mas o que nos interessa ressaltar é que esta ascensão social ou, pelo menos,
a mudança de status de elementos da raça negra aparece na obra de Freyre
como um processo de feminização da sociedade, já que este sociólogo trabalha
com uma série de imagens dicotômicas nas quais a raça negra aparece remetida
ao feminino, enquanto a raça branca é remetida ao masculino. Ele chega a
endossar a ideia, que atribui a alguns sociólogos, de que a raça negra é a raça-
mulher. Uma raça afetiva, sentimental, pouco racional, passiva, masoquista,
que marcaria com estes elementos a cultura brasileira, à medida que ascende
socialmente, tendo, inclusive, acesso à educação, tornando-se alguns de seus
descendentes, políticos e intelectuais com influência na sociedade.10
Freyre atribui ao declínio de uma elite branca de ethos aristocrático, que
vinha do Império, a crescente valorização social do mestiço culto, quase sempre
descrito como melífluo, pernóstico, preocupado com a aparência, muitas vezes
disposto a usar o pó de arroz para disfarçar sua origem étnica e o dente de ouro
para marcar o seu novo status social; quase uma dama na sua preocupação
demasiada com as vestimentas e com a sua forma de se apresentar em público.
Estes representariam bem o esforço que os novos-ricos faziam para demonstrar
não só que tcriam adquirido a civilidade e a educação das elites tradicionais,
como teriam superado estas em modernidade, antenados que estariam com
a última moda, vinda da Europa ou dos Estados Unidos. Neste aspecto, as
mulheres, por sua naniral frivolidade, seriam insuperáveis, crescentemente
escravizadas pela moda vinda de Paris.
A moda aparece nestes discursos como um indício da escravidão destes
sujeitos aos estilos de existência artificial e importados do exterior, quando, na
verdade, pode ser vista como um índice desse processo de autorreflexividade
e autoelaboração dos sujeitos, trazido pela modernidade. A moda faz parte
de uma fabricação de si, de um cuidado de si, de um processo de subjetivação
que se contrapõe aos modelos tradicionais de se vestir e de se comportar.
Ela vem denunciar o caráter cada vez mais performático dos sujeitos nesta
sociedade burguesa que se instalava. O estilo individual de ser, uma estética
da existência são elementos decisivos no novo modo de produção de sujeitos
trazidos pelo capitalismo urbano-industrial. Estes novos modos de ser, na
verdade, questionavam as formas tradicionais de se elaborarem subjetividades,
de se pensar os corpos e de se relacionarem com valores como a beleza e a
elegância. O incomodo causado pelas roupas, cabelos, lu p itos, rostos eli)
i <H|nr. <las melindrosas e dos almofadinhas fala de uma mutação nas próprias
■ ipdhilidades, nas formas de sentir e dar sentido ao mundo e, ao mesmo tempo,
h nu (<• à emergência de identidades prêt-à-porter elaboradas pelas centrais dc
illniiibiiição de sentido vinculadas aos novos modos de ser burguês.11
Por outro lado, à medida que novos grupos sociais emergiam na sociedade,
liil entre as elites tradicionais uma insegurança de status, que se reflete no
n loiço de atitudes de distinção, e terminam por acompanhar as novidades
qin' 11icgam do exterior. Haveria, pois, uma tendência ao cosmopolitismo e,
pml.inlo, uma ameaça de standardização dos costumes, perdendo-se não só as
p uln ularidades nacionais, como, principalmente, para Freyre e o movimento
11 p,h ni.dista e tradicionalista que encabeça nos anos 20, a perda da autenticidade
• d.i oi iginalidade regional. O sabor local se perde, em nome de um nivelamento
l" ml das formas de ser, se comportar, se alimentar, se vestir. E contra este
movimento de standardização que o Centro Regionalista do Nordeste é criado
■ ui 1924 e que Freyre saúda, em vários artigos, toda expressão cultural que
■ i i.i regionalista e tradicionalista:
Aquela cortesia das quadrilhas e dos lanceiros, da valsa alemã lenta e elegante,
sucederam as ‘sans façons’das contradanças americanas com a íntima conexão
dos pares, ligados estreitamente, confundidos, misturados, em que vão se
sumindo as últimas atenções do homem pela mulher, sem sombra do antigo
cerimonial, daquele refinamento de modos do cavalheiro à dama, curvando-
se respeitosamente ao tomar-lhe o braço, agradecendo-lhe depois a honra da
companhia.14
12. FREYRE, Gilberto. Op. cit., pp. cxix e cxx.; “A propósito do regionalismo no Brasil”,
Diário de Pernambuco, Recife, 11/10/1925, p. 01, cc. 4 6.
13. A noção de tradição só passa a ter sentido a partir da própria modernidade, a ela se
contrapõe. O que se chama de tradição se define e se inventa a partir das próprias mutações
históricas que a inviabilizam ou a modilicam V< i a <••.!<• icspcito I l( MfSBAWM, F.ric;
RANGER, I ciem <■. zf mtvv/iJp </uí ZrUí/í|á<> 2 rd Rioch |.m<tio Paz <■ l<’ita,1997.
I I lll I !.( >, |cdto op ,/Z , p 'I 1
l|i|IVAI. MUN1Z DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 37
17. Ver MAI OS, Marlisc. Reinvetifôes </u vínculo nmtnow. Belo I lorizontr: da iiimg; Rio
dc Janeiro: uipiíiy, 2000.
IHlHVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 39
I i i maior visibilidade social das mulheres, cada vez mais fora do espaço
■ I' 'uh .tico,leva a reações de desagrado por parte de homens que representariam
• hla urdem patriarcal ameaçada. Estes tentam definir a feminilidade a partir de
Hma icação ao que seria a mulher moderna.
(...) para mim a mulher quanto mais feminina mais cheia de graça e encanto.
Nada de lhe dar física ou socialmente feitio varonil. Nem bigode, nem cigarro,
nem função legislativa. Nada. Todas estas coisas masculinas só a podem
prejudicar, tanto eu a considero superior ao homem.
(...) à coragem de granadeiro de uma heroína deTejucupapo, prefiro a coragem
■.anta de uma boa irmã de caridade entre bexiguentos ou pestosos.19
III Neste trabalho consideramos que tanto o sexo como o gênero são definições, conceitos
i relações construídos social e historicamente e que se explicitam através de construtos
linguísticos e também através de ações e práticas que vão constituindo sujeitos sexuados e
gimei ificados, tendo como ponto de partida a atribuição de sentido às diferenças anatômicas
i nlic machos e fêmeas da nossa espécie. Nem o sexo, nem o gênero se definem ao nascer,
biologicamente, mas precisam de sentidos e significados humanos para se constituírem
tomo antagônicos e diferenciados. Sobre as noções de sexo, gcncro e cultura de gênero
tomo construções históricas e linguísticas, ver: BUTLER, Judith. Bodies that matter: on
lhe discursive limits of“sex". New York: Routledge, 1993; Gender trouhle:feminism and the
whversion of identity. NewYork: Routledge, 1990; BREIER, Ruth. Science andgender: a
11 dique ofhiology and its theories on women. New York: Pergamon Press, 1984; BOURDIER,
Pleiic. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bcrtrand Brasil, 1999; COSTA, Jurandir
I um . A face e o verso. São Paulo: Escuta, 1995; KATZ, Jonathan Ned. A invenção da
heterossexualidade. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996; BESSE, Susan. Restruturingpatriarchy:
the modernization of gender inequality in Brazil, 1914-1940. Chapei Hill: University of
Noilh Carolina Press, 1996; SAMARA, l .ni de Mesquita ct al. Gênero em debate. São
l’.iulu: i imc, 1997; SCt> I T, |oan.“( iêncro: uma categoria útil de análise histórica". Mulher
e lealidade: Malhei e educação. Porto Alegre, Vozes, v 16, n. 2, jul/dez, 1990.
i'1* lir11x),Júlio, op ui, p i
40 nordestino: invenção do “falo’
Nós - isto é, os homens da moda, eu não sou modista, quando muito, comodista
também fazemos a muda. E temos passado das calças boca de sino para
as calças tabicas, dos jaquetões folgados para as jaquetinhas apertadinhas na
cintura, com costurinhas nas costas, das botinhas de broas de navio para os
sapatos pé de anjo c dos chapéus de abas curtas para as Minas Gerais.
1J, N/u '< "oino u mulliei perdeu ncii ciu auto", / <!e l'<inumbuco, Rei ite, 07/11/1925, p. 47,
t »
42 nordestino: invenção do “falo”
23. CAMPEI .1.O, Samuel.“A muda da moda", /)i<liia <!< /’<•» i/.i »>/'/<,.’, !<<■< il<, IS/02/1925, p. 5,
c. 1.
24. ( 11NI IA, liisiao da." feminina". In: </< />»«/.>.■ ./.< < ><»Mi lUn d< fmclto: Agir, 1979,
p, 287.
lUUlVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 43
J*>Solue outros lugares de socialização das crianças, notadamente, dos meninos no começo
do sé< ulo, ver: GALVAO, Ana de Oliveira. Amansando meninos: uma leitura do cotidiano
da escola a partir da obra de José Lins do Rego {1890-1920). João Pessoa: Ed. da ufpb, 1998;
AI M EU )A,José Américo de. Antes que me esqueça: memórias.João Pessoa: Fundação Casa
ili |osé Américo/cNrq, 1986; BELLO, Ruy. Memórias de um professor. Recife: Academia
I'i iiiutnbucana de Letras, 1982; CARVALHO,Tancredo de. Memórias de um brejeiro. João
Pi uhoii: s/e, 1975; BARROS, Souza. A década de vinte em Pernambuco. Recife: f undação
-I- Cultura da Cidade do Recife, 1985; POMPEIA, Raul. O Ateneu. São Paulo: Ática,
1'ltto, CASCUDO, Luís da Câmara. Pequeno manual do doente aprendiz. Natal: Ed. da
III RN, 1969; RÊGO, José I ,ins do. Meus verdes anos; Doidinho. 16. ed. Rio de Janeiro: José
< Oyinpio, 1977; O moleque Ricardo. 19. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 199.3; RAMOS,
< mediano Infâmia. 19 ed. Rio de lanciro Reiord, 199-1.
Ri < AMPI I.(), |o .e. "I lilcieni iaçllo e valorização dos sexos”. fez da Rorborema, Campina
* >i ande, 16/01/19 18, p -I, i I
44 nordestino: invenção do “falo’
O corpo que na sociedade dita patriarcal era visto e dito como natural,
quando não sagrado, começava perigosamente a ser fabricado, moldado por
novas tecnologias, novas atividades físicas e intelectuais, novos hábitos e
costumes no vestir, no se comportar, nos gestos. Um corpo que começava a
se desnudar, a ser moldado por novos códigos de beleza, de higiene, de saúde.
O corpo, de referente natural e fixo, parecia estranhamente se tornar mutável,
artificial, seguindo o tempo veloz do mundo moderno. Corpo que se docilizava
para o trabalho e para a cidadania, corpo que se centrava cada vez mais no
sexo e nos seus avatares, corpo cada vez mais público, esquadrinhado por
múltiplos saberes. Corpos que pareciam tornar-se cada vez mais andróginos,
indiferenciados. Corpo enrijecido das mulheres, corpo delicado dos homens,
perfis corporais em contínua mutação, fisionomias cada vez mais estranhas,
tudo isto era visto como um atentado aos desígnios da natureza, que parecia
estar sendo punida com a decadência da religião e a decrepitude de seu povo.27
Para estes homens ansiosos, era preciso reagir e denunciar a igualdade dos
sexos como a desvalorização da mulher e um atentado à natureza feminina, que
não seria talhada para certas atividades virilizantes. A estratégia deste discurso
masculino é definir o ser feminino como um ser superior ao masculino, que se
rebaixaria ao procurar com ele se igualar. As mulheres não deveriam descer de
seu altar de madona para se misturarem com a vulgaridade da vida masculina.
Como dirá Júlio Bello, citando Madame de Sévigné: “uma mulher que se
enraivece muda de sexo, uma mulher que descompõe se decompõe”. Essas
grosserias seriam todas elas masculinas. O nivelamento traria o embrutecimento
das mulheres e com ele o fim da última reserva de afetividade, sentimentalismo,
bondade, paciência, resignação presentes na sociedade.
27. Consideramos que o corpo é também um construto social e histórico; para além de sua
empiricidade anatômica, o corpo é feixe de sentidos e significados dados pela sociedade,
pela cultura, pela história. E nas relações sociais, em complexos feixes de relações, que uma
identidade corporal se define, ele é mais do que um referente fixo, natural, é um agregado
de práticas, imagens, textos, de códigos sociais. O corpo é resultado de um processo de
construção, não um a priori esvaziado de historicidade. Ver: BROWN, Peter. Corpo e
sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990; FOUCAULT, Michel. História da sexualidade
II-o uso dos prazeres-, SANT’ANNA, Denise Bernuzzi (Org.). Políticas do corpo. São Paulo:
Estação Liberdade, 1995; LYNCH,J. Coeur e son langage. Paris: lutei Editions, 1987; DEI,
PR1ORE, Mary. Ao sul do corpo. Rio de Janeiro: José Olympio, Biailia i iiiinh, 199.3;
BOLOGNE.Jean Claude, / listória do pudor. Rio de |.ui<iio I lios, I i Im.i Teorema, 1990;
DARMON, Pierre. O tribunal da impotinciu. Rio dc lanelio I' i. < L o a, 19H8; l‘.N( JEL,
Magali. Meretriz.es e doutores. Silo Paulo: Braailiciiic, 1980; VH IARI' I l >, (icogm. Olimpo
r « .»(/«. Liiboa Fraginciitoa, 1988
UUUlVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 45
lios < alçados, dando margem a uma elegância que, aristocraticamente europcia
tui i omeço, vai sendo impactada pelos modismos americanos, do começo do
m'i ulo xx, moda que, a partir da Primeira Guerra, parece caminhar para uma
iiidtoginia, o que muito incomodava os intelectuais ligados a esta elite, que
i uii .idcravam as formas de se vestir e se comportar importantes marcadores,
ii.iu <t de distinção social, mas de distinção entre o masculino e o feminino.28
() impacto da participação da mulher na Primeira Guerra Mundial, seja
In* oiporada ao setor produtivo, substituindo os homens nas suas atividades
n"i mais, para que estes pudessem ser arregimentados como soldados, ou
iih .um, exercendo atividades auxiliares no campo dc batalha, aliado à
'II I 1'0, I hnlx i Io. </« veilii. 3 <<l I .i-.lio.i Assírio c Alvini, 1989; RICAR1),
I i.iii^oim Viunl z/i i/<i nioilii Silo 1’iiulo l'.iz < Tcrril, 1989; SOUZA, (íild.i dc
Mello. <) i/n i/ui roubu\ Silo I'nulo l 'oiii|iuiililii div. I .clins, 1987.
46 nordestino: invenção do “falo”
29. FREYRE, Gilberto. Op. «7., pp. 122-123. Por corporeidade entendemos a construção social
dos corpos que passa tanto pelas modificações físicas que um dado corpo sofre ao longo do
tempo, as marcas que a história imprime em cada órgão que o compõe, mas principalmente
pelos sentidos e significados que estão ligados e definem o que seja um corpo numa dada
sociedade e em dado momento, ou seja, é o conjunto de imagens e enunciados que definem
o que seja o corpo tanto para uma coletividade como para os indivíduos num dado contexto
social e histórico. Ver: DELEUZE, Gilles; GIJATI ARI, felix A/»/ 1'latus Capitalismo e
esquizofrenia', MAUSS, Marcei. “/.<■'.< tethniques ilu tm p\" In Xc o ■/■■<;/.• <■ .Inlhropologie. Paris:
PUF, P16S, pp. 363 3K6.
10 I )AN I AS, Júlio “A bengala de Madamc Z", />6/1 /» i/e /'< i ihimhiu», Kn lie, 14/12/1919, p.
I,. I
lilUlVAI. MUN1Z DE ALBUQUERQUE JÜNIOR 47
Para escândalo de nosso cronista, esse quase rapaz era que atraía os olhares
ili iodos os homens na festa, o que o leva a concluir que “o que nela havia
ili perturbador e de excitante para os homens era exatamente o seu feitio
niiisculino, a sua linha masculina, as suas modas masculinas - aquilo mesmo
que viera buscar ao nosso sexo, que ela assimilara dos nossos hábitos, que numa
I' il.ivra - a afastava de seus encantos naturais”. Conclui ainda que: “o tipo de
lu liza ideal de nosso tempo é o tipo destro, ágil, arrapazado, masculinizado”,
m, i'. adverte “na sua fúria de masculinização, a mulher começou por nos excitar
<■ estejamos certos - há de acabar por nos bater. A bengala de Madame Z
n. lti é senão o símbolo de uma idade nova. E a contraprova está em que, ao
p,i’.'io que a mulher se viriliza, o homem efemina-se... O sexo forte são elas, o
•rxo fraco somos nós. E afinal que inconveniente há em que as mulheres nos
governem? Os homens têm nos governado tão mal”.31
O que parece incomodar estes homens ligados às elites agrárias, filhos
ilr senhores de engenho ou de fazendeiros, eram as mutações que vinham
ui orrendo na própria forma de ser homem, nos códigos de masculinidade. Sc
• ••» universo feminino a urbanização trouxera figuras como a da melindrosa
• •ii d.i cocote, fizera aparecer também o almofadinha, tipo masculino que se
aproximava do requinte, da delicadeza e do artifício femininos. Estes tipos
uih.mos, desvirilizados, haviam nascido de um distanciamento progressivo
> uma desvalorização da vida rural, dos modos de ser homem de seus pais
i avós. Procurando ser modernos, estes bacharéis almofadinhas procuravam
• lili ii nciar-se de seus antepassados, considerados homens rudes, caturras e
•ui i ..idos, sem refinamento.
E neste contexto, inclusive, que emergem como preocupação crescente as
pi .nicas homoeróticas, que apareciam como mais um indício deste processo
di feminização do social e, mais ainda, da constituição de uma sociedade
In imafrodita”. Embora o conceito de homossexualidade, elaborado pelos
médicos europeus, na segunda metade do século xix, ainda tivesse circulação
Irsliita entre nós e ainda fosse prevaleeente no seio das elites letradas a noção
u ligiosa de sodomia,este conceito começa a ser utilizado nos tratados médicos
i' jurídicos, que demonstram uma ansiedade crescente diante da inversão
| mal e sua maior visibilidade no espaço urbano. A temática do homoerotismo
ganha, inclusive, as páginas da literatura regionalista, nos anos 30, em que é
n matizada como mais um indício deste processo de desvirilização pelo qual
48 nordestino: invenção do “falo’
A mulher deve ser bela, deve ter graça e encantos. Nem todas podem ser
lindas, que a formosura não ficou em dote às filhas de Eva, mas todas podem
ser belas.
Beleza não é formosura, nem lindeza. Beleza é o resultado das graças, podê-
las dar, a educação pode substituir a fealdade.
A educação embrandece peles duras, amacia mãos ásperas, dá graça e doçura a
olhos de pouca luz, faz interessante a face pálida, e afáveis os lábios descorados,
põe a bondade de coração na fronte que não é alva, torna elegante o corpo
que não é airoso, amável o que não é lindo, engraçado o que não é formoso.14
II (iARRI l, Alineidii "A rilui iii,iIi> ihi inulliei ",/Wrto r/r Pernom^uro, Recife, 07/11/1926,
D 7, < 1
l' N/.i "I >ci itlogo <lu inellntlriwi'. I il<‘ Recife, 07/11/1926, p. 7, c. 3.
50 nordestino: invenção do “falo”
36. BELLO, Júlio. Memórias de um senhor de engenho, p. I, I R EYRE, (lilbcrto. O/>. cit, p. i.iv.
37. BEIXO, Júlio. ()[>. cit.t p. 50.
38. Sobre a inutaçAo da rrla<,ao rnlic < ampo < < ul.ul< no mundo niod<ino, vri Wll I .IAMS,
Rayniond <) eam/w t a eidude Srto Paulo ('ompanhla du<« I < I9HM
IHIHVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 51
E o que veio reduzir Pernambuco à triste caricatura do seu passado que hoje
incontestavelmente é, foi exatamente o haver-se desgarrado o melhor da
lidalgúia rústica, da terra a que vivera pregada como as ostras em rochedo.
() absenteísmo trouxe para a nossa família rural todos os inconvenientes do
particularismo privando-a das vantagens do tipo de família patriarcal. Em
alguns a renúncia da gleba foi absoluta: venderam-na. Donde a inversão de
valores sociais que se tem operado em Pernambuco havendo hoje muitos
senhores reduzidos a pífios funcionários públicos e engenhos que ‘profiteurs’
virtuosos administram de longe, por traz de firmas comerciais.39
Esse rebaixamento social dos homens das elites rurais, sua debacle,
lia/idos, cm grande medida, pela concentração do capital proporcionado pelo
avanço das relações capitalistas no campo, com o advento das usinas, aparece
iirhlcs discursos como sendo produto de uma perda de interesse dos homens
I" l.i lerra, seduzidos que estavam pela cidade e pela delicadeza de suas formas
il< vida. Esse processo parece ser vivido como uma mudança de lugar do
m i■.< ulino e sua aproximação perigosa com o feminino. A inversão de valores
■■<» i.tr. parecia também acontecer nas relações entre homens e mulheres.
Esta percepção social de que os homens estariam se desvirilizando talvez
i qilique a verdadeira coqueluche que se tornaram os remédios que prometiam
11 i 11 de volta a potência masculina. Os jornais do começo do século se enchem
■ li l<H mulas miraculosas que prometem resgatar a disposição para o sexo para
. ..... ens que a tivessem perdido:
l'<ll< l'',YRI'., (lilbcrto. “7.3" (Artigo» Numerados), Didrio de Pernambuco, Recife, 07/09/1924,
p 1, <■<. 4 <• 5.
Ui "llmi'. nova» paia tudo» o» lioineii»", / >him> dc Pernambuco, Rc<Ifc, 20/06/1926, p. 4, <. 2.
52 nordestino: invenção do “falo”
A virilidade, o vigor e a vitalidade devem ser possuídas por todos aqueles que
desejam cumprir os seus deveres e gozar a vida. Se lhes faltam as forças ou se
a sua saúde está combalida tome nervita do Dr. Hurley que, enriquecendo o
sangue e estimulando o apetite, devolve a saúde e o vigor. Após uma semana
de uso da nervita, a própria pessoa sentir-se-á surpresa com as melhoras
obtidas. Não perca tempo. Compre hoje mesmo um vidro na farmácia.41
Mas uma coisa que Recife ostenta bem claramente... e é sobretudo chocante
para quem vem do Rio ou São Paulo, é a vaga preguiça, indolência, de
‘nonchalance’ que se vê espalhada por esses grupos de carregadores, sentados
pelas calçadas, refestelados ao pé da escada dos edifícios, inertes, bocejantes,
I'icyre afirma que a Primeira República podia ser vista como o momento
i 111 < pie os brasileiros de classe dominante acentuaram o empenho e a disposição
di •.<• parecerem mais com seus contemporâneos de países tecnicamente
...... •. adiantados do que com seus pais c avós, do tempo do Império. Há
um i valorização crescente do que era novo, moderno c um abandono e até
di o .peito pelo que era velho e tradicional. Época em que se tornou mais
> li g.iiite casar-se com moça estrangeira do que com as parentas do clã familiar.
I l"i< a do uso constante nos discursos e nos escritos dc expressões em língua
i 11 angeira. Uma vergonha crescente de tudo que lembrava o rural, o rústico, o
i ulonial. Um processo de desidentificação com as gerações anteriores, com os
..... delos dc sujeito que os antepassados representavam.45
Freyre diz que outro indício da decadência dos velhos patriarcas é que na
sociedade do começo do século cada vez mais o bacharel substitui o coronel
na administração pública. Embora seja o período caracterizado como o do
46. Idem, p. lxi. Ver: SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. 2. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1985; COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia ã República: momentos decisivos.
2. ed. São Paulo: Ciências I lumanas, 1979; MARSON, Adalberto. A ideologia nacionalista
em Alberto Torres. São Paulo: Duas Cidades, 1979; CARVALHO, Joi4 Murilo de. .7
formação das almas. São Paulo: Companhia das l.ctras, 1990; OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A
questão nacional na Primeira República. Silo Paulo Biaalliense, 1990; RA( >O, Margareth.
Do cabaré ao lar. Rio de Janeiro Paz e l eita, |9H'>
47. BEI .1,0,Júlio Memãria\ de nm \enhm dr engenho, IH6 IK7
RIIHVAI MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 55
......... lisino, este denunciaria mais a decadência do que a força do que chama
il> |Mfi iarcado rural. O coronel, embora permaneça com enorme poder a nível
|in al, lein que dividir seu poder com alguns burocratas do Estado, e este poder
> o diminuindo à medida que a esfera política se amplia. Na política estadual
• mu ional, os coronéis se fazem representar, cada vez mais, pelos seus filhos e,
m ii i do que nunca, o que seria outro indício de decadência, pelos seus genros,
....... i inprc pertencentes a famílias ilustres.48
Ircyre chega a falar que seria este um período marcado pela dependência
di imnlos sogros em relação a seus genros, já que estes, quase sempre vindos
i|o mundo urbano, bacharelados, mostravam maior preparo para as lides
piillliciis e empresariais do que os filhos dos potentados rurais, homens
...... Iri idos e depauperados pela educação recebida no campo. Diz ainda: “que
■ kh.i importância conquistada quase sempre à sombra de sogros influentes;
iii.i i i inpregada às vezes em sentido contrário aos interesses e gostos desses
III I Rí YRI .,Gilberto. O/>. Cit.,p.cxi.ui. Ver: KORTIJNATO, Maria Lucinete. Oíwowí/wwo
,• a nmiv/m do coronel: dc símbolo a simulacro do fsoder local, Campinas, unicamp, 2000 (Tese de
I luuloiado em I listória); IÁINA, I .iiIn, Coronel, o dono do mundo, Rio de Janeiro: Cátedra;
IIiikIIIii: inl, 1983.
|'l I RI* I',YRI'., Gilberto, pp. cxi.vill c ( xi |x
56 nordestino: invenção do “falo’
50. Ver sobre a educação dos meninos neste momento: REGO, José Lins do. Doidinho. 16 ed.
Rio de Janeiro: José Olímpio, 1977; Meus verdes anos, Rio de Janeiro: José Olympio, 1956;
GALVÃO, Ana Oliveira. Amansando meninos, joão Pessoa: edufpb, 1998. Sobre o choque
entre o bacharel e seu pai no retorno, ver: ALMEIDA, José Américo de.zl bagaceira. Rio de
Janeiro: José Olímpio, 1970. Sobre a educação mais teórica, ver FREYRE, Gilberto. Ordem
e progresso, p. 101.
51. FREYRE, Gilberto. Idem, p. 100. Sobre o papel “civilizador” da prostituição estrangeira
no Brasil, ver: RAGO, Margareth. Os prazeres da noite. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991;
ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
52. Para uma discussão sobre o lugar social do olhar como condicionante dos discursos, da
memória e da história, podemos recorrer a autores de tendências teóricas mais diversas,
embora para alguns a posição do olhar dê origem a uma perspectiva diversa do fato
analisado, para outros a posição do olhar define a visão da realidade e da verdade ou não
do fato. Ver: FOUCAULT, Michel. O nascimento da c/tnica. 3. cd. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1987; CERTEAU, Mi< hei de. // escrita da história. Rio dc Janeiro: Forense
l Jniversilária, 1982;TI l()MPS( )N, Edward P. Costume* em comum. Sao Paulo (oinpanhia
d.r. l < ii.r., 1998; CHART1ER, Rogtt t hittória tulfttwd 8lo Paulo I >ii« l. 1990, HII I .
ChiÍHtophiT. O mundo de punta cabttu Sao Paulo (ompanhia das l.ctias, 1987.
IUIKVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 57
’> I UE( ÍO, José Lins do. Prefácio de Memórias de um senhor de engenho de Júlio Bello, p. xx.
A produção literária e memorialística como formas de evasão da temporalidade acelerada
liazida pela modernidade e como uma forma dc lidar com a consciência da finitude humana
i |ue emerge numa sociedade dessacralizada como a capitalista é abordada em: MACHADO,
Roberto. Foucault e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000; FOUCAULT, Michel.
O t/ue l um autor?-, REIS, Josc Carlos. Tempo, história e evasão. Campinas: Papirus, 1994;
RIUOEUR, Paul. Temps et récits. Paris: Seuil, 1983/85; BLANCHOT, Maurice. O
e\pa(o literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987; CERTEAIJ, Michel de. A escrita da história-,
I >1 I .Fl IZE,( jillcs. Crítica e clínica. S.io Paulo: Editora 34, 1997.
1 MICEl ,1, Sérgio. Intelectuais e claue diligente no liiaúl. São Paulo: 1 )ifcl, 1979; Poder, sexo e
/r/iíii na Hepilhlica Velha São Paulo Peispet llvu, 1977. Sobre a noção de capital simbólico,
Vi i BORDIEU, Pieire ()podei tiniholuo Itlo ili janeiro Ib tU.ind Ibasil, 1989.
58 nordestino: invenção do “falo”
Aulas de ginástica.
Nunca tive queda para os chamados exercícios físicos. Dócil, tímido e nervoso,
entrebatiam-se profundamente dentro de mim a incapacidade muscular
Não medraram na vida dos padres mais jovens, força a de convir, os exemplos
de impudor e transvio que eram tão ordinários há quarenta anos passados. O
clero, pela independência da Igreja depois da República, com o afastamento
eivil e secular, fortaleceu-se: regenerou-se na consciência segura e única de
sua santa função moralizadora, nos votos firmes e sinceros de penitência, de
fi I N/.i "A uiiiHtituiçlo incnlal dos dois sexos", / hilim «/< I'rrnambuco, Recife, 01/01/1924, p.
I.' 6
62 nordestino: invenção do “falo’
6*1. Ver: SII.VA, M.iií.i Bc.iiiiz N1//.1 <l.i ShtenHi dt ia\ainciito no Hiaulcolonial Sflo Paulo. I
A. Omiioz/i ihinp, l‘)H*l, (’()S I A, |m.11 idir I h Ik (iidcm nh'dim, nomni/iiiniliar.
lUHIVAl. MUN1Z DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 63
11 r y i <• localiza, neste momento, o que seria uma valorização da própria criança,
iiin.i maior liberdade do menor, já que estas seriam a garantiría do futuro de
I milhas em situação de, cada vez maior, dificuldade. As expectativas da família
H 11 ausferem para as futuras gerações, o que leva a um cuidado maior com as
II lanças c a um relaxamento do antigo poder discricionário sobre as crianças.
I H vir chega a dizer que o fim da escravidão e o progressivo afastamento
ul'|i livo das novas gerações em relação aos valores dessa sociedade levaram a
.... il a andamento, a uma maior delicadeza na relação com as crianças. Estas
II ii in sao tratadas quase como escravos, mas passam a reinar no interior das
famílias. As crianças se tornam objeto de maiores cuidados à medida que
i lamílias tendem a ter um número menor de filhos, estes se tornam mais
pi■ < lusos c o menor número possibilita melhores cuidados:67
Paia o moço brasileiro foi um período assinalado, na sua última fase (após os
anos 20) pela crescente libertação do menor, da opressão por vezes excessiva
dos pais ou dos velhos, o casamento romântico tornando-se, nas áreas
in lianas e nas rurais, mais em contato com as urbanas, o sistema dominante
ilc consórcio. Não só isto: o menino passou a crescer, de modo geral, nessas
aicas, mais livre da dominação de pais, confessores e mestres, embora o uso da
palmatória nas escolas e do cipó, da peia ou da vara, nas casas ou entre famílias
mais lentas em se desprenderem dos ritos patriarcais de disciplina, tenham se
( > melhor recurso para remediar estes males tão lamentáveis será o preparo do
homem de amanhã. As crianças despertam-nos, portanto, especiais cuidados.
I levemos zelar por elas, envidamos todos os meios para fazer crescer, nos
lnhintes de hoje, os germes dos cidadãos de amanhã. Moldando-se por esse
! •,< opo, é relevantíssima a obra do Congresso que vai se reunir em Santiago
(iv Congresso Americano da Criança).71
()s casamentos nos sertões brasileiros tornam-se curiosos pelo seu cunho
pi imitivo. Nos pontos afastados da influência da civilização, a vida das aldeias
r <l<> sertão difere profundamente da das cidades do litoral.
Nas classes pobres ou rústicas dos amola-foices, como ali se diz, os casamentos
sAo rapidamente concluídos. Um dia, numa reunião, o matuto apaixona-se
por uma morena apetitosa com a qual dançou o chorado. Faz a sua declaração
imediatamente e na primeira ocasião monta a cavalo e vai à casa do pai, a
quem convida para ir ao bananal, à roça ou ao pomar vizinho e lá faz o seu
pedido. A primeira vez que passa o vigário, casam. Se o vigário demora a
p.issar, então casam assim mesmo, deixando o sacramento para mais tarde.
I >á se o mesmo com relação ao funcionário do Estado Civil, se não existe um
ii.i localidade.78
uu , 1995.
// N/.i "A questão do i iiHametlto", /ililrlt </<' l'iniiini/’nin, Recife, 03/03/1901, p. 1, c. 2.
/II N/a "()» < .e.aiiienlos nos ■■< ilocn IiiumIcIiok ", / Hilfiii </<' 1'rrfliimblico, Rei iíe, 18/04/191.3, p.
I,< <•
68 nordestino: invenção do “falo”
79. Para a relação entre casamentos consanguíneos e relações de poder, ver: LEMENI IE, Maria
Auxiliadora, O/>. cit, GURJÀO, Eliete de Queirós. Morte e vida das oligarquias (/HS9-1945),
João Pessoa: Ed. da UFPB, 1994; SANTANA, Martha Maria balcão. Nordeste, afúcar e
poder (1920-1962), }edse> Pessoa: CNl,i|/lin,li, 1990; I I WIN, Linda. Política e parentela na
Paraíba. Rio dc Janeiro: Rcioid, 1993.
XO. ARAÚJO, J. A. Concia dc "() tódigo < ivil c oh i ai.ainentoH < oie.aiiguliicos", líidrio de
■ I" I st ado, a sua busca de governar agora também o espaço privado, embora
u i ebida com profundo desagrado por muitos, é aplaudida por aqueles que se
(llvrin preocupados com o futuro da nossa raça. O poder dos patriarcas em
i' i nlhcr aqueles que queriam como maridos ou mulheres de seus filhos, sofria
ni.ns um duro golpe. Essa limitação progressiva do poder privado seria indício
di ni.lis um processo de nivelamento, ou seja, aquele que progressivamente
■ qmparava poder público e poder privado, e, no caso do casamento, poder
!■ mporal e poder sagrado:81
Que a noção do que é o amor está perturbado, basta ver como encara à mulher
o que ela chama afeição do seu amor: quando pensa que não ama para casar
diz que tem amizade; quando pretende casar é que diz que ama.86
ser dirigidas mais pelo amor romântico a partir deste início de século, já se faz também a
própria crítica do amor romântico, seja reivindicando o retorno às relações anteriores, seja
pugnando por uma maior racionalidade nas relações afetivas. Para uma história do amor
e do vínculo amoroso, ver: MACFARLANE, Alan. Op. cit.', MATOS, Marlise. Oy>. cit.;
COSTA, Jurandir Freire. Sem fraude, nem favor, BADINTER, Elizabeth. Um é o outro:
relações entre homens e mulheres. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986; ARIÉS, Philippe;
BÉJ1N, André. Sexualidades ocidentais. Lisboa: Contexto, 1989; ROUGEMONT, Denis,
Op. cit.; KRISTEVA,Julia. Histórias de amor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; LÁZARO,
André. Amor - Do mito ao mercado. Petrópolis: Vozes, 1996; CHALHOUB, Sidney.
Trabalho, lar e botequim. São Paulo: Brasiliense, 1986; RAGO, Margareth, Op. cit.
84. Sobre a emergência desse sujeito reflexivo e psicológico com a modernidade, ver:
FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos t; LE RIDER, Jacques. Op. cit.; GIDDENS, Anthony;
BECK, Ulrich; LASH, Scott. Modernização reflexiva. São Paulo: unesp, 1995; GIDDENS,
Anthony. A transformação da intimidade; SEN NE’1 T, Richard. O declínio do homem público.
São Paulo: Companhia das Letras, 1988; 11ABERMAS, Jurgen. Mudança estrutural na
esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
85. N/a. “Quais são as mulheres que agiadam aos homens", Didrio de l‘cinambuco, Recife,
08/01/1903,p 1,< '
86. ASSIS, I di onio vai o jiiioi '", / híliio dc l'einaml'iia>, Hii llr, 17/05/19J5, p 7, < 6 c 7
IHIHVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 71
Cada vez mais a escolha do marido passa a ser uma decisão feminina, e
luto torna um perigo e uma ameaça para a realização de um bom casamento,
di mIc que estas tenderiam a se guiar mais pelos impulsos do coração do que
prl<> uso da razão. Se o amor romântico perturbava a racionalidade masculina,
a medida que requeria deste deixar-se guiar pelo coração, que não seria
uiii.» característica sua, requeria das mulheres que usassem um pouco de
mi tonalidade, agora que o casamento e a constituição da família não eram
mar. uma decisão de um pai racionalizador. Veja este artigo, que aparece na
Tâgina Feminina”, do Diário de Pernambuco, que começa a ser publicada a
l'iiin de 1911, demonstrando uma preocupação crescente com a educação
I r mulheres, que parecia deixar de ser um apanágio apenas da família, mas
imnava-se tarefa de toda a sociedade:
Porque, minha cara Lúcia, estás chegando à idade em que hás de passar
dos carinhos de teus pais para os braços de teu esposo. Essa transição se faz
•aiavemente, entre flores, pelo caminho do amor. Mas para que o futuro não
seja juncado de decepções é mister associar como guias da jovem núbil o
< oração e o cérebro. Às vezes o coração sozinho se adianta e forma enlaces de
felicidade instável e precária. Outras vezes o cérebro que traça a diretriz do
destino, por cálculos que parecem seguros, mas que a experiência prova quase
sempre errados.
() amor - disse um psicólogo - é um episódio na vida do homem e a história
da vida da mulher. Em nós, quando fala o coração, as outras vozes se abafam,
inclusive, muitas vezes a da consciência. Como filhas, como esposas, como
mães, somos durante todo o decurso da vida escravas do amor — escravidão
doce quase sempre, mas às vezes bem cruel! Tu, minha cara Lúcia, estás em
véspera de empreender a jornada do teu destino. Mais um ano e terás dezoito,
idade que Platão fixou para o casamento da mulher. Parece-me a ocasião
azada para se falar neste assunto - antes teria sido inoportuno; daqui a poucos
meses será talvez demasiado tarde. É este o momento adequado para ensinar-
te a demarcar com o cérebro a trajetória do coração.
Os | tais prudentes inda hoje conservam - ou devem conservar - o poder
eliminatório entre os pretendentes à mão de sua filha. Mas no círculo dos
i imdidatos admitidos compete a esta fazer livremente a sua escolha. Vai
longe o tempo em que o pai determinava o genro c se o apresentava à filha na
véspera do casamento. (...) A felir idade no casamento, suposta a equivalência
di idade e de edtu ação,»oii'<iM< i s< lusivamente no amor.
72 nordestino: invenção do “falo”
87. LIMA, Leonor de. “A escolha do marido”, Dúirio </e Pernambuco, Rei ilc, 26/06/1913, p. I,
c. 3 e 4.
88. Ver: CASTELO BRANCO, Pedro Vilnriiiho. Aíw/AiVM/V/uwó. Teicsília EC M.C, 1996;
COUTINI IO,Maria l.íuia Rocha Tecendo [><>r trtli itoi/uino\ Rlodi (anciio Roeco, 1994;
I >11. PRK )RE, Mmy z/ mulbei na hntoria <h Hruuí Sa<> Paulo (onlcxlo, 1989
HIIIIVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 73
(’.om as novas idéias e os novos costumes que caracterizam esta época que aí
vai, a época dos automóveis, dos cinemas, dos clubes, dos chás dançantes, do
looting, há uma instituição que dia a dia se transforma e quiçá se dissolve: o
lar.
(...) Quando se fala em lar respira-se insensivelmente um perfume de
.1111 iguidade confortante e reparadora. O lar é por força uma instituição antiga,
c como toda instituição desaparecerá se lhe tiram os atributos principais.
A'.sim o que em algumas grandes capitais se chama de lar moderno, não é
propriamente lar.
< ) lar, enquanto se apresenta na sua feição tradicional, pode-se considerar
<> templo, o santuário da família. Os sentimentos mais ternos, é aí que se
i ultivam e sc aprimoram. A figura veneranda do chefe de família relembra
<> sacerdote do culto primitivo. A dona de casa é a pitonisa, sempre vigilante
para manter o fogo sagrado do carinho e do amor... De volta do trabalho ou
d.is fadigas diárias, é em torno do chefe da família que todos se reúnem para
ivccber a bênção e ouvir-lhe os conselhos, como aves batidas dos ventos e da
< anícula procuram a sombra da árvore frondosa e o frescor do lago tranquilo.
Vede se isto tem alguma semelhança com o que se chama lar presentemente
nus grandes capitais. A casa é um pouso, um ponto de descanso e nada mais.
I oda a atração do mundo está no exterior. Os cinemas, os chás, os teatros, os
pa'.seios não deixam tempo para se cultivarem tradições.
1 'ada qual entra e sai a sua hora. Marido, mulher, filhos cada um para seu lado.
()•. pais são uns conhecidos a quem, quando muito, se deve um cumprimento
delicado. Para os filhos menores basta o cuidado de amas indiferentes.
Nessa completa dispersão o que se chamava lar, sentimento de família,
di .apareceu: cada qual tem a sua personalidade à parte, o seu feitio exclusivista.89
«'» N/a "A miimli iriniiçAo do l.u ", /10»llr, 22/06/1924, p. 7, <. 4.
74 nordestino: invenção do “falo”
Quase não há solteirona que vos não possa contar, ó leitor, histórias sem fim
de casamentos e propostas desprezadas... E por serem tantas as solteironas
que desprezaram quando moças, propostas matrimoniais de milionários, que
chegamos a duvidar se alguém lhe fez realmente a corte.90
90. FREYRE, Gilberto. “76” (Artigos Numerados), Diário de Pernambuco, Recife, 28/09/1924,
p. 3,c. 4.
91. Sobre o papel dos médicos e juristas na definição de novos perfis do masculino, do
feminino e do casal, ver: ADLER, Laure. Segredos de alcova: história do casal (ISSO
1930). Lisboa: Terramar, s/d; FOUCAULT, Michel. História da sexualidade i /I vontade
de saber, Microfísica do poder, Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999;
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar, CAVALCAN I I, Silídc I .cila de Oliveira. Mulheres
modernas, mulheres tuteladas o </n< m so jur idu o e a m<nah.<u ao dos costumes ('.ampina < Irande
19 IO/I9S0, Recife, tiiti', 2000 (I Jlssctlhção dc Mcsltado em I lltilóriu).
imHVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 75
Os dias da minha viuvez correram em dois anos e três meses, dias esses
sombrios, numa espécie de spleen, só tendo em mira os afazeres que me
cercavam.
Um dia, minha filha de nome Maria (na intimidade Lili), solteirona, deu a
entender que eu devia casar.
Ainda não tinha tido esta lembranças, e guardei na memória a sugestão filial.
Em outra ocasião, eu puxei o assunto já meio interessado e no sentido de lhe
perserutar a opinião.
- Você outro dia deu-me a entender que eu devia casar. Com quem? É o que
não vejo.
- Respondeu-me obedientemente a minha filha: - Com E, filha de ...,
conheço-a muito bem; é uma senhora de idade e muito distinta.
Essa senhora indicada por ela é minha parenta, e uma pobre criatura que os
anos já tinham empurrado ao impiedoso degredo do caritó.
Passados alguns dias, reapareceu o nosso bom mensageiro, que me disse estas
palavras: ‘Ela mandou lhe dizer que não pensava mais em se casar, mas como
você quer ela quer’.
De modo que o referido professor e a minha filha foram dois chaleiras ou
corta-jacas incansáveis a fim de que se realizasse o projetado casamento.95
95. BARBOZA, |<>ié NAiuio "Scguiidiu. iuip<úm’', i/<i Horboif/mi, C.iinpiiiu (iiaiulc,
1.3/07/1940, p. 2, c. 1.
IHIIIVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 77
■ ■ii platônicas que faziam deles, irmãos mais velhos, indivíduos ouvidos com
piit licular interesse pelos iniciados:96
I )iz nos Freyre, ainda, que era comum, neste momento, meninos irem
ii" i olcgio de cabelo igual ao das meninas, com cachos que lhes caíam pelos
iinibios ciam quase sempre meninos cuja cabeleira mães ou avós devotas do
Foi também pelo irmão de Dona Sinhá que eu soube da grande amizade
que veio a ligar José Maria ainda menino de colégio a Paulo Tavares já rapaz.
Foi amizade de colégio; e das mais românticas dentre as que já prenderam,
('orno nos sugere Freyre nesta novela, dos colégios e internatos religiosos,
. ..... como dos seminários e conventos parecia que também não vinham bons
i templos. Os sexos segregados e juntos nestas instituições, permitindo a
..... vivência de jovens e adultos, a maioria no momento de maior curiosidade
p> l.i. coisas do sexo, faziam com que fossem frequentes as relações carnais e
nu .mo relações de afeto entre meninos e entre meninas, adultos e jovens:103
Al iás, a vida religiosa salvava muitos meninos angélicos de, uma vez
min gues à vida mundana, se tornarem “maricas de modos melifluamente
- Cuide de seus filhos, Dona Mimosa, e deixe que dos meus filhos cuido eu e
à minha moda. Depois não é seu filho que vão chamar de maricas. Filhos dos
outros podem ser o que quiserem. Mas meu filho vai ser o que eu quiser. Filho
meu vai ser homem no duro.
- Não é uma aula de piano que vai diminuir a macheza de seu filho, ‘seu
Pedro. O senhor está querendo ver as coisas de maneira radical. O filho de
*seu’Jamil, nunca tomou aula de piano comigo, nó I.i/i.i nabalho de macho,
vivia escanchado em um cavalo de sol a lua. E foi bastante macho para não
negar ao pai que tinha estado de ‘coisa’com o filho de Dona Amerita, como
também gostava muito dele e por isso ia embora. Não é com exercícios de
dureza que se faz de um menino um homem. Ser macho não é ser homem.
Macho todo animal é, mas homens alguns poucos conseguem ser (...),n7
Picamos sabendo, portanto, que mais dois seres viviam este estranho amor
iih»> primórdios da República.108 E,para tornar o cenário mais confuso, a autora
i|ii< se nomeia de uma mulher macho, diz ter tido uma mãe que vivia a se
qiirixar de sua situação de mulher: ter nascido fêmea, ter vindo à luz mulher
• ia, pois, um ultraje biológico para ela: “Queria ter nascido homem, nem
qiu fosse para ser cega de um olho ou manca de uma perna”.109 Parecia que
vivíamos, então, um período de insatisfação com papéis que eram atribuídos
a • tida gênero, com muitas pessoas querendo ultrapassar as fronteiras, que se
apit >.< ntavam, a esta altura, bastante débeis, entre o masculino e o feminino.
Momento em que o “meio-sexo”, no dizer de Freyre,parecia vir à tona como um
piohlcma c ganhar visibilidade e dizibilidade. Chegando a ser tema de filme:
• m lú.!7, o Diário de Pernambuco anuncia cm suas páginas a propaganda do
lllun intitulado O homem que não gosta de mulheres e Harold Lloyd provocava
giiigalhadas na platéia fazendo “O Maricas”, rapaz tímido, imberbe, de olhos
< oh.it|os para o firmamento azul, que sente o rubor subir às faces ao conversar
iimi uma pequena bonita, o bobalhão incapaz de dirigir gracejos às meninas
qiu passam, teria o condão precioso de provocar uma gargalhada desopilante,
•alui.ii, terapêutica.110
Esta visibilidade crescente de práticas ainda chamadas de sodomíticas vai
ih «peitar a atenção dos médicos, que começam a se preocupar em estudar suas
• iius.is e estabelecer formas de combate. Os médicos tendiam a considerar as
piiilii as ditas de inversão sexual como doença física ou psíquica que carecia
1(1/ I r.l POSA, C. A. Mulher macho sim, senhor!. São Paulo: Cortcz, 1980, p. 49.
1011 Pode se notar a emergência de uma constante suspeita cm torno da amizade masculina e
<•111 torno de gestos de carinho trocados entre homens.
Sobre a relação entre desprestigio da amizade masculina e a condenação ao amor entre
rapazes, ver: ORTEGA, l’rancisco. Amizade e estética da existência em Foucault. Rio de
lanriro: Graal, 1999; Para uma política da amizade. Rio de Janeiro: Rclume Dumará,
2000; l '()(ICAt II .1, Michel. "Dr lamitiC comme mode de vie”. In: /)/7r et écrits /!■', Paris,
< íallnnaid, 1994.
109 I I ITOSA.C. A.()/> Cit .\< 14
llll Vii I >i,lni> dc l’ci uam/mu, \ \'>2'l,14,< I,</<•12/01/192.7, p. 6,
i I, Didrio de 1'nnambmo, |h/tll/|92/, p H, i I
82 nordestino: invenção do “falo”
a) A POLÍTICA DESVIRILIZADA
(...) nos seus lábios rosados/ O néctar puro dos céus/ Mãe protetora dos
povos/ Formosa filha de Deus./Estátua feita de bronze/ Que esbofeteia Luís
xi/ Abraça, oscula Saint-Just;/ A cuja sombra bondosa/ Cresce o lírio e medra
a rosa/ E cujo olhar nos seduz.
(...) Levantemos a essa deusa/ Em nosso peito um altar./ Por sobre nossas
cabeças/ Possa seu trono firmar./ Quando da grimpa dos montes/ A água
pura das fontes/ Raiar o fiat luz -,/Nós, de pé na praça pública,/ Diremos: viva
a República/ Na terra de Santa Cruz!114115
ter se tornado uma velha provecta, ranzinza, tacanha, sem o vigor necessário
para fazer as mudanças de que o país precisava. Senhora quase tão aristocrática
e conservadora quanto uma dama do Império, que sofre, a partir do governo
Epitácio Pessoa, constantes contestações no sentido do seu revigoramento.118119
Este texto de Freyre parece nos sugerir que os militares foram o
marido ideal para a desprotegida República, já que os civis, afeminados, não
conseguiam ter sobre ela a necessária autoridade, para seu governo. Como
mulher, a República trouxera uma tendência à horizontalização das relações
sociais, que não se concretizou na radicalidade de uma inversão da ordem social
pela ação tradicionalista e conservadora de homens como Dcodoro e Floriano.
A imposição da autoridade foi um momento decisivo para a manutenção da
integridade da pátria. Palavra que, embora remeta ao pai, terra do pai, era
pensada, neste momento, também no feminino. Cabia, pois, a um governo
másculo dela se apoderar para dar as diretrizes. Como uma mulher precisava
do tino e da racionalidade do marido para não se perder, a pátria precisava de
um governo que lhe apontasse o caminho do progresso, mas levando em conta
a preservação de constantes de valores que não se podiam perder, sob pena de
se adulterar a própria substância da nação.
Não é mera coincidência que o adultério ou a infidelidade passam a sei
temas que mobilizam uma crescente preocupação. A modernidade parecia
ter tornado a infidelidade a regra dominante no social. O comportamento
de muitos dos antigos empedernidos monarquistas quando do advento da
República parecia demonstrar que a infidelidade, a traição, não só à tradição,
mas às lealdades políticas, tornava-se predominante como comportamento
social. O adultério feminino, que agora vai ganhando visibilidade pública,
deixando paulatinamente de ser uma questão apenas do âmbito do privado,
parece ganhar o sentido de um símbolo do processo mais geral trazido pela
sociedade moderna, ou seja, o descompromisso com o que está estabelecido,
com a norma. A República e a sociedade urbano-industrial que esta trouxera
pareciam ser o campo privilegiado para as infidelidades de todos os matizes,
daí a necessidade da atuação das forças conservadoras, que se contrapusessem
à adulteração dos valores e costumes regionais.1,9
adlilteras e padres: história e moral nu smiedade brasileira. Rio dc Janeiro: Dois Pontos, 1987;
PEDRO, Joana Maria. Mulheres honestas, mulheres faladas. Florianópolis: Ed. da uisc,
1994.
I'il IREYRI< nlberto Orr/rmc/iroçuri.io, p 142. Vct I )’ANI )RF,A, Moema Selma.
I tiadifrio re(des)cobe/la, ('ampin.r E.d da iiniiami', 1992.
■ i l.l.i ■
88 nordestino: invenção do “falo”
Até bem pouco tempo os residentes mais humildes das propriedades agrícolas
recebiam mal os adventícios de outras profissões, no domínio dos engenhos.
Não os respeitavam nem lhes dispensavam a mesma consideração atribuída
àqueles que eram tradicionalmente da classe. Riam-se, zombavam deles,
achando que usurpavam uma função superior aos seus méritos e nascimento,
mesmo que fossem pessoas de origem mais preclara e abastadas de fortuna.1'1
■ . —____
90 nordestino: invenção do “fai.o“
b) A política no feminino
125. FREYRE, Gilberto. Ordem e progresso, p, cxi.l. Ver: BENI IABIB, Seyla; CORNF.l I ,
Drucilla (Orgs.). Feminismo como crítica da modernidade. Rio de Janeiro: Rosa dosTcm|>os,
19K7
126. SETTE, Mário. Op. cit., p. 165.
127. Para Joan Siott as rcluçôc» dc gêncio silo uma das pnmi iias turmas dc maniti sta\ao c
upicmlizado do podei Vct St'() I I , |<ian <>p cit
VAI MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 91
ili i I. tração ou escrevem algum texto que reforça o papel tradicional da mulher
ili i ■ t.u destinada ao lar c de não dever se intrometer no mundo da política,sob
pi u,i dc desorganizar a sua família e o próprio espaço público, já que deixaria
«Itiiidonado o espaço que é seu c que sabe como ninguém administrar para se
lllfiuincter no governo ou na vida pública sem ter o preparo necessário para
|«|o
NAi "A (In hi <l<» muni", / hr/Mi'«A /%tfhimbnio, Rr< ih\ 10/08/1924, p. S, r. I.
Iilrili
92 nordestino: invenção do “falo"
podería existir,já que em todas as sociedades até então existentes era o homem
o chefe da família.130
A reação feminista ao livro de madame Borelly não se fez esperar. Em uma
revista feminista americana aparecem artigos que contestam os pontos de vista
da escritora, esses artigos são discutidos em sessão do Centro das Mulheres
Votantes de 1 llinois. Nesta assembléia cerca de duzentas mulheres assinaram
solicitação ao governo americano para que proibisse a divulgação das idéias
contidas nesse livro, bem como a publicação de uma mensagem de protesto
contra “a atitude de uma mulher que não se sentindo capaz de arcar com as
suas responsabilidades, acaba de confessar a sua fraqueza, numa publicação de
tal ordem”.131
O crescimento do movimento feminista, no pós-guerra, pode ser
aquilatado pelo grau de organização e institucionalização que este adquire,
logo no começo dos anos 20. Em 4 de agosto de 1922 é criado o Conselho
Nacional das Mulheres. Em 1924, o presidente Artur Bernardes recebe
uma representação com 450 assinaturas de mulheres pedindo a inclusão no
Conselho Nacional do Trabalho de uma representante do sexo feminino. A
19 de janeiro de 1923, reúne-se no Rio de Janeiro, o I Congresso da Mulher
Brasileira, organizado pelas senhoras Bertha Lutz, Jeronyma Mesquita, Stella
Guerra Duval,Júlia Lopes de Almeida, Olga de Melo Braga, Valentina Biosoa,
Beatriz Carneiro Baltar e outras. Contava com delegadas estrangeiras como:
Anna de Castro Osório, de Portugal, senhorita Mannus da Holanda, Sra
Lennup e senhorita Babrok, dos Estados Unidos, além da presença da lidei
internacional do movimento Carrie Chapman Catt. Em 1926, o Brasil manda
ao Congresso Aliança Internacional pelo Sufrágio Feminino, que ocorreu
em Paris, uma delegação composta por Júlia Lopes de Almeida, Anna Luíza
Fonteneller P. de Souza, Bertha Lutz, presidente da Federação Brasileira de
Progresso Feminino, e Margarida Lopes de Almeida.132
Ainda quando estudante, em Baylor, Gilberto Freyre teve oportunidade
de ouvir uma conferência de uma líder feminista americana, Ana Shaw, que
defendeu, em quase duas horas, o direito de a mulher votar, já que era um sei
pensante como qualquer homem. Em artigo enviado ao Diário de Pernambuco,
após elogiar o discurso da palestrante, Freyre fala que a pregação do direito
A própria campanha feminista que se agita no mundo não é mais do que uma
manobra socialista.
Substituindo o homem nos pesados misteres da vida industrial, a mulher
adquiriu no Velho Mundo, durante a guerra, certos direitos incontestáveis.
I se elas gritam e pedem o reconhecimento desses mesmos direitos , não há
quem lhe negue a justiça de seus reclamos.1H
■b»-———
111 I RI VRI'., (iilherto "I >a outtii Aiiui1< a . / Htlrin Jr 1'rrnam/mco, Recife, 29/05/1919.
|li I I' RNANI >!• S, A “I )<■ uns c <li <>utm«“,/Rilmx/r/’rm<i»iAi/co,Rc<ife,2R/l2/1919,|> t,
i S
94 nordestino: invenção do “falo"
i > medo dc uma alteração nas relações dc poder entre homens e mulheres é
lllimilcstável. Neste começo de século, que era visto por estes homens das elites
>ln Nordeste, como marcado pela tendência a tudo igualar e horizontalizar, a
...... . do poder pelas mulheres parecia uma ameaça real. Esta seria uma das
• 's mais radicais e explícitas do processo de feminização pelo qual passava
I »>nii <ladc, desde o advento da República. Era a face mais problemática
ilu tlr< línio da vida rural e do modelo de família patriarcal, que esta havia
*l«ii m.ido. A vida urbana trazia como um dos seus maiores males esta vinda
|timi .1 praça pública da mulher a gritar slogans cm defesa de seus direitos de
idmlA.
Para Freyre, outro fator decisivo para o que ele identificou como crise da
Mu lt ilude patriarcal foi a vitória progressiva da cidade sobre o campo. Seja no
|il>um econômico, com o predomínio das atividades industriais e comerciais
tulm .is agrícolas, seja no plano político, com o predomínio dos grupos
mluiims sobre os grupos rurais no preenchimento dos cargos que compunham
4 him macia estatal, seja em nível de valores e dc costumes. A cidade passa a
illlm modas, a difundir idéias, a alterar a própria sensibilidade social, cada vez
Htals volitada para o novo, para o moderno, para o artificial, para o não familiar.
A , idade é o lugar do estranho, do diferente, do não rotineiro, da mudança, do
....... bate C do distanciamento das manifestações tradicionais de cultura. E o
flpaçn do desenraizamento, da desterritorialização, da falta de apego a terra,
ilu Iiiii do idílio com a natureza. Espaço da confusão de cores, dc gentes, de
, li< mis.de muito ruído.118
"I Itn «u mil...”, Diário de Pernambuco, Recife, 30/01/1927, p. .3, c. 4; N/a. “Casamento
obi igatório", Diário de Pernambuco, Recife, 16/02/1911, p. 1, c. 3.
| Ui I RF.YRE, Gilberto. Ordem eprogresso, pp. XLvm c ss c 4. Sobre a relação entre cidade,
modernização, modernidade, mudança dc valores c costumes, ver: SEVCENKO, Nicolau.
Qrjeu extático na metrópole-, MONARC1 IA, Carlos. /I reinvenfão da cidade c da multidão.
Sao Paulo: Corte/., Autores Associados, 1989; ITANDREA, Moema Selma, zf cidade
poótiCU de Joaquim Cardoso. Joilo Pessoa, 1998; VIRII.IO, Paul. O espafo crítico. São Paulo:
I diloia <4, 1991; lt I- / I .NI >1'., A momo Paulo (/ )es)encantos modernos: histórias da cidade
do Recife na década de vinte Reilb I d da uiri', 1998, BRESCIANI, Maria Stella
Mailitr. Imagens da cidade uinlus \i\i \\ Silo Paulo Marco Zero/ANimn/i Art.sr, 1989;
96 nordestino: invenção do “falo"
ARAÚJO, Rosa Maria Barboza./Í vocação do prazer: a cidade e a família no Rio deJaneim
republicano. Rio de Janeiro: Rocco, 1993; LEMENHE, Maria Auxiliadora. As razòes de
uma cidade. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1991; NEVES, Frederico de Castro
A multidão e a história. Rio de Janeiro: Relume I lumai.i, 2(MM); Cl IAI .1 IOIJB, Sidiiey
Cidade febril. São Paulo: Companhia das Letras, 1996; PONTE, Sebastião R bbrtaleia
fíelle Epoc/ue. Fortaleza tmr/Multigial, 1993; III >1.1 E, Willi 1'ido^nomui da metrópole
moderna. Sao Paulo i trutl*, 199-1
139, UI-1 I .<), Julto. Memónas de um senhor de engenho, p. IH7
IIIlHVAI MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 97
K.___ _________
Rlmlc lanciro |osc (llymplo, 19 1/
98 nordestino: invenção do“fai.<>"
•• miram na frente dos fordes para morrer. “Até a raposa como a onça está se
•' tl'.iiido no sertão.”O mundo de hoje é “para gente moldada à moderna. Os
hiiiuens vestem-se imitando as mulheres. As mulheres estão se despindo aos
I""" ■ >até os cabelos”, mundo falso, um mundo de opereta e de cinema.1*
'’6
III
(> sertão c o matuto estavam virando lenda, influenciados pelo mundo
mbaiui, pelos costumes da cidade, começavam a ser curiosidades que apareciam
livros de folcloristas. O mesmo se podia dizer dos engenhos, que fora alguns
|" ilt nccntes a senhores mais caturras, que resistiram à tentação da cidade e
•In iinína, viviam apenas nas páginas literárias ou de memorialistas. Poucos
*titm ainda como o Queimadas, cuja casa tinha alguma coisa de agrestemente
l'i • ileiro.“Logo que ela sai branquinha dentre os coqueiros,com as portas e as
jUtn l.is todas de pau pintadas de azul, a gente sente, morando ali, um senhor de
fui" nho que parou cm senhor de engenho: não evoluiu em usineiro”:147
I lá nesta casa um telefone útil - mas nem rádio, nem gramofone, nem
t .lixa de música além do telefone. O senhor de engenho de Queimadas se
contenta com um papagaio e uma arara, o dia inteiro empoleirados perto
da rede, num pátio de trepadeiras todas em flor (...). Eu, desde que ouvi o
primeiro rádio, estranho entre nós sua vitória. Entre nós que melhor rádio e
gramofone temos para nos maravilhar com a reprodução da voz humana que
esses nossos curiosíssimos irmãos que são os papagaios (...) Em Queimadas
iv. árvores são camaradas umas das outras. Tanto que a gente só as ve cm
gnipos. Conversando, eu acho.148
I li. lll.l.I.O, Júlio. d morte do sertão. Podemos identificar aqui um dos traços centrais da
modernidade na visão de Harvey, a compressão acentuada do espaço e do tempo. Ver
IIARVEY, David, Op. cit. Identifica-se também uma crise crescente das noções de
autenticidade c de essência, tudo se torna superficial c inautcntico. Ver: LIPOVETSKY,
< • illes. O império do efêmero', BOLLE, Willi. Fisiognomia da metrópole moderna.
17 I REYRE, Gilberto. “Queimada»", Diãrio de Pernambuco, Recife, 11/12/1926, p. 3, c. 2.
Sobre o discurso do lolclore e a invenção da cultura popular na sociedade burguesa ver:
< T.R I EAII, Mirbel de. "A beleza do morto''. In: d cultura no plural. Campinas: Papirus,
rm.pp. ss x7.
III IREYRE, (■liberto, “Qpciniada ',/>»,/■■■./. /'■ tmimbui», !<«•« de, 11/12/1*726, p. I,c,2.
100 nordestino: invenção do “falo"
Mas Freyre, que se arvora como aquele que estabelece regras para a produção
de uma arte condizente com o característico da vida e da natureza brasileira, e
do Nordeste, particularmente, diz que mesmo a nossa natureza tinha algo de
diferente da europeia, ela era ora selvagem, ora ruidosa, ora desolada, ora macia
Isso exigiría que os pintores dominassem “o grosso da paisagem, o grosso da
149. FREYRE, Gilberto. M83"(Artigo Numerado), Diiiriode R< < ite, 15/11/1924,
o. 1, c. 5 c "Espínio <• iiiki < .iih» ', /)itlno Ji’ Prrnani/wcu, R< * il<, 21/02/1926, |» I, * 5.
150 CASC'|l|)(),( iiiihiiti I hf/iinJ" u ntftio Niihil T tliiohi i i mn, I9H4, j» 29
OUIlVAI MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 101
É este passado colonial que Mário Sette descobre, ainda menino, quando
conhece Olinda e que sente como se fosse um “outro mundo”diante da cidade
em processo de modernização que era o Recife. Seria este “outro mundo” que
inspiraria toda a sua obra literária:
Diz um ilustre engenheiro que eu sou a favor dum Recife sujo, fedendo a toda
a espécie de imundície sem os benefícios da estética moderna e da higiene.
Eu sou de fato pela conservação de muita coisa velha do Recife: das velhas
igrejas, por exemplo. E de alguns palacetes como o da Sociedade e outras que
se avistam de qualquer bonde de Dois Irmãos ou de Madalena. Devo confessai
que prefiro o sujo da velhice a tanta tinta fresca. Mas reconheço a necessidade
de construir e reconstruir. E o que eu quero, sobretudo, é um Recife que
renove sem perder o caráter, numa economia inteligente e honesta dos valores
próprios e dos motivos tradicionais.
"(...) O zigue-zague das ruas coisa alguma tem de anti-higiênico: que o diga
.1 autoridade sem igual do Sr. Saturnino de Brito. Na Paraíba são os estetas
de fraque que desejam ruas em linha reta: o grande sábio quer conservar o
pitoresco local em zigue-zague.156
—— ■■ ■ -
I Ih IR EYRE, Gilberto, “(>8”(Artigoi Nume nulos), Dúlriode Pernambuco, Recife, 03/08/1924,
p I, cc. 2, 3 e 4 1’arn uma t útu a do liigicuismo, ver também: EREYRE, Gilberto. “Os
dlsi ursos «Io Sr. Amaury de Medeiros", / 9,1» r« </r 1'ermimbmo, Recife, 02/09/1924, p. 3, c.
I. I
1V I RI’ YRE,Gilberto “9S"(Altlgos Numr i.ulos), / >hlnn,le Primimbmo, Re« ile, 08/02/1925,
|i l,l’.5.
104 nordestino: invenção do “falo"
uma casa iluminada por igual não predispõe a família para aqueles serões <■
aquele aconchego de outrora, com a leitura de um romance de Alencar ou do
Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro depois do jantar, junto ao candeeiro
grande e gregário. De modo que se podia generalizar: a luz de azeite ou
petróleo atraía e aconchegava pelo estranho prestígio de sua debilidade, ao
contrário da luz elétrica, que dispersava e desunia.161
A melindrosa não tem ainda vinte anos: é sóbria no comer, porque aspira ao
Tatisse-maigre’. Não anda, pula. Dir-se-ia uma figurinha alada, transposta das
i enas de Prudhon. Ama o cinema e o futebol, para que toda ela vive, num só
c único pensamento.
<'obre-se com os mais caros vestidos e adora joias.
A melindrosa não sabe fazer um prato, é incapaz dc arranjar uma omelete, e
Ictn horror ao choro dos recém-nascidos.
Conhece toda a escola do flirt e dança admiravelmente bem o foxtrote,
uikewalk c o tango.164
Mulheres que se pareciam cada vez mais com a própria cidade, a linha
ii Ia triunfando, a uniformidade em todas as coisas, a mesma linguagem, até
paici endo ter a mesma altura c a mesma psicologia. A cidade e a mulher
lt./ III I I O, Julio Mrnirinm </<■ um M-rth.-t ,/, engenho, |> XIV c l,'REYRI'., Gilberto. Ordem c
f>n>grei>o, li. CXXXIX.
Iflll I REYRE.t ÍiIIh iIii, Ordem e (’>•<)■> <■«<•, |i H(>
lllcill, |> (XI
108 nordestino: invenção do “falo”
170. FREYRE, Gilberto. Ordem e progresso,p. 187. Ver RAGO.Margareth. Do caéare ao/ar, Oi
prazeres da noite.
171. FREYRE, Gilberto. "Reparos - a moda e as mulatas”, Diário de Pernambuco, Recife,
29/01/1925, p. 1, c. 4 e 5. Toma-se mentalidade aqui como aqueles comportamentos,
valores, costumes, hábitos, idéias que no cotidiano representam o automático, o irrefletido,
o que escapa aos sujeitos particulares da história, porque revelador do conteúdo impessoal
de seu pensamento, aquilo já naturalizado, vindo de temporalidades as mais diversas.
Para a noção de mentalidade e para uma história das mentalidades, ver: VOVF.l .1 I .
Michel. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1987; I.E GOFF, Jacqucs A .
mentalidades: uma história ambígua. In: I.E GOFF, Jacqucs; NORA, Picrre. História
novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
172. N/a. "Jornal do Rei ifc”, Diário de Pernambuco, Rccile, 07/08/1914, p 1, < 5. O soeiólogo
Max Wi bci loi um dos pioneiros no estudo da emcrgfiu ia deste i .pinto do < apilalisino"
que Iiiipln a pensai < oni 1 iiialt.nl que o i apilalisino n.lo e só um modo d< prodllçáo d<‘
llllllVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 109
182. ARAÚJO, J. A. Correia de. Of>. cit.\ SERVA, Mário Pinto. “Flagelo cvitávcl", Didrio <!<•
Pernambuco, Recife, 21/07/1928, |>. 3, c. 5.
183. ARAÚJO, J. A. Correia de. O/>. <u
184. N/a. “Contra o alcoolismo uma lampanha clica/.", Diilriu </r Pernambuco, Rciilr,
13/08/1914, p. 3, c I Vci CASCUDO, latia da CAmaia /'rr/tlt/f* ,/,< Rio d<
111'KVAI. MUNIZ DF. ALBUQUERQUE JÚNIOR 113
O álcool seria irmão gcmco do jogo, outra epidemia que vinha grassando
ii" inundo urbano c que também c tema de uma intensa campanha de
l.mibatc, nos anos 20, encabeçada, neste caso, pelo próprio Estado. Os jogos
HN visados, além do carteado, eram o jogo do bicho e o jogo de boxe. Além de
< Murem quase sempre associados a bebedeiras, os jogos provocavam constantes
ili«entendimentos entre os jogadores, gerando “confusões, bofetadas, cacetadas,
ftrges, terminando com feridos e hospitalizados”. Embora fosse uma prática
......... ntemente masculina, espantava o gosto crescente das mulheres pelo jogo.
Um articulista do Diário chega a afirmar que “a mulher, desde a mãe Eva,
M inprc teve uma predileção pelo jogo, pois esta jogou sua felicidade, servindo-
•i para isso de uma sazonada, flamejante c apetitosa maçã”. A mulher amaria
n |ugo muito mais do que o homem, só não o praticando com mais frequência
pi lo "medo de perder, sentimento este inato em toda mulher e a falta de
nu 10$ para exercitar suas aptidões como jogadora, mas uma vez encontrando
Huidiçõcs e companheiras nada há que a divirta mais ou a prenda”.185
Entre os flagclos que atacavam o organismo social outro que preocupava,
mbi «maneira, era o crescimento da criminalidade, fruto da vagabundagem,
l|tic grassava, para maior preocupação das autoridades, entre os menores de
bladc. O declínio da vida de família, com o enfraquecimento dos laços de
li «ponsabilidade que ligavam pais e filhos, dava origem a este fenômeno novo
i pi< ocupante, o do menor de rua:
|.incito: IAA, 1968; ROSA, Ana Lúcia Gonçalves. Toma-se um gole, constrói-se uma
identidade, Campina Grande, 1999 (Texto mimeografado).
I M'< Vi i Didrio de Pernambuco, 05, 09, 11, 1S/09/1924; N/a. “O jogo - um sarilho na casa
de |.i <• Menino", Diilit" ./<■ Peimimbum, Recife, 13/09/1914, p. 3, c. 1; N/a. “A mulher
<' O jogo", />idrio de Pemamhui", Rei ile, 17/05/1925, p. 7, c. 3. Para a relação entre jogo
i sensibilidade moderna, o jogo iniiiii um componente da sociedade de mercado e do
indivíduo, < onio atividade <|u< di Mgtada > loma profana ver: CALOIS, Roger. Os fogos
e m homem Lisboa < olovla, 1990
114 nordestino: invenção do “falo”
I '» I HEI .1,0, Júlio. Mfinóriaf de um tenhor «/<• engenho, p. 172; FREYRE, Gilberto. Ordem e
progrerto, p. cxi.v.
|9‘> MON I El RO, CoM.i "Pautou»", / hilHn de /'<•» namhuro, Recife, 04/01/1925, p. 3, c. 5.
|'úi Sobre a cxclincAo como uma pnttlia ln»tItiilnte da lociecladc moderna <• burguesa, ver:
EOIICAUI I, Michel IIxtinm d<< Silo Paulo Peispntiva, 1978; Vigiar e punir.
118 nordestino: invenção do “falo"
Petrópolis: Vozes, 1975; GOI'1'MAN, Krving. Manicômios, f>ris6es, conventos. -I. cd S.iu
Paulo: Perspectiva, 1992; PI I BAR P, Pctcr Pal. / >■/ clausura dofora ao fura da clausura San
Paulo: Brasilieiise, 1989.
197. BP.I .1.(), Júlio. Mentoriai </, um senhos </, engenho, p 171, N/a ' Pipos dc rua’’, l>iilrio de
R< < ilc, 22/IW/I926, p i,< ■!
ItUHVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 119
dou corpo e forma a essa tarrasca como se ela fosse uma espécie de Imperatriz
Catarina, conquistadora insaciável de terras c deportadora terrível dos mujiks
coronéis, senhores de engenho. Considero-a na minha fantasia como uma
pessoa viva, com movimento próprio na trama social.
(...) na minha fantasia — uma grande dama muito gorda c ventruda, com
nina imensa saia de cauda e brocados, um formidável chapéu cano, muito
desembaraçada e impertinente, orgulhosa e autoritária.”8
200. BELLO, Júlio. Memirias de um senhor de engenho, p. 228. Ver i .unhem EREYRE.C >i1beiii>
Nordeste.
201. EREYRE, (lilbcrio. Ordem eprogresso, p. 157.
202. IUciii, p. IHH.
HUHVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 121
1,1 I I RI'.YRE, Gilberto. Ordem efnofteiw,p. xt.viu, i.m e i.xiii; BEI.l.O,Júlio, Memórias de
um senhos de engenho Vei I >T MAR I INI, Zelia et al Velhos mestres das novas escolas. São
Paulo: < ehii/ini i', 1984; LOPES, Eliaur Marta Versf>ectivas históricas da educarão. São
Paulo: Atú a, 1986; N At >1 I , |»it|>,< / slussuila >■»«»iedade na Primeira Hrjnibliea São Paulo
122 nordestino: invenção do “falo"
205. FREYRE, Gilberto. Ordem eprogresso, p. cxxxv e 332. Ver: MICEI.I, Sérgio. Op ■ " ,
NAXARA, Márcia. Estrangeiro em sua própria terra. São Paulo: Annablume, 1998
206. Sobre o trabalho como elemento central da identidade masculina na sociedade < apitali ii
do Ocidente, ver: BADINTER, Elizabeth. XY: sobre a identidade masculina. Rio d»
Janeiro: Nova Fronteira, 1993; NO1.ASCO, Sócrates. O zzzz/o da masculinidade. Rio >l>
Janeiro: Rocco, 1993.
207. I- RI‘A RI', (zilberto.Ordem epiigiesso, pp 131,332 c 131.
IHIIIVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 123
211. N/n. "lliiin |>io|hv,i,i , uriona", I >bliin ilf l‘rnnim/'u<i>, Hc< ilc, 17/12/1'126, p t,< 2
212 SI I I T , Miliio f)f> itt, p '>6
hlHIVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 125
l) A INVENÇÃO DO PATRIARCALISMO
213. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 9. ed. Rio de Janeiro: José Olympiu,
1976; PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 17. ed. São Paulo: Brasiliense,
1981; CÂNDIDO, Antonio.“7l>e Brazilianfamily”. In: SMITH.T. L.; MARCHAN T, A
(Ed.). Brazil; portrait ofhalfa continent. New York:The Dryden Press, 1951; S AM AR A,
Eni de Mesquita. A família brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983; COSTA, Iraci I )<l
Nero. Vila Rica:população {1719-1826). São Paulo: iper/usp, 1979; CORRÊA, Mari/.i
“Repensando a família patriarcal brasileira”. In: ALMEIDA, M. S. K. de. Colcha </<■
retalhos: estudos sobre a família no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982.
214. Acompanho aqui o resumo do debate feito por VAINFAS, Ronaldo. Trópicos dospecadm
Rio de Janeiro: Campus, 1989, pp. 107,108 e 109. Ver: ALGRANT1, Leila Mezan. Op
cit.-, DEL PR1ORE, Mary. Ao sul do corpo-, SAMARA, Eni de Mesquita. //< mulheirt,
o poder, a família. São Paulo: Marco Zero/sp.csp, 1989; MO I I', Maria Lúcia. Op ,u,
SILVA, Maria Bcrtriz Nizza; BRIISCIIINI, Cristina (Eds ). Op cit. I FITE, Minam
Moreira et al. A mulhei nuRiodeJaneiiono\tlculo \i\ Sao Paulo Fundação Cailos Chaga»,
1982
IIUHVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 127
IP» VAINI1 AS, Ronaldo. Op. cit., pp. 109, 110 c 111 c PARKER, Richard. Corpos, prazeres e
paixões.
lll. IHOMPSON, Edward P Costumes em comum; Senhores e caçadores. Rio dc Janeiro:
Paz. e 'lcrra, 1987. Para a rclaçflo entre palavras e coisas, entre o discurso c a empiria,
entre linguagem e sublunar, entre prática discursiva e não discursiva, ver: FOUCAULT,
Michel. As palavras e as coisas Sao Paulo: Martins Fontes, 1985; O homem e o discurso.
Rio dc Janeiro: lempo Biasilciro, 1971; A an/ueoloyia do saber. Rio dc Janeiro: Forense
Universitária, 1995; A ordem d" disiussu, < |',R I EAU, Michel dc. A escrita da história',
WIIIIE, llayden liispuos do dissuissi São Paulo t tmsi’, 1994; BARTIIES, Roland.
1‘taf'mentos de lim illsimsi’ a>>i “ I0o di laiirliu l i.nu isco Alves, 1991.
128 nordestino: invenção do “falo1
217. 1‘ai.i as noções dc miI»ci c di« iiimvii, vi i I-< )l H Al M I, Mii In I I miiutolwhi >i<>
w/A’/, MA( I IA I )( ), RiiIh i tu l 'h')h hi
IHIHVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 129
Ji m ui, cada vez mais, se preocupar com a própria historicidade dos conceitos
i|in‘ niilizam e que criticam, quase sempre a partir de uma perspectiva realista
nu que o conceito é criticado porque não dá conta da realidade. Mas eu
MHguntaria: Qual conceito dá conta dc toda a realidade? Todo conceito é
iiiii.i elaboração interessada da realidade, e assim como o conceito de família
|iui i.ucal de Freyre é ideológico, as críticas feitas a ele também o são.218
<) conceito dc patriarcalismo, no meu entender, emerge a partir de uma
|t iii,.io a esse processo que o próprio Freyre e o que chamei até agora de
lllm iiiso tradicionalista vinham identificando como feminizaçâo da sociedade,
lonccito de patriarcalismo em Freyre não pretende apenas descrever um
..... Ido de família ou a forma de relação entre os gêneros, ele tem a pretensão
li <li screver toda uma ordem social, da qual o poder patriarcal e a família
Miuitii os elementos nucleares. Este conceito é pensado a partir do contraste
qiii l icyrc observa entre a ordem social prevalecente até o final do século xix e
•iqm l.i que começava a se tornar dominante. Da ordem patriarcal fariam parte
..... . as relações escravistas dc produção, a estrutura monárquica de governo,
ii picdomínio dos valores rurais e católicos, seja em termos de sociabilidade,
H|ii < in termos de sensibilidade. O patriarcalismo incluiría, inclusive, uma
Ikiiii.i hierárquica de relacionamento social entre as etnias, entre os grupos
«i<< hiis c entre os gêneros, “adoçados”, como gostava de dizer — a metáfora é
n 11 l.idora do lugar de seu discurso - por relações paternalistas.
Por isso acreditamos que Freyre descrevia a sociedade como patriarcalista
• paitir do contraste que enxergava com a nova ordem social caracterizada
|iil,u. relações livres e progressivamente assalariadas de trabalho, pela forma
irpuhlicana e “democrática”dc organização, sem deixar de ser autoritária, pelas
ii ii.Fncias que considerava igualitaristas ou horizontalizadoras de relação
•tllrc i lasses, etnias e gêneros, pelo declínio dos valores rurais e católicos,
<l.i lormas de sociabilidade c sensibilidade identificadas com o campo,
•uh■ niiúdas por formas dc sociabilidade c sensibilidade mais em dia com o
unindo moderno, urbano, cosmopolita e o consequente declínio das formas
|i.ium.ilistas c pessoalizadas dc relacionamento substituídas pelo que chamava
Imiii.r. individualistas, particularistas e utilitárias dc subjetividades.
1|N Sobre a ncr essidade dc iiiii.i atitude nouiinalista por parte dos historiadores, ver: VAZ,
Paulo l/w /vnuimriitn iii/.ou. Rio de ...... no linago, 1992; I )EI .ElJZE, Gillcs. Fouaui/t.
Silo Paulo B1.11I1. iia.PIKH.l EHTI Al 1. M>. I« 1.1. /...o/.o/.(AoMo./;(;REENBI,Ari’,
Stcplicti. /'«iirrioii . .................. '..Io Paulo iiiiim', 1996; CIIAR I IER, Rogei O/>. o'/.;
RORI Y, Ricliaiil <)f> ,11
130 nordestino: invenção do “falo"
Força é tratá-los como criança, melhorando sua condição de vida para que
possa esquecer com o benefício, a utopia do sonho. Como uma criança ou
mesmo como um animal de maior estima porque, sem nenhum menosprezo
por ele, é necessário convir que entre nós é por ora ainda o mais infeliz e <>
mais desprezado animal da criação.230
Veja como as metáforas familiares operam para descrever toda uma forma
de relacionamento entre os indivíduos e os estratos sociais distintos: o povo <■
a criança que precisa da autoridade do pai bondoso para não se perder, animal
doméstico que precisa comer as sobras que caem do prato do patrão e ser bem
tratado para esquecer de sonhar a mudança de sua situação. E esta forma de vei
a sociedade que o patriarcalismo descreve, este é uma metáfora que se relaciona
com o universo masculino, com aquilo que essa sociedade considera o papel
il>> . homens: comandar, proteger, dominar, o que estava sendo ameaçado até
|m l.i classe até então passiva, o povo.
(3 patriarcalismo, como conceito, nasce da visão de homens pertencentes
ii um grupo social que se sente emasculado, perdendo potência, homens
liagilizados, amolecidos, desfibrados, senis, depauperados, senão fisicamente,
m as do ponto de vista de seu poder e status, homens em declínio, ameaçados
|tur novos grupos sociais que vêm dividir seu espaço, encurtá-lo, modificá-
lo I lomens do Norte, em crise econômica e em declínio político, homens
se agarram às tradições que descrevem como patriarcais até porque foram
H» li adições de uma sociedade onde seus pais ou avós dominaram e foram
poderosos. Conceito que emerge não apenas para descrever o passado mas para
ap.n dc forma reativa em relação às várias mutações que se davam no presente.
( <>mo resposta a uma sociedade que se efeminava, era apresentado outro
UKidclo, aquele dos patriarcas, que se devia resgatar cm seus valores positivos.
N.in importa tanto que esse patriarcalismo possa não ter existido no sertão,
fumo afirma Djacir Menezes, o que importa é que essa descrição do passado
(Io Nordeste e do Brasil se impregnou de tal forma no imaginário nacional que
r pieciso entender como esse processo se deu. O discurso de Freyre funcionou
pmquc foi feito dentro de uma dada conjuntura que o requisitava, é isto que
H nho tentando mostrar.231
Se o presente significa a concentração da propriedade da terra, a
Industrialização do campo, o patriarcalismo é a época em que “os senhores de
engenho sabiam ser donos de terras”. Eles a amavam como uma amante, não a
(•«respeitavam. Se agora era a época do declínio social de muitas famílias, da
lU Mcntc indistinção entre classes, o patriarcado era a época da distinção. Se
iijhh.iera o momento do encurtamento dos horizontes para muitos indivíduos
" lidos do meio rural, o patriarcado era o mundo largo, a mesa farta, os homens
«lu lios em seu poder, com terras que eram verdadeiros reinos. Se a vida agora
• oi marcada pela pressa, pela dispersão dos entes queridos, o patriarcado era a
fpm a d<> tempo lento, do aconchego afetivo. Sc agora parecia inaugurar-se um
h mpo da mulher, o patriarcado era o tempo dos homens.232
MENEZES, Djacir. O outro Nordeste. 2. ed. Rio dc Janeiro: Artenova, 1970. Para a noção
de imaginário c para uma história do imaginário, ver: CASTORIAD1S, Cornclius. O/>.
o/.; d crúifâo histórica. Porto Alegre Arte c Ofício Ed., 1992; DELEMEU.Jcan. História
</» wir</o no Ocidente Silo Paulo < ompanhia das I .etras, 1989; SOUZA, Laura dc MelLo
r () diabo e a l'ri m dr Santo < àm Sa<i Paulo: I ompanhia das Letras, 1986.
I REYRE,( ii II ui to "8 <"( Aillgos Ni mu lados), / de Pernambuco, Recite, 1 S/l 1/1924,
p l.c.S.
136 nordestino: invenção do “falo"
I N/u "Contia o ll.igclo iliia «o 1'iulilimil <lu Norilrilr nu Cíiinurii Frilrriir', l>iihin
Rrc Uc, 15/11/1*110, |i ‘
138 nordestino: INVENÇÃO DO“tAHF
N/a "t entro Rcgionallita <lo Nunl> n ", / </«• l'r>nambuto, Recife,28/04/1925, p. 3,c.
4.
142 nordestino: invenção do “i-Aiir
9. N/a. “Regionalismo e nacionalismo’*, Didrio </<• Pernambuco, Re< ilc, 29/08/1924, |> 1, r *»,
N/a.“Centro Regionalista", Didiio </<■ /’cinu„»/>w«, Rer ilc, 07/05/1924, |>. I,c 5.
10. I Rf.YRI'., Gilberto. “Açiio regionalista no Nordeste", Didno </< /’<•»nambino, Rerile,
07/02/1926, p. 3,c.4.
|||I|IVAI MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 143
paia a nova edificação, por mais atual ou moderna que ela seja nos seus fins
c propósitos.
Note-se, por exemplo, a influencia do Rio sobre a cozinha regional no
Nordeste. E melancólica.
()s usineiros e os negociantes de algodão aprendem a comer no Rio ou na
Europa coisas de nomes franceses e voltam com vergonha de comer angu e
manauê e tapioca."
||)< igicas c passivas do país.* 12 Era preciso clarificar cada vez mais o sentido
iln n gionalismo nordestino:
I RICYRI'.. < ii<> "< • Nouli < |oi.<ii'.i i ", I >i<ino </<• 1'ernanibuco, Recife, 26/03/1926,
p 3, cc. 4 r S.
Iili in “SAo l’utll<> ncpai illlnLi t I h,l> ia J> / • x,ph/*í/i <», Rc« ilc, 21/10/1926, p 3, <. 5.
144 nordestino: invenção do“fai.(i"
os intuitos para iludir melhor. Parecem que não repararam ainda, os t.m
senhores, terem estes movimentos reacionários, em todos os tempos e eu)
todos os meios, as forças inteligentes mais representativas. E o que se dá com
a presente campanha nordestina, posto que em suas hostes não se achem
definitivamente organizadas, porque em período inicial. Tão em início r.ia
que a sua irradiação se faz ainda por movimentos concêntricos, partindo du*
colunas autorizadas deste severo órgão em artigos e editoriais, ou formado»
pelos mais reputados e realmente ilustres escritores.13
13. VASCONCELOS, Joio. “Pelo irgionulismo", Ihilrin ili- Pirnomhuiu, l<<« dr,()7/l1/192S, p
I
14. N/u "0 I .ivro do Noidcar", Hiihio l’<'niom/>uco, Rr< dr, 19/01/1926, |> I, < 2.
IIHMVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 145
/< Vaqueiro era capaz de inúmeras proezas, que ela desvalorizava por
i miviver com elas quotidianamente, e sem recorrer aos truques do cinema
iiiiici icano”:
(• novo diário que se apresentou com feição material toda nova fez sua
profissão de fé dizendo-se ‘consagrado aos interesses legítimos de uma vasta
trgião de nossa querida pátria, região escaldada de sol, em que brasileiros
nHrcm periodicamente, a implacável hostilidade da natureza, ainda de todo
n.io dominada pela inteligência e pelo esforço do homem.
'Nordeste propugna o levantamento moral, social, político, econômico,
Intelectual deste trecho importantíssimo de nosso país, a que somente tem
l.iltado, por parte dos governos, auxílio eficaz, inspirado na compreensão
nítida da necessidade humanitária e imperiosa de assegurar às nossas terras
admiráveis ‘o elemento que, nos anos normais, faz a sua surpreendente
f futilidade’.20
iiiii.i fisionomia para seus habitantes, além de organizarem o que seria uma
Era do programa um almoço regional ao distinto urbanista que ora nos visita
e o ponto escolhido para esse ágape foi o engenho Monjope, uma das m.iis
antigas propriedades agrícolas de Pernambuco e cuja casa-grande - palaccii
que mercc da Providência ainda conserva um estilo puramente colonial loi <1
luxuoso solar do barão de Vera Cruz, autêntico Carneiro da Cunha, doutor dr
borla e capelo, político de prestígio (...).
22. N/a.“Centro Regionalista do Nordeste", Diário de Pernanduto, Rc< ifc, 11/05/1924, p. S,< 2
23. EREY RE, Gilberto. “Urbanista Altred Agache”, /Hário </<■ Prrnum/imo, Rei ife,06/09/1927,
p. 1, c. 3; N/a. "Centro Regionalista A instituiçAo da 'Semana da Arvoie”, Diárm ,/.
Pernarnhueo, Recile, 17/08/1924, p. I, i <>, N/a. "Exposição regional de pintura", />ián" <!>•
Prmiind’n<o, Rei ite, 2(1/10/1926, p 4, i 7
|*VAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 149
'1 I REYRl'.,(>illiriln "I lilhiuv i.i Allii <1 Iic", /íúlriodt Pernambuco, Recife,06/09/1927,
p l,< 1
J’i l S "( oiiliio icRiiiiuir , / L /*, * .... . Rei lie, 14/02/1926, p. K, <. 3.
150 nordestino: invenção do “faio"
26. N/a.“i Congresso Regionalista do Nonlesic, Didrio de l'ei Rc< ilc, 11/01/1926,1»
I.» I
lllmVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 151
O Sr. Gilberto Freyre pediu a palavra para protestar contra o recente decreto
do poder Executivo que vem ferir tão dc perto a economia e dignidade do
Nordeste:
'Salve-se ao menos nossa mocidade da pecha de passivos perante ditaduras
< aricaturais; salve-se ao menos nossa inteligência. A medida de exceção
que aquele ucasse representa não viria somente atingir, uma vez posta em
prática, os interesses particulares dos açucareiros. A medida, nas suas últimas
i onscqucncias, viria a atingir todos os nordestinos.
Tanta refração de personalidade tem o Nordeste sofrido nestas três últimas
presidências que c tempo dc um lampejo, ao menos, dc reação viril. Não
devemos continuar moles províncias lacaias. Não devemos continuar
nessa política dc plásticas contcmporizaçõcs com os excessos do governo
< entrai - política que nos vai reduzindo a uma tão triste caricatura do que
fomos’.27
O urbanismo depaupera, exaure, desola, extingue a nacionalidade brasileira.
A defesa dos sertões não é só uma necessidade étnico-social, como uma
exigência irrecusável ao desenvolvimento econômico do país.28
lii)’ <i cs que eram definidos social e culturalmente para homens e mulheres.
I i nordestino em seu nascedouro já será uma figura reacionária em relação
,i qualquer mudança que pudesse ocorrer nas identidades c nos papéis
qm riam definidos para os gêneros. O nordestino será inventado como
n macho por excelência, a encarnação do falo, para se contrapor a este
29. A masculinidade e a feminilidade são pensadas neste trabalho como construções bistóih st
de lugares de sujeito, de identidades e de papéis que são apreendidos pelos indivíduo» 1 ni
seu processo de socialização. Ver: BARRANCOS, Dora (Org.). /lutaria ygànrm BueiiiM
Aires: Centro Editor dc Amcrica I .atina, 1993. Paia a rclaçao entre masi ulinidade c podi i,
ver: BORD1EU, Picrre.//r/omimtpto mauulina. Rio dc Janeiro: Bcrtrantl Brasil, 1999.
30. Sobre formação discursiva natutahstu c lotmaçao discursiva nacional popular, vetl
Al III JQJ II' RQI IE |R . Ihnvul Muniz dc. .7 invrni<io </» Nanlritr e <»/<'>
' M MlINIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 153
33. Ver: GOBINEAU, Arthur de. Essai sur l'inegalité des races humaines. Paris: Gallimai.l
Pleiade, 1983 (1 ed.: 1853); LOMBROSO, Cesare. l.'uomo deliquente. Roma: s/e, I87M
AGASS1Z, Louis; AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil {1855-1856). B>ln
I lorizonte: Itatiaia; São Paulo: edusp, 1976; LE BONN, Gustave. Lês loispsychologiqurs
1'evolucion dês peuples. Paris: s/e, 1902; SPENCER, Hebert. Principies ofbiology. I .omln i
W. Norgarte, 1866; DARWIN, Charles. A origem das espécies. São Paulo: Hemus, |9(i|
(1 ed.: 1859); TAINE, Hippolyte. llistoire de la litterature anglaise. Paris: s/e, 19? h
HAECKEL, Ernesto. llistoire de la création dês êtres organisés d'aprês lês lois naturelBi
Paris: C. Reiwald, 1884; CUNHA, Euclides da. Os sertões. São Paulo: Cultrix, 1973 (I nl.l
1902); RODRIGUES, Nina. As rafas humanas e a responsabilidade penal no Brasil. Salvadoi,
Progresso, 1957 (1 ed.: 1894); ROMERO, Silvio. O evolucionismo e o positivismo nu Biasll.
Rio de Janeiro: Livraria Clássica dc Alvares e C., 1895; O Brasil social. Rio dc |am ihi
Tipografia do Jornal do Comeu io, 1907; VIANNA, Oliveira PopulafOei meridionais d«
jfpHVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 155
II l't NNA, Bclis.iri<> "í up.riil.i ", I >hlH" ./.■ I‘: iii,un/>n<o, Rccifc, 05/09/1926, p. .3, c. 4. Ver:
I .Al 1'1 >N, I i.iiii ix lle>rn<i<i v . «ivo».» Madlld Allunza Editorial, 1988 (1 cd.: 1869).
1*1 Idrm
156 nordestino: invenção do"mhf
36. Foucault elabora a noção de biopcxler paia entender esta nova forma dc exercício do podri
Ver: 1'OIK AUI.I, Michel. Microjíiica do poder^ Rcxumo do\ cuvwi do ('tdl^e </<• b'rann', /
defesa da sociedade.
37. PENA, BcIkíUio cit.
■IVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 157
|N SCI1WARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras,
I ’7W, PP- 24 e ss; VEIGA, Gláucio. História das idéias da Faculdade de Direito do Recife.
R<< ifc: Editora (Jniversitária, 1980-81,2 vol.; SALDAN1 IA, Nelson. A Escola do Recife. 2.
■ «I Sao Paulo: Convívio, I98S; PEREIRA, Nilo. A Faculdade de Direito do Recife. Recife:
Iditora Universitária, 1977; BEV1LACQUA, Clóvis. História da Faculdade dc Direito do
Rtvife. 2. ed. Brasília INI, 1977.
1'1 SALES, Antônio. Aves dr artibaián Rio dc Janeiro: Josc Olympio; fortaleza: Academia
Cearense dc Letras, |9/9, lAVtlRA, l ianklili. O cabeleira. São Paulo: Ática, 1981;
I II.IMPIO, Domingo* l.iiiái //<’»„, >» '.ao Paulo Editora Irês, 197.1; ALENCAR, José
de <) sertanejo. Silo Paulo All« «. I9NII
158 nordestino: invenção do**i ak|
40. CUNHA, Euclidcs d.i. Oi \crtüf\ 10. cd. Rio dc Janeiro: Ii.iih ih* o Alves, 1981, p 6.1 Vci
PON I ES, Ncroaldo. Modermimo t Kr^iona/ismo. Jorto Pessoa Sccictaiia dc I'<lm i
Cultura da Paraíba, 1984
41 MAGAI IIÁES, Agailienun O/Voo/. i/r Ao/o/cow, p II
MIIIVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 159
4H EERRAZ, Al varo; I.IMA JR., Andrade. /I morfologia do homem do Nordeste. Rio dc Janeiro:
|o»í Olympio, 1939, pp. 7 <■ 8.
I1* V<i I.OMBROSO, Crsarr. ()f> fite, DOMINGUES, Octavlo. Hereditariedade e eugenia:
162 nordestino: invenção do“fai.o’
JR., Durval Muniz. "Breve, lento, mas compensador: a construção do sujeito nordestino no
discurso sócio-antropológico e biotipológico da década de trinta”, Afro-/fsta, Salvador, n"
19-20, pp. 95-108.
5 l MONTEIRO, l lruiy "À margem dos Cariris”, Apud GUERRA, Felipe. Ainda o Nordeste.
3 ed. Mossoio i sAM, 198/ (( oleçAo Mossoiocnsc, vol. ceei.). Arligos publicados cm //
Ktfiüblira, Natal, I
'> l MAGAI.I lAl'.S, Agameiioti !>/■ u , p 82
I(. I nordestino: invenção do “iai u'
se trata de falar do nordestino. Este ainda c visto, muitas vezes, como uma
raça inferior c foram, em grande parte, intelectuais nordestinos, memb....
de suas elites, que o construíram assim.55
Outra estratégia, muito utilizada pelo discurso regionalista nordestino
de base eugenista, foi articulá-lo com outra forma de discurso determinista
que era aquele fornecido pela antropogeografia alemã, que tinha ua
influência do meio a principal determinante para se entender a forma
de organização das sociedades e os comportamentos, valores e atividade»
individuais e coletivas. A ideia era que a ação do meio corrigia os possível*
defeitos raciais. Determinadas características de clima, solo, vegetação,
hidrografia, relevo agiam como corretivos de certos caracteres inferioicn
que determinado contingente humano e racial pudesse ter. A adaptação
agiria corrigindo as tendências hereditárias, transmitindo-se para as fiitui ,v.
gerações as correções feitas neste processo adaptativo.
3) Um homem telúrico
57 MAl JAl .1 lAr.S, Ap.iiiiriiuii ()f> ti/., p. 33. Ver: RATZEL. /.<• razzz timanr. Nápolc:
166 nordestino: invenção do“fai.o"
i'O Ver, por exemplo, ALMEIDA, José Américo de. A Paraíba e seus problemas. Paraíba:
Imprensa Oficial, 1923, pp. 540-544; Discurso do deputado Octacílio Albuquerque -
Atinais da Câmara, sessão dc 26 dc maio de 1915, p. 366; Discurso do deputado Barbosa
I ,ima -Annaes da Câmara, trmüo dc 19 de novembro dc 1915, p. 215; Discurso dc deputado
Alberto MaranhAo .innaei da Câmara, sessão dc 20 dc maio dc 1919; Debate entre os
deputados Estado t uiinlu.i (ei), l iam isco Valadares (mg) c lldcfonso Albano (cf.) -
Annaes da Cihnai-s, • t" de 01 dc novembro dc 1919, p, 169.
<» I N/a. “A angústia do Nooli h|i / s.iu Pruiainbmo, Hei dc, 07/11/1925, p. 22, < c. I 5.
|6K nordestino: invenção do “faio"
62. 1'11.1 IO, l.oreto. "O homem do Nordeste". Rcvi\t<i </<■ /''onimAiiir, Kr. |t<>, Ano n" I I, p I
63. Idcm.
6'1 Vci I )íh< urso do deputado (iuutavo Hiirmso /íoi.i. i ,/<> G|'>mo>, *■ «silo dc IK de seiemlioi
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 169
<l<-1915, p. 875.
6‘>HOCI IA, Adauto. "Caçadot dc i altcçaa". Voz da /foMorrww, Campina Grande, 06/08/1938,
p. 4,c.1 c 2.
66 N/a. “I.ampiâo d< • ip.m << u o ici do cangaço", Voz da fíorborrma, Campina Grande,
03/08/1938, p 2, o I,
170 nordestino: invenção do “fai.o"
cia um cabra da peste E eia um cabra por ser como este animal, tão bem
adaptado a esta na(uic/.i de pedra, seca, capaz de sobreviver comendo o
Campina Grande é a capital algodoeira dos dois Estados, e é, pelas suas largn|
avenidas, que o algodão da melhor qualidade e da mais resistente fibra do
todas as Américas passa em busca dos grandes mercados consumidores.
Da mesma resistência é feita a fibra da gente nordestina, indomável na deicaa
de seus direitos e suas liberdades.71
É esta natureza que também explicaria uma característica decisiva t>< >
nordestino, a de ser másculo, viril, macho. Só um macho poderia defrontai
se com uma natureza tão hostil, só com uma exagerada dose de virilidade
se conseguiría sobreviver numa natureza adusta, ressequida, áspera, árida,
rude; traços que se identificariam com a própria masculinidade. Por isso,
até a mulher sertaneja seria masculinizada, pelo contato embrutecedm
com um mundo hostil, que exigia valentia, destemor e resistência. Só
os fortes venciam em terra assim. A masculinidade nordestina se forjai n
na luta incessante contra um meio em que apenas os mais potentes, <>.
mais “membrudos”, os mais rijos, homens que nunca se vergavam, num .1
amoleciam diante de qualquer dificuldade, conseguiam vencer. Os homcim
fracos, débeis, delicados, impotentes, frágeis, afeminados não teriam lug.u
numa terra assim, não sobreviveríam. Ser macho era,pois,a própria natureza
do nordestino. Seria no espelhamento do mundo natural que estes machiin
hiperbólicos se haviam formado. Se a masculinidade representa o espírito
guerreiro, da luta, o nordestino surgira de uma luta muito particular, uma
luta que o singularizava, a luta contra as intempéries da natureza, a lula
contra a natureza feroz. Afirmações também repetidas, ad nauseum, pela
historiografia nordestina:72
71. N/a. “Fibra de nordestino”, A Voz. da Manhã, Campina Grande, 01/05/1935, p. l,c. 2 c I
72. Sobre a relação entre masculinidade e violência, agressividade, luta, ver: Al.MEI I >A,
Miguel Vale. Op. cit.-, BADINTER, F.lizabeth. Op. cit.-, NO1.ASCO, Sócrates (Org.) ,1
desconstrufão do masculino. Rio de Janeiro: Rocio, 1995; ARI 1.1 IA, Margarctli; RI I >EN I I
Sandra Unbehaum; MEDRADO, Benedito (Orgs.). Iloment c masculinidade nulmi
palavras. São Paulo: ECOS/Ed. M, 1998; ( ONNII I . R Masculinitie. Beilu li »
Universily <>l Califórnia Ptess, 1995; “I a oigani/ai lón i,il <l< Ia mau ulillidad”, Edliiuiiri
de lai muieret, isis Internacional, Santiago, n, 21, 1997, I 11| I I R, N Identidades masculinai
I ama Fondo Editorial dc Ia Pontlliiia I lnlv< i»ldad < afolli a I >< I Piiu, 1007, VAI I >1 S,
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 173
O leitor deve ter observado, ate agora, que os mesmos autores que
trabalham com enunciados,temas e conceitos do saber eugenista,agenciam
também conceitos, temas e enunciados do saber antropogeográfico,
fazendo uma curiosa articulação. Mas o caráter de miscelânea teórica
desses estudos e artigos não fica por aí. Vivendo e escrevendo num
período em que esses saberes deterministas estavam sendo questionados,
esses autores, muitas vezes, aliam a esse aparato conceituai, temático e
enunciativo de base naturalista, enunciados, temas e conceitos veiculados
pelo discurso da sociologia e da antropologia culturalista, da etnografia
c da história, que faziam a crítica a esses paradigmas. Surgem, numa
verdadeira confusão conceituai, textos em que o tipo regional nordestino
<■, ao mesmo tempo, definido como um tipo eugênico, racial, um tipo
nascido da determinação do meio e um tipo sociológico, antropológico,
i Inográfico ou mesmo histórico. Ocorre uma verdadeira sobreposição de
imagens e enunciados extraídos de discursos de matrizes teóricas diversas
para compor o tipo regional nordestino, que aglutina desde percepções dc
bases racistas, passando por imagens de fundo mesológico, até imagens dc
tipos sociológica e historicamente definidos.
4) Um homem rústico
nova cultura que se desenvolvia à sua volta, oferecia outros estilos de vida
Tornaram-se estranhos, desfeitos os liames ecológicos”. Estamos diante
de um curioso discurso em que se quer contestar as explicações raciais c
mesológicas para se entenderem fenômenos como o cangaceirismo e o
fanatismo, que só se explicariam por motivações sociológicas e histórica-.,
não sendo produtos da má formação somática do homem nordestino,
nem da influência selvática de sua terra, e, no entanto, seriam produto
de uma surpreendente perda do “sentido vital da realidade” por parte dos
indivíduos que aí habitavam, pela imposição de outra cultura, estranha,
que “escamoteava-li ic o resultado de uma longa hereditariedade cultural”/1
O nordestino, portanto, seria fruto de uma “hereditariedade cultural",
mais do que racial. Para entender sua constituição física, sua particulai
psicologia e suas formas de comportamento, valores e atitudes, era preciso
remontar à formação de sua cultura recorrendo à história do povoamento <•
do processo civilizatório, neste espaço, marcado por um clima de constam <s
conflitos entre o colono europeu e os indígenas, entre o português e <>•.
invasores estrangeiros de outras nações, entre o homem e as feras do
interior, entre o homem e a natureza hostil e pelo caldeamento das três raças
formadoras, que deram feições físicas e psicológicas ao homem nordestino,
à medida que se adaptava aos diferentes habitats proporcionados pelo meio:
75. SOBRINHO, Tomás Pompcu. “O homem do Nordeste". Apud MENEZES, Djacir, Op.
cit., p. 33.
76 CASCUDO, Luiz da Câmara. Op. cit., pp. 31-32. Ver: ALMEIDA, Horácio de. História
da Paraíba. 2. ed., João Pessoa: Ed. da UFPB, 1978, 2 vols.; ANDRADE, Manoel Correia
dc. A terra e o homem no Nordeste. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1973; FAORO, Raimundo.
O.f donos do poder. 2. ed. Porto Alegre: Globo, 1975, 2 vols.; MENEZES, Djacir, O/>. «A;
BARROSO, Gustavo Terra do sol (natureza e costumes do Norte). 5. ed. Rio dc Janeiro:
I .ivraria São Jos<‘, 1956; Hl IRSZ FYN, Marcei. O poder dos donos. 2. ed. Petrópolis: Vozes,
1985; FACO, Rui (too ,■ /.«>><//>< oi. 7. cd. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983;
GIRAO, Raimundo /‘y»<,n,i t 4 ed Fortaleza: Ed. da ore, 1984; I.EAL.
Victor Nunca. i r 2 « d S.u» Piiiilo: Alfa ônicgii, 1975.
176 nordestino: invenção do “falo"
de Janeiro: José Olympio, 1970; RAMOS, Graciliano. Alexandre e outros heróis. 2. ed. Riu
de Janeiro: Record, 1984; Viventes das Alagoas. Rio de Janeiro: Record, 1984. Ver ainda
TELES, Gilberto Mctuionçã. A critica e o romance de 30 do Nordeste. Rio de Janeiro: Athciiiu
Cultura, 1990; GOMES, Heloísa Toller. O poder rural na ficção. São Paulo: Ática, 1981;
FREYRE, Gilberto. Heróis e vilões no romance brasileiro. São Paulo: Cultrix/EDUSl*, 19/9|
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz áe.A invenção do Nordeste e outras artesr, “Engenho
de meninos: literatura e história de gênero em Josc Lins do Rego", Lócus, Juiz de Fora, v S,
Ed. da üfjf, 1999, pp. 113-126.
82. CAVALCANTI, Povina. Volta à infância - Memórias. Rio de Janeiro: José Olympio, l‘L'.',
p. 20. Ver: CASCUDO, Luís da Câmara. O tempo e eu. Natal: Imprensa Univcrsit,iii,i,
1967; BELLO, Júlio. Op. cit.', ALMEIDA, José Américo de. Antes que meesqueça: memónas
João Pessoa: Fundação Casa de José Amcrico/cN pq, 1986; CARVALHO, Tancn do
de. Memórias de um brejeiro. João Pessoa: s/e, 1975; MONTEIRO, Frederico Mindêllu
Carneiro. Depoimentos biográficos. Rio de Janeiro: Gráfica Olímpica, 1977; SAI I I S,
Joaquim. Se não mefalha a memória. Rio dc Janeiro: I .ivraria São José, s/d, CARVAI 11< >,
I laniel dc. De outros tempos. Rio dc laneiro |osc Olympio, s/d, AMAI)(), (Icnolinu I 'm
menino sergipano. Rio dc Janeiro: Civilização Brasileira, 1977
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 179
Por ter vivido durante muito tempo sem a presença mais imediata d.t
autoridade do Estado, o nordestino teria desenvolvido um enorme espírito
de liberdade, que teria sido, inclusive, o propulsor do povoamento doa
sertões. Ao contrário do bandeirante paulista que entrava para o sertão j.i
em busca do interesse, do metal precioso e do índio para a venda, o qm
já prenunciava o espírito utilitário e comercial dos paulistas do século xx,
a sua sede de lucros, o homem que foi para o sertão do Nordeste o lc/
em busca da liberdade, muitos deles cristãos-novos a fugir das garras <l.i
Inquisição, outros criminosos degredados que viam no interior a chance
de fugir à prisão. Homens dispostos a não se submeterem nunca, homeu .
rudes, embrutecidos nas lutas em que garantiam a própria vida. Por is ,< 1,
a cultura do nordestino era rústica, assim como ele próprio, cultura que
garantia, no entanto, sua sobrevivência, nascida da adaptação do homem
às condições naturais e sociais de seu espaço, fruto de uma história que
precisava ser lembrada, uma cultura tradicional, vinda do passado, e que
se via agora ameaçada pela invasão de uma cultura estranha trazida pclu
cidade:*87
88
Naquele tempo patrão!/ as coisa era diferente/ que os home nem simportava/
pruque não tava descente/ fosse na festa ou na feira/ era uma roupa grosseira/
de um tecido bem grosso/ cuino cativo ou liberto/ mais o coipo era cuberto/
do mocotó ao pescoço.
Apragata dc rabicho/ai vez de couro cru/ mas sendo de boi criôlo/ que num
havia zibu/ e tinha sempre um estoque/ dc ateuifiço c currimboque/ in casa
e indo pru campo/ qui o ferro da pedra a isca/ tirava cada faísca/ que paricia
um relâmpo.
Jogava bola de mão/ que num tinha fitibó/ nos domingo os hômc ia/ pega
peixe de anzó/ matá mocó nas pedreira/ tumá bãe nas cachoeira/ dipois deitá-
se na areia/ fumando no seu pacaia/ fazê cigarro dc paia/ e butá putraz da
uréia.'”
><9. 1.1 MA, João Severo. Nosso sertãofoi assim, s/1, s/e, s/d.
90. CASCUDO, 1 -uiz da Câmara. Viajando o sertão, p. 39. Ver: BARROSO, Gustavo. Através
dos 1'olk-lores. São Paulo: Melhoramentos, 1927; Ao som da viola. Rio de Janeiro: Livr.
Ed. Leite Ribeiro, 1921; CASCUDO, Luís da Câmara. Vaqueiros e cantadores. 2. ed. Rio
dc Janeiro: Tccnoprint, 19(>K, MOTA, Leonardo. Cantadores: poesia e linguagem do sertão
cearense. 3. ed. Emtaleza Imprensa Universitária, 1961; Sertão alegre: poesia e linguagem
do sertão nordestina Emtaleza Imprensa Universitária, 1965; Violeiros do norte: poesia e
linguagem<<■>/,/. -> • .A <»<<» ■ ' > d Itlo de |anciro: A Noite, 1955; (>M ES NE. 1'0,José.
() aspecto verba! na liloals..... I > ■/,/ I lmlanó|M>lls: iniiisi , 1976,
182 nordestino: invenção do“fai.<>"
por detrás das frixas das portas, reclusas nas camarinhas, dançando a meia
légua de distância do par, hoje usam o cabclinho cortado, a boca em bico-de-
lacrc, o mesmo palavreado das tango-girls do Acro Clube e Natal Clube (...).
O sertão descaracteriza-se. E natural que o cantador vá morrendo também.91
93. CASCUI )<), I .ur. d.i < un.ii.i. Viajando o sertão, p. 46.
94 N/a. "lavrou <■ lollich». Aboiado", I >iãrio dc Pernambuco, Recife, 25/11/1925, p. 3, c. 7;
N/a. “Centro Regionalcaa", / </<• Pernambuco, Recife, 13/07/1924, p. 3, c. 1.
95. CASCUDO, l aiu da < amaia ' In lena aliena (Leonardo Moita)", Didriode Pernambuco,
Reiilc, 16/09/19.M.|, I
184 nordestino: invenção do “fai.o"
96. CASCUDO, Luís da Câmara. "In terra aliena... (Leonardo Mota)”. Ver ainda: MO IA,
Leonardo. Sertáo alegre', Cantadores, CASCUDO, Luís da Câmara, Vaqueiros e cantadioei
Antes desta geração dos anos 1920, no final do século xix, movidos por um regionalhm"
ainda provinciano temos também a produção de trabalhos sobre o folclore que m-M"
retomados por esta geração; ver, por exemplo: GALENO,Juvenal. Lendas e canfiespcipulaiH
Fortaleza: R. Silva, 1892; Scenaspopulares, s/1, s/e, s/d; TEÓFILO, Rodolfo. /.yr</ »//>/»•<•
(scenas da vida sertaneja). Lisboa: A Editora, 1913; Scenas e tipos. Fortaleza: lypo;'.iafia
Minerva, 1919.
97. CASCUDO, Luís da Câmara, “/n terra aliena... (Leonardo Mota)”, p. 46; Ver: CASUUI " 1
Luís da Câmara, Vaqueiros e cantadores', Tradifões populares da pecudria nordestina. Ri>> «I*
Janeiro: sir, 1956; Diciondrio do folclore brasileiro 9 cd Rio dc |aneiro: Ediuuro, 19'61,
MENEZES, Raimundo. Cwiw/i o tempo levou borialrza: lulésio, 1938; MIRANMA
Manoel Coímin (jur m ontei cm (< oiiIom legioiniU) luuetii ihi Semi, Ubuiaia, 1926; SAI I ’•
Antônio Hetruhn e lembhiii\ti\ l-miali za Wiiltli mai <le < antro <• Silva, 1918
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 185
que passariam a viver apenas por causa do esforço das penas e pesquisas dos
Inlcloristas. A cultura nordestina, que caracterizaria os comportamentos,
atitudes, hábitos, manifestações artísticas de sua população, era aquela
cultura tradicional, rural, ainda não marcada pela delicadeza das culturas
civilizadas. Era uma cultura rústica, nascida dc uma história dc conflitos e
lutas entre os patriarcas brancos e a extraordinária bravura dos indígenas:
99. E interessante notar que este processo de invenção dc uma cultura popular c nacional qm
se contrapusesse à civilização, que ameaçava descaracterizar a nação ou mesmo a regi.lu,
não c particular do Nordeste ou do Brasil; ocorreu em vários países naquele moniciilu, i
particularmente em Portugal, onde regionalistas c integialistas tentavam rcaportiigui »ai
Portugal. Estes intelectuais exerceram prolunda mlliiein ia sobre intelectuais bi.r.ileim.
como Câmara Cascudo c (àilberto l'ii yn Vct I l< IBSBAWN, Ene; RAN( iER,Teii'in i
Op rí/.; RAMOS, Rui. A invenção dc Pmtugul In MAI 1'OSO, |osc (l)ir.). //n/<>n« ./.
l.isbna l'.dttoiiiil I'st.mipa, 1990,vu| t<
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR l«7
100 CASTRO, I' dtiardo «l<- I .ima "Pelos sertões", Didrio de Pernambuco, Recife, 07/11/1925,
p. 18, c. 6; CARVAI I IO. Rnii.ihl dc. “O caráter brasileiro", Didrio dc Pernambuco, Recife,
02/09/1921, p <>, i I l*i <li o século xix c inicio do xx a figura do sertanejo vinha sendo
construída |hii obia ......... \l I Nt AR, |osc dc OCUNHA, l'.m lides da.
cit; Cl IAVIIl<<), tJ< " t"ii I ......... • l oitali za Irtniion jatahy, 1916
188 nordestino: invenção do“fai.<»“
parece ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. Esse lia
marcha, estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater um
isqueiro, ou travar uma ligeira conversa com um amigo, cai logo — cai c o
termo - de cócoras, atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio
instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pcn,
sentado sobre os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula r
adorável.
E o homem permanentemente fatigado.101
101. CUNHA, Eui lide» da. Oi jcr/íri. Apud CARVAI .1 IO, Ronald dc ,</
102. Idcin.
101 REGO, M A dc Monii’. "O Noidcilc bnitilcilo*, l)hlnn <lr l'<t Rcillr,
2VOH/I92l,p 2,u . I
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 189
104 RÊGO, M A Moiii’. < )/> i il. I IARI )MAN, Samuel. "Nossas árvores", citado por N/a.
"A Semana das Ai< 'nia Imjt a sexta conferência”, Didrio de Pernambuco, Recife,
11/11/1924, i> l,< -
105 MAGAI IlAl Ap.ommm, <»/■ -o(|>|» Hl H2
190 nordestino: invenção do “falo"
106. kkin.p. 81 Ver Al Bl IQIII IIQIII . I Ih r.i . I nc. <!<■ Um \erhinejo e o sertáu 2 r<l Khi.l.
Janeiro: |oȎ Olympio; Biinillu ini , 1976
107. MAiiAI I lAf.S, Agutiwiioii Oy> m.p ’>|
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 191
108. CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte-, TAKEYA, Denise;
LIMA, I lermano Machado. História político-administrativa da agricultura do Rio Grande
do Norte (1892-1930). Natal: fgv-cepa-cpcda, 1979; SILVA, Elictc Queirós Gurjão.
Op ri/.-, I .EVINI'., Robcrt. A velha usina: Pernambuco nafederação brasileira (1889-1937).
Rio dc laneiro l’az <■ 1'crra, 1980; 1’ANDOLI'I, Dulce Chaves. Pernambuco de Agamenon
Mata/hãi > loniidid.nih'. mv de uma elite política. Recife: Massangana, 1984.
109 CABRAL, |o,l<i I um..... O heroísmo do sertanejo. Bezerros l olheteria Borges, s/d. Ver:
CRISTt)VA< >, I" > '>i vi ilim < > i. re.hr e o sertanejo, s/l, s/e, s/d; SI I ,VA, José Joíio da. //
vlntanfa de um ser mo. i ■ »>»• • rihu 1'siapama »/l, sslc, s/d
192 nordestino: invenção do“fai.o'
A sorte, nós bem sabemos,/ E tal qual uma mulher,/ Que quer, quando não
queremos,/ Quando queremos não quer.
Alma no corpo não tenho,/ Minha existência é fingida,/ Sou como o tronco
quebrado,/ Que dá sombra sem ter vida.114
—
desconhecida dos habitantes do Nordeste.115
Este discurso mostra que a elite nordestina não era tão monolitu a
assim, que ao lado do discurso regionalista e tradicionalista existia outi i
versão do discurso regionalista nordestino, que defendia a modernizai, .ln
tecnológica da região como a saída para seus problemas econômicos c,
principalmente, para o seu problema maior, as secas. Aquele matuto do
passado seria agora apenas um bom tema para os estudos de folclore, paru
que especialistas em suas matutices fizessem as platéias urbanas darciii
sonoras gargalhadas, ao focalizarem seus costumes e suas alegres histót iau
O matuto, embora continue sendo visto em contraponto ao mundo
I 1K. I >1JA l< IT‘.,I )i<M lei íi>."()m'HiI>> IiiumiIoiiiiikIii’', / 1‘rinumbuio, lti< if <■,()'//1(1/l‘l
p. 1,C. 5.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 197
119 N/a. "M.ihiiit <■ • inalul •«,••• , Ihíliioiir Pfrnam/fuco, Rccifc, 30/11/1927, p. l,c. 2.
120 N/a . "Oi. i.mp «d» tu> • NmhI»ih ,/de Per Recife, 13/09/1922, p. I,cc.2
r 3.
198 noroi m ino: invenção no "fai.h"
121. N/a.“O Arcebispo dc São Paulo fala ao Diiirio", Dúbio</<• Prniunibuco, Recife, 11/10/l’<l
p. 3, c. 2. Ver Al .BANO, lldcfonso. /<•<« Tutu <■ Mant C.huiurthitiut. i/l, s/e, s/d
122. MENEZES, I Jjacir. ()f>. cit., p. 98.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 199
123. Sobre o ecletismo como uma característica do pensamento brasileiro, ver: DIEHL, Astor
Antônio. z7 íoçíJ/íkí/>/<íw7ró</. Passo Fundo: bdiupf, 1998.
124. MENEZES, Djai n ()/> rú.pp.80 81.
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I II) (’AS( I H H ), I m / • I•• < dh h • i y« .»/ , p 17.
202 nordestino: invenção do “falo"
era “seguidor de Lênin, para quem a religião era o ópio do povo”. Essa
mutação que Lampião representava no perfil do cangaceiro só foi saudada
com satisfação pelos poetas populares, que, já em 1927, proclamavam
o heroísmo do novo mito do sertão e narravam com admiração suas
peripécias. Nas páginas do cordel, o cangaceiro tornou-se ao lado do
coronel, seu inimigo e contraponto, modelos de ser homem no Nordeste
I Iomens caracterizados pela valentia, pela defesa a todo custo da honra, o
homem pobre rebelado, que vingava simbolicamente a todos os desvalidos
das atitudes discricionárias dos poderosos:
131. NOGUEIRA, Josc Pinheiro. O Lampiãoe seu heroísmo, s/1, s/c, 1927.
132. Ver: BARROSO, Gustavo. Heroes e bandidos. Rio dc Janeiro: s/e, 1917; MO I A, I .conaido V»
tempo de Lampeão. Rio de Janeiro: s/e, 1930; Cl IAND1.ER, B.J. I.ampião - o rei dos n.u
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Handoleiros dtu caatingas. Rioilc Janeiro: Frimclsco Alves, 1940; PEREIRA, Aurieclia l.opes II
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 203
O fanatismo é ali uma diátase que se torna imprescindível combater. < >
sertanejo sem instrução nem cultura, chumbado a um meio social c físico
caracteristicamente hostil, na ignorância absoluta dos fenômenos naturius,
é um supersticioso e, por vezes, um fanático. A história das populações do
Nordeste está entremeada desses movimentos apavorantes do fanatismo qtu
imolou crianças na Pedra Bonita, em Pernambuco, que subverteu a ordem i
destroçou exércitos em Canudos, na Bahia.*
135
(...) o pobre sertanejo em sua casa baixa e estreita medindo seu último litro tll
farinha, matando sua última cabra, vendo desaparecer do fundo das cacimbas
a água que bebem ele e sua família e da qual dava a seus bichos quando o*
tinha. E preciso emigrar!
Ai! senhores, pensai nos grandes preparativos para as nossas viagens, <|uo
provisão, que conforto, que luxo! Vai o nosso sertanejo emigrar com toda a
nos anos 20, por alguns discursos, como uma figura obsoleta, representaiii<
do atraso técnico, do arcaísmo econômico, da prepotência política r
dissolução moral, é construído pelo discurso tradicionalista como a figiua
basilar de toda a história e civilização desta região. Figura de aristou <i <
dos trópicos, de chapéu de abas largas, botas e esporas de prata ou d<
chambre de chita e chibata, responsável pela prosperidade e poder dc toda
esta área do país, que agora se via entregue às mãos dos usineiros e cm
debacle acentuada:119
139. N/a. “Impressões de Pernambuco”, Didrio de Pernambuco, Recife, 20/06/1926, |> l, < -
O senhor de engenho ou o coronel são figuras centrais em ioda a produção ht« ! •••■•
e artística identificada como nordestina, ver: Rp.(IO, José I ins do. Menino </. < mi;> »»A.»,
ALMEIDA, Josc Américo de. Coiteiroí (Novela). Rio dc Janeiro: Civilização Hi.i ah •• •♦.
1979; FONTES,Amando Corumbai. RiodcJaneiro: I.ivraria Schmidt, 19 H,Q( l| I R< •/<
Rachel dc. Joao Migutl( l'rò romances). Rio dc Janeiro: Josc Olyinpio, I94K; RAM* *8,
Graciliano. ò'<t« Hernuido. Rio dc Janeiro: Record, 19X4
140. BEI.I.(), Júlio. “Sciihoie» dc engenho", />ldrio <le Pemambmo, Rei ite, 10/08/1924, |i *. *’>
2.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 207
141. FREYRE, Gilberto. “Que é dos pintores... que não vêm pintar”, Diário de Pernambuco,
Recife, 22/03/1925, p I. As artes plásticas de temática nordestina tomam estas figuras
como um dos seus iioiir** principais; ver, por exemplo, uma boa parte da produção do
pintor Altlt imi M.itihi i, noladamrntc os quadros.
112 Ver I RI A RI ,< «db« Rio dc Janeiro: Josc Olympio, 1941; Afí/z/j/Zr/o
retionidiihi, 4 nl R» • ih I tmiliisá" J(,aquim Nubiico/MK', 1967.
208 nordestino: invenção do “mi ií
O nordestino é um tipo regional que surge por volta dos anos ’tl,
do século passado. Surge nos discursos das elites da região, que também
estava elaborando sua identidade desde a década anterior, levando algum i
décadas para ser introjetado como um elemento definidor de identida.h
para toda a população desta área do país. Ainda hoje, em outras regmc*»
convive, lado a lado, com outra identidade, a de nortista ou com estereót ip<
como o do baiano em São Paulo e do paraíba, no Rio de Janeiro, qu*
também servem para identificar os habitantes do Nordeste. Nos ano- 20,
encontramos outra variação para essa identidade regional, a de nordest ino,
demonstrando que esta era ainda uma identidade em elaborai, n-
Construído a partir de temas, imagens e enunciados que definiram outmi
tipos regionais anteriores, o nordestino será descrito de diferentes loim i .
mas terá alguns traços definidores que se encontrarão em todas as ver.....
será um tipo rural, que não se identifica com o mundo moderno, reativo
ao processo de transformações que, desde o século xix, implantava uma
sociedade tipicamente capitalista e burguesa no país; reativo ao processo
de implantação de uma sociedade urbano industrial, l-.le reprcscnt.ua iiiii.i
tradição agrária e patriarcal, quando nao escravista. Seta o bastião dc uniu
sociedade artesanal e folclói iva, que estaria desaparei endo, Seta definido,
acima de tudo, como uma ic-.civa dc virilidade, mu tipo masculino, um
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 209
143. Para a expressão nordestano, ver: GUERRA, Felipe, /linda o Nordeste, p. 7 c 11.
144. BADINTER, Elizabcth. XY: sobre a identidade masculina. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1993. Sobre a crise da masculinidade entre o final do século xix e o
começo do xx.vci ainda: SI IOWALTER, Elaine, Anarquia sexual: sexo e cultura
no fin dc \ic</e Rio <l< |aneiio Rocco, 1993; 1’AGI.IA, Camille. “Dccadcntistas
americano» l’o<. I lawlltome, Mclville, Emerson, Whitman.Jamcs”. In: Personas
210 nordestino: invenção do“fai.<>”
145. CAVAI ( AN I I, Aifillx tto. "A nu nt.ilhl.iilr <|<> Norilcue", />í</rí» </<• l'i >R< . Ih,
DURVAl. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 211
I 16. SI I ,VA, Sevcmi" ' ll.tmliti■ mo <■ iiiínci ia", IHdrio <le Pernambuco, Recife, 22/12/1924, p. 1,
<.4.
147. IREYRf , (Jilln ib' <i9“( Aillgu Niiiiu lailo), /iulrio <ir Pernambuco, Rei ife, 10/08/1924,
p. .1,1. 1
212 nordestino: invenção do “i ai o"
Desse erro devem ser acusados, antes, os que não souberam aperceber se
dc nossas necessidades, ou não procuraram partilhar de nossas vicissitud<
ajudar-nos na luta contra as secas periódicas, a falta de transportes, exiguid.idi
de braços, escassez de meios e tantas outras causas culpadas de nosso
estacionamento; e não o homem do campo nosso operário rural que ainda
assim não cruzou os braços a espera que a piedade de seus irmãos lhes viesse
matar a fome.159
160. Esta relasan enlic iiindcstino c masculinidade, nordestino c uma cultura fálica.está muito
presente tatnlii m 111 aii< • <• literatura dc temáticas nordestinas; ver, por exemplo, toda a
série dc <">« illtuns» Llll« a» di> un i i plástico pernambucano Erancisco Brcnand ou todas
as imagens lálli i jih ipan i < ui ni>» lislos teatrais ou literários dc Ariano Suassuna
21K nokdistino: invenção do “falo1
A tropa, espalhada pelo meio do povo, manda os cabras passar o pano e vai
lhes tomando as facas e os cacetes. Aqueles que resistem vão presos debaixo
de facão até a cadeia. Vestidos dc camisa c ciroula de algodão grosso, tecido
nos teares da terra, ceroula de fundo curto de um só botão, passando o pano,
adquiriam uma aparência ridícula, provocando vaia da garotada. 1 )aí o motivo
das brigas, resistência e matança de soldados a facadas.164
165. Claro que esta descrição é calcada cm grande medida nas práticas das famílias das clili >,
sendo pouco válida para o que acontecia nas famílias das camadas populares, embora
seja o modelo validado socialmentc.
166. CAVALCANTI, Povina. Volta à inJAneui Memórim. Rio dc Janeiro: José Olympio, 1972,
p. 39.
167. Idcm, p. 45,
168. Ml Dl IROS, Conolandodi O lli»il’i<l ila In/Dnria |oil<> 1'cssoa A (lm.li>, 1994,p
91
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 221
Queria ter nascido homem, nem que fosse para ser cega de um olho ou manca
de uma perna, blasfemava ela contra a sua sorte (...). Cada vez que meu pai
desaparecia, metendo-se numa casa de jogo, escutavamos o mesmo discurso
pouco cristão sobre o desgraçado papel da fêmea na sociedade dos homens.’*■’
Não concordava. Sentia curiosidade em saber onde ela aprendeu estas histórias
que repetia sem muita consciência para a gente. I listórias muito bestas para
serem citadas por adultos.
- Menino que brinca de bonecas vira mulher, cai o pintinho - falava
maliciosamente quando via o Bita segurando a boneca da Vera Lúcia.
Intrigava-me: quem definiu os papéis dc macho c da fêmea na cspccic
humana? Queria saber para dizer a esta pessoa que eu não concordava com
esta divisão. Era injusta e preconceituosa. Eu tinha que brincar só dc boneca,
como se o único destino reservado para mim fosse parir, assear, varrer, lavar...
Coisas chatas que dão às mulheres ares de perfeita idiota do lar. Esta cara
que minha mãe estava ganhando de tanto ficar no fogão c na máquina dc
costura”.169
170
169. I 1.11’4 )SA, t A A In i ihiiJki ióh, xttihor. São Paulo: Cot tez, 1980, pp. 11,14 c 15.
170. I I I lOSA.t \ <»/• .O . P 28
222 nordestino: invenção do“mi<>
171. A maior parte das produções culturais populares que são identificadas como noi.l. oliuti
também valorizam o ser macho e abusam das imagens fálicas; ver a litci.iluia d> < •••.»> |,
por exemplo, em que vários títulos estão marcados pela ênfase na virilidade Hl< I • 1 '
Joaquim Nogueira. Asfaçanhas de “Ze Duro". s/1, s/d, 1954; CARLOS, Scveiiiio I i i«ul
A nega do penteado e a trouxa misteriosa, s/1, s/c, s/d; CAVALCANTI'., Rodolfo 1 ■" Iho
Maria Mata-Uomem, a valente da Paraíba, s/1, s/e, 1977; I EITE.Josc Cosia .Vew
ponta grande ou o corno ganam ioio. s/1, it/c, k/U; A veia debaixo da cama e a pei na. <d>. Ioda »/|(
s/c, s/d; PARAI‘1 JSO, O encontro da velha t/ue vendia tabaco com o matuta ywr
fu mo. s/1, s/c, s/d, SI I ,VA, (Itiiiiííi d.i (hapadm df covardei,
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 223
Dizia-se que ele tinha o corpo fechado. Sempre se saiu incólume dos entreveros
de que participara. A propósito, recordo que ouvi algumas vezes referência
a uma sorte de oração, de que os sertanejos eram portadores, conservada
como amuleto. Havia mesmo jagunços que usavam este espécie de talismã
costurado num saquinho e trazido ao pescoço ou no forro do paletó.(...) O
André, a quem recorri, curioso afirmou-me com convicção:
-Não falha a oração, se rezando com fé.
E na sua linguagem sertaneja explicou-mc que o inimigo ficava cego. Uma
escuridão baixava à sua frente, inutilizando-lhe as ações. (...) Daí a fama de
valentia que possuíam os cabras do sertão.175
178. Esta concepção dc que as mulheres apenas ajudam os maridos, mesmo quando exercem
as mesmas tarefas que eles, pode ser constatada vigendo ainda cm nossos dias, entre
mulheres da zona rural do Nordeste, por alguns trabalhos sociológicos rcccntcmcntc
produzidos. Ver: BELENS, Jussara Natália Moreira. Trabalhandofeilo homem. Campina
Grande, utrii, 1998 (Dissertação dc Mestrado cm Sociologia Rural); BARROS, Ofélia
Maria dc Na<> ser debandada no mundo: a construção social das donas de casa no Cariri
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