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Durval Muniz de Albuquerque Júnior

Nordestino:
invenção do "falo"
UMA HISTÓRIA DO GÊNERO 0u
V)

MASCULINO (1920-1940)
0c
ono
1.

2a Edição

intermeios
a Coleção «ntragftneroí ibn-i«
para a publicação de livros, ensaios, co­
letâneas, nacionais ou estrangeiros, que
se situem no espaço da crítica às formas
contemporâneas de imposição de rígi­
das identidades sociais, sexuais, étnicas
ou geracionais, e que promovam o de­
bate acerca das questões de gênero e
sexualidade, ou aquelas relacionadas ao
corpo em distintas problematizações.
Tem como horizonte a crítica do presen­
te, do patriarcalismo e do racismo. Visa
a divulgar obras que desestabilizem as
fronteiras do conhecimento e que se
pautem pela interdisciplinaridade, fun­
damental para que possam ser apreen­
didas outras realidades, invisíveis, mo­
leculares e silenciadas no mundo con­
temporâneo. Os estudos históricos, filo­
sóficos, antropológicos, tanto quanto os
literários ou procedentes das áreas da
Psicanálise, Educação e Direito podem,
nesse sentido, fornecer importantes pis­
tas para reflexões que contribuam para
diagnosticar a nossa atualidade e para
questionar as formas de pensar e agir
de que somos herdeiros/as, formas es­
sas que não são naturais mas históricas,
portanto, passíveis de transformação.
Durval Muniz de Albuquerque Júnior

nasceu em Campina Grande, em 22 de

junho de 1961. É doutor em História

Social pela Universidade Estadual de

Campinas (Unicamp) e pós-doutor

em Educação pela Universidade de

Barcelona e em Teoria da História pela

Universidade de Coimbra. É professor

titular do Departamento de História da

Universidade Federal do Rio Grande

do Norte. É membro do corpo docente

dos programas de pós-graduação em

História da Universidade Federal do

Rio Grande do Norte e da Universidade

Federal de Pernambuco. Publicou A

Invenção do Nordeste e outras artes

(Cortez/Massangana,1999), História: a

arte de inventar o passado (Edusc, 2007),

Preconceito contra a origem geográfiia e

de lugar fCortez, 2007), Nos destinos de

fronteira: história, espaço e identidade

(Bagaço, 2009), além de vários capítulos

de livros e artigos sobre teoria da

história, história das identidades

espaciais e história de gênero.


Este livro foi escrito antes do sucesso internacional alcançado
pelas coleções sobre a história da virilidade no Ocidente. Sua
primeira publicação, em 2003, veio não apenas cobrir uma
lacuna historiográfica mas ampliar o campo de perguntas
sobre a cultura e a sociedade brasileiras. Fruto de uma rigorosa
e detalhada pesquisa, "Nordestino: invenção do falo" coloca
a nu um problema cujas dimensões ultrapassam a história
do sexo masculino, atravessam as relações de gênero e as
discriminações entre as classes sociais para atingir o cerne da
formação dos donos do poder no Brasil.
Atento às violentas disputas voltadas a transformar o poder
em bem privado, o autor não poupa esforço: esmiuça obras
clássicas e jornais pouco conhecidos, questiona a antropologia,
a sociologia e a história, indaga sobre a moda, a religião e a
ciência para, progressivamente, descobrir como foi possível
inventar o macho nordestino e, ainda, transformá-lo numa
realidade natural, um destino, uma condição e um fardo.
Durval Muniz Albuquerque Júnior considera-o uma questão,
mesmo quando ele teima em ser resposta, dever e aptidão. Vai
fazê-lo falar, lá onde ele se cala e teme ser investigado.

Denise Bernuzzi de Sant'Anna


Nordestino:
mvençao do ralo

Coleção Entregêneros

Dirigida por Margareth Rago


Durval Muniz de Albuquerque Júnior

Nordestino:
invenção do ralo
UMA HISTÓRIA DO GÊNERO MASCULINO
(1920-1940)

2a Edição

IIANAIII AHIISFIIVIIIIS
Editora Intermeios
Rua Luís Murat, 40 - Vila Madalena
CEP 05436-050 - São Paulo - SP - Brasil
Fone: 2338-8851 - www.intermeioscultural.com.br

nordestino: invenção do “falo”- uma história do gênero masculino (1920-1940)

© Durval Muniz de Albuquerque Júnior

2a Edição: Fevereiro de 2013

Editoração eletrônica, produção Intermeios - Casa de Artes e Livros


Revisão Intermeios - Casa de Artes e Livros
Capa Intermeios - Casa de Artes e Livros
Sobre escultura de Francisco Brennand
Finalização Rai Lopes

CONSELHO EDITORIAL

Vincent M. Colapietro (Penn State University)


Daniel Ferrer (ITEM/CNRS)
Lucrécia DA.lessio Ferrara (PUCSP)
Jerusa Pires Ferreira (PUCSP)
Amálio Pinheiro (PUCSP)
Josette Monzani (UFSCar)
Rosemeire Aparecida Scopinho (UFSCar)
Ilana Wainer (USP)
Walter Fagundes Morales (UESC/NEPAB)
Izabel Ramos de Abreu Kisil
Jacqueline Ramos (UFS)
Celso Cruz (UFS)
Alessandra Paola Caramori (UFBA)
Claudia Dornbusch (USP)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP

A345 Albuquerque Júnior, Durval Muniz de.


Nordestino: invenção do "falo" - uma história do gênero masculino (1920-
1940). / 2.a Edição. / Durval Muniz de Albuquerque Júnior. - São Paulo:
Intermeios, 2013. (Coleção Entregêneros).

254 p.; 16 x 23 cm.


l.a Edição Maceió: Edições Catavento, 2003.
ISBN 978-85-64586-41-3

1. História. 2. História do Brasil. 3. História Cultural. 4. História Social.


5. Mulher. 6. Homem. 7. Relações de Gênero. 8. Historiografia. 9. Nordeste.
10. Nordestino. 11. Análise do Discurso. I. Título. II. Invenção do "falo". III.
Uma história do gênero Masculino (1920-1940). IV. Série. V. A feminização
da sociedade. VI. A república: a mulher ideal. VIL Cidade: um espaço não
familiar. VI11. A invenção do patriarcalismo. IX. A Invenção de um Macho. X.
Intermeios - Casa de Artes c Livros.

CDU 981 105


CDI) 9HI

('lihilogtiçAo < Ha<la |iin R111I1 SI111A0 I*unlnn»


Editora Intermeios
Rua Luís Murat, 40 - Vila Madalena
CEP 05436-050 - São Paulo - SP - Brasil
Fone: 2338-8851 - www.intenneioscultural.com.br

nordestino: invenção do “falo”- uma história do gênero masculino (1920-1940)

© Durval Muniz de Albuquerque Júnior

2a Edição: Fevereiro de 2013

Editoração eletrônica, produção Intermeios - Casa de Artes e Livros


Revisão Intermeios - Casa de Artes e Livros
Capa Intermeios - Casa de Artes e Livros
Sobre escultura de Francisco Brennand
Finalização Rai Lopes

CONSELHO EDITORIAL
Vincent M. Colapietro (Penn State University)
Daniel Ferrer (ITEM/CNRS)
Lucrécia D’Alessio Ferrara (PUCSP)
Jerusa Pires Ferreira (PUCSP)
Amálio Pinheiro (PUCSP)
Josette Monzani (UFSCar)
Rosemeire Aparecida Scopinho (UFSCar)
Ilana Wainer (USP)
Walter Fagundes Morales (UESC/NEPAB)
Izabel Ramos de Abreu Kisil
Jacqueline Ramos (UFS)
Celso Cruz (UFS)
Alessandra Paola Caramori (UFBA)
Claudia Dornbusch (USP)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP

A345 Albuquerque Júnior, Durval Muniz de.


Nordestino: invenção do "falo" - uma história do gênero masculino (1920-
1940). / 2.a Edição. / Durval Muniz de Albuquerque Júnior. — São Paulo:
Intermeios, 2013. (Coleção Entregêneros).

254 p.; 16 x 23 cm.


l.a Edição Maceió: Edições Catavento, 2003.
ISBN 978-85-64586-41-3

1. História. 2. História do Brasil. 3. História Cultural. 4. História Social.


5. Mulher. 6. Homem. 7. Relações de Gênero. 8. Historiografia. 9. Nordeste.
10. Nordestino. 11. Análise do Discurso. I. Título. II. Invenção do "falo". III.
Uma história do gênero Masculino (1920-1940). IV. Série. V. A feminização
da sociedade. VI. A república: a mulher ideal. VII. Cidade: um espaço não
familiar. VIII. A invenção do patriarcalismo. IX. A Invenção de um Macho. X.
Intermeios - Casa de Artes e Livros.

CDIJ 981:305
CDI) 981

Cutuloguçlo cluborudu poi Rulli SI111A0 Paulino


A Durval, meu pai, por me ensinar, ao longo dos
anos, as dores e as delícias de ser homem no Nordeste.
Agradecimentos

Este livro, como todo trabalho historiográfico, diz muito do próprio


autor, escreve e inscreve muitas das dúvidas, perplexidades, inseguranças,
medos, prazeres, saberes e sofrimentos de quem teve a coragem de assumir
o lugar de autoria. Ele é, em todas as suas páginas, uma afirmação, ele diz:
“Eu falo de mim, dos outros, de mim nos outros e dos outros em mim”, “eu
falo do falo que me define e me limita”, mas também “eu falo do falo que
me divide, me dilacera e me dispersa”, pois ele, como a masculinidade que
me identifica, é produto de múltiplos encontros e de múltiplas relações,
ele é fruto do aprendizado e da ignorância que cada encontro com o outro
nos proporciona. Por isso queria agradecer a alguns destes encontros que
me fizeram apreender o mistério de ser masculino, mas também que me
levaram a presenciar a dor e o dissabor de sê-lo tal como está definido
majoritariamente em nossa sociedade, que me mostraram possibilidades
de ser outros: minoritários, divergentes, anormais, marginais, e me fizeram
presenciar muitas vezes a miséria da prisão de ser o mesmo, o normal, o
majoritário, o dominante, o dominador; mas que também me levaram a
ver a face pouco feliz e romântica do divergente e a face risonha e feliz
do convergente, pois foi com o ver esta gente e foi depois de ver de forma
ingente todas estas vidas que me pus a falar deste tema; por isso, o que falo
neste livro fala de suas falas, mas também de seus falos, simbólicos ou não.
Meu pai e meus dois irmãos, Carlos c Marcos, são responsáveis por
muito do que sou e como sou, com eles aprendi, rindo ou chorando, as
primeiras lições do que é ser homem no Nordeste, embora sem Maria,
minha mãe, e Solange, minha irmã, eu jamais pudesse ter o distanciamento
que pressupõe colocar esta forma de ser em questão. Com Martha Lucia,
8 nordestino: invenção do “falo”

Joana DArc, Josefa Gome. < Eliete Gurjão, professoras e símbolos de


outras possibilidade . de sei mulher, aprendí o respeito pelo outro, pelo
diferente, e a vontade de lutar por um mundo distinto deste que nos é
oferecido como destino.
Com amigos e companheiros pude experimentar e compartilhar uma
gama variada de sensações e de sentimentos, momentos de angústia e de
prazer, que me fizeram encarar as diversas figuras em que se pode desdobrar
esta identidade do macho nordestino; com eles pude ver e viver desde sua
face mais violenta, discricionária e triste, até sua face mais carinhosa, terna
e frágil. Com Marco Antônio, Paulo Vinícius, Kleber Nóbrega, João Paulo,
Kleiton Nóbrega, Camilo Barbosa, Odimar Bonfim, Evandro, Ricardo,
Carlos Eduardo, Maurício, Saulo, Genival, Anderson, Cristiano, Evaldo
Procópio, Jógerson, Fernando Barroso, Francisco José, Jéferson, Adriano,
Leonardo, Roberto Veras, Roberval Veras, Geraldo Ricardo, Vanderlan e
Wellison aprendí que o ser masculino se diz no plural e está muito além e
muito aquém dos estereótipos e modelos que o tentam definir e desvendar,
que é fluxo e busca incessantes, é o desenhar de rostos fugazes na areia que
se esboroam com o sopro de uma pequena brisa de final de tarde de verão. A
eles agradeço todas as lições que aprendi e as memórias que carrego comigo.
Esta pesquisa me proporcionou muitos encontros acadêmicos e
pessoais inesquecíveis. Encontros que me ajudaram a elaborar muito do
que aqui falo e muito do que sou hoje como homem e como historiador.
Por isso, quero agradecer o carinho e o saber de Margareth Rago, a quem
nunca conseguirei agradecer suficientemente, ela foi a inspiração maior
desta pesquisa; a James Green, testemunho do quanto pode ser belo e
generoso o ser masculino; à Maria Izilda Matos, toda a doçura e a sabedoria
de um ser feminino; à Tânia Swain, amor à primeira mesa-redonda; à
Suely Rolnik, beleza e inteligência por todos os poros; à Maria Cristina
Marin, companheira nos estudos de gênero e amiga inigualável; à Regina
Guimarães,Joana Maria Pedro, Rachel Soihet, Manoel Salgado Guimarães,
Sérgio Aboud, Wilton Garcia, Denilson Lopes, Martha de Abreu Esteves,
Dulce Amarante, Ludmila Brandão, Afonso Carlos Marques dos Santos,
Luiz Orlandi, Peter Pál Pelbart, Márcio Alves Fonseca, Vera Portocarrero,
Roberto Machado, Salma Muchail, Alfredo Veiga Neto, Francisco Ortega,
Neide Miele, Parry Scott, Benedito Medrado, Jorge Lym, Francisco
Cardoso,José Luiz Ferreira, Kcila Queiroz, Silêde Leida,AI Abi antes,
lemis Parente e a tantos outros encontros que rcsullaiam m texto
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 9

Quero agradecer aos meus colegas do Departamento de História e


Geografia da Universidade Federal de Campina Grande, não somente
pelo indispensável apoio acadêmico, mas também por fazerem deste
espaço um fascinante campo de observação para o pesquisador das relações
de gênero no Nordeste, notadamente dos modelos de masculinidade aí
predominantes. Este agradecimento é extensivo a todos os meus alunos
dos cursos de graduação e pós-graduação em História e Sociologia, que me
ajudaram com suas idéias e com suas práticas a problcmatizar c visualizar
muitas das formulações presentes neste texto.
Agradeço aos funcionários das instituições onde a pesquisa se realizou:
FundaçãoJoaquim Nabuco, Biblioteca Central da Universidade Federal da
Paraíba, Biblioteca Setorial da Universidade Federal da Paraíba, Biblioteca
da Universidade Federal de Pernambuco, lael e sedhir, pela presteza
no atendimento. Agradeço também a bemfam por me proporcionar a
rica experiência de entrevistar e discutir com um grupo considerável de
homens que frequentam suas clínicas de Natal e Recife.
Este texto não existiría sem o trabalho e as idéias de um grupo de
bolsistas de Iniciação Científica que me acompanhou ao longo destes anos
c me marcou como pesquisador c como pessoa: Zânia, Auricélia, Carlos,
Tatiana, Ana Lucia, Valdinar, Rodrigo,Viviane, Vanusa e Gislaine são
também autores de cada linha aqui escrita.
A minha “secretária” Socorro, que continua sendo o meu anjo da
guarda e companheira de todas as horas.
Agradeço a D. Neide pelo exemplo de luta e dignidade. Ela foi
testemunha do quanto o ser masculino no Nordeste pode levar uma
mulher a sofrer.
Quero agradecer ao CNPq que possibilitou a realização desta pesquisa
ao me conceder uma Bolsa de Produtividade em Pesquisa e uma cota de
duas Bolsas de Iniciação Científica durante um período de quatro anos.
A todas as pessoas que leram, resenharam, criticaram e usaram meu
livro anterior quero agradecer pela indicação de que este trabalho deveria
ter continuidade. Este livro também é fruto do aprendizado da convivência
com vocês, mesmo a distância.
Quero agradecer por fim aos amigos e profissionais que me ajudaram
na elaboração final deste texto para a publicação, sem eles as imperfeições
seriam ainda maiores: à Cassandra, Alarcon e Socorro Pereira agradeço a
generosidade e a paciência infinitas que demonstraram ao encararem tão
Sumário

Prefácio 13
Denise Bernuzzi de Sant’Anna

Introdução 17

A Feminização da Sociedade 27

1) Na horizontal: as mudanças sociais vistas como


feminização dos costumes 27
a) O NIVELAMENTO SOCIAL 27
b) A MULHER PROCURA OCUPAR O LUGAR DOS HOMENS 39
c) UMA SOCIEDADE QUE SE TRONA DELICADA 45
d) A ERA DOS BACHARÉIS ANTIPATRIARCAIS 53
e) O CASAMENTO ROMÂNTICO É A VITÓRIA DO SENTIMENTO? 62
f) Entre maricas e viragos a confusão dos “sexos”
SE INSTALA 76

2) A república: a mulher ideal 83


a) A POLÍTICA DESVIRILIZADA 83
b) A POLÍTICA NO FEMININO 90
3) Cidade: um espaço não familiar 95

a) A DAMA ANTIGA E A MULHER MODERNA 95


b) A HISTERIA DOS COSTUMES 106
c) A VITÓRIA DA MULHER DEVORADORA 118

4) A INVENÇÃO DO PATRIARCALISMO 125

A Invenção de um Macho 137

1) A emergência da ideia de Nordeste e onordestino 137

2) Um homem eugênico 153

3) Um homem telúrico 164

4) Um homem rústico 173

5) Tipos constitutivos do homem nordestino 186

6) Nordestino: uma inveção do “falo” 208

Bibliografia 231
I ^efácio

Este livro foi escrito antes do sucesso internacional alcançado pelas


< < ilcções sobre a história da virilidade no Ocidente. Sua primeira publicação,
i in 2003, veio não apenas cobrir uma lacuna historiográfica mas ampliar o
i ampo de perguntas sobre a cultura e a sociedade brasileiras. Fruto de uma
i igorosa e detalhada pesquisa, “Nordestino: invenção do falo” coloca a nu
um problema cujas dimensões ultrapassam a história do sexo masculino,
.1 travessam as relações de gênero e as discriminações entre as classes sociais
para atingir o cerne da formação dos donos do poder no Brasil.
Atento às violentas disputas voltadas a transformar o poder em bem
privado, o autor não poupa esforço: esmiuça obras clássicas e jornais pouco
conhecidos, questiona a antropologia, a sociologia e a história, indaga
■.obre a moda, a religião e a ciência para, progressivamente, descobrir como
(<>i possível inventar o macho nordestino e, ainda, transformá-lo numa
realidade natural, um destino, uma condição e um fardo. Durval Muniz
Albuquerque Júnior considera-o uma questão, mesmo quando ele teima
cm ser resposta, dever e aptidão. Vai fazê-lo falar, lá onde ele se cala e teme
ser investigado.
Mas os procedimentos utilizados pelo autor não são bruscos. Ao
contrário, sua análise possui a sutileza que, várias vezes, falta à realidade
estudada. Isto porque Durval analisa a invenção do macho a partir de seus
arredores, de seus vizinhos próximos e distantes, de suas influências por
vezes insuspeitáveis. Segundo o autor, “o nordestino c uma figura que vem
sendo desenhada c redesenhada por uma vasta produção cultural”. De
lato, “a experiência de ser homem" implica sempre um longo c assíduo
trabalho.
II nordestino: invenção do “falo’

Todo o livro contribui para que o leitor conheça a história da virilidade


a partir do vasto mundo que a constituiu: costumes alimentares, tradições
sertanejas, mas também a influência do cinema hollywoodiano, com seus
heróis e divas; mundo de padres e coronéis, no qual ronda o espectro do
“amarelinho”, menino mirrado, por um triz doente e afeminado.
Ao longo dos capítulos, evidencia-se o que nem sempre é perceptível
ao primeiro olhar: por trás do amargor dos antigos xaropes fortificantes,
das roupas da criança, em meio a seus temores diante da surra na rua
ou em casa, as conhecidas noções de patriarcalismo e paternalismo
ganham matizes próprios. Durval historiciza a criação dos conceitos de
família, macho, feminino e masculino sem escapar ao diálogo com as
grandes tradições antropológicas e históricas. E quando, por exemplo, o
patriarcalismo trabalhado por Gilberto Freyre revela-se uma metáfora,
“uma grande imagem que ajuda a descrever o período”. Sua análise espreme
de cada conceito os clichês há muito acomodados no que habitualmente
se espera da identidade nordestina. Por isso, o livro informa e surpreende,
arrebata e amplia o horizonte de problemas sobre a história da sexualidade
e da cultura.
O período estudado é repleto de transformações importantes,
especialmente nas maneiras de perceber as funções da mulher na sociedade.
A autoridade do pai concorria cada vez mais com outras instâncias sociais
enquanto que as mulheres reivindicavam o direito ao voto, a prática de
esportes e a sociabilidade em locais públicos. Além disso, os limites entre
os gêneros não davam conta de expressar a multiplicidade de relações
existentes entre as pessoas do mesmo sexo. A voga do matrimônio
romântico e a instituição do casamento civil modificaram o olhar sobre as
antigas uniões baseadas na mancebia e no concubinato. A suspeita sobre
maricas e viragos atraía cada vez mais a lente médica e a propaganda de
fortificantes. A ambição de padronizar os corpos coincidia com o sonho de
um espaço urbano uniforme e higiênico.
A riqueza das fontes históricas que sustentam este livro constitui um
vivo panorama das mudanças em curso e dos gritantes contrastes entre as
classes sociais. Na década de 1920, a perturbação da elite local diante do
odor e da visão dos pobres não era menor do que o incômodo provocado
pelas moças que fumavam e bebiam, segundo o estilo das melindrosas
adeptas aos modernos costumes, companheiras de jovens perfumados à
americana ou à européia.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 15

Uma pluralidade impressionante de tipos masculinos emerge cm meio


à documentação estudada: do intelectual “frágil e atrapalhado com as coisas
viris” ao matuto em vias de virar uma lenda, a paisagem dos senhores da
terra e do asfalto está longe de ser homogênea. O folclore regional contribui
para criar a imagem de um sertanejo forte mas também é atravessado por
um “agenciamento de imagens”, repleto de caboclos, vaqueiros, brejeiros,
cangaceiros, beatos, jagunços. Tipos regionais que, na década de 1920, “se
convertem no nordestino”, conservando a macheza como valor capital.
Esta produção do Nordestino possui uma história reveladora de
algumas das principais bases do poder que caracterizaram a República
nacional. Sc a falocracia não é uma prerrogativa local, é certo, contudo, que
a imagem do nordestino, ainda hoje, carrega boa parte dos estereótipos do
“verdadeiro macho”. O livro revela as penas e os prazeres envolvidos na
confecção desta verdade, mas sem torna-la mais verdadeira do que de fato
foi. Por isso, Durval também mostra o que várias vezes faz bambear aquele
edifício supostamente viril. Com a “invenção do falo”, o que parecia mudo
c lacunar ganhou, finalmente, presença e espessura dentro da história
brasileira.

São Paulo, 09 de fevereiro de 2013

Denise Bf.rnuzzi de Sant’Anna


I ntrodução

Um dia/ Vivi a ilusão/ de que ser homem bastaria


Que o mundo masculino/ tudo me daria/ Do que eu quisesse ter

Que nada/ Minha porção mulher/ que até então se resguardara


E a porção melhor/ que trago em mim agora/E o que mefaz viver

(...)
Quem sabe/ 0 super-homem venha/ nos restituir a glória
Mudando como um deus/ o curso da história/por causa da mulher.

“Super-homem, a canção”, Gilberto Gil

Enrijecimento de organismo potente; tipo fisicamente constituído


c forte; aspecto dominador de um titã acobreado; verdadeiro pai-degua;
gritando muito e descompondo como um capitão de navio; homem bravo;
homem de gênio forte; cabras se fazendo em arma com facilidade; falando
sempre em mulheres; quase nus de brincadeiras uns com os outros e com
os gestos dos touros, de pernas abertas e membros em riste, no deboche, na
gargalhada; homem encourado, vermelho, com o guarda-pcito encarnado
desenhando-se o busto forte e as longas perneiras ajustadas ao relevo
poderoso das pernas; uma rajada de saúde c força; músculos salientes e
maos calosas; mãos que seguram o fumo de corda c o canivete com que faz
o cigarro dc palha; maos que manejam o chicote, o rebenque c a repetição,
que manejam os íacõcs, os machados e as foices, derrubando árvores c
18 nordestino: invenção do “falo”

homens, jogando para longe matas, inimigos e assombrações; rostos


picados de bexiga, fechados e soturnos, contraídos de raiva, que veem raios
e ouvem trovões, escutam o miado das onças e o silvo das cobras; cabra
macho que luta como Lampião, que enfrenta um batalhão, que trabalha
de sol a sol, que de noite vai pro sermão, que reza para Padre Ciço e fala
com Frei Damião; homem que prefere morrer a ser desonrado. Ser às vezes
desgracioso, desengonçado, torto; andar sem firmeza, sem aprumo, quase
gingante e sinuoso, aparentando a translação de membros desarticulados;
que, caminhando, não traça trajetória retilínea e firme; aparência de cansaço
que ilude, pronta a se transfigurar diante de qualquer incidente, estadeando
novas linhas na estatura e no gesto; cabeça que se firma, alta, sobre os
ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte; descarga
nervosa instantânea; figura vulgar de tabaréu canhestro a se desdobrar em
força e agilidades extraordinárias. Eis o nordestino.1
O nordestino é uma figura que vem sendo desenhada e redesenhada por
uma vasta produção cultural, desde o começo deste século. Figura em que se
cruzam uma identidade regional e uma identidade de gênero. O nordestino
é macho. Não há lugar nesta figura para qualquer atributo feminino.
Nesta região até as mulheres são macho, sim senhor! Na historiografia e
sociologia regional, na literatura popular e erudita, na música, no teatro,
nas declarações públicas de suas autoridades, o nordestino é produzido
como uma figura de atributos masculinos. Mesmo em seus defeitos é com
o universo de imagens, símbolos e códigos que definem a masculinidade
em nossa sociedade, que ele se relaciona.
Tendo sido construído no começo deste século, entre o final dos anos
1910 e começo dos anos 1920, junto com a região de quem é filho, habitante
e sujeito, o nordestino é uma figura que atualiza várias imagens e se diz
através de vários enunciados que antes definiam o nortista, o sertanejo, o
brejeiro, o praieiro, identidades com que, até então, se definiam os moradores
deste espaço. E preciso, pois, estudar como se produziu historicamente esta
figura que tem hoje extrema importância nos embates políticos e regionais
no país. O objetivo deste texto é entender o porquê de ter emergido nesse
momento esta figura e o porquê de esta ter sido elaborada como uma

1. ALMEIDA, José Américo át. A bagaceira. Rio dc Janeiro: José ()lympio, 1988; ('(JNI IA,
Eudides da. Os sertões. 30. ed. Rio dc Janeiro: 1'rancisco Alves, 1981; ()UI IROZ, Radiei
de. Oauinze. Rio de Janeiro: José Olympio, 1948; Rl',( IO, José l .ins do. Meus verdes anos.
Rio dc Janeiro |ose ( Hynipio, |9S6,
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 19

figura masculina. È acompanhar as práticas discursivas e não discursivas


que produziram este ser nordestino, atribuindo a ele uma essência e uma
identidade. Com quais facetas a masculinidade se apresenta no Nordeste?
Ila possuiu e possui muitas formas? Quais? São questões que nortearam
a nossa pesquisa.
Portanto, este é um texto que trata da história dos homens, não da
cspccie, mas do gênero, do masculino em particular. Mas existirá uma
história que não seja dos homens? Durante muito tempo a chamada
historiografia dos excluídos, dos vencidos, da sexualidade e das mulheres
icspondeu negativamente a esta questão. Donos do poder, ocupantes do
< .paço público, produtores da riqueza, chefes da família, responsáveis
perante as leis, controladores da cultura, os homens não teriam deixado
lugar para as mulheres na história. Consequentemente, toda a memória
da sociedade, toda a história da humanidade seria dos homens. Esta
historiografia preocupada em dar voz aos excluídos, aos vencidos, se
preocupou em fazer a história das mulheres, dos homossexuais e de alguns
homens: os negros, os operários, os camponeses etc. Mas esta historiografia
dos excluídos excluiu fazer uma história dos homens. Partindo de uma
visão dualista e identitária, opôs o ser mulher ao ser homem como duas
realidades distintas e homogêneas. Influenciada em grande parte pelo
discurso feminista, esta historiografia fez do homem um outro nunca
analisado e definido, por oposição ao que se definia como mulher. Este
discurso historiográfico terminou por criar uma situação que poderiamos
delinir, parafraseando Paul Veyne: se tudo é história dos homens, logo ela
não existe.2
Esta visão diádica dos gêneros está presente em grande parte da
historiografia das mulheres, dos excluídos, da sexualidade e mesmo de
gênero inspirada no marxismo, na psicanálise, nas teorias da Escola de
I rankfurt e no existencialismo fenomenológico de Sartre e Simone
dc Beauvoir. Esta historiografia faz da experiência social de ser mulher
mi dc ser homem duas homogeneidades antitcticas e trans-históricas,
enfatizando apenas as semelhanças internas a cada experiência e suas
diferenças externas. A historiografia marxista, notadamente aquela
provinda da militância feminista, para captar o significado de gênero e
sexualidade recorre aos conceitos de trabalho e reprodução. A“expropriação
20 nordestino: invenção do “falo’

organizada da sexualidade” definiria uma classe, a saber, a das mulheres,


colocando-as em pé de igualdade com os outros excluídos e vencidos na
história, podendo ter uma atitude revolucionária em relação à sociedade,
por exemplo aos operários e camponeses. Catherine MacKinnon3 chega a
defender uma “greve sexual” comparável à “greve geral” dos trabalhadores.
A reivindicação das mulheres neste discurso é tornar-se trabalhadora,
participando diretamente da reprodução da sociedade, o que significa a
própria desqualificação do trabalho doméstico realizado pelas mulheres,
que não é encarado como fazendo parte da reprodução da sociedade.
Esta crítica à forma como a historiografia das mulheres usou durante
muito tempo as categorias da teoria social de Marx é feita inclusive por
historiadoras que se consideram marxistas como Linda Nicholson.4
A dificuldade de pensar a diferença e a particularidade sem reduzi-las
à irracionalidade levou não só ao pressuposto de que haja uma experiência-
de-ser-mulher generalizável, identificável e coletivamente consensual,
como também a pensar a experiência-de-ser-homem a partir deste mesmo
pressuposto, com o agravante de que esta experiência é pressuposta a partir
de um contraponto com a das mulheres. A historiografia de inspiração
psicanalítica defende a existência de uma “psique feminina” em oposição
a uma “psique masculina”. Não conseguindo opor-se à tradicional
divisão entre dois "eus", um se assentando na esfera da racionalidade,
do pragmático e do utilitário, o eu masculino, e o outro se assentando
na esfera da irracionalidade, do sentimento, do fantasioso, do pouco
prático, o eu feminino, este discurso quase sempre se limita a inverter o
sinal do discurso que valoriza o que seria o “eu” masculino, valorizando
o sentimental, as dimensões afetivas representadas pelas mulheres. Isaac
Balbus, Dorothy Einnestein e Nancy Chodorow,5 por exemplo, partem de
conceitos como subjetividade, totalidade e história para afirmarem não só
a possibilidade como a necessidade da elaboração de uma metanarrativa
da subjetividade masculina tida como violenta e autopreservadora, o que
não passa de uma narração já dada da identidade de gênero e uma visão
essencialista dos gêneros. Identificadas as experiências fundamentais que

3. MACKINNON, Catherine. “Feminismo, marxismo, método c !•'.-.t.uli • Agenda para uma


teoria”. In: Feminismo como crítica da modernidade. Rio de |anciio R..... do, 1'einpos, 1987.
4. N 1(11( )l .80N, Linda. “Fetniniiino e Marx: Integrando o pau nt< <u o min o e< onômico".
In: Feminismo como crítica da modernidade. Rio de lanclro Rm < do limpo,., 1987.
S Cl IOI )OROW, Nam y Pdiamlliu’da maternidade Rliidi lainlm R..,ido. limpos, 1987.
IURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 21

separariam os gêneros, poder-se-ia generalizar um ser mulher e um ser


homem antitéticos e excludentes.
A dicotomia entre espaço público e espaço privado é outro ponto
de partida para se pensar a diferença das experiências masculinas c
femininas. De inspiração frankfurtiana, notadamente habermasiana, esta
historiografia dos gêneros, da sexualidade ou das mulheres, não consegue
tillrapassar a dicotomia entre estas duas esferas, entre o lugar do sistema
c o do “mundo da vida”, entre o lugar dos agentes econômicos, cidadãos
políticos e pessoas jurídicas e o lugar da intimidade, da sexualidade e
da afeição. Nancy Fraser,6 por exemplo, embora parta da teoria de
I labermas, critica a distinção rígida que esta pressupõe entre as esferas
de reprodução material e simbólica do social, que mantêm a distinção
i igida entre lugares de homens e de mulheres. A dicotomia entre uma
lazão pública “imparcial”, “objetiva” e a esfera íntima, doméstica ou
lamiliar ostensivamente “pré” ou “antirracional é o ponto de partida para
r. análises de íris Young, Seyla Bcnhabid c Maria Markus,7 mesmo que
seja para inverter este discurso.
A historiadora dos excluídos e das mulheres Michelle Perrot também
<>pcra com esta distinção entre espaço público e espaço privado para pensar
.1 história dos gêneros. Embora seus trabalhos mais recentes tenham
superado esta visão dicotômica, nos seus primeiros trabalhos Perrot parte
<l.i diferença entre experiências públicas e privadas para tentar resgatar a
historicidade do privado, no qual estariam as mulheres. Sua crítica incide
•.obre o fato de que apenas o espaço público é visto como espaço onde
se desenrola a história, espaço dos homens, guindados assim à condição
de únicos agentes do processo histórico. Procurando penetrar no que
< < msidera a memória tênue das mulheres, no mundo de segredos, sussurros
<■ sombras que é o espaço privado, Perrot tenta nestes trabalhos encontrar
uma mulher rebelde, uma mulher resistente à dominação masculina. Como
mais tarde ela mesma admitirá, tanto as experiências das mulheres, como
a dominação masculina são vistas de forma homogênea, sem descontinui-
<lades. A mulher seria de forma global e sistematicamente a excluída e o

6 I RASER, Nancy. “Que é crítico na teoria crítica? O argumento de Habermas e o gênero”.


In: beminismo como crítica da modernidade. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1987.
7 MARKl IS, Maria. “Mulher, êxito c sociedade < ivil: submissão ou subversão do princípio
tia lealizaçilo". In beminiano como entoa da modernidade. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos,
1987.
22 nordestino: invenção do “falo”

homem o dominador implacável e excludente. Cruzam-se neste discurso


as imagens da mulher vítima e da mulher heroína.8
E esta mesma imagem que nos fica da leitura de Simone de Beauvoir.9
Embora tenha sido decisiva no sentido de se pensar o gênero como
produto de uma experiência histórica e cultural, desnaturalizando o gênero,
permitindo inclusive que se possa separar esta categoria da categoria sexo,
ponto de partida para toda uma nova literatura sobre as mulheres, deixando
o gênero de ser um mero atributo corporal, para ser um produto social,
Simone de Beauvoir termina por considerar que, sendo o corpo da mulher
uma situação social e essa sociedade produto da dominação masculina, a
mulher em grande medida é um produto masculino, repondo novamente
a dicotomia e deixando nas entrelinhas que a única saída possível para as
mulheres era a tomada do poder na sociedade. Sendo o projeto de assumir
um gênero algo que ocorre dentro de um campo de relações sociais, que
limitam a liberdade do sujeito desde o início, só a reversão total destas
relações sociais permitiría a emergência de um novo projeto de gênero.
Mulher e homem continuam sendo aí unidades, identidades, essências,
embora produzidas histórica e culturalmente. Embora ser mulher não
fosse mais uma fatalidade da natureza, era ainda uma fatalidade social.
As hierarquias colocadas pela divisão binária e heterossexual dos gêneros
são tomadas como ponto de partida para a crítica da desigualdade entre
eles, reivindicando o igualitarismo, nunca se fazendo, no entanto, a crítica
à própria divisão binária e heterossexual, não se percebendo o ser mulher
e o ser homem como multiplicidades, inclusive sujeitas a transversalida-
des, ambiguidades e indiferenciações. Não se vai além do masculino e do
feminino, como foi a pretensão desta pesquisa e é a deste texto final.
Partindo, pois, do falso pressuposto de que a história era desde sempre
a história dos homens, seja como indivíduos, seja como participantes de
fatos coletivos, não só a historiografia dos excluídos, das mulheres e da
sexualidade, como a própria historiografia de gênero vêm sistematicamente
pouco focalizando o masculino e as experiências-de-ser-homem. E neste
lugar historiográfico pouco explorado que este trabalho quer localizar-se:
enfocando mais particularmente as experiências-de-ser homem numa
região do país onde o ser masculino é definidor não só da identidade de

K. PERRO I, Mkhcllc. Os excluídos du hi\/ríriu. Rio d< l.uirim !'• » Iriiii, |MKH
III' AUV( >1 R, Simone <lc. O \cvundo sexo. Silo Pillllo I hh I, 1’^» /J vol
IHIIIVA1. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 23

l < mio de seus habitantes, como um importante elemento na definição da


piópi ia identidade regional.
Embora o discurso da identidade regional opere com a lógica da
m nielhança, unificando experiências, construindo uma ideia de essência
ii gional, para fazer isso trabalha com uma multiplicidade de elementos,
ii mi um conjunto de signos, experiências, práticas e discursos que se
li H tiam partes de um todo, que convergem para a criação de uma imagem
liornogcnea do que seria característico da região. Este discurso da
i.li iilidade regional oscila, pois, entre o uno e o múltiplo. A masculinidade
i ipenas um elemento constitutivo da identidade regional nordestina, mas
• Inndamental na construção de uma figura homogênea e característica que
i t hamará de nordestino. Por isso, as experiências e vidas de homens numa
região onde “ser macho” é um imperativo podem ser um excelente ponto
>li partida para fazer a história dos homens, não mais como indivíduos ou
p.n ticipes de feitos coletivos, mas como gênero, não a história dc homens
mino agentes do processo histórico, mas como produtos deste mesmo
pmeesso, a história dc homens construindo-se como tal, a história da
pmdução de subjetividades masculinas, em suas várias formas, a história da
iiiulliplicidade de ser homem. È interessante saber se no Nordeste, como
m>('cará tem disso ou não.
Esta pesquisa metodologicamente procurou operar em dois registros,
ao nível dos discursos que estrategicamente definiram um ser para o
nordestino, uma visibilidade e uma dizibilidade, e ao nível das práticas
i olidianas dos homens neste espaço, que podiam vir ou não a reproduzir
i >s < ódigos de masculinidade, de gênero e o dispositivo da sexualidade que
estes instituem, mesmo sabendo que discursos e práticas mantêm entre
■ i uma relação de circularidade, não no sentido vertical-horizontal, mas
no sentido quântico, de transversalidade e multiplicidade de inter-relações
na trama histórica. Mas com Michel Foucault10 e Michel de Certeau11
a prendemos que existe uma brecha entre o dizer e o fazer, que inventa
uin cotidiano diferenciado daquele que os discursos enunciam. As práticas
cotidianas dc gênero, dc ser homem não estão determinadas nem pela
giuitalidade, nem pelos códigos de sexualidade. O gênero nem c natural,
sendo uma criação histórica c cultural, nem está preso completamente a

lü |( H K Al H I, Mi< licl As palavras e as coisas Silo Paulo: Martins Fontes, 1985.


II ( I R I I .Al I, Mh li< I dc A invenção do cotidiano Pctrópolin Vo/m, 1994.
24 nordestino: invenção do “falo”

uma ordem dominante de prescrições.12 Mesmo dentro de uma cultura


como a nordestina, em que as práticas, imagens e enunciados definem
e exigem de forma muito estrita o ser masculino, as maneiras de prati­
car este gênero são variadas, as trajetórias culturais metaforizam a ordem
dominante, impõem a estas microrresistências, gestando microdiferenças.
Trajetórias culturais de homens que muitas vezes podem ser exemplos da
arte no exercício ao mesmo tempo da ordem e da burla.
Trabalhar com a noção de trajetórias culturais implica pensar a cultura
não como homogeneidade, mas como campo de confrontos e atravessado
por fluxos multidirccionais. A_trajetória é uma combinatória de operações
indeterminadas, uma sucessão diacrônica de pontos percorridos por um
sujeito que se constrói e se desmancha permanentemente. O que nelas
interessa são as formas de que os usuários se apropriam de um estoque
de imagens, enunciados e técnicas de produção sociocultural e subvertem,
nem que seja esporadicamente, a sua estratégia de utilização.13
Esta pesquisa trabalhou simultaneamente ao nível das estratégias que
produziram, mapearam e tentam disciplinar o ser homem nordestino,
e ao nível das táticas por estes empregadas no seu cotidiano para
manipular, utilizar, alterar estas estratégias. Entendemos estratégia como
procedimentos que nascem de um cálculo das relações de força e que são
empreendidos por um sujeito de poder e de querer para atingir objetivos
previamente traçados. Já a tática não demanda um lugar como a estratégia,
não calcula, vigia e capta no voo as possibilidades de ganho; é um ato que visa
a aproveitar uma ocasião, não é necessariamente articulada discursivamente,
é um gesto, breve efeito cuja força pode se desvanecer imediatamente,
multiplica as máscaras e as metáforas, desaparece no próprio ato.14 Como
diz Foucault: “sob a pedra polida das palavras, o descalabro, a sanha” dos
homens infames.15 De um lado, acompanhamos memórias de homens
famosos, discursos que definiram uma modalidade de existência, modos de
circulação, de valorização, de atribuição, de apropriação de uma identidade
de nordestino e de homem macho e de honra, que definiram procedimentos
de sujeição dos corpos a uma identidade masculina; por outro, acompanha-

12. COSTA, Jurandir Freire. /I inocência e o vício. 3. ed. Rio de Janeiro: Relunie Dinnará, 1992.
13. CERTF.AIJ, Michel de. Of. cit.
14. Ideni.
1 S. 1'01 ICA1II .1, Michel. “A vida iIoh hoineiiH lllhinicH" In: <) i/in' <• uni uiifui I .ishoa: Vcga,
HUIIVAI. MUN1Z DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 25

um'. vidas de homens sem fama, vidas singulares tomadas como estranhos
pmi nas, vidas que transparecem de breves relatos, documentos, fábulas em
> |u> apresenta a dramaturgia de uma vingança, de um ódio, de um crime,
d> um adultério, textos cheios de amor, gritos, súplicas, choros, decepções,
ili intrigas de homens que não conseguiram ou não quiseram em suas
11 i|< lórias de vida atualizar o modelo de homem nordestino proposto pela
mdi in dominante, momentos de autoprodução, de uma escrita de si, da
iidoçao de um estilo de ação diferente, de subjetivação de possíveis novas
Intmas de ser homem.16
I )c um lado pilhas de imagens e textos definindo quais são os bons
u .os e costumes de um homem no Nordeste, de outro lado todos aqueles
apanhados em flagrantes de “maus costumes”, lados que se trocam, se
> iii/am, se embaralham. Não trabalhei nesta pesquisa os costumes como
implcs procedimentos estereotipados recebidos e reproduzidos por um
p.iupo, como procedimentos dotados de uma rigidez repetitiva e que
impõem lugares fixos, mas procurei as astúcias, as artimanhas na forma de
atualizar e repor esses costumes. Fiquei atento para como os contextos de
u i • lelativizaram esta rigidez dos códigos de costumes, como estes puderam
■ i vulgarizados, degradados, reinventados, dando origem a uma serie de
pioccdimentos que a polícia de costumes chamará de “maus costumes”.17
< nino estes sofreram efeitos imprevistos de criatividade, de resistência, de
mtidisciplina. Uma camada social de práticas sem discursos, de gestos sem
vi idades, que subverteram a tagarelice dos discursos, que tiveram efeitos
• Ir poder específicos, que obedeceram a funcionamentos lógicos próprios e
puderam produzir alterações nas instituições da ordem e do saber.
Quero, pois, neste texto, contar e narrar histórias de homens que
multipliquem o rosto do nordestino, retirem a sua seriedade, mostrem a sua
multiplicidade de ser. Relatos que atravessem e organizem lugares antes
insuspeitos para o ser masculino, questionando as identidades de gênero
i in nossa sociedade, produzindo outra geografia do desejo masculino, de
seus fluxos c trajetos, de suas maquinações, figurar, assim, um novo espaço
do prazer para o homem nordestino, como para a própria mulher que
com ele se relaciona. Cartografar as mudanças que, ao longo deste século,
ocorreram no significado do ser nordestino.18

lí. lilcin "A escrita de si". Iii: O que t um autor. Lisboa: Vcga, 1992.
17. (T.H Ti:AI I, Michel de. 0/>. cit.
i>< i n i i i r/i,< iiiii< ;i iar i ari. t <Iim ubn.>197.1.
A Leminização da Sociedade

1) Na horizontal: as mudanças sociais vistas como


I I M1NIZAÇÃO DOS COSTUMES.

il) O NIVELAMENTO SOCIAL

Destaque-se do conservantismo ou do tradicionalismo com que Antônio


Conselheiro pretendia valorizar no Brasil o culto do Pai (Pontífice, Príncipe,
Pai), contra os excessos de um republicanismo a seu ver demagógico, anárquico
e antirreligioso que, em certos pontos, coincidia com o conservantismo ou o
tradicionalismo de brasileiro de elite, que vinham se desencantando com a
República de 89. Em 1909 Souza Bandeira escrevia que..., com efeito, ‘era
tempo de voltar atrás enquanto os males não se acentuam’. Nas suas palavras:
‘Não nos envergonhemos de confessar os erros e tratemos de consolidar
a República, cimentando-a com a experiência de nossos antepassados,
inspirando-a na larga fonte das tradições nacionais (...). Só faltou, para
aproximar-se do tradicionalismo do Conselheiro, que às ‘tradições nacionais’
acrescentasse as tradições Católicas de ordem, de autoridade e de hierarquia.1

Nesse trecho de seu livro, publicado em 1959, Ordem eprogresso, Gilberto


I i eyre parece expressar um sentimento muito presente entre os membros
das elites brasileiras, notadamente entre os homens do Norte c do Nordeste,
na primeira metade do século, cm relação a algo que acabava de transcorrer,
ou seja, o sentimento de que a República e a Abolição da escravidão, que a

I I RI’ YRI*, ( h>Ofilctn r•


hIIm i Rio d» I.iikiio |om; ()lyinpio, 1959, pp. 159 160.
28 nordestino: invenção do “falo”

antecedeu em um ano, trouxeram sérias ameaças para a ordem, a autoridade e,


principalmente, para a hierarquia social. Como diz Freyre, numa surpreendente
solidariedade com o Conselheiro, certas tradições do Brasil católico, escravista
e monárquico estavam sendo solapadas pelo que estas elites consideravam ser
as tendências niveladoras, democratizantes, desorganizadoras, anárquicas até,
do republicanismo democratizante de inspiração europeia e, principalmente,
norte-americana.
Estes discursos de explícito conteúdo autoritário e conservador conside­
ravam essas tendências de democratização da sociedade e da política brasileira
como exóticas em relação à nossa história política e social, não fazendo parte
das tradições nacionais, que precisavam ser defendidas, sob pena de nosso
país vir a perder a sua originalidade, a sua identidade, vir a ser incorporado
de forma subordinada a um processo civilizatório que se apresentava sob o
rótulo do progresso, da modernidade e da modernização, mas que, na verdade,
significaria a nossa subordinação política, cultural e econômica a nações que
imperialisticamente queriam nos anexar.
Estes discursos vão operar com a separação conceituai entre as noções
de civilização e cultura. A primeira remetería à dimensão material, objetiva
da existência e estaria sendo revolucionada pelos avanços internacionais nos
campos da ciência e da técnica. A civilização, nestes discursos, é associada a
um processo de mutação histórica que se dava em nível internacional, sob
os influxos dos países imperialistas. Ela implicava uma tendência geral de
estandardização da cultura, da prevalência da dimensão instrumental sobre a
subjetiva, e implicava a perda daquilo que singularizava cada nação ou região.
Já a cultura remetia a estas particularidades que cada país ou região devia
cultivar. A cultura estaria mais ligada às “coisas do espírito”, era a manifestação
do caráter, da personalidade, do espírito de um povo, que devia, portanto, ser a
base da elaboração da identidade nacional ou regional. A civilização era o fluxo
histórico, a ameaça de perda da identidade, a modernização e a modernidade;
já a cultura seria a tradição, o costume, a memória. Podemos ainda, seguindo
Simmel, dizer que estes discursos operavam com a separação entre uma cultura
objetiva e uma cultura subjetiva.2

2. Ver SIMMEL,Georg. On individuality and socialforms. Chicago: lhe l Jniversity of Chicago


Press, 1971. Esta diferenciação entre as noções de civilização e cultura e suas implicações
para a abordagem das mudanças históricas do começo do século xx estão presentes cm:
El .IAS, Nobci t .0 processo civilizador. Rio de |.m< no Jorgfl /.ili.n, 1990) ÍODOROV,
Tzvclan. Nós r or outros. Rio de Janeiro: |otgc Zahat, 199 I
UIIIIVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 29

() que nos chama atenção no discurso freyreano, que se inscreve numa série
ili discursos que podemos datar de pelos menos o final do século XIX, é que
i .!<■ perigo de quebra das hierarquias sociais e o consequente nivelamento dos
d d cientes grupos que segmentavam a sociedade são sempre descritos a partir de
im.ip.i ns que remetem à família e, mais particularmente, a uma ameaça ao Pai,
......... representante da autoridade, da ordem e da hierarquia. Como tentarei
ili in<instrar na primeira parte deste trabalho, todas as mudanças históricas que
imli.im ocorrendo, desde pelo menos o final do século passado, mas que se
1.1 ninaram após a Primeira Guerra Mundial, conforme os autores são quase
mi.mimes em reconhecer, são descritas como uma feminização do social, como
iim processo de horizontalização que este gênero representaria. Não é à toa que
< . 111 k i to Freyre descreve este processo como sendo aquele que levou ao declínio
iln que chamou de patriarcalismo, ou seja, uma sociedade onde o predomínio
iln homem, do macho, do Pai, não seria contestado, em que em torno destas
lijmias se estruturava toda a ordem social. Segundo poderemos perceber, ao
liinpo deste trabalho, o feminino é constantemente associado, nestes discursos,
i Imi izontalidade. A mulher no próprio ato sexual representaria esta posição,
i nquanto o homem, o poder, o domínio, o ativo, representaria a verticalidade,
i urdem hierárquica que não deveria ser ameaçada.
listes discursos masculinos falam com temor de um alastramento do
li iniiiino pela sociedade, trazido pela abolição das fronteiras entre etnias e raças
< m n a Abolição, pelo progressivo acesso ao mundo da política de parcelas da
i H iedade antes excluídas, com o advento da República, pela necessária ampliação
do espaço social para a inclusão de novos grupos que emergiam com crescente
mllucncia e poder como: os comerciantes, os industriais, os operários, a classe
media c, notadamente, as mulheres, surgidos todos com o processo de urbanização
i industrialização, vistos como agentes principais neste processo de desvirilização
■ l.i sociedade, trazido pela perda progressiva dos valores, sociabilidades e
i m.ibilidades descritas como patriarcais. Este temor se intensifica à medida que
i nirige o movimento feminista reivindicando mudanças na condição feminina.
( > mundo dos patriarcas paternais estava em ruína, um mundo feminino parecia
ivi/inhar-sc. Como evitar que isso viesse a ocorrer? Essa parece ser a preocupação
di ii ■. intelectuais c representantes das elites de que me ocuparei.3

I Sobre a crescente ansiedade masculina diante das mudanças no lugar do feminino no início
do século xx, ver: LE RiDER, Jacques. // modernidade vienense e as crises de identidades.
Rio de laneiro: CivilizaçAo Ihasilrira, 1992 c (JAY, Pcter. /I experiência burguesa da Rainha
I ifiHiaa 1'ieud a educação do\ sentidm Srto Paulo Companhia das Letras, 1988.
30 nordestino: invenção do “fai.o’

O livro de Freyre fala do período de transição entre o que chama uma


sociedade patriarcal e uma sociedade que caracteriza ora como individualista,
ora como industrial ou como burguesa, período que se podería localizar entre
os anos 70 do século xix e os anos 30 do século seguinte. Esta transição seria
marcada por

um notável surto igualitário da parte da numerosa população de cor que desde


1871 foi deixando de nascer escrava: igualitarismo em relação à população
livre. E, ainda, da parte da gente sertaneja, em relação com a do litoral; da
parte da adventícia em relação com a já antiga no país; da parte da acatólica em
relação com a católica... Eram substâncias étnicas ou culturais, se não novas,
sequiosas ou desejosas de novas funções e novas situações, a se acomodarem a
já tão antigas formas sociais de convivência e de cultura nacionais: formas que
tiveram de expandir-se ou dilatar-se para acomodar tais substâncias novas.4

O que se colocava como tarefa para as elites do país, segundo o autor,


era como alargar a sociedade para incluir estes novos agentes sociais e suas
reivindicações, sem que a ordem social fosse solapada, sem que as hierarquias
fossem seriamente invertidas. É neste contexto de mudanças e de preocupação
com a inclusão de novas demandas sociais que a mulher aparece como uma
questão. E nítida, neste momento, uma crescente preocupação com a possível
quebra das hierarquias de gênero, que estes discursos definem como hierarquias
de sexo. As mudanças trazidas pelo fim da sociedade escravista, inclusive para a
organização da família, pareciam solapar os lugares de sujeito tradicionalmente
reservados para homens e mulheres na sociedade. A emergência do movimento
feminista e as mudanças de comportamento atribuídas às mulheres, trazidas
pela vida urbana e pelo mundo que se modernizava, pareciam ameaçar a
dominação masculina de forma insuportável para homens que teriam sido
educados numa “ordem patriarcal”.
Estes discursos falam, portanto, não apenas de mutações que ocorriam
nas estruturas econômicas e sociais, com o advento do capitalismo industrial
em nosso país, mas tratam, também, de mutações subjetivas. O que parece
assustar essa elite intelectual nordestina são as mudanças que aconteciam tanto
no modo de produção de mercadorias, mas também no modo de produção
de subjetividades. Os lugares e identidades dc sujeito estavam cm processo

•I. 1'REYKE, (üllx-iio. ()/>. àt , |' ( xis


IHIKVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 31

■ I' mutação. Os territórios existenciais tradicionais sofriam um processo


<l« dcsterritorialização, de destradicionalização. O que parecia ordenado,
■ .i.itico, imóvel, certo, inquestionável, começava a se mover para contestar
a mdcm anterior. Os homens e as mulheres já não eram mais os mesmos,
|.i niio reproduziam sem questionamentos os modelos sociais anteriores, as
hierarquias sociais que vinham do passado. Estava se modificando não apenas
a lorma de fabricar artefatos e objetos, mas, principalmente, a forma de se
labiicarcm sujeitos.5
lista ameaça de nivelamento social era reflexo das promessas de igualitarismo
que nos chegava do estrangeiro, principalmente com o comunismo. Júlio Belo, em
iiii inóiia publicada em 1935, diz que o comunismo “empolgava pelas promessas
d, l.u il satisfação dos mais grosseiros gozos da vida à imaginação do povo miúdo”,
i pela “promessa de todos se tornarem proprietários sem trabalho e sem obrigações
luiiitas”. E conclui: “A par disto, a humilhação do patrão que é sempre um gozo,
i subversão da moral dando lugar à prostituição coletiva e desenfreada, todos os
di ii-giainentos constituídos em direitos: liberdade de embriagar-se, de jogar, de
> adiai sem freios nem cuidados, de dar pancada, de amofinar a paciência dos que
ii mostrarem infensos a essas demasias”faziam do comunismo um discurso quase
ii o istívcl para o “povo miúdo”, deixando os graúdos em polvorosa.6

S O sujeito é visto neste trabalho como um lugar de agencia e de fala social e historicamente
definida. O sujeito não é tomado como um a priori seja do acontecimento, seja do discurso,
mas emerge no acontecimento e se inscreve no discurso. O sujeito é a resultante de um
11 unplexo processo histórico, é produto de uma fabricação para a qual contribuem inúmeros
processos sociais. A identidade do sujeito se define nas suas relações de poder e de verdade
r está permanentemente em elaboração, portanto os lugares de sujeito, mesmo aqueles
sustentados por uma poderosa institucionalização, nunca impedem o fluxo, estão em
permanente devir. Para esta discussão em torno das noções de sujeito, lugar do sujeito,
subjetividade e modo de produção da subjetividade, ver: FOUCAULT, Michel. Ditos e
estritos I (Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise). Rio de Janeiro:
f orense Universitária, 1999; História da sexualidade i - a vontade de saber. Rio de Janeiro:
(ítaal, 1990; FONSECA, Marco A. Michel Foucault e a constituição do sujeito. São Paulo:
F.d. da puc/sp, 1995; LINS, Daniel (Org.). Cultura e subjetividade. Campinas: Papirus,
1997; DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Fclix. O Anti-Édipo. Rio de Janeiro: Imago, 1976;
HIRMAN.Joel. Entre cuidado e saber de si. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000; PAIVA,
Antônio C. S. Sujeito e laço social. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000; GONÇALVES,
Rol >son P. Subjetividade e escrita. Bauru: Edusc; Santa Maria: ufsm,2000.
Sobie a noção de dcsterritorialização, ver: DEI .1 UZE, Gilles; GUATTARI, Fclix, OAnti-
/ dipn, r it. Paia a noção dc destradii ionalização, ver: GII1DENS, Anthony. As consequências
da modernidade. Sao Paulo: unesi', 1990.
I, III I,O, Júlio. A lemónas dc um senhm </<■ engenho. I ed Reiife f UNDARPE, 1985, pp. 185
186.
32 nordestino: invenção do “falo”

Este texto, escrito sob o impacto do movimento de 1935, conhecido como


Intentona Comunista, parece nos falar da ameaça de novos tipos de gozo, de novos
desejos que se disseminavam pelo social, entre eles o desejo pelo igualitarismo,
pela quebra das hierarquias sociais e pelo solapamento do direito de propriedade,
ameaçando a sociedade com uma “prostituição coletiva”. Os fluxos dos desejos
pareciam ameaçar a ordem fundada na Razão, o mundo parecia caminhar para se
tornar cada vez menos compreensível para estes homens que vinham do século
anterior. A emergência de novas racionalidades é vivida como a explosão de
irracionalismos que ameaçam destruir uma ordem que não deveria ser alterada.
Estes novos tipos de gozo a prevalecer no social pareciam remeter a mais uma
ameaça de nivelamento, aquela que equiparava desejo e razão. Gozar com a quebra
das hierarquias, com a humilhação do patrão parecia remeter a sociedade para o
reino feminino da prostituição, para a desordem do feminino que esta prática
representaria. Este texto lamenta a progressiva falta de consideração com que
são tratados os antigos senhores de engenho, cada vez mais rebaixados e tratados
como se fossem pessoas da mesma igualha por qualquer trabalhador do eito.7
A alteração das relações de trabalho, inicialmente com a abolição da
escravidão, e, posteriormente, com o que Freyre chama de restrição ao
individualismo liberal, nos fala de um processo de crescente intervenção do
Estado nestas relações, com a repercussão aqui da ideia de direitos sociais que
vinha se desenvolvendo na Europa, principalmente após a Primeira Guerra
Mundial, o que incluía a elaboração de uma legislação de proteção ao trabalho
feminino, que ocupava cada vez maior parcela do mercado de trabalho à medida
que a industrialização avançava em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e
Recife. Só a ideia de que trabalhadores pobres, de cor e mulheres possuíam
direitos era extremamente impactante para setores sociais recém-saídos da
escravidão. Na verdade, o que Freyre chama de restrição ao individualismo,
podemos interpretar como o processo de restrição crescente às relações
pessoalizadas, e a emergência de uma sociedade de indivíduos, que possuem
direitos e deveres sociais e não são vistos mais como pessoas que têm direitos
e deveres em relação a uma pessoa hierarquicamente definida como superior.

7. Ver: Idem, p. 193. Sobre as relações entre desejo, razão e história, ver: GIJATTARI,
Félix; ROlÀ^lK,Sue\y. Microf>olt'ticas: cartografias do <lesf/ri. .’ ed 1'etmpolis: Vozes, 1986;
DELEIJZE, (lilles; GliAI TARI, lelix. Mil plati* ca/‘ilali\ni“ , riyimzo/,<■/((« Rio de
Janeiro: Editora 34, 1995, 5 vols.; BESANÇON, Alaiit '<) llu iillsi lenli <> episódio da
prostituta em Que Faz,cr? F. em (1 Subsolo” In I I <i<>ll, |aii|m i NORA, 1’ierre,
llmoiia ii"i'ri> Rio de latieilo l iam is< o Alvi I'i>, pp i | I
HIHH U MtINIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 33

I1 discursos falam de um aspecto central da modernidade, ou seja,


t i iiiiigêiida de um modo de produção de subjetividades que tem como
" ii 11.111 Ir a constituição de sujeitos individuais. A individuação implica “escolha
(|tin i bfilos de vida, produção de biografia, autoprojeto e autorrepresentação,
li in mio assim a passagem da biografia padronizada, garantida e fixada pelo
iohIi \f(> da tradição, à biografia reflexiva”. De uma identidade pessoal que

n mli .1 reproduzir modelos e lugares de sujeito previamente definidos, passa-


•i |hii.i a sociedade burguesa, em que cada subjetividade deve ser lapidada
lio riilido de se tornar autônoma e diferencial em relação aos modelos da
ii.idi,,.io () anonimato trazido pelas grandes aglomerações urbanas favorece
n di .picndimento dos antigos lugares de sujeito e a fabricação de novas
idi nlidades, que rompem, inclusive, com as hierarquias sociais cristalizadas. O
mi|i Ho se psicologiza ao mesmo tempo em que se destradicionaliza aumentando
i u i insegurança existencial, antes garantida pelo grupo.8
A Abolição aparece, na maioria dos discursos, como tendo exercido
liiipm tunte papel neste processo de nivelamento social, visto por alguns
ioiii agrado, por outros com desagrado. Embora condenem enfaticamente

a Abolição, pela forma abrupta como tcria ocorrido, sem indenização


• I" proprietários, levando, segundo eles, à desorganização da produção, à
di .i apilalização e à consequente decadência da lavoura do Norte, Freyre e
oiiims intelectuais ligados à elite açucareira defendem a ideia de que dentro
d.i própria sociedade escravista, através das relações sexuais interétnicas, já se
' '1'oçava uma tendência à democratização racial da sociedade, que se teria
!■ i ninado com a decadência de parcela da elite branca, que passou a aceitar e
o alizur casamentos interétnicos, desde que estes ocorressem com mestiços que
■ i ivatn cm ascensão social.9

II Paia a discussão das noções de indivíduo e pessoa, ver: GIDDENS, Anthony; BECK,
I lliiili; I.ASH, Scott. Modernização reflexiva. São Paulo: unesp, 1995; GIDEENS,
Anthony. A transformação da intimidade. São Paulo: unf.sp, 1991; COS I A, Jurandir
I ieire. Ordem médica, norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1984; LASCEI, Cristopher.
.7 cultura do narcisismo. Rio de Janeiro: Imago, 1983. Sobre a psicologização dos sujeitos
na modernidade, ver: GAY, Petcr. Op. cit.; BIRMAN,Joe1. Op. cit.-, FOUCAULT, Michel.
"A es» rita de si”. In: O que é um autor. Lisboa: Vega, 1992, pp. 127-160; LIPOVETSKY,
< lilles. A era do vazio. I ásboa: Relógio IYÁgua, s/d.; DUMONT, Louis. O individualismo:
uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1985; MAUSS,
Maiiel, “Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a noção do eu”’. In:
Sm lologia e antropologia. São Paulo r ru/l iuiNi', 1974, vol. 1,|’p. 207-241.
9 Ver I UEYRI'., Gilberto. Op. p. XXXI,
34 nordestino: invenção do “falo”

Mas o que nos interessa ressaltar é que esta ascensão social ou, pelo menos,
a mudança de status de elementos da raça negra aparece na obra de Freyre
como um processo de feminização da sociedade, já que este sociólogo trabalha
com uma série de imagens dicotômicas nas quais a raça negra aparece remetida
ao feminino, enquanto a raça branca é remetida ao masculino. Ele chega a
endossar a ideia, que atribui a alguns sociólogos, de que a raça negra é a raça-
mulher. Uma raça afetiva, sentimental, pouco racional, passiva, masoquista,
que marcaria com estes elementos a cultura brasileira, à medida que ascende
socialmente, tendo, inclusive, acesso à educação, tornando-se alguns de seus
descendentes, políticos e intelectuais com influência na sociedade.10
Freyre atribui ao declínio de uma elite branca de ethos aristocrático, que
vinha do Império, a crescente valorização social do mestiço culto, quase sempre
descrito como melífluo, pernóstico, preocupado com a aparência, muitas vezes
disposto a usar o pó de arroz para disfarçar sua origem étnica e o dente de ouro
para marcar o seu novo status social; quase uma dama na sua preocupação
demasiada com as vestimentas e com a sua forma de se apresentar em público.
Estes representariam bem o esforço que os novos-ricos faziam para demonstrar
não só que tcriam adquirido a civilidade e a educação das elites tradicionais,
como teriam superado estas em modernidade, antenados que estariam com
a última moda, vinda da Europa ou dos Estados Unidos. Neste aspecto, as
mulheres, por sua naniral frivolidade, seriam insuperáveis, crescentemente
escravizadas pela moda vinda de Paris.
A moda aparece nestes discursos como um indício da escravidão destes
sujeitos aos estilos de existência artificial e importados do exterior, quando, na
verdade, pode ser vista como um índice desse processo de autorreflexividade
e autoelaboração dos sujeitos, trazido pela modernidade. A moda faz parte
de uma fabricação de si, de um cuidado de si, de um processo de subjetivação
que se contrapõe aos modelos tradicionais de se vestir e de se comportar.
Ela vem denunciar o caráter cada vez mais performático dos sujeitos nesta
sociedade burguesa que se instalava. O estilo individual de ser, uma estética
da existência são elementos decisivos no novo modo de produção de sujeitos
trazidos pelo capitalismo urbano-industrial. Estes novos modos de ser, na
verdade, questionavam as formas tradicionais de se elaborarem subjetividades,
de se pensar os corpos e de se relacionarem com valores como a beleza e a
elegância. O incomodo causado pelas roupas, cabelos, lu p itos, rostos eli)

li) Idcin, |> <21.


UOHVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 35

i <H|nr. <las melindrosas e dos almofadinhas fala de uma mutação nas próprias
■ ipdhilidades, nas formas de sentir e dar sentido ao mundo e, ao mesmo tempo,
h nu (<• à emergência de identidades prêt-à-porter elaboradas pelas centrais dc
illniiibiiição de sentido vinculadas aos novos modos de ser burguês.11
Por outro lado, à medida que novos grupos sociais emergiam na sociedade,
liil entre as elites tradicionais uma insegurança de status, que se reflete no
n loiço de atitudes de distinção, e terminam por acompanhar as novidades
qin' 11icgam do exterior. Haveria, pois, uma tendência ao cosmopolitismo e,
pml.inlo, uma ameaça de standardização dos costumes, perdendo-se não só as
p uln ularidades nacionais, como, principalmente, para Freyre e o movimento
11 p,h ni.dista e tradicionalista que encabeça nos anos 20, a perda da autenticidade
• d.i oi iginalidade regional. O sabor local se perde, em nome de um nivelamento
l" ml das formas de ser, se comportar, se alimentar, se vestir. E contra este
movimento de standardização que o Centro Regionalista do Nordeste é criado
■ ui 1924 e que Freyre saúda, em vários artigos, toda expressão cultural que
■ i i.i regionalista e tradicionalista:

(...) era natural que indivíduos que acabavam de conquistar a liberdade; ou


que se supunham com direito a todas as regalias já gozadas pelos brancos, sem
icpararem no fato de que não eram regalias desfrutadas por esse elemento
<la população apenas por serem brancos livres, mas brancos instruídos,
< ivilizados, europeizados, endinheirados. Diferença que os libertos só aos
poucos descobriram... Enquanto não o descobriram, seu arrivismo tomou
aspectos por vezes ridículos e cômicos; e não de todo dessemelhantes dos
i aracterísticos do arrivismo ou do rastaquerismo dos novos ricos, que não
l .udaram a emergir do chamado Encilhamento.

II Sobre as noções de cuidado de si, estética da existência, modos ou processos de subjetivação,


vi i: EOUCAULT, Michel. História da sexualidade ll - o uso dos prazeres. Rio de Janeiro:
< íraal, 1984; História da sexualidade lll - o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985;
"Subjetividade e verdade” e “A hermenêutica do sujeito”. In: Resumo dos cursos do Collège
</<• France (1970-1982). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1977; PAIVA, Antônio C. S. Op.
tit, BRANCO, Guilherme Castelo. Michel Foucault: da arqueologia do saber à estética da
exiiténcia. Rio de Janeiro: nau; Londrina, cefil, 1998; RAJCHMAN, John. Foucault: a
liberdade da filosofia. Rio dc Janeiro: Jorge Zahar, 1987. Sobre a noção de identidade prêt-
a portei, ver: ROI.NIK, Sucly. "Toxiióm.uios dc identidades". In: LINS, Daniel (Org.).
<i7 , pp. 19 24. Sobre a relação entre moda, modernidade c reflexividade do sujeito, ver:
I IPOVI 1'SKY, Gilles. O </« r/éMirm Silo Paulo Companhia daa Letras, 1989.
36 nordestino: invenção do “falo’

Diante deste surto de igualitarismo, através de explosões de arrivismo por


vezes cômicas, é que brasileiros brancos livres, já seguros de sua condição
social tanto de brancos como de livres, parecem ter se requintado em hábitos
como que afirmativos de uma situação, além de social, cultural, difícil de ser
atingida de repente por pessoas de outras origens. 12

Estes discursos lamentam o fim de uma sociedade de modos aristocráticos


onde as distâncias e hierarquias sociais eram bem nítidas, onde havia a distinção,
a pompa, onde as boas maneiras eram apanágio de poucos. A heterogeneidade
das identidades e a infidelidade às tradições trazidas pelos novos modos de
existir faziam estes intelectuais suspirarem pela sociedade do Império e da
escravidão que vinha se arruinando definitivamente. Para Júlio Belo, o cinema
seria o responsável por estas mudanças radicais nos costumes. A vida se teria
simplificado à americana. As estrelas de cinema, e a sedução que exerciam,
estavam minando hábitos e hierarquias no interior das próprias famílias. Estas
eram mulheres poderosas que ameaçavam espalhar o seu estilo de vida por
toda a sociedade:12
13

Aquela cortesia das quadrilhas e dos lanceiros, da valsa alemã lenta e elegante,
sucederam as ‘sans façons’das contradanças americanas com a íntima conexão
dos pares, ligados estreitamente, confundidos, misturados, em que vão se
sumindo as últimas atenções do homem pela mulher, sem sombra do antigo
cerimonial, daquele refinamento de modos do cavalheiro à dama, curvando-
se respeitosamente ao tomar-lhe o braço, agradecendo-lhe depois a honra da
companhia.14

Este nivelamento social era mais ameaçador à medida que começava


a atingir a instituição que era nuclear na ordem social: a família. O fim da
sociedade dita patriarcal significava um progressivo enfraquecimento do
sentimento de solidariedade de família, que tendia a ser substituído por um
crescente individualismo e, perigo maior, pela solidariedade de classe. A

12. FREYRE, Gilberto. Op. cit., pp. cxix e cxx.; “A propósito do regionalismo no Brasil”,
Diário de Pernambuco, Recife, 11/10/1925, p. 01, cc. 4 6.
13. A noção de tradição só passa a ter sentido a partir da própria modernidade, a ela se
contrapõe. O que se chama de tradição se define e se inventa a partir das próprias mutações
históricas que a inviabilizam ou a modilicam V< i a <••.!<• icspcito I l( MfSBAWM, F.ric;
RANGER, I ciem <■. zf mtvv/iJp </uí ZrUí/í|á<> 2 rd Rioch |.m<tio Paz <■ l<’ita,1997.
I I lll I !.( >, |cdto op ,/Z , p 'I 1
l|i|IVAI. MUN1Z DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 37

imillu r exercia um papel decisivo na preservação desta instituição c, para isso,


■ l i fundamental não só respeitar a distribuição e hierarquia tradicional de
i . que esta implicaria, como era necessário que a mulher se preparasse, se
i .In. .1 se, para exercer o papel de mãe e educadora dentro de um mundo em
imn .formação:15

I letivamente a mulher é a verdadeira molécula de um país; ele não é


l<ninado de indivíduos e sim de famílias; vale o que elas valem; sua solidez ou
desagregação fazem (sic) sua prosperidade ou decadência. C) país permanece
intacto enquanto elas se conservam sãs... Por isso, na hora atual todos aqueles
que se empenham pela paz social e pelo futuro do país, devem agir em socorro
d.i família, como sitiados se obstinam na defesa da cidadela, de que depende
■i .alvação da praça.16

() Diário de Pernambuco, jornal que está empenhado na campanha


ngloiialista que fez emergir a identidade regional nordestina, veicula,
ui r ii ntemente, entre os anos 10 e os anos 30 do século xx, uma série de
ii h|'i is e reportagens que falam desta crise da instituição familiar, motivada, em
I i ii ide medida, por este amplo movimento de nivelamento social, que estaria
m ii lli tindo na mudança de comportamento das mulheres, que começavam
ii i uiiicstar a forma hierarquizada da família dita patriarcal e buscavam o
mu l.imcnto com os homens, o que seria, na visão destes discursos, o fim da
pinpiiii instituição familiar, que só se sustentaria com homens e mulheres
ui up.indo lugares distintos e hierarquicamente bem definidos.
Este movimento nivelador, visto como um embuste, uma ridicularia que
i Icz acreditar por episódios como o da Abolição e da instalação da República,
imli.i sendo reforçado pelas mudanças de hábitos, costumes, valores, idéias,

Solue as modificações sofridas pela família na modernidade e sobre a emergência da família


I ’■
iitl< liar burguesa, ver: DONZELOT, Jacques, A polícia dasfamílias. Rio de Janeiro: Graal,
1980; COSTA, Jurandir Freire. Op. cit.; ARIES, Philippe, História social da criança e da
liiiiulhi Rio de Janeiro: Zahar, 1978; RIBEIRO, 1.; RIBEIRO, A. C.A família em processos
i ontemporáneos, Rio de Janeiro: Rocco, 1985; GAY, Pcter. Op. cit.; ARIES, Philippe; DUBY,
• icorgcs. História da vida privada, v. 5, São Paulo: Companhia das Letras, 1992; NOVAIS,
I < i n.uido (Org.). História da vida privada no Brasil, vols. 2 e 3, São Paulo: Companhia
• I r I .ctras, 1997 c 1998; ARANTES, Antônio Augusto. Colcha de retalhos: estudos sobre a
lanillia nn Brasil. 2. ed. Campinas: ediinicami’, 1993; CORRÊA, Mariza. Morte emfamília.
Rio de lanciio: (Irual, 1982; M El )1 NA, Carlos, l'amília e mudança. Rio de Janeiro: Vozes/
• <*iln, 1974.
H. N/.I "I' iisinii d<iinvsli. <i , Didfia de 1'rrniimblico, Ria llc, 10/03/1914, p. 2.
nordestino: invenção do “falo”

práticas econômicas e políticas trazidas pelo avanço da urbanização, da


industrialização, pelo aburguesamento das formas de vida, pela modernização
técnico-científica e pela modernidade cultural. Esse movimento parecia atacar
as bases em que se assentava, até então, o exercício do poder masculino. Esses
textos parecem denunciar uma crise crescente de um padrão de masculinidade
assentado numa clara hierarquia, não só de poder, mas racial, de classe e de
gênero. Aquilo que esses discursos chamavam de exotismo democratizante
anglo-saxão parecia, ameaçadoramente, ter sido assimilado pelas mulheres,
fazendo com que passassem a reivindicar lugares antes destinados só aos
homens.
Esses discursos falam do que podemos chamar de uma transformação na
cultura de gênero ou nos códigos de gênero, entendendo, por isso, a crise ou as
modificações históricas num conjunto de idéias, padrões de comportamento,
meios simbólicos, significados, práticas, sentidos e valores que definem numa
dada sociedade e num dado momento as posições, lugares, papéis e funções
estabelecidas para um e outro sexo, e que cumprem a tarefa de marcar social,
situacional e historicamente determinadas formas de relação entre os sexos.
Nós estávamos assistindo não só a uma mutação na cultura fálica e tradicional
de gênero, como esta se manifestava em crises de identidades de grupos e
indivíduos. Assistíamos a um dos primeiros grandes abalos no estilo tradicional
de relacionamento entre homens e mulheres, marcado por forte desequilíbrio
e assimetria de forças, profunda hierarquização entre os lugares de sujeitos
masculinos e femininos, com a prevalência e a valorização da masculinidade e
concomitante separação entre esferas pública e privada.17
Estas mudanças de lugares sociais atribuídos a homens e mulheres
explicitam, inclusive, que estes lugares não são definidos pela natureza e sim
pela cultura. O grande impacto do movimento feminista foi questionar a
naturalização das identidades assentadas no corpo sexuado e defenderem a
modificação daquilo que parecia ser um destino inscrito na própria carne de
homens e mulheres. A historicidade começava a invadir as próprias relações
entre os sexos e a natureza parecia recuar mais uma vez diante das mutações
trazidas pela modernidade. Descobria-se o sexo como um problema a ser
debatido, como um aspecto central e perigoso na definição das identidades. Os
lugares de cada sexo que pareciam imutáveis começam a se mover tornando

17. Ver MAI OS, Marlisc. Reinvetifôes </u vínculo nmtnow. Belo I lorizontr: da iiimg; Rio
dc Janeiro: uipiíiy, 2000.
IHlHVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 39

i nl.i vez mais dispersas, fragmentárias e problemáticas as definições do que


• i i.i <> masculino e o feminino.18
() que Freyre definiu como a necessidade do alargamento da ordem social
|'4i ,i i incorporação de novos elementos incluía a absorção das mulheres numa
hiiIiiii social que até então teria reservado menores espaços para sua atuação.

I i i maior visibilidade social das mulheres, cada vez mais fora do espaço
■ I' 'uh .tico,leva a reações de desagrado por parte de homens que representariam
• hla urdem patriarcal ameaçada. Estes tentam definir a feminilidade a partir de
Hma icação ao que seria a mulher moderna.

b) A MULHER PROCURA OCUPAR O LUGAR DOS HOMENS

(...) para mim a mulher quanto mais feminina mais cheia de graça e encanto.
Nada de lhe dar física ou socialmente feitio varonil. Nem bigode, nem cigarro,
nem função legislativa. Nada. Todas estas coisas masculinas só a podem
prejudicar, tanto eu a considero superior ao homem.
(...) à coragem de granadeiro de uma heroína deTejucupapo, prefiro a coragem
■.anta de uma boa irmã de caridade entre bexiguentos ou pestosos.19

I lá, nestes discursos masculinos, proferidos no início do século xx, uma


• l.u .i ansiedade e um desagrado com o que consideram ser o fim da feminilidade,

III Neste trabalho consideramos que tanto o sexo como o gênero são definições, conceitos
i relações construídos social e historicamente e que se explicitam através de construtos
linguísticos e também através de ações e práticas que vão constituindo sujeitos sexuados e
gimei ificados, tendo como ponto de partida a atribuição de sentido às diferenças anatômicas
i nlic machos e fêmeas da nossa espécie. Nem o sexo, nem o gênero se definem ao nascer,
biologicamente, mas precisam de sentidos e significados humanos para se constituírem
tomo antagônicos e diferenciados. Sobre as noções de sexo, gcncro e cultura de gênero
tomo construções históricas e linguísticas, ver: BUTLER, Judith. Bodies that matter: on
lhe discursive limits of“sex". New York: Routledge, 1993; Gender trouhle:feminism and the
whversion of identity. NewYork: Routledge, 1990; BREIER, Ruth. Science andgender: a
11 dique ofhiology and its theories on women. New York: Pergamon Press, 1984; BOURDIER,
Pleiic. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bcrtrand Brasil, 1999; COSTA, Jurandir
I um . A face e o verso. São Paulo: Escuta, 1995; KATZ, Jonathan Ned. A invenção da
heterossexualidade. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996; BESSE, Susan. Restruturingpatriarchy:
the modernization of gender inequality in Brazil, 1914-1940. Chapei Hill: University of
Noilh Carolina Press, 1996; SAMARA, l .ni de Mesquita ct al. Gênero em debate. São
l’.iulu: i imc, 1997; SCt> I T, |oan.“( iêncro: uma categoria útil de análise histórica". Mulher
e lealidade: Malhei e educação. Porto Alegre, Vozes, v 16, n. 2, jul/dez, 1990.
i'1* lir11x),Júlio, op ui, p i
40 nordestino: invenção do “falo’

quando, na verdade, defendem a manutenção de uma determinada definição


do feminino e as práticas que lhe davam expressão. As fronteiras de gênero
pareciam estar se misturando, a confusão, marca do mundo moderno, fruto
da quebra dos limites trazidos pelos costumes tradicionais, parecia instalar-se.
Enquanto os jornais anunciavam como uma das maiores atrações de um circo
de cavalinhos uma mulher barbada, um ano depois uma revista da cidade falava
da estreia espetacular de um homem como manequim nas passarelas da moda
europeia. As mulheres após a guerra usavam o cabelo à la garçon e os homens
raspavam suas barbas, símbolo de masculinidade na sociedade dita patriarcal.20
Nas ruas de uma cidade como Recife já não se conseguia com facilidade
distinguir homens e mulheres. Cada vez mais, o processo de individuação
fazia com que cada um fosse ao mesmo tempo sujeito e objeto de sua
própria experiência, cada um não mais se definindo por modelos tradicionais
do feminino e do masculino, mas fazendo um trabalho de elaboração de si
diferenciadora. Novos estilos de existência emergiam, novos corpos e rostos
apareciam pelas ruas. Contrariando muitas vezes os códigos da moral, os
sujeitos se comportavam a partir de uma ética própria, códigos impostos a
si mesmos, num trabalho de autoelaboração, levando a que estes discursos
lamentassem a artificialidade e o exótico dessas identidades de gênero. A
mulher no seu intento de se igualar aos homens vinha perdendo o seu encanto,
vinha se virilizando, seja nas maneiras, seja nos trajes, seja nos valores:21

20. BELLO, Júlio. “Mulher barbada”. Diário de Pernambuco, Recife, 01/05/1926, p. 3, c. 2;


N/a. “Homem moderno”, Revista da Cidade, Recife, n. 32, 01/01/1927, p. 10; FREYRE,
Gilberto. “71” (Artigos Numerados), Diário de Pernambuco, Recife, 24/08/1924, p. 3, c. 3.
21. A grande novidade trazida pelo modo de produção de subjetividades das sociedades
modernas e capitalistas é que, ao mesmo tempo que se investe na construção de sujeitos
serializados, embora individuais, estas sociedades significam a abertura de possibilidade
para inúmeros processos de singularização subjetiva, pela velocidade que imprime às
transformações identitárias e pela variedade de modelos de sujeitos e matérias de expressão
com os quais os indivíduos podem elaborar suas subjetividades. Ver: LE RI DER, Op. cite,
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999;
VAITSMAN, Jeni. Flexíveis eplurais. Rio de Janeiro: Rocco, 1994; BERMAN, Marshall.
Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das I .elras, 1986; I )F.I .El IZE,
Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia, S vols.; GIDDENS,
Anthony. As consequências da modernidade', I IARVEY, David. Condifáo pós moderna. Sao
Paulo: Loyola,2()04;'l OURA1NE, Alain Crítica da modernidade. Pelrópolis: Vozes, 1994;
FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos l (Problematizaiáo do sn/eilo psiiolo^ia, psiquiatria e
psicansilise).
HltltVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 41

Apertado o corpo num ‘robe-manteau, talhado à masculina, um vulgar


chapeuzinho sobre os cabelos cortados, e uma enorme carteira sob os braços,
passa um vulto. E de um homem? de uma mulher? Ninguém sabe dizê-lo.
Seu andar caído faz imaginar que vai à Bolsa ou a uma reunião política e,
logicamente se deduz que é um homem. E, no entanto, é uma mulher... Uma
representante do frágil e belo sexo, que exageradamente vestida como um
homem adota suas maneiras, seus hábitos, seus quês os mais insuportáveis.
Anda bruscamente, nem sequer lança um olhar ao que deve interessar ao seu
espírito feminino. Os mostruários de modas não a atraem, nem sequer os
mais encantadores. As ‘toilettes’, todas, não a encantam. Contenta-se com o
chapeuzinho vulgar, a roupa talhada, sempre a mesma, os sapatões. Insensível,
passa sem cansaço, sem parar um instante. Que procura? Aonde vai? Causa
dó; é um ser que perdeu seu sexo; absurdo, que não tem seu lugar na vida.22

Na moda era que se expressaria claramente esta subversão das fronteiras


• nlic os sexos, mudanças que embora em si mesmas não tivessem nada de
miniaturais já que também os pássaros fazem suas mudas e alguns animais,
* *uno a raposa, perdem sua pele, as que estavam ocorrendo neste início de
■'< ulo eram de escandalizar pela indiferenciação que davam origem àquilo que a
natureza teria tão bem diferenciado. Este artificialismo da moda estava levando
i" artificialismo do sexo sociológico distante do sexo biológico. Isto era mais
um dos indícios de que a sociedade se feminilizava,pois nela imperava agora o
u liltcio da aparência, apanágio do belo sexo. A modernidade, com o seu desfilar
dc simulacros e sua exaltação da aparência sedutora, era mulher enganadora,
ii.uçocira, pérfida, dominadora, ameaçadora, para homens acostumados com
Ilicres “simples, dóceis, autênticas” da sociedade masculina da tradição.
Já a moda masculina apontava para uma perigosa desvirilização dos
homens:

Nós - isto é, os homens da moda, eu não sou modista, quando muito, comodista
também fazemos a muda. E temos passado das calças boca de sino para
as calças tabicas, dos jaquetões folgados para as jaquetinhas apertadinhas na
cintura, com costurinhas nas costas, das botinhas de broas de navio para os
sapatos pé de anjo c dos chapéus de abas curtas para as Minas Gerais.

1J, N/u '< "oino u mulliei perdeu ncii ciu auto", / <!e l'<inumbuco, Rei ite, 07/11/1925, p. 47,
t »
42 nordestino: invenção do “falo”

Há até quem use pó de arroz e pulseirinhas...


O bigode tem passado transformações inenarráveis: dos bigodes de sopas para
os volteados a Kaiser, da raspagem completa para uma lambujem de cabelo,
sistema Carlito do cinema.23

Em artigo publicado em 1927, Tristão da Cunha defende que, na


verdade, a sociedade brasileira sempre teria sido matriarcal e que, com a
emergência do feminismo, “falange política vítima da ficção igualitária”, a
busca pelo nivelamento estaria levando a mulher para baixo, “abatendo as
montanhas para atulhar os lagos e trazer a morte na monotonia”. O “genus
mulier” estaria trabalhando claramente contra si mesmo, ao se privar “dos
benefícios milenares da diferença”. No Brasil, embora a aparência fosse de
que os homens governavam o país, eram as mulheres que, ao governarem os
homens, efetivamente tinham o poder. Enquanto os homens se perdiam dando
nascimento a uma prole numerosa, amoleciam na dependência do trabalho de
seus escravos, homens adstritos a uma existência fácil, ao ofício de procriar e a
ouvir o zumbido da política, a mulher sustentava a economia doméstica. Entre
nós desde cedo se formara “uma raça de mulheres romanas”, que teriam sido
constantemente as reguladoras das atividades masculinas. Célula feminina e
conservadora da sociedade, a família teria prosperado entre nós através do
cuidado das mulheres. Reconhecendo o seu lugar, a mulher tinha muito mais
poder efetivo do que agora que procurava afrontar o poder masculino, na busca
do fim de uma diferença que só podia fazer bem à sociedade. O Brasil fora até
então um país de patriarcas governados secretamente por suas mães, esposas,
filhas, irmãs. O que seria agora de um país onde as mulheres afrontavam o
masculino na praça pública, em vez de domá-lo com os carinhos e atenções
domésticas?24
A família deixava de ser, inclusive, a única instituição responsável pela
socialização das crianças, tanto das meninas, quanto dos meninos. Esta vinha
sofrendo, notadamente no mundo urbano, a concorrência de outras instituições
e de outros espaços de socialização. A autoridade do pai tinha cada vez mais
que concorrer com outras instâncias de autoridade na sociedade. Na escola,
nas instituições públicas, mesmo nas ruas, os meninos se socializavam cada

23. CAMPEI .1.O, Samuel.“A muda da moda", /)i<liia <!< /’<•» i/.i »>/'/<,.’, !<<■< il<, IS/02/1925, p. 5,
c. 1.
24. ( 11NI IA, liisiao da." feminina". In: </< />»«/.>.■ ./.< < ><»Mi lUn d< fmclto: Agir, 1979,
p, 287.
lUUlVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 43

. mais a partir de múltiplas influências e referências de valores e costumes.


i ’ lugares de produção de subjetividades se diversificavam, mudando também
nu modelos de identidades que eram oferecidos às crianças em processo de
• mr.n ução da subjetividade.25
( 'orno acreditar no futuro de uma sociedade em que as mulheres passavam
,i pi ,i i fiar os mesmos esportes que os homens, passavam a fumar, a jogar, a beber,
•ii, i v i i id icar o direito de votar e ser votada? A desigualdade, que parecia ser, para
inti ■• homens ligados às elites agrárias em declínio, um dos fundamentos da
mili m social, estaria vivamente ameaçada. Assim como a mulher na horizontal
ii ....... perigo para qualquer homem, a horizontalização das relações sociais,
uh lu .ivc as de sexo, ameaçava destruir a família e com ela a sociedade. Por isso
I ui', .im mão das ameaças médicas e de teorias ditas científicas que procuravam
■ I......... os perigos que esta igualdade traria para as mulheres, não apenas
ili i |" mio de vista moral, como do ponto de vista físico:

() esporte ou atletismo feminino é a desfeminização e a degradação da


mulher pela igualdade comunizante dos sexos. Socorrem-se da medicina para
jin.lificá-lo. Mas quem? Os comunistas e judeus que querem assim mascarar
oh seus propósitos de dissolução da família religiosa - a velha e formidável
estrutura da civilização cristã no ocidente.
Investigações moderníssimas da ciência, na Itália, e que Mussolini acaba
de endossar, condena publicamente os esportes femininos, mostram aos
i ntendidos e profanos, como estas práticas perturbam toda a fisiologia do
nexo pela esterilidade, desvios, complicações ovarianas, velhice precoce e
morte prematura.26

J*>Solue outros lugares de socialização das crianças, notadamente, dos meninos no começo
do sé< ulo, ver: GALVAO, Ana de Oliveira. Amansando meninos: uma leitura do cotidiano
da escola a partir da obra de José Lins do Rego {1890-1920). João Pessoa: Ed. da ufpb, 1998;
AI M EU )A,José Américo de. Antes que me esqueça: memórias.João Pessoa: Fundação Casa
ili |osé Américo/cNrq, 1986; BELLO, Ruy. Memórias de um professor. Recife: Academia
I'i iiiutnbucana de Letras, 1982; CARVALHO,Tancredo de. Memórias de um brejeiro. João
Pi uhoii: s/e, 1975; BARROS, Souza. A década de vinte em Pernambuco. Recife: f undação
-I- Cultura da Cidade do Recife, 1985; POMPEIA, Raul. O Ateneu. São Paulo: Ática,
1'ltto, CASCUDO, Luís da Câmara. Pequeno manual do doente aprendiz. Natal: Ed. da
III RN, 1969; RÊGO, José I ,ins do. Meus verdes anos; Doidinho. 16. ed. Rio de Janeiro: José
< Oyinpio, 1977; O moleque Ricardo. 19. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 199.3; RAMOS,
< mediano Infâmia. 19 ed. Rio de lanciro Reiord, 199-1.
Ri < AMPI I.(), |o .e. "I lilcieni iaçllo e valorização dos sexos”. fez da Rorborema, Campina
* >i ande, 16/01/19 18, p -I, i I
44 nordestino: invenção do “falo’

O corpo que na sociedade dita patriarcal era visto e dito como natural,
quando não sagrado, começava perigosamente a ser fabricado, moldado por
novas tecnologias, novas atividades físicas e intelectuais, novos hábitos e
costumes no vestir, no se comportar, nos gestos. Um corpo que começava a
se desnudar, a ser moldado por novos códigos de beleza, de higiene, de saúde.
O corpo, de referente natural e fixo, parecia estranhamente se tornar mutável,
artificial, seguindo o tempo veloz do mundo moderno. Corpo que se docilizava
para o trabalho e para a cidadania, corpo que se centrava cada vez mais no
sexo e nos seus avatares, corpo cada vez mais público, esquadrinhado por
múltiplos saberes. Corpos que pareciam tornar-se cada vez mais andróginos,
indiferenciados. Corpo enrijecido das mulheres, corpo delicado dos homens,
perfis corporais em contínua mutação, fisionomias cada vez mais estranhas,
tudo isto era visto como um atentado aos desígnios da natureza, que parecia
estar sendo punida com a decadência da religião e a decrepitude de seu povo.27
Para estes homens ansiosos, era preciso reagir e denunciar a igualdade dos
sexos como a desvalorização da mulher e um atentado à natureza feminina, que
não seria talhada para certas atividades virilizantes. A estratégia deste discurso
masculino é definir o ser feminino como um ser superior ao masculino, que se
rebaixaria ao procurar com ele se igualar. As mulheres não deveriam descer de
seu altar de madona para se misturarem com a vulgaridade da vida masculina.
Como dirá Júlio Bello, citando Madame de Sévigné: “uma mulher que se
enraivece muda de sexo, uma mulher que descompõe se decompõe”. Essas
grosserias seriam todas elas masculinas. O nivelamento traria o embrutecimento
das mulheres e com ele o fim da última reserva de afetividade, sentimentalismo,
bondade, paciência, resignação presentes na sociedade.

27. Consideramos que o corpo é também um construto social e histórico; para além de sua
empiricidade anatômica, o corpo é feixe de sentidos e significados dados pela sociedade,
pela cultura, pela história. E nas relações sociais, em complexos feixes de relações, que uma
identidade corporal se define, ele é mais do que um referente fixo, natural, é um agregado
de práticas, imagens, textos, de códigos sociais. O corpo é resultado de um processo de
construção, não um a priori esvaziado de historicidade. Ver: BROWN, Peter. Corpo e
sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990; FOUCAULT, Michel. História da sexualidade
II-o uso dos prazeres-, SANT’ANNA, Denise Bernuzzi (Org.). Políticas do corpo. São Paulo:
Estação Liberdade, 1995; LYNCH,J. Coeur e son langage. Paris: lutei Editions, 1987; DEI,
PR1ORE, Mary. Ao sul do corpo. Rio de Janeiro: José Olympio, Biailia i iiiinh, 199.3;
BOLOGNE.Jean Claude, / listória do pudor. Rio de |.ui<iio I lios, I i Im.i Teorema, 1990;
DARMON, Pierre. O tribunal da impotinciu. Rio dc lanelio I' i. < L o a, 19H8; l‘.N( JEL,
Magali. Meretriz.es e doutores. Silo Paulo: Braailiciiic, 1980; VH IARI' I l >, (icogm. Olimpo
r « .»(/«. Liiboa Fraginciitoa, 1988
UUUlVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 45

Num momento em que a República nivelara a todos como cidadãos,


qm i Abolição tornara todos, independente da cor, homens livres, em que
i mudanças econômicas trazidas pelo desenvolvimento da indústria e do
■ mnéicio nivelavam os moradores da cidade com os do campo e ameaçavam
inverter a hierarquia de poder econômico e político, detido até então pelos
|uupos ligados ao setor agrário, em que idéias e movimentos como o anarquista
i i> comunista falavam do nivelamento das classes, o nivelamento dos sexos
■ip,m-i ia como uma resultante e uma espécie de metáfora de todo o processo
’ m i urso. Atingindo a instituição que era a célula da ordem social, ameaçando
luvri ler a hierarquia vista como natural em seu interior, toda a sociedade parecia
ui do controle dos homens que, emasculados em seu poder, viam o feminino
- in <|c suas fronteiras e impregnar toda a ordem social. O refinamento da vida
iiiiidcrna, que levava a uma delicadeza de falas, gestos e atitudes, era mais um
iiidu io deste processo.

i) Uma sociedade que se torna delicada.

A predominância progressiva das formas de sociabilidade urbanas sobre


i i ui .ús, processo que vinha ocorrendo desde, pelo menos, a segunda metade
iln século xix, vai substituindo progressivamente entre as elites e, em especial,
■ nlir os homens, formas rústicas e pouco civilizadas de se comportar, de
»c vestir, dc falar. O discurso médico-higienista consegue seus progressos
110 senlido de um maior apuro na higiene pessoal, no asseio e limpeza dos
uiiIhi ntes, das casas e até das ruas. Percebe-se um apuro crescente no traje,

lios < alçados, dando margem a uma elegância que, aristocraticamente europcia
tui i omeço, vai sendo impactada pelos modismos americanos, do começo do
m'i ulo xx, moda que, a partir da Primeira Guerra, parece caminhar para uma
iiidtoginia, o que muito incomodava os intelectuais ligados a esta elite, que
i uii .idcravam as formas de se vestir e se comportar importantes marcadores,
ii.iu <t de distinção social, mas de distinção entre o masculino e o feminino.28
() impacto da participação da mulher na Primeira Guerra Mundial, seja
In* oiporada ao setor produtivo, substituindo os homens nas suas atividades
n"i mais, para que estes pudessem ser arregimentados como soldados, ou
iih .um, exercendo atividades auxiliares no campo dc batalha, aliado à

'II I 1'0, I hnlx i Io. </« veilii. 3 <<l I .i-.lio.i Assírio c Alvini, 1989; RICAR1),
I i.iii^oim Viunl z/i i/<i nioilii Silo 1’iiulo l'.iz < Tcrril, 1989; SOUZA, (íild.i dc
Mello. <) i/n i/ui roubu\ Silo I'nulo l 'oiii|iuiililii div. I .clins, 1987.
46 nordestino: invenção do “falo”

exacerbação da masculinidade que uma guerra significa, levou a que as mulheres


das elites se vissem livres da moda vitoriana, cujo símbolo maior, o espartilho,
foi abandonado progressivamente nos anos 20, adquirindo as vestimentas
femininas formatos masculinos. A revolução provocada pela saia Chanel, com a
redução do comprimento das roupas, aliada ao cabelo à lagarçon que, como diz
Freyre, substituiu as cabeleiras abundantes das iaiás, expressão da fecundidade
feminina, modificou a imagem do feminino. Uma nova corporeidade feminina
estava em construção, ameaçando borrar as claras fronteiras entre os corpos de
homens e mulheres:29

(...) estive a observar as silhuetas da moda feminina de outono. E cheguei


a conclusão de que as mulheres estão cada vez mais rapazes. A moda deste
outubro de ligeiras névoas douradas é, como tem sido sempre desde 1914,
acentuadamente ‘garçonière’, audaciosamente masculina, — e, quando se
resolve a feminizar-se, fá-lo com um paroxismo doentio e com uma incidência
vizinha da imprudência... as minhas atenções fixaram-se numa rapariga alta,
loura, sem ancas, duma distinção seca, de um perfil arguto e cortante, trinta
anos, aquilina, quase bonita, que, quando se sentava, mostrava a perna até
o joelho, e que, monóculo na órbita, conversava, fumando... Tudo nela era
masculino: o vestido alfaiate, um pouco débraillé, cortado numa gabardine
azul, marcado em linhas ousadas e viris; os gestos de um à vontade, de um
desembaraço de rapaz, linhas retas, ângulos agudos, movimentos largos...
Pudor, modéstia, feminilidade, graça delicada, essa melodia de gestos, essa
doçura de expressão que faziam noutro tempo (ainda a cinco e seis anos!) o
encanto da mulher, tinha desaparecido nesta criatura gimnandra, cuja beleza
confusa e contraditória parecia pertencer a um terceiro sexo, descendente,
como diria Strindberg, em linha reta do macaco.30

29. FREYRE, Gilberto. Op. «7., pp. 122-123. Por corporeidade entendemos a construção social
dos corpos que passa tanto pelas modificações físicas que um dado corpo sofre ao longo do
tempo, as marcas que a história imprime em cada órgão que o compõe, mas principalmente
pelos sentidos e significados que estão ligados e definem o que seja um corpo numa dada
sociedade e em dado momento, ou seja, é o conjunto de imagens e enunciados que definem
o que seja o corpo tanto para uma coletividade como para os indivíduos num dado contexto
social e histórico. Ver: DELEUZE, Gilles; GIJATI ARI, felix A/»/ 1'latus Capitalismo e
esquizofrenia', MAUSS, Marcei. “/.<■'.< tethniques ilu tm p\" In Xc o ■/■■<;/.• <■ .Inlhropologie. Paris:
PUF, P16S, pp. 363 3K6.
10 I )AN I AS, Júlio “A bengala de Madamc Z", />6/1 /» i/e /'< i ihimhiu», Kn lie, 14/12/1919, p.
I,. I
lilUlVAI. MUN1Z DE ALBUQUERQUE JÜNIOR 47

Para escândalo de nosso cronista, esse quase rapaz era que atraía os olhares
ili iodos os homens na festa, o que o leva a concluir que “o que nela havia
ili perturbador e de excitante para os homens era exatamente o seu feitio
niiisculino, a sua linha masculina, as suas modas masculinas - aquilo mesmo
que viera buscar ao nosso sexo, que ela assimilara dos nossos hábitos, que numa
I' il.ivra - a afastava de seus encantos naturais”. Conclui ainda que: “o tipo de
lu liza ideal de nosso tempo é o tipo destro, ágil, arrapazado, masculinizado”,
m, i'. adverte “na sua fúria de masculinização, a mulher começou por nos excitar
<■ estejamos certos - há de acabar por nos bater. A bengala de Madame Z
n. lti é senão o símbolo de uma idade nova. E a contraprova está em que, ao
p,i’.'io que a mulher se viriliza, o homem efemina-se... O sexo forte são elas, o
•rxo fraco somos nós. E afinal que inconveniente há em que as mulheres nos
governem? Os homens têm nos governado tão mal”.31
O que parece incomodar estes homens ligados às elites agrárias, filhos
ilr senhores de engenho ou de fazendeiros, eram as mutações que vinham
ui orrendo na própria forma de ser homem, nos códigos de masculinidade. Sc
• ••» universo feminino a urbanização trouxera figuras como a da melindrosa
• •ii d.i cocote, fizera aparecer também o almofadinha, tipo masculino que se
aproximava do requinte, da delicadeza e do artifício femininos. Estes tipos
uih.mos, desvirilizados, haviam nascido de um distanciamento progressivo
> uma desvalorização da vida rural, dos modos de ser homem de seus pais
i avós. Procurando ser modernos, estes bacharéis almofadinhas procuravam
• lili ii nciar-se de seus antepassados, considerados homens rudes, caturras e
•ui i ..idos, sem refinamento.
E neste contexto, inclusive, que emergem como preocupação crescente as
pi .nicas homoeróticas, que apareciam como mais um indício deste processo
di feminização do social e, mais ainda, da constituição de uma sociedade
In imafrodita”. Embora o conceito de homossexualidade, elaborado pelos
médicos europeus, na segunda metade do século xix, ainda tivesse circulação
Irsliita entre nós e ainda fosse prevaleeente no seio das elites letradas a noção
u ligiosa de sodomia,este conceito começa a ser utilizado nos tratados médicos
i' jurídicos, que demonstram uma ansiedade crescente diante da inversão
| mal e sua maior visibilidade no espaço urbano. A temática do homoerotismo
ganha, inclusive, as páginas da literatura regionalista, nos anos 30, em que é
n matizada como mais um indício deste processo de desvirilização pelo qual
48 nordestino: invenção do “falo’

estaria passando este espaço. O refinamento dos costumes aparece como um


dos motivos do aparecimento crescente destes homens com pouco gosto para
as coisas rudes e másculas. A maquinaria do conforto trazida pela modernidade
amolecia os homens, fazia nascer estes seres para quem o sexo era contingência,
não destino.32
Este refinamento exigido pela moda submete homens e mulheres a
verdadeiras torturas, como aquela que exigia da mulher moderna raspar
praticamente todos os pelos que a natureza fez nascer em seu corpo. A mulher
exige-se, cada vez mais, que seja bela, e ser bela nesta sociedade urbana e burguesa
que se instaura é não ser natural, é construir uma rostidade e uma corporeidade
artificial. Há uma verdadeira batalha discursiva entre os homens em torno da
definição dos elementos imprescindíveis à beleza da mulher, se esta deveria
enfatizar os dotes físicos ou espirituais, discursos que, no auge de sua sofisticação,
procuram distinguir ser bela de ser linda e de ter graça e de ter formosura:33

32. Para uma história da homossexualidade e das noções de homossexualidade e homoerostismo,


ver: COSTA, Jurandir Freire, yíyàce e o verso, A inocência e o vício, cit.; GREEN, James.ví/rin
do carnaval. São Paulo: unesp, 2000; BELINI, Lígia. A coisa obscura. São Paulo: Brasiliense,
1987; DAMATA, Gasparino. Histórias do amor maldito. Rio de Janeiro: Record, 1967;
PARKER, Richard. Corpos, prazeres e paixões. São Paulo: Best Seller, 1991; FRY, Peter.
Caminhos cruzados. São Paulo: Brasiliense, 1982; Para inglês ver. Rio de Janeiro: Zahar, 1982;
FRY, Peter; MACRAE, Edward. O que é homossexualidade. São Paulo: Brasiliense, 1983;
MACRAE, Edward. A construção da igualdade. Campinas: edunicamp, 1990; VAINFAS,
Ronaldo (Org.). História e sexualidade no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1986; MOTT, Luís.
O lesbianismo no Brasil. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987; O sexo proibido. Campinas:
Papirus, 1989; OLIVEIRA, L. Masculinidade, feminilidade, androginia. Rio de Janeiro:
Achiamé, 1983; PERLONG1IER, Nestor. O negócio do michê. São Paulo: Brasiliense, 1987;
TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso. São Paulo: Max Limonad, 1986; SWAIN,
Tânia. O que é lesbianismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. Para a noção de maquinaria do
conforto, ver: BEGUIN, François. “Les machines anglaises du confort". Recberches n. 29, Paris,
s/ed, 1978, pp. 155 e ss.
33. Por rostidade entende-se a construção social e histórica dos rostos compreendendo não só o
conjunto de práticas e costumes que estão ligados a esta parte do corpo como os sentidos e
significados que este adquire num dado contexto social e histórico. Ver: DELEUZE, Gilles;
GUATTARI, Félix. Milplatôs. Capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3, pp. 31-62; HAROCHE,
Claudine; COURTINEJean Jacques. “O homem desfigurado. Semiologia e Antropologia
política da expressão e da fisionomia do século xvn ao século xix”. Cultura e Linguagens,
São Paulo: rbii n. 13, ANPIJI I/Marco Zero, set. 86/fev. 87. Walter Benjamin, em Origem
do drama barroco alemão, usa a noção de fisionomia para abordar a historia a partir de
sua expressão em rostos. Ele se inspira na ampla literatura fisionômica do final do século
xix, que procura conhecer o caráter dos Immanos através da observação de seus traços
exteriores. Esta literatura demonstra uma tiesiente ansiedade diante da emergência da
figura d.is multidões na c idade e o anonimato dos "> iiniiliosos"qiir i a a propori imi.iva. Vet:
BENJAMIN, Wallet Origem diuma Imiiom ulemãi' São Paulo lli aulllrnsc, I9H4
IHIRVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 49

A mulher deve ser bela, deve ter graça e encantos. Nem todas podem ser
lindas, que a formosura não ficou em dote às filhas de Eva, mas todas podem
ser belas.
Beleza não é formosura, nem lindeza. Beleza é o resultado das graças, podê-
las dar, a educação pode substituir a fealdade.
A educação embrandece peles duras, amacia mãos ásperas, dá graça e doçura a
olhos de pouca luz, faz interessante a face pálida, e afáveis os lábios descorados,
põe a bondade de coração na fronte que não é alva, torna elegante o corpo
que não é airoso, amável o que não é lindo, engraçado o que não é formoso.14

Há, neste discurso, toda uma valorização da delicadeza: o feminino é


■ I' linido não apenas pelos dotes corporais, mas pelo refinamento trazido pela
■ < lm ação. A beleza feminina, indisfarçadamente uma beleza branca, é pensada
■ nino fruto do abandono da rusticidade, da aspereza, da dureza de corpos e
Intelectos. A mulher deve ser abandono da natureza e investimento na polidez,
li ulo de uma escritura de si mesma, do investimento em fazer de si um artifício.
A melindrosa é a exacerbação deste artificialismo, é a mulher em dia com
i novidades da moda e que fascina os homens por sua diferença, embora seja
iprnas digna de flertes e de aventuras, jamais moça para se levar ao altar. Para
rio teria de seguir alguns mandamentos, que dificilmente estaria disposta a
..... iprir, tais como: 1) ser honrada, 2) irradiar simpatia, 3) interessar-se pelos
rthNtintos do marido, 4) não enganar, 5) evitar disputas com o esposo, 6) ser
liam a, 7) não esconder o passado do marido, 8) ser disposta para se divertir
■ oin o marido, 9) cultivar a benevolência e 10) ser cordata. Seguindo tal
de< alogo, esta moça teria salvação.15
Mas não foi só na cidade e com as mulheres que ocorria este investimento
na delicadeza e no artificialismo, movimento que significava, para os homens,
unia perigosa desvirilização. Mesmo no meio rural, entre as famílias abastadas,
■ Ia Mata ou do Sertão, dava para perceber este declínio da virilidade, da
imu hcza.cste afastamento das novas gerações do modelo de masculinidade que
patriarcas do passado representaram. Como nos conta Júlio Bello e Gilberto
I h \ ir, os tipos cugcnicos da sociedade do engenho, “belos tipos de homens
b iib.idos, fortes, inteligentes c simpáticos mesmo, se diluíram, se apagaram
ii"'. poucos na vida, apática c preguiçosamente”. Tornaram-se “homens deII *

II (iARRI l, Alineidii "A rilui iii,iIi> ihi inulliei ",/Wrto r/r Pernom^uro, Recife, 07/11/1926,
D 7, < 1
l' N/.i "I >ci itlogo <lu inellntlriwi'. I il<‘ Recife, 07/11/1926, p. 7, c. 3.
50 nordestino: invenção do “falo”

palmas de mãos moles e mulherengas, feitos para viver na sombra da casa-


grande como ‘filhos de papai’, mesmo depois de velhos, incapazes de afrontar
corajosamente a vida e as vicissitudes dela, conformando-se facilmente com os
insucessos, vencidos e resignados”. E, humilhação suprema, agora só sabiam
“plantar couve e criar galinhas”, demonstrando uma trágica inadequação
subjetiva aos novos tempos.36
Um indício desta mutação niveladora dos sexos era o número crescente
de propriedades e de engenhos que eram administrados por mulheres. Casadas
com estes homens moles, desfibrados, sem iniciativa, muitos entregues ao jogo,
à bebida e à frequência de dancings e cabarés, para não ficarem completamente
na miséria assumiam o controle da casa. Para Júlio Bello, a educação dada
nos engenhos aos meninos provocara a própria ruína destes, era o engenho
uma escola de prepotência, de perdulária, de imprevidência, embora também
ensinasse condescendência e largueza de caráter e de atitudes, que, mesmo
sendo aspectos positivos desta educação, se tornaram traços psicológicos
e comportamentos fatais para estes homens, quando colocados frente a
frente com uma sociedade que requeria o utilitarismo, o individualismo, a
previdência, e, em muitos casos, saber se rebaixar e transigir. Os homens duros
de antigamente agora amoleciam, perdiam virilidade, perdiam potência. È
recorrente nestes discursos esta metáfora do amolecimento, que guarda um
conteúdo sexual e masculino explícito.3738
Nesse processo de desvirilização dos homens, eles vinham perdendo,
portanto, um dos traços definidores da masculinidade, chamada por Freyre
de patriarcal, ou seja, a vontade e o monopólio do mando, do exercício da
autoridade e da explicitação do poder. Estes novos homens entibiados pareciam
renunciar a mandar. È assim que Freyre interpreta o absenteísmo de muitos
proprietários em relação às suas terras. Ele afirma: “isso de ter terra e ser dono
dela; isso de ter propriedade e conhecê-la; isso de saber mandar foi bom para
os nossos avós”. Ele conclui que este desapego à terra e ao sentimento de
família teria sido a causa da ruína de muitas fortunas. Este desapego teria
nascido do próprio desprezo das novas gerações em relação à vida no campo:w

36. BELLO, Júlio. Memórias de um senhor de engenho, p. I, I R EYRE, (lilbcrto. O/>. cit, p. i.iv.
37. BEIXO, Júlio. ()[>. cit.t p. 50.
38. Sobre a inutaçAo da rrla<,ao rnlic < ampo < < ul.ul< no mundo niod<ino, vri Wll I .IAMS,
Rayniond <) eam/w t a eidude Srto Paulo ('ompanhla du<« I < I9HM
IHIHVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 51

E o que veio reduzir Pernambuco à triste caricatura do seu passado que hoje
incontestavelmente é, foi exatamente o haver-se desgarrado o melhor da
lidalgúia rústica, da terra a que vivera pregada como as ostras em rochedo.
() absenteísmo trouxe para a nossa família rural todos os inconvenientes do
particularismo privando-a das vantagens do tipo de família patriarcal. Em
alguns a renúncia da gleba foi absoluta: venderam-na. Donde a inversão de
valores sociais que se tem operado em Pernambuco havendo hoje muitos
senhores reduzidos a pífios funcionários públicos e engenhos que ‘profiteurs’
virtuosos administram de longe, por traz de firmas comerciais.39

Esse rebaixamento social dos homens das elites rurais, sua debacle,
lia/idos, cm grande medida, pela concentração do capital proporcionado pelo
avanço das relações capitalistas no campo, com o advento das usinas, aparece
iirhlcs discursos como sendo produto de uma perda de interesse dos homens
I" l.i lerra, seduzidos que estavam pela cidade e pela delicadeza de suas formas
il< vida. Esse processo parece ser vivido como uma mudança de lugar do
m i■.< ulino e sua aproximação perigosa com o feminino. A inversão de valores
■■<» i.tr. parecia também acontecer nas relações entre homens e mulheres.
Esta percepção social de que os homens estariam se desvirilizando talvez
i qilique a verdadeira coqueluche que se tornaram os remédios que prometiam
11 i 11 de volta a potência masculina. Os jornais do começo do século se enchem
■ li l<H mulas miraculosas que prometem resgatar a disposição para o sexo para
. ..... ens que a tivessem perdido:

SORET, o novo e maravilhoso descobrimento médico que restaura


prontamente e com segurança a perda parcial ou completa da virilidade
nos homens de todas as idades. Não é necessário que vos queixeis de ser
um homem somente de nome e que tenhais que privar-vos de todos os
prazeres que vossa natureza deseja. Comprai na botica de vossa vizinhança
uma garrafa de SORET e ficais maravilhado com a mudança rápida, soret é
um rcconstrutor ativo mental e físico e sentireis seus resultados benéficos em
nosso organismo inteiro. Deves pedir com insistência o SORET.40

l'<ll< l'',YRI'., (lilbcrto. “7.3" (Artigo» Numerados), Didrio de Pernambuco, Recife, 07/09/1924,
p 1, <■<. 4 <• 5.
Ui "llmi'. nova» paia tudo» o» lioineii»", / >him> dc Pernambuco, Rc<Ifc, 20/06/1926, p. 4, <. 2.
52 nordestino: invenção do “falo”

A virilidade, o vigor e a vitalidade devem ser possuídas por todos aqueles que
desejam cumprir os seus deveres e gozar a vida. Se lhes faltam as forças ou se
a sua saúde está combalida tome nervita do Dr. Hurley que, enriquecendo o
sangue e estimulando o apetite, devolve a saúde e o vigor. Após uma semana
de uso da nervita, a própria pessoa sentir-se-á surpresa com as melhoras
obtidas. Não perca tempo. Compre hoje mesmo um vidro na farmácia.41

Já durante a Primeira Guerra, quando o modelo viril do soldado parece


afirmar-se como modelo de masculinidade, o Composto Ribott chega a fazer
uma campanha dizendo que era preciso superar a ideia de que as mulheres
gostavam de homens pálidos, delgados e de ombros caídos, pois estes é que
eram considerados inteligentes. Tomando o Composto Ribott, o homem
ficaria robusto e mais inteligente do que o amarelinho, que vinha fazendo tanto
sucesso na vida nacional desde, pelo menos, a vitória da inteligência de Rui
Barbosa em Haia e de Santos Dumont nos céus de Paris. Os homens podiam
ser um águia e um condor sem precisarem ser raquíticos e de cabeça grande,
como os dois heróis pátrios do começo do século. Aliás, a campanha civilista
já colocara frente a frente estes dois modelos distintos de masculinidade, o
garbo e a resistência militar de Hermes da Fonseca e o amarelinho baiano Ruy
Barbosa.42
Embora vivamente preocupados com esse processo de nivelamento e
aproximação entre o masculino e o feminino, que se dava no interior das elites
das cidades do Nordeste, no começo do século, é interessante como alguns
desses discursos, quando abordam as camadas populares, sentem repúdio a suas
grosserias, seus andrajos, seus hábitos não civilizados, sua falta de delicadeza.
Isto denunciaria a falta de civilidade de nossa população. Excessos de um lado,
carência de outro, neste fio da navalha se sustentavam estes discursos:

Mas uma coisa que Recife ostenta bem claramente... e é sobretudo chocante
para quem vem do Rio ou São Paulo, é a vaga preguiça, indolência, de
‘nonchalance’ que se vê espalhada por esses grupos de carregadores, sentados
pelas calçadas, refestelados ao pé da escada dos edifícios, inertes, bocejantes,

41. “Homens robustos”, Diário de Pernambuco, Recife, 30/09/1926, p. 8, c. 5.


42. “Uni homem robusto e bem formado é a admiração dc todas as mulheres”, Diário de
Pernambuco, Recife, 12/03/1918, p. 4, c. 2. Ver também: "I lomcns debilitados", Diário dc
Pernambuco, Rcr ile, 23/09/1927, p. 8, > I Sohrc a valm izaçilo do amaiclinho na< ional, vet:
I RI .YRI ', < iillx ilo (hdrm p I.XXXIII
IHIIIVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 53

como se isto aqui fosse de fato o paraíso da malandrice e da vagabundagem.


() hábito que ainda remonta ao período colonial de andar descalço agrava este
aspecto pouco agradável da cidade, a dar um espetáculo de miséria, de apatia
c dc indiferença.
A isso junte-se a mendicância, mulheres em farrapos, com os filhos nus,
aleijados, cegos, paralíticos, aqui e ali, ...Cenas que desfiguram a nossa cultura
r desabonam os nossos hábitos de sociedade.43

()s mesmos olhos que pareciam escandalizar-se com a mulher


ui i a ulinizada, com a mulher excessiva, com o homem efeminado, com a
nu Imdrosa e o almofadinha se escandalizavam ao contemplar os andrajos dos
pnhirs, A mesma narina que parecia sufocar com o perfume ativo de homens e
mulheres civilizados à europeia e à americana se contorcia diante do cheiro do
pnlim. Indícios de uma nova sensibilidade, de uma nova delicadeza, definida
pni 1'reyre como antipatriarcal, tão bem representada pela figura do bacharel.44

d) A ERA DOS BACHARÉIS ANTIPATR1ARCAIS

I'icyre afirma que a Primeira República podia ser vista como o momento
i 111 < pie os brasileiros de classe dominante acentuaram o empenho e a disposição
di •.<• parecerem mais com seus contemporâneos de países tecnicamente
...... •. adiantados do que com seus pais c avós, do tempo do Império. Há
um i valorização crescente do que era novo, moderno c um abandono e até
di o .peito pelo que era velho e tradicional. Época em que se tornou mais
> li g.iiite casar-se com moça estrangeira do que com as parentas do clã familiar.
I l"i< a do uso constante nos discursos e nos escritos dc expressões em língua
i 11 angeira. Uma vergonha crescente de tudo que lembrava o rural, o rústico, o
i ulonial. Um processo de desidentificação com as gerações anteriores, com os
..... delos dc sujeito que os antepassados representavam.45

II I T RN ANDES, A. “De uns e de outros”, Diário de Pernambuco, Recife, 08/12/1919, p. 3, c. 5.


■II. A relação entre os sentidos humanos e as empiricidades também sofre mutações históricas
a medida que as sensações precisam ser decodificadas através de conceitos expressos por
meio da linguagem, historicamente condicionados; por isso, podemos falar de uma história
das sensibilidades. Ver: CORBIN, Alain. Saberes e odores, São Paulo: Companhia das
I .eiias, 1987; Território do vazio, São Paulo: Companhia das Letras, 1989; GAY, Peter. //
edutafio dos sentidos-, VICENT Bl II I AIII ,T, Aline. História das lágrimas. Rio de Janeiro:
Pa? e lerra, 1988.
I'. I RI ',¥ R T , (iilbeito. (hdem e u... p is
54 nordestino: invenção do “falo”

Os anos 20 acentuariam, ainda mais, o descontentamento com o


passado, inclusive, com o mais recente. As gerações mais jovens se mostravam
completamente afastadas do Império, como também já faziam duras críticas à
própria República, por, em grande medida, não ter representado aquela ruptura
com as práticas políticas e econômicas do próprio Império. Com a influência
das várias correntes de pensamento que nos chegavam do exterior, a palavra de
ordem passa a ser revolucionar a realidade do país, seja em seus aspectos políticos,
seja em seus aspectos culturais, técnicos e artísticos. Contraditoriamente, neste
período, a nação e o povo brasileiros retornam como uma preocupação, a partir
das próprias motivações que as idéias aprendidas no exterior nos trazem.46
A própria decadência de setores tradicionais da economia leva à percepção
de que a educação no Brasil não se fazia a par com os avanços técnicos e
científicos, inclusive em relação aos métodos de administração, que eram
praticados em outros países. O envio de rapazes para estudar em escolas
técnicas americanas e a abertura de algumas delas no país mostram uma
preocupação crescente de dar aos rapazes uma educação condizente com uma
nova realidade social, de uma economia assentada na indústria, na técnica e no
trabalho livre e assalariado. No entanto, esta educação os afastava não só de sua
família como da vida rural:

(...) a vida do campo industrializou-se em poder dos grandes capitalistas...


Hoje os engenhos são sombras do passado. Custa a crer-se como se mudou
este cenário tão rapidamente.
Nas casas-grandes dos antigos banguês, onde dominaram sensorialmente os
velhos coronéis do século passado, como melancólicas e ridículas criaturas
deles, vegetam hoje os administradores, fiscais e apontadores dos usineiros.47

Freyre diz que outro indício da decadência dos velhos patriarcas é que na
sociedade do começo do século cada vez mais o bacharel substitui o coronel
na administração pública. Embora seja o período caracterizado como o do

46. Idem, p. lxi. Ver: SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. 2. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1985; COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia ã República: momentos decisivos.
2. ed. São Paulo: Ciências I lumanas, 1979; MARSON, Adalberto. A ideologia nacionalista
em Alberto Torres. São Paulo: Duas Cidades, 1979; CARVALHO, Joi4 Murilo de. .7
formação das almas. São Paulo: Companhia das l.ctras, 1990; OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A
questão nacional na Primeira República. Silo Paulo Biaalliense, 1990; RA( >O, Margareth.
Do cabaré ao lar. Rio de Janeiro Paz e l eita, |9H'>
47. BEI .1,0,Júlio Memãria\ de nm \enhm dr engenho, IH6 IK7
RIIHVAI MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 55

......... lisino, este denunciaria mais a decadência do que a força do que chama
il> |Mfi iarcado rural. O coronel, embora permaneça com enorme poder a nível
|in al, lein que dividir seu poder com alguns burocratas do Estado, e este poder
> o diminuindo à medida que a esfera política se amplia. Na política estadual
• mu ional, os coronéis se fazem representar, cada vez mais, pelos seus filhos e,
m ii i do que nunca, o que seria outro indício de decadência, pelos seus genros,
....... i inprc pertencentes a famílias ilustres.48
Ircyre chega a falar que seria este um período marcado pela dependência
di imnlos sogros em relação a seus genros, já que estes, quase sempre vindos
i|o mundo urbano, bacharelados, mostravam maior preparo para as lides
piillliciis e empresariais do que os filhos dos potentados rurais, homens
...... Iri idos e depauperados pela educação recebida no campo. Diz ainda: “que
■ kh.i importância conquistada quase sempre à sombra de sogros influentes;
iii.i i i inpregada às vezes em sentido contrário aos interesses e gostos desses

villiii'., por eles, genros, ultrapassados em ação e em prestigio, com uma


di ■ m oltura que ordinário faltava aos filhos e através de alianças secretas com
,(h m !)• i as”. Dupla mutação, uma que, por um lado, tendia a nivelar e até inverter
,i Iih i.uquia entre jovens e velhos e, por outro lado, a crescente influência
h mmiiia no mundo dos negócios e da política, através da ascensão dos genros,
qin |.i representam os interesses das filhas contra os dos filhos e que tendem,
i ui aliança com a sogra, a reforçar o poder desta em detrimento do poder do
,, Iho patriarca.49
(Icnros advogados, médicos, engenheiros, militares, industriais urbanos,
i m oposição ostensiva ou implícita a velhos agrários e rurais, haviam apoiado
i l’i publica e até a Abolição. Muitos vão se assenhorear do patrimônio de
m iih sogros com a morte destes e a falta de competência de seus cunhados em
ulniiiiistrá Io. Muitos usineiros seriam genros que teriam ascendido socialmente
..... . ,i ajuda de velhos senhores de engenho e que agora decretavam a morte
,11 o < tilar forma de se viver e produzir no meio rural. Essa vitória dos genros
pmli.i cr debitada também à própria formação bacharelesca de muitos filhos
,h piopt ictários rurais, formação muito mais teórica do que prática. Retirados
iiml.i cedo do convívio familiar e da vida no campo, quase sempre internados

III I Rí YRI .,Gilberto. O/>. Cit.,p.cxi.ui. Ver: KORTIJNATO, Maria Lucinete. Oíwowí/wwo
,• a nmiv/m do coronel: dc símbolo a simulacro do fsoder local, Campinas, unicamp, 2000 (Tese de
I luuloiado em I listória); IÁINA, I .iiIn, Coronel, o dono do mundo, Rio de Janeiro: Cátedra;
IIiikIIIii: inl, 1983.
|'l I RI* I',YRI'., Gilberto, pp. cxi.vill c ( xi |x
56 nordestino: invenção do “falo’

em colégios onde eram “amansados como animal bravio”, padecendo de uma


enorme saudade dos seus e da vida do campo, estes meninos seriam afastados
em sua sensibilidade e nas suas subjetividades da sensibilidade e subjetividades
representadas por seus pais. Quando retornavam, seu pai e a vida da fazenda
já lhes eram estranhos, só divisavam choques e inadaptações. Sentiam-se
diferentes.50
Bacharéis que, em sua estadia na cidade, ao atingirem a adolescência, não
foram mais iniciados pelas carnes negras e mestiças das escravas ou mulheres
pobres do campo, mas pelas cocotes estrangeiras, mulheres de carne branca
e de modos refinados, que teriam contribuído para refinarem esses homens,
fazendo deles quase umas moças. Elas teriam lhes ensinado a discrição ao
cuspir, no palitar os dentes, no vestir, no assoar-se, no rir, no pentear do cabelo
com pomada, no perfumar da barba com brilhantina e do lenço com extrato,
no uso de brilhantes nos dedos e nos punhos e no peitilho da camisa. Além
disso, os teriam aperfeiçoado na arte amatória.51
Freyre constrói no seu discurso imagens deste momento de transição, que,
embora sejam marcadas claramente por uma visão de cima52 da sociedade, nos
dizem de uma sensação de que algo mudava nessa sociedade, principalmente,
em dois sentidos articulados: o do nivelamento e da feminização. Os netos de
senhor de engenho, quando não desprezavam essa vida de seus antepassados,
olhavam para trás com nostalgia, sentindo-se incapazes de reviver, a não ser
como memória ou literatura, aquela vida de seu povo, de seus antepassados,

50. Ver sobre a educação dos meninos neste momento: REGO, José Lins do. Doidinho. 16 ed.
Rio de Janeiro: José Olímpio, 1977; Meus verdes anos, Rio de Janeiro: José Olympio, 1956;
GALVÃO, Ana Oliveira. Amansando meninos, joão Pessoa: edufpb, 1998. Sobre o choque
entre o bacharel e seu pai no retorno, ver: ALMEIDA, José Américo de.zl bagaceira. Rio de
Janeiro: José Olímpio, 1970. Sobre a educação mais teórica, ver FREYRE, Gilberto. Ordem
e progresso, p. 101.
51. FREYRE, Gilberto. Idem, p. 100. Sobre o papel “civilizador” da prostituição estrangeira
no Brasil, ver: RAGO, Margareth. Os prazeres da noite. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991;
ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
52. Para uma discussão sobre o lugar social do olhar como condicionante dos discursos, da
memória e da história, podemos recorrer a autores de tendências teóricas mais diversas,
embora para alguns a posição do olhar dê origem a uma perspectiva diversa do fato
analisado, para outros a posição do olhar define a visão da realidade e da verdade ou não
do fato. Ver: FOUCAULT, Michel. O nascimento da c/tnica. 3. cd. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1987; CERTEAU, Mi< hei de. // escrita da história. Rio dc Janeiro: Forense
l Jniversilária, 1982;TI l()MPS( )N, Edward P. Costume* em comum. Sao Paulo (oinpanhia
d.r. l < ii.r., 1998; CHART1ER, Rogtt t hittória tulfttwd 8lo Paulo I >ii« l. 1990, HII I .
ChiÍHtophiT. O mundo de punta cabttu Sao Paulo (ompanhia das l.ctias, 1987.
IUIKVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 57

> hI.i <le“velhos duros,retos,brabos,velhas boas,ásperas,generosas, tios,primos,


p iiciltes pobres, lutas de família”. Feliz daquelas famílias que produziram, pelo
nu nos, um intelectual capaz de preservar as suas memórias, mesmo um parente
nu io aluado, que não sabia olhar para um partido de cana como um plantador
il< vi.i olhar, que não sabia safrejar um engenho com o rigor necessário, mas
■ i o vendo a memória de todos, eles sobreviveríam. Mas esse intelectualismo
uao cia mais um indício da feminização dos homens dessa elite agrária que se
n m inutava em elite urbana? Dedicar-se aos livros quase sempre fora tarefa
paia homem doente e frágil na sociedade dos patriarcas rurais, homens quase
o a ilheres de tão delicados.53
O bacharelismo era mais uma forma de desvirilização. Homem que
i ia homem, na sociedade do tempo dos patriarcas rurais, não gostava de
llvios, apreciava era “uma boa pinga, um bom cavalo, uma boa briga de galo
• uma boa mulata”. Muitos haviam abraçado a vida literária e acadêmica
i nino alternativas à debacle econômica da família. Outros tiveram no serviço
publico a única saída para, aproveitando-se de seu capital simbólico, se
ui uiiercm pelo menos nos setores médios da sociedade. Muitos, no entanto,
liiu assavam não só no serviço público, como no próprio comércio, por não
h u ni uma subjetividade preparada para isso. Formados na prepotência e na
indisciplina da sociedade rural tradicional, não conseguiam submeter-se às
humilhações e exercitar a obediência que seria necessária para ter sucesso
ni ’.'..is atividades:54

() gênio do pai, o garbo na valentia, aquele orgulho, fanfarronice e


arrogância dos velhos senhores de engenho, substituindo mesmo depois da
rotina econômica, viviam na sua natureza e jamais as privações, a pobreza,
a necessidade de aceitar para viver as funções mais humildes, desde a de

’> I UE( ÍO, José Lins do. Prefácio de Memórias de um senhor de engenho de Júlio Bello, p. xx.
A produção literária e memorialística como formas de evasão da temporalidade acelerada
liazida pela modernidade e como uma forma dc lidar com a consciência da finitude humana
i |ue emerge numa sociedade dessacralizada como a capitalista é abordada em: MACHADO,
Roberto. Foucault e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000; FOUCAULT, Michel.
O t/ue l um autor?-, REIS, Josc Carlos. Tempo, história e evasão. Campinas: Papirus, 1994;
RIUOEUR, Paul. Temps et récits. Paris: Seuil, 1983/85; BLANCHOT, Maurice. O
e\pa(o literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987; CERTEAIJ, Michel de. A escrita da história-,
I >1 I .Fl IZE,( jillcs. Crítica e clínica. S.io Paulo: Editora 34, 1997.
1 MICEl ,1, Sérgio. Intelectuais e claue diligente no liiaúl. São Paulo: 1 )ifcl, 1979; Poder, sexo e
/r/iíii na Hepilhlica Velha São Paulo Peispet llvu, 1977. Sobre a noção de capital simbólico,
Vi i BORDIEU, Pieire ()podei tiniholuo Itlo ili janeiro Ib tU.ind Ibasil, 1989.
58 nordestino: invenção do “falo”

administrador de serviços até a de simples trabalhador dos eitos, conseguiram


apagar-lhe ou atenuar-lhe o brio e o amor próprio.55

Em suas memórias, intituladas Memórias íntimas, Mário Sette, importante


intelectual e escritor do começo do século, que, embora não fosse descendente
direto de senhores de engenho, teve toda a sua obra e a vida ligada ao destino
desse grupo social, parece ser bem um exemplo do bacharel e intelectual que
encontrou no serviço público o seu sustento e, ao mesmo tempo, teve que
conviver e se submeter a muitas humilhações para sustentar a sua família.
Humilhações que já haviam começado no colégio quando não conseguia ser o
atleta que outros colegas eram. A repulsa por esportes muito viris já denunciava
o intelectual que era. A mangação dos colegas fazia com que se tivesse tornado
arredio e com um grande medo do ridículo. Daí ter optado por uma profissão
que o fazia ficar muito mais em casa do que na rua, aparecendo muito pouco
em público, sendo, pois, um homem doméstico.56
Como uma mulher, o intelectual é visto, nesses discursos, como este
ser frágil e atrapalhado com as coisas mais viris, arredio, vivendo dentro de seu
escritório, gabinete ou quarto, num mundo mais de imaginação, atrapalhado
com a realidade. Mário Sette também parece viver como literatura aquele
modelo de masculinidade que já não conseguia atualizar. Nas páginas de seus
romances podia ser um patriarca no velho estilo, ao mesmo tempo que na vida
cotidiana tinha que encarar a existência cinzenta e humilde de funcionário
público. Homem sentimental, como confessa, incapaz sequer de se desprender
dos seus filhos a quem queria todos morando na mesma rua, Mário Sette
parece representar uma nova maneira de ser homem, digna, mas modesta e
delicada:57

Aulas de ginástica.
Nunca tive queda para os chamados exercícios físicos. Dócil, tímido e nervoso,
entrebatiam-se profundamente dentro de mim a incapacidade muscular

55. BELLO, Júlio. Op. cit., pp. 150-151.


56. SETTE, Mário. Memórias intimas. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1980,
pp. 53-54.
57. A prática literária pode ser vista como o momento de fuga, de busca do fora das
circunstâncias históricas e sociais, momento cm que o sujeito pode devir outro. Ver:
FOUCAlII .1', Michel. O pensamento <lo exterios. Sao Paulo Principio, 199(1; I )!• I II l/.E,
(iillcs; (il IATI ARI, I clix Mil plutós. Capitalismo <• eMinn.olivnia Vol 4, l<( >1 NIK, Suely.
Cas toira/ia sentimental. Sj<> Paulo l''<taçAo l.ibcidadc, |9H‘>
UIIIIVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 59

de realizar o que outros mais robustos conseguiam facilmente executar, o


acanhamento da inferioridade física na adolescência e o receio de quedas. Daí
a minha ojeriza às aulas de ginástica, quando me via promovido a ‘palhaço’.

A verdade é que o aluno do Colégio Loureiro não podia admitir que


zombassem dele por não saber executar piruetas acrobáticas, quando já tinha
tanto jeito para os versos e para as ‘fantasias’publicadas em jornaizinhos.58

A educação das novas gerações já não se dava preferencialmente nas


iir Jituições religiosas. Presença dominante por muito tempo na vida intelectual
dn país, a Igreja também passava por transformações que se encaminhavam
puta o que pareciam ser as duas tendências dominantes no começo do século,
i liorizontalização das relações e a feminização dos costumes. Por um lado,
pot ter perdido a condição de religião oficial precisou adequar-se ao seu
nivelamento com outras instituições e práticas religiosas. O protestantismo, o
i pnitismo e mesmo as religiões africanas, ainda perseguidas, possuíam agora
uh mesmos direitos que os católicos. Com o avanço do ensino leigo, a Igreja
i mha que reforçar suas instituições de ensino e investir numa mudança de
..... iportamento de seus próprios integrantes.59
O que se chamou de romanização da Igreja será visto, por Freyre, como o
luu da Igreja patriarcal, onde os padres eram por vezes chefes de extensos clãs
i pai de inúmeros filhos. A ênfase agora se dava ao padre não patriarcal, ou seja,
aquele que, muitas vezes, era, na verdade, um homem “inadaptado a seu sexo”,
que para não ser obrigado a uma vida de casado que não desejava, se refugiava
lu i sacerdócio. Embora, contraditoriamente, isto se dava por se exigir agora, do
i h io mais jovem, um maior rigor na observação dos códigos de moralidade e
di 11 ih ia. Como dizjúlio Bello:

Não medraram na vida dos padres mais jovens, força a de convir, os exemplos
de impudor e transvio que eram tão ordinários há quarenta anos passados. O
clero, pela independência da Igreja depois da República, com o afastamento
eivil e secular, fortaleceu-se: regenerou-se na consciência segura e única de
sua santa função moralizadora, nos votos firmes e sinceros de penitência, de

•dl SI' I I I ., Mário. O/>. nZ, p. 54.


11()()RNA I .R I , luhiuido <t ul /hi Jii no HraiiL 3. <•<!. Prtrópolis: Vozes, 1983.
60 nordestino: invenção do “falo”

abnegação e sacrifício que são as bases mais sérias e veneradas do prestígio e


da força da Igreja no século.60

Estava ficando para trás mais um símbolo daquela sociedade de machos, os


padres gordos, bonacheirões, rodeado de “sobrinhas”, com um grande número
de filhos, chefes de clã, líderes políticos, capazes de, rapidamente, trocar a cruz
pelo clavinote na defesa de sua parentela e de seus interesses. Os padres já
não eram mais guerreiros, crescia o número daqueles que, como José Maria,
personagem de romance de Gilberto Freyre, fora ser padre por ter se tornado
indivíduo incapaz de viver “a vida normal de adulto do sexo masculino”, dando
origem a seres dúbios, que não eram de clara classificação em um dos gêneros.
Estes pareciam estar se tornando plurais, flexíveis e fluídos, dando margem a
transversalidades de toda ordem.
O clero e a Igreja também se desvirilizavam, inclusive, na crescente devoção
a Maria, que significava um culto à mulher em meio a uma sociedade que
até bem pouco tempo prestava culto aos homens.61 A Igreja vinha contribuir,
assim, para que a vida intelectual ficasse cada vez mais identificada com as
características que esta sociedade atribuía ao feminino.
O caráter feminino da carreira intelectual será ressaltado, ainda mais, à
medida que este começo de século também vai assistir à entrada de várias
mulheres na vida acadêmica e literária, lugar de ascensão e visibilidade social.
Isto provoca um acirrado debate sobre a conveniência ou não de a mulher
seguir a carreira das letras e até que ponto isto seria compatível com seu
precípuo papel de mãe e esposa. O Diário de Pernambuco, em outubro de 1926,
publica notícia sobre uma enquete feita em Paris entre intelectuais homens
que tinham como companheiras mulheres também intelectuais, para saber se
uma mulher de letras podia ser uma mulher ideal. Todos foram unânimes em
afirmar que uma intelectual também podia ser uma excelente dona de casa.62
Mas esta ameaça feminina de vir a ocupar mais um espaço antes reservado
aos homens encontra séria oposição. No ano de 1927, Laudelino Freire,
presidente da Academia Brasileira de Letras, fazia nova tentativa de abrir
aquela instituição às mulheres de letras, seguindo o exemplo da Academia

60. BELLO, Júlio. Memórias de um senhor de engenho, p. 13.


61. FREYRE, Gilberto. Dona Sinhil e o /Hho pudie Rio dc fuiciro Círculo do Livro, s/d, p. 83.
62. Ver SILVA, Alômia Abi.mli-. da /i cknMi femininas r i>\ /emininos inscritos: imagens de
mulheres na imprensa paraibana dm anus Ji), Kvi He, m ri, 2000 (I IhMirtuçilo dc Mestrado
cm I limóriu).
|||I|IVAI MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 61

I hnnincnse, que elegera como correspondentes as senhoras Ibrantina Cardona


, Mm cdes Dantas. Mas a reação de seus colegas obstaculizou tal abertura.
|.i não se chega ao exagero de anunciar que o ingresso da mulher na vida
,t< h inica prejudicaria sua fecundidade, como escreveu um jornal do final
iln um ulo XIX, citando discussões feitas num famoso congresso médico em
lúiplon, mas discute-se e chega-se à conclusão de que a constituição mental
i|un dois sexos é diferente. Após longas pesquisas, claro, “descobre-se” que
*llii que se refere à sensibilidade entre os dois sexos, verificou-se nas referidas
i «p, liéncias, que os sentidos do tato, do gosto e do olfato são muito mais
pudundos na mulher do que no homem, que tem em compensação muito
linilx desenvolvidos do que a mulher os sentidos da audição e da visão”. O que
|m|< i significava, era que “as mulheres reagem muito mais prontamente a tudo
qm <• do domínio da sensibilidade pura”, ou seja, seriam muito mais sensíveis,
|,l ou homens “recebem com mais rapidez as impressões que se prendem, por
... Ini dizer, ao raciocínio, como pode ser a avaliação dos pesos, das distâncias
i tiiio, manifestamente, superiores no que se refere à rapidez e precisão dos
liioviincntos”. E conclui: “do ponto de vista da associação das idéias a mulher
. multo mais rápida e ativa do que o homem, em detrimento, porém, da
fu uldade de concentrar estas idéias. Em outras palavras, a mulher corre muito
ui u i <>111 o cérebro mas não numera suas idéias, desperdiça-as e, assim, a um
di ii iminado problema, o homem responde sempre com maior segurança e
i z . 63
Este texto mostra como os homens pareciam ansiosos e angustiados com a
I i i 11 a ipação crescente das mulheres na vida pública, particularmente, no mundo
di letras. A necessidade de reafirmar a superioridade do intelecto masculino
,i iluc o feminino mostra que os homens já não estavam tão mais seguros disto.
I',iii i i que estamos diante de mais uma tendência ao nivelamento, homens e
niiillii tes, pouco a pouco, caminhavam para se igualarem no campo intelectual.
I ii.inlc disto, lança-se mão do mesmo discurso médico e pretensamente
i ii 111 il ico,o mesmo que antes havia condenado a mulher de letras à infertilidade,
,i|nii.i procurava mostrar que, embora estas fossem capazes de correr com o
II n ino, dc ter muitas idéias, de ter imaginação, não conseguiam racionalizá-
liih, ordená Ias, a mulher continuava representando o irracionalismo e a
i n ibilidade extremada.Talvez, por isso, fossem elas as maiores entusiastas de

fi I N/.i "A uiiiHtituiçlo incnlal dos dois sexos", / hilim «/< I'rrnambuco, Recife, 01/01/1924, p.
I.' 6
62 nordestino: invenção do “falo’

outra novidade deste começo de século: o casamento romântico, que aparecia


como mais uma vitória das mulheres e de uma sensibilidade feminizante.

e) O CASAMENTO ROMÂNTICO É A VITÓRIA DO SENTIMENTO?

Neste processo que Freyre identifica como sendo de crise da sociedade


patriarcal, uma mutação decisiva seria a ocorrida no casamento. Um elemento
central na reprodução da família de modelo patriarcal seria o casamento
feito seguindo motivações de interesse econômico, político e étnico, em que
a escolha do futuro marido ou mesmo da futura esposa, dos filhos, era feita
pelos patriarcas. Os filhos, quase sempre, desde muito cedo, eram prometidos
como futuros cônjuges de membros da própria parentela ou de outra parentela,
àquela que, por motivações de ordem prática, fosse interessante se ligar.64
Os filhos deviam obediência total às determinações dos pais, sob pena
de serem duramente castigados, até com a perda da proteção, da herança e
serem expulsos da casa e da própria família, o que os colocava numa situação
de extrema dificuldade. A emergência do modelo de casamento romântico
exigiu, pois, uma mutação na própria relação entre pais e filhos, uma mutação
que também se dava no sentido da diminuição da rígida hierarquia e do
enorme fosso que separava as gerações mais jovens das gerações mais velhas,
em termos de poder e autoridade. A debacle econômica e política de muitos
destes patriarcas, aliada a uma mudança de sensibilidade social, que levava a
uma valorização do novo, do moderno e do jovem, mais do que do passado, da
tradição e do velho, fez com que uma nova geração, principalmente de homens,
começasse a desobedecer a seus pais quando o assunto era a escolha de sua
futura parceira. Este período seria, pois, de agravamento dos conflitos entre
pais e filhos e entre gerações. As mutações subjetivas, trazidas pela educação
urbana das novas gerações das elites, teriam provocado uma progressiva
dissensão em relação aos valores e costumes predominantes na sociedade
agrária e escravocrata, entre eles os de obediência cega aos pais e de aceitação
da realização de uniões conjugais assentadas apenas no interesse econômico e
político, embora continuasse muito difícil a aceitação por parte desta própria
juventude de casamentos interétnicos e até mesmo com pessoas consideradas
de condição social inferior, mas já se manifestava de forma crescente a

6*1. Ver: SII.VA, M.iií.i Bc.iiiiz N1//.1 <l.i ShtenHi dt ia\ainciito no Hiaulcolonial Sflo Paulo. I
A. Omiioz/i ihinp, l‘)H*l, (’()S I A, |m.11 idir I h Ik (iidcm nh'dim, nomni/iiiniliar.
lUHIVAl. MUN1Z DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 63

It ndencia de se constituírem famílias sem consideração de preconceitos de


mi, i <■ de família.65
Para esta instauração do modelo de casamento romântico66 teria sido
ilur.ivo, também, o declínio do que se chamava de “espírito de família”,
ul' ailuído por um crescente individualismo, que levava a um desejo crescente
iIih. jovens de fazerem suas próprias escolhas, decidirem seu próprio caminho.

11 r y i <• localiza, neste momento, o que seria uma valorização da própria criança,
iiin.i maior liberdade do menor, já que estas seriam a garantiría do futuro de
I milhas em situação de, cada vez maior, dificuldade. As expectativas da família
H 11 ausferem para as futuras gerações, o que leva a um cuidado maior com as
II lanças c a um relaxamento do antigo poder discricionário sobre as crianças.
I H vir chega a dizer que o fim da escravidão e o progressivo afastamento
ul'|i livo das novas gerações em relação aos valores dessa sociedade levaram a
.... il a andamento, a uma maior delicadeza na relação com as crianças. Estas
II ii in sao tratadas quase como escravos, mas passam a reinar no interior das
famílias. As crianças se tornam objeto de maiores cuidados à medida que
i lamílias tendem a ter um número menor de filhos, estes se tornam mais
pi■ < lusos c o menor número possibilita melhores cuidados:67

Paia o moço brasileiro foi um período assinalado, na sua última fase (após os
anos 20) pela crescente libertação do menor, da opressão por vezes excessiva
dos pais ou dos velhos, o casamento romântico tornando-se, nas áreas
in lianas e nas rurais, mais em contato com as urbanas, o sistema dominante
ilc consórcio. Não só isto: o menino passou a crescer, de modo geral, nessas
aicas, mais livre da dominação de pais, confessores e mestres, embora o uso da
palmatória nas escolas e do cipó, da peia ou da vara, nas casas ou entre famílias
mais lentas em se desprenderem dos ritos patriarcais de disciplina, tenham se

■■ I' REYRE, (jilberto. Ordem eprogresso, p. cxlvi.


•«. 1'ani uma história do casamento romântico e as mutações subjetivas que este implica, ver:
M At 1'ARl ,A NE, Alan. História do casamento e do amor. São Paulo: Companhia das Letras,
l'’9O; COSTA, Jurandir Freire. Sem fraude, nem favor. Rio de Janeiro: Rocco, 1998; GAY,
1'ifi i // paixão terna. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; GIDDENS, Anthony.
I ii.mformafão da intimidade, ROUGEMONT, Dcnis de. O amor e o Ocidente. Rio de
| iiii Ho: (iuanabara, 1988; 11'INCAO, Maria Ângela (Org.). Amor efamília no Brasil. São
I ‘ iiilii ( onlcxto, 1988.
i‘ A i slc processo podemos c hamar de "invenção da infância" como fala Aries ou de
pi diigiigiz.aiplo da criança como quei l iiui ault; vei ARIES, Philippe. História social
da família e da crianfa Rio de |imello Zilliui, 1978; F( )l ICA1IIII, Michel. História da
i. sualidadc I a ■vontade de \al>ii, Rio d< funilio (iniiil, 1980
64 nordestino: invenção do “falo”

prolongado até quase o fim do período que procuramos estudar... Os colégios


americanos de inspiração protestante, talvez tenham acentuado demais o
individualismo nas atitudes de independência que procuravam desenvolver
nos seus alunos, de modo às vezes excessivamente antipatriarcalista.68

Porém, o acontecimento decisivo para esta maior atenção às crianças


por parte dos pais é o próprio declínio da família de modelo extenso, com
a redução do núcleo familiar, com a diminuição do número de pessoas que
antes habitavam cada casa das elites e que dividiam, entre si, o cuidado
com os menores. A partir dos anos 20, parece haver uma concentração de
responsabilidades, principalmente para a mãe, cujo exercício da maternidade
vai se tornando cada vez mais importante e exigido por toda uma série de
discursos que para ela se dirigem.69
Outro indício, apontado por Freyre, do declínio do que chama modelo
patriarcal de família seria a redução progressiva da própria diferença de idade
entre os cônjuges, havendo uma tendência crescente de nivelamento etário
entre os parceiros. No modelo anterior, as moças casavam com idade que
variava entre 14 e 18 anos, já os rapazes o mais comum é que casassem entre
os 25 e 30 anos. Esta disparidade de idade facilitava, inclusive, o domínio que
um homem mais velho e experiente podia exercer sobre quase uma criança. O
fato de a menina se casar muito cedo também favorecia a ocorrência de proles
que giravam sempre em torno de 12 a 15 filhos podendo chegar, no extremo, a
até 25 filhos, o que vinha se reduzindo na medida em que as mulheres casavam
agora cada vez mais tarde e com homens mais jovens, a prole teria se reduzido
para um número médio de cinco, seis ou sete filhos.70
À educação das novas gerações se atribui o próprio destino da Pátria. A
Primeira Guerra Mundial teria trazido a consciência de uma crise mundial, não só
política, como social, que deveria ser superada pelo preparo das gerações futuras:

68. FREYRE, Gilberto. Ordem eprogresso, pp. cxlvi e cxlvii.


69. Sobre as redefinições do papel da mulher na família burguesa e a redefinição da
“maternidade”, ver: BADINTER, Elizabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985; BARROS, Miriam. Autoridade e afeto: avós,filhos e
netos na família brasileira. Petrópolis: Vozes, 1987; C'l l( >1 X >W, Naniy. Psicandlise da
maternidade. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1978, Ml'NI >I'S I >1 ALMEIDA, Maria
Isabel. Maternidade - um destino inrvitUvr/l1. Rio dc l.inrmi < ampil», I9H7.
70. FREYRE, Gilberto. O^. «7., p.cxt.m. Vci SAMAI1A. luldi Mi quitu A família brasileira.
■I. <d. São Paulo: Brasilicnsc, 1994; M Al<< 11 l<), Maita I ul/a lannlia, mulher, sexualidade
e Igreja na história do Hrasil Silo 1'aulo I oyola, I '•'» I
|||I||VAI MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 65

( > melhor recurso para remediar estes males tão lamentáveis será o preparo do
homem de amanhã. As crianças despertam-nos, portanto, especiais cuidados.
I levemos zelar por elas, envidamos todos os meios para fazer crescer, nos
lnhintes de hoje, os germes dos cidadãos de amanhã. Moldando-se por esse
! •,< opo, é relevantíssima a obra do Congresso que vai se reunir em Santiago
(iv Congresso Americano da Criança).71

A criança emerge, neste momento, como um problema, não só pedagógico,


. i várias discussões cm torno do ensino e do conteúdo que este deve ministrar
i Ih m um exemplo disto, mas também como um problema “eugênico”, ou seja,
4 iiLinça e sua constituição física, genética, biológica e racial passam a ser
piublrmatizadas, requerendo, inclusive, a intervenção do Estado. A formação
ih mna nação rica e capaz de resistir às agressões imperialistas que pudessem
.iiniilcccr passava, necessariamente, pelo cuidado com as novas gerações.
A guerra, que já havia terminado, tornara o soldado um modelo para a
i iiiihlituição física e para a educação do jovem do sexo masculino. Isto se pode
ih mu cm detalhes: a generalização do uso de roupas de marinheiro como traje
<li meninos, bem como a valorização crescente do esporte, da ginástica e logo a
m guu, nos anos 30, da educação física como práticas de constituição do corpo
ih i > ulino.72
Muitos dos homens que responderam ao questionário que serviu de base
I ' i i i ,i elaboração do livro Ordem eprogresso falam em militares como seus heróis
1111111f is e estes como modelos em quem teriam se espelhado para se constituírem.
Nn entanto, o próprio Freyre fala da pouca disciplina, do pouco garbo, do
ili deixo e do próprio aspecto frágil e desengonçado dos soldados do Brasil,
■ih m das constantes práticas de “sexo não canônico” entre eles, notadamente,
tu» I' xército.71 Ou seja, não seriam modelos muito masculinizantes os nossos
hnliliidos. São comuns também, a partir dos anos 20, os concursos de robustez
luhuitil promovidos pelo Instituto de Proteção e Assistência à Infância, o que
ih leva a concluir que a infância como problema e uma etapa à parte na vida
iliih pc.soas parece estar sendo inventada neste momento:

I NAi."(1 problema da criança A participação do Brasil no próximo congresso cm Santiago”,


/ >idrio de Pernambuco, Recife, 26/09/1924, p. 2, cc. 4 c 5.
72 Vi i I I NI IARO, Alcir. d sacralizafão da política. 2. cd. Campinas: Papirus, 1986;
SEVCENKO, Nicolau. Orjieu estdtico na metrópole. Silo Paulo: Companhia das Letras,
1991; S(>1 J/.A BARROS, O.i anos viu/r <■»» /’<•»nambum ()p cit.
'l I RIA’RE, (ilibeilo ()p < tf, pp < i,< xxxv, i xx v < < xxvi.
66 nordestino: invenção do “falo”

Está definitivamente marcado para as 15 horas da próxima quinta-feira, 24


do corrente, no parque da rua do Hospício, no local em que futuramente
será levantado o prédio do Instituto de Proteção e Assistência à Infância, o
concurso de robustez, que aquele estabelecimento de caridade infantil realiza
todos os anos entre as criancinhas pobres.
Como nos anos anteriores serão conferidos três prêmios em dinheiro, às
criancinhas que melhor peso e robustez apresentarem.74

A maior valorização dos filhos foi consequência, também, de duas


importantes transformações legais e institucionais trazidas pela República, ou
seja, o casamento civil e o direito de herança para todos os filhos reconhecidos
pelo novo Código Civil. O casamento civil torna a união conjugal um contrato
de modelo liberal burguês, deixando de ser apenas uma instituição religiosa e
sagrada. A sua introdução no aparato jurídico brasileiro dá margem a acirradas
discussões, no início do século, não só motivadas pela oposição da Igreja
Católica e de intelectuais a ela ligados, mas por parte daqueles que enxergavam
nesta instituição a intervenção do Estado em assuntos de foro privado e que só
competia ao chefe das famílias:

O decreto de 26 de junho veio agravar a situação da Igreja no Brasil e


completar a discórdia que lavra no seio da família brasileira.
O número de casamentos celebrados de 24 de janeiro a 23 de maio inclusive
e que já se eleva a mais de 10.000 prova à saciedade que o casamento civil foi
repelido completamente e só poderá vingar por meio do terror e da sanção
penal. Uma lei que se impõe pela força, pela ameaça e pela prisão, é uma lei
odiosa, que forçosamente produzirá fatos amargos.75

A instituição do casamento civil parece ter sido vivida como mais um


duro golpe no poder discricionário dos patriarcas, inclusive em relação aos
filhos, que passam a ser herdeiros naturais de seus pais sem dependerem mais
das decisões pessoais destes e seus testamentos. Já os partidários da República
denunciam a resistência de muitos pais e principalmente das pessoas mais
pobres ao casamento civil:76

74. N/a. “Concurso de robustez”, Diclrio </<■ Pernambuco, Recife, I 1/06/1926, p. 3, c. 2.


75. N/a. “Casamento civil”, Gazeta do Sertão, ('ampina Grande, IK/07/1H90, p. I, c. I.
76. Para a análise destas mutaçOes ii.i lamtlia no rspaço que n< tornou o Nordeste, vei
I .l .M b N11 !•., Mai i.i Atixilindoia 1'iimflhi. h adiçao <•/•<»</,/ Silo Paulo annaiii tiMt/r <li»,<>< ■.
IlUHVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 67

Tal procedimento, que aliás deveria encontrar a mais decidida oposição


senão naqueles que pela sua própria deficiência de conhecimento não podem
aquilatar do perfeito valor do ato, ao menos da parte das pessoas a quem está
incumbido o cumprimento das leis religiosas - vai acarretando como era de
■.<• esperar os mais sérios transtornos aos interesses mais sagrados daqueles
desejam garantir o futuro de sua prole, legitimando-a perante a sociedade.
(...) quem a desobediência à lei da república favorece atualmente, terá em
breve o arrependimento de não a ter aceitado.
(...) como vê, em nome dos interesses da família brasileira, não podem seus
desatinos continuar entregues ao acaso e aos caprichos da ignorância.77

A resistência das camadas populares, não só ao casamento civil, mas à


pinpi ia instituição do matrimônio como um todo, passa a ser uma preocupação
i um ente das autoridades e dos intelectuais das elites. O não casar-se torna-
> um traço de uma vida não civilizada, rústica, matuta. A mancebia ou o
i uni ubinato, estado em que vivia a maioria dos casais das camadas populares,
p.i .mi a ser ridicularizados como formas arcaicas de comportamento. Há toda
iiiiui i mzada em favor do casamento, principalmente, em torno do casamento
i ivil

()s casamentos nos sertões brasileiros tornam-se curiosos pelo seu cunho
pi imitivo. Nos pontos afastados da influência da civilização, a vida das aldeias
r <l<> sertão difere profundamente da das cidades do litoral.
Nas classes pobres ou rústicas dos amola-foices, como ali se diz, os casamentos
sAo rapidamente concluídos. Um dia, numa reunião, o matuto apaixona-se
por uma morena apetitosa com a qual dançou o chorado. Faz a sua declaração
imediatamente e na primeira ocasião monta a cavalo e vai à casa do pai, a
quem convida para ir ao bananal, à roça ou ao pomar vizinho e lá faz o seu
pedido. A primeira vez que passa o vigário, casam. Se o vigário demora a
p.issar, então casam assim mesmo, deixando o sacramento para mais tarde.
I >á se o mesmo com relação ao funcionário do Estado Civil, se não existe um
ii.i localidade.78

uu , 1995.
// N/.i "A questão do i iiHametlto", /ililrlt </<' l'iniiini/’nin, Recife, 03/03/1901, p. 1, c. 2.
/II N/a "()» < .e.aiiienlos nos ■■< ilocn IiiumIcIiok ", / Hilfiii </<' 1'rrfliimblico, Rei iíe, 18/04/191.3, p.
I,< <•
68 nordestino: invenção do “falo”

Outro duro ataque ao modelo anterior de família e de casamento parte


do discurso médico, que passa a condenar, de forma crescente, as uniões
consanguíneas, que era um dos elementos centrais na reprodução daquilo
que Freyre chamou de sociedade patriarcal. Os casamentos consanguíneos
garantiam a não divisão das terras com famílias diferentes, contribuindo para
a ampliação do próprio patrimônio da parentela, além de garantirem arranjos
políticos que favoreciam a manutenção do status, prestígio e força política do
grupo familiar. As estratégias matrimoniais endogâmicas passam a ser vistas
como uma ameaça à constituição de filhos eugênicos e capazes de constituir
uma raça nacional forte e vigorosa. Estas uniões passam a ser responsabilizadas
pelo que se chama de taras eugênicas e pela degeneração da raça:79

Ponderando que os casamentos consanguíneos poderão trazer grandes males


à eugenia social do país, há por fim uma proposta a ser discutida na Academia,
apelando para a classe médica brasileira que não deve cruzar os braços diante
de tão magna questão.
A esse belo apelo devem acorrer os núcleos médicos disseminados no país
e , consequentemente, seria de bom alvitre que a Sociedade de Medicina
de Pernambuco, em cujo selo figuram clínicos de incontestáveis méritos
científicos, estudasse e discutisse também o problema e apontasse soluções
que julgasse acertadas.
É bem certo que só pode advir dano a raça e a sociedade da conjunção, seja
de parentes ou de estranhos, portadores de taras degenerativas, oriundas de
causas patogênicas que tenham afetado aquilo que os biologistas chamam ‘o
patrimônio hereditário’, é que se transmitem pelas células germinais de fator
degenerativo, capaz de levar as gerações futuras a um estado progressivo de
decadência orgânica, deformidade somática e excludentes físicos”.80

O próprio Código Civil, recém-promulgado, assentava um duro golpe


nesta prática ao arrolar entre os impedimentos matrimoniais, previstos no
artigo 183, o casamento entre tios e sobrinhas e vice-versa. A intervenção

79. Para a relação entre casamentos consanguíneos e relações de poder, ver: LEMENI IE, Maria
Auxiliadora, O/>. cit, GURJÀO, Eliete de Queirós. Morte e vida das oligarquias (/HS9-1945),
João Pessoa: Ed. da UFPB, 1994; SANTANA, Martha Maria balcão. Nordeste, afúcar e
poder (1920-1962), }edse> Pessoa: CNl,i|/lin,li, 1990; I I WIN, Linda. Política e parentela na
Paraíba. Rio dc Janeiro: Rcioid, 1993.
XO. ARAÚJO, J. A. Concia dc "() tódigo < ivil c oh i ai.ainentoH < oie.aiiguliicos", líidrio de

Ik Peiiiaiiduiui, ite, 29/09/1919, p 1, < I


HIIHVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 69

■ I" I st ado, a sua busca de governar agora também o espaço privado, embora
u i ebida com profundo desagrado por muitos, é aplaudida por aqueles que se
(llvrin preocupados com o futuro da nossa raça. O poder dos patriarcas em
i' i nlhcr aqueles que queriam como maridos ou mulheres de seus filhos, sofria
ni.ns um duro golpe. Essa limitação progressiva do poder privado seria indício
di ni.lis um processo de nivelamento, ou seja, aquele que progressivamente
■ qmparava poder público e poder privado, e, no caso do casamento, poder
!■ mporal e poder sagrado:81

() Estado interfere no contrato matrimonial, que é de direito privado,


regulando a capacidade dos contraentes; mas, se limita a liberdade pessoal, é
por necessidade e conveniência de ordem pública: garantir a estabilidade da
instituição da família e o aperfeiçoamento físico e psíquico das novas gerações
Neste sentido basta ponderar que só raramente encontram-se em certas raças,
como a nossa, parentes consanguíneos próximos isentos de taras degenerativas;
<• se bem possam ser leves em relação a cada um deles, graves se tornariam
quando somadas e acumuladas. E, como é corrente em psicologia patológica
’<» produto de um degenerado tem toda a probabilidade de ser um degenerado
cm maior grau’ (Prof. P. Petrazzani, Le degenerazioni umané)?2

Esta valorização crescente do matrimônio romântico e a consequente


11 invenção do vínculo amoroso seriam vistos como indícios de que a sociedade
. i iv.i c fcminilizandoesehorizontalizandojjáque neste tipo de união conjugal
|tl ii.io imperava a vontade discricionária do pai. Agora, mesmo que a iniciativa
altnl.i continuasse com os homens, era necessária a aquiescência da mulher para
qin .1 união viesse a se consumar. Um par romântico é, em última instância,
..... pai formado pela vontade igualitária dos dois, pela inclinação romântica
di inibos em direção um do outro. Além dc que pressupõe o predomínio do
m nlunento que seria um território com o qual as mulheres sabiam lidar com
ni.iini desembaraço. O amor, como todo sentimento, feminizaria o homem,
o ti nn.ii ia mais delicado, sendo, portanto, encarado, quase sempre, como um
piiihlcma para o mundo masculino.83

III Iniuanlt desenvolve it este respeito as noções dc governamentalidade e biopoder. Ver:


l t )t ICAIJI ,T, Michel. Microjísicu dopoder. Rio de Janeiro: Graal, 1979; Resumos dos cursos
./n < üd/fyf de 1'hime', MAl 11 Al •<1, Robeito (Wneia e saher. Rio de Janeiro: Graal, 198R.
li1* ARAÚJO,J.A Correia, Oyt <»/
lt I I Inleicssatlle dc nc notaf <|u< nu lli anil, ao nu nino tempo em <|ue as relações começam a
70 nordestino: invenção do “falo’

O amor torna-se, pois, neste momento, um problema, que passa a ser


debatido por numerosos discursos avaliando a sua diferente relação com a vida
dos dois gêneros. Nestes discursos os sujeitos vão deixando de ser descritos
a partir de enunciados naturalistas, preocupados com a constituição física e
racial e o consequente caráter que estes determinariam, para cada vez mais se
psicologizarem os sujeitos, sendo abordados a partir de seus traços psicológicos
e da constituição de seu “eu”:*
84

O d. João feminino não existe. Se há homens que agradam a todas as mulheres,


não há mulheres que agradem a todos os homens.
A explicação desta anomalia encontra-se na identidade que se observa nas
impulsões, nos prejuízos, nos sentimentos das mulheres.
Ora, esta uniformidade não existe no coração masculino. Cada homem
compreende o amor a seu modo. Egoístas, levianos, incapazes de afeição
profundas, para eles geralmente o amor é uma distração, um passatempo, um
esporte ou um tributo pago às exigências dos sentidos.85

Que a noção do que é o amor está perturbado, basta ver como encara à mulher
o que ela chama afeição do seu amor: quando pensa que não ama para casar
diz que tem amizade; quando pretende casar é que diz que ama.86

ser dirigidas mais pelo amor romântico a partir deste início de século, já se faz também a
própria crítica do amor romântico, seja reivindicando o retorno às relações anteriores, seja
pugnando por uma maior racionalidade nas relações afetivas. Para uma história do amor
e do vínculo amoroso, ver: MACFARLANE, Alan. Op. cit.', MATOS, Marlise. Oy>. cit.;
COSTA, Jurandir Freire. Sem fraude, nem favor, BADINTER, Elizabeth. Um é o outro:
relações entre homens e mulheres. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986; ARIÉS, Philippe;
BÉJ1N, André. Sexualidades ocidentais. Lisboa: Contexto, 1989; ROUGEMONT, Denis,
Op. cit.; KRISTEVA,Julia. Histórias de amor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; LÁZARO,
André. Amor - Do mito ao mercado. Petrópolis: Vozes, 1996; CHALHOUB, Sidney.
Trabalho, lar e botequim. São Paulo: Brasiliense, 1986; RAGO, Margareth, Op. cit.
84. Sobre a emergência desse sujeito reflexivo e psicológico com a modernidade, ver:
FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos t; LE RIDER, Jacques. Op. cit.; GIDDENS, Anthony;
BECK, Ulrich; LASH, Scott. Modernização reflexiva. São Paulo: unesp, 1995; GIDDENS,
Anthony. A transformação da intimidade; SEN NE’1 T, Richard. O declínio do homem público.
São Paulo: Companhia das Letras, 1988; 11ABERMAS, Jurgen. Mudança estrutural na
esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
85. N/a. “Quais são as mulheres que agiadam aos homens", Didrio de l‘cinambuco, Recife,
08/01/1903,p 1,< '
86. ASSIS, I di onio vai o jiiioi '", / híliio dc l'einaml'iia>, Hii llr, 17/05/19J5, p 7, < 6 c 7
IHIHVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 71

Cada vez mais a escolha do marido passa a ser uma decisão feminina, e
luto torna um perigo e uma ameaça para a realização de um bom casamento,
di mIc que estas tenderiam a se guiar mais pelos impulsos do coração do que
prl<> uso da razão. Se o amor romântico perturbava a racionalidade masculina,
a medida que requeria deste deixar-se guiar pelo coração, que não seria
uiii.» característica sua, requeria das mulheres que usassem um pouco de
mi tonalidade, agora que o casamento e a constituição da família não eram

mar. uma decisão de um pai racionalizador. Veja este artigo, que aparece na
Tâgina Feminina”, do Diário de Pernambuco, que começa a ser publicada a
l'iiin de 1911, demonstrando uma preocupação crescente com a educação
I r mulheres, que parecia deixar de ser um apanágio apenas da família, mas
imnava-se tarefa de toda a sociedade:

Porque, minha cara Lúcia, estás chegando à idade em que hás de passar
dos carinhos de teus pais para os braços de teu esposo. Essa transição se faz
•aiavemente, entre flores, pelo caminho do amor. Mas para que o futuro não
seja juncado de decepções é mister associar como guias da jovem núbil o
< oração e o cérebro. Às vezes o coração sozinho se adianta e forma enlaces de
felicidade instável e precária. Outras vezes o cérebro que traça a diretriz do
destino, por cálculos que parecem seguros, mas que a experiência prova quase
sempre errados.
() amor - disse um psicólogo - é um episódio na vida do homem e a história
da vida da mulher. Em nós, quando fala o coração, as outras vozes se abafam,
inclusive, muitas vezes a da consciência. Como filhas, como esposas, como
mães, somos durante todo o decurso da vida escravas do amor — escravidão
doce quase sempre, mas às vezes bem cruel! Tu, minha cara Lúcia, estás em
véspera de empreender a jornada do teu destino. Mais um ano e terás dezoito,
idade que Platão fixou para o casamento da mulher. Parece-me a ocasião
azada para se falar neste assunto - antes teria sido inoportuno; daqui a poucos
meses será talvez demasiado tarde. É este o momento adequado para ensinar-
te a demarcar com o cérebro a trajetória do coração.
Os | tais prudentes inda hoje conservam - ou devem conservar - o poder
eliminatório entre os pretendentes à mão de sua filha. Mas no círculo dos
i imdidatos admitidos compete a esta fazer livremente a sua escolha. Vai
longe o tempo em que o pai determinava o genro c se o apresentava à filha na
véspera do casamento. (...) A felir idade no casamento, suposta a equivalência
di idade e de edtu ação,»oii'<iM< i s< lusivamente no amor.
72 nordestino: invenção do “falo”

Para isso é preciso que intervenha a razão e o coração: a razão eliminando os


inelegíveis e o coração fixando dentre os outros eleitos.87

Este texto parece ser bem típico de um momento de transição, em que


se pretende fazer uma conciliação entre os aspectos que parecem positivos no
modelo anterior de casamento e que se deseja que esteja presente também em
um novo modelo, ou seja, a intervenção racionalizadora dos pais, mas já admite
os aspectos que se consideram positivos no modelo romântico, ou seja, que a
escolha seja da mulher e que seja apoiada no amor. Este passa a ser definido
como o único sentimento capaz de manter uma união, cabendo à mulher, por
ter maior capacidade de lidar com este sentimento, a responsabilidade maior
pela manutenção da relação conjugal, já que, para os homens, acredita-se ser
mais difícil amar, ou, pelo menos, sentir profundamente o amor. Na relação
conjugal romântica o homem continuava a ser pensado como o elemento
racionalizador e a mulher o elemento afetivo, embora, agora, num movimento
de aproximação e igualitarismo, razão e coração pareciam tornar-se ambos
importantes, homens e mulheres deveríam se aproximar mais subjetivamente,
tendo as mulheres maior capacidade de racionalização e os homens de afeto.
A emergência do casamento romântico está relacionada, pois, com
mutações subjetivas, que, por seu turno, requeriam uma redescrição do que
seria o masculino e o feminino, neste momento. Momento em que parecia
reinar a confusão e em que as fronteiras não estavam mais bem delimitadas,
com o feminino invadindo espaços antes definidos como masculinos e, em
alguns aspectos, se masculinizando, e, por outro lado, o masculino vivendo
uma crise, observando-se uma feminização de vários aspectos da sociedade. A
modernidade parecia trazer a confusão e a dispersão dos papéis sociais, antes
bem melhor delimitados.88
Há quem lamente o fim da família tradicional, como sendo o fim do lar, a
dispersão dos membros da família, a emergência do individualismo. Mas estes
discursos masculinos das elites do Nordeste, no começo do século, parecem
lamentar, mais ainda, o fim dos papéis tradicionais de chefe de família e dona
de casa, agora profundamente transformados:

87. LIMA, Leonor de. “A escolha do marido”, Dúirio </e Pernambuco, Rei ilc, 26/06/1913, p. I,
c. 3 e 4.
88. Ver: CASTELO BRANCO, Pedro Vilnriiiho. Aíw/AiVM/V/uwó. Teicsília EC M.C, 1996;
COUTINI IO,Maria l.íuia Rocha Tecendo [><>r trtli itoi/uino\ Rlodi (anciio Roeco, 1994;
I >11. PRK )RE, Mmy z/ mulbei na hntoria <h Hruuí Sa<> Paulo (onlcxlo, 1989
HIIIIVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 73

(’.om as novas idéias e os novos costumes que caracterizam esta época que aí
vai, a época dos automóveis, dos cinemas, dos clubes, dos chás dançantes, do
looting, há uma instituição que dia a dia se transforma e quiçá se dissolve: o
lar.
(...) Quando se fala em lar respira-se insensivelmente um perfume de
.1111 iguidade confortante e reparadora. O lar é por força uma instituição antiga,
c como toda instituição desaparecerá se lhe tiram os atributos principais.
A'.sim o que em algumas grandes capitais se chama de lar moderno, não é
propriamente lar.
< ) lar, enquanto se apresenta na sua feição tradicional, pode-se considerar
<> templo, o santuário da família. Os sentimentos mais ternos, é aí que se
i ultivam e sc aprimoram. A figura veneranda do chefe de família relembra
<> sacerdote do culto primitivo. A dona de casa é a pitonisa, sempre vigilante
para manter o fogo sagrado do carinho e do amor... De volta do trabalho ou
d.is fadigas diárias, é em torno do chefe da família que todos se reúnem para
ivccber a bênção e ouvir-lhe os conselhos, como aves batidas dos ventos e da
< anícula procuram a sombra da árvore frondosa e o frescor do lago tranquilo.
Vede se isto tem alguma semelhança com o que se chama lar presentemente
nus grandes capitais. A casa é um pouso, um ponto de descanso e nada mais.
I oda a atração do mundo está no exterior. Os cinemas, os chás, os teatros, os
pa'.seios não deixam tempo para se cultivarem tradições.
1 'ada qual entra e sai a sua hora. Marido, mulher, filhos cada um para seu lado.
()•. pais são uns conhecidos a quem, quando muito, se deve um cumprimento
delicado. Para os filhos menores basta o cuidado de amas indiferentes.
Nessa completa dispersão o que se chamava lar, sentimento de família,
di .apareceu: cada qual tem a sua personalidade à parte, o seu feitio exclusivista.89

Se paulatinamente se instala um novo modelo de casamento e até mesmo


di lamília, não existe dúvida, para quem escreve no começo do século, de que
o ilr .imo da mulher é o casamento, e que amor, maternidade e vida doméstica
«4i' < oisas inseparáveis, e seria aquilo que realizaria e traria a felicidade para a
miilliei Ioda a vida dela deveria estar voltada para cuidar e dar amor e afeto ao
"• ii marido c filhos. A figura da mulher solteira continuava sendo motivo não
..... I' estranhamento como de deboche. A solteirona c um tipo, inclusive, que
irtv< paia o humor. Chega a se perserutar a sua particular psicologia:

«'» N/a "A miimli iriniiçAo do l.u ", /10»llr, 22/06/1924, p. 7, <. 4.
74 nordestino: invenção do “falo”

Quase não há solteirona que vos não possa contar, ó leitor, histórias sem fim
de casamentos e propostas desprezadas... E por serem tantas as solteironas
que desprezaram quando moças, propostas matrimoniais de milionários, que
chegamos a duvidar se alguém lhe fez realmente a corte.90

Entretanto, se para a mulher o casamento aparece como um destino, do


qual não pode fugir, é necessário convencer os homens das vantagens desta
instituição. Num momento de profundas transformações parece pairar entre
estes intelectuais das elites o medo de que os homens, que agora na cidade
dispõem de muito mais meios para satisfazerem o seu apetite sexual, não se
dirijam mais para o casamento. Passa-se a fazer uma campanha em prol da
nupcialidade, propalando-se as vantagens da vida conjugal. Esta fragilidade
da instituição matrimonial, que precisa agora ser defendida, parece ser mais
um indício da derrocada da chamada sociedade patriarcal. A dessacralização
da sociedade e, com ela, o desprestígio de um sacramento como o casamento
faziam com que novos argumentos, mais técnicos e científicos, quando não
médicos e higiênicos, fossem agora levantados em favor do casamento:91

As vantagens e desvantagens do casamento têm sido até hoje objeto de


grande polêmica entre cientistas, literatos e moralistas, querendo uns, que
este estado de vida traga enormes vantagens, opinando outros pela teoria de
que o casamento é inconveniente à vida.
No domínio da higiene, para o demografista, o casamento é uma fórmula
por assim dizer perfeita e proveitosa advindo dela inúmeros benefícios à
sociedade.
O celibatarismo está em plano inteiramente oposto sob o prisma da higiene
geral e individual.
Entre o indivíduo casado e o celibatário sob o ponto de vista científico
higiênico, existe uma diferença completamente radical de benefícios para o

90. FREYRE, Gilberto. “76” (Artigos Numerados), Diário de Pernambuco, Recife, 28/09/1924,
p. 3,c. 4.
91. Sobre o papel dos médicos e juristas na definição de novos perfis do masculino, do
feminino e do casal, ver: ADLER, Laure. Segredos de alcova: história do casal (ISSO
1930). Lisboa: Terramar, s/d; FOUCAULT, Michel. História da sexualidade i /I vontade
de saber, Microfísica do poder, Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999;
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar, CAVALCAN I I, Silídc I .cila de Oliveira. Mulheres
modernas, mulheres tuteladas o </n< m so jur idu o e a m<nah.<u ao dos costumes ('.ampina < Irande
19 IO/I9S0, Recife, tiiti', 2000 (I Jlssctlhção dc Mcsltado em I lltilóriu).
imHVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 75

I>iinteiro e de inconvenientes em relação ao segundo.


Para o homem, na idade nupcial, dos 25 aos 60 anos, o casamento favorece
a vida, prolonga a existência e diminui a mortalidade em proporções
extraordinárias.
A probabilidade de maior vida para os indivíduos casados é extremamente
gi ande, sendo justamente o contrário entre os viúvos e solteiros, para os quais
a vida é muitíssimo menor.
Enquanto morrem, por exemplo, vinte indivíduos que são solteiros, vinte e
dois que são viúvos, apenas falecem onze que são casados.92

()s homens precisariam tanto do casamento que a proporção de viúvos que


■ mi.iiam novo matrimônio era muito maior do que o das viúvas. Os homens
..... .... saudade da vida conjugal, porque sofriam menos no casamento. Pelo
i unitário,o casamento constituiría um refúgio de paz e alegria para o guerreiro
d...... tidiano, aquele que precisava enfrentar a batalha diária pela sobrevivência.
Illi.i dc amor e de afeto para aquele que precisava viver no mundo competitivo
iln mercado. Estes discursos repercutem, assim, toda a retórica romântica
■ burguesa que lastreara a instituição, no Ocidente, da família nuclear e
immogâmica, em que o lar se constitui na proteção afetiva para homens que
. ....... estar preparados para a luta nos espaços da economia e da política.93
A viuvez masculina seria tão dolorosa que vinha se assistindo a uma
..... iplcta inversão do modelo que dirigia a escolha de parceiros na família
dii.i patriarcal, nos vinte anos que se seguiram. Se tradicionalmente era o pai
qui escolhia o marido para suas filhas, agora, nos anos quarenta, se sabia de
uiii número crescente de casos em que as filhas tratavam de arrumar uma
um i companheira para o pai, preocupadas que ficavam com a sua solidão e
lulrlii idade. Sinal dos tempos, mais um papel masculino que era assumido
I" 11 • mulheres:94

'•> <'()S' I A, João. “A nupcialidade”, Diário de Pernambuco, Recife, 28/06/1924, p. 1, c. 4.


9 I Vi i HERTILLON,Jacques.“A dor dos viúvos”, Diário de Pernambuco, Recife, 01/06/1910,
p Ver: D’INCAO, Maria Angela. "Mulher e família burguesa”. In: DEL PRIORE,
M.iry (Org.). História das mulheres no Rrasil. São Paulo: Contexto, 1997, pp. 223-240; “O
iiitioi romântico e a família burguesa' In l)'INCAO, Maria Angela, Amor e família no
Hra\il
1 I Sobie a solidão como condlplo do indivíduo moderno, ver: KATZ, Samuel Chaim. O
mhnán distante cwjrr/f»? Rio de Jancno: Revan, 1996.
76 nordestino: invenção do “falo"

Os dias da minha viuvez correram em dois anos e três meses, dias esses
sombrios, numa espécie de spleen, só tendo em mira os afazeres que me
cercavam.
Um dia, minha filha de nome Maria (na intimidade Lili), solteirona, deu a
entender que eu devia casar.
Ainda não tinha tido esta lembranças, e guardei na memória a sugestão filial.
Em outra ocasião, eu puxei o assunto já meio interessado e no sentido de lhe
perserutar a opinião.
- Você outro dia deu-me a entender que eu devia casar. Com quem? É o que
não vejo.
- Respondeu-me obedientemente a minha filha: - Com E, filha de ...,
conheço-a muito bem; é uma senhora de idade e muito distinta.
Essa senhora indicada por ela é minha parenta, e uma pobre criatura que os
anos já tinham empurrado ao impiedoso degredo do caritó.
Passados alguns dias, reapareceu o nosso bom mensageiro, que me disse estas
palavras: ‘Ela mandou lhe dizer que não pensava mais em se casar, mas como
você quer ela quer’.
De modo que o referido professor e a minha filha foram dois chaleiras ou
corta-jacas incansáveis a fim de que se realizasse o projetado casamento.95

Se o casamento romântico era um forte indício do fim do modelo patriarcal


de família, o que dizer da visibilidade social crescente que vinha sendo dada às
relações sexuais não canônicas, aos homens-mulher e às mulheres-homens, que
pareciam ser a manifestação mais perfeita e acabada deste embaralhamento de
fronteiras que parecia estabelecer-se entre o masculino e o feminino, no início
deste novo século.

f) Entre maricas e viragos a confusão dos “sexos” se instala.

A República que nascera sob a direção e iniciativa dos militares,


considerados símbolos da masculinidade e da macheza, ouvia falar escandalizada
dos crescentes casos de pederastia nas fileiras do Exército e da Marinha.
Alguns oficiais inferiores, sob a denominação de cônegos, desfrutavam de
especial prestígio entre alguns dos jovens marujos por qualidades socráticas

95. BARBOZA, |<>ié NAiuio "Scguiidiu. iuip<úm’', i/<i Horboif/mi, C.iinpiiiu (iiaiulc,
1.3/07/1940, p. 2, c. 1.
IHIIIVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 77

■ ■ii platônicas que faziam deles, irmãos mais velhos, indivíduos ouvidos com
piit licular interesse pelos iniciados:96

Sem socorro ou assistência religiosa, os soldados e marinheiros da República


laica de 89, era natural que, nas Forças Armadas, se desenvolvessem, com
relação aos mais jovens e da parte dos menos jovens, substitutos de mestres,
padres ou sacerdotes. Esses substitutos apresentaram-se sob a figura de
inferiores, sargentos ou cabos: veteranos que tomavam sob sua proteção
noviços ou adolescentes. Por vezes esta proteção, reproduzindo no Brasil do
fim do século xix e começo do século xx, costumes da Grécia antiga, assumiu
aspectos de amizade amorosa entre homem feito e adolescente. O fato se
verificou sobretudo na Marinha, dada a maior segregação em que os militares
de mar viviam da sociedade civil: inclusive da parte feminina.97

A crescente polidez dos costumes trazida pela urbanização e as exigências


>n si entes de civilidade, aliadas à adoção de formas de vestir e se apresentar
piililu amente copiadas da Europa,fizeram aparecer, no começo do século,uma
guinde quantidade de meninos, filhos-de-papai, mimados, que mais pareciam
mli i/inhas do que sinhorzinhos:

Faziam-se notar por uma meiguice na verdade quase de sinhazinhas, em alguns


acentuada pelos trajos de veludo, pelas sobrecasacas à Luís xv com renda nos
punhos, pelas golas de pelúcia dos casacos - requintes que junto com a muita
brilhantina no cabelo e o extrato excessivo no lenço, lhes impunham as mães
ou avós excessivamente carinhosas; ou desejosas de ostentarem de tal modo,
i'in filhos e netos, insígnias de superioridade de raça e de classe da família que,
nesse afã, comprometiam o próprio sexo dos párvulos; e o tornavam objeto de
palavras e gestos maliciosos da parte dos colegas mais viris, se não no corpo,
no trajo. Palavras e gestos que às vezes se estendiam a atos: arremedos de
posse de fêmeas por machos.9”

I )iz nos Freyre, ainda, que era comum, neste momento, meninos irem
ii" i olcgio de cabelo igual ao das meninas, com cachos que lhes caíam pelos
iinibios ciam quase sempre meninos cuja cabeleira mães ou avós devotas do

'•«■ Vi I llotll 32.

'• I Kl' YRI'., (iilbcilo Oiileni r|i i ssvi


'•II I K1'YRI'., («liberto . ()l> iiL, 11|> < si vil r i s i vm
78 nordestino: invenção do “falo"

Senhor dos Passos, do Bom Jesus, do Menino Deus prometiam às imagens da


sua predileção piedosa. Cabeleiras de promessas aos santos que só com oito ou
nove anos seriam cortadas. Tais cabeleiras “lhes davam aspectos de verdadeiras
iaiazinhas; e predispunham alguns a fazer as vezes de mulher para meninos
mais precoces no arremedo dos homens como protetores das mulheres”.99
Freyre parece, neste momento, lamentar certos excessos de cunho
aristocrático que vinham sendo adotados pelas elites, notadamente aqueles
que pareciam ameaçar a virilidade dos meninos. A excessiva delicadeza dos
comportamentos e dos trajes aristocráticos parecia incomodar ao sociólogo da
família patriarcal, que atribui estes excessos, preferencialmente, à predominância
das mulheres na educação doméstica dos filhos. O homem ausente de casa,
característica do mundo urbano, a vida sem companhia masculina adulta, a falta
de atividades físicas ao ar livre tornavam as novas gerações de meninos nascidos
na cidade propensos a se tornarem pouco viris, em extremos se entregando ao
meio-sexo, tendo seu “sexo sociológico distinto do sexo biológico”, deslocados
numa sociedade patriarcal.100
Este é o tema de sua novela Dona Sinhá e o filho padre, em que conta a
trajetória de um menino que órfão de pai cresceu sob os cuidados excessivos
da mãe, que, ao vê-lo nascer fraco e doentio, havia feito uma promessa para o
Menino Jesus, prometendo seu filho à carreira sacerdotal se este não viesse a
falecer. Por ser doente e sem ter um modelo masculino a seguir, José Maria
se torna um menino-mulher, que vê em seus desejos pelo mesmo sexo uma
tentação demoníaca para o desviar do caminho para o qual Deus o escolhera:101

Foi também pelo irmão de Dona Sinhá que eu soube da grande amizade
que veio a ligar José Maria ainda menino de colégio a Paulo Tavares já rapaz.
Foi amizade de colégio; e das mais românticas dentre as que já prenderam,

99. FREYRE, Gilberto. Op. Cit., p. cxlviii.


100. FREYRE, Gilberto. Dona Sinhá e ofilho padre, p.194. É interessante notar como Freyre já
trabalha nesse texto com a diferença entre sexo enquanto atributo natural e sexo enquanto
construção cultural e social, distinção esta que veio a fundar na década de 1970 o conceito
de gênero para se contrapor ao de sexo, embora hoje se considere que nem o sexo é apenas
biológico mas implica também construção social, cultural e histórica.
101. A doença aparece em muitas biografias de homens ligados às elites agrárias tradicionais
como um empecilho para que pudessem reproduzir o modelo de masculinidade de seus
pais e avôs e por terem seguido a carreira intelectual ou artística: Ver: CASCUDO, Luís
da Câmara. Op. cit.', REGO, José Lins do. Meus verdes anos', SE I TE, Mario, Op. cit.',
BELLO, Júlio. Op. cit. Para a possibilidade dc se fazei uma hislona da doença, ver: I I
( í( )l T, |ai ques el al. z/i doen\a\ ttm hiaot ia Lisboa h 11amai, s/d
UIIHVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 79

cm qualquer parte do mundo, a um colegial desprotegido, um adolescente


já quase moço; e certo de poder e dever ser protetor de criatura ao mesmo
(empo tão angélica e fraca como era, naqueles dias, José Maria, menino, da
fúria dos outros colegiais, alguns deles verdadeiros meninos-diabos. Cruéis
como são os meninos que se julgam normais contra aquele que se apresente
diferente deles no modo de ser e no próprio físico... Para esses o filho de
dona Sinhá, uma vez no colégio foi Sinhazinha. A insinuação de que era
um maricas declarado e não um homem em processo de formação um tanto
diferente dos comuns.102

('orno nos sugere Freyre nesta novela, dos colégios e internatos religiosos,
. ..... como dos seminários e conventos parecia que também não vinham bons
i templos. Os sexos segregados e juntos nestas instituições, permitindo a
..... vivência de jovens e adultos, a maioria no momento de maior curiosidade
p> l.i. coisas do sexo, faziam com que fossem frequentes as relações carnais e
nu .mo relações de afeto entre meninos e entre meninas, adultos e jovens:103

I )e certos colégios Católicos de religiosos da época dizia-se que neles essas


proteções excessivas dos fracos pelos fortes não se limitavam à convivência de
meninos entre si: estendiam-se por vezes às relações de padres com alunos.104

As amizades amorosas, as proteções exageradas de meninas veteranas a


novatas, não faltaram aos colégios de freiras e às escolas elegantes da época
brasileira considerada neste ensaio. Ao contrário: a seguirmos o depoimento
dc ilustre senhora brasileira educada nos primeiros anos do século atual num
desses colégios, foram numerosas.105

Al iás, a vida religiosa salvava muitos meninos angélicos de, uma vez
min gues à vida mundana, se tornarem “maricas de modos melifluamente

III1 IR EYRE, Gilberto. Dona Sinhá e ofilho padre, pp. 46-47.


lul Rcl ciências a religiosos e religiosas que cometiam o “pecado desonesto” ou o nefando
podem ser encontradas desde o período colonial; ver: ALGRANTI, Leila Mezan.
I lm radas e devotas. Brasília: hdunh; Rio de Janeiro: Josc Olympio, 1993; BELINI, Lígia.
O/1 o/.; MOTT, l.uís. O sexo proibido. Sobre a educação dada às meninas em colégios
o ligiosos, ver: PASSOS, Elizcte Silva .! edmafáo das virgens. Rio dc Janeiro: Ed. da
I liiivcisidadc Santa l lisula, 199S
lll I I R EYRE, Gilberto. Ordem e/m-.i*'*'"». |> cXI.VII
lli . Idrlll, p. ('XI.IX.
80 nordestino: invenção do “falo"

efeminados, de olhos voltados para os rapazes fortes com desejos de mulher


lúbrica por homem ostensivamente macho”. Muitos conseguiam tornar Jesus
o seu Deus e o seu único homem, a Igreja tendo, assim, uma vitória completa
sobre a “Natureza”. Mas isto nem sempre acontecia, podiam se encontrar, nestes
colégios católicos, frades “com grandes olhos de mulher gulosa de homens,
arregalados para os homens mais homens que entravam na igreja, sem que,
entretanto lhes faltasse a devoção pelo Cristo e pelos santos”, o que era mais
comum do que se podia supor. Assim tinha origem um forte conflito que os
torturava, entre a sua vocação de religioso e o seu desejo faminto de aventuras
impossíveis a um frade.106
Se, em sua sociologia, Freyre nos fala de uma maior visibilidade destas
práticas neste momento, e se ambienta aí uma novela que trata deste tema,
C. A. Feitosa, que ironicamente escreve um livro de memórias intitulado
Mulher macho sim, senhor!, nos fala de um irmão que, no começo do século, foi
severamente punido por seu pai, ao longo de toda a infância, por insistir em
ter comportamentos não condizentes com seu “sexo”. O Bita sonhava com um
piano igualzinho ao de Dona Mimosa, um lustrado Steinway & Sons, como o
que ela herdara da sua avó materna. O Bita estava disposto a se tornar como
ela um “tocador de piano”. Só que o pai não gostou da ideia de ver o filho
virar pianista, dizendo que isto não era coisa de homem. Quando a irmã foi
convidada para coroar Nossa Senhora da Conceição, Bita insistiu para dividir
com ela a honraria, o que a fez usar o mesmo argumento do pai para demovê-
lo. Mesmo o pai dizendo que para menino que brincava de boneca caía o
pintinho, o Bita não largava a boneca da Vera Lúcia, uma vizinha. Quando
brincava de casinha com a irmã, era ele que preferia ficar com a arrumação
da casa e outras tarefas domésticas. Um dia o pai encontra Bita aprendendo a
tocar piano com Dona Mimosa e tem com ela uma ríspida discussão:

- Cuide de seus filhos, Dona Mimosa, e deixe que dos meus filhos cuido eu e
à minha moda. Depois não é seu filho que vão chamar de maricas. Filhos dos
outros podem ser o que quiserem. Mas meu filho vai ser o que eu quiser. Filho
meu vai ser homem no duro.
- Não é uma aula de piano que vai diminuir a macheza de seu filho, ‘seu
Pedro. O senhor está querendo ver as coisas de maneira radical. O filho de
*seu’Jamil, nunca tomou aula de piano comigo, nó I.i/i.i nabalho de macho,

106 I KI' VIU ,< •iIIh iUi, Sinh,l • •' filhoI


ItOlIVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 81

vivia escanchado em um cavalo de sol a lua. E foi bastante macho para não
negar ao pai que tinha estado de ‘coisa’com o filho de Dona Amerita, como
também gostava muito dele e por isso ia embora. Não é com exercícios de
dureza que se faz de um menino um homem. Ser macho não é ser homem.
Macho todo animal é, mas homens alguns poucos conseguem ser (...),n7

Picamos sabendo, portanto, que mais dois seres viviam este estranho amor
iih»> primórdios da República.108 E,para tornar o cenário mais confuso, a autora
i|ii< se nomeia de uma mulher macho, diz ter tido uma mãe que vivia a se
qiirixar de sua situação de mulher: ter nascido fêmea, ter vindo à luz mulher
• ia, pois, um ultraje biológico para ela: “Queria ter nascido homem, nem
qiu fosse para ser cega de um olho ou manca de uma perna”.109 Parecia que
vivíamos, então, um período de insatisfação com papéis que eram atribuídos
a • tida gênero, com muitas pessoas querendo ultrapassar as fronteiras, que se
apit >.< ntavam, a esta altura, bastante débeis, entre o masculino e o feminino.
Momento em que o “meio-sexo”, no dizer de Freyre,parecia vir à tona como um
piohlcma c ganhar visibilidade e dizibilidade. Chegando a ser tema de filme:
• m lú.!7, o Diário de Pernambuco anuncia cm suas páginas a propaganda do
lllun intitulado O homem que não gosta de mulheres e Harold Lloyd provocava
giiigalhadas na platéia fazendo “O Maricas”, rapaz tímido, imberbe, de olhos
< oh.it|os para o firmamento azul, que sente o rubor subir às faces ao conversar
iimi uma pequena bonita, o bobalhão incapaz de dirigir gracejos às meninas
qiu passam, teria o condão precioso de provocar uma gargalhada desopilante,
•alui.ii, terapêutica.110
Esta visibilidade crescente de práticas ainda chamadas de sodomíticas vai
ih «peitar a atenção dos médicos, que começam a se preocupar em estudar suas
• iius.is e estabelecer formas de combate. Os médicos tendiam a considerar as
piiilii as ditas de inversão sexual como doença física ou psíquica que carecia

1(1/ I r.l POSA, C. A. Mulher macho sim, senhor!. São Paulo: Cortcz, 1980, p. 49.
1011 Pode se notar a emergência de uma constante suspeita cm torno da amizade masculina e
<•111 torno de gestos de carinho trocados entre homens.
Sobre a relação entre desprestigio da amizade masculina e a condenação ao amor entre
rapazes, ver: ORTEGA, l’rancisco. Amizade e estética da existência em Foucault. Rio de
lanriro: Graal, 1999; Para uma política da amizade. Rio de Janeiro: Rclume Dumará,
2000; l '()(ICAt II .1, Michel. "Dr lamitiC comme mode de vie”. In: /)/7r et écrits /!■', Paris,
< íallnnaid, 1994.
109 I I ITOSA.C. A.()/> Cit .\< 14
llll Vii I >i,lni> dc l’ci uam/mu, \ \'>2'l,14,< I,</<•12/01/192.7, p. 6,
i I, Didrio de 1'nnambmo, |h/tll/|92/, p H, i I
82 nordestino: invenção do “falo”

de tratamento. O termo homossexualismo vai sendo introduzido no país por


este discurso médico, que, já nos anos 30, com Leonídio Ribeiro, adverte que
não se podem tratar as “vítimas” da inversão sexual como pecadores, viciados
ou criminosos, mas como pessoas doentes, que em vez de serem castigadas,
precisavam ser tratadas111.
A visibilidade destes seres andróginos, afeminados, aumentava ainda
mais por ocasião do carnaval. Momento de brincar com os códigos sociais,
de ultrapassamento de fronteiras estabelecidas pelos costumes, valores e
hábitos, momento de invenção do novo, de criação, de confusão de fronteiras,
de horizontalização das relações e questionamento das hierarquias, momento
de brincar com as identidades e construir o diferente, o carnaval tinha,
já no começo do século, como uma de suas grandes atrações o se travestir,
principalmente de mulher. Numa sociedade pensada no masculino, o carnaval
era outro momento de feminização da sociedade, momento de luxo, fantasia,
sedução, mascaramento. Momento de leveza, de delicadeza, de erotismo.
Encontramos, já em 1911, o conflito instalado entre a polícia, na figura do Dr.
Belisário Távora, e os clubes de carnaval do Recife, por este delegado querer
proibir que figuras travestidas brincassem nestes estabelecimentos. Os jornais
falam do descontentamento dos foliões com a proibição de uma prática que
parecia essencial aos festejos de Momo, dado que todos são unânimes em dizer
que sem os travestis o carnaval seria uma “chinfrineira”.112
Nesta série de discursos, do começo do século ou que a ele se refere, há
a defesa nítida da ideia de que a sociedade passava por várias transformações
que se encaminhavam por duas tendências principais: a primeira seria que
as hierarquias, antes tão rígidas, tão bem estabelecidas, vinham sofrendo
progressivos abalos, no sentido de um maior igualitarismo ou de uma
horizontalização das relações. Uma sociedade rigidamente verticalizada
estaria se encaminhando para uma ordem social que se estruturava mais na
horizontal. A segunda seria a feminização da sociedade, de suas relações.
Aquela sociedade endurecida, rústica, autoritária, áspera, onde imperava o
poder discricionário do macho, parecia dar lugar a uma sociedade caracterizada
por relações mais flexíveis, mais civilizadas, mais delicadas, mais suaves, onde
imperava uma crescente aproximação entre os polos antes antagônicos, e onde

111. Ver GREEN.Jamcs. ()[>. cit.


112. Ver N/a. “A polícia e o carnaval", liiilrio ilc Recife, 21/02/1911, p l,< 1
GREEN.Jamcs, O/> cit, DA MAI I A, Roberto Uuivcc w do cm n<i vul. imagem r rr/fcxorc
Rio dc janciio Edições 1’libikulbcke, 1981
IIIIIIVAI MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR «3

ii li minino ameaçava tomar conta de todos os lugares antes reservados ao


iii.im ulino, levando à confusão e ao borramento das fronteiras que antes tão
In ui delimitavam o masculino e o feminino. Seria isto uma consequência da
liml.iuração da República?

2) República: a mulher ideai.

a) A POLÍTICA DESVIRILIZADA

Na obra de Gilberto Freyre, que vimos comentando ao longo desta


iiaife do trabalho, Ordem eprogresso, ao tratar da passagem do Império para a
IL publica, novamente vai aparecer uma série de metáforas que remetem aos
piiper. de gcncro e, mais uma vez, a imagem que se pretende construir é dc um
pim i sso dc passagem dc um período marcado pela simbólica do masculino,
paia um período marcado pela simbólica do feminino. O Império era homem,
> l’i pública era mulher.
O movimento republicano seria um movimento de machos cm busca da
iiiiiIIk i ideal, insatisfeitos com um Império c um imperador já sem energia,
1I1 a 11 ilizado, senil. Imperador que, quanto mais velho se tornava, mais doce e
ui ui autoridade se tornava. Condescendente, sem energia para levar adiante as
11,111 .formações progressistas e civilizadoras dc que o país precisava, sem que
Hliih viessem ameaçar a ordem social. Cada vez mais fraco e sem capacidade
1I1 enfrentar os seus desafetos, o Império via seus antigos aliados e esteios
di sustentação, como o Exército e a Igreja, não só dele se afastarem como
lui’>tihzá-lo publicamente, sem que houvesse uma reação mais enérgica por
p 11 o do velho monarca.113
A República nascera sob a inspiração positivista, doutrina que pretendia
liiiul.ii uma religião laica, que vinha fundar o culto à mulher e proclamar
ii supremacia do amor. Num país como o Brasil, onde a mariolatria era
mui presença marcante na sociedade, o triunfo da doutrina dc Comte
p iii 11.1 inevitável. Diz Freyre que, portanto, “a mística republicana vinha se
1I1 m 11 volvendo no Brasil através da identificação da causa messiânica com uma
lipm.i ide,d de mulher perfeita, santa, sofredora”. Para reforçar seu argumento,
1 lia vimos de Ricardo Guimarães, importante colaborador dc Martins Júnior
11a 1 iimpaiiha republicana no Recife, publicados no semanário Anti-Rebate.

II I í Kl' VKI'.. ( illliilln (h,trm <■ |i .'<>


84 nordestino: invenção do “falo"

Estes versos exaltavam a República como sendo a figura da nova Maria


Santíssima, da nova Virgem Imaculada, da nova “Mãe protetora dos povos”
que tinha:

(...) nos seus lábios rosados/ O néctar puro dos céus/ Mãe protetora dos
povos/ Formosa filha de Deus./Estátua feita de bronze/ Que esbofeteia Luís
xi/ Abraça, oscula Saint-Just;/ A cuja sombra bondosa/ Cresce o lírio e medra
a rosa/ E cujo olhar nos seduz.
(...) Levantemos a essa deusa/ Em nosso peito um altar./ Por sobre nossas
cabeças/ Possa seu trono firmar./ Quando da grimpa dos montes/ A água
pura das fontes/ Raiar o fiat luz -,/Nós, de pé na praça pública,/ Diremos: viva
a República/ Na terra de Santa Cruz!114115

A propaganda republicana deveria dirigir-se para “as classes liberais”, cuja


conversão arrastaria a adesão popular. Nas classes liberais estariam os adoradores
do “tipo ideal de Maria”, os mais capazes de se erguerem contra a continuação,
no Brasil, daquelas formas de paternalismo - o feudal, dos senhores das casas
grandes, o eclesiástico, dos bispos e vigários, o acadêmico, dos doutores pré
positivistas, e que eles desejavam substituir por um neofraternalismo orientado
por um neossacerdotalismo que se caracterizasse pelo modo “científico” de
conduzir multidões e resolver problemas de governo.lls Ou seja, para Freyre,
os adoradores da mulher ideal pugnavam pelo estabelecimento de um regime
caracterizado pelo igualitarismo de uma irmandade e não pela hierarquia de
um paternalismo.
Os homens que fundaram a República como Benjamin Constant, Martins
Júnior ou Pereira Barreto eram homens, quase sempre, “prejudicados pela tal
delicadeza feminina” no seu comportamento na vida pública: “delicadeza que
vinha talvez, do seu modo intelectualista de procurar fazer política ou de nela
influir”. Somente um Floriano Peixoto fora capaz de consolidar o novo regime,
pois foi sempre “incapaz de se deixar prejudicar em sua ação, às vezes simplista,
de governante ‘regenerador’ da política e ‘protetor’ da República, tanto por
sutilezas de intelectualismo como por extremos de ‘delicadeza feminina’:
homem duro, másculo, asperamente viril, conforme a figura que a Igreja
Positivista Brasileira considerava ideal para a República brasileira”.116 Floriano

114. Citado por FREYRE, (Jilbrtlo. <hilrm r progrewo, pp 21 <• 22


115. Idcin, pp. 22 r 23
I I 6 Idcui, p 2“>
IHUIVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 85

i t i, assim, o macho a proteger e encaminhar a reccm-nascida mulher ideal: a


Ih pública. Ele representou a ordem imperando sobre a ameaça da desordem,
nu que muitos dos femininos líderes republicanos ameaçavam deixar cair o
piiri Neste discurso, o masculino representa a ordem e o domínio, quando não
ii iiuloritarismo e o conservadorismo; o feminino representa a desordem e a
iitiM.ividadc, quando não a mudança e o fim das hierarquias.
Teria sido Floriano aquele que evitou que a República, entusiasmada no
■li surto transformador, nas primeiras horas, terminasse por se afastar das
llrtdiçõcs nacionais de progresso dentro da ordem, de conciliação do passado
flimi o presente e destes com o futuro, de preservação da unidade nacional,
mudo capaz de modernizar o país sem abrir mão da observação de suas
mii.iantes de caráter. Só o másculo Floriano para evitar que a República
iiiiilhci pudesse perder a cabeça, se entregar às mais afoitas aventuras, se
ili hai seduzir por idéias exóticas e estranhas às tradições nacionais. Só a
i i. i. m.ilidade de uma figura viril como Floriano, para que a República não
vú a cometer desatinos. Numa sociedade em que republicanos, quase a
i i.uii agosto,como Ruy Barbosa e Joaquim Nabuco, identificavam uma falta de
jimitos de resistência” e de “elementos conservadores”, uma República jovem
| .li hlumbrada podia facilmente se perder diante da sedução da democracia
.1 .mu i icana. Neste caso, só as Forças Militares eram capazes de substituir as
dl <.,ii in uladas classes médias na manutenção da ordem social.1'7
<) primeiro período republicano, sob o domínio dos militares, dera a este
Bulme um tom másculo, que o consolidou c o fortaleceu, mas para logo cair
ii.m maos de três presidentes civis, todos parecendo velhos pais, tão parecidos
Éilii o caricaturado e ridicularizado “Pedro Banana”, o velho Imperador, que
l.i i i ido atirado fora de sua pátria sob a acusação de dccrepitude e falta
.li vinlidade. O Império que caíra, tido como arcaísmo, parecia continuar
vim ii.r próprias figuras que passaram a ocupar, cada vez mais, cargos na
|(i publica. Quem esperava desta o rejuvenescimento das práticas políticas
? administrativas, cedo foram se decepcionando. Os jovens que fizeram o
iiiinimi nlo republicano, esperando, nela, novos espaços de atuação, se viram
ulii ip,mios a dividir espaço com velhas raposas da política imperial, quando não
lui uu preteridos por republicanos de última hora. O prestígio do novo sobre o
vi llm ua crescente, levando, nos anos 20, a uma progressiva mobilização pela
mudança das práticas políticas da Republica que,de mulher ideal, parecia cedo

/ I HI \ IU . ( ííIIk ii<> /o <". !• pp '/


86 nordestino: invenção do “falo"

ter se tornado uma velha provecta, ranzinza, tacanha, sem o vigor necessário
para fazer as mudanças de que o país precisava. Senhora quase tão aristocrática
e conservadora quanto uma dama do Império, que sofre, a partir do governo
Epitácio Pessoa, constantes contestações no sentido do seu revigoramento.118119
Este texto de Freyre parece nos sugerir que os militares foram o
marido ideal para a desprotegida República, já que os civis, afeminados, não
conseguiam ter sobre ela a necessária autoridade, para seu governo. Como
mulher, a República trouxera uma tendência à horizontalização das relações
sociais, que não se concretizou na radicalidade de uma inversão da ordem social
pela ação tradicionalista e conservadora de homens como Dcodoro e Floriano.
A imposição da autoridade foi um momento decisivo para a manutenção da
integridade da pátria. Palavra que, embora remeta ao pai, terra do pai, era
pensada, neste momento, também no feminino. Cabia, pois, a um governo
másculo dela se apoderar para dar as diretrizes. Como uma mulher precisava
do tino e da racionalidade do marido para não se perder, a pátria precisava de
um governo que lhe apontasse o caminho do progresso, mas levando em conta
a preservação de constantes de valores que não se podiam perder, sob pena de
se adulterar a própria substância da nação.
Não é mera coincidência que o adultério ou a infidelidade passam a sei
temas que mobilizam uma crescente preocupação. A modernidade parecia
ter tornado a infidelidade a regra dominante no social. O comportamento
de muitos dos antigos empedernidos monarquistas quando do advento da
República parecia demonstrar que a infidelidade, a traição, não só à tradição,
mas às lealdades políticas, tornava-se predominante como comportamento
social. O adultério feminino, que agora vai ganhando visibilidade pública,
deixando paulatinamente de ser uma questão apenas do âmbito do privado,
parece ganhar o sentido de um símbolo do processo mais geral trazido pela
sociedade moderna, ou seja, o descompromisso com o que está estabelecido,
com a norma. A República e a sociedade urbano-industrial que esta trouxera
pareciam ser o campo privilegiado para as infidelidades de todos os matizes,
daí a necessidade da atuação das forças conservadoras, que se contrapusessem
à adulteração dos valores e costumes regionais.1,9

118. FREYRE, Gilberto. Ordem eprogreuo, p 32 c 79,


119. Sobre a temática do adultério, vet SOIIII I, Rachel C,midi\<l<> feminina e formai de
violência. Rio de Janeiro: Foiciihc UrnvciMiaiia, 1989, Ml VA, Mana Beatriz Nizza da,
BRLJSCIII NI, Cristina (()tp,s ), A\7’.77iii. .■/<<./»« in/ue a iondi\a'> feminina. Sao
Paulo: Véitiic/ Ftimláçáo Caihm Chagas, |9)|9| I IMA, I ana I age da Gania, Mulheiei
IHUIVAI MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 87

Istcs homens conservadores teriam enfatizado no binômio positivista


•Ia urdem e do progresso o primeiro elemento, embora não deixassem de dar
•b ui,ao ao último. Eles foram capazes de reduziras expectativas messiânicas cm
honn da palavra progresso, que entusiasmara a muitos na instalação do regime.
Ni ui todo progresso seria benéfico, era preciso conciliá-lo com as melhores de
uh a tradições, entre elas o costume de, ao sermos requeridos para fazer algo
ili Im ma urgente, dizermos: “espere um pouco”, “tenha paciência”. À velocidade
llbol.i <■ inconsequente da República, mulher de temporalidade mais veloz, era
li< 11 ••..irio contrapor-se o tempo mais lento c viscoso do homem compenetrado
mmedido em suas decisões e expansões. Éramos um povo cujas múltiplas
li mpmalidades deveríam conviver e se conciliar. A defesa da harmonia c da
min iliação não só da tradição com a modernidade, mas também entre forças
|inlill( as antagônicas, evitando o conflito e a luta, é temática recorrente nos
iI|m ui sos de intelectuais ligados às elites agrárias, na Primeira República.120
Imbora tenha nascido sobre o domínio viril dos militares, a República, ao
i iili i ui mãos civis, rapidamente se desvirilizara, perdendo progressivamente o
holo dos seus próprios fundadores. Já no final dos anos dez, setores militares
|a m mostravam descontentes com os caminhos seguidos pela República.
1 projeto autoritário, paternalista c hierárquico da República positivista
• *
linha dado lugar à lassidão do projeto liberal, perdido cm suas próprias
imiliadições de um modelo importado de realidade distinta da nossa. Para
I ii yic c outros pensadores conservadores, a República foi sendo prostituída,
i medida que se deixou deslumbrar por modelos estrangeiros de civilização
* de estrutura política, sem desenvolver uma forma de governo condizente
i mu nossas tradições patriarcais, católicas c, por que não dizer, escravocratas e
inmi.itquicas.121
I te desencanto com a República, cm alguns entusiastas do positivismo,
ili ij uará numa reação misógina à ideia de que “a mulher é superior ao
Imrni in cm sentimentos, pelo coração, pela bondade”. Amílcar Armando,
|im i xemplo, no final da vida afirma que só excepcionalmente “o belo sexo é
illgim desta veneração”, para ele “o belo sexo se apresenta despido de caráter,

adlilteras e padres: história e moral nu smiedade brasileira. Rio dc Janeiro: Dois Pontos, 1987;
PEDRO, Joana Maria. Mulheres honestas, mulheres faladas. Florianópolis: Ed. da uisc,
1994.
I'il IREYRI< nlberto Orr/rmc/iroçuri.io, p 142. Vct I )’ANI )RF,A, Moema Selma.
I tiadifrio re(des)cobe/la, ('ampin.r E.d da iiniiami', 1992.
■ i l.l.i ■
88 nordestino: invenção do “falo”

leviano, preocupado somente com as aparências, egoísta com veleidades de se


superpor ao sexo forte e obcecado por dominá-lo, extremamente fútil, sem
noções elevadas de patriotismo, colocando-se como ponto central da família
acima da própria Pátria”. O que parece indicar, para Freyre, que nesse ilustre
sobrinho de Benjamim Constant - devoto extremo da República-Mulher - a
ideia ou o sentimento ou a mística de uma identificação profunda da República
messiânica com a Mulher quase deusa sofrerá total restrição. Ela era apenas
uma utopia, terrível se levada à prática.122
Esse discurso masculino e misógino tende a considerar que, assim como a
mulher, a República era linda como ideal, mas quase sempre bastante incômoda
quando com ela se teria que conviver cotidianamente. Júlio Bello aponta outra
característica incômoda desse regime: ele teimava em se meter onde não era
chamado, assim como uma mulher bisbilhoteira e interesseira, passou a pilhar as
fortunas particulares e a se intrometer na administração dos negócios privados.
A República fez ficar para trás o tempo em que “certos senhores arrogantes não
perdoavam a mais razoável visita da polícia às suas propriedades. Reputavam
na um ultraje, de que cuidavam de desafrontar-se, fosse como fosse”. Com
a República, os senhores rurais perderam prerrogativas, já não eram mais a
polícia e a justiça dentro de suas terras. O mundo exterior começava a invadir
o que antes parecia “um reino”. O poder do Estado começava a contrabalançar
e se sobrepor ao poder privado, o que era vivido como o encurtamento do
mundo. Uma progressiva sensação de asfixia parecia assaltar uma elite agrária
pressionada duplamente, pelo avanço do capital estrangeiro e pelo avanço
da governamentalidade estatal. Até mesmo as camadas mais humildes das
tradicionais propriedades rurais não gostavam destes forasteiros:123

Até bem pouco tempo os residentes mais humildes das propriedades agrícolas
recebiam mal os adventícios de outras profissões, no domínio dos engenhos.
Não os respeitavam nem lhes dispensavam a mesma consideração atribuída
àqueles que eram tradicionalmente da classe. Riam-se, zombavam deles,
achando que usurpavam uma função superior aos seus méritos e nascimento,
mesmo que fossem pessoas de origem mais preclara e abastadas de fortuna.1'1

122. Idem.p. 179.


123. BELLO, Júlio. Memórias </<• um senhor <!e engenho, p. 178. Para a noçao de
governamentalidade, ver: l < >1 K ‘Al II I', Mu liei. Mitro/ísim ilo[unler, Resumo i/os cursos </«
Co/fcge i/e /''rance; Em r/efesu i/ii sm ieilrule
12'1. III' I I O, Júlio. Memórias •!< um senhm ,/e engenho, pp 161 162.
IIIIIIVAI MUN1Z DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 89

listas características de feminização e desvirilização da política


trpublicana parecem ter sido vividas de forma mais intensa pela elite do
■intigo Norte agrário, que agora se unia cm torno da ideia de Nordeste. O
ilri línio econômico, acompanhado do deslocamento do eixo de dominação
política para o Sul, parece ter sido vivido como um processo de rebaixamento
ilo» dotes de resistência viril de suas elites. Vários discursos atribuem o
<li i línio econômico da região ã desvirilização das novas gerações de bacharéis
lllhunizados, civilizados à européia, delicados em suas vestimentas de punho
di tenda, com seus discursos melífluos e retórica aprendidos nas academias,
Im apazes de dar a eles um senso prático, não tendo a menor capacidade de
lld.u com o mundo real. Literatos intelectualizados, doentios, só sabendo lidar
min poesia, incompetentes para administrarem suas propriedades, que dirá a
itiiçrto.
Essa geração decadente das elites rurais submetera a própria região a
iiiii.i situação de passividade, de inação, tendo que se entregar à voracidade
I ao domínio dos capitais e dos governantes do Sul ou do estrangeiro. A
o gi.lo vinha sendo violentamente estuprada por valores, hábitos, costumes
i|iu lhe eram estranhos. Essa elite, incapaz de ser ativa, de ser criadora,
di ser reprodutora de suas próprias tradições, se via às voltas com a
Importação de uma civilização que lhe era estranha, uma modernidade
'|ut' só a violentava c a deixava perdida cm seus próprios caminhos. A
IL pública significara para as elites do Norte a necessária submissão,
" iihaixamcnto conciliatório de cabeças, a transigência do patriarcado
"'tu uma série de práticas políticas c de intromissões em seu espaço de
puder que levariam inevitavelmente à sua decadência, à sua perda de elã,
di libra, ao seu amolecimento, à sua impotência. A República significara,
ias plagas do Norte, o emaseulamento de toda uma elite passivizada,
dmninada e submetida ao domínio e à atividade dos novos senhores do país,
'•"» novos chefes dominadores dessa Rcpública-Mulher, seus condutores e
1'uipiictários. Como esposos traídos c vilipendiados, essas elites assistiríam
" "H.i derrocada com muito rancor e atitudes reativas.
Para tornar mais escandalosa essa emasculação da vida pública, assistia-
uo crescimento, em nosso país, como fruto exótico de importação, do
"invlincnto feminista que pugnava pela igualdade de direitos políticos entre
bniiiciis e mulheres.

■ . —____
90 nordestino: invenção do “fai.o“

b) A política no feminino

A República, em suas primeiras décadas, é também marcada pela


emergência da participação política da mulher, não apenas daquela participação
tradicional das mulheres, que se resumia aos bastidores das tramas políticas
encetadas por seus maridos e parentes masculinos, quando não de seus amantes,
mas uma participação pública, em que a própria mulher e sua situação social
passam a ser a causa em nome da qual se luta. Para Freyre, este seria outro
indício da derrocada da família patriarcal, as mulheres deixavam as sombras de
seus maridos, filhos, pais, “onde atuavam como animadoras e colaboradoras das
atitudes políticas destes, consolando vencidos ou aconselhando triunfadores”,
para se tornarem, agora, agentes do próprio mundo da política, vindo a se
colocar como cidadãs, com direitos, em pé de igualdade com os homens,
reivindicando o direito dc serem sujeitos públicos.12S
Mário Sette se refere ao fato de que os anos 20 marcaram a emergência do
tema da evolução da mulher, entendida como passos evolutivos na formação
cultural, no trabalho, na emancipação econômica. Mas, também,“na ousadia dos
trajes, no relacionamento externo, nas atividades políticas, nas manifestações
religiosas”. Por mais que estes “progressos” se chocassem com os princípios das
famílias e com os deveres domésticos, “era a evolução”.126
Porém, a reação resignada de Mário Sette não parece tersido a reação comum
aos homens diante da emergência do feminismo e, mais particularmente, do
movimento sufragista, que reivindicava o direito de voto para as mulheres. Elas
queriam, assim, alargar o espaço político da República, torná-la concretamente
mais feminina e igualitária. Diante da ação das mulheres, que ameaçava
concretizar aquelas fantasias de mulher ideal que cercaram a República em
seus primórdios, nos discursos dos homens e positivistas, as reações se tornam
bem mais agudas. As tensões e a luta pelo poder entre os gêneros se explicitam
de forma mais intensa neste momento.127
Os homens buscam aliados, às vezes, no próprio terreno inimigo, ou seja,
apelam para as mulheres feministas que, por algum motivo, fazem alguma

125. FREYRE, Gilberto. Ordem e progresso, p, cxi.l. Ver: BENI IABIB, Seyla; CORNF.l I ,
Drucilla (Orgs.). Feminismo como crítica da modernidade. Rio de Janeiro: Rosa dosTcm|>os,
19K7
126. SETTE, Mário. Op. cit., p. 165.
127. Para Joan Siott as rcluçôc» dc gêncio silo uma das pnmi iias turmas dc maniti sta\ao c
upicmlizado do podei Vct St'() I I , |<ian <>p cit
VAI MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 91

ili i I. tração ou escrevem algum texto que reforça o papel tradicional da mulher
ili i ■ t.u destinada ao lar c de não dever se intrometer no mundo da política,sob
pi u,i dc desorganizar a sua família e o próprio espaço público, já que deixaria
«Itiiidonado o espaço que é seu c que sabe como ninguém administrar para se
lllfiuincter no governo ou na vida pública sem ter o preparo necessário para
|«|o

Eis uma notícia interessante que decerto despertará a atenção dc nossas


feministas: uma senhora, mme. Berthc Borely acaba de revolucionar as
sufragistas da França e dos Estados Unidos, como da Inglaterra, com um
livro: "A decadência do amor”, em que combate de certa forma a intromissão
dc suas companheiras de sexo no mundo da política, mostrando-lhes assim
o caminho que lhe parece melhor para as suas conquistas e desejos, ao lado
<lo homem, cooperando, com todas as suas energias para o engrandccimento
universal.'2’

I Jin dos argumentos mais utilizados pelos homens para combater a


piiHu ipação política das mulheres era que, à medida que reivindicavam direitos
Igicii. ,ios das mulheres, passariam a ter iguais deveres, perdendo a proteção que
lli< i i.i devida pelo sexo masculino. Esta igualdade fragilizaria as identidades,
im lugares dc sujeito estabelecidos socialmente, gerando a confusão entre
illnitos c deveres dc cada um dos sexos. A feminista americana parecia seguir
u i mesma direção, afirmando que a mulher “sendo ela uma cidadã com iguais
pn nogativas, daríamos aos homens um certificado de irresponsabilidade, que
hmi.iiia vãs c ilógicas todas as leis contra a sedução e a procura ou investigação
■ l i paternidade, no caso do matrimônio, portanto, o único laço material preso ao
qii il vivem os dois seres,já de si mesmos, e uma atmosfera dc intranquilidade,
......... .. que nasceu com a lei do divórcio”.129
A emancipação política da mulher seria incompatível “com o estado
lli dependência natural feminina”, o que produziría sérios conflitos entre a
loudiçáo de proteção c a maternidade. A mulher na posse de seus direitos
h lulci ia a fugir da maternidade, o individualismo feminista era contrário aos
lllfi iv.scs da família. Sc a sociedade queria preservar a família, c esta tem a
pi» pondcrància do marido, sem o seu domínio reconhecido e aceito esta não*

NAi "A (In hi <l<» muni", / hr/Mi'«A /%tfhimbnio, Rr< ih\ 10/08/1924, p. S, r. I.
Iilrili
92 nordestino: invenção do “falo"

podería existir,já que em todas as sociedades até então existentes era o homem
o chefe da família.130
A reação feminista ao livro de madame Borelly não se fez esperar. Em uma
revista feminista americana aparecem artigos que contestam os pontos de vista
da escritora, esses artigos são discutidos em sessão do Centro das Mulheres
Votantes de 1 llinois. Nesta assembléia cerca de duzentas mulheres assinaram
solicitação ao governo americano para que proibisse a divulgação das idéias
contidas nesse livro, bem como a publicação de uma mensagem de protesto
contra “a atitude de uma mulher que não se sentindo capaz de arcar com as
suas responsabilidades, acaba de confessar a sua fraqueza, numa publicação de
tal ordem”.131
O crescimento do movimento feminista, no pós-guerra, pode ser
aquilatado pelo grau de organização e institucionalização que este adquire,
logo no começo dos anos 20. Em 4 de agosto de 1922 é criado o Conselho
Nacional das Mulheres. Em 1924, o presidente Artur Bernardes recebe
uma representação com 450 assinaturas de mulheres pedindo a inclusão no
Conselho Nacional do Trabalho de uma representante do sexo feminino. A
19 de janeiro de 1923, reúne-se no Rio de Janeiro, o I Congresso da Mulher
Brasileira, organizado pelas senhoras Bertha Lutz, Jeronyma Mesquita, Stella
Guerra Duval,Júlia Lopes de Almeida, Olga de Melo Braga, Valentina Biosoa,
Beatriz Carneiro Baltar e outras. Contava com delegadas estrangeiras como:
Anna de Castro Osório, de Portugal, senhorita Mannus da Holanda, Sra
Lennup e senhorita Babrok, dos Estados Unidos, além da presença da lidei
internacional do movimento Carrie Chapman Catt. Em 1926, o Brasil manda
ao Congresso Aliança Internacional pelo Sufrágio Feminino, que ocorreu
em Paris, uma delegação composta por Júlia Lopes de Almeida, Anna Luíza
Fonteneller P. de Souza, Bertha Lutz, presidente da Federação Brasileira de
Progresso Feminino, e Margarida Lopes de Almeida.132
Ainda quando estudante, em Baylor, Gilberto Freyre teve oportunidade
de ouvir uma conferência de uma líder feminista americana, Ana Shaw, que
defendeu, em quase duas horas, o direito de a mulher votar, já que era um sei
pensante como qualquer homem. Em artigo enviado ao Diário de Pernambuco,
após elogiar o discurso da palestrante, Freyre fala que a pregação do direito

130. N/a. “A decadência do amor”, Didrio de Pernambuco, Recife, 10/08/1924, |>. 5, c. I.


131. Idcni.
132. Ver Diiírio de Pernambuco, 05/08/1922; Dulnu de Pernambmo, 21/06/1924, |> I, i I,
Dú/río </r/VrrxrmÃwro, 10/12/1922, |> l,< 1, Didno de Pernambiiio, 29/04/1926, |> 1,< .’
tylKVAL MUN1Z DE Al.BUQUF.RQUF. JÚNIOR 93

Ihmuino dc votar era bem condizente com o igualitarismo à americana. E


........ dizendo:

A<> movimento cm favor dos direitos da mulher esse idealismo, essa


lonsciência, é favorável. O movimento vai vencendo. Vai sc tornando uma
ideia natural a dc que a mulher tem direito, como ser pensante, inteligente
que c de exercer esse dever sagrado de cidadão de uma democracia: o dc votar.
I ' o ideal de equalization of opportunities’, em prática, em ação.
(guando é que no Brasil a mulher, sem arrogâncias tolas, sem bulha, reclamará
loros dc cidadania? Ser cidadão não quererá dizer negligenciar os deveres
nnprcterívcis do sexo. Preocupar-se inteligentemente com os negócios do país
nao fará a mulher menos carinhosa como mãe, menos terna como esposa,
menos diligente como dona dc casa.13’

<) paladino da conciliação parece, neste texto, querer conciliar o feminismo


i a > misequcnte conquista dc cidadania pelas mulheres com a continuidade do
|ki t< l< m dc um mesmo papel na sociedade. Mudar mas não muito, mudar para
imitmuar ocupando o mesmo lugar, parece ser a proposta de Freyre e de muitos
qm, < orno ele, consideravam a conquista do direito de votar, pelas mulheres,
Butlo questão dc tempo, mas que se preocupavam com as consequências
qm isto poderia trazer para a família e para a política. A. Fernandes, em
escrito logo após o término da Primeira Guerra Mundial, afirmava que
a mulher brasileira chegaria também ao direito de voto, já que o feminismo
mau liava vitorioso em vários lugares como na Inglaterra, na Escandinávia, na
I Manda, na Áustria, na Alemanha etc. E concluía que, terminada a guerra,
i alguém com ela tivesse ganhado, estes seriam as mulheres e os socialistas, c
i mil nina:

A própria campanha feminista que se agita no mundo não é mais do que uma
manobra socialista.
Substituindo o homem nos pesados misteres da vida industrial, a mulher
adquiriu no Velho Mundo, durante a guerra, certos direitos incontestáveis.
I se elas gritam e pedem o reconhecimento desses mesmos direitos , não há
quem lhe negue a justiça de seus reclamos.1H
■b»-———
111 I RI VRI'., (iilherto "I >a outtii Aiiui1< a . / Htlrin Jr 1'rrnam/mco, Recife, 29/05/1919.
|li I I' RNANI >!• S, A “I )<■ uns c <li <>utm«“,/Rilmx/r/’rm<i»iAi/co,Rc<ife,2R/l2/1919,|> t,
i S
94 nordestino: invenção do “falo"

Afirma, no entanto, que no Brasil seria diferente. Naturalmente os


progressos da época e os novos métodos de vida não permitiríam mais qut
a mulher brasileira continuasse a ter a rudimentar educação que se lhe vinha
ministrando. Bastava olhar para o exemplo americano em que a mulher tinha
seus cursos especiais, concorria a empregos, trabalhava e ganhava honestamente
sua vida, e não poderiamos nos furtar, por muito tempo, de seguir o exemplo
empolgante da Inglaterra, onde lady Astor acabava de ser eleita para a Câmara
Esperava, ainda, que as mulheres nos dessem leis mais inteligentes do que nos
vinham dando os homens, em quase um século de independência.135
O grande perigo da participação política da mulher seria o de que esta
não teria preparo emocional para exercer a vida pública. Em artigo publicado
em 1926, Gilberto Freyre comenta o grande fracasso da lei seca nos Estados
Unidos e o atribui ao fato de que esta lei teria sido votada por “uma maioria
de mulheres histéricas", o que demonstrava de forma cabal “a falta de realismo
político das mulheres”. A influência do sentimento feminino era desejável na
vida política do país desde que fosse exercido de forma indireta, atenuado pelo
senso de realidade do homem. Este o recebería de sua mãe, de suas irmãs, dc
sua esposa e transmitiría à vida nacional, dando os necessários descontos. “A
mulher a dominar na política significaria um governo de nervos. Uma tirania
de nervos”.136 Portanto, era uma ameaça à vida pública a participação política
das mulheres e mais um nivelamento social que parecia perigoso.
Outros discursos tentam desqualificar o movimento feminista brasileiro
dizendo que “coerentemente com os imperativos da raça” ele seria mais dc
comemorações do que de combates. O mais comum, no entanto, é considerar as
mulheres que militam no movimento feminista como mulheres-homens, causadoras
de uma enorme confusão reinante entre os papéis a serem atribuídos a cada “sexo"
e quase sempre incapazes de exercer os deveres concernentes à sua condição, além
de serem mulheres dispostas a escravizar os homens, como ficaria demonstrado
pela decisão das sufragistas de Nova Jersey de iniciar uma campanha no sentido de
se obrigar por lei os homens a “ostentar o símbolo de sua escravidão”: às alianças,
para evitar que se passassem por solteiros e pudessem enganar frágeis donzelas.
O marido que fosse encontrado sem aliança pagaria uma multa de 500 dólares.11

135. FERNANDES, A. “De uns e de outros”, Didrio de Pernambuco, Recife, 28/12/1919, p. 1,


c.5.
136. FREYRE, Gilberto. “A propósito do ha< asso da proibiçito". I iidrio </. Pernambuco, Re» iti.
24/06/1926, p. 3, < 5.
I 17, N/a. "Feminismo histórico”, ,/<■ Pcuuimbm», Rmlc, 06/08/1926, p 4, < I, N/a
Kl'»' M MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 95

i > medo dc uma alteração nas relações dc poder entre homens e mulheres é
lllimilcstável. Neste começo de século, que era visto por estes homens das elites
>ln Nordeste, como marcado pela tendência a tudo igualar e horizontalizar, a
...... . do poder pelas mulheres parecia uma ameaça real. Esta seria uma das
• 's mais radicais e explícitas do processo de feminização pelo qual passava
I »>nii <ladc, desde o advento da República. Era a face mais problemática
ilu tlr< línio da vida rural e do modelo de família patriarcal, que esta havia
*l«ii m.ido. A vida urbana trazia como um dos seus maiores males esta vinda
|timi .1 praça pública da mulher a gritar slogans cm defesa de seus direitos de
idmlA.

I) Cidade: um espaço não familiar

II) A DAMA ANTIGA E A MULHER MODERNA

Para Freyre, outro fator decisivo para o que ele identificou como crise da
Mu lt ilude patriarcal foi a vitória progressiva da cidade sobre o campo. Seja no
|il>um econômico, com o predomínio das atividades industriais e comerciais
tulm .is agrícolas, seja no plano político, com o predomínio dos grupos
mluiims sobre os grupos rurais no preenchimento dos cargos que compunham
4 him macia estatal, seja em nível de valores e dc costumes. A cidade passa a
illlm modas, a difundir idéias, a alterar a própria sensibilidade social, cada vez
Htals volitada para o novo, para o moderno, para o artificial, para o não familiar.
A , idade é o lugar do estranho, do diferente, do não rotineiro, da mudança, do
....... bate C do distanciamento das manifestações tradicionais de cultura. E o
flpaçn do desenraizamento, da desterritorialização, da falta de apego a terra,
ilu Iiiii do idílio com a natureza. Espaço da confusão de cores, dc gentes, de
, li< mis.de muito ruído.118

"I Itn «u mil...”, Diário de Pernambuco, Recife, 30/01/1927, p. .3, c. 4; N/a. “Casamento
obi igatório", Diário de Pernambuco, Recife, 16/02/1911, p. 1, c. 3.
| Ui I RF.YRE, Gilberto. Ordem eprogresso, pp. XLvm c ss c 4. Sobre a relação entre cidade,
modernização, modernidade, mudança dc valores c costumes, ver: SEVCENKO, Nicolau.
Qrjeu extático na metrópole-, MONARC1 IA, Carlos. /I reinvenfão da cidade c da multidão.
Sao Paulo: Corte/., Autores Associados, 1989; ITANDREA, Moema Selma, zf cidade
poótiCU de Joaquim Cardoso. Joilo Pessoa, 1998; VIRII.IO, Paul. O espafo crítico. São Paulo:
I diloia <4, 1991; lt I- / I .NI >1'., A momo Paulo (/ )es)encantos modernos: histórias da cidade
do Recife na década de vinte Reilb I d da uiri', 1998, BRESCIANI, Maria Stella
Mailitr. Imagens da cidade uinlus \i\i \\ Silo Paulo Marco Zero/ANimn/i Art.sr, 1989;
96 nordestino: invenção do “falo"

Para Júlio Bello, a cidade significava, em primeiro lugar, o distanciamento


da natureza, da vida idílica no campo, no velho engenho colonial, escravocrata
e patriarcal. A natureza, como uma dama antiga, pura, sem artifícios, discreta,
presa a sua rotina, na sua beleza sem adornos, na sua generosidade e bondade
sem cálculo, na sua autenticidade, em tudo contrastava com a cidade, mulhet
moderna, corrompida, artificial, exibida, cheia de novidades, com sua beleza de
arquitetos e urbanistas, representando o interesse e o cálculo e a falta completa
de autenticidade:

Os prazeres naturais da vida do campo jamais me entediaram (...). A visão


da lavoura verde crescendo, da criação multiplicando-se, dá-me sempre uni
íntimo e forte conforto. A mata dourada pelo sol ou fustigada pelo inverno
é sempre para mim a mata maravilhosa, viveiro de milhões de vidas, ondt
a força da natureza mais se afirma e reproduz. Aqui tudo tem um delicioso
sabor.
Até as coisas que na cidade são um tormento para os meus sentidos, nu
vida do campo se transmutam em atração e enlevo: o som dos sinos, poi
exemplo, casado à celeuma e o alarido dos grandes centros povoados, aí são
insuportáveis. Mas como é delicioso ouvir daqui, no silêncio da noite, quando
o vento está sossegado, o sino da igrejinha de São José, a quatro quilômetros
para o nascente de minha casa, bater vagarosamente às 9 horas! Paro muita
vez de ler ou de escrever e fico a ouvi-lo (...).139

Na cidade até os mais belos espetáculos da natureza, como uma noite de


luar, passariam despercebidos. “O forte reverbero dos combustores elétricos,
os altos prédios, as redes de fios telefônicos se interporiam para privar-nos
da contemplação das belezas do firmamento, quando mesmo o estrupido das
viaturas e os prazeres artificiais da vida urbana nos deixassem sossego e vagai
para apreciá-las. Em vez das sedas e bugiarias iluminadas nas gambiarras das
vitrines, dos brilhantes e pedras preciosas refulgindo nos estojos das joalharias,

ARAÚJO, Rosa Maria Barboza./Í vocação do prazer: a cidade e a família no Rio deJaneim
republicano. Rio de Janeiro: Rocco, 1993; LEMENHE, Maria Auxiliadora. As razòes de
uma cidade. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1991; NEVES, Frederico de Castro
A multidão e a história. Rio de Janeiro: Relume I lumai.i, 2(MM); Cl IAI .1 IOIJB, Sidiiey
Cidade febril. São Paulo: Companhia das Letras, 1996; PONTE, Sebastião R bbrtaleia
fíelle Epoc/ue. Fortaleza tmr/Multigial, 1993; III >1.1 E, Willi 1'ido^nomui da metrópole
moderna. Sao Paulo i trutl*, 199-1
139, UI-1 I .<), Julto. Memónas de um senhor de engenho, p. IH7
IIIlHVAI MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 97

n no campo as magníficas noites ilc luar”. Desde que em nossa emoção


li*u lÔHBCinos atrapalhados “pelo rumor bárbaro dos bondes elétricos c
lliliimóveis, pelo pregão bizarro dos camelôs ou pela música caricaturada das
»llin|,i'i" poderia imaginar-se a lua como “um imenso c puríssimo topázio em
ju nilimhiif’suspenso num magnífico colar dc estrelas dc brilhante".
l;ntc distanciamento progressivo entre o homem c a natureza podia ser
Mi mplificado pelo distanciamento progressivo entre o homem c o cavalo.
lliilmlUuído pelo automóvel, o cavalo dc sela, antes símbolo de distinção c de
iili iiilinidadc, estava cm franca decadência. Os cavalos magros e chinfrins
tiin agora se viam pareciam denunciar o próprio declínio físico c material
ili «rim proprietários. A vida montada a cavalo dava ao rapaz garbo, aprumo,
Vllllldnde. Sua elegância matuta se exteriorizava c se definia nesse exercício
ilu dmnar hem um cavalo xucro ou aplicá-lo na pisada, subjugando-o com o
Imhi, mostrando aos próprios animais quem ali mandava, castigando-o com as
iiim tim das chilenas quando se fazia necessário, o mesmo que fazia com seus
«iilmidinados, vencendo-o e submetendo-o com perícia, coragem c precisão.
I • homem do campo parecia perder as rédeas não só de seu cavalo, mas dc
Indo o seu mundo. O próprio cavalo dc carga vinha sendo substituído pelo
i rtiiilnhão. O automóvel tornava os moços menos viris, exigia menor destreza,
iiu nus esforço, tornando-os comodistas.1'"
< )s homens da cidade já não amavam as árvores, já não podiam dispor de
mu i trvorc centenária para venerar, árvore como símbolo da própria família,
i|iu vira nascer c dera sombra a todas as suas gerações, que fora testemunha
Ji muitas brincadeiras infantis e vira partir tristonhos muitos enterros. Os
luuiirns da cidade passavam insensíveis ao lado dc árvores anônimas, sem
ii< iilnim significado especial, árvore plantada por artificio administrativo e que
pndia m i lombada a qualquer momento:

| UI II El .1,O,Júlio. Memórias de um senhor dc engenho, p. 188. A modernidade, ao mesmo tempo


■ in que permitiu a percepção da natureza como algo diferenciado do humano, trouxe a
|«rcepçâo crescente de que esta era também uma criação humana, social c histórica. Ver:
TI l( )MAS, Keith. O homem e o mundo natural. São Paulo: Companhia das I .etras, 1988;
Knvmond Williams. 0/>. cit.-, CORBIN, Alain. O território do vazio', MACEARLANE,
Alan d cultura do capitalismo. Rio dc Janeiro: Jorge Zahar, 1989; SCI IAMA, Simon.
1'uitagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
| II IIELLO, Júlio. Memórias de um senhor de engenho, p. 211. Esta separação entre homem
c natureza c a agressividade do Immcm moderno com a natureza constituem a temática
irtilial do livro que pode '.et visto tomo a letlld.lo de nascimento definitiva da região
Nmdrstc que é o Itvio A/nli/i i/e, ili t dlbetlo l icyie Vei: 1'REVRE, ( iilbcito Nordeste.

K.___ _________
Rlmlc lanciro |osc (llymplo, 19 1/
98 nordestino: invenção do“fai.<>"

Deus te preserve do raio, grande gameleiro muitas vezes centenário, coevo da


época em que a terra do Brasil não sofrerá ainda a violação do utilitarismo
civilizado, árvore, como as outras, benéfica, mais benéfica do que muita*
porque és também, no leite do teu cerne, a providência dos empalamados.14''

A modernização vinha acabando com o encanto e os mistérios da natureza


Havia uma separação crescente entre a terra e o homem, o corpo da terra s<
desterritorializava, morria separado do corpo do homem.142
143144
145
O sertão, antes
magnífico, não desbravado, não violado pelo trem de ferro e pelo automóvel,
estava morrendo. “O mistério, o perigo, a onça, a caravana, os pousos, o fardei,
a fome, a sede, tudo que tornava difícil a empresa da viagem dando-llu
valimento e apreço, o trem e o automóvel destruíram. Acabou-se o sertão".
Agora — suave passeio para qualquer mocinho da cidade; antigamente áspera
empresa para o homem forte que investia por esse mundo adentro, bacamarte
de um lado, um par de pistolas de espoletão no arção da sela e faca de ponta
no cinturão das calças. Acabou o perigo. Um velho que andava no bonde e já
estava no quinto espirro, resfriado pelo deslocamento de ar provocado pelo
veículo, assim refletia: “Que vale a vida sem uma emoção? A vida fácil, banal,
suave, harmoniosa, invariável é monótona. A emoção é tudo. A cidade acabava
com tudo isso, era lugar em que qualquer mocinho, sem a coragem, a bravura e
a virilidade de seus antepassados, podia prosperar”.'44
O predomínio do interesse comercial é que tornava todas as viagens mais
velozes, mas sem emoção.'45 “D’antes, o magistrado despachado para Cabrobó
montava a cavalo na rua Imperial, juntava-se a uma caravana de boiadeiro,
defendendo-se da onça e dos bandoleiros que formigavam por esse mundao
afora. Dormia à sombra dos pés de umbu, das quixabeiras, das baraúnas, ou
nos pousos isolados, acendendo luminária à noite para enfrentar a fera bravia
Havia o perigo que era a emoção. Hoje é uma coisa banal, um passeio sem
importância”. Até as raposas, confundindo os holofotes dos automóveis com .1
lua, paixão sua e dos bacuraus, que se divide em duas e caminha rente à terra,

142. BELLO, Júlio. Memórias de um senhor de engenho, p. 144.


143. Para a noção de corpo da terra, ver: DELEUZE, Gilles; GUATTAR1, Félix. MU platis
Capitalismo e esquizofrenia, vol. 1.
144. BELLO, Júlio. “A morte do sertão”, Didrio de Pernambuco, Recife, 28/06/1925, p. 3, c. 1
145. Sobre a viagem e a velocidade como carac teristicas da modernidade, v< 1 VI RI LIO, Paul
Op. cit.', AUGE, Man. Nao lugares Campina-. Papiros, 1994; IIARDMAN, Francisco
Eoot. Trem fantasma, a modernidade na selva Sao Paulo ('ompanliia das I .elra», 1988, (1’
GORMAN, l'dmundn i ini'r>ii<l" da ,Imensa S,|u Paulo, 1992
hUlIVAI MUN1Z DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 99

•• miram na frente dos fordes para morrer. “Até a raposa como a onça está se
•' tl'.iiido no sertão.”O mundo de hoje é “para gente moldada à moderna. Os
hiiiuens vestem-se imitando as mulheres. As mulheres estão se despindo aos
I""" ■ >até os cabelos”, mundo falso, um mundo de opereta e de cinema.1*
'’6
III
(> sertão c o matuto estavam virando lenda, influenciados pelo mundo
mbaiui, pelos costumes da cidade, começavam a ser curiosidades que apareciam
livros de folcloristas. O mesmo se podia dizer dos engenhos, que fora alguns
|" ilt nccntes a senhores mais caturras, que resistiram à tentação da cidade e
•In iinína, viviam apenas nas páginas literárias ou de memorialistas. Poucos
*titm ainda como o Queimadas, cuja casa tinha alguma coisa de agrestemente
l'i • ileiro.“Logo que ela sai branquinha dentre os coqueiros,com as portas e as
jUtn l.is todas de pau pintadas de azul, a gente sente, morando ali, um senhor de
fui" nho que parou cm senhor de engenho: não evoluiu em usineiro”:147

I lá nesta casa um telefone útil - mas nem rádio, nem gramofone, nem
t .lixa de música além do telefone. O senhor de engenho de Queimadas se
contenta com um papagaio e uma arara, o dia inteiro empoleirados perto
da rede, num pátio de trepadeiras todas em flor (...). Eu, desde que ouvi o
primeiro rádio, estranho entre nós sua vitória. Entre nós que melhor rádio e
gramofone temos para nos maravilhar com a reprodução da voz humana que
esses nossos curiosíssimos irmãos que são os papagaios (...) Em Queimadas
iv. árvores são camaradas umas das outras. Tanto que a gente só as ve cm
gnipos. Conversando, eu acho.148

As casas de engenho expressavam a própria solidez de poder e fortuna


tliti l.imílias que nelas habitavam. Casas que possuíam uma distinção
vi ul.idciramente heráldica.Telhados derreados que davam um delicioso ar de
m inn hego, aconchego defensivo, “patriarcal”. Casas que embora tivessem a

I li. lll.l.I.O, Júlio. d morte do sertão. Podemos identificar aqui um dos traços centrais da
modernidade na visão de Harvey, a compressão acentuada do espaço e do tempo. Ver
IIARVEY, David, Op. cit. Identifica-se também uma crise crescente das noções de
autenticidade c de essência, tudo se torna superficial c inautcntico. Ver: LIPOVETSKY,
< • illes. O império do efêmero', BOLLE, Willi. Fisiognomia da metrópole moderna.
17 I REYRE, Gilberto. “Queimada»", Diãrio de Pernambuco, Recife, 11/12/1926, p. 3, c. 2.
Sobre o discurso do lolclore e a invenção da cultura popular na sociedade burguesa ver:
< T.R I EAII, Mirbel de. "A beleza do morto''. In: d cultura no plural. Campinas: Papirus,
rm.pp. ss x7.
III IREYRE, (■liberto, “Qpciniada ',/>»,/■■■./. /'■ tmimbui», !<«•« de, 11/12/1*726, p. I,c,2.
100 nordestino: invenção do “falo"

verticalidade feudal, não faziam violências ao clima e à paisagem, que pediam


o repouso e a doçura das linhas horizontais. Casas que davam a impressão de
elegância e, ao mesmo tempo, faziam sentir na sua força a ideia de continuidade
da família patriarcal. Tipos antigos de construção que pareciam obedecei
ao preceito de crescer e multiplicar. Admitindo crescer para os lados, com
o aumento da família, da parentela, do conjunto patriarcal. Nesse à vontade
de linhas se sentiría “a hospitalidade, a simplicidade, a meio rústica fidalguia
da gente nordestina”. Bem distintas da verticalização urbana e moderna de
arranha-céus, de cubículos destinados à vida particularista das novas famílias
burguesas.149
A vitória da cidade sobre o campo aparece neste discurso, como fazendo
parte, também, daquela tendência de suavização da vida, de desvirilização dos
costumes, de horizontalização das hierarquias, além de desnaturar a existência,
tornar a vida superficial, introduzir o artifício da sedução, apanágio feminino,
em toda a sociedade. Fala de uma natureza idílica e idealizada, uma vida de
descanso e preguiça, só possível numa vida senhorial. É como elite citadina que
olham para o sertão e para o engenho, que constroem estas imagens românticas
da natureza. Câmara Cascudo diz que o sertanejo avalia a beleza da natureza
por sua utilidade, só os citadinos demonstram deslumbramento e veem esta
beleza para deleite subjetivo no mundo natural, só eles parariam para observai
paisagens e fixá-las em arte:

Só deparamos com um sertanejo extasiado ante a Natureza quando esta


significava para ele a roça virante, a vazante florida, o milharal pendoado, o
algodoal cheio de capuchos. Árvore por si só nada quer dizer. A oiticica vale
pela sombra que nos dá, nos meios-dias de queimada. O verde úmido dos
juazeiros lembra sempre forragem fácil e segura. A noção de Beleza para ele é .1
utilidade, o rendimento imediato, pronto e apto a transformar-se em função.1"

Mas Freyre, que se arvora como aquele que estabelece regras para a produção
de uma arte condizente com o característico da vida e da natureza brasileira, e
do Nordeste, particularmente, diz que mesmo a nossa natureza tinha algo de
diferente da europeia, ela era ora selvagem, ora ruidosa, ora desolada, ora macia
Isso exigiría que os pintores dominassem “o grosso da paisagem, o grosso da

149. FREYRE, Gilberto. M83"(Artigo Numerado), Diiiriode R< < ite, 15/11/1924,
o. 1, c. 5 c "Espínio <• iiiki < .iih» ', /)itlno Ji’ Prrnani/wcu, R< * il<, 21/02/1926, |» I, * 5.
150 CASC'|l|)(),( iiiihiiti I hf/iinJ" u ntftio Niihil T tliiohi i i mn, I9H4, j» 29
OUIlVAI MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 101

tniluieza americana. O grosso de mata-borrão da natureza brasileira - tão diversa


iln lina, polida paisagem européia”. As cidades se desenvolviam dentro dos moldes
•Ir polidez e fineza das paisagens europeias, distanciando nossos homens da nossa
liitlurcza áspera, grossa, selvagem, tornando-os também finos à europeia.151
Nas cidades, apenas os jardins públicos mais antigos lembravam a nossa
lialurcza tropical, com suas palmeiras e o chão de areia dc praia todo manchado
|int largas sombras. Mas até estes se viam agora ameaçados pelos urbanistas,
que queriam retificá-los à inglesa, trazer para seu interior plantas e animais
Idílicos, ou seja, torná-los mais artificiais. Aliás, o urbanismo ameaçava o que
Iluha dc tradicional e patriarcal nas próprias cidades mais antigas, com sabor
ili < olônia. Com sua obsessão pela linha reta ia acabando com “o à vontade
ili velhas ruas estreitas, dessas que dão voltas ou se quebram no meio, onde o
iiiiirito é pouco intenso, quase se limitando à gente que anda a pé, e onde se
Ia/ necessária a sombra que se goza sendo a rua estreita”. Isto não impediría dc
Dl gozar da beleza solene das avenidas e das longas retas, a questão é que pela
■ Hi.ulc dos urbanistas elas abusariam de seus imperialismos, acabando com
iodo que é ruazinha humilde e estreita.152
O urbanismo queria as cidades menos sujas dc velhice e mais brilhantes
di modernidade e todas as avenidas largas c retas, não importando o sacrifício
'li quantas igrejas velhas. Tirar a “sujeira dc velhice” das cidades seria como
o m.u à pinça o cabelo de mulher velha para que esta pareça menina”. As
i idades pareciam cada vez mais meninas que não eram dc família, preocupadas
Iiiiii a aparência e o embelezamento exterior, mas que perdiam a alma, dada
|n Ia tradição. A República trouxera um senso dc otimismo diante dc tudo
qiu losse tendência na vida nacional dc rccuropeização ou amcricanização,
•titulo tudo que fosse traços lusitanos ou africanos, desprezíveis c vergonhosos,
ili vi udo ser apagados pelas reformas urbanas. Para este discurso do urbanismo,
Hii>i'.n passado colonial, imperial, escravista e patriarcal devia ser apagado do
limio das cidades.153I*
S

I REYRE, Gilberto. “O Norte, a pintura c os pintores”, Diário de Pernambuco,


Rei ile, 12/09/1926, p. 3, c. 3. Ver: FREYRE, Gilberto. Vida, forma e cor. 2. cd.,
Rio dcJaneiro: Record, 1987.
Idi-in, "A propósito dc urbanismo", Diário de Pernambuco, Recife, 14/11/1926, p. 1, c.
S Sobre o discurso do urbanismo e suas consequências, ver: CERTEAU, Micbcl dc, A
invenfáo do cotidiano-, REZENI )l . Veia Planejamento urbano e ideologia. Rio dc Janeiro:
( ívdi/a\á<> Brasileira, I9H2; <11II I I S, jocl Hecije: gfnese do urbanismo, 1927-1943.
R< < it<- Massangaua, 199'/
Idcoi <• Ofdem e f>mgre>m, |> *i v m
102 nordestino: invenção do “falo"

É este passado colonial que Mário Sette descobre, ainda menino, quando
conhece Olinda e que sente como se fosse um “outro mundo”diante da cidade
em processo de modernização que era o Recife. Seria este “outro mundo” que
inspiraria toda a sua obra literária:

Quando neste tempo de criança, eu transpunha a parte baixa e subia pelas


ladeiras de São Francisco ou da Sé, experimentava uma sensação indefinívcl
de ‘um outro mundo’”.
Em tais digressões, por entre sobradões de varandas de pau, igrejas vazias,
azulejos com figuras estranhas, túmulos no chão, nichos, cruzeiros, tudo
com ares de mistério, eu, sem lhe conhecer ainda a história, sentia-nie
esquisitamente atraído, interessado, cativo (...).154

As cidades estavam sendo profundamente alteradas em sua paisagem por


um desprezo crescente em relação ao passado e uma preocupação crescente com
o futuro. Tanto a engenharia, como a medicina viviam, neste começo de século,
um verdadeiro surto messiânico de investimento na construção do moderno
e na higienização e desodorização do espaço urbano. Freyre escreve diversos
artigos, no Diário, em que polemiza com o que ele chama de engenheiros ou
urbanistas, sempre defendendo a conservação da feição tradicional da cidade
e criticando o “ideal higienista e os valores sanitários”, dizendo que estes
queriam que o Brasil se parecesse com um reclame de Emulsão de Scott ou d<
sabão Aristolino:155

Diz um ilustre engenheiro que eu sou a favor dum Recife sujo, fedendo a toda
a espécie de imundície sem os benefícios da estética moderna e da higiene.
Eu sou de fato pela conservação de muita coisa velha do Recife: das velhas
igrejas, por exemplo. E de alguns palacetes como o da Sociedade e outras que
se avistam de qualquer bonde de Dois Irmãos ou de Madalena. Devo confessai
que prefiro o sujo da velhice a tanta tinta fresca. Mas reconheço a necessidade
de construir e reconstruir. E o que eu quero, sobretudo, é um Recife que
renove sem perder o caráter, numa economia inteligente e honesta dos valores
próprios e dos motivos tradicionais.

154. SE I I I'., Mario. ()f> 11/, p. 42.


155. Soliir o hlgienlHinu, vii Cl)llltlN, Alain Siih-ir» r «./«m
HUHVAI MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 103

"(...) O zigue-zague das ruas coisa alguma tem de anti-higiênico: que o diga
.1 autoridade sem igual do Sr. Saturnino de Brito. Na Paraíba são os estetas
de fraque que desejam ruas em linha reta: o grande sábio quer conservar o
pitoresco local em zigue-zague.156

Para os tradicionalistas, não só as cidades, cada vez mais, se afastavam da


li itim za, como abandonavam também a sua feição familiar, tradicional, por
nm..i de um não sei que de deslumbramento pelo novo por parte daqueles
i|ti< a administravam. Ia sc perdendo aquela cidade onde as mas eram um
|ii>ilongamcnto das casas, onde o estranho andava c passeava como a pedir
lli i nça, como um intruso, como ocorria ainda no velho bairro dc São José, no
H* i ifc:

<) pequeno burguês adota a rua, domcstica-a, incorpora-a à casa. Dc manhã,


há homens que atravessam a rua de chinelos e pijama, a toalha de banho
desdobrada ao ombro, às voltas com as gaiolas de curió ou canários de brigas;
<■ há os rapazolas que jogam futebol com bolas dc pano; c há mulheres que
vem à janela despenteadas e gritando, comprar mangam caju, cuscuz, peixe;
meninos que sujam, assobiando c com maior sem-cerimônia deste mundo
i antos da ma.157

I ta cidade familiar estava dando lugar ao espaço anônimo, em que os


mm adores das casas sc retiravam cada vez mais para o seu interior, reduzindo-
ai ii vida comunitária a momentos cada vez mais raros e pontuais, quando não
i.u ulares. Os moradores já não se espalhavam pelas calçadas, às vezes cm
t tdeirus dc balanço, para tomarem o sorvete dc mangaba,comprado, ali mesmo,
um moleque que passava gritando. Mães dc camisola não mais ninavam os
>• u hlhos com adolescentes cantigas, sentadas em cadeiras dc balanço nas
r >tl«, idas, quando não amamentavam ali mesmo, enquanto conversavam com
imii.th <|uc faziam crochê. Desaparecia,paulatinamente,o costume de, na frente
ili < ,i ts onde se realizavam festas dc casamento ou batizados, se formar o

—— ■■ ■ -
I Ih IR EYRE, Gilberto, “(>8”(Artigoi Nume nulos), Dúlriode Pernambuco, Recife, 03/08/1924,
p I, cc. 2, 3 e 4 1’arn uma t útu a do liigicuismo, ver também: EREYRE, Gilberto. “Os
dlsi ursos «Io Sr. Amaury de Medeiros", / 9,1» r« </r 1'ermimbmo, Recife, 02/09/1924, p. 3, c.
I. I
1V I RI’ YRE,Gilberto “9S"(Altlgos Numr i.ulos), / >hlnn,le Primimbmo, Re« ile, 08/02/1925,
|i l,l’.5.
104 nordestino: invenção do “falo"

“sereno”. Grupo de pessoas grudadas a janelas como moscas. “Sereno”, em que


se permitia o direito de todo tipo de crítica e observação. Esta cidade “deliciosa
e ingênua” vinha dando lugar à “cidade maníaca”.158
A cruzada de Freyre em defesa da tradição e da conservação do
espaço urbano tradicional sem modificações o levou a defender, inclusive, a
conservação dos mocambos, como expressão de casa popular ecologicamente
melhor adaptada ao nosso meio e clima. Pedir, ainda, a volta dos engraxates
para as pontas das calçadas, dos fogareiros dos negros da Costa, em cabeção,
para a esquina da Camboa do Carmo e das casas de biqueira, o que causou o
desagrado até de amigos seus como Mário Melo, que só o apoiava na defesa da
criação de um Museu Histórico para Pernambuco.159
A cidade com a luz elétrica estaria trazendo, inclusive, uma mudança ética
o imperativo de se viver às claras, de tudo dizer, revelar, mostrar, acabando com
tudo que pudesse lembrar sombras e mistérios.160 Mas o mais grave era que u
luz elétrica e a ética do viver às claras vinham dissolvendo a vida em família
Em outras palavras:

uma casa iluminada por igual não predispõe a família para aqueles serões <■
aquele aconchego de outrora, com a leitura de um romance de Alencar ou do
Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro depois do jantar, junto ao candeeiro
grande e gregário. De modo que se podia generalizar: a luz de azeite ou
petróleo atraía e aconchegava pelo estranho prestígio de sua debilidade, ao
contrário da luz elétrica, que dispersava e desunia.161

158. FREYRE, Gilberto.“95*(Artigos Numerados), Diário «ZePemamíwro, Recife,08/02/1925,


p. 1, c. 5. Freyre parece nos descrever o processo de emergência dos sentimentos dc
intimidade e privacidade típicos do mundo burguês. Ver: GIDDENS, Anthony. . /
transformação da intimidade-, SENNETT, Richard, Op. cit.-, GAY, Peter. A educação du\
sentidos-, NOVAIS, Fernando; SEVCENKO, Nicolau. História da vida privada no Brasil
São Paulo: Companhia das Letras, 1998, vol. 3.
159. MELO, Mário. “A respeito de artes retrospectivas”. Diário de Pernambuco, Recife,
13/05/1925, p. 3, c. 4.
160. Michel Foucault, opondo-se à hipótese repressiva, defende justamente a ideia de que com
a emergência da sociedade da sexualidade no Ocidente moderno nunca se incitou tanto a
se falar sobre sexo. A ciência sexualis busca cada vez mais classificar, delinir, interpretai o
sexo e suas variadas práticas. O sexo c colocado cada vez mais em discurso e se torna cada
vez mais visível. Contraditoi iamente a sociedade que inventa a intimidade e a privacidade
ê a mesma que criou saberes c poderes que ttao < ansam dc tentar explit á Ias, desvenda Ias,
< ilida Ias, polir ia Ias Vci FOIICAIILP, Mu hei. I lutaria da wxualidude l - A vontade de
saber.
161 I Rf YRI', ( iillii iln "Vivei ás < laias", / hmi» ,/e/’ mij»i/>uo', ■ ih , 17/1)5/1925, p |,< '•
IlINVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 105

A preservação da família também precisaria do que se poderia chamar “a


r>ii tu a da moral”, ou seja, necessitava do exercício do pudor nas virtudes ou
||n« vii ios. Família nenhuma era preservada sem a sombra de determinados
*i pu dos e não ditos:

Prefiro igualmente o indivíduo que estuda ou doutrina ou acaricia a esposa


num quinto andar ou detrás das cortinas ou fosca vidraça ao que estuda ou
doutrina ou acaricia a esposa quase no meio da rua, com as janelas escancaradas.
(...) prefiro o pecador com seu pudor dc que o pecador que peca às claras.162

liste desprestígio crescente deste tipo dc vida doce c familiar c a fascinação


pm iodas as novidades e pela vida moderna dariam origem ao pior dos males
piim a família, notadamente, para as mulheres, que era o mundanismo, que se
iniiii icrizaria por uma preocupação absorvente com o luxo e com a exibição
lim parte do sexo fraco. Foi na cidade moderna deste começo de século, que
lliip.ii.t a figura que representava toda a valorização do simulacro, que fizera
inigii a figura da melindrosa, “flor do artifício e do có/r levado ao requinte”:165

A melindrosa não tem ainda vinte anos: é sóbria no comer, porque aspira ao
Tatisse-maigre’. Não anda, pula. Dir-se-ia uma figurinha alada, transposta das
i enas de Prudhon. Ama o cinema e o futebol, para que toda ela vive, num só
c único pensamento.
<'obre-se com os mais caros vestidos e adora joias.
A melindrosa não sabe fazer um prato, é incapaz dc arranjar uma omelete, e
Ictn horror ao choro dos recém-nascidos.
Conhece toda a escola do flirt e dança admiravelmente bem o foxtrote,
uikewalk c o tango.164

Mulheres que se pareciam cada vez mais com a própria cidade, a linha
ii Ia triunfando, a uniformidade em todas as coisas, a mesma linguagem, até
paici endo ter a mesma altura c a mesma psicologia. A cidade e a mulher

ll<.' FREYRE, Gilberto. "Viver às claras”, DidriodePernambuco, Recife, 17/05/1925, p. 1, c. 5.


Ih I Para a discussão da noção de simulacro, ver: DELEUZE, Gillcs. Lógica do sentido. São
Paulo: Perspectiva, 1974; BAIIDRILI .ARI),Jean. Simulacros e simulafões. Lisboa: Relógio
d Agua, 1991; DEBOR1), (>uy. .7 sociedade do espetáculo. Rio dc Janeiro: Contraponto,
1997.
Ifil II RNANI )I'.S, A "I >r uii’ i di nullo I </<• Pernambuco, Rei ilc, 08/10/1919, p. I,
106 nordestino: invenção do “falo”

modernas representariam o fim das curvas, do sinuoso. Um mundo chato,


retilíneo, plano e uniforme, de pranchas de cimento armado era o que nos
reservava o futuro. A cidade significava, cada vez mais, a igualdade de todas as
existências, a uniformização dos costumes trazida pela influência da moda, dos
reclames e do cinema, mas uniformidade que não queria dizer familiaridade,
mas quase sempre cosmopolitismo, estrangeirice, mundanismo. Um mundo
que se tornava em seus hábitos, cada vez mais, distanciado do passado e da
tradição, o que causava revolta em nossos tradicionalistas.165

b) A HISTERIA DOS COSTUMES.

Este discurso tradicionalista vai, quase sempre, identificar esta mudança


nos costumes com dois traços que seriam característicos do mundo feminino,
ou seja, a frivolidade e a histeria. Os costumes perdiam sua profundidade,
sua seriedade, para adquirirem ares de superficialidade e uma temporalidade
marcada pelo passageiro, pelo efêmero. Mesmo os chamados “maus costumes"
da sociedade patriarcal tinham características que refletiam nosso próprio
modo de ser, nossa “índole”, que agora se perdia com a importação dos “maus
cosnimes” exóticos.166
Seria o caso, por exemplo, das modificações que ocorriam no mundo da
prostituição. A primeira delas era o crescimento do número de prostitutas
motivado pelo fim da proteção que, na sociedade patriarcal, era dada pelos
homens poderosos às meninas pobres que defloravam. Para Júlio Bello, por
exemplo, os senhores de engenho decadentes ou mesmo seus filhos rapazes
ainda defloravam mulatinhas, mas as abandonavam. Estas vinham então
“para o Recife, Maceió, Paraíba, para a rua do Fogo, para o Pátio do Carmo,
à rua Estreita do Rosário, aumentar a prostituição das cidades”. A segunda

165. Para a discussão sobre a tensão existente na modernidade entre a tendência à


homogeneização e ao mesmo tempo a capacidade de invenção e proliferação do diferente
que esta traz, ou seja, entre a tendência construtiva e destrutiva da modernidade, vet
11ARVEY,David, Of>. cit.\JAMESON, Fredcric. Pós-modernismo. São Paulo: Ática, 1
BENJAMIN, Walter. // modernidade e os modernos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1975; “Documentos de cultura - Documentos de barbárie”. In: BOI .1.1, Willi (Org ).
Escritos escolhidos. São Paulo: Cultrix/nDlisi1, 1986.
166. Para uma história dos costumes, ver: EI.IAS, Nobert. Of> ri/; TUOMPSON, Edwanl
P. Costumes em comum, I I ROY I.ADURIE, Emiiiamnl Mmlmlhiu Sao Paido
Companhia «Ias I .citas, 1997, Al .BI IQIIEHQIII' |R I hnval Muniz “(hiiimn < inliinti■.
dc lómaiih" /Vi //li/rirltl, v. (i, Assis, riiliNKIlI*, 1998, pp 67 H<»
IflUlVAL. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 107

lumliliiação era a substituição progressiva das prostitutas nacionais por


||liiiiigciras, como iniciadoras do brasileiro adolescente no amor físico ou
Dfiiiu > objetos de “dispêndio conspícuo”da parte dc homens de idade, homens
ili liniuna, desejosos dc exibir ou de ostentar nas amantes, quer a pujança do
MD, quer a opulência da sua situação econômica.167
Os meninos das cidades, que sc iniciavam sexualmente com essas
piH.iitutas dc carne branca teriam, posteriormente, segundo Freyre, maiores
pi ndoi cs para o exclusivismo de raça e preconceito dc cor. Estes também já não
iiuiIh iiam as delícias e a poesia da iniciação sexual feita nas vermelhas flores
di mandacaru, ou as menos poéticas feitas no orifício do tronco da bananeira,
...... m animais: da simples galinha à vaca dc ancas quase dc baiana. Eram
lilutdiitários no despertar do desejo sexual, porque não tinham a escola da
Hipula dos animais para observar, como os meninos do meio rural. A virilidade,
hiii iauto, tardava a se desenvolver, cresciam, quase sempre, como meninos mais
liubalhões, acreditando em cegonha, pelo menos até a adolescência:168

Não foram poucos os adolescentes que, ainda impregnados das tradições


rurais associadas à antecipação do ato sexual pleno, fracassaram neste ato,
quando obrigados, cm cidades ou capitais, a sc iniciarem no amor físico com
estrangeiras de ordinário ruivas, de falar arrevesado e de aroma de mulher
diferente do nativo. Foi o que sucedeu ao brasileiro, hoje eminente na sua
especialidade, S. L: o cabelo dc fogo’da polaca sobre o corpo friamente branco,
cm vez dc cxcitá-lo, deu-lhe uma repugnância que não soube vencer do ponto
dc vista sexual.169

I'icyrc afirma que a polaridade entre a mulata c a francesa, como objeto


ili desejo dos homens, expressava a própria mutação histórica pela qual a
•ih i< d.ulc brasileira estava passando. Uma simbolizava o Brasil mestiço, ainda
<igu i<, c a outra a atração pela Europa supercivilizada. A mulata representaria
111 .H lição patriarcal, rural, escravocrata, a francesa representaria a modernidade,
i civilização urbana. As cocotes tiveram um papel, inclusive, civilizatório,
it ih.nulo a crosta matuta destes filhos das elites que chegavam às cidades,
nli ui dc terem sido responsáveis pela difusão entre nós de certos elementos da

lt./ III I I O, Julio Mrnirinm </<■ um M-rth.-t ,/, engenho, |> XIV c l,'REYRI'., Gilberto. Ordem c
f>n>grei>o, li. CXXXIX.
Iflll I REYRE.t ÍiIIh iIii, Ordem e (’>•<)■> <■«<•, |i H(>
lllcill, |> (XI
108 nordestino: invenção do “falo”

moda feminina, participando, inclusive, das mutações ocorridas no perfil do ser


feminino, que levaram ao declínio da família tradicional. A puta francesa seria
um bastião da implantação da família burguesa entre nós.17u
Mas a tirania da moda já estava atingindo, inclusive, este símbolo nacional
que era a mulata. Nossas mulatas “já não vão às festas reluzir de estrelas
marinhas e contas de coral, chinelas nas pontas dos pés arrebitados, flor no
cabelo cheirando a óleo. As chinelas desaparecem e desaparecem as miçangas <•
os próprios xales que outrora avermelhavam as festas da Igreja ou salpicavam
na de amarelo vivo”. A mulata do Nordeste, no seu antigo e bizarro modo de
trajar, era um valor regional que precisava ser defendido contra a uniformização
da moda. A culpa de a mulata perder seu traje típico era dos judeus vendedores
à prestação, que davam condições a que estas já se vestissem de sedas e sapato
171
de salto alto. Era a mentalidade empresarial desnaturando a mulata.170
A emergência de uma mentalidade, cada vez mais empresarial, era
responsável por outra importante transformação no mundo da prostituição
urbana: a ampliação do cafetinismo. A importação de mulheres brancas c
sua exploração como prostitutas deram origem a um comércio internacional
de mulheres para a prostituição, que atingiu grandes proporções no Recife.
Os cáftens campeavam em todos os lugares da cidade: “nos cafés, nas
ruas, nas pensões”. “Como os lobos, eles temem a luz do dia, somente à
noite são encontrados”. “Trajando com elegância e falando corretamente
diversos idiomas, os cáftens sabem, pela força, ter como escravas pobres <■
indefesas mulheres, às quais exploram, extorquindo-lhes dinheiro e joias. Sc
algumas destas desgraçadas tentam lhes fugir das mãos, eles as espancam
desapiedadamente”.172

170. FREYRE, Gilberto. Ordem e progresso,p. 187. Ver RAGO.Margareth. Do caéare ao/ar, Oi
prazeres da noite.
171. FREYRE, Gilberto. "Reparos - a moda e as mulatas”, Diário de Pernambuco, Recife,
29/01/1925, p. 1, c. 4 e 5. Toma-se mentalidade aqui como aqueles comportamentos,
valores, costumes, hábitos, idéias que no cotidiano representam o automático, o irrefletido,
o que escapa aos sujeitos particulares da história, porque revelador do conteúdo impessoal
de seu pensamento, aquilo já naturalizado, vindo de temporalidades as mais diversas.
Para a noção de mentalidade e para uma história das mentalidades, ver: VOVF.l .1 I .
Michel. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1987; I.E GOFF, Jacqucs A .
mentalidades: uma história ambígua. In: I.E GOFF, Jacqucs; NORA, Picrre. História
novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
172. N/a. "Jornal do Rei ifc”, Diário de Pernambuco, Rccile, 07/08/1914, p 1, < 5. O soeiólogo
Max Wi bci loi um dos pioneiros no estudo da emcrgfiu ia deste i .pinto do < apilalisino"
que Iiiipln a pensai < oni 1 iiialt.nl que o i apilalisino n.lo e só um modo d< prodllçáo d<‘
llllllVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 109

Vítimas desta brutal exploração, algumas destas mulheres terminavam por


i mnitcrcm o suicídio. Aliás, esta prática, segundo Freyre, seria também uma
Rliiit a deste período de transição entre uma vida que se desenrolava no campo,
||u interior da família, que servia de amparo psicológico, para uma vida que se
ili '.enrolava nas cidades, onde o individualismo, o declínio do espírito de família
i"i navam as pessoas mais vulneráveis a este tipo de atitude. Período marcado por
lllli idios, inclusive, de pessoas ilustres, criando sérios embaraços religiosos para
•u.r. famílias católicas, embora, por outro lado, fosse um estímulo à expansão das
piaficas do espiritismo, para insistentes invocações a espíritos que talvez tivessem
iiljunna coisa de importante a revelar sobre seus dramas ou seus mistérios.173
Pesquisando os jornais da época, podemos constatar, pelo menos a maior
«i ibilidade dada à prática do suicídio. A partir da segunda metade da década
ilr 1910 há um crescimento do número de casos que são noticiados, quase
di.iii.imente. No início dos anos 20, chega-se a dois casos noticiados por
iliii? 1 A maioria dos casos parece estar ligada a duas motivações: as desilusões
rtiiintosas e a debacle financeira. Num momento de mudanças, tanto nos
■ mligos de sensibilidade e sociabilidade, como na estrutura econômica e social,
manadas pela emergência de novos modelos de família, de sentimentos,
i uiie eles do amor romântico, e da emergência de uma sociedade urbana c
tu. hr.trial, caracterizada pela maior instabilidade de status e de condição social,
o . ,un idios parecem ser um resultado destas transformações:175*

Está grassando uma verdadeira epidemia de suicídios.


Cada dia se registram casos impressionantes e a monomania atinge todas as
« lasses, sendo o amor a causa principal, seguindo-se os atrasos da vida.
A imprensa comenta a assustadora progressão dos casos, c lembra a ideia de não
ser dada publicidade a esses atos de loucura, para ver se extingue a epidemia.17'’

mercadorias, mas também um modo de produção de subjetividades. Ver WEBER, Max.


A btica protestante e o espírito do capitalismo. 5. ed. São Paulo: Pioneira, 1987; GUATTAR1,
l'i lix. O inconsciente maquínico. Campinas: Papirus, 1988.
171 FREYRE, Gilberto. Ordem eprogresso, p. t.xxxii.
174 Ver, por exemplo. Diário de Pernambuco, 24/06/1923; 01/07/1923; 09/09/1923; 09,10,11,
12/09/1923.
!/•> Vei I )’ASSl JNÇÃO, F.valdo Alves et al. Morte e suicídio: uma abordagem multidisciplinar.
I’i tiopnlis: Vozes, 1984. Sobre .1 relação entre suicídio, solidão, individualismo c crise
di identidade, ver II Rll •!' It, J.n qtn ■ ()p. cit N.10 foi por mera coincidência que esta
ti matn a clramou a atenção 1I1 I hiildnlni, mn dos fundadores dos estudos sociológicos;
vi i I>1IHKIII IM, I unir ‘nio Paiilii Martins Fontes, 1995.
N/a “O borror da vida", I •l<l< »•••/. /Vi uumbiw, Itri lie, 11/12/1914, p 1, c. I
110 nordestino: invenção do “fai.o"

Mesmo admoestada como uma prática que só demonstrava fraqueza c


covardia, por parte de quem não saberia enfrentar a luta cotidiana, o bom
combate, a luta árdua, mas a mais bela e gloriosa que seria a vida, cada vez mais,
noticia-se o crescimento do número de pessoas que tiravam sua própria vida.
O mais assustador era o fato de que esta prática atingia um número crescente
de homens, o que parecia demonstrar o enfraquecimento deste sexo, que vinha
se deixando levar, cada vez mais, pelos desatinos do coração, como faziam
as mulheres. Estas, enlouquecidas de amor, faziam, também, crescerem as
estatísticas de homicídios seguidos de suicídios. Muitas por ciúmes, sentimento
de propriedade do outro, que parecia estar em crescimento entre as mulheres,
terminavam por matar seus maridos, para em seguida cometerem suicídio.177
Para o discurso tradicionalista, o suicídio não era a única epidemia trazida
pela vida urbana, pela desagregação da vida familiar, pelo afastamento da vida
ligada à terra. A vida urbana e a desterritorialização que provocava, aliada á
promiscuidade que proporcionava, traziam epidemias como: a tuberculose, a
sífilis, a malária, o “anarquismo”e o alcoolismo. Este era, inclusive, no momento,
uma preocupação mundial, objeto de campanhas de combate a suas práticas
em vários países civilizados do mundo e de uma lei polêmica de proibição
nos Estados Unidos. Podemos acompanhar nos jornais, do começo do século,
inúmeros artigos que se referem favoravelmente ou não à chamada lei seca
americana, mas todos, se não entram em acordo quanto à adoção de uma lei
semelhante no Brasil, são favoráveis à realização urgente de campanhas de
combate ao alcoolismo.178
O alcoolismo emergia como um problema, neste momento, a partir de
dois condicionantes históricos, por um lado, a emergência de uma economia
industrial que, cada vez mais, precisava de braços para o trabalho que fossem
disciplinados,capazes de obedecer a uma rotina contínua de trabalho, o que não
ocorria com os trabalhadores alcoólatras. O discurso médico trata de patologizai
esta prática e colocá-la como uma das atribuições do saber higienista. Por
outro lado, muitos textos dão a entender que a prática de beber, principalmcnte
a de beber cachaça, que na sociedade escravista era comum entre as camada.

177. CLÁUDIA, “As tragédias da vida", Didriode Pernambuco, Recife, 02/10/1926, p. 4, c. 1 ,


N/a. “Assassinato e tentativa dc suicídio", Didrio dc Pernam/fuco, Rei ilr, 28/05/1924, p I,
<3
178. FERNANDES, A. “Dc uiim <• dc outros", Dulrio dc /’<'///</////•/« w, Rr< dr, 27/01/1920, p
3, c. 5; N/a. “Contra a lei a", Dhbtodc PctHtíttdwco, Rc< i Ir, 02/07/1926, p 4,< 2; N/ii
“Contia o »il< ool“, D/WH# </r/Vf/MmZwrM, Rccilc, 04/11/1926, p !,• h
|I|II(VAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 111

pnpulares e, principalmente, entre os escravos, para aguentarem a dura jornada


ili trabalho, estava chegando às camadas dominantes, neste momento, pelo
flirnos, entre aqueles membros das elites, notadamente, homens que, por
vlvetcm a debacle econômica, se atiravam a beber a cachaça como forma de
Inp.ii à realidade. O alcoolismo parece ser outro indício da decadência da elite
tiii.tl tradicional do Nordeste:179

As antigas famílias rurais de Pernambuco apresentam figuras iguais exemplares


dc indolência que se vão difundindo tristemente, sem reação, no proletariado
c na miséria geral (...). Em alguns o álcool, para atenuar o tédio de uma vida
apagada e como um fruto da própria preguiça, apressa o desmoronamento
final.18"

Nos anos 20, a campanha contra o alcoolismo se intensifica com a


t liuçao de várias Ligas Antialcoólicas, em vários pontos do país, notadamente
llttti capitais dos estados do Nordeste. Estas tinham o intuito de combater o
"fiitivcl flagelo em sua gênese como em seus reflexos individuais e sociais,
it< 'inselhando moderação no uso de bebidas fermentadas e abstenção completa
di licores ou bebidas destiladas”. Estas Ligas visavam a reduzir a participação
1 1 I itado, que não se considerava benéfica, devendo esta ser mais indireta que
lm l.t e ater-se a

tratar os produtos expostos ao consumo com impostos rigorosos, fiscalizar


a fabricação das bebidas, incentivando os chamados cafés de temperança,
onde não se vendem licores, dispensando-se o imposto ou gravando-os com
tributos moderados, determinar visitas frequentes dos agentes sanitários aos
estabelecimentos ou fábricas de bebidas, aplicando com rigor as sanções para
<>s infratores das leis sanitárias.181

O alcoolismo é visto, neste discurso médico-higienista, como um fator de


di pcncrescência física c moral, pois “afrouxa os sentimentos dc honra, dc pudor,

179 Sobre a relação entre alcoolismo, modernidade, individualismo c sensibilidade burguesa,


ver: GAY, 1’cter. O rw/Zéno </» <></>,. Silo Paulo: Companhia das l.etras, 1995.
I Ml I lll'.l .1.O, Júlio. Mfirnlrim ilr um mh/hh ,h- «rrr;rn/», p. 5.
1111 N/.c"('outra o alcoolismo", / »<u> «»,/,■ /'< o, Rr< ilii,08/08/1924,p I ,c. 5; ARAI JJO,
I A Correia dc "( > illcoollsiiio" /ti.ni.o/. l<e« ite, 15/07/192 1, p. 6, i. I; N/a.
"( outra o ãlcool", / </r Iti i ile, 25/07/1919, p. I, <•. 5.
112 nordestino: invenção do “falo"

de dignidade, desintegra a família, subverte os costumes, conduz à miséria


econômica, como à orgânica, corrompe a raça por força da hereditariedade".
A antropologia criminal o considera como um dos mais importantes fatores
do crime, a patologia nervosa encontraria nele a causa mais comum e direta
das nevroses, das psicoses e, em geral, das doenças mentais. Era “a branquinha
devastando tudo”.182
A ciência moderna, de mãos dadas com a caridade, considerando o
alcoolismo uma doença, criariam os asilos onde os bebedores seriam recolhidos
e tratados condignamente, “medida importante de previdência e segurança
social”. Estes não seriam internados entre a garrida de ferro e as paredes dr
uma célula como um louco em delírio, mas ao contrário, em “edifícios de
arquitetura moderna, construídos conforme os preceitos da higiene” e nos
quais os doentes receberíam tratamento “físico e moral”. Era preciso, sobretudo,
intensificar a educação antialcoólica, como medida preventiva, combatendo
o vício e recorrendo aos chamados “remédios psicológicos, levando-se ao
conhecimento do povo” os danos que o vício produz na vida dos indivíduos.
Era preciso difundir a “consciência antialcoólica, sobretudo, entre as crianças c
adolescentes, gerações que seriam o futuro da nação”.183184
O alcoolismo é visto como um fator decisivo na dissolução dos laços de
família, por isso pedia-se às mulheres, que agora estavam adquirindo foros
de cidadania, que viessem participar de uma campanha para combater um
mal que há muito as afligia, já que elas eram as principais vítimas de seus
pais, esposos e filhos alcoolizados. Estes deveríam conscientizar-se de que o
álcool levava, inclusive, à impotência sexual, participando ativamente neste
processo de desvirilização e crise da masculinidade, que parecia caracterizar
esta sociedade que se urbanizava. Podemos dizer, inclusive, que esta forma d<
ver o uso de bebidas, notadamente da cachaça, é característica de um discurso
que parte de uma elite urbana, e contrasta com a forma como o uso da cachaça
era vista, inclusive, pelas antigas elites rurais, e, principalmente, pelas camada',
populares. Aí ela é associada à masculinidade e à virilidade de forma positiva,
ela dá potência, torna o homem valente, corajoso, mais disposto inclusive para
o amor.”4

182. ARAÚJO, J. A. Correia de. Of>. cit.\ SERVA, Mário Pinto. “Flagelo cvitávcl", Didrio <!<•
Pernambuco, Recife, 21/07/1928, |>. 3, c. 5.
183. ARAÚJO, J. A. Correia de. O/>. <u
184. N/a. “Contra o alcoolismo uma lampanha clica/.", Diilriu </r Pernambuco, Rciilr,
13/08/1914, p. 3, c I Vci CASCUDO, latia da CAmaia /'rr/tlt/f* ,/,< Rio d<
111'KVAI. MUNIZ DF. ALBUQUERQUE JÚNIOR 113

O álcool seria irmão gcmco do jogo, outra epidemia que vinha grassando
ii" inundo urbano c que também c tema de uma intensa campanha de
l.mibatc, nos anos 20, encabeçada, neste caso, pelo próprio Estado. Os jogos
HN visados, além do carteado, eram o jogo do bicho e o jogo de boxe. Além de
< Murem quase sempre associados a bebedeiras, os jogos provocavam constantes
ili«entendimentos entre os jogadores, gerando “confusões, bofetadas, cacetadas,
ftrges, terminando com feridos e hospitalizados”. Embora fosse uma prática
......... ntemente masculina, espantava o gosto crescente das mulheres pelo jogo.
Um articulista do Diário chega a afirmar que “a mulher, desde a mãe Eva,
M inprc teve uma predileção pelo jogo, pois esta jogou sua felicidade, servindo-
•i para isso de uma sazonada, flamejante c apetitosa maçã”. A mulher amaria
n |ugo muito mais do que o homem, só não o praticando com mais frequência
pi lo "medo de perder, sentimento este inato em toda mulher e a falta de
nu 10$ para exercitar suas aptidões como jogadora, mas uma vez encontrando
Huidiçõcs e companheiras nada há que a divirta mais ou a prenda”.185
Entre os flagclos que atacavam o organismo social outro que preocupava,
mbi «maneira, era o crescimento da criminalidade, fruto da vagabundagem,
l|tic grassava, para maior preocupação das autoridades, entre os menores de
bladc. O declínio da vida de família, com o enfraquecimento dos laços de
li «ponsabilidade que ligavam pais e filhos, dava origem a este fenômeno novo
i pi< ocupante, o do menor de rua:

11 á meninos vagabundos que se vão pouco a pouco iniciando na prática do


in.il ao contato dos profissionais do crime. Encontram-se nas ruas menores
tle dez, doze e quinze anos, apregoando bilhetes de loteria, vendendo
jornais, ou esmolando a caridade pública, habituando-se deste modo a uma
vida preguiçosa e imoral, contraindo os hábitos perniciosos que lhes vão
< nibotando a consciência. Estes são os candidatos certos aos presídios, os
elementos inúteis e improdutivos que pesam sobre a sociedade em vez de
< i meorrer com seus esforços e seu exemplo para a felicidade coletiva.

|.incito: IAA, 1968; ROSA, Ana Lúcia Gonçalves. Toma-se um gole, constrói-se uma
identidade, Campina Grande, 1999 (Texto mimeografado).
I M'< Vi i Didrio de Pernambuco, 05, 09, 11, 1S/09/1924; N/a. “O jogo - um sarilho na casa
de |.i <• Menino", Diilit" ./<■ Peimimbum, Recife, 13/09/1914, p. 3, c. 1; N/a. “A mulher
<' O jogo", />idrio de Pemamhui", Rei ile, 17/05/1925, p. 7, c. 3. Para a relação entre jogo
i sensibilidade moderna, o jogo iniiiii um componente da sociedade de mercado e do
indivíduo, < onio atividade <|u< di Mgtada > loma profana ver: CALOIS, Roger. Os fogos
e m homem Lisboa < olovla, 1990
114 nordestino: invenção do “falo”

É preciso afastar os adultos, desiludidos do urbanismo para os centros


agrícolas e combater a praga dos menores vagabundos, por meio das escolas c
das instituições disciplinares e profissionais.
Essa tendência urbanista é um caldo de cultura propícia à vadiagem e à
criminalidade,enquanto se vai provocando o abandono da atividade agrícola.1’'’

Este discurso, claramente identificado com o ideário burguês da disciplina,


do combate à vadiagem, da introjeção da ética do trabalho, destoava, apenas,
à medida que via na urbanização a causa destes males, propugnando a volta
de muitos ao trabalho agrícola como a solução. É interessante, no entanto,
contrastar este discurso, com um artigo de Gilberto Freyre sobre o moleque
de rua. Embora sugira que este tenha motivos para temer a polícia, e que
expressões como “procedimento de moleque”, “modo de moleque” e “ai
de moleque” deem a falsa impressão de que este é sempre elemento ruim c
desprezível, que se contrapõe ao decoro, à severidade e ao respeito sociais,
Freyre o considera uma instituição da rua, um elemento de conservação social
Ele seria toda uma moral de rua, toda uma estética; sua vaia, seu assobio, seu
deboche funcionariam como formas de controle social. O ridículo agindo como
um moderador de comportamentos e atitudes nas ruas. O burguês morreria dc
medo do moleque, de seu olhar fino e crítico.186
187
Como se vê, para o discurso tradicionalista, embora fossem estes “maus
costumes” a face mais visível dos males trazidos pela urbanização, existiam,
no entanto, mudanças mais profundas nos costumes tradicionais, trazidas pela
cidade, que não chamavam tanta atenção, mas que descaracterizavam muito
mais profundamente o caráter de nosso povo e de nossa civilização. Entre
estas podiam ser destacadas as mudanças em nossos hábitos alimentares e a
desqualificação, por parte das novas elites urbanas, da cultura popular.188

186. FERNANDES, A. “De uns e de outros”, Diário de Pernambuco, Recife, 11/04/1921, p. I.


c. 2.
187. FREYRE, Gilberto. “67” (Artigo Numerado), Diário de Pernambuco, Recife, 27/07/1924,
p. 1, cc. 5 e 6. Sobre a disciplinarizaçâo da infância na sociedade burguesa, ver: ARI ES,
Philippe. História social da criança e da família-, DONZELOT, Jacqucs. Of>. cit;
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder, SC1IMITT, Jcan-Claude; l.EVI, Giovanni
História dosjovens.São Paulo: Companhia das Letras, 1996,vols.2 e 3; RA( IO, Margareth
Do cabaré ao lar, MOURA, Esmeralda Blanco. Mulheres e menores no trabalho industrial
Petrópolis: Voz.es, 1982.
188. A defesa da "cultura popular" pelos tradicionalistas significou, na verdade, a sua
institucionalizaçáo < iiisiiuiiicntaliza^ilo pata u»o das elites Ioda a obra dc Câmara
Cascudo leiu muita mipoitâiiila tu ,t< aspnlo, mas vii pitli> ipaltui ute ( ASt IIDt),
KIIKVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 115

Tanto a cozinha sertaneja como a do engenho tradicional vinham


i<m franca decadência, substituídas por hábitos alimentares cosmopolitas,
pi nu ipalmcnte, de influência francesa, italiana e americana, menos por sua
própria essência do que “pelo indesculpável acanhamento em mostrar-se”,
i mu isto ia se perdendo aquela alimentação tradicional que fora “formadora
lios rijos homens de outrora, vencedores da indiada, lutando com as onças
■ Ir facão e morrendo dc velhos”. O problema alimentar, que vinha sendo
ilstcmaticamente descurado por todos os governos, era fundamental na
<< instituição da raça nacional. Os próprios caracteres psicológicos de alguns
povos poderíam ser explicados por sua alimentação particular. A “obstinação
do picardo, a arrogância do gascão, a teimosia bretã, a calma flamenga, a leveza
|. uisiensc”eram fruto de sua alimentação. Um regime de carne daria o inglês,
i iiiii regime dc vegetais daria Gandi:189

No sertão do Rio Grande do Norte a tendência é seguir o litoral no


eosmopolitismo alimentar, quase sempre, irracional e péssimo. Os tutanos
de corredor de boi que, misturados com rapadura, constituíam o mistério
das supremas vitalidades masculinas, já não tem apreciadores. Não vi comer
farinha com açúcar, sobremesa típica, nem angu dc ovos, prato de crianças cm
idade escolar, superior aoToddy ao Quaker Oats.
O sertanejo precisa convencer-se de que deve à sua forma de alimentar-se a
justificação dc sua resistência física. Não é a comida da praça que o reajustará
ao ritmo das possanças antigas. Alexandre Magno só degenerou quando não
aceitava a sólida comida da Macedônia.190

As mudanças alimentares trazidas pelas cidades ameaçavam, assim, a


pmpiia masculinidade. Talvez, por isso, os homens da praça fossem frágeis e
doentios. Era preciso defender aquela cozinha que “nos doou músculos serenos
' loiças gigantescas”. Poder-se-ia melhorar o aspecto rústico de alguns pratos,
m t • ■ cria um desserviço à nossa nacionalização de cultura deixar estas tradições
vlidr/antes de alimentação desaparecerem. Gilberto Freyre chega a propor

I .uís da Câmara. Civilização e cultura. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.


|l|9 ( ASCO 1)0, Luiz da Câmara. Viajando o sertão, pp. 27-28. Essa preocupação dos
Intelectuais tradicionalistas cm tiilo deixar perderem se nossos hábitos alimentares deu
«ligem a livros como: CASCIII )O, I ,tiís da Câmara. História da alimentação no fírasil. Rio
dc Janeiro: Companhia Edltmu Nacional, 1967/68. 2 vols.; I REYRE, (lilbcrto. /íçúcar.
116 nordestino: invenção do “falo"

que fosse organizada uma sessão de culinária e confeitaria pernambucaiias


na Exposição Geral de Pernambuco, pois, sendo os pernambucanos “fidalgoi
arruinados”, se ainda havia joia de família que restasse seria a tradição que s«
refugiou no forno e no fogão de algumas casas.191
A debacle não atingira, nos seus íntimos valores, a cozinha pernambucana
As receitas de bolos, doces, peixes e ensopados com leite de coco, requeijôc»
e vinhos que nos havia transmitido a glutonaria dos engenhos seriam conto
uma espécie de pedigree do paladar, ainda conservado em certas famílias do
Nordeste. Mas era verdade, também, que havia muito se ostentava no Recilc
outros requintes, francesismos e até cosmopolitismo de paladar. Era preciso,
pois, fazer um esforço para não se deixar desenraizar a mais tina tradição da
culinária do Brasil, “um paladar individualizado a mais de cento e cinquenta
anos e até de trezentos anos de feijão de coco e de canjica, de doce de caju e d<
vinho de jenipapo”. A nutrição seria um fator poderosíssimo de tipo nacional
e de tipo social. “Os alemães teriam por certo conseguido nacionalizar o«
alsacianos se lhes tivessem conquistado de todo o paladar.”192
Perdia-se, também, a tradição da mesa larga. A tradição da boa cozinha, jií
sendo muitas as casas de engenho e de usina onde o “gourmet” é “tristemenlc
recebido a presunto, empada de camarão seco, doce de lata ou conserva dc
pera, mandado vir do Recife, dos merceeiros e confeiteiros do Recife"
Isto se devia ao declínio da produção de cereais nas terras das usinas e ao
avanço da industrialização, que padronizava o paladar, com seus produtos
despersonalizados, e onde importava mais a quantidade do que a qualidade do
produto. As usinas só queriam plantar cana, “onde geralmente morreu um fogo
de banguê, morreu um fogo de cozinha à antiga”. Pernambuco já importava
farinha de mandioca, milho e feijão, para o consumo doméstico, só exportando
açúcar e sal.193
A desnacionalização e desvirilização da culinária só eram tão graves
quanto a crescente desvalorização das manifestações populares de cultura. An

191. CASCUDO, Luiz da Câmara. C>p. «7., p.28; FREYRE,Gilberto.“74”(Artigo Numerado),


Diário de Pernambuco, Recife, 14/09/1924, p. 3, c. 4.
192. FREYRE, Gilberto. “74" (Artigo Numerado), Diário de Pernambuco, Recife, 14/09/192-1,
p. 3, c. 4.
193. Idem, “A propósito da campanha do Sr. I iardman”, Diário de Pernambuco, Rccile,
12/04/1925, p. 3, c. 3. Este processo em que as coisas parecem ganhar autonomia em
relação aos homens que as produziram, parecendo ter vida própria, despei xonilu ando a ,
foi descrito como uma das . arar tcrfttii as prim ipais do modo de produção capitalista poi
Marx. Ver MARX, Kml. Ohi/MM/ 7,ed Silo Paulo I >ili I, l'*H.', livio i, vol l.pp 79 9H
IJIIHVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 117

L i.n e funções dc engenhos desapareciam: o bumba-meu-boi, o mamulengo,


ii landango, o pastoril, o São João foram urbanizados e deformados na sua
infantilidade, nas toadas semibárbaras, na graça e poesia rústicas. O pastoril,
uni exemplo, que antigamente sempre era representado nos dias de Natal,
A nu Bom c Reis, perdeu o seu cunho tradicional, “civilizou-se, urbanizou-
ii . perdeu cinquenta por cento daquela graça antiga”. “As pastoras imitam as
Ijlrl/cs. Dançam sem os pandeiros de outrora. Vem do Recife importadas.Têm
i uipii sários. Não se improvisam no campo, sem aquele verniz dc teatro. O
|(i i Ifc antigamente era muito longe. Hoje está a uma corrida de automóvel”.
No Recife, pior ainda, os pastoris foram substituídos pelas revistas do tipo A
t 'upital Federal:194

(...) os antigos pastoris dc crianças, presepes, como eram chamados na época


dos meus avós.
Nos palcos ornamentados a guirlandas, bandeirinhas e balões de papel de
seda, erguia-se o tablado, onde dois grupos de crianças cheias dc graça e
vivacidades, elegantemente vestidas dc azul c vermelho, derramavam pelo
palco vibrações claras de uma alegria espontânea.
Famílias de alta linhagem dividiam-se cm predileções partidárias. Mimos
ricos, flores viçosas c aplausos vibrantes eram jogados sobre a rainha do
tablado.
I loje os pastoris resumem-se a vulgaridades entedeadoras das canções
< arnavalescas e das deploráveis copias dc cabaré.195

Ia desaparecendo também o tipo popular dc rua, homens e mulheres que


pi iiimbulavam pelas vias públicas, muitas vezes bêbados ou loucos, que faziam
H divertimento de todos. Eram cada vez mais acossados pela legislação contra a
Vadiagem c pela atuação da polícia dc costumes. A procura pela racionalização
di". costumes, o combate aos ilegalismos c a toda sorte de “comportamentos
drnc i.mtcs” tornavam os seres das “margens da sociedade” insuportáveis para
«» novas sensibilidades, que preferiam vê-los internados em “estabelecimentos
Hpiopt lados”. A sociedade da razão não poderia tolerar seus desarrazoados.'96

I '» I HEI .1,0, Júlio. Mfinóriaf de um tenhor «/<• engenho, p. 172; FREYRE, Gilberto. Ordem e
progrerto, p. cxi.v.
|9‘> MON I El RO, CoM.i "Pautou»", / hilHn de /'<•» namhuro, Recife, 04/01/1925, p. 3, c. 5.
|'úi Sobre a cxclincAo como uma pnttlia ln»tItiilnte da lociecladc moderna <• burguesa, ver:
EOIICAUI I, Michel IIxtinm d<< Silo Paulo Peispntiva, 1978; Vigiar e punir.
118 nordestino: invenção do “falo"

Gente como França Sete-Feixes que, quando “bebido", contava coisas do


Hospital Santo Amaro, dançava, ficava teimoso, ia à indecência grossa, adquiriu
gosto pelo discurso e passava a acariciar a pata de todos os cavalos que paravam
em frente à venda onde estivesse bebendo, o que o acabou matando, vitimado
que foi por um coice no frontal. A tradição fala de tipos como Garapa, que se
enfurecia e desandava um vocabulário baixo quando o molecório o chamava
pela alcunha. Ao seu aparecimento gritavam: “Mel com água!”, ao que ele
enfurecido respondia: “Mistura miserável!”. Vieram ainda Queréca, Minha
Velha, Marréca e Jacaré. Agora não eram só os moleques que perseguiam estes
valctudinários inofensivos, a nova moral burguesa não suportava a sua presença
no espaço público. Deviam ser levados para longe dos olhos de todos, paru
instituições apropriadas.*197
A cultura popular, considerada grosseira, primitiva, rústica, semibárbara.
inculta, rural, tradicional, passadista, era desqualificada pelas elites. Não havia
mais aquela proximidade que outrora existira entre as elites do campo e as
manifestações culturais populares, que chegavam a patrocinar, que apreciavam
e frequentavam regularmente. As elites urbanas, aburguesadas, delicadas,
apreciavam apenas as manifestações da cultura moderna. Investiam fortemente
na reforma dos costumes, na higienização, na disciplinarização e “feminizaçâo
dos hábitos”, para que estes estivessem em dia com o mundo moderno e .1
moral burguesa em implantação.

c) A VITÓRIA DA MULHER DEVORADORA

No discurso tradicionalista a modernidade também se apresenta com


um perfil feminino. A modernidade é uma mulher devoradora, que não perde
tempo em deformar e destruir as manifestações viris da tradição patriarcal. Para
um senhor de engenho, como Júlio Bello, o grande símbolo da modernidade
industrial é a usina. E é como uma despótica mulher que ele a descreve:

A Usina, a grande anônima, - é para todos a firma comercial do Recife. Eu, na


meia fantasia com que muitas vezes encaro, graças a Deus, as coisas da vida,

Petrópolis: Vozes, 1975; GOI'1'MAN, Krving. Manicômios, f>ris6es, conventos. -I. cd S.iu
Paulo: Perspectiva, 1992; PI I BAR P, Pctcr Pal. / >■/ clausura dofora ao fura da clausura San
Paulo: Brasilieiise, 1989.
197. BP.I .1.(), Júlio. Mentoriai </, um senhos </, engenho, p 171, N/a ' Pipos dc rua’’, l>iilrio de
R< < ilc, 22/IW/I926, p i,< ■!
ItUHVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 119

dou corpo e forma a essa tarrasca como se ela fosse uma espécie de Imperatriz
Catarina, conquistadora insaciável de terras c deportadora terrível dos mujiks
coronéis, senhores de engenho. Considero-a na minha fantasia como uma
pessoa viva, com movimento próprio na trama social.
(...) na minha fantasia — uma grande dama muito gorda c ventruda, com
nina imensa saia de cauda e brocados, um formidável chapéu cano, muito
desembaraçada e impertinente, orgulhosa e autoritária.”8

A usina, como uma mulher autoritária c interesseira, só causara dissensões


i .< parações, acabando com o que havia de familiar na vida:

separou o grande proprietário não só do operariado - que era uma segunda


família do senhor - como da paisagem e dos rios, outrora tão ligados à vida
dos homens e hoje uns mictórios por onde as fábricas descarregam a calda
fedorenta. Acabou com a vida nas casas-grandes, acabou com as festas;
extinguiu a assistência moral dos capelães, uns padres gordos e moles, mas
que sempre serviam para ajudar a gente dos engenhos em algumas de suas
necessidades e sofrimentos; desenvolveu o absenteísmo; substituiu as casas-
grandes de engenho pelos palacetes do Recife, de Maceió, de Boa Viagem.
I )ando origem a novas formas de relações entre o patrão c o empregado; entre
o homem e a terra. A distância social c psíquica entre eles tornou-se maior.”9

A modernização das relações sociais de produção é vista, neste discurso,


..... . a produção de um distanciamento social e subjetivo entre patrões e
fodmlluulores, que ameaçava desembocar no conflito social, o que este discurso
um temia. A exploração sem máscaras e peias da usina ameaçava a paz social.
A', nn como fazia com seus trabalhadores, a usina também tratava as suas
hhi com distanciamento, desprezo, exploração. Não havia entre homem
t* Ii ii.i aquele idílio como entre homem e mulher. “As figuras mais nobres
lavoura antiga extinguiram-se todas”. Seus descendentes também iam se
"p !)■ indo em triste pobreza. As terras pertenciam agora a homens que não

I BI I I Júlio. Memória* dc um irnbor de engenho, p. 58-59. Ver também: BELLO, Júlio.


Bi ilh.mics, usinas c .iiiioniovcis ”, llióriode Pernambuco, Recife, 13/10/1925, p. 4, cc. 1,2
• 3.
|Vi III I I.(), Júlio. Memótiai dc um uh «/<• , ngenho, p. xv I* str processo, no qual as máquinas
qur ■ homens < iiaiam p.m «< m tlmiiiii.i l>« , i niiluúii foi drse rilo |M»r Marx i orno fazendo
parte <l<> priH<-no d< iln n n,a<» li • »«!•• |" < tpilali inu, v< i MARX.Kail ()f> (it
120 nordestino: invenção do “falo"

as amavam como os velhos senhores. As próprias terras “parecem protestai


contra o absenteísmo de seus proprietários”, homens que as abandonam nas
mãos de outros, de estranhos e, “avaras, se encolhem e se recusam aos novos
donos como mulheres honestas a conquistadores”. Produzem cada vez menos,
precisam, cada vez mais, de uma exploração mais intensiva e não conseguem
dar a produtividade de quando eram bem tratadas, no passado.200
Porém, toda esta tragédia que fora a introdução da modernização no
campo, para essa parcela da elite em declínio, não conseguia apagar o crescente
entusiasmo que o mundo moderno causava, principalmente, nas populações
urbanas. A modernidade era, para a maioria, uma mulher sedutora e atraente,
digna de todas as reverências. E era vista também, não como produtora de
distanciamentos, mas de aproximações e igualitarismo à americana:

O bonde, por exemplo, representou transigência considerável de uma situação


como a brasileira, com o tempo social norte-europeu ou anglo-americano,
igualitário e nivelador de discrepàncias ostensivas entre os membros de uin.i
comunidade. A estes o bonde veio impor - como, aliás, o trem - a igualdade
na velocidade no transporte coletivo.201202

Freyre cita outros exemplos do entusiasmo com que principalmente as


novas gerações recebiam o moderno: os romances de Júlio Verne, por exemplo,
foram muito lidos, no final do século xix e começo do século xx, por meninos <■
adolescentes brasileiros, talvez tendo esses concorrido para o desenvolvimento do
gosto pelas invenções, a admiração pelas maravilhas técnicas, o entusiasmo pelos
balões e pela chamada “conquista do ar”. Entusiasmo que de adolescentes passou
a homens feitos, quando uma vez chegaram ao Congresso, se preocuparam cm
resolver o problema da navegação aérea, que seria tão necessária a um país como
o nosso de dimensões continentais. O feito de Santos Dumont, expressão deste
entusiasmo pelas coisas do ar, só fez confirmar a sofreguidão com que as novas
gerações se lançavam ao progresso, tentando recuperar o tempo perdido de um pais
cuja economia ainda se movimentava a carros de boi conduzidos por ex-escravos.-'"J
A modernidade significava esta própria mudança das escalas de espaço
e de tempo. A rapidez, a pressa, a eficiência seriam traços a contrastai

200. BELLO, Júlio. Memirias de um senhor de engenho, p. 228. Ver i .unhem EREYRE.C >i1beiii>
Nordeste.
201. EREYRE, (lilbcrio. Ordem eprogresso, p. 157.
202. IUciii, p. IHH.
HUHVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 121

COIH a sociedade do “esperar para amanhã”, que tivêramos até então. Os


(«paços se encurtavam com a velocidade e o tempo parecia acelerar-se. Para
m < >mpanhá-lo, os próprios governantes precisariam tomar a iniciativa de dar
. ondições para a divulgação das novidades junto à população e apoiar, por
todos os meios, as iniciativas inovadoras. E neste sentido, por exemplo, que o
tetário de Agricultura de Pernambuco, Samuel Hardman, realiza, em 1924,
i I xposição Geral de Pernambuco, que tinha como objetivos mostrar todas
an potencialidades do Estado, bem como o avanço não só de suas atividades
puxlutivas, como a pujança e atualidade de suas atividades culturais, artísticas
i intelectuais.203
O discurso tradicionalista identifica a industrialização como o elemento
uMitral neste processo de modernização e considera este fenômeno como
Irndo decisiva ação antipatriarcal. O entusiasmo pela modernização e pela
Indii trialização faz, inclusive, surgir, no começo do século, uma bibliografia
|H< ih ttpada com problemas econômicos, financeiros, comerciais, industriais e
l»'i nieos. A educação bacharclcsca, voltada para as humanidades, de conteúdo
Hliiis teórico do que prático, começa a ser contestada. Alguns moços da classe
>1..... mante vão estudar nos Estados Unidos e fazem cursos de engenharia,
mliintologia, zootecnia e agronomia. Embora a República tenha tardado
iiiuiio em investir na criação da universidade, algumas iniciativas são tomadas
tn» terreno do ensino profissional. A percepção de que a nossa educação
u.io preparava, principalmentc os moços, para a nova realidade econômica c
• • < nu .1 que se implantava no país, não os preparava, inclusive, do ponto de
vlhia subjetivo, para conviver com o mundo do utilitarismo, do particularismo
♦' di» negócio, faz emergir intensas campanhas em torno da reforma do ensino,
pilni ipalmcnte por parte dos positivistas, que viam na educação a base da
limitação das novas elites dirigentes do país, bem como o meio de adestrar o
'■ ili.ilhador nacional para o trabalho industrial.204
A industrialização e as modificações que representa nas relações de
Itiib.ilho acentuam a sensação da inadequação do modelo dominante de
WIH»< itlinidadc, aquele em que o homem sabia dar ordens, mandar fazer, mas

*11 N/.i “Exposição Geral de Pernambuco”, Didrio de Pernambuco, Recife, 18/09/1924, p. 3,

1,1 I I RI'.YRE, Gilberto. Ordem efnofteiw,p. xt.viu, i.m e i.xiii; BEI.l.O,Júlio, Memórias de
um senhos de engenho Vei I >T MAR I INI, Zelia et al Velhos mestres das novas escolas. São
Paulo: < ehii/ini i', 1984; LOPES, Eliaur Marta Versf>ectivas históricas da educarão. São
Paulo: Atú a, 1986; N At >1 I , |»it|>,< / slussuila >■»«»iedade na Primeira Hrjnibliea São Paulo
122 nordestino: invenção do “falo"

que dependia completamente da destreza e do saber de outras pessoas, não


sabendo praticamente nada fazer, modelo que começava a ser contestado. A
preocupação com a eficiência, com as modernas técnicas de administração,
com a produção industrial, com a modernização dos transportes, com u
urbanização e com a higiene faz do início da República o momento em que
o discurso técnico começa a ter muito prestígio social. Os homens das elites,
educados no saber retórico e bacharelesco de nossas Faculdades de Direito c
Medicina, começam a ser vistos como inadequados para este novo mundo.
Muitos técnicos galgam importantes posições no Estado. A inadequação dc
nosso homem do povo em relação a este novo mundo é tida como certa, tanto
que prevalece no imaginário nacional o mito do estrangeiro como o homem
adequado para instalar esta nova sociedade industrial e moderna no país.205
A preocupação de educar os homens para o trabalho é o indício de qm
esta atividade passa a ser central na definição do status social dos indivíduos,
notadamente dos homens.206207
Se na sociedade escravista o não trabalho definiu
o homem da elite, agora passa a ser a sua preparação para o trabalho que
passa a destacá-lo. Conseguir ser o provedor das necessidades econômicas da
família torna-se mais importante do que saber dar ordens, mandar. Este é o
momento em que os Liceus de Artes e Ofícios, que já vinham do final d<>
século anterior, passam a ser ampliados e outros são criados, voltados puni
adestrar as camadas populares para as novas atividades urbanas em expans.m
E o momento em que a vadiagem se torna uma grande preocupação paru
as autoridades, que criam, inclusive, estabelecimentos correcionais para <»
considerados vadios. A emergência do operariado, com suas organizações <li
inspiração apenas mutualista, ou mesmo de inspiração socialista e anarquista,
significa o surgimento de um novo sujeito social, outro produto amedrontadm
do urbanismo e da industrialização, que assusta estas elites tradicionalistas.
A própria educação feminina deveria tornar-se mais prática, voltada puni
as atividades que eram destinadas a seu sexo, ou seja, era preciso educai at
moças para serem boas donas de casa, saberem bem administrar a economia
doméstica, terem preparo para exercer a tarefa fundamental para a sociediuh

205. FREYRE, Gilberto. Ordem eprogresso, p. cxxxv e 332. Ver: MICEI.I, Sérgio. Op ■ " ,
NAXARA, Márcia. Estrangeiro em sua própria terra. São Paulo: Annablume, 1998
206. Sobre o trabalho como elemento central da identidade masculina na sociedade < apitali ii
do Ocidente, ver: BADINTER, Elizabeth. XY: sobre a identidade masculina. Rio d»
Janeiro: Nova Fronteira, 1993; NO1.ASCO, Sócrates. O zzzz/o da masculinidade. Rio >l>
Janeiro: Rocco, 1993.
207. I- RI‘A RI', (zilberto.Ordem epiigiesso, pp 131,332 c 131.
IHIIIVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 123

l|lit- seria a preparação dos futuros cidadãos, trabalhadores e dirigentes do


|iiiis. Na atmosfera artificial e mundana trazida pelas cidades já não dava para
ri.pi-i ar apenas da educação dada no interior da família a necessária preparação
ilii mulher para “dotar a pátria dc filhos robustos e fortes”. O programa das
1' niolas Domésticas, como aquela que funcionava em Natal desde 1914, era
nmtiário “ao programa da Escola de Melindrosas”, que funcionava à larga na
futilidade da vida urbana: enquanto na primeira se formava “a mãe brasileira”,
IIH segunda “se aprende a não ser”.20S
As mulheres deveríam saber fazer mais do que orações à Virgem Maria
• nu santo casamenteiro Santo Antônio e quitutes para os maridos. Elas não
mii.iin mais sem ideal, ignorantes e supersticiosas, seriam progressistas “sem
tupiccer que cozinhar o jantar do marido é uma de suas obrigações”. Embora
nu..Linas e educadas elas não deveríam esquecer-se dos afazeres do lar,
■xlrndo ser a mais extremosa das mães, a mais carinhosa das irmãs e a esposa
liiiii’. dedicada do mundo. A mulher devia ter uma boa educação para o seu
it il. illio, que era o doméstico.209
A educação dada, em colégios católicos ou particulares, às mulheres
tliln i i a uma boa educação. Muito cuidado seria dedicado a línguas, música
| fundados e outras coisas seriam negligenciadas. “O ensino científico da
i Irii. i.i doméstica” seria negligenciado em nossas escolas para moças. Porém,
•‘*1 i' i na hora dc darmos atenção às coisas práticas, como fazia a Escola
I tnincstica dc Natal dirigida por Leonora Jamncs, jovem americana formada
||H I I Diversidade dc Colúmbia. A iniciativas como esta se somaria o fato de
qui |.i existiam moças formadas doutoras, dentistas, professoras, estenógrafas,
huii.iiido-sc profissionais nas nossas cidades. Além de que muitas mulheres
■iNViim vencendo, também, no campo das letras, das artes e do jornalismo,
l i', udo mais do que tentar arrumar marido.210
A educação das mulheres parece tornar-se uma questão neste momento,
|4 i|in elas ingressavam no mercado de trabalho, tornand.o-se profissionais,
tu Hp indo espaços antes reservados apenas aos homens. A urbanização e a
Hi"di mização industrial vinham alterando o papel da mulher na sociedade e

I I KNANI )ES, A. "I)c uns c dc outros”, Diário de Pernambuco, Recife, 08/10/1919, p. 3,


i I Vci I.OURO, (iuacira I.opes, “Mulheres na sala dc aula”. In: DEL PRIORE, Mary.
! lí\tMa da> mulberet no Ifranil,^ 443 481
IKIYRE, Gilberto. "As iiiulluu . sul americanas”, Diário de Pernambuco, Recife,
06/01/1920, p 1.. .4
l.lcin Vii III I IS, Noiiii.i I .iiin.ii , < .(iii.i'., < si iiiui.is" In I )EI. PRIORE, Mary.
Ilnhliia da> mu/betei no Hhiu/, pp 401 44/
124 nordestino: invenção do “fai.o"

isto parecia preocupar sobremaneira os homens. O discurso masculino parece


caminhar no sentido de tentar conciliar estas novas atividades da mulher com
o seu tradicional papel de dona de casa e mãe de família, só que modernizada,
educada para isto. Surgem propostas mirabolantes como a da criação dc
uma Universidade Feminina, já que o ensino comum a homens e mulheres
seria péssimo. Esta proposta de um milionário americano tem imediata
repercussão aqui. Esta Universidade, segundo seu idealizador, deveria “ensinai
os deveres matrimoniais”, afastando a mulher de uma educação moderna “que
tende a fazer da mulher um quase homem, apta a todos os embates da vida,
agindo duramente em prol de sua própria subsistência, pelo ideal dessa falsa
independência que ainda ilude muita gente pelo mundo”. Uma Universidade
para ensinar as mulheres a serem mulheres era necessária, neste século em
que “as mulheres avançam destemidas, pela conquista de uma masculinizaçao
positivamente ridícula”.211
A confusão das fronteiras de gênero, a horizontalização das relaçõci
entre homens e mulheres, favorecidas pela modernização, pela urbanização c
pelo avanço da industrialização, preocupa, sobremaneira, estes homens, que
constatam, com angústia, o fato de que as mulheres se dedicavam mais ai»
estudos que os homens. Vendo na educação uma forma de ascensão social
e mudança de seu papel na sociedade, as mulheres se destacariam mais na
educação que os homens, tornando-se assim mais preparadas para conviverem
com o mundo moderno. A feminização da sociedade, portanto, era uma ameaça
crescente.212
A estratégia para combater esta tendência seria dar às mulheres nao
o mesmo ensino que os homens, mas um ensino específico voltado para o
reforço do papel tradicional da mulher de ser mãe e dona de casa, prepara Ia
melhor para servir ao seu futuro marido e à futura família e não prepara
la para deles se afastar. Embora saibamos que esta realidade estava muito
distante da maioria das mulheres neste começo de século, o fato de que
algumas delas vinham rompendo com as fronteiras traçadas para o feminino,
aliado ao fato de que o papel tradicional masculino era afetado por todas
as mudanças sociais em curso, parecem explicar a insegurança crescente do
discurso masculino e o seu medo da presença de uma mancha feminina a ■.<
espalhar por toda a sociedade.

211. N/n. "lliiin |>io|hv,i,i , uriona", I >bliin ilf l‘rnnim/'u<i>, Hc< ilc, 17/12/1'126, p t,< 2
212 SI I I T , Miliio f)f> itt, p '>6
hlHIVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 125

Iodas as importantes mudanças históricas passam a ser vistas no feminino,


Itliilliercs ideais ou apavorantes, o certo é que desde a República, passando
|" Ia usina, pela modernização, pela urbanização ou pela industrialização, todas
Uniu vistas como mulheres a solaparem o lugar tradicional dos homens, o
lllgiii de patriarca, de pai, o lugar do paternalismo. Vivíamos num tempo de
hiiiiii ns femininos, desvirilizados e de mulheres que se masculinizavam. O que
met ? Esta era a questão para estes homens e intelectuais de elite, no começo
século.

l) A INVENÇÃO DO PATRIARCALISMO

Na reconstituição que fizemos até agora do contexto histórico do


IlHiicço do século xx, em que a figura do nordestino vai emergir como
llpn regional, trabalhamos, quase que exclusivamente, com a obra Ordem
f hroj>resso e artigos de Gilberto Freyre, além do material de articulistas
di> jornal Diário de Pernambuco, identificados com a visão freyreana deste
pm< esso de passagem da escravidão para o trabalho livre e do Império para
i Ih pública. Isto, porque toda a produção historiográfica brasileira sobre o
triua da família, sobre a história das mulheres e, mais rcccntemente, sobre
n lações de gênero dialoga preferencialmente com este autor. Freyre foi o
llivrntor do conceito de família patriarcal para descrever as relações familiares
110 Brasil, desde o período colonial até o final do século xix, quando esta
Ii ii.i entrado em declínio, para ser substituída paulatinamente pela família
um Irar burguesa.
Aceita também por autores como Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado
|i i Antonio Cândido, a definição da família brasileira como patriarcal, ou seja,
uma família numerosa, composta não só do núcleo conjugal e de seus filhos,
ma incluindo um grande número de criados, parentes, aderentes, agregados
i rui avos, submetidos todos ao poder absoluto do chefe de clã, que era ao
m< mo tempo marido, pai, patriarca, tem sofrido inúmeras críticas que se
iih aminham, basicamente, cm duas direções: a primeira nasce da constatação,
illla i, admitida pelo próprio Freyre, de que este não teria sido o único tipo
111 família existente durante o longo período que vai do século xvi ao século
Mix, existindo já exemplos de famílias nucleares, pelo menos desde o século
XVtii Este c o núcleo das minas (cilas a Freyre por autoras como Eni de
M> .quita Samaia, Ira* i I >< I Nrio da l 'osta, M.ui/a Corrêa,que atribuem esta
pi iii ializaçao a poslma id< a da <>lu i Ircyicaiia, mai< ada pela visão que as
126 nordestino: invenção do “falo”

elites agrárias teriam construído da história brasileira, em que estas da varanda


de suas casas-grandes comandariam todo o processo histórico.213
A segunda linha de argumentação segue no sentido de afirmar que o
conceito de família patriarcal enfatiza em demasiado a submissão feminina,que
talvez só fosse característica para as mulheres das elites agrárias. Embora não
se negue a opressão feminina, procura-se matizá-la, dando visibilidade a certa»
mulheres e certas atitudes de rebeldia ou de resistências das mulheres, que
demonstrariam o equívoco de se pensar um domínio absoluto do masculino,
que estaria implícito no conceito de patriarcalismo. A ascensão de mulheres a<>
governo doméstico e certas liberdades vividas pelas mulheres, principalmente
das camadas populares, o que também é descrito fartamente pelo próprio
Freyre, inviabilizariam o conceito de família patriarcal.214
Mais recentemente, autores como Ronaldo Vainfas e Richard Parkci
reafirmam a validade do conceito de patriarcalismo para se entender .r
relações familiares no Brasil. Embora não desconheçam as críticas feitas a este
conceito, acham que estas nascem de um equívoco na própria leitura que se faz
de Gilberto Freyre. Argumentam, inicialmente, que Freyre nunca identificou
família patriarcal e família extensa, importando não o tamanho da família, mil»
o tipo de poder que aí é exercido. Não seriam as estruturas domiciliares que
definiríam a família como patriarcal, mas a noção de família como parentela,
rede de poder e dependência ligada à escravidão, à prepotência senhorial e á»
tradições culturais ibéricas. Mesmo aqueles que não viviam na casa-grand<
e que compunham um núcleo familiar “alternativo” estariam submetidos a<>
poder patriarcal. A própria existência de famílias nucleares não significava que,

213. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 9. ed. Rio de Janeiro: José Olympiu,
1976; PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 17. ed. São Paulo: Brasiliense,
1981; CÂNDIDO, Antonio.“7l>e Brazilianfamily”. In: SMITH.T. L.; MARCHAN T, A
(Ed.). Brazil; portrait ofhalfa continent. New York:The Dryden Press, 1951; S AM AR A,
Eni de Mesquita. A família brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983; COSTA, Iraci I )<l
Nero. Vila Rica:população {1719-1826). São Paulo: iper/usp, 1979; CORRÊA, Mari/.i
“Repensando a família patriarcal brasileira”. In: ALMEIDA, M. S. K. de. Colcha </<■
retalhos: estudos sobre a família no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982.
214. Acompanho aqui o resumo do debate feito por VAINFAS, Ronaldo. Trópicos dospecadm
Rio de Janeiro: Campus, 1989, pp. 107,108 e 109. Ver: ALGRANT1, Leila Mezan. Op
cit.-, DEL PR1ORE, Mary. Ao sul do corpo-, SAMARA, Eni de Mesquita. //< mulheirt,
o poder, a família. São Paulo: Marco Zero/sp.csp, 1989; MO I I', Maria Lúcia. Op ,u,
SILVA, Maria Bcrtriz Nizza; BRIISCIIINI, Cristina (Eds ). Op cit. I FITE, Minam
Moreira et al. A mulhei nuRiodeJaneiiono\tlculo \i\ Sao Paulo Fundação Cailos Chaga»,
1982
IIUHVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 127

l> n .1 sobreviverem, não precisassem ligar-se a sociabilidades familiares mais


ki< II-..IS. O patriarcalismo seria, inclusive, a bandeira dos moralistas da Época
Moderna, patriarcalismo conjugal e misógino, que as transgressões femininas
fkimiam longe dc ncgar.2,l!
Acho que toda esta polemica, se nos fez conhecer bem melhor a
multiplicidade das formas dc organização familiar no Brasil e o papel que
o mulheres vieram desempenhando ao longo dc nossa história, pouco nos
|*i l.iiecc sobre a própria historicidadc do conceito de “família patriarcal” ou
tliln noções de patriarcalismo c de paternalismo que estão a ele embricados.
Ioda a polêmica parte de um pressuposto duvidoso, o de que possa existir
..... . cito que dê conta da variedade e multiplicidade da realidade. Como nos
ih.im.i atenção Vainfas, quase sempre o conceito vai ser uma síntese abstrata
>l> uma situação dominante num dado momento, por isso sempre será
|im.'.iv< l encontrar o elemento discrcpantc do conceito. É evidente que afirmar
4 dominação masculina como regra geral, em nível conceituai, não exclui a
■iriência, nas práticas concretas, de homens dominados por suas mulheres,
liiiu a existência de mulheres relativamentc “livres”. Se o conceito remete ao
liindrlo dc família presente apenas entre as elites, se ele é uma forma de se
et i de cima a realidade, como o historiador inglês E. P. Ihompson define o
Whk eilo dc paternalismo, o que deve nos interessar não é constatar, apenas, a
il*i repância entre conceito e a variedade das manifestações do sublunar, pois
ii* conceitos nunca dirão plcnamente as coisas, mas é entender que condições
hi loiicas possibilitaram a emergência deste conceito, que funcionamento ele
li‘Vi•, i que relações de poder está ligado.216
A medida que a crítica historiográfica se faz sempre no sentido dc buscar
..... li quação do conceito a uma pretensa realidade objetiva, que este teria
pu i< ndido descrever, mas não o fez, esta crítica, além de quase sempre não
luloi ii nenhum outro conceito no lugar, tendo ate que revalidá-lo, à medida

IP» VAINI1 AS, Ronaldo. Op. cit., pp. 109, 110 c 111 c PARKER, Richard. Corpos, prazeres e
paixões.
lll. IHOMPSON, Edward P Costumes em comum; Senhores e caçadores. Rio dc Janeiro:
Paz. e 'lcrra, 1987. Para a rclaçflo entre palavras e coisas, entre o discurso c a empiria,
entre linguagem e sublunar, entre prática discursiva e não discursiva, ver: FOUCAULT,
Michel. As palavras e as coisas Sao Paulo: Martins Fontes, 1985; O homem e o discurso.
Rio dc Janeiro: lempo Biasilciro, 1971; A an/ueoloyia do saber. Rio dc Janeiro: Forense
Universitária, 1995; A ordem d" disiussu, < |',R I EAU, Michel dc. A escrita da história',
WIIIIE, llayden liispuos do dissuissi São Paulo t tmsi’, 1994; BARTIIES, Roland.
1‘taf'mentos de lim illsimsi’ a>>i “ I0o di laiirliu l i.nu isco Alves, 1991.
128 nordestino: invenção do “falo1

que sempre o coloca em circulação, não consegue ir além da crítica manjada dl


que este é a expressão de um olhar de casa-grande, de um olhar conservador ou
de classe dominante. Até posso concordar com estas críticas, mas acho que U
historiografia da família e das relações de gênero no Brasil precisaria enfrentai
a tarefa de historicizar a criação do próprio conceito de família patriarcal ou
de patriarcalismo, que, se não é exclusividade do discurso de Freyre, com ele
ganhou estatuto de cientificidade e se impôs como saber acadêmico no p.iii,
por isso podemos dizer, neste texto, que ele inventou o patriarcalismo.
Pretendo, pois, neste momento do texto, explicitar que o que fiz ati
agora foi mapear o que considero as condições históricas de emergência do
conceito de patriarcalismo. A conjuntura que vai do final do século xix ate o
começo dos anos 30 do século xx, período marcado pelo fim da escravidão,
pelo fim do Império, pela emergência de uma sociedade urbano-industri al,
período de nascimento e formação intelectual de Gilberto Freyre, permitiu
a este pensar esse conceito para definir uma forma de organização familiai,
cujo desaparecimento ele próprio estava testemunhando. O conceito dc
patriarcalismo foi inventado num momento histórico preciso, tanto do ponto
de vista das relações sociais, como do ponto de vista das formações discursivas,
dos saberes, que precisa ser mais bem investigado.217
O conceito de patriarcalismo não é apenas, como procurarei demonstrai,
voltado para uma descrição do passado, mas é uma forma de descrevê-lo qu<
tem a ver com as relações contemporâneas, em que o autor estava mergulhado
Era uma forma de organizar a memória das relações de gênero que servia paia
uma atuação num dado momento histórico, em que essas relações estavam se
alterando profundamente e de forma assustadora, para um homem ligado a esse
passado rural,escravocrata, mas um homem urbanizado, moderno,que procurava,
através de seus estudos do passado posicionar-se nas qucrelas do presente.
Portanto, antes de se dedicar longo tempo a analisar se o patriarcalismo
é a realidade da colônia ou do século xix, devemos perguntar-nos: Por que no
começo do século xx intelectuais como Gilberto Freyre descrevem esse período
como patriarcal? O que está acontecendo, nesse momento histórico, que o k va
a inventar esse conceito? Que práticas discursivas e não discursivas permitiram
que esse conceito emergisse como o que melhor descrevia a vida familiai
no Brasil até um momento que parecia estai se acabando? Os historiadoics

217. 1‘ai.i as noções dc miI»ci c di« iiimvii, vi i I-< )l H Al M I, Mii In I I miiutolwhi >i<>
w/A’/, MA( I IA I )( ), RiiIh i tu l 'h')h hi
IHIHVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 129

Ji m ui, cada vez mais, se preocupar com a própria historicidade dos conceitos
i|in‘ niilizam e que criticam, quase sempre a partir de uma perspectiva realista
nu que o conceito é criticado porque não dá conta da realidade. Mas eu
MHguntaria: Qual conceito dá conta dc toda a realidade? Todo conceito é
iiiii.i elaboração interessada da realidade, e assim como o conceito de família
|iui i.ucal de Freyre é ideológico, as críticas feitas a ele também o são.218
<) conceito dc patriarcalismo, no meu entender, emerge a partir de uma
|t iii,.io a esse processo que o próprio Freyre e o que chamei até agora de
lllm iiiso tradicionalista vinham identificando como feminizaçâo da sociedade,
lonccito de patriarcalismo em Freyre não pretende apenas descrever um
..... Ido de família ou a forma de relação entre os gêneros, ele tem a pretensão
li <li screver toda uma ordem social, da qual o poder patriarcal e a família
Miuitii os elementos nucleares. Este conceito é pensado a partir do contraste
qiii l icyrc observa entre a ordem social prevalecente até o final do século xix e
•iqm l.i que começava a se tornar dominante. Da ordem patriarcal fariam parte
..... . as relações escravistas dc produção, a estrutura monárquica de governo,
ii picdomínio dos valores rurais e católicos, seja em termos de sociabilidade,
H|ii < in termos de sensibilidade. O patriarcalismo incluiría, inclusive, uma
Ikiiii.i hierárquica de relacionamento social entre as etnias, entre os grupos
«i<< hiis c entre os gêneros, “adoçados”, como gostava de dizer — a metáfora é
n 11 l.idora do lugar de seu discurso - por relações paternalistas.
Por isso acreditamos que Freyre descrevia a sociedade como patriarcalista
• paitir do contraste que enxergava com a nova ordem social caracterizada
|iil,u. relações livres e progressivamente assalariadas de trabalho, pela forma
irpuhlicana e “democrática”dc organização, sem deixar de ser autoritária, pelas
ii ii.Fncias que considerava igualitaristas ou horizontalizadoras de relação
•tllrc i lasses, etnias e gêneros, pelo declínio dos valores rurais e católicos,
<l.i lormas de sociabilidade c sensibilidade identificadas com o campo,
•uh■ niiúdas por formas dc sociabilidade c sensibilidade mais em dia com o
unindo moderno, urbano, cosmopolita e o consequente declínio das formas
|i.ium.ilistas c pessoalizadas dc relacionamento substituídas pelo que chamava
Imiii.r. individualistas, particularistas e utilitárias dc subjetividades.

1|N Sobre a ncr essidade dc iiiii.i atitude nouiinalista por parte dos historiadores, ver: VAZ,
Paulo l/w /vnuimriitn iii/.ou. Rio de ...... no linago, 1992; I )EI .ElJZE, Gillcs. Fouaui/t.
Silo Paulo B1.11I1. iia.PIKH.l EHTI Al 1. M>. I« 1.1. /...o/.o/.(AoMo./;(;REENBI,Ari’,
Stcplicti. /'«iirrioii . .................. '..Io Paulo iiiiim', 1996; CIIAR I IER, Rogei O/>. o'/.;
RORI Y, Ricliaiil <)f> ,11
130 nordestino: invenção do “falo"

O patriarcalismo, sociedade do poder masculino, do império dos pai»,


assentada em relações paternalistas, de filhotismo e apadrinhamento, sociedade
das parentelas, ia sendo modificado por um processo que é visto como di
desvirilização, de declínio de um dado modelo de masculinidade, período d<
confusão entre as fronteiras de gênero, em que as mulheres pareciam assumir
lugares antes reservados aos homens. Tem passado despercebido para toda .1
historiografia que lida com relações dc gênero, que o patriarcalismo, mais do
que um conceito rigoroso, é em Freyre uma metáfora, uma grande imagem
que ajuda a descrever um período, procedimento característico de seu discurso,
muito longe de apresentar a rigidez conceituai que a sociologia, em seus
desdobramentos no século xx, viria a exigir219.
A sua sociologia, sob o método empático, como o define na síntese
metodológica em Ordem eprogresso, é, conforme ele mesmo admite, produzida
a partir de uma identificação pessoal com o processo que descreve, identificação
que vai não somente até ao fato de que é um elemento da classe dominante,
ligado a esse mundo rural em desaparecimento, mas até ao fato de que é uni
homem, olha para esse processo com um olhar masculino. A riqueza do traballu 1
de Freyre e de muitos tradicionalistas é o fato de que todo o seu discurso esi.i
atravessado por uma série de metáforas e imagens que remetem aos gêneros. ()•<
nossos historiadores de gênero e críticos do patriarcalismo têm negligenciado
que, ao lado desta imagem-eixo, existem outras imagens que frequentemente
remetem todos os acontecimentos históricos, do começo do século, para o campt •
do masculino ou do feminino. Num procedimento que é comum encontrar em
filósofos do século passado, mas também num historiador comojules Michelel,
o masculino e o feminino, homem e mulher, tornam-se, com Freyre, metáfora',
explicativas de todo o movimento histórico que pretendia descrever. Penso que
demonstrei isto nas páginas que precederam este tópico220.
Assim, a noção de patriarcalismo é mais uma metáfora do que um
conceito, ela perde o sentido, não pode ser entendida fora desta relaçao
com um momento histórico, vivido pelo autor, e que é percebido como um
momento de declínio do masculino, de seu poder, momento de feminização,

219. Sobre a importância da metáfora no discurso frcyreano em contraposição aos conceitos,


ver: MEDEIROS, Maria Alice Aguiar. O elogio da dominafào. Rio dc laneiro: Ai li.....
1984.
220. Ver, por exemplo, NIETZSCI 11., Eiicdru li. ('.repüuiilodot /./«/..< lislioa í.lições 70,19HH,
I REI II), Sigmund. () mal eitai na tultura Rio dc laneiro Imago, 1’198; MICIIEI I I
Julcti. zí mw/A e Sâo 1'aulo Maitilis lotites, I9MS,
IHIMVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 131

Imi izontalização, delicadeza, superficialidade, artifício, imagens que definiam


u ptóprio feminino, naquele momento. Esta noção, ao pretender descrever o
|M’ .ado, o faz em contraponto ao presente em relação ao qual o autor quer se
inmii ionar.
O problema da noção de patriarcalismo, portanto, no meu modo de
• iilcnder, não está precisamente na descrição insuficiente que faria do passado,
Itiiti nas motivações que embasam esta leitura no presente e sua repercussão
i ior para o entendimento da história brasileira. Freyre, mais uma vez, teve
...... < rito dc inventar uma forma de leitura do passado brasileiro, à qual, por
ui iri que se discorde dela, se fica preso, conforme ocorre cm relação aos mitos
ilii democracia racial c da miscigenação como definidores da nacionalidade, ou
ih< tno o da sensualidade do brasileiro.221
No meu modo de entender, quando Freyre demonstra uma nostalgia pelo
l|ni' chamou de patriarcalismo não é especificamente da forma da família c
il i iclação entre os gêneros que ele sente saudade, mas é, fundamentalmente,
tui lalgia dc uma forma de relacionamento social, que passava pela família,
|iniqiie essa servia de modelo e era a instituição central para todas as demais
ii lnçoes na sociedade. Podemos dizer que não existia, nessa sociedade, família
liu i ntido restrito, particularista, como vai chamar, nuclear, pois a família se
nln 1.1 e engolfava quase todas as relações sociais, tudo era familiar: boa parte da
»i onomia, da política, da sociabilidade, da produção cultural e artística. Como
niinlas vezes ele disse, a casa dominava o mundo exterior.222
A este tipo de relacionamento social o historiador E. P. Thompson
i I minou de paternalista, que considera um termo mais fraco do que a noção
ili patriarcalismo. Os dois termos, no entanto, remetem ao pater como figura
unhai na sociedade, à ideia de que as relações sociais devem obedecer a
iiiii.i hierarquia como a existente no interior da família, em que cada agente
*<n ial tem um papel distinto a desempenhar, sabem e reconhecem seu lugar,
Imvcndo inclusive um responsável pelo poder, pelo domínio, pelo governo,
o p.ilcr, mas isto não impede que entre eles sentimentos de afeto, proteção,
iliiilinção, obediência, respeito prevaleçam cm relação ao conflito, à dissensão,
.1 violência221.

) ■' I Ver: 1’ARKER, Rich.ud C.nffcn, f>nr.ew e paixies.


L VI Isto sc encontra inain explíi ito ainda no seu livro Oh de Casa!: em torno da casa
brasileira e sua /»o/<'i<i" !>•/•»< um tif>o nacional de homem, Brasília: Artenova; Recife:
InMituto |oai|nini NaIhku, |u/*i
'11 1'1 |( )MI’SON, r.dwiird I1 < ................... •mu», S, n/»nr< e caçadores
132 nordestino: invenção do “falo"

As sociedades patriarcais ou paternalistas seriam aquelas onde as relaçoei


familiares se atualizam em outras formas de dominação ou dependência c
onde a verticalidade prevalece sobre a horizontalidade. Thompson afirma qur
o paternalismo pode ser visto como um mito ou uma ideologia marcada quasa
sempre por uma visão retrospectiva, servindo para apresentar uma ordem social
vista de cima, como “uma sociedade de uma só classe”.224
A crítica de Thompson à noção de paternalismo não fica muito longe
da mesma lógica que preside as críticas ao conceito de patriarcalismo. O falo
de o paternalismo ser uma visão retrospectiva não quer dizer muito, porque
poderiamos dizer que a visão de que esta sociedade não seria paternalista
também é retrospectiva, já que o paternalismo, mesmo sendo um mito ou
uma ideologia, participou da organização da ordem social de que fez parte,
Embora venhamos a saber, hoje, que a sociedade não era tão paternalista
assim, muitos agentes sociais se moveram no passado a partir desta percepção.
Os textos clássicos de Thompson estão cheios de exemplos disto. O fato do
termo não descrever a totalidade das relações, ser frouxo, não o invalida, no
meu entendimento. Não me parece que o seja mais do que termos como
“feudalismo”, “burguês”, estes também são abstrações, generalizações, <pn
estão longe de descrever toda a trama social num dado período.22S
Até podemos concordar que noções como paternalismo e patriarcalismo
significariam uma visão de cima, mas concordamos pouco que estes remetam
a uma sociedade de uma classe só, primeiro porque, quase sempre, este termo
trata de sociedades onde as classes não existiríam, não estariam delineadas, pois,
conforme nos ensinou o próprio Thompson, só teremos classe com consciência
de classe e o paternalismo ou patriarcalismo se caracteriza, exatamente, pot
obstaculizar o desenvolvimento de uma consciência autônoma de classe poi
parte das camadas trabalhadoras, seja ela escrava ou não. E segundo, porque,
na verdade, o problema da crítica de Thompson ao conceito de paternalismo c
a aparente contradição de o ter que usar em vários momentos de seu trabalho,
mesmo o tendo descartado conceitualmente, é que este opera com mm
divisão entre o real e o ideal que não é possível fazer, a não ser que seja cm
termos teóricos226. Quando seu ofício de historiador o obriga a dar conta dc

224. THOMPSON, E. P. Costumes em comum, pp. 27 32.


225. Idein. Ihompson demonstra a manipulasilo •|l|e as camadas populares lambem tarem
do pacto paternalista cm textos como: "A economia nioial da multidão inglesa no século
hllHVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE.JÚNIOR 133

IRihcssos históricos que se desenrolaram empiricamente, ele esbarra com o


•rnalismo”, como esbarraremos no Brasil com o “patriarcalismo” à medida
i|ii< este era a dimensão ideal dessas sociedades, mas o ideal faz parte do real,
Hll urja, se os agentes de uma dada sociedade a consideram paternalista ela o é,
Ruiu estes agentes procedem a partir deste pressuposto, embora não o façam o
|*ni|»i inteiro e em todas as ocasiões, podendo até agir na contramão disto, em
il< i< i minados momentos.227
<) importante é proceder como Thompson e inquirir até que ponto os de
■Üjm compartilham desta visão-sabendo de antemão que devem compartilhar
ili alguma forma, senão a ordem social não se teria estruturado a partir destas
* •<-s. Sabendo também que não devem ter aderido completamcntc, porque
Ilida <• qualquer descrição da sociedade é parcial e deve ser remetida a seu
Hlgai de produção, e é isto que precisamos fazer com a visão patriarcalista da
........ lade brasileira. Este conceito nasceu ligado a uma percepção das relações
Uii inis que pode ser exemplificada com o seguinte trecho da obra Memórias de
Um senhor de engenho, de Júlio Bello:

Nunca me cansarei de louvar e exaltar os bons sentimentos dc afeto do negro


<• seus mestiços agregados às nossas casas, mais cm contato conosco e com
nossos interesses e a nossa vida.
Sem a menor cavilação, confesso que me comove profundamente as
manifestação dc solidariedade de meus criados.
Se acaso nos ausentamos por alguns dias, por duas ou três semanas de nossa
i i a, eles não podem disfarçar o regozijo com o nosso regresso que, aliás,
importa em maior soma de trabalho para eles mesmos. Limpam melhor a
velha casa-grande, dão aos móveis um tom mais festivo, enchem de flores
hescas os jarros nas salas, à mesa os bolos, os doces, os nossos preferidos pratos
dc jantar nos esperam, as fisionomias se iluminam ouvindo os episódios da
viagem e da ausência; em tudo e por tudo parecem nos agradecer o termos
voltado para dar-lhes maior trabalho e maiores canseiras.228

ver: CASTOR1AD1S, Cornéliun. // instituição imaginária da sociedade. Rio dc Janeiro:


1’iiz c Terra, 1982 c DKRRIDA, Jucqucs. Oi espectros de Marx. Rio dc Janeiro: Reluinc
I Iiimuiú, 1994.
I IIOMPSON, I dwatd I’ < .nsliimes i ui • •nuim, Senhores e caçadores.
)Jll III I I.O,Júlio. MemOlias«/•• um irn/uu <A eHçenhu, |i, 181
134 nordestino: invenção do “falo”

Esta é uma percepção de um homem da classe dominante que se colocu


como um pai que abençoa aqueles que, pacientes e resignados, trabalham para
seus patrões, trabalhadores que são capazes de uma dedicação comovente,
que torna prazeroso o voltar para casa e saber que a vida é “sempre boa dc
tamanhas e tão sinceras dedicações cercada”. Nos atos de indisciplina e dc
revolta, mesmo quando praticados contra o patrão, há quase sempre o exemplo
de fora e o interesse mal disfarçado de outros. Aconselhando a desobediência
e a vingança, trazendo o desassossego e a desordem à produção agrícola, a
pretexto de assegurarem garantias e direitos, os “paladinos” revolucionários,
símbolos de um novo tempo de achincalhe e desmoralização dos proprietários,
despertavam as vis paixões nos homens do eito.229
O conceito de patriarcalismo emerge a partir deste momento de perigo,
em que as hierarquias sociais de todo tipo ameaçam desabar, em que “uma
inqualificável propaganda de subversão e indisciplina originaram queixas ,r.
mais absurdas dos trabalhadores, o que levou muitos senhores de engenho ii

serem chamados à presença de simples e ignorantes sargentos, delegados di


polícia, para serem injuriados baixamente como se fossem malfeitores”. Um
povo que se deixa levar assim pelos mais extremados desregramentos precisava
ser paternalisticamente orientado, tão cedo poderia ter consciência de seus
direitos.

Força é tratá-los como criança, melhorando sua condição de vida para que
possa esquecer com o benefício, a utopia do sonho. Como uma criança ou
mesmo como um animal de maior estima porque, sem nenhum menosprezo
por ele, é necessário convir que entre nós é por ora ainda o mais infeliz e <>
mais desprezado animal da criação.230

Veja como as metáforas familiares operam para descrever toda uma forma
de relacionamento entre os indivíduos e os estratos sociais distintos: o povo <■
a criança que precisa da autoridade do pai bondoso para não se perder, animal
doméstico que precisa comer as sobras que caem do prato do patrão e ser bem
tratado para esquecer de sonhar a mudança de sua situação. E esta forma de vei
a sociedade que o patriarcalismo descreve, este é uma metáfora que se relaciona
com o universo masculino, com aquilo que essa sociedade considera o papel

229. BKI .1.0, Júlio. Mrmóriiu df wnhor <!r enffnbo, p IH2


UlIltVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 135

il>> . homens: comandar, proteger, dominar, o que estava sendo ameaçado até
|m l.i classe até então passiva, o povo.
(3 patriarcalismo, como conceito, nasce da visão de homens pertencentes
ii um grupo social que se sente emasculado, perdendo potência, homens
liagilizados, amolecidos, desfibrados, senis, depauperados, senão fisicamente,
m as do ponto de vista de seu poder e status, homens em declínio, ameaçados
|tur novos grupos sociais que vêm dividir seu espaço, encurtá-lo, modificá-
lo I lomens do Norte, em crise econômica e em declínio político, homens
se agarram às tradições que descrevem como patriarcais até porque foram
H» li adições de uma sociedade onde seus pais ou avós dominaram e foram
poderosos. Conceito que emerge não apenas para descrever o passado mas para
ap.n dc forma reativa em relação às várias mutações que se davam no presente.
( <>mo resposta a uma sociedade que se efeminava, era apresentado outro
UKidclo, aquele dos patriarcas, que se devia resgatar cm seus valores positivos.
N.in importa tanto que esse patriarcalismo possa não ter existido no sertão,
fumo afirma Djacir Menezes, o que importa é que essa descrição do passado
(Io Nordeste e do Brasil se impregnou de tal forma no imaginário nacional que
r pieciso entender como esse processo se deu. O discurso de Freyre funcionou
pmquc foi feito dentro de uma dada conjuntura que o requisitava, é isto que
H nho tentando mostrar.231
Se o presente significa a concentração da propriedade da terra, a
Industrialização do campo, o patriarcalismo é a época em que “os senhores de
engenho sabiam ser donos de terras”. Eles a amavam como uma amante, não a
(•«respeitavam. Se agora era a época do declínio social de muitas famílias, da
lU Mcntc indistinção entre classes, o patriarcado era a época da distinção. Se
iijhh.iera o momento do encurtamento dos horizontes para muitos indivíduos
" lidos do meio rural, o patriarcado era o mundo largo, a mesa farta, os homens
«lu lios em seu poder, com terras que eram verdadeiros reinos. Se a vida agora
• oi marcada pela pressa, pela dispersão dos entes queridos, o patriarcado era a
fpm a d<> tempo lento, do aconchego afetivo. Sc agora parecia inaugurar-se um
h mpo da mulher, o patriarcado era o tempo dos homens.232

MENEZES, Djacir. O outro Nordeste. 2. ed. Rio dc Janeiro: Artenova, 1970. Para a noção
de imaginário c para uma história do imaginário, ver: CASTORIAD1S, Cornclius. O/>.
o/.; d crúifâo histórica. Porto Alegre Arte c Ofício Ed., 1992; DELEMEU.Jcan. História
</» wir</o no Ocidente Silo Paulo < ompanhia das I .etras, 1989; SOUZA, Laura dc MelLo
r () diabo e a l'ri m dr Santo < àm Sa<i Paulo: I ompanhia das Letras, 1986.
I REYRE,( ii II ui to "8 <"( Aillgos Ni mu lados), / de Pernambuco, Recite, 1 S/l 1/1924,
p l.c.S.
136 nordestino: invenção do “falo"

Mas a obra de Freyre, de recuperação da história da família patriarcal


no Brasil e da sociedade patriarcal não se limita, apenas, a seus textos. Ao
encabeçar o movimento regionalista e tradicionalista, movimento cultural <
político, que foi decisivo na elaboração da ideia de Nordeste e de seu habitante,
o nordestino, Freyre milita no sentido da preservação do que ele definiu
como tradições nacionais e regionais, que seriam fundamentais na definição
de nossa índole, constantes de caráter que precisavam ser afirmadas. Uma
delas, parece-me, foi exatamente a de sermos uma sociedade patriarcal, no
sentido de ser necessário preservar certos valores “viris” de nosso povo que
estavam sendo ameaçados pela abolição da escravatura, pela República, pi la
urbanização, pela modernização, pela industrialização. Era preciso militar cm
favor da preservação ou se não pela constituição de um tipo regional capaz dr
resgatar essas tradições de virilidade, coragem e valentia, que as novas elitCN
urbanas pareciam não ser capazes de afirmar, sob pena de cada vez mais nos
subordinarmos, nos passivizarmos, nos efeminannos. Este macho seria <*
nordestino.
A Invenção de um Macho

I) A EMERGÊNCIA I)A IDEIA DF.NoR DESTE F.O NORDESTINO.

O tipo regional nordestino não existia até as primeiras décadas do


■ mio xx. Surgiu quase ao mesmo tempo em que o recorte regional
Nordeste, ou seja, em torno da segunda metade da década de 1910. A
primeira referência que encontramos ao termo nordestino, para designar
u habitante da área ocidental do antigo Norte, no Diário dc Pernambuco,
poi exemplo, data de 15 dc novembro de 1919, quando o jornal se refere a
mu parecer do deputado Ildefonso Albano, do Ceará, sobre um projeto do
deputado Eloy de Souza, do Rio Grande do Norte, que instituía uma caixa
•«pecial, para financiar os esforços particulares visando a irrigar as terras da
n )>,ulo. Ao se referir a um discurso proferido pelo mesmo deputado, sobre
i Mc assunto há dois anos, o jornal o chama dc “deputado nordestino”.'
O termo nordestino aparece para nomear os habitantes de uma
■lu a inicialmente compreendida entre os estados de Alagoas c Ceará,
< ndo às vezes aplicado para nomear também os habitantes do Piauí e
Maranhão,com menor frequência. Podemos contatar, no entanto,que esta
identidade regional vai se afirmando dc forma muito lenta, convivendo,
pi lo menos até os anos 30, com outras designações como: nortista, que
«i preserva ainda hoje no Sul do país, cearense, designando os habitantes
do Nordeste que migravam para a Amazônia cm busca da borracha,
também chamados dc paroaras ou arigós, sertanejos, brejeiros, praieiros,

I N/u "Contia o ll.igclo iliia «o 1'iulilimil <lu Norilrilr nu Cíiinurii Frilrriir', l>iihin
Rrc Uc, 15/11/1*110, |i ‘
138 nordestino: INVENÇÃO DO“tAHF

tipos regionais que, como veremos, serão paulatinamente incorporado,


figura do nordestino.
No discurso das elites regionais, notadamente daquelas ligada* ii
Pernambuco, que construíram a ideia de Nordeste, a identidade regiotuil
nordestina e seu tipo regional serão melhor configurados a partir dos .nmi
20 e se afirmarão, de forma definitiva, nos anos 30. Já entre as camaiLt*
populares, como percebemos observando o discurso do cordel, a identidiiili
regional nordestina só começa a ser assumida e se generaliza a partir <lo
final dos anos 30, coincidindo com o crescimento da migração para o Su|
do país. Embora tenhamos encontrado a primeira referência ao tcrmn
nordestino num cordel que data de 1937, parece-nos que esta design a, .iu
regional só se torna recorrente neste discurso, nos anos 50, convivendo al<>
hoje com outros tipos regionais, muito mais comuns neste discurso, coiim
o sertanejo, o brejeiro, o matuto etc.
O nordestino, assim como o recorte regional Nordeste, nasceram u
partir de uma série de práticas regionalistas e de um discurso regional qui
se intensifica entre as elites do Norte do país, a partir do final do século xix,
quando o declínio econômico e político desta área levará a uma progressiva
subordinação deste espaço em relação ao Sul do país, notadamente S;lu
Paulo. Foi na articulação regionalista das elites dos estados que viviam d.m
atividades agrícolas, notadamente do açúcar e do algodão, preteridas pi Io
Estado Nacional, quanto à sua política fiscal, de créditos, de obras públicil»,
que favoreceríam principalmente a área cafeeira, - aliada às reivindicaçoc»
no sentido de “solucionar o problema da seca”, principal argumento
político de que estas elites dispunham para reivindicar obras públicas c
investimentos, desde que a partir da seca de 1877-79 haviam descoberto o
potencial político deste tema -, que a ideia de Nordeste foi sendo gestada.
O termo Nordeste, que inicialmente designava, apenas, a área Ui
atuação da Inspetoria de Obras Contra as Secas, simples ponto colatei .il.
vai ganhando, nos discursos destas elites, conteúdo histórico, cultiii.il,
econômico, político e até artístico.2 3 O Nordeste é então inventado como

2. Sobre a emergência da seca como um problema regional, ver: AI.BIJQJJERQJII' |l< ,


Durval Muniz de. Falas de astúcia e de angústia: a seca no imagindrio nordestino de twoldcina
à solução (1877 -1922), Campinas, IJNICAMP, 1988 (Dissertação dc Mestrado).
3. Sobre a emergência do recorte regional Nordeste, ver Al .Bl IQI II1 RQIII |l< , Dutviil
Muniz dc. .7 invenção do Nordeste e outras artes Sao Paulo; Coitcz; Ro ilc, Massangana,
1999.
|t|l|IVAI MUNIZ I)E ALBUQUERQUE JÚNIOR 139

1*1''"." regional. Inicialmcnte o termo aparece sempre vinculado aos dois


Wllns que mobilizavam as elites desta área do país, naquele momento, e
B|V fizeram emergir a ideia de Nordeste: a seca e a crise da lavoura:4*

< ) Congresso dc Agricultura do Nordeste Brasileiro, do estudo das condições


dc produção agrícola desta zona do país, conclui preliminarmente, que a
agricultura dos Estados do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e
Alagoas, acha-se sob a pressão dc duas causas principais, que entorpecem a
tclcrida produção, e impedem em absoluto o seu desenvolvimento:
I a falta de transportes regulares dos produtos agrícolas nas desorganizadas
c decadentes vias férreas da Grcat Western;
m uficiência de capital de movimento.
A Comissão Especial da Câmara, nomeada por indicação do deputado
paraibano Sr. Otacílio Queirós de Albuquerque, para examinar o angustioso
problema das secas do nordeste brasileiro e aproveitados os bons estudos a
ic -peito propôs (...)
• a adoção de medidas que resolvam satisfatoriamente o referido problema
(...).’

|á o tipo regional nordestino vai sendo elaborado, ao longo dos anos


.'n, na confluência de um discurso político e de um movimento cultural
u pionalista, que tem como centro a cidade do Recife, para onde acorria
gi .nu lc parte dos filhos das elites agrárias dos Estados que eram identificados
imiio pertencendo ao Nordeste. Este regionalismo político se manifestava
dc lorma crescente entre as elites dos Estados do Norte, notadamente
.upirlas vinculadas à produção dos principais produtos agrícolas,o açúcar e
n algodão, desde pelo menos o final do século anterior, quando a realização
||ii Congresso Agrícola do Recife de 1878 explicitou as divergências
ilc interesses entre esta área, cm declínio econômico e político, que se
<ii i ninou com a Abolição da escravidão, na década seguinte, c a emergente
ilir.i i afeicultora do Sul do país. Porém, neste começo de século, com a
lir.i,ilação do amplo federalismo republicano, este regionalismo tende a se

I N/a. “Congresso <la Lavoura do Nordeste Brasileiro”, Diário de Pernambuco, Recife,


19/12/1922, p. 1,< I
I, N/a. “Congresso de Aglictlltuia do Nonlestc Brasileiro", Diário de Pernambuco, Recife,
17/01/192.1, p l,i 1, N/a < onlia o flagelo das sei as Problema do Nordcsle na Câmara
140 nordestino: invenção do “falo"

acentuar à medida que o novo regime é acusado de privilegiar os interesse*


econômicos e políticos de algumas áreas do país em detrimento de outras
A regionalização econômica e política do país é vista como inevitável,
cabendo aos estados com identidades de interesses se aliarem no sentido
de atuarem em conjunto no plano federal:

Em outubro próximo, Recife será sede de um congresso regional reunido


especialmente para tratar das questões relativas ao Nordeste. Organizaram se
os programas de trabalhos, com aproveitamento de assuntos que interessam
a Pernambuco e seus vizinhos, identificados todos eles numa semelhança d<
vida e de orientação criadora desse vínculo poderoso, que é a comunidade de
interesses.6

Esta articulação regional das elites dos Estados que estavam


economicamente ligados a Pernambuco se deu, não apenas no sentido dc
defenderem seus interesses junto ao Estado Nacional, enfrentando assim
unidas às outras elites regionais do país, mas também para se defenderem
das ameaças à sua dominação, que grassavam na própria região, como
a representada pelo cangaço, que nos anos 20 alcança, com o grupo dc
Lampião, maior visibilidade e parece representar um perigo cada vez maior
para a ordem social. Como os grupos de cangaceiros não respeitavam .v.
fronteiras estaduais, circulando numa área que ia da Bahia ao Ceará, c
as volantes que os perseguiam tinham que respeitar estas fronteiras, cm
1926, o governador de Pernambuco, Estácio Coimbra, toma a iniciativ.i
de fazer uma reunião com os chefes de polícia de todos os Estados onde
os cangaceiros atuavam, para que aqueles se articulassem e que as volantes
policiais pudessem agir em conjunto, não respeitando fronteiras estaduais,
inaugurando, assim, o que poderiamos chamar de uma atuação regional d.i
repressão policial.7
Mas a grande novidade do regionalismo nordestino é que ele se
caracteriza por uma ampla militância cultural e intelectual no sentido dc
definir a região e seu habitante. O Movimento Regionalista eTradicionalist.i,
encabeçado por Gilberto Freyre, que volta dos Estados Unidos, no iim io
dos anos 20, tem na fundação do Centro Regionalista do Nordeste, no

6. N/a. "Partidos rcgionuiii*! /)idiio de l'eimimhiico% Rc< itr, I S/O4/P/2S, p I,• I


7, N/a. "( 'onibalr ao If.imlitihiik»**( / hJ/n> dc l*eiihifiibmo, Rn Uc, 29/M/PJ2G, p |, < 2
IHIKVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 141

iino <lc 1924, o seu ponto dc partida. O Centro congrega inicialmente


políticos e intelectuais pernambucanos ou dos estados vizinhos, que
moi.un em Recife, mas paulatinamente vai recebendo filiações de figuras
rqncssivas da política e da intelectualidade de todos os Estados que são
hl< titificados como nordestinos. Ele se torna o locus institucional do que
1'jcyre denominou de discurso regionalista e tradicionalista e, ao lado do
lloi s, importante centro de distribuição de sentido para o ser Nordeste e
u < i nordestino:

Em reunião, segunda-feira, na residência do Dr. Odilon Nestor ficou


estabelecida, cm traços gerais a ideia da fundação, no Recife, de um Centro
Regionalista.
Presentes os Srs. Dr. Odilon Nestor, Dr. Amaury de Medeiros, Dr. Alfredo
Ercyre, Dr. Antônio Inácio, Dr. Luiz Cedro, Dr. Carlos Lyra, coronel Pedro
Paranhos, Dr. Aníbal Fernandes, Dr. Ulysses Pernambucano, Moraes
Coutinho e Gilberto Freyre. Foi aclamado presidente o Dr. Odilon Nestor, a
quem se deve a iniciativa da reunião.
Propõe-se o Centro a exercer viva ação intelectual e social, uma vez
congregados, em seu meio, os elementos mais representativos da cultura do
Nordeste. Anima-o o largo patriotismo nordestino, que se exprime na defesa
dc nossas coisas e das nossas tradições, no aproveitamento delas como motivo
dc arte, no desenvolvimento dos interesses do Nordeste, região cujas raízes
naturais c históricas se entrelaçam e cujos destinos se confundem num só.8

lá cm sua primeira reunião o Centro define sua linha dc atuação que


Irm como eixo norteador uma militância cultural para definir o que seria
o Nordeste c o que caracterizaria o nordestino. Em sua segunda reunião c
Apiovado o programa do Centro que ficou assim definido:

I O Centro Regionalista do Nordeste com sede no Recife, tem por fim


desenvolver o sentimento da unidade do Nordeste, há tão claramente
< aractcrísticas na sua condição geográfica e evolução histórica, e, ao mesmo
tempo, trabalhar em prol dos interesses da região nos seus diversos aspectos:
sociais, econômicos, culturais.

N/a "t entro Rcgionallita <lo Nunl> n ", / </«• l'r>nambuto, Recife,28/04/1925, p. 3,c.
4.
142 nordestino: invenção do “i-Aiir

2 - Para isto será o Centro construído e organizado dentro do espírito


de comunhão regional, aproveitando os bons elementos da inteligêm Ia
nordestina, com exclusão de qualquer particularíssimo provinciano, qiici
quanto às coisas, quer quanto às pessoas.

5 - A fim de congregar os elementos da vida e da cultura nordestina, o Centiu


procurará:
a) organizar conferências, exposições de arte, visitas, excursões;
b) manterem sua sede biblioteca e sala de leitura,onde se achem representada»
as produções intelectuais do Nordeste no passado e no presente;
c) promover a cada ano ou de dois em dois anos em uma cidade do Nordei i>,
um congresso regionalista;
d) editar uma revista de alta cultura “O Nordeste”, dedicada especialmcnlo
ao estudo das questões nordestinas e ao registro da vida regional.9

O regionalismo passa a ser apresentado como uma nova forma dt


pensar a realidade nacional e como a nossa forma própria de produzir
cultura e arte. Nossa própria história, pelo seu desenvolvimento em ár< i
apartadas do território nacional, pela própria ação regionalizadora du
colonização portuguesa, que combatia a formação de uma consciêm ia
nacional na colônia, nos teria dado, muito cedo, uma consciência regionul
e formas regionais de expressão de cultura. À medida que, desde o século
anterior, a imigração estrangeira modificava profundamente a cultura do
Sul do país, o Nordeste veio a se constituir na expressão do que havia di
mais brasileiro, daquela civilização tropical criada pelo encontro das tn u
raças formadoras da nacionalidade:10

Aviva-se entre os nordestinos a consciência de representarem um Brasil mais


brasileiro que o representado pelo Rio, por exemplo: e sob essa consciêin i.i
o desejo de procurarem animar a sua vida em expressões novas, modernui,
atuais, do espírito tradicionalmente brasileiro.
Seria lamentável que o Recife se tomasse um segundo Rio em arquitetui.i,
quando nas linhas tradicionais de suas casas e igrejas não lhe faltam sugestoc»

9. N/a. “Regionalismo e nacionalismo’*, Didrio </<• Pernambuco, Re< ilc, 29/08/1924, |> 1, r *»,
N/a.“Centro Regionalista", Didiio </<■ /’cinu„»/>w«, Rer ilc, 07/05/1924, |>. I,c 5.
10. I Rf.YRI'., Gilberto. “Açiio regionalista no Nordeste", Didno </< /’<•»nambino, Rerile,
07/02/1926, p. 3,c.4.
|||I|IVAI MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 143

paia a nova edificação, por mais atual ou moderna que ela seja nos seus fins
c propósitos.
Note-se, por exemplo, a influencia do Rio sobre a cozinha regional no
Nordeste. E melancólica.
()s usineiros e os negociantes de algodão aprendem a comer no Rio ou na
Europa coisas de nomes franceses e voltam com vergonha de comer angu e
manauê e tapioca."

f .te artigo dc Freyre busca responder uma questão que passou a


|fi feita constantemente aos regionalistas e tradicionalistas: eles seriam
Mp.u.distas? Freyre procura sempre responder que estávamos diante dc um
liuvtt iegionalismo,que não era mais provinciano em sua forma política, por
im li atava de congregar todos os Estados de uma região, nem era pitoresco
pll exótico do ponto de vista cultural. Seria um regionalismo afirmativo,
< i i.nl<>i, que buscava não a separação política, mas o congregar de interesses
ilc uma vasta área do país, congraçamento que seria favorável ao próprio
|hil'i, pois um país é formado de regiões e quanto mais fortalecidas estas
Btlvcssem, melhor seria. Falar dc separatismo nordestino era tão estranho
■uno falar de separatismo paulista, ate porque, neste caso, interessava a
Miin Paulo “espalhar o seu imperialismo econômico sobre outras áreas do
|Wlh", o que seria também benéfico ao país à medida que contrabalançava
ii imperialismo americano e dava um choque de energia às partes menos

||)< igicas c passivas do país.* 12 Era preciso clarificar cada vez mais o sentido
iln n gionalismo nordestino:

Admira como senhores escritores que se julgam civilizados e universalistas


tenham tão limitadas possibilidades mentais que não aprendam o alcance
c nem mesmo a finalidade criadora da campanha regionalista. E já que
escrevo para o “Diário”, o iniciador desta nobre campanha reivindicadora,
permita-me que lance aqui estes reparos, revelando a minha atitude em face
d<> movimento c traduzindo, ao mesmo tempo, de par com as razões que a
definem além do contingente pessoal, sugestões que parecem aproveitáveis.
I )izem os pseudonovos e emancipados que o tradicionalismo, o regionalismo,
'■;)<>, nada mais nada menos, que a self indução da velha rotina, mascarando

I RICYRI'.. < ii<> "< • Nouli < |oi.<ii'.i i ", I >i<ino </<• 1'ernanibuco, Recife, 26/03/1926,
p 3, cc. 4 r S.
Iili in “SAo l’utll<> ncpai illlnLi t I h,l> ia J> / • x,ph/*í/i <», Rc« ilc, 21/10/1926, p 3, <. 5.
144 nordestino: invenção do“fai.(i"

os intuitos para iludir melhor. Parecem que não repararam ainda, os t.m
senhores, terem estes movimentos reacionários, em todos os tempos e eu)
todos os meios, as forças inteligentes mais representativas. E o que se dá com
a presente campanha nordestina, posto que em suas hostes não se achem
definitivamente organizadas, porque em período inicial. Tão em início r.ia
que a sua irradiação se faz ainda por movimentos concêntricos, partindo du*
colunas autorizadas deste severo órgão em artigos e editoriais, ou formado»
pelos mais reputados e realmente ilustres escritores.13

O artigo acima fala da importância da circulação do Diário </<•


Pernambuco para a difusão do ideário regionalista e tradicionalista po|
toda a região. Muitos de seus correspondentes nos Estados passaram a
integrar o movimento e enviar matérias sobre o tema para aparecerem no
jornal. Seu proprietário, o Dr. Carlos Lyra Filho, foi um dos fundadores dii
Centro Regionalista. Quando das comemorações do centenário do Diário,
em 1925, os membros do Centro elaboraram um encarte que circulou im
dia do aniversário do jornal, chamado Livro do Nordeste, que é um dou
mais importantes documentos desse processo de elaboração da identidade
regional nordestina. Dele fazem parte artigos que abordam diferente,
aspectos do que era definido como cultura nordestina e neles aparecem,
por diversas vezes, descrições do que particularizaria o nordestino, seja do
ponto de vista físico, seja do ponto de vista psicológico, seja do ponto d<
vista cultural. Dizia o seu prefácio:

Com relação ao Nordeste, constitui este grupo de estudos pequeno esforço dr


estimativa em torno de alguns de seus valores mais característicos da região,
pequeno inquérito das tendências da vida nordestina — a vida de cinco ou sei»
Estados cujos destinos se confundem num só e cujas raízes se entrelaçam
durante os últimos cem anos; espécie de balanço de nossas perdas e de nos-.o»
ganhos neste período”.14

O artigo de João Vasconcelos define o movimento regionalista como


um movimento reacionário ao que considerava tendências da perda da
particularidade regional, de sua cultura própria, devendo empreender uma

13. VASCONCELOS, Joio. “Pelo irgionulismo", Ihilrin ili- Pirnomhuiu, l<<« dr,()7/l1/192S, p
I
14. N/u "0 I .ivro do Noidcar", Hiihio l’<'niom/>uco, Rr< dr, 19/01/1926, |> I, < 2.
IIHMVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 145

I11L1 pela “verdadeira expressão na arte e na vida” do todo regional. Não


«r nataria de um movimento rotineiro, como o acusavam, mas visava,
pi. t .imcntc, a quebrar a rotina dc dependência à cultura estrangeira,europeia,
que marcava nossa sociedade. Não se podia entender como os modernistas
|l pi opunham a renovar a arte nacional copiando o “simbolismo francês”,
i > que o regionalismo tradicionalista queria era que “viéssemos a nos
ti ml tecer, a respeitar nossa índole ao nos expressar culturalmente. Sermos
timijosamente nós mesmos, seguindo as sugestões diretas do meio em
Mlic vivíamos”. Dar-nos como a um indivíduo “uma personalidade viva
i l<iite, uma fisionomia inconfundível, um todo inteiriço e harmônico”,
i mtigindo o efeito dissolvente do cinema, produzindo uma arte nossa,
lilir repercutisse nossos valores.15
I lavia uma proposta clara, portanto, do movimento regionalista
v tradicionalista de contribuir para traçar e fixar o perfil do homem da
ngiao, de dar a ele uma “personalidade”, uma fisionomia16. Para isto
lu> entivou que este regionalismo se explicitasse em obras de arte, tanto no
i iimpo das artes plásticas, como na literatura, visando a “dar expressão ao
frp.u mal”. Era preciso, inclusive, educar o gosto da população, para que, em
Vrz dc admirar tudo que era estrangeiro, gostasse do que era regionalmente
liic.so. Era preciso que “a matutinha sonhadora do interior deixasse de
ii entusiasmar pelos heróis do faroeste americano e visse que a seu lado

/< Vaqueiro era capaz de inúmeras proezas, que ela desvalorizava por
i miviver com elas quotidianamente, e sem recorrer aos truques do cinema
iiiiici icano”:

Explica-se: a matutinha não tem a exata concepção desses valores; falta-


lhe uma consciência nítida do que seja a vida dc um vaqueiro, na escala das

|t VASCONCELOS,João. O/>. cit.


|(< Entre 1830 c 1840 desenvolve-se na Europa o pensamento fisiognômico moderno que
Irm como fundador Johann Caspar Lavater, que definia: “A fisiognomia é a ciência dc
conhecer o caráter (não os destinos aleatórios) de um ser humano lato sensu a partir dc seus
traços exteriores; a fisionomia lato unsu seria, portanto, os traços exteriores do corpo e dos
movimentos de um ser humano, na medida cm que, a partir daí, é possível conhecer algo
de seu caráter". E.stc tipo dc «alter nasce da crescente ansiedade social diante do espetáculo
das multidões c do anonimato qm estas proporcionavam aos seres considerados perigosos c
da necessidade dc «<■ d< '.i nvolví tem litrma" de «alter que pudessem ajudar na identificação
di stes indivíduos anu açadno Vi i ll< >1 I I, Wllli Op cit.', IIAROCIIE, Claudinc;
( ()l IR I | NI', |catt |a< que» t >p , it
146 nordestino: invenção Do“tAiir

realizações, e do que sejam os fazedores de fita com as suas proezas de t tniil


fôlego.
Ninguém procurou ainda mostrar-lhe a profunda diferença entre o ani.ivil
e insidioso fascínio das miragens e as contingências enobrecedoras
realidade.17

O movimento regionalista e tradicionalista investe, portanto, m|


sentido de definir o que seria a realidade nordestina e a sua diferença < m
relação aos simulacros de realidade que eram oferecidos pela vida modcinnj
pelo cosmopolitismo urbano. O movimento se caracteriza, pois, por tentai
ancorar a realidade regional e a definição da fisionomia de seu habitante ut|
passado, um passado definido como tradicional, passado rural, quando nAn
escravista e que Freyre define como patriarcal. O nordestino será invenl ad >,
será definido em seus traços físicos c psicológicos, em grande medida, p< l.t
produção cultural e artística vinculada a este movimento. Nos anos 30, cofl|
a publicação das obras clássicas da sociologia nacional de Gilberto Frcyu ,
e de toda uma produção artística, literária e ensaística sob sua inspiraç.iu
e patrocínio, a figura do nordestino se afirmará definitivamente como um
tipo regional brasileiro.18
Ainda nos anos 20, são patentes os sinais de que a campanlui
regionalista está tendo sucesso em fixar o Nordeste como um novo recot Ir
regional no país: em 1922, ao concorrer à cátedra de geografia do Gimr.m
Pernambucano, Agamenon Magalhães escreve uma tese com o título < >
Nordeste Brasileiro, primeira obra que teria este título e que trata de dclinli
os aspectos físicos e humanos desta região; em 1925, é exibido um filme
com o título O Nordeste Brasileiro, que pretende mostrar “o Nordeste com
seus curiosos aspectos, usos e costumes”; em 1927, surge, em Macem,
um jornal com o título O Nordeste. Este não seria, no entanto, o primetm
periódico a ter esse título; já em 1922, surgira em Fortaleza, um joiu.il
vinculado à Igreja Católica, que recebeu o nome de O Nordeste. O Didmi
de Pernambuco saúda assim seu aparecimento:19

17. VASCONCELOS, João. O/>. cit.


18. Podemos dizer que este movimento regionalista e tradicionalista investe naquilo qut>
podemos chamar de invenção das tradições para se contrapor ãs mudanças que estavam
ocorrendo na sociedade brasileira neste momento. Ver: IIOBSBAWN, i.m, RANt .IR.
Terencc. ()[>. cit.
19. MAGALHÃES, Agamenon O Not.l.ac Hki ii/eiru. <*<l. RccUr: I )epurtuincn(o <ii
( uliuia/ (lovrmo «l«» I.Mido, 1970; / hdno dc IbnhiHiòniv, I i' 4/OH/I92S,p H; liiíliiodi'
|pl|O U MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 147

(• novo diário que se apresentou com feição material toda nova fez sua
profissão de fé dizendo-se ‘consagrado aos interesses legítimos de uma vasta
trgião de nossa querida pátria, região escaldada de sol, em que brasileiros
nHrcm periodicamente, a implacável hostilidade da natureza, ainda de todo
n.io dominada pela inteligência e pelo esforço do homem.
'Nordeste propugna o levantamento moral, social, político, econômico,
Intelectual deste trecho importantíssimo de nosso país, a que somente tem
l.iltado, por parte dos governos, auxílio eficaz, inspirado na compreensão
nítida da necessidade humanitária e imperiosa de assegurar às nossas terras
admiráveis ‘o elemento que, nos anos normais, faz a sua surpreendente
f futilidade’.20

f ta campanha regionalista procura convencer a todos de que “o


N.u.li ste não é uma palavra inútil e vã”, correspondería a “um sentimento
d« profunda unidade, aproximativo da população dc diversos Estados”.
(I «entimento de nordestinidade, que esses discursos procuram criar,
iiiu.. et ia da certeza da unidade regional e de seus habitantes, marcados por
«<>nt< i imentos históricos comuns, como o da expulsão dos holandeses,
i|<« teriam servido para sedimentar, nos nordestinos, o sentimento de
l>i i.ilidade e dc regionalidade. Para divulgar e sedimentar a identidade
Hgioii.il nordestina e definir o perfil de seus habitantes, os membros do
i entro Regionalista não apenas publicam artigos e obras de “interesse
hgional”, como promovem uma série dc “eventos regionalistas”, práticas
iIIm m .ivas e não discursivas que fixam a ideia de região, e que traçam

iiiii.i fisionomia para seus habitantes, além de organizarem o que seria uma

"i iillura regional”.21


I ,ogo que é fundado, o Centro Regionalista nomeia uma comissão
imiiposta por Amaury Medeiros, Aníbal Fernandes e Gilberto Freyre,
se encarrega da propaganda da ideia regionalista no Nordeste.
"I h .eutiram um meio de entrar o Centro cm imediato acordo com os
flrinentos representativos dos demais estados do Nordeste. Lembrou o

/ ’<•> nambuco, 14/07/1927, p.4, c. 2; N/a. “O Diário no Ceará - ‘O Nordeste’aparece", Diário


ilr Pernambuco, Recife, 20/07/1922, p. 3, cc. 4 e 5.
jll N/a. “O I )iário no Ceará '(> Nmdeste'aparece", Diário ác Pernambuco, Recife, 20/07/1922,
p 3,cc. 4 e 5.
11 N/a. "(3 I ivro do Noidi l< ", / •>./><■ ,/. Pernambuco, Recife, 19/01/1926, p. 3, c. 2. Para as
noçòe» de ptálii a <Iim ui '.o i < inl.i dl’« iikIv.i, ve. I < )l l( Al II I, Mi< liei. // arqueolo^ici <b>
’ irtAe»
148 nordestino: invenção do“mhí’

Sr. Gilberto Freyre que os organizadores do Centro escrevessem .1 ih


amigos nordestinos, simpáticos ao programa do Centro, sugerindo a cMm
amigos que agitem a ideia regionalista e procurem organizar nos respecl tvti|
Estados, com elementos representativos, grupos regionalistas, formando
se por esse meio uma federação que venha a permitir uma verdadeira m, .!•»
em conjunto”. Enquanto esses grupos não se organizassem nos próptlo*
Estados, era conveniente que o Centro aceitasse adesões diretas de <>uli<H|
Estados, o que passou a acontecer com frequência. A cada nova reunbiil
do Centro, que ocorria na casa do Dr. Odilon Nestor, todas as scxt.i»
feiras, acompanhada de acepipes da culinária regional, anunciam-se nov.ni
adesões vindas dos Estados vizinhos.22
O Centro passa a oferecer a personalidades que o visitam: “almoçoA
regionais”, excursões a locais “regionalmente significativos”, como cid.id. ■
históricas, velhos engenhos, igrejas coloniais, tudo acompanhado de uiim
“orquestra típica”, tocando música regional. Realizam-se exposiçlin
regionais de artes plásticas. Os filiados de outros Estados são scnipm
recepcionados no porto pela direção do Centro. Resolve-se, por fim,
promover entre os dias 3 e 9 de novembro de 1924 a “Semana da Árvorr",
que consistiría em durante seis dias realizar conferências sobre as árvox •
nos principais colégios do Recife, publicarem-se em jornais editon.ih
e artigos sobre as árvores e promover três concursos, com o prêmio <l<
50S000 para cada um: a mais bela fotografia de árvore nordestina; 11
melhor poema sobre árvore nordestina; o melhor desenho ou a mellmt
caricatura de propaganda de culto à árvore. Nessa oportunidade a jaquciiu
foi escolhida como a “árvore regional”.23

Era do programa um almoço regional ao distinto urbanista que ora nos visita
e o ponto escolhido para esse ágape foi o engenho Monjope, uma das m.iis
antigas propriedades agrícolas de Pernambuco e cuja casa-grande - palaccii
que mercc da Providência ainda conserva um estilo puramente colonial loi <1
luxuoso solar do barão de Vera Cruz, autêntico Carneiro da Cunha, doutor dr
borla e capelo, político de prestígio (...).

22. N/a.“Centro Regionalista do Nordeste", Diário de Pernanduto, Rc< ifc, 11/05/1924, p. S,< 2
23. EREY RE, Gilberto. “Urbanista Altred Agache”, /Hário </<■ Prrnum/imo, Rei ife,06/09/1927,
p. 1, c. 3; N/a. "Centro Regionalista A instituiçAo da 'Semana da Arvoie”, Diárm ,/.
Pernarnhueo, Recile, 17/08/1924, p. I, i <>, N/a. "Exposição regional de pintura", />ián" <!>•
Prmiind’n<o, Rei ite, 2(1/10/1926, p 4, i 7
|*VAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 149

I )< pois de ligeiro passeio pelo engenho, do banho de piscina em que


ipiovcitaram parte do leito do riacho Monjope, foi servido o almoço em
iluas mesas que se repetiram - uma suculenta buchada dc cabrito, regada a
.....njopina e água de coco verde, frutas regionais, canjica e tapioca à sobremesa.
I hirante o almoço, uma orquestra típica - bandolim, cavaquinho, violões e
pandeiro - tocou sambas e maxixes e foram acompanhadas algumas modinhas.
< urioso, o prof. Agache pedia explicações sobre o que via e o que comia. O Dr.
( hlilon viu-se abordado para dar-lhe, em francês, a palavra correspondente a
< avaquinho e maiores embaraços teve o Dr. Costa Carvalho para um termo
exato que significasse buchada.24

A atuação do Centro Regionalista repercutiu ate no carnaval


Ípi iii.imbucano dc 1926. Um autor, que preferiu ficar no anonimato,
.ti .mando apenas C. S., compôs uma marchinha carnavalesca chamada
Iregional, que satirizava a atuação do Centro e de cada um de seus
membros, o que serviu para mostrar que havia quem visse com ironia esse
n pnmalismo militante, já no seu nascedouro:

Vai fazer grande sucesso/ este cordão regional/ constituído em Congresso/


nos dias de Carnaval.
Bonito como uma flor/ de pé de maracujá/ Doutor Odilon Nestor/ é do
cordão o ‘papá’. (...)
Porta estandarte é o Gilberto/ que o frevo e os outros ‘passos’ mais/ aprendeu
por ser esperto/ ali no clube das Pás.
Quando há mesas bem servidas/ ninguém como ele, ninguém/ entre tanto
nas ‘comidas’/ e nas bebidas também. (...)
I lardman tem comprovada/sua regional tradição/ sempre plantou manga
espada,/ abacaxi e feijão.2S

A marchinha se refere ao fato dc que naquele mês dc fevereiro de


I entre os dias 7 c 11, cm pleno carnaval pernambucano, sc realizava o
i vento que foi o ponto alto deste movimento regionalista e tradicionalista,
u < ongresso Regionalista, que reuniu em Recife, na secular Faculdade de
I Incito, intelectuais c políticos dos vários Estados que se estavam definindo

'1 I REYRl'.,(>illiriln "I lilhiuv i.i Allii <1 Iic", /íúlriodt Pernambuco, Recife,06/09/1927,
p l,< 1
J’i l S "( oiiliio icRiiiiuir , / L /*, * .... . Rei lie, 14/02/1926, p. K, <. 3.
150 nordestino: invenção do “faio"

como nordestinos, visando a “clarificar a ação regionalista”. A programai, Ao


do Congresso constava de uma sessão de abertura onde falaria o I >i
Moraes Coutinho; almoço aos congressistas no salão de conferências <!<<
Departamento de Saúde e Assistência, falando o Dr. Amaury Medeiro||
visitas a sítios, igrejas etc., de interesse artístico ou histórico, edifício,
públicos etc.; visitas a Olinda e a outros municípios do Recife, encerrando
se com um jantar que seria “rigorosamente regionalista”.26
E justamente neste período, que vai de 1924 a 1930, que
intensificam as discussões em torno do homem nordestino, da definiçAü
de suas características antropológicas, etnográficas, culturais etc. O tipo
nordestino começa a se definir mais claramente a partir desta militâm ui
regionalista e tradicionalista. Este será definido, portanto, como um tipo
tradicional, um tipo voltado para a preservação de um passado regional qm
estaria desaparecendo. Um passado patriarcal, que parecia ser substituído
por uma sociedade “matriarcal”, efeminada. O nordestino é definido como
um homem que se situa na contramão do mundo moderno, que rejeita
suas superficialidades, sua vida delicada, artificial, histérica. Um homem
de costumes conservadores, rústicos, ásperos, masculinos. O nordestino
é definido como um macho capaz de resgatar aquele patriarcalismo cm
crise, um ser viril capaz de retirar sua região da situação de passividade i
subserviência em que se encontrava.
Parece-me, portanto, que o nordestino é inventado como um tipo
regional, como uma figura que seria capaz de se contrapor às transformaçíiei
históricas em curso, desde o começo do século, que eram vistas corno
feminizadoras da sociedade e que levavam a região ao declínio. Faltava
à região o resgate de um modelo de masculinidade e virilidade que, no
passado, teria garantido a predominância econômica e política desta ár< i,
no país. Era preciso resgatar o patriarcalismo, não apenas como modelo
familiar e de relação entre os “sexos”, mas como ordem social. O Norde-.ti
precisava de um novo homem capaz de resgatar esta virilidade, um homem
capaz de reagir a esta feminização que o mundo moderno, a cidade, a
industrialização,a República haviam trazido. Era preciso militar no sentido
de se constituir um novo tipo regional que, imbuído deste sentimento,
fosse capaz de superar o depauperamento que as novas gerações das elitei

26. N/a.“i Congresso Regionalista do Nonlesic, Didrio de l'ei Rc< ilc, 11/01/1926,1»
I.» I
lllmVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 151

Mo vinham demonstrando capacidade, fibra, firmeza, potência, para sustar.


I'm isso, o nordestino vai ser construído como uma figura masculina, o
IfiHdestino vai ser definido como o macho por excelência, capaz dc
livinlizar uma região que precisava reagir, região estuprada e penetrada
pm interesses e valores estranhos:

O Sr. Gilberto Freyre pediu a palavra para protestar contra o recente decreto
do poder Executivo que vem ferir tão dc perto a economia e dignidade do
Nordeste:
'Salve-se ao menos nossa mocidade da pecha de passivos perante ditaduras
< aricaturais; salve-se ao menos nossa inteligência. A medida de exceção
que aquele ucasse representa não viria somente atingir, uma vez posta em
prática, os interesses particulares dos açucareiros. A medida, nas suas últimas
i onscqucncias, viria a atingir todos os nordestinos.
Tanta refração de personalidade tem o Nordeste sofrido nestas três últimas
presidências que c tempo dc um lampejo, ao menos, dc reação viril. Não
devemos continuar moles províncias lacaias. Não devemos continuar
nessa política dc plásticas contcmporizaçõcs com os excessos do governo
< entrai - política que nos vai reduzindo a uma tão triste caricatura do que
fomos’.27
O urbanismo depaupera, exaure, desola, extingue a nacionalidade brasileira.
A defesa dos sertões não é só uma necessidade étnico-social, como uma
exigência irrecusável ao desenvolvimento econômico do país.28

A emergência histórica da identidade regional nordestina, do tipo


pigional nordestino parece estar ligada, portanto, às mudanças que se
ppi i.ivain nas relações dc gênero, neste espaço, notadamente nas cidades
r que eram vistas como mudança nos sexos. O nordestino emerge, pois,
iiiiiio uma reação conservadora às transformações que ocorriam nos

lii)’ <i cs que eram definidos social e culturalmente para homens e mulheres.
I i nordestino em seu nascedouro já será uma figura reacionária em relação
,i qualquer mudança que pudesse ocorrer nas identidades c nos papéis
qm riam definidos para os gêneros. O nordestino será inventado como
n macho por excelência, a encarnação do falo, para se contrapor a este

n N/a "Centro Rrgiomiliiilii A «i iniiiiiiilr* ontem", / Hdriodr Pfrnam/ntco, Recife, 05/07/1924,


152 nordestino: invenção do "i ahi’

processo visto como de feminização, pensado como ameaçador, em nli.....


instância, para a própria região. A relação entre masculinidade e podei lltf
assim explicitada, ou seja, a feminização do espaço regional signific avd
segundo estes discursos,a perda de poderem nível nacional,a impotêiu hi *
A construção da figura do nordestino é pensada como uma “rcaçiwl
viril” à passividade desta região e de suas elites. Ela é feita pelo discmni
das elites regionais, na defesa de seus interesses, como as próprias pal.ivut«l
de Freyre acima deixam bem claro. Na elaboração deste tipo regiomlL
saberes de matrizes diferentes e distintas estratégias políticas vão conllul»
Para a construção desta figura regional única devem-se agregar, em mim
composição, elementos dos tipos regionais que o antecederam: o sert.uu
o praieiro, o brejeiro, ou mesmo traços de figuras sociais que não h.ivi.uu
chegado ainda a se constituir em tipos como: o senhor de engenho, i|
cangaceiro, o coronel, o vaqueiro, o matuto, o jagunço, o retirante, o cabot llM
dissolvendo a particularidade destes em seu interior. Como várias dmltul
identidades haviam sido forjadas ao longo do século xix, notadamentc riid
sua segunda metade, ou mesmo no princípio do século xx, a influência • I»»
saberes de matriz naturalista, positivista ou social-darwinista era marctnld
em sua composição. Ao incorporar elementos dessas figuras regioimii
anteriores, o nordestino será descrito, muitas vezes, a partir dcMH
mesmos pressupostos, embora contraditoriamente estivesse surgindo num
momento em que se começava a fazer a crítica ao determinismo racial ml
geográfico na definição dos traços físicos, psicológicos e sociais dos grupud
humanos.
Por isso, a elaboração da figura do nordestino se dará pelo cruzamcniit
de discursos que o pensam, ainda, a partir de conceitos, temas e enunciadm
vinculados à formação discursiva naturalista, com discursos que o pensam
a partir de conceitos, temas e enunciados vinculados à formação discur.n t
nacional-popular, de matriz culturalista. 29
30 A figura do nordestino os< ila,
pois, entre um homem definido pela influência de um determinado tipo
de composição racial, um determinado biotipo, um tipo que se discute m|

29. A masculinidade e a feminilidade são pensadas neste trabalho como construções bistóih st
de lugares de sujeito, de identidades e de papéis que são apreendidos pelos indivíduo» 1 ni
seu processo de socialização. Ver: BARRANCOS, Dora (Org.). /lutaria ygànrm BueiiiM
Aires: Centro Editor dc Amcrica I .atina, 1993. Paia a rclaçao entre masi ulinidade c podi i,
ver: BORD1EU, Picrre.//r/omimtpto mauulina. Rio dc Janeiro: Bcrtrantl Brasil, 1999.
30. Sobre formação discursiva natutahstu c lotmaçao discursiva nacional popular, vetl
Al III JQJ II' RQI IE |R . Ihnvul Muniz dc. .7 invrni<io </» Nanlritr e <»/<'>
' M MlINIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 153

■lllgitiico ou não, entre um homem que é definido pela influência de um


•♦it lu ou natureza particular, um homem telúrico, ou entre um homem
1*" < definido pela influência de uma história civilizacional e cultural
■mh i« ular. Estes pontos de vista não necessariamente se excluem e, o mais
Whiiiitii, é encontrarmos, num mesmo discurso, enunciados naturalistas e
Wilitit distas, convivendo lado a lado.
Porem, quando dizemos homem nordestino, não c apenas porque
mios reproduzindo a generalização do discurso humanista, cm que a
plrivt ,i homem serve para se referir a toda a espécie, o que já c sintomático
'*• que este homem em geral também é pensado no masculino, mas é
|""qur os discursos que analisamos não deixam dúvida dc que o homem
■Wucstino é um homem, ou seja, é macho, é pensado no masculino, não há
para o feminino nesta figura.” No Nordeste, até as mulheres seriam
Hbi' i ulinas.como pareciam queixar-se cada vez mais os próprios discursos
hiiim uli nos na região. Seja por motivos eugênicos, telúricos ou histórico-

nlhuais, o nordestino é definido como cabra macho, é um cabra da peste,


■unem dc fibra, uma reserva de virilidade nacional.32

.’) Um homem eugênico

<> discurso eugenista estivera na base da construção dos tipos


m.iis que serão incorporados à figura do nordestino. Ainda o
Hu nutramos presente em muitos dos discursos que foram elaborando o
hnvn tipo regional, que seria uma síntese destes. Pensamentos como o de
• << «binou, Lombroso, Agassiz, Gustavc Lc Bonn, Spencer, Darwin,Taine,

II A categoria filosófica homem, que emerge na modernidade para falar da transcendência


<l.m ações c pensamentos da nossa cspccic, c que c a base do pensamento humanista c das
Ciências humanas, seria uma categoria também gcncrizada, ou seja, ela excluiría o feminino;
ao (alarmos de homem estaríamos falando do masculino. Para esta discussão, ver: KLE1N,
Melanic. Obras completas. Buenos Aires: Paidós-Horme, 1980; BAD1NTER, Elizabcth.
AE a identidade masculinar, ALMEIDA, Miguel Vale. Senhores de si. Lisboa: Fim dc Século,
| 1995.
' I bastante variada a produção artística c literária que reafirma e reproduz esta imagem do
nordestino como cabra macho, cabra da peste, um homem rústico, viril, violento, rude, até
os nossos dias, e esta imagem tem ampla circulação social cm todo o país, sendo, muitas
Vetes, ponto dc partida paia uma visão preconceituosa c estigmatizante do habitante do
Nordeste. Ver: SOU I O MAIOR, Mano tsiiiin mine um cabra da peste. 2. ed. Recife:
I dlçiles Gtumcle, I9H4, MO IA, I lommln No tempo dr l.umpiaii Fortaleza Imprensa
Universitária, 1967; I I I H >*»A, * A mmhn, um nnhtn, São Paulo: Cortcz, 1980.
154 nordestino: invenção no“i Aiir

Haeckel, associados a seus mais famosos divulgadores no Brasil: EuclidiH


da Cunha, Nina Rodrigues, Silvio Romero e Oliveira Vianna, aparecCHH
insistentemente, como referências em discursos que procuram definii it
que seria a “raça” regional, seu tipo médio, suas características som.iin .h
e psicológicas. Estes discursos buscam encontrar, no que chamam <Ih
“etnogênese”do homem nordestino, a explicação para suas atitudes, val< >n ,
hábitos e para o próprio atraso do homem regional.33
O discurso eugenista, de base evolucionista, defendia a iddtf
fundamental de que era a constituição biológica do homem <|um
determinava outras características humanas, como comportamentos 8
valores. O homem deveria conhecer “as leis fundamentais, imutáveis <
inflexíveis da Biologia, a ciência da vida,” que eram a primeira condição «H
todo ser organizado, para que tivesse condições de uma vez nela edui .ul>>,
saber dirigir a sua vida de maneira a se tornar útil para a vida social \
desobediência destas leis devia a humanidade “todos os males que solo,
tendo chegado a tal grau de degeneração que provocou de Galton, sabln
fundador da eugenia, este doloroso e infelizmente verdadeiro conceito: 'A
degeneração da raça humana é um fato evidente que não devemos ocultir,
ao qual é preciso urgentemente dar remédio, se não quisermos que, pni
incúria ou relaxamento, nossos filhos sejam irremediáveis, chegando MO
limite extremo de depauperamento físico e mental”’. Todos os seres «Io
universo estariam subordinados à lei suprema do “ritmo vital”. A Natim /ii
seria ordem, harmonia e equilíbrio, a que todos os outros seres obedeceríam
Só o homem, com a presunção de querer corrigir, emendar ou aperfeiçmif
a obra divina, desobedecería a esta ordem universal, causando todo lipn

33. Ver: GOBINEAU, Arthur de. Essai sur l'inegalité des races humaines. Paris: Gallimai.l
Pleiade, 1983 (1 ed.: 1853); LOMBROSO, Cesare. l.'uomo deliquente. Roma: s/e, I87M
AGASS1Z, Louis; AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil {1855-1856). B>ln
I lorizonte: Itatiaia; São Paulo: edusp, 1976; LE BONN, Gustave. Lês loispsychologiqurs
1'evolucion dês peuples. Paris: s/e, 1902; SPENCER, Hebert. Principies ofbiology. I .omln i
W. Norgarte, 1866; DARWIN, Charles. A origem das espécies. São Paulo: Hemus, |9(i|
(1 ed.: 1859); TAINE, Hippolyte. llistoire de la litterature anglaise. Paris: s/e, 19? h
HAECKEL, Ernesto. llistoire de la création dês êtres organisés d'aprês lês lois naturelBi
Paris: C. Reiwald, 1884; CUNHA, Euclides da. Os sertões. São Paulo: Cultrix, 1973 (I nl.l
1902); RODRIGUES, Nina. As rafas humanas e a responsabilidade penal no Brasil. Salvadoi,
Progresso, 1957 (1 ed.: 1894); ROMERO, Silvio. O evolucionismo e o positivismo nu Biasll.
Rio de Janeiro: Livraria Clássica dc Alvares e C., 1895; O Brasil social. Rio dc |am ihi
Tipografia do Jornal do Comeu io, 1907; VIANNA, Oliveira PopulafOei meridionais d«
jfpHVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 155

ih <li -astres individual, familiar ou social, o que modernamente o estava


Itu.uido à degradação, não apenas física, mas moral e psíquica. A evolução
•ui li ilógica de um povo estava determinada por sua evolução biológica:34

I levemos todos nos compenetrar de que cada um dc nós é não só um membro


da família, como da raça e da humanidade, que herda dos progenitores e
ascendentes qualidades e defeitos físicos e psíquicos, e transmitem a herança,
melhorada ou piorada, aos descendentes. Que, ao nascer, o homem toma o
que lhe dão, e ao reproduzir transmite o que herdou e adquiriu; que está nas
«uas mãos selecionar e apurar as qualidades e eliminar os defeitos e vícios.
As leis biológicas da hereditariedade, da evolução, do crescimento, do
desenvolvimento c função oportuna dos órgãos, da autonomia de trabalho c
interdependência e solidariedade de funções orgânicas, são fatais e inflexíveis.
Delas decorrem naturalmente: 1) Os deveres individuais, o interesse pelo
pióprio desenvolvimento físico; 2) os deveres interindividuais, consistindo ao
respeito pela vida e saúde do outro; 3) Os deveres do indivíduo em relação a
espécie, pela preparação do casamento , tendo cm vista uma hereditariedade
melhorada; 4) Os deveres do indivíduo para com a sociedade, em que se
incluem a moral social, a assistências social aos sãos e aos doentes, os deveres
para com a pátria c a defesa contra os criminosos, os sociais e os antissociais.35

Neste discurso, portanto, o homem era determinado por sua


iim.lituição biológica e a grande controvérsia era se este teria ou não
i um lições dc vir a alterar sua condição física, psicológica ou social, a
ih peito das determinantes eugênicas. A eugenia, embora considerasse
Ihivci entre as raças certa hierarquia, existindo raças superiores e inferiores,
Hpir.iava na possibilidade da melhoria da raça, à medida que acreditava na
lu icditariedade dos caracteres adquiridos. O conceito dc hereditariedade
llilie uma ampliação para abarcar, além da transmissão de caracteres
n< ticos, a transmissão de características psicológicas ou subjetivas e
|*0i .i< (erísticas cultural, histórica e socialmente aprendidas.
Estas formas dc pensamento parecem buscar na natureza, pensada
iniiui regida por leis fixas e evolutivas, a garantia de um núcleo
pniminente c estático para a realidade, que vinha se alterando dc forma

II l't NNA, Bclis.iri<> "í up.riil.i ", I >hlH" ./.■ I‘: iii,un/>n<o, Rccifc, 05/09/1926, p. .3, c. 4. Ver:
I .Al 1'1 >N, I i.iiii ix lle>rn<i<i v . «ivo».» Madlld Allunza Editorial, 1988 (1 cd.: 1869).
1*1 Idrm
156 nordestino: invenção do"mhf

veloz na sociedade moderna e industrial. O pensamento naturalista hui» i


a garantia da existência de uma realidade primeira, objetiva, ordenada >|ii#
se contrapusesse ao fluxo, à mutabilidade e ao caos que se enxergav.i m
nova realidade social. A ansiedade social gerada pela consciência crescí m»i
da historicidade e efemeridade de todas as coisas parece inspirar esta \nli4
à natureza e a busca de encontrar nela elementos que expliquem de foitim
racional e previsível as reações humanas, seus comportamentos, valuinJ
atitudes e reações. Procura-se dar consequência científica à própria 11< >ç >lt|
de natureza humana elaborada pelos Iluministas e a partir dela tniçtf
políticas de controle e disciplinarização do espaço urbano e das populaçiVU
observando as leis eugênicas.36
A não observância das leis eugênicas por parte dos indivíduos, <I h
famílias e das instituições sociais era responsabilizada por tudo o qu< mi
considerava problemas sociais: “a ociosidade, a doença, o desprezo pi I4
higiene física, mental e moral, as intoxicações voluntárias euforíst» .i»,
o suicídio, os atentados contra os bens, os direitos e a vida do próximiN
o homicídio, o egoísmo, a falsa concepção de casamento, a viciaçao d|
hereditariedade, o amor ao luxo, a concupiscência, a prostituição públlt 4
e clandestina, o jogo, a imoralidade, o latrocínio, a mortalidade infantil, n
degradação da família, a irreligiosidade, o desprezo pela higiene e smiJi
públicas, o antipatriotismo, a corrupção, o suborno, a tirania, o pavor *
liberdade e à verdade e a substituição do direito e da justiça pelo uso iLi
força”.37
Esse discurso eugenista já estava presente na Faculdade de Direito
do Recife, onde se formava grande parte da intelectualidade ligada ai
elites regionais do Norte do país, e que foram os elaboradores da ideiit
de Nordeste, desde a década de 70 do século xix, em que predominava
o pensamento social-darwinista de Haeckel e Spencer. Este teria dado
um sentido “científico” aos estudos jurídicos e favorecido interpretaçoc»
metodologicamente “modernas” da vida social. Embora ligados às elite»
agrárias, esses intelectuais atuavam em um contexto urbano, o que <•»
forçava a buscar novos paradigmas de interpretação da realidade loi.il,
diferente daqueles que haviam orientado a atuação política ou intclectu.il

36. Foucault elabora a noção de biopcxler paia entender esta nova forma dc exercício do podri
Ver: 1'OIK AUI.I, Michel. Microjíiica do poder^ Rcxumo do\ cuvwi do ('tdl^e </<• b'rann', /
defesa da sociedade.
37. PENA, BcIkíUio cit.
■IVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 157

ib m us pais. Grande parte do que as gerações anteriores haviam produzido


ib explicação sobre o homem da região passa a ser vista como mera
Ilu uttura", sem embasamento da ciência, em nome da qual se passa a
■fiitt verdadeiro sacerdócio.38
A própria literatura regionalista, do final do século xix, que participou
lllv.m icnte não só da construção das identidades provinciais, mas da
um nução de tipos regionais, que serão incorporados ao nordestino,
Milhem estava vazada em modelos científicos naturalistas quando não
■lliAnticos. Romances como Aves dc arribação, de Antônio Sales, que tem
■llio subtítulo: “um romance cearense” e que participa da elaboração da
Igui i do retirante das secas c do sertanejo; O Cabeleira dc Franklin Távora,
H piuneiro romance a tornar o cangaceiro um personagem dc literatura;
/ r ia Homem de Domingos Olímpio, que participa da elaboração da
■[iiia da “mulher macho” sertaneja, e O sertanejo, de Josc de Alencar, por
i»« mplo, fornecem imagens e enunciados de cunho determinista e racial
HlH M tão incorporados à figura do nordestino.39
<) grande marco dessa literatura “científica”, no entanto, será Os sertões
«b I m lides da Cunha. Do livro de Euclides, que procura definir os traços
fluiu is c psicológicos do sertanejo, muitas imagens serão agenciadas no
.... mento cm que se vai falar sobre o nordestino, em que se investe na
pmiliição dc uma dizibilidade e uma visibilidade para este ser regional.
A lmç;l das imagens literárias euclidianas só podemos comparar a força
«l i imagens sociológicas de Gilberto Freyre, embora tenham, em grande
imdida, matrizes teóricas diversas, no momento de definirem o que é o
luu destino.
I hna tese de Euclides é especialmente cara aos regionalistas
lumli stinos, a de que a mestiçagem das três raças formadoras de nosso
■Vo, <> branco europeu, o negro africano e o indígena, variou em dosagem

|N SCI1WARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras,
I ’7W, PP- 24 e ss; VEIGA, Gláucio. História das idéias da Faculdade de Direito do Recife.
R<< ifc: Editora (Jniversitária, 1980-81,2 vol.; SALDAN1 IA, Nelson. A Escola do Recife. 2.
■ «I Sao Paulo: Convívio, I98S; PEREIRA, Nilo. A Faculdade de Direito do Recife. Recife:
Iditora Universitária, 1977; BEV1LACQUA, Clóvis. História da Faculdade dc Direito do
Rtvife. 2. ed. Brasília INI, 1977.
1'1 SALES, Antônio. Aves dr artibaián Rio dc Janeiro: Josc Olympio; fortaleza: Academia
Cearense dc Letras, |9/9, lAVtlRA, l ianklili. O cabeleira. São Paulo: Ática, 1981;
I II.IMPIO, Domingo* l.iiiái //<’»„, >» '.ao Paulo Editora Irês, 197.1; ALENCAR, José
de <) sertanejo. Silo Paulo All« «. I9NII
158 nordestino: invenção do**i ak|

em cada ponto do território nacional. Teria advindo daí a formação <l<


sub-raças regionais, não existindo um tipo antropológico brasileiro. Nu
entanto, como no Nordeste não teria havido transfusão recente de sangtli
exótico, a sub-raça nordestina ia se tornando a única a guardar os tr.it,>*1*
da mestiçagem que originalmente dera origem ao povo brasileiro, A
imigração europeia estava desnacionalizando a população do Sul, fazcmli)
da sub-raça nordestina a genuinamente nacional, motivo pelo qual dcviii
receber todas as atenções do Estado.40
Só que a tese de Euclides colocava também um problema para ui
elaboradores de uma identidade regional para o nordestino, era o fato <1*
que, internamente à região, a dosagem do sangue das três raças formadoiai
também se distribuira de forma distinta por sua área, podendo m<
dividir a região em duas áreas etnográficas distintas: uma composta pi In
litoral, pela mata e pelo agreste, onde predominaria a sub-raça formihl.i
majoritariamente pelo cruzamento do branco com o negro, e ouita
representada pelo sertão, onde predominaria a sub-raça formada pi lo
cruzamento do branco com o indígena, sendo o mulato e o caboclo <m
mameluco os tipos raciais prevalecentes em cada uma dessas áreas. Como
pensar um tipo regional único se o Nordeste tinha pelo menos dois tipo*
raciais bem definidos? Qual seria o superior entre eles, do ponto de visli»
físico, moral e mental? Qual o tipo que deveria servir de exemplo e nof
generalizado para toda a região? Estas eram as questões que pareciam
nortear esse discurso regionalista de base eugenista.41
O que se colocava como problema, então, era a própria mestiçagem
Ao se examinar a realidade do Nordeste, região formada por uma populaç ,u •
majoritariamente de mestiços, a grande questão a ser debatida, pelo
discurso regionalista de base eugenista, era o estatuto racial e civilizacional
de nosso homem. Uma população, com tal composição racial, seria capa/
de retomar o crescimento econômico e sair da inferioridade política cm
que se encontrava? Ela favorecia a civilização? A decadência econômica, an
precárias condições sociais e o atraso cultural deste espaço não se deviam a
composição racial de seu povo?

40. CUNHA, Euclidcs d.i. Oi \crtüf\ 10. cd. Rio dc Janeiro: Ii.iih ih* o Alves, 1981, p 6.1 Vci
PON I ES, Ncroaldo. Modermimo t Kr^iona/ismo. Jorto Pessoa Sccictaiia dc I'<lm i
Cultura da Paraíba, 1984
41 MAGAI IIÁES, Agailienun O/Voo/. i/r Ao/o/cow, p II
MIIIVAI. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 159

As estratégias prevaleccntes no discurso eugenista nordestino foram


m ,i afirmar que a mestiçagem melhorava a raça, porque o mestiço tendia
d lindar os caracteres da raça superior, quase sempre a raça branca, ora
llllinar que, embora fosse inferior ao negro na robustez corporal e na força
||i.i' .1, o mestiço rivalizava, muitas vezes, com o branco na inteligência c
lidh aptidões técnicas e artísticas, o que era comprovado pela ascensão dc
V<li ms deles a altas posições na administração e na política. Porém, o mais
Importante era que o mestiço, por tender a herdar de forma prevalcnte os
i iiiactercs da raça branca, em pouco tempo tendería a retornar a esta raça.
Mr .mo não tendo sido a região beneficiada com a transfusão de sangue
pnneo, o branqueamento da população estaria garantido:42

A seleção, a grande lei da concorrência vital, expungirá através dos cruzamentos


os vícios das raças cm fusão, corrigindo e aperfeiçoando, modificando,
adaptando. A adaptação; é a lei fundamental da etnologia moderna. Não há
raças fortes, há raças contingentes aos climas, como observa um etnólogo. A
hereditariedade fixa, mas a adaptação modifica, dizia Raul Azevedo.43
Daí a tendência que nele se observa de regresso, pelo cruzamento, ao tipo de
origem cujos caracteres lhe são predominantes. Essa tendência do mestiço
que o traz em desequilíbrio, em luta com as forças hereditárias diversas,
procurando eliminar os caracteres inferiores, é a seleção, é a raça que se
procura fixar, adaptando-se e voltando ao tipo superior.44

Para construir a imagem de “uma raça forte e homogênea”, o discurso


•rgionalista nordestino de inspiração eugenista, quase sempre, privilegia
a figura do sertanejo como aquele que expressava o futuro da raça
Irgional, aquele que daria a virilidade necessária a esta região, que fora,
ith então, dominada pela gente do litoral. A figura do sertanejo nunca
i' tratada cm termos de classe social, enquanto, ao se tratar do litoral, é
piei iso distinguir a elite aristocrática, branca, fidalga, que implantou a
< Ivilização na região e fora a construtora de seu poderio até recentemente,
<l.i < amadas populares, população majoritariamente mestiça e negra, que
« i .i considerada uma “babel dc tipos inferiores”, para os quais se esperava

•1 N/n "O« no Hi.i.iI". / ’ ./< |t<< i(c, 13/08/1911, p. 2, c. 3 c 4.


41 MAGA1.I IAI S, Ag.iiik iioii <y< n p /(I
II lilriii, p. 75.
160 nordestino: invenção do“fai.o"

um breve desaparecimento por diluição no restante da população e através


da sua “natural mortalidade”.45

Uma surpresa no sertão é o quase desaparecimento do Negro. Raros os negros


fulos e ainda mais o retinto. Estes, não os vi nos 1.307 quilômetros viajados
Assimilado nos cruzamentos, o Negro não viverá dois decênios em mass»
que mereça saliência. Regiões inteiras corremos sem um herdeiro dos velhos
trabalhadores escravos. A lenda da ‘mestiçagem nordestina’está pedindo um.i
verificação para desmentido completo. Nós tivemos sempre uma porcentagem
negra inferior aos outros elementos étnicos. Em 1890, por exemplo, tínhamo»
44,12 de brancos para 8,93 de negros. E expressivo. A proporção do mestiço
era grande, 37,51, mas denunciava a absorção do melanodermo.Mas se vê que
a preponderância é branca e esta decidirá o pigmento do produto. Por uniu
lei de Mendel é períeitamente possível uma avó negra para um neto branco
Demais, como notou Roquete Pinto, a ligação já se fez entre o branco < ,i
mulata-mestiça, clareando o rebento.46

Sem o desequilíbrio biológico do mestiço do litoral que se procura fixai, o


sertanejo é um tipo étnico definido. Tem amalgamando na sua psique o»
caracteres de resistência e adaptação ao meio do índio e a audácia do coloim
Essas duas tendências se completam e se equilibram no sertanejo.47

Vemos no discurso acima, além da quase comemoração do autor pelo


desaparecimento do negro na raça nordestina - o que desmentiría os
argumentos daqueles que creditavam o atraso material e moral da região
à mestiçagem e deixavam de ver que esta se devia, segundo o discur.o
regionalista nordestino, à incúria do governo federal e ao privilégio <l<
outras regiões do país - o aparecimento de conceitos ligados a ouiio
saber que estará muito presente no discurso regional nordestino de ba c
eugenista e que será fundamental para se pensar o tipo regional, que <
o saber biotipológico. A biotipologia buscava definir tipos caracterísiii
utilizando métodos estatísticos e medições de grupos humanos escolhido'.
Ela obedecería, segundo seus teóricos, a um novo método de estudo,

45. MARROQU1M, Mário. “Regionalismo",/>íaó,..Á ...... ' . Rcrile, 03/04/1925, p 4,


IHIRVAI. MIJNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 161

dc “caráter concreto, em contato imediato com os fatos, valorizando o


lato particular, o indivíduo”. O conceito central deste saber seria o de
“(onstituição individual”, seu estudo deveria servir de base racional para
Iodas as atividades humanas: na escola e no campo da educação física, para
0 estabelecimento de classes homogêneas; no escritório e na oficina, para
li orientação profissional; nos tribunais e cárceres, para a individuação da
pena,reeducação c tratamento do delinquente; na política, na administração
c na sociedade, para que cada um tivesse o seu lugar apropriado.48
A própria ideia de definição de um tipo regional nasce da confluência
deste saber biotipológico, definido como o estudo da individualidade
humana nos seus caracteres físicos (anatômicos e funcionais) e psíquicos,
com o saber criminológico c frenológico que, desde o final do século
xix, tentavam desenvolver formas dc identificar indivíduos que seriam
potencialmente perigosos para a ordem social, indivíduos que teriam uma
'constituição deliquencial”, que eram portadores de “taras eugênicas", que
revelariam suas “tendências criminosas ou amorais” através da própria
morfologia dc seu corpo, aliada à sua expressão gestual e comportamentos.
A ideia de que o nordestino era um tipo regional e, por isso mesmo, teria
um caráter, uma índole ou uma psicologia própria que se revelariam na
morfologia dc seu corpo e no seu comportamento individual e social, nasce
da influência deste tipo de saberes.49
Para se definir um tipo era preciso observar algumas variáveis: a cor
da pele, que classificava os indivíduos cm leucodermos (dc cor branca),
I uodermos (dc cor parda ou mestiça) c mclanodcrmos ou xantodcrmos(de
tor negra); o formato do crânio, que os dividia cm braquicéfalo (o crânio
i >1 v ervado dc cima teria a forma dc um ovo,porém mais curto e arredondado
posteriormente) e dolicocéfalo (apresenta um crânio pequeno e achatado);
c .i estatura, que os dividia em normolíneo, brevilíneo e longilínco. Os
tipos raciais tendiam, também, a apresentar comportamentos psicológicos
que os podiam classificar em: esquizotímicos (tendência à apresentação
dr comportamentos díspares, variações bruscas de humor), ciclotímicos
(n iidiam a apresentar comportamentos repetitivos e com tendência a
intro versão) e normotímicos (apresentando comportamentos normais).

4H EERRAZ, Al varo; I.IMA JR., Andrade. /I morfologia do homem do Nordeste. Rio dc Janeiro:
|o»í Olympio, 1939, pp. 7 <■ 8.
I1* V<i I.OMBROSO, Crsarr. ()f> fite, DOMINGUES, Octavlo. Hereditariedade e eugenia:
162 nordestino: invenção do“fai.o’

Esses conceitos que foram desenvolvidos pela escola italiana de biotipologht


comandada por Viola, Frasetto, Di Túlio e Pende e divulgada no Biaal
por Berardinelli aparecem, constantemente, nas discussões acerca do tipo
médio do nordestino e na caracterização morfológica e psicológica dcsh)

Nos Estados do Nordeste mudam um pouco as médias. O estudo feito poi


Lôbo da Silva, de quem o indianólogo cearense Pompeu Sobrinho timil
as consequências antropossociais, oferece estímulo a meditação. A estatuiu
média do leuc lermo no Ceará (l,626m) está próxima da média geral d<t
Nordeste (1, 627m), enquanto que o leucodermo pernambucano aprcsi nia
l,632m. De parte este tipo, a estatura mais alta das áreas cearenses vem a m i

a do xantodermo, com l,621m. Quanto ao perímetro torácico, a média, 110


Ceará, foi de 830, cabendo a primazia ao faiodermo com 834, inferior ao <!••
Rio Grande do Norte (855).
O problema é, além do mais, estatístico. As duas ectipias antitéticas, segundo
lição já clássica de Pende, são tipos extremos existentes em qualquer i.ga,
distribuindo-se segundo as aleis gaussianas. Tais constituições existem em
qualquer raça e o problema está em determinar o tipo “standard”, que deverá
representar o grupo considerado.50
51

Definir um tipo médio, com suas características morfológii a*


e psíquicas advindas do tipo de composição racial que a população tlu
Nordeste tivera, era a preocupação desses estudos, além de avaliai a
capacidade de adaptação à civilização moderna, à vida intelectual <
racional, bem como avaliar sua capacidade de trabalho e sua disposição pai a
aprender novidades. Foi nesse sentido que Álvaro Ferraz e Andrade Lima
Jr, formados na recém-fundada Escola de Educação Física do Exército n<>
Rio de Janeiro, sob a orientação de Sette Ramalho, fazem, nos anos 30, um
estudo biotipológico da população nordestina, tomando como “material dc
pesquisa” os soldados da Brigada Militar de Pernambuco. Eles chegam a
conclusão de que os brevilíneos predominavam no sertão e os longilíncon
no litoral, talvez pela maior ação do iodo da marcsia sobre a tircoidc. Ma
o tipo médio regional seria o brevilíneo.52

50. EERRAZ, Álvaro; I .IMA JR., Andrade. ()/> cit


51 MENEZES, l)j.u ir. O outro Nurdttfc, |i|> 69 <■ /I
52. EERRAZ, Álvaro; I.IMA JR , Aniltad. MM 117 Vci Al III It.H II' RQ| II
lillKVAl. MUNIZ DF. ALBUQUERQUE JÚNIOR 163

Esse discurso regionalista nordestino de base eugenista procurava


responder às constantes acusações de que seria o nordestino “uma babel dc
tipos variados”, “um subproduto de cruzamentos raciais díspares, homem
lutado, entibiado c frouxo, uma endemia andante, macilento e esquálido”.
Seria “um tipo nascido da degencrescência racial”, do cruzamento de
mgues inferiores”. “Portador de milhões de morbus, mais ou menos
vuulentos em seu sangue depauperado”. Um tipo cujo psiquismo era
i ai acterizado pela “indolência, alheamento e ciclotimia”. Essa população,
ussim constituída, seria responsável pelo atraso, declínio e desvirilização da
irgião:53

Chamam-lhe indolente, e ele o desmente nessa luta porfiada e comovedora,


que há séculos vem mantendo contra a fome e a sede. O êxodo do cearense
que em levas, procura abrigo nos seringais do Acre, (...) é uma prova
eloquentíssima das energias formidáveis do homem dos sertões do Nordeste.
(...), são os sertanejos audazes, os descendentes de mamelucos que afirmam
na Amazônia as possibilidades de resistência e trabalho da raça emergente.54

O discurso regionalista nordestino utiliza como estratégia atribuir


fenômenos como o cangaço e o messianismo - que surgem nos discursos
das elites de outras regiões como comprovação da inferioridade da raça
nordestina, de que esta era uma sub-raça - à presença, nas populações dos
sertões do Nordeste, de “elementos rebeldes à ordem e à disciplina social
que compunham grupos turbulentos, compostos de elementos regressivos
que por um fenômeno de atavismo” reviviam “o rebotalho das bandeiras e
entradas”. A organização psíquica enfermiça dos cangaceiros despontaria da
virulência de instintos de mestiços transviados das bandeiras, aterrorizando
< om seus crimes os sertões do Nordeste. Ou seja, em última instância, o
que chamavam de escória racial e psíquica dos sertões do Nordeste eram
descendentes dos paulistas. O que, no entanto, não deixa de legitimar as
explicações racistas que, ainda hoje, povoam o imaginário nacional quando* 5

JR., Durval Muniz. "Breve, lento, mas compensador: a construção do sujeito nordestino no
discurso sócio-antropológico e biotipológico da década de trinta”, Afro-/fsta, Salvador, n"
19-20, pp. 95-108.
5 l MONTEIRO, l lruiy "À margem dos Cariris”, Apud GUERRA, Felipe. Ainda o Nordeste.
3 ed. Mossoio i sAM, 198/ (( oleçAo Mossoiocnsc, vol. ceei.). Arligos publicados cm //
Ktfiüblira, Natal, I
'> l MAGAI.I lAl'.S, Agameiioti !>/■ u , p 82
I(. I nordestino: invenção do “iai u'

se trata de falar do nordestino. Este ainda c visto, muitas vezes, como uma
raça inferior c foram, em grande parte, intelectuais nordestinos, memb....
de suas elites, que o construíram assim.55
Outra estratégia, muito utilizada pelo discurso regionalista nordestino
de base eugenista, foi articulá-lo com outra forma de discurso determinista
que era aquele fornecido pela antropogeografia alemã, que tinha ua
influência do meio a principal determinante para se entender a forma
de organização das sociedades e os comportamentos, valores e atividade»
individuais e coletivas. A ideia era que a ação do meio corrigia os possível*
defeitos raciais. Determinadas características de clima, solo, vegetação,
hidrografia, relevo agiam como corretivos de certos caracteres inferioicn
que determinado contingente humano e racial pudesse ter. A adaptação
agiria corrigindo as tendências hereditárias, transmitindo-se para as fiitui ,v.
gerações as correções feitas neste processo adaptativo.

3) Um homem telúrico

O discurso antropogeográfico ou biogeográfico inspirado na geogralin


determinista alemã do final do século xix, que tem como grandes nonu •*
Ilumboldt, Ratzel e Ritter, aliados a autores franceses como Reclih,
procura no meio natural os determinantes que explicariam as formas d<
organização social e até a constituição física e psicológica dos indivíduos.

Reclus assentou de maneira eloquente e profunda a influência das condições


físicas na história dos povos, concluindo que cada período da vida du
humanidade corresponde a uma mudança de meio; ensinou como os climas
determinaram a distribuição das raças e fizeram as diferenciações étnica ,
expôs os contrastes da terra; e afinal apresentou o homem como a própria
natureza tomando consciência de si mesma.56

55. MENEZES, Djacir. O/>. cit.


56. MAGALHÃES,Aganienon.O/>.r/7.,pp.32 33.Vci 1'1 AVAL,Paul i.a petutegei>gr<iphi<ine,
introduetionàson histoire. Paris: sedes, 1972; M( >RAES, Antônio ('arlos Robert. Gcoçrrt/ia,
pequena hutória critica. São Paulo: I lucitec, 1982; Kntiel veiiyhi/iii. Paulo: Ativa, 1990;
QUAINI, Mássimo. // con>tiut<h huni.iiui Rio «!• I.mriro Paz <• ferra, 198 I,
RECLUS, Eliséc. Estadot Unid<» c\tatí>liui Sa<> Paulo
Magalhães, 1899; R! I TI R, (ieihaol / .< /■>>>„,,, ,..»»«• moderna Roma, ll.ur
l.atcza, 1985.
IKIRVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 165

As raças já não seriam o fator determinante da vida social, mas


u i iam produto do longo processo de adaptação do homem à natureza,
lendo esta capaz de modificar as características primitivas de um
determinado grupo étnico, fortalecendo-o ou degradando-o, levando-o a
Iri tendências psicológicas construtivas ou destrutivas para a ordem social.
"S<> conhecendo o meio físico o homem” poderia “evoluir pela adaptação”,
mnceito central nesse discurso, de marcada influência social-darwinista.
K.ilzcl afirmava que: “não há raças superiores — há raças contingentes aos
< limas (...). A adaptação é a grande lei do progresso, da civilização, da vida,
enfim. Não se pode viver isolado do meio, segregado do ambiente, alheio às
11 imlições mesológicas. A vida é essa troca com o meio externo, dizem-nos
oh biologistas. (...) A humanidade pode ter a fronte soerguida na pureza do
i l< r, mas os seus pés estão na terra”:57

As condições físicas é que vão determinando diferenciações, que se acentuam


cm habitats distantes. O mestiço do sul - o paulista, o gaúcho, são tipos
que contrastam dos do norte. Mesmo aqui, verificamos que o tipo da mata,
formado no meio rural, se diferencia do tipo do sertão, formado no meio
pastoril. O Nordeste é um habitat distinto, caracterizado no rigor de suas
condições mesológicas. A natureza reflete-se no homem, imprime-lhe os
seus aspectos, talha-lhe a forma, forma-lhe o espírito. É o determinismo
harmonioso da vida natural de que nos fala Lespagnól.58

Coerentes com este saber, várias obras e discursos sobre o nordestino


procuram explicar tanto as suas características físicas, como os seus traços
subjetivos e seus códigos culturais, como produto da natureza particular da
tegião. O Nordeste, que em sua definição como espaço regional autônomo
n<> país, teve como um dos traços distintivos, exatamente, a sua natureza,
que no discurso regionalista é homogeneizada a partir da imagem da seca c
<l.i aridez, teria um homem particular, teria um tipo étnico, um homem dc
uma índole ou caráter distinto,apresentando tradições culturais particulares,
por ser marcado pela convivência com uma natureza áspera, árida, bruta,
difícil, exigindo deste uma constante batalha pela vida. O nordestino
Hctia, nesses discursos dc base biogcográfica, um homem telúrico, homem

57 MAl JAl .1 lAr.S, Ap.iiiiriiuii ()f> ti/., p. 33. Ver: RATZEL. /.<• razzz timanr. Nápolc:
166 nordestino: invenção do“fai.o"

especial por ser fruto da adaptação a uma natureza, a um meio especial, um


homem forjado na luta contra o meio, contra a seca e a aridez:

A mesologia física oferece interessantíssimos aspectos. De início, convém


diferenciar as diversas zonas do ecúmeno: a área propriamente das caatinga»;
a área das terras férteis, úmidas, das matas; a área das serras frescas, - tudo
procurei gizar baseado em conhecedores honestos da biogeografia cearense,
paraibana, rio-grandense-do-norte e sertão pernambucano. Neste quadro
cósmico,o material humano vai adaptando-se,em simetrizações característir
e motivando toda a série de fenômenos que tecem a história de nosso povo
Surge então o problema antropológico em toda a sua intrincada complexidade
o melting-pot das caatingas, as condições de vida determinadas pelo meio, a
civilização dos vaqueiros, dos currais, alguns centros agrícolas regulares cuja
atividade os flagelos entrecortam, a má fixação do homem ao meio, a formaçan
de uma plebe rural de onde repontam os místicos e os bandidos.
Essa mentalidade está duplamente preparada pela série de fatores telúric <>•.
e sociais discriminados: reclama Conselheiros, padres Cíceros ou José»
Lourenços.59

No discurso regionalista nordestino, o descaso do governo federal e o


privilégio a outras regiões eram o que explicava a decadência da região <■ .1
pobreza de sua população, não era o homem nordestino que seria inferiol
racialmente ou mesmo indolente, preguiçoso, sem atividade. Como acusai
de indolente um homem que travava uma batalha secular com a natureza
e que nesta batalha se tornou, acima de tudo, um forte e capaz, embora
endurecido e áspero. A elite regional, além de naturalizar os problemas
sociais e econômicos deste espaço, ao falar de um nordestino genérico,
que a incluiría, busca defender a própria natureza regional acusada de ser
inviável para a vida humana. No Congresso Nacional, por várias vezes,
parlamentares do Sul propunham a evacuação da região semiárid.t
alegando não ser prudente continuar-se gastando vultosas quantias di
recursos federais para manter uma população vivendo num meio ond<
não era possível o desenvolvimento das atividades produtivas. A elili
nordestina, que em vários momentos usava a imagem do deserto para falai
de sua natureza, momentos em que precisava impressionai por sua retói i< .1
UURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 167

os representantes de outras áreas, para que votassem favoravelmente ao


envio de recursos, nestas ocasiões modificavam seu discurso e recuavam c,
mudando de estratégia, avaliavam positivamente a natureza da região c seu
próprio habitante, que passava a ser dito como vítima apenas da incúria
das autoridades/’0

A angústia do Nordeste ctcrniza-sc, como se fôramos miseráveis párias, sem


outro direito que à esmola hipócrita dos poderosos. Uma população forte c
capaz, experimentada pela mais rude batalha que pode um homem travar
contra a natureza, uma população aparentemente fraca, mas possuidora das
maiores e mais soberbas qualidades de resistência orgânica, de extraordinária
robustez intelectual e de tenacidade insuperável, uma população assim
esvaindo-se, morrendo pelo descaso dos que lhes deveria zelar a existência.
Continua o Nordeste abandonado, esquecido, sacrificado, absorvendo
energias do seu povo nesses anos terríveis, em que a natureza se compraz com
o martírio dos homens.
E neste jogo ela só encontra um inimigo, inimigo terrível, impertinente,
denodado, que se não acovarda, que não descorçoa em face do martírio
oferecido, mas que abre a luta. Uma luta titânica, gigantesca, uma luta de
epopcia, de despertar a inspiração dos épicos, c cujo remate é a queda de um
dos contendores.
Ou vence a natura, matando o adversário isolado, ou vence este.
Quase sempre dá-se o último resultado. A vitória é do homem do Nordeste,
herói anônimo, que assim trabalha o progresso de sua terra, que aduba com
seu suor e com seu sangue e (quantas vezes!) com o seu cadáver o próprio
roçado, que, mais tarde, quando as primeiras bagas de chuvas ensoparem o
solo, se cobrirá de verde folhagem, para depois florir e fortificar.61

Os “improvisados” críticos do homem nordestino duvidavam da


sua energia, da sua atividade e da sua resistência porque não conheciam

i'O Ver, por exemplo, ALMEIDA, José Américo de. A Paraíba e seus problemas. Paraíba:
Imprensa Oficial, 1923, pp. 540-544; Discurso do deputado Octacílio Albuquerque -
Atinais da Câmara, sessão dc 26 dc maio de 1915, p. 366; Discurso do deputado Barbosa
I ,ima -Annaes da Câmara, trmüo dc 19 de novembro dc 1915, p. 215; Discurso dc deputado
Alberto MaranhAo .innaei da Câmara, sessão dc 20 dc maio dc 1919; Debate entre os
deputados Estado t uiinlu.i (ei), l iam isco Valadares (mg) c lldcfonso Albano (cf.) -
Annaes da Cihnai-s, • t" de 01 dc novembro dc 1919, p, 169.
<» I N/a. “A angústia do Nooli h|i / s.iu Pruiainbmo, Hei dc, 07/11/1925, p. 22, < c. I 5.
|6K nordestino: invenção do “faio"

a realidade regional de abandono, julgando-o pelas lendas sobre a vid.i


e os costumes na região, sendo impiedosos com um homem que levai iu
vantagem, em certos aspectos, sobre as populações de outras partes do par.,
comparando-se o meio onde viviam e as condições que os cercavam. (>
homem do Nordeste só poderia passar por um retardatário, inativo, incapaz
de contribuir para o surto progressista, que foi sempre evidente em alguma*
regiões sulistas, para quem não havia observado, ainda, a luta tremenda
em que ele se empenhava contra os agentes naturais. O que faltava eia o
estímulo e o apoio de medidas que despertassem a iniciativa do nordestino,
o seu aperfeiçoamento e o progresso material e moral da região:62

Agora mesmo os jornais do Rio publicam a entrevista de uma testemunliií


ocular de nossa afanosa vida nordestina.
‘Fui do Recife à Paraíba de automóvel, percorrí o Rio Grande do Norte, Baliiu
e Alagoas. Não encontrei nenhum sertanejo de cócoras... Pelo contrário, cm
uma atividade febril, eles me deram a impressão de uma raça forte, enérgicn,
varonil...’63*

Mesmo as revoltas das camadas populares passam a ser explicadas,


nesse discurso regionalista, como um reflexo da natureza regional ou como
uma má adaptação de certos indivíduos a este meio. Fenômenos como o
cangaço e o messianismo seriam produto da psicologia particular de uma
plebe rural à qual faltava o auxílio dos governantes no sentido de se civilizai,
ou seja, de ter as condições técnicas de dominar e vencer a natureza, dispor
de educação suficiente para compreender racionalmente os mistérios da
natureza, abandonando as explicações místicas, que levavam “aos surtoii
de delírios coletivos”. A estratégia do discurso das elites nordestinas c
sempre a de não se colocar entre os governantes e os poderosos, eles csi.m
sempre do lado do povo que sofre, do povo martirizado pela natureza. F.lcn
também são vítimas da incúria dos governantes, até mesmo no momento
em que veem a ordem social ameaçada por “facínoras” e “monstro*
humanos”, gerados na luta contra a natureza cruel, homens que eram cm
sua ferocidade, em sua selvageria, em seu barbarismo, em seu delírio, cm
sua loucura, espelhos da terra em que viviam:6’1

62. 1'11.1 IO, l.oreto. "O homem do Nordeste". Rcvi\t<i </<■ /''onimAiiir, Kr. |t<>, Ano n" I I, p I
63. Idcm.
6'1 Vci I )íh< urso do deputado (iuutavo Hiirmso /íoi.i. i ,/<> G|'>mo>, *■ «silo dc IK de seiemlioi
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 169

(...) o Nordeste brasileiro sempre foi o ambiente propício para a origem c


desenvolvimento dc hordas dc bandoleiros que tão gravcmcntc tem flagelado
c infelicitado os filhos destas paragens adustas c tostadas do rincão pátrio. (...)
Seja como for, o fato é que os nordestinos têm sofrido, por isso, as consequências
dolorosas destas tragédias psicológicas ou mesológicas, que vão gerando o
bandoleirismo com um cclerado Lampião, Corisco c tantos outros que lhes
seguirão pela estrada negregada do crime.65

Espelhando a feição da terra adusta e selvagem, Lampião se constituira no


terror dos sertões do Nordeste. Por vinte anos o alagoano Virgulino Ferreira
da Silva lançara a morte e a destruição, à semelhança de um ‘Átila’ branco,
através dos Estados de Sergipe, Alagoas e Pernambuco. O seu instinto
destruidor corria parelho com o dos mais horripilantes heróis da faca c da
garrucha (...). No seu feroz egoísmo desaguavam os impulsos do canibalismo
primitivo e da sanha mais vil e sanguinária. Era, no sentido amplo do termo,
um monstro com feições humanas.66

Ainda quase complctamente mergulhado na natureza, o homem


nordestino não teria com esta nenhuma relação de fruição, nenhuma relação
estética, apenas uma luta utilitária, um embate visando à sobrevivência. “Eis
porque os melhores poetas sertanejos, contadores ou poetas literalizados
mio cantam nem sentem a natureza que os cerca. Não há um só canto
popular descrevendo paisagens. Só lhes interessa como nas gestas francesas
C nas sagas nórdicas, a ação, o movimento, a luta, o homem”. Buscando
vencer a seca, a fera e a solidão e plantar a civilização nos araxás das serras,
nas lombadas suaves dos serrotes, nos limpos, nas várzeas e tabuleiros, este
homem não teria tempo para a contemplação subjetiva desta natureza.
Mesmo os filhos de troncos seculares rcplantados dc Portugal, homens-
bons pertencentes à fidalguia, haviam se embrutccido no combate áspero
com a selvageria do homem aqui encontrado e com a natureza sem
adaptações às exigências do homem europeu, lutando até contra maneiras

<l<-1915, p. 875.
6‘>HOCI IA, Adauto. "Caçadot dc i altcçaa". Voz da /foMorrww, Campina Grande, 06/08/1938,
p. 4,c.1 c 2.
66 N/a. “I.ampiâo d< • ip.m << u o ici do cangaço", Voz da fíorborrma, Campina Grande,
03/08/1938, p 2, o I,
170 nordestino: invenção do “fai.o"

de alimentação, indumento e viagem, dando origem a uma raça própria, .1


uma civilização autônoma, nacional.67

Bendigo o acaso que me proporcionou o convívio com o sertanejo em seu


habitat, com essa legião de compatriotas que conserva intactos os mais nobres
característicos de nossa raça,esses brasileiros, pacientes, sóbrios, trabalhadores,
intrépidos e altivos, tão identificados, no seu físico e no seu moral, com a rude
natureza que os cerca que dela parecem parte integrante, encarando com .1
mesma calma e tenacidade as torrentes destruidoras de seu trabalho e dos
seus lares, nas inventadas rigorosas, ou o sol abrasador das secas periódica ■<
transformando cm deserto os prados, em inferno as caatingas abrasadas, c a
quem nem a sede nem a fome, nem a miséria física e nem a moral, consegue
abater o ânimo e que, como a Fênix da fábula, passado os fenômenos, renasi <•
mais forte,mais altiva e mais tenaz para recomeçar a luta logo que os elemento*
permitem, esquecida do passado numa invejável resignação e numa adorável
ingenuidade, cheia de mais e maior fé no futuro.6869

O discurso da seca, que desde o século anterior, tomava este fenômeno


como argumento para solicitar recursos, investimentos e obras neste espaço
do país, é, muitas vezes, apanhado em sua própria armadilha. Em 1920,
Florentino Barbosa - após repetir as imagens e enunciados tradicional1,
deste discurso, de que a seca estava flagelando o Nordeste mais do qu<
supunha, que eram precisos melhoramentos e socorros permanentes
e eficazes aos flagelados, que desde a seca de 1877, quando o problema
ganhara visibilidade, já se passara tempo suficiente para providências terem
sido tomadas, que o fenômeno que sempre atingira as “classes proletária ."
agora ia mais além escorraçando as “classes abastadas” - teve que responder
ao argumento do que ele chama de “um filho desta grande pátria”, que
afirmara ‘que o governo não deve extinguir as secas, para que estas façam
homens fortes”. Era a retórica naturalista e regionalista nordestina colocada
em xeque. Se a natureza regional criava este homem tão superior que chi
o nordestino, para que modificá-la?, argumentava o discurso em questão.'”

67. CASCl JI)0,1 ,uiz da Câmara. Viajando o iertão, pp 10, 12 e H


68. CASTRO, Eduardo Lima. Pr/w irr/õn, Diário dr / Ret ilc, 07/11/1925, p. 18, i.
6.
69. BARBOSA, I lorcniiuo. “A nem continua o terrível ll.itp Io iiinoiçiindo exterminai poi
rompido o Nordeute luaxilciro", Diário dr |6 . il. , I • ■ 11?/1920, p I, • I
DURVAl. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 171

O homem nordestino se era um mestiço, isso não o inferiorizava, mas,


ao contrário, na natureza nordestina só o mestiço se adaptava perfeitamente.
Em vez de produzir um ser degenerado, os cruzamentos raciais que
compuseram nossa população produziram uma raça adaptada ao meio em
que vivia. Uma região feroz precisava de homens rústicos, resistentes, viris,
fortes, híspidos, memhrudos como os ancestrais indígenas; altivos, fortes,
independentes e às vezes autoritários, cruéis e impiedosos com “as classes
humilhadas” como os ancestrais portugueses; resistentes c trabalhadores
como os ancestrais africanos:

Silvio Romero, na História da Literatura, depois de um brilhante estudo sobre


o nosso caldeamento étnico, diz que ‘o incorporamento direto do índio e
do negro entre nós foi conveniente para garantir o trabalho indispensável a
economia do país que ia se formando; e o mestiçamento dele com o europeu
foi vantajoso: a) para constituir uma população aclimatada ao nosso meio; b)
para favorecer a civilização de duas raças menos avançadas; c) para preparar a
possível unidade da geração futura.™

Fica patente que no momento de pensar o nordestino como um


homem forte e resistente, um homem heroico na sua luta contra a natureza,
o discurso regionalista nordestino privilegia a área do sertão e o sertanejo
como exemplos deste embate entre o homem e a natureza e da formação de
um tipo regional adaptado a esta vida difícil.Tipo nacional, tanto no físico,
produto do cruzamento das três raças, com influência predominante do
grupo mais nacional, o indígena, quanto na psicologia, já que suas atitudes
c valores teriam nascido de uma convivência e adaptação a este meio e
cultura, porque estivera afastado do litoral e das influências externas. Este
homem era feito do mesmo material que a natureza à sua volta, por isto
p.issa a ser descrito como um homem de fibra, aquela mesma do algodão,
vegetal que fazia a riqueza desta região. Homem tão resistente quanto a
libra do algodão mocó que,como ele,era nativo daquelas paragens. Homem
< apaz dc enfrentar as mais terríveis dificuldades, como as pestes, também
i.io comuns nos sertões em época de estiagens, sem se intimidar; por isto,

cia um cabra da peste E eia um cabra por ser como este animal, tão bem
adaptado a esta na(uic/.i de pedra, seca, capaz de sobreviver comendo o

70 MA< »AI 11 Ar Aj* ••••» hmii i7 /(» 77


172 nordestino: invenção do “faio"

que estivesse disponível. Anguloso como a cabra, o cabra nordestino qmr.c


vivia, também, em chiqueiros, mas com certeza fazia parte de currar.,
eleitorais ou não:

Campina Grande é a capital algodoeira dos dois Estados, e é, pelas suas largn|
avenidas, que o algodão da melhor qualidade e da mais resistente fibra do
todas as Américas passa em busca dos grandes mercados consumidores.
Da mesma resistência é feita a fibra da gente nordestina, indomável na deicaa
de seus direitos e suas liberdades.71

É esta natureza que também explicaria uma característica decisiva t>< >
nordestino, a de ser másculo, viril, macho. Só um macho poderia defrontai
se com uma natureza tão hostil, só com uma exagerada dose de virilidade
se conseguiría sobreviver numa natureza adusta, ressequida, áspera, árida,
rude; traços que se identificariam com a própria masculinidade. Por isso,
até a mulher sertaneja seria masculinizada, pelo contato embrutecedm
com um mundo hostil, que exigia valentia, destemor e resistência. Só
os fortes venciam em terra assim. A masculinidade nordestina se forjai n
na luta incessante contra um meio em que apenas os mais potentes, <>.
mais “membrudos”, os mais rijos, homens que nunca se vergavam, num .1
amoleciam diante de qualquer dificuldade, conseguiam vencer. Os homcim
fracos, débeis, delicados, impotentes, frágeis, afeminados não teriam lug.u
numa terra assim, não sobreviveríam. Ser macho era,pois,a própria natureza
do nordestino. Seria no espelhamento do mundo natural que estes machiin
hiperbólicos se haviam formado. Se a masculinidade representa o espírito
guerreiro, da luta, o nordestino surgira de uma luta muito particular, uma
luta que o singularizava, a luta contra as intempéries da natureza, a lula
contra a natureza feroz. Afirmações também repetidas, ad nauseum, pela
historiografia nordestina:72

71. N/a. “Fibra de nordestino”, A Voz. da Manhã, Campina Grande, 01/05/1935, p. l,c. 2 c I
72. Sobre a relação entre masculinidade e violência, agressividade, luta, ver: Al.MEI I >A,
Miguel Vale. Op. cit.-, BADINTER, F.lizabeth. Op. cit.-, NO1.ASCO, Sócrates (Org.) ,1
desconstrufão do masculino. Rio de Janeiro: Rocio, 1995; ARI 1.1 IA, Margarctli; RI I >EN I I
Sandra Unbehaum; MEDRADO, Benedito (Orgs.). Iloment c masculinidade nulmi
palavras. São Paulo: ECOS/Ed. M, 1998; ( ONNII I . R Masculinitie. Beilu li »
Universily <>l Califórnia Ptess, 1995; “I a oigani/ai lón i,il <l< Ia mau ulillidad”, Edliiuiiri
de lai muieret, isis Internacional, Santiago, n, 21, 1997, I 11| I I R, N Identidades masculinai
I ama Fondo Editorial dc Ia Pontlliiia I lnlv< i»ldad < afolli a I >< I Piiu, 1007, VAI I >1 S,
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 173

O sertão c o sertão da seca, do sofrimento; o sertão de muito trabalho, do


trabalho duro, cansativo, árduo, trabalho, sobretudo, da figura masculina.73

O leitor deve ter observado, ate agora, que os mesmos autores que
trabalham com enunciados,temas e conceitos do saber eugenista,agenciam
também conceitos, temas e enunciados do saber antropogeográfico,
fazendo uma curiosa articulação. Mas o caráter de miscelânea teórica
desses estudos e artigos não fica por aí. Vivendo e escrevendo num
período em que esses saberes deterministas estavam sendo questionados,
esses autores, muitas vezes, aliam a esse aparato conceituai, temático e
enunciativo de base naturalista, enunciados, temas e conceitos veiculados
pelo discurso da sociologia e da antropologia culturalista, da etnografia
c da história, que faziam a crítica a esses paradigmas. Surgem, numa
verdadeira confusão conceituai, textos em que o tipo regional nordestino
<■, ao mesmo tempo, definido como um tipo eugênico, racial, um tipo
nascido da determinação do meio e um tipo sociológico, antropológico,
i Inográfico ou mesmo histórico. Ocorre uma verdadeira sobreposição de
imagens e enunciados extraídos de discursos de matrizes teóricas diversas
para compor o tipo regional nordestino, que aglutina desde percepções dc
bases racistas, passando por imagens de fundo mesológico, até imagens dc
tipos sociológica e historicamente definidos.

4) Um homem rústico

O discurso regionalista nordestino parece, às vezes, bizarro, por seus


cclctismos teóricos. Conceitos de matriz naturalista são usados para explicar
aspectos culturais e vice-versa. Podemos flagrar enunciados curiosos como:
"o europeu é o micróbio que vai corrosivamente desfazer os nexos de
solidariedade orgânica das culturas indígenas, pela destruição de seus
valores vitais, praticando a destruição invisível das tramas sociológicas e
psicológicas hereditárias e estabilizadoras que dão unidade ao grupo”; ou
como: “uma raça é um subtipo físico de formação cultural”; ou ainda: “E a

Teresa; OI .AVARRIA, José (Orgs,). Marculinidades y equidad de gênero em América Latina.


Santiago: macho ( lulr, I Al IRIÈRE, Erançois et al.“Masculinités". Paris, Recherches
n.35,1978.
Zl VII.IRA, Snlamita M.ialmr <lo .ii.iu linguagens «Ia cultura na música <!<■ Luiz
( toiizagii , Ri rubi »/• í t i.m, lb « ilr, v<»l. 23/24, n" 1 r 2, 1992/93, p 142.
I/-I nordestino: invenção do “faio"

nova cultura que se desenvolvia à sua volta, oferecia outros estilos de vida
Tornaram-se estranhos, desfeitos os liames ecológicos”. Estamos diante
de um curioso discurso em que se quer contestar as explicações raciais c
mesológicas para se entenderem fenômenos como o cangaceirismo e o
fanatismo, que só se explicariam por motivações sociológicas e histórica-.,
não sendo produtos da má formação somática do homem nordestino,
nem da influência selvática de sua terra, e, no entanto, seriam produto
de uma surpreendente perda do “sentido vital da realidade” por parte dos
indivíduos que aí habitavam, pela imposição de outra cultura, estranha,
que “escamoteava-li ic o resultado de uma longa hereditariedade cultural”/1
O nordestino, portanto, seria fruto de uma “hereditariedade cultural",
mais do que racial. Para entender sua constituição física, sua particulai
psicologia e suas formas de comportamento, valores e atitudes, era preciso
remontar à formação de sua cultura recorrendo à história do povoamento <•
do processo civilizatório, neste espaço, marcado por um clima de constam <s
conflitos entre o colono europeu e os indígenas, entre o português e <>•.
invasores estrangeiros de outras nações, entre o homem e as feras do
interior, entre o homem e a natureza hostil e pelo caldeamento das três raças
formadoras, que deram feições físicas e psicológicas ao homem nordestino,
à medida que se adaptava aos diferentes habitats proporcionados pelo meio:

(...) Com as informações sobre as terras favoráveis à criação, às margens dos


rios ou riachos, nas caatingas, a indústria do pastoreio penetrou essas zona»
sertanejas. Nas regiões litorâneas, desenvolveu-se então a lavoura, . .......
assinalamos, sobretudo de Pernambuco para o sul. Para o norte, menos úmida,
litorais desabrigados, de praias planas e abertas, com fraca pluviosidade,
incrementando-se a pesca. Em fraca escala, mandioca, cereais e algodão. A
penetração foi difícil - e até 1678 o vale do Jaguaribe era dominado quase
inteiramente pelo tapuia. O povoamento subiu, no século xvm, da orla
marítima, com as datas de sesmarias, através de refregas contínuas conti a o»
paiacus, icós, jucás, cariris, que resistiam. Quando se constituíram os sítio»
- fazendas de criação - e as famílias se radicaram, ulteriormente, os grupo»
indígenas se incorporaram aos conflitos de famílias. Deste modo - pondci i
Pompeu Sobrinho - distinguimos três áreas etnogtafuas no Nordeste do
Brasil: a dos vaqueiros, dominando a caatinga, a do» engenhos, dominando

7-1 MI.NI ZI.S, Djum <)/> ,(/,|> SK


DURVAL MUNIZ DF. ALBUQUERQUE JÚNIOR 175

o litoral e vales úmidos da costa para o ocidente da Serra do Mar; a dos


pescadores, dominando as praias baixas, arenosas, cheias de dunas.75

A violência, a luta, o derramamento de sangue teriam sido a tônica


deste processo de colonização e de constituição do homem nordestino.
O Nordeste fora, no passado, uma terra para quem não tinha medo de
morrer nem remorsos de matar. A família nordestina, muitas vezes, teria
se formado do encontro do fazendeiro dominador com a cabocla caçada a
patas de cavalo para os haréns. A casa-grande, seja no litoral, seja no interior,
surgiu como o centro polarizador. A necessidade da defesa imediata contra
o índio implacável, trucidando brancos, teria criado o uso indispensável
das armas, o emprego do desforço pessoal, a confiança em seus próprios
elementos de defesa, o orgulho das pontarias seguras e das armas brancas,
manejadas agilmente.76
A luta contra o índio era a luta pela conquista da terra, de propriedades,
que serão posteriormente defendidas de outras ameaças de invasão, inclusive,
por parte de outros brancos. As famílias se agrupavam na defesa daquilo
que haviam conquistado, na defesa de suas fortunas e, com o advento do
ICstado Nacional, na defesa dos cargos que conseguiam galgar na esfera
pública. Isto explicaria os conflitos de parentelas, famílias inteiras a se
matar, contratando pessoas da mais baixa condição social como matador a
mando de seu chefe, matador que de jagunço se transmutou no cangaceiro,
matador independente, que não mais aceitava ordens de coronéis, mas que
laz com estes, eventualmente, acordos e até realiza “serviços” previamente
encomendados. A história do Nordeste seria capitaneada por estes coronéis
<• suas famílias, homens que, como membros da Guarda Nacional, se
responsabilizaram pela manutenção da ordem cm suas áreas de domínio.

75. SOBRINHO, Tomás Pompcu. “O homem do Nordeste". Apud MENEZES, Djacir, Op.
cit., p. 33.
76 CASCUDO, Luiz da Câmara. Op. cit., pp. 31-32. Ver: ALMEIDA, Horácio de. História
da Paraíba. 2. ed., João Pessoa: Ed. da UFPB, 1978, 2 vols.; ANDRADE, Manoel Correia
dc. A terra e o homem no Nordeste. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1973; FAORO, Raimundo.
O.f donos do poder. 2. ed. Porto Alegre: Globo, 1975, 2 vols.; MENEZES, Djacir, O/>. «A;
BARROSO, Gustavo Terra do sol (natureza e costumes do Norte). 5. ed. Rio dc Janeiro:
I .ivraria São Jos<‘, 1956; Hl IRSZ FYN, Marcei. O poder dos donos. 2. ed. Petrópolis: Vozes,
1985; FACO, Rui (too ,■ /.«>><//>< oi. 7. cd. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983;
GIRAO, Raimundo /‘y»<,n,i t 4 ed Fortaleza: Ed. da ore, 1984; I.EAL.
Victor Nunca. i r 2 « d S.u» Piiiilo: Alfa ônicgii, 1975.
176 nordestino: invenção do “falo"

Domínio privado, autônomo, desassombrado de ameaças de governo,


fazendo justiça e sendo a polícia em seus territórios:77

Proprietários ou aventureiros que se tornavam proprietários em deserto',


sertões tinham necessidade urgente de defesa contra outros aventureiros,
contra selvagens bravios ou superficialmente domesticados que ferozmente
reagiam à ferocidade dos civilizados invasores, opondo matança contra
matança. Nessas condições não seria possível selecionar colonos, agregados,
moradores, defensores. Toda qualidade de gente era aceita.
E o meio, moral e materialmente inculto, hostil e selvagem, de um rude vivei,
exigia pessoal capaz de todas as empresas. (...) Os mais destemerosos, mais
corajosos, os mais insensíveis às desgraças e sofrimentos próprios ou alheios
eram elementos de grande valia para a luta, instrumento cego dos patrões,
amos, nem sempre dotados de sentimentos e instintos melhores.
Patrões e sequazes davam expansão às mesmas taras criminosas, à mesma
indisciplina moral e social.78

O nordestino, portanto, fruto de uma história e uma sociedade


violenta, teria como uma de suas mais destacadas características subjetivas
a valentia, a coragem pessoal, o destemor diante das mais difíceis situações.
A literatura de cordel e outras manifestações literárias da região, a partir d< >•.
anos 20, não cansam de decantar homens valentes que conseguem resolvei
as mais difíceis situações por uma atuação pessoal e individual. Coragem
e um apurado sentido de honra seriam características constituintes destes
homens, que não levariam desaforo para casa. Homens que preferiríam
perder a vida do que perder a honra, serem desfeiteados publicamente
Entregar-se à prisão seria o supremo opróbrio para homens que preferiam
morrer lutando. A própria posse da arma era uma questão de honra,
símbolo máximo de sua liberdade pessoal, e só a morte os fazia entregar r
armas para quem viesse tomá-las: 79

Assim, pois, pela manhãzinha, quando os primeiros raios de sol começavam a


redobrar ali pro nascente, Luiz Padre e Sinhô Pereira, riíle à altura dos ollum,

77. N/a. “A tragedia dc Acarapc”, Didrio de Pernnm/>uiot Rn il«, 20/01/1921, p l,< 7.


-'s <. (11 RR.\, I < li|>< fy« . 1/. pp <■
79. (AS( 11| K ), I .ui/ da ( ámaia . ()f> ti/., |> M
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 177

de um serrote próximo, bem defendidos e municiados, rompiam cerrado fogo


sobre o asilo dc Antônio Umburana.
Não tremeu o sitiado com o inopinado da surpresa; correu à cartucheira,
pegou do rifle reluzente e gritou, com voz atroadora, para o companheiro
adormecido ainda:
- Eita compade Tonho! Temos a Pereirada pelo focinho! Ganha a caatinga!
O negócio é comigo!...
E pinoteando e cantando, o cigarro amolecido ao canto do beiço sensual,
o caboclo preparou-se para a resistência. Umburana cantava, Umburana
fumava, Umburana tiroteava...
Luiz Padre, porém, queria pegá-lo vivo.
- Você está perdido; renda-se!
— Qual! seu capitão Lula! Gritava o cabra do outro lado. Caboclo macho
como eu, vai até o último cartucho.80

Este discurso literário vai desenhando o nordestino como aquele que


gozava da superioridade dos fortes, do que c temido por ser capaz de tudo,
dc não recuar diante de nada, que não treme vendo o sangue correr de uma
ferida, enquanto limpa a faca com uma folha dc mato. Esta literatura parece
oferecer as imagens c enunciados com que muitos homens e mulheres da
icgião vão, em suas memórias, desenhar a figura de seus pais ou mesmo a
figura de irmãos, maridos, esposas ou a sua própria. A valentia, a coragem,
< > destemor, inclusive por parte das mulheres, a resistência até pelas armas,
se necessário, a todas as afrontas, partissem elas dc vizinhos, opositores
políticos, representantes do governo e até de membros da família, serão
uma temática recorrente das memórias escritas por nordestinos. Parece
não ter havido pais ou mães covardes, frágeis, medrosos nesta terra:8'

HO. CALDAS, Osiris. “Contos de domingo: Na tocaia", Didrio de Pernambuco, Recife,


25/07/1920, p. 2,c. 3. Ver: ATHAYDE,João Martins dc. História do valente Pí/r/rt. Juazeiro
do Norte: Editora Popular, 1928; zf entrada dc Lampeão acompanhado de 50 cangaceiros
na cidade do Padre Cícero. Juazeiro do Norte: Editora Popular, 1926; BARROS, Leandro
Gomes dc. /tntõnio Silvino o rei dos cangaceiros, s/1, s/e, s/d; zf vida dc Canção de Fogo e seus
testamentos, 2 vols., s/1, s/e, s/d. Ver ainda: ARANTES, Antônio Augusto. O trabalho e aJala.
São Paulo: Kairóz/niNCAMi’, 1982; ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz dc. ‘“Quem c
frouxo não sc mele', violência <■ masculinidade como elementos constitutivos da imagem do
nordestino", Pio/eti’ I listai ia, São Paulo, n. 19, f.duc, 1999, pp. 173-188.
Hl DOMINt >1 ll'.S, Alliello < HiHos dc domingo Azulão", Diãrio dr Pernambuco, Rccifc,
03/04/1921, p. 2, < ! V< i Ul liO, Jom Lins do. Menino dr engenho. Rio dc Janeiro: Josc
Olvmpio, l'HI, / i ...... Ki" di laiuno Josc Olympio, 1942; Cangaceiros. 2. ed Rio
178 nordestino: invenção do “falo”

Meu pai era pernambucano de Tacaratu. Os Cavalcanti daquele sertão


constituíam uma família muito humilde de lavradores. O velhojosé Francisco
teve sempre um comportamento morigerado. Mas era homem de verdade.
Não levava afrontas para casa; e a mulher era uma sertaneja valente, que não
justificaria nenhuma fraqueza do marido. (...)
Na luta pereceram muitos e, entre eles, o velho José Francisco. Mas não loi
uma morte fácil. Resistiu, enquanto teve vida, a casa cercada pelos inimigos
E, quando mortalmente atingido, a mulher, de rifle à mão, e mais a parentcl.i,
ofereceram combate, que abateu uns e dispersou os restantes agressores."2

Parece haver, tanto no discurso do cordel, corno nos discursou


literário e memorialístico, uma legitimação da violência nesta região. (>
tema da valentia, central no discurso regionalista que desenhou a figura
do nordestino, está perpassado por uma clara legitimação da violência,
inclusive da violência entre os gêneros. Violência que, pudemos constatai
nesta pesquisa, sempre foi assustadora. Percorrendo as páginas do Didiin
de Pernambuco, contabilizamos uma média de sessenta casos de crimes poi
ano envolvendo questões de gênero e mais de duzentos casos de violência
envolvendo homens e mulheres. Se atentarmos para o fato de que a maiol
parte dos casos que eram noticiados tinham registros policiais e ocorriam
em Pernambuco, principalmente em Recife e imediações, podemos lei* 82

de Janeiro: José Olympio, 1970; RAMOS, Graciliano. Alexandre e outros heróis. 2. ed. Riu
de Janeiro: Record, 1984; Viventes das Alagoas. Rio de Janeiro: Record, 1984. Ver ainda
TELES, Gilberto Mctuionçã. A critica e o romance de 30 do Nordeste. Rio de Janeiro: Athciiiu
Cultura, 1990; GOMES, Heloísa Toller. O poder rural na ficção. São Paulo: Ática, 1981;
FREYRE, Gilberto. Heróis e vilões no romance brasileiro. São Paulo: Cultrix/EDUSl*, 19/9|
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz áe.A invenção do Nordeste e outras artesr, “Engenho
de meninos: literatura e história de gênero em Josc Lins do Rego", Lócus, Juiz de Fora, v S,
Ed. da üfjf, 1999, pp. 113-126.
82. CAVALCANTI, Povina. Volta à infância - Memórias. Rio de Janeiro: José Olympio, l‘L'.',
p. 20. Ver: CASCUDO, Luís da Câmara. O tempo e eu. Natal: Imprensa Univcrsit,iii,i,
1967; BELLO, Júlio. Op. cit.', ALMEIDA, José Américo de. Antes que meesqueça: memónas
João Pessoa: Fundação Casa de José Amcrico/cN pq, 1986; CARVALHO, Tancn do
de. Memórias de um brejeiro. João Pessoa: s/e, 1975; MONTEIRO, Frederico Mindêllu
Carneiro. Depoimentos biográficos. Rio de Janeiro: Gráfica Olímpica, 1977; SAI I I S,
Joaquim. Se não mefalha a memória. Rio dc Janeiro: I .ivraria São José, s/d, CARVAI 11< >,
I laniel dc. De outros tempos. Rio dc laneiro |osc Olympio, s/d, AMAI)(), (Icnolinu I 'm
menino sergipano. Rio dc Janeiro: Civilização Brasileira, 1977
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 179

a dimensão do que deveria ser o cotidiano das relações entre homens c


mulheres neste espaço:83

No Espinheiro ontem às 17 horas as mulheres Antônia Maria da Conceição


c Izabcl Maria da Conceição agrediram a pancadas o vendedor dc frutas
Manoel Lourenço.
No dia onze do corrente, no lugar Barra dc Tiuma,o indivíduo Manoel Nunes
espancou a cacete a mulher Felismina Maria da Conceição.84

As sogras sempre foram o pesadelo dos genros.


O indivíduo Manoel Lourenço de Almeida, por antonomásia Ioiô Careca,
possui uma sogra.
Alquebrada pelos anos, a senhora Maria Barbosa tem impertinências que não
agradam a seu genro.
Ontem houve entre a sogra e o genro um rompimento de hostilidades.
Numa pequena escaramuça o Careca foi resolutamente à orelha direita de sua
sogra c deu forte dentada.85

Tal violência parece estar ligada a outro tema constante no discurso


regionalista nordestino, ao traçar as características do homem da região, que
c o do valor que este confere à honra pessoal, em nome da qual c legítimo ate
matar. A honra não podia ser atacada nem por outro homem, nem por sua
mulher. Um homem sem honra não existia mais, era considerado um pária
na sociedade. O adultério feminino, por exemplo, tinha que ser duramente
punido pelo marido sob pena de ficar desonrado. Nestes casos, a morte
do amante e da esposa era o que faria este homem ser novamente aceito
no convívio social. Este sentido dc honra era um elemento da tradição
cultural vinda desde os tempos coloniais. Sem autoridade judiciária ou
policial para resolver os atentados à honra dos potentados da colônia, estes
tinham de recuperá-la com as próprias mãos:86

Kl Sobre a legitimidade da violência no Nordeste c sua participação como traço definidor da


nordestinidade, ver: ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. Quem éfrouxo não se mete.
Kl N/a. “Espancamento", Didrio de Pernambuco, Recife, 15/10/1914, pp. 3,4.
H'> N/a. “Pelo lar adentro Um genro que morde a sogra”, Didrio de Pernambuco, Recife,
15/10/1914, n. 5.
H(> MAGA1.I IAI S. Aganuiion p, 85. Para a relação entre masculinidade c honra,
ver: BORDIEU, PIcih- / domiihuii" maiculintr, MATOS, Maria lzilda; FARIAS,
Fernando. Melodia ,■ >m! I mm Hndri^uet. Rio dc Janeiro Bertrand Brasil, 1996;
180 nordestino: invenção do “falo*

Não há maior injúria que o desprezo e é porque o desprezo todo se dirig<


e ofende a vaidade, por isso a perda da honra aflige mais do que a fortunn,
não porque esta deixe de ter um objeto mais certo e mais visível, mas porqur
aquela toda se compõe de vaidade, que é em nós a parte mais sensível.
Poucas vezes se expõe a honra por amor da vida e quase sempre se sacrifi» a
a vida por amor à honra. Com a honra, que adquire, se consola o que perde .1
vida, porém, a que perde a honra, não lhe serve de alívio a vida, que conserva
como se os homens mais nascessem para terem honra que para terem vida."'

Por ter vivido durante muito tempo sem a presença mais imediata d.t
autoridade do Estado, o nordestino teria desenvolvido um enorme espírito
de liberdade, que teria sido, inclusive, o propulsor do povoamento doa
sertões. Ao contrário do bandeirante paulista que entrava para o sertão j.i
em busca do interesse, do metal precioso e do índio para a venda, o qm
já prenunciava o espírito utilitário e comercial dos paulistas do século xx,
a sua sede de lucros, o homem que foi para o sertão do Nordeste o lc/
em busca da liberdade, muitos deles cristãos-novos a fugir das garras <l.i
Inquisição, outros criminosos degredados que viam no interior a chance
de fugir à prisão. Homens dispostos a não se submeterem nunca, homeu .
rudes, embrutecidos nas lutas em que garantiam a própria vida. Por is ,< 1,
a cultura do nordestino era rústica, assim como ele próprio, cultura que
garantia, no entanto, sua sobrevivência, nascida da adaptação do homem
às condições naturais e sociais de seu espaço, fruto de uma história que
precisava ser lembrada, uma cultura tradicional, vinda do passado, e que
se via agora ameaçada pela invasão de uma cultura estranha trazida pclu
cidade:*87
88

ALMEIDA, Miguel Vale. Op. cit.; NOLASCO, Sócrates. O mito da masculinidade.


87. AYRES, Mathias. “Por que a honra vale mais do que a fortuna e a vida", Didrio de
Pernambuco, Recife, 19/12/1926, p. 7, c. 2.
88. MENEZES, Djacir. Op. cit., p. 37. Ver: DANTAS, Manoel. Homens de outroora. Rio d<
Janeiro: Ponguetti, 1941; l.AMARTINE,Juvenal. Velbor costumes do meu eertao. }. ed Nai.il
Fundação José Augusto, 1965; CASCUDO, l.uís da Câmara. HistMa do Rio Grande ■
Norte. 2. ed. Natal: Fundaçao Josc Augusto, Rio <!<• janeiro: Ai liiainc, 1984; I )AN I AS, |o<„'
Adelino. Homens ejatar do Sendo antigo. (iaianlniiis Monitor, s/d Ver ainda MAt I I •< 1,
Muirakytun Kcnnedy dc .1 penuhnna ivnao do Sendo Nalal, 11» iin, 1998 (Dlsscitação d<
Mesliado rill ( K'ni ias Sis lais).
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 1 RI

Naquele tempo patrão!/ as coisa era diferente/ que os home nem simportava/
pruque não tava descente/ fosse na festa ou na feira/ era uma roupa grosseira/
de um tecido bem grosso/ cuino cativo ou liberto/ mais o coipo era cuberto/
do mocotó ao pescoço.
Apragata dc rabicho/ai vez de couro cru/ mas sendo de boi criôlo/ que num
havia zibu/ e tinha sempre um estoque/ dc ateuifiço c currimboque/ in casa
e indo pru campo/ qui o ferro da pedra a isca/ tirava cada faísca/ que paricia
um relâmpo.
Jogava bola de mão/ que num tinha fitibó/ nos domingo os hômc ia/ pega
peixe de anzó/ matá mocó nas pedreira/ tumá bãe nas cachoeira/ dipois deitá-
se na areia/ fumando no seu pacaia/ fazê cigarro dc paia/ e butá putraz da
uréia.'”

A própria linguagem em que é vazado esse folheto de cordel remeteria


a duas outras características do nordestino: ele seria um homem iletrado
ou com um acesso precário à alfabetização c usaria constantemente uma
língua portuguesa que viria do século xvi. Ele não falaria errado, falaria
diferente do homem das cidades que estavam perdendo o contato com
a tradição cultural nordestina. Sua prosódia c construção gramatical não
seriam nem atuais, nem faltos de lógica. Enquistado durante séculos
naquelas regiões do interior, “ele manteve o idioma velho, rijo e sonoro,
dos antigos colonizadores”, falam como falavam Gil Vicente e Luís de
Camões. A rodovia estava levando até o interior uma linguagem que
não era a nordestina, amolecida pelos galicismos e arrevesada pelos
anglicanismos. Os jornais, as escolas, as visitas, as viagens completariam
a obra de destruição da linguagem própria do Nordeste, que poderia ser a
base da construção de uma poética e dc uma literatura só dele:91’*
90

><9. 1.1 MA, João Severo. Nosso sertãofoi assim, s/1, s/e, s/d.
90. CASCUDO, 1 -uiz da Câmara. Viajando o sertão, p. 39. Ver: BARROSO, Gustavo. Através
dos 1'olk-lores. São Paulo: Melhoramentos, 1927; Ao som da viola. Rio de Janeiro: Livr.
Ed. Leite Ribeiro, 1921; CASCUDO, Luís da Câmara. Vaqueiros e cantadores. 2. ed. Rio
dc Janeiro: Tccnoprint, 19(>K, MOTA, Leonardo. Cantadores: poesia e linguagem do sertão
cearense. 3. ed. Emtaleza Imprensa Universitária, 1961; Sertão alegre: poesia e linguagem
do sertão nordestina Emtaleza Imprensa Universitária, 1965; Violeiros do norte: poesia e
linguagem<<■>/,/. -> • .A <»<<» ■ ' > d Itlo de |anciro: A Noite, 1955; (>M ES NE. 1'0,José.
() aspecto verba! na liloals..... I > ■/,/ I lmlanó|M>lls: iniiisi , 1976,
182 nordestino: invenção do“fai.<>"

O doutíssimo poeta Doutor Antônio Ferreira (1528-1569) utilizava


vocabulário irmão, de pai e mãe, do nosso sertanejo. Trouve (pretérito do
verbo trazer), reposta, (resposta), mezinhas, (remédio,) pide, (pede), minino,
minina, piqueno (com i em vez de e) supito (súbito), malenconia (melancolia),
escornado, (perseguido) (...) são vistos em cada página da obra teatral do
grande clássico da língua portuguesa.
Um ponto sensível é o sertanejo não conhecer o plural. Sabemos o número
apenas pelo determinativo. O boi, os boi, a vaca, as vaca, o bicho, os bicho.''1

O cordel representava a resistência desta cultura que era a expressão


do homem nordestino, que lhe dava perfil, que o delimitava e definia. Poi
isso, uma das principais atividades a que se dedicarão os regionalistas <■
tradicionalistas é tentar “preservar a cultura popular nordestina”, já que a
cultura das elites ha muito vinha sendo corrompida. No começo do século
xx, diante do avanço da urbanização e da modernização, restavam, no seio
das camadas populares e entre os habitantes de áreas menos contaminada
pelas influências urbanas e cosmopolitas, as genuínas expressões do homem
nordestino. Perdendo-se este patrimônio cultural, o espírito regional, a
índole e o caráter do povo do Nordeste estariam definitivamente perdidos
Se as tradições da sociedade da casa-grande e da senzala estavam se
perdendo.se as tradições do sertão estavam ameaçadas pela modernização,
cabia intensificar os estudos de folclore, já iniciados por Silvio Romero,
no século anterior. Num investimento que Michel de Certeau chamai a
de descoberta da beleza do morto, esses intelectuais tradicionalistas,
folcloristas, ao tentarem preservar a cultura popular, investirão, na verdade,
em sua decodificação e tradução para códigos e gêneros eruditos de cultura
O popular será resgatado, ou seja, retirado do seu lugar, deslocado, posto
para funcionar em outra estratégia, a de constituir uma cultura regional <•
ser a expressão genuína da alma de um ser regional, o nordestino:91 92

O sertão perdeu seus cantadores. A vida transformou-se. As rodovias levam


facilmente as charangas de um para outro povoado. As vitrolas clangoram os
foxs de Donalson e de Youmans. As meninas, que conheci espiando os ‘Iioiih '

91. CASCUDO, Luís da Câmara. Viajando o tertáo, pp. 40 41


92. CERTEAU, Michel dc. “A beleza d<> morto’*. In: /I lulfinn plühil S.io Puulo Piipiim»,
1995, pp. 55 86. Vci ROMIRO, Silvio. Contu\ /wyWtfo • </<> Hhhií Rio d< |.inciio Jon»
Olympio, 1954, 2 v , 1'Afuilm dn fwbulaf >!<> //mu/ ) • 15 tiopoli*. Vcr/cu, 1977.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 183

por detrás das frixas das portas, reclusas nas camarinhas, dançando a meia
légua de distância do par, hoje usam o cabclinho cortado, a boca em bico-de-
lacrc, o mesmo palavreado das tango-girls do Acro Clube e Natal Clube (...).
O sertão descaracteriza-se. E natural que o cantador vá morrendo também.91

A partir da década dc 20 são publicados, de uma forma frequente,


livros que abordam o “folclore regional”, que tratam “de coisas e cenas
do sertão, do sertão nordestino, com a visão de seus tipos singulares c de
sua extraordinária natureza”, livros que, ao tratarem destas manifestações
culturais, contribuiríam para “fixar mais ou menos a psiquê do homem que
habita certas zonas do Nordeste”, tratando dc “crimes, secas, superstições,
ingenuidade”, tudo que caracteriza o ambiente “moral e físico de nosso
povo”. Palestras são feitas sobre assuntos nordestinos, sobre expressões do
gênio do povo do Nordeste como os cantadores. Eloy de Souza, Leonardo
Mota, Luiz da Câmara Cascudo passam a falar, cm sucessivas palestras
<• nos vários estados da região, sobre esta “cultura que estava morrendo”.
O livro do folclorista cearense, Leonardo Mota, com o título Violeiros do
Norte, é saudado de forma efusiva por Câmara Cascudo, em artigo no
Didrio de Pernambuco, em que define, de forma clara, o próprio trabalho
que também estava empreendendo:93 94

O senhor Leonardo Mota entendeu que o verso do povo (real e metaforicamente


livre de escolas) é a fisionomia moral do temperamento coletivo. E por
mais ressonante que a frase seja ou pareça, a verdade vai seguindo todos os
diagramas do percurso.
O labor desta maneira é mais formidável porque é de seleção, dc escolha, de
avaliamento. Depois desta pedraria retirada do bruto e cinzento cascalho é
que os Max Millcrs ou Lehmann Nietzscher tra-la-ão, reluzente e cara, para
a vitrina comodíssima das citações.95

Deste cascalho bruto, que eram as manifestações culturais populares,


<>s intelectuais regionalistas e tradicionalistas querem arrancar os brilhantes

93. CASCUI )<), I .ur. d.i < un.ii.i. Viajando o sertão, p. 46.
94 N/a. "lavrou <■ lollich». Aboiado", I >iãrio dc Pernambuco, Recife, 25/11/1925, p. 3, c. 7;
N/a. “Centro Regionalcaa", / </<• Pernambuco, Recife, 13/07/1924, p. 3, c. 1.
95. CASCUDO, l aiu da < amaia ' In lena aliena (Leonardo Moita)", Didriode Pernambuco,
Reiilc, 16/09/19.M.|, I
184 nordestino: invenção do “fai.o"

da cultura regional, fazendo como Leonardo Motta com os cantadon


elucidando, cotejando, explicando a cultura popular, dando a esta unia
atitude positiva e própria, num esforço romântico de tornar eruditos ou
versos populares, sem achatá-los entre o grego e o latim. O verso chega
“naturalmente tosco, bravio, impulsivo, irregular e lindo como uma grantlfl
ode”; versos dos “aedos de gibão e guarda-peito”, que nascem pelo “frag< *i
das cavalgadas no arrojo delirante das derrubadas, (...) em derredoi .1
campina, o açude, a feira, o dia claro, a serra faiscante, a água cantante 110
inverno, a caatinga revolta na seca”. Versos cantados por “lerda e arrastada
voz de negro, etnicamente exilado de todas as pátrias, um fio trêmulo de
cantiga humilde”.96
A vaquejada de apartação era outra manifestação da cultura popul.it
nordestina que ia desaparecendo. A produção de algodão, com
valor comercial, substituía a pecuária. Aos poucos, o gado estrangcim
invadia os pastos. Os reprodutores multiplicavam-se. Todo este gado |.i
não atendia à magia melódica do aboio, a trilha sonora, que outrora o»
vaqueiros desenhavam no ar, sugestionando a boiada vagarosa. Touio
Zebu, Caracu, I leresford não entendiam aboio nem serviam para sen th
puxados. “A vaquejada, velha escola de agilidade, de afoiteza, de arrojo, ■ I-
valentia, de presença de espírito e decisão pessoal” estava desaparecendo
Para substituir junto aos moços essa tradição de bravura, estabelecia
“melancolicamente” o futebol.97
A cultura popular nordestina ia sendo inventada, assim, a parti 1 dt
uma lista de manifestações que estariam desaparecendo. Seria uma cultm u
natimorta, que já surge nas páginas dos estudos folclóricos como relíquia*

96. CASCUDO, Luís da Câmara. "In terra aliena... (Leonardo Mota)”. Ver ainda: MO IA,
Leonardo. Sertáo alegre', Cantadores, CASCUDO, Luís da Câmara, Vaqueiros e cantadioei
Antes desta geração dos anos 1920, no final do século xix, movidos por um regionalhm"
ainda provinciano temos também a produção de trabalhos sobre o folclore que m-M"
retomados por esta geração; ver, por exemplo: GALENO,Juvenal. Lendas e canfiespcipulaiH
Fortaleza: R. Silva, 1892; Scenaspopulares, s/1, s/e, s/d; TEÓFILO, Rodolfo. /.yr</ »//>/»•<•
(scenas da vida sertaneja). Lisboa: A Editora, 1913; Scenas e tipos. Fortaleza: lypo;'.iafia
Minerva, 1919.
97. CASCUDO, Luís da Câmara, “/n terra aliena... (Leonardo Mota)”, p. 46; Ver: CASUUI " 1
Luís da Câmara, Vaqueiros e cantadores', Tradifões populares da pecudria nordestina. Ri>> «I*
Janeiro: sir, 1956; Diciondrio do folclore brasileiro 9 cd Rio dc |aneiro: Ediuuro, 19'61,
MENEZES, Raimundo. Cwiw/i o tempo levou borialrza: lulésio, 1938; MIRANMA
Manoel Coímin (jur m ontei cm (< oiiIom legioiniU) luuetii ihi Semi, Ubuiaia, 1926; SAI I ’•
Antônio Hetruhn e lembhiii\ti\ l-miali za Wiiltli mai <le < antro <• Silva, 1918
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 185

que passariam a viver apenas por causa do esforço das penas e pesquisas dos
Inlcloristas. A cultura nordestina, que caracterizaria os comportamentos,
atitudes, hábitos, manifestações artísticas de sua população, era aquela
cultura tradicional, rural, ainda não marcada pela delicadeza das culturas
civilizadas. Era uma cultura rústica, nascida dc uma história dc conflitos e
lutas entre os patriarcas brancos e a extraordinária bravura dos indígenas:

A extraordinária bravura desses íncolas,escrevendo as páginas mais sangrentas


de resistência à colonização, que csfacelará as estruturas tribais para oprimi-
los, exclui o quadro de indolência, amolecimento e dcgenerescência, que
se compraz em descrever-nos (...). Os instintos de agressividade c luta são
profundamente machos. Maranon já mostrou luminosamente como o trabalho
e a luta, dependem de fortes instintos relacionados com o sexo. O trabalho
está ligado ao instinto de conservação individual e não se opõe ao sexo, como
não se opõe o indivíduo à espécie. Intenso esforço vital exprime e exige forças
instintivas e sexuais. A forma mais robusta e expressiva da masculinidade
c a luta. A imensa energia desenvolvida pelos turbulentos aborígenes, na
resistência porfiada que ofereceram, é o traço mais vigorosamente macho que
poderíam por em relevo.1’8

O nordestino seria macho pela própria história da região, que teria


exigido a sobrevivência dos inais fortes, dos mais valentes c corajosos.
Nesta descrição do nordestino, percebemos que, embora os intelectuais
que elaboravam este tipo regional estivessem ligados às elites, é no homem
das camadas populares, principalmente do campo e do sertão, que se vai
buscar um modelo típico de masculinidade para ser generalizado para todo
m i regional. Os homens das elites decadentes, moles e impotentes, das

novas elites burguesas, homens delicados c dc punhos de renda, ou mesmo


o morador pobre da cidade, efeminado por uma vida sem exercícios físicos
duros, por uma vida que não era rústica, não serviam como modelo para
csle novo homem que se pretendia criar, capaz de significar uma resistência
viril contra esta cultura moderna e delicada, que ameaçava descaracterizar
,i icgião c submete Ia definitivamente às outras áreas do país. Por isso, c

'<L Ml NI /!'S, I i|i« ii < >/ |- ■!


186 nordestino: invenção do“fãU>"

nos tipos rurais tradicionais e em suas manifestações culturais que se vu|


procurar o tipo regional e a cultura regional."

5) Tipos constitutivos do homem nordestino

O nordestino é construído através do agenciamento de uma série dc


imagens e enunciados que constituíam tipos regionais anteriores. Para e f i
construção confluem os tipos regionais que corresponderíam às chamada
áreas etnográficas em que estaria dividida a região, áreas demarcadas poi
diferenças naturais, pela formação racial particular de sua população <Hl,
mesmo, por um processo histórico de colonização, ocupação e exploração
econômica distintas, que seriam: o sertanejo, habitante do sertão d.t»
caatingas, do clima semiárido, produto do caldeamento do branco com
o índio, ligado à ocupação do interior e à atividade pecuária; o brejeiro,
habitante da zona intermediária entre o sertão e o litoral, áreas úmida»,
de relevo mais elevado, produto do cruzamento entre brancos e negro»,
dedicando-se às atividades de subsistência ou trabalhando na produção
da cana-de-açúcar; e o praieiro, que habita as praias largas e arenosas <lo
litoral, produto dos mais variados cruzamentos raciais, dedicando- .<■ à
atividade pesqueira.
Mas também serão agenciados os tipos muito mais sociológic»»»,
definidos por se dedicarem a determinadas atividades ou exercerem
determinados papéis sociais, seriam eles: o vaqueiro, morador do serl.m.
responsável pelas atividades pastoris; o senhor de engenho ou o corom I
grandes proprietários de terras, exercendo o poder político e o mando
em vastas áreas rurais, dedicando-se à produção da cana ou à pecuái ia <
produção de algodão; o caboclo, nome genérico dado a todo descendente dc
indígenas e pertencente às camadas populares, independente das atividade ,
que exercesse; o matuto, nome genérico dado a todo e qualquer homem do
campo em relação de contraste com o homem citadino; o cangaceiro ou

99. E interessante notar que este processo de invenção dc uma cultura popular c nacional qm
se contrapusesse à civilização, que ameaçava descaracterizar a nação ou mesmo a regi.lu,
não c particular do Nordeste ou do Brasil; ocorreu em vários países naquele moniciilu, i
particularmente em Portugal, onde regionalistas c integialistas tentavam rcaportiigui »ai
Portugal. Estes intelectuais exerceram prolunda mlliiein ia sobre intelectuais bi.r.ileim.
como Câmara Cascudo c (àilberto l'ii yn Vct I l< IBSBAWN, Ene; RAN( iER,Teii'in i
Op rí/.; RAMOS, Rui. A invenção dc Pmtugul In MAI 1'OSO, |osc (l)ir.). //n/<>n« ./.
l.isbna l'.dttoiiiil I'st.mipa, 1990,vu| t<
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR l«7

o jagunço, tipos populares de homens dedicados a atividades consideradas


< riminosas, o matador independente ou o matador profissional a soldo dos
coronéis; o beato, tipo dc líder carismático e religioso popular, e o retirante,
o homem pobre que migrava à procura de socorro, durante as secas.
Destes tipos, aquele que será tomado como o protótipo para a
construção do nordestino será o sertanejo, quase sempre contraposto ao
brejeiro, ao praieiro c ao citadino, tipos considerados decadentes c que,
por isso, não serviam para representar o homem viril dc que a região
precisava. O sertanejo c mostrado como “a vanguarda invencível desse
exercito civilizador” enfrentando a rudeza da natureza do sertão. Seria um
homem sóbrio, enxuto de carnes, desconfiado e supersticioso, raras vezes
agressivo, súbito nos seus arremessos, calado como as imensas planícies em
que nasceu, calmo no gesto e na fala descansada e, sobretudo, e antes de
tudo, forrado de intraduzível melancolia, que lhe fluiria dos olhos, da face
«arrancuda, do sorriso esquivo, dc toda a sua expressão, de todas as curvas
ríspidas do seu corpo ágil, feito de aço flexível.100
Na composição da imagem do nordestino os enunciados do livro Os
sertões, de Euclides da Cunha, sobre o sertanejo são permanentemente
agenciados e atualizados:

Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das


organizações artísticas, refere-se Euclides da Cunha, cm um dos baixos-
relêvos da sua epopeia famosa dos Sertões. E desgracioso, desengonçado,
torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade tímida dos fracos.
O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a
transladação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente
abatida num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade
deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente a um umbral,
ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal, para trocar duas palavras
com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a
esplenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória
rctilínca c firme. Avança cclcrcmente, num bambolcar característico, de que

100 CASTRO, I' dtiardo «l<- I .ima "Pelos sertões", Didrio de Pernambuco, Recife, 07/11/1925,
p. 18, c. 6; CARVAI I IO. Rnii.ihl dc. “O caráter brasileiro", Didrio dc Pernambuco, Recife,
02/09/1921, p <>, i I l*i <li o século xix c inicio do xx a figura do sertanejo vinha sendo
construída |hii obia ......... \l I Nt AR, |osc dc OCUNHA, l'.m lides da.
cit; Cl IAVIIl<<), tJ< " t"ii I ......... • l oitali za Irtniion jatahy, 1916
188 nordestino: invenção do“fai.<»“

parece ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. Esse lia
marcha, estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater um
isqueiro, ou travar uma ligeira conversa com um amigo, cai logo — cai c o
termo - de cócoras, atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio
instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pcn,
sentado sobre os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula r
adorável.
E o homem permanentemente fatigado.101

Entretanto, toda essa aparência de cansaço seria só ilusão. Nada sen.i


mais surpreendente “do que vê-la desaparecer de improviso. Naqucl.i
organização combalida operam-se, em segundos, transmutações complelas
Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadeai <l>
energias adormecidas. O homem transfigura-se, empertiga-se, estadeando
novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se
lhe, alta sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombradi >
e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantâneu,
todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e a figura do vulg.ii
tabaréu canhestro reponta inesperadamente, o aspecto dominador de um
titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e
agilidade extraordinárias”.102
O sertanejo era acima de tudo um forte, que desmentia a pecha
caluniosa de indolente. “Essa indolência antes aparente que real.com mar.
justiça se deveria chamar de estoicismo. Em reação constante contra o ineii i
físico, ora inóspito, ora dadivoso, o sertanejo faz, como que periodicamente,
também, as reservas e energias com que, a despeito de tudo, vai se
afirmando e multiplicando. E nos períodos de reconquista dessa energia
exaurida, nas fases oscilatórias de uma atividade surpreendente que talvez
se lhe confunda o repouso fisiológico com apatia e indolência”. O sertanejo
participaria da construção do caráter nacional com as suas qualidades de
“calma, persistência e simplicidade de alma”. A sua resistência orgânic.i,
por um fenômeno natural de adaptação ativa, seria medida na razão diret.i
da agrura do meio.103

101. CUNHA, Eui lide» da. Oi jcr/íri. Apud CARVAI .1 IO, Ronald dc ,</
102. Idcin.
101 REGO, M A dc Monii’. "O Noidcilc bnitilcilo*, l)hlnn <lr l'<t Rcillr,
2VOH/I92l,p 2,u . I
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 189

O tipo popular do sertão nordestino, por ser inculto, teria costumes


<• psicologia muito particulares, marcados pela “profundeza de caráter
dc homens rústicos”, pela “valentia, alegria, e ironia”. Seriam eles
"despreocupados e voluntariosos, ingênuos c sentimentais, cuja inteligência
teria, às vezes, lampejos de genialidade, na sua beleza nua, natural,
desprevenida e no pitoresco de sua inspiração prodigiosa e selvagem”. O
sertanejo seria da mesma natureza do juazeiro, única árvore a resistir às
prolongadas estiagens, com os seus predicados “primaciais de resistência,
sobriedade, desinteresse e franqueza.104
Numa mistura de caracteres físicos, psicológicos e culturais, o tipo
do sertanejo vai sendo delineado como aquele que “sem o desequilíbrio
biológico do mestiço do litoral que se procura fixar, era um tipo étnico
dcfinido.”Tendo “amalgamado em sua psiquê os caracteres de resistência e
adaptação ao meio do índio e a audácia do colono”:

Não é um nômade, não é um errante, como o deveria ser, dada a inclemência


das estações e os descampados das caatingas. É o vaqueiro que não deixa
os campos dc pastagens do seu gado, nem as estacas de seu curral. Sc a
seca impiedosa estanca as fontes, se os últimos cardos se queimam, se nos
derradeiros estertores de resistência e vida nem mais o couro existe, ele, de
rede nas costas, procura o litoral ou os seringais do Acre.
Mas onde souber que as chuvas ressuscitaram a natureza morta, volta às
caatingas que a seca devastou. Não emigra: erra, vagueia até que os campos
reverdeçam. Esse homem forte, tendo nas suas faces descarnadas o estoicismo
de todas as vicissitudes e a resignação de todas as agruras, é o obreiro tenaz da
conquista da Amazônia.105

O sertanejo seria o cerne da nossa nacionalidade, pois, isolado no


interior seria aquele elemento que não foi modificado pelas influências
cosmopolitas. Fora do contato com a civilização do litoral, sem vias de
comunicação, nem meios fáceis de transporte, segregado na muralha das
condições físicas mais hostis, se diferenciou em tipo étnico vigoroso. “E
<> sertanejo, o homem heroico, flagelado pelas fatalidades climatéricas e

104 RÊGO, M A Moiii’. < )/> i il. I IARI )MAN, Samuel. "Nossas árvores", citado por N/a.
"A Semana das Ai< 'nia Imjt a sexta conferência”, Didrio de Pernambuco, Recife,
11/11/1924, i> l,< -
105 MAGAI IlAl Ap.ommm, <»/■ -o(|>|» Hl H2
190 nordestino: invenção do “falo"

sociais, que nos longínquos rincões adustos, obscuro e grande, resiste a


natureza ingrata, retemperando as energias da nossa raça histórica cin
formação”.106107

Do estudo que vimos de fazer se conclui que no Nordeste brasileiro estão a«


mais vigorosas possibilidades de desenvolvimento e de grandeza do pais. A
população diferenciada que ali moureja em lida sem tréguas contra a natureza
áspera é uma afirmação eloquentíssima das energias da raça brasileira que *■
vai fixando.
A sua proeminência na civilização futura será iniludível, se os governo»
ampararem o homem forte dos sertões com o concurso de inicial ivas,
que o trabalho individual não pode realizar. Modificado o habitat, com o
empreendimento de obras que atenue os rigores das condições fisii i
desenvolvidas as linhas férreas, difundida a instrução, o Nordeste será o litil
das resistências nacionais. O tipo étnico diferenciado do sertanejo, pelas suu(
qualidades de adaptação, constituirá o elemento propulsor da raça brasileii a

As esperanças das elites nordestinas pareciam deslocar-se todas paia


a possibilidade de o sertanejo vir a se tornar o tipo regional capaz <l<
responder aos desafios que este espaço enfrentava. Faltavam a este homem
do interior os benefícios da civilização que deveríam chegar até ele, paia
que - aliados às suas “qualidades naturais”, desenvolvidas na luta com um
meio particular -, sendo um tipo étnico superior, que possuía qualidade »
morais superiores aos homens da cidade e do litoral, pudesse o seriam p>
assumir as rédeas políticas da região e reagir a seu processo de declínio. I Ja
ênfase na figura do sertanejo, nos anos 20 e 30, parece denunciar a própi ia
mudança nas relações de poder no interior dos Estados, quando grupmi
políticos ligados à atividade algodoeira começavam a substituir as clm u
dos engenhos, a elite açucareira, no comando do governo destes Estadmi
Podemos examinar este fenômeno no Rio Grande do Norte quando a«
elites da região do Seridó se tornam predominantes sobre aquelas do vah
do Açu; na Paraíba, quando o grupo Pessoa se sobrepõe à oligarquia I < il,
os epitacistas derrotam os valfredistas; assim como a própria asccnsao cm

106. kkin.p. 81 Ver Al Bl IQIII IIQIII . I Ih r.i . I nc. <!<■ Um \erhinejo e o sertáu 2 r<l Khi.l.
Janeiro: |oȎ Olympio; Biinillu ini , 1976
107. MAiiAI I lAf.S, Agutiwiioii Oy> m.p ’>|
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 191

Pernambuco, no pós-3O, dc Agamenon Magalhães, um homem do sertão,


contrapondo-se aos grupos ligados ao açúcar.108
Enquanto o discurso tradicionalista lamentava a perda dos valores
tipicamente sertanejos e saudava este como uma reserva das tradições
morais, intelectuais modernizadorcs defendiam a necessidade de se
aparelhar o sertanejo com as conquistas da técnica, da educação, da higiene,
«la eugenia, defendendo que este não era um retrógrado: ele aceitava e
assimilava qualquer melhoramento que lhe fosse ensinado, e de cuja
utilidade ele se convencesse. Quando estes intelectuais falam do sertanejo,
muitas vezes, deixam transparecer que estão falando da elite proprietária
que precisava de investimentos c melhoramentos técnicos que viessem
viabilizar, do ponto de vista do mercado, a economia sertaneja. Entre a
tradição e a modernidade, o sertanejo era, acima dc tudo, uma reserva de
virilidade, macheza, bravura, capacidade de luta, dc enfrentamento, de
energia para as batalhas que o espaço regional parecia carecer, o sertanejo
era um valente, um brigão, em defesa da honra e do bem, como sempre
decanta o cordel:

Eis uma história de luta /acontecida no Norte/ Nela ver-se um sertanejo/


corajoso, bravo e forte/ Em defesa de uma moça/ Enfrentar a própria morte.
Rosalvo era um moço forte/ Que nunca temeu nada/ Residia no sertão/ na
fazenda Anunciada/ Enfrentava todo azar/Topava qualquer parada.
Era filho dc um vaqueiro/ que também foi valentão/ Nasceu igualzinho ao
pai/ nunca enjeitou confusão/ Detestava duas classes/desonrador e ladrão.109

Figura associada umbilicalmente ao sertanejo, o vaqueiro seria o


«riador nordestino, a face singela e boa do sertanejo. De forma muito
distinta desta é abordada a figura do brejeiro, quase sempre contraposta
negativamente em relação à figura do sertanejo. O brejeiro, além de ser

108. CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte-, TAKEYA, Denise;
LIMA, I lermano Machado. História político-administrativa da agricultura do Rio Grande
do Norte (1892-1930). Natal: fgv-cepa-cpcda, 1979; SILVA, Elictc Queirós Gurjão.
Op ri/.-, I .EVINI'., Robcrt. A velha usina: Pernambuco nafederação brasileira (1889-1937).
Rio dc laneiro l’az <■ 1'crra, 1980; 1’ANDOLI'I, Dulce Chaves. Pernambuco de Agamenon
Mata/hãi > loniidid.nih'. mv de uma elite política. Recife: Massangana, 1984.
109 CABRAL, |o,l<i I um..... O heroísmo do sertanejo. Bezerros l olheteria Borges, s/d. Ver:
CRISTt)VA< >, I" > '>i vi ilim < > i. re.hr e o sertanejo, s/l, s/e, s/d; SI I ,VA, José Joíio da. //
vlntanfa de um ser mo. i ■ »>»• • rihu 1'siapama »/l, sslc, s/d
192 nordestino: invenção do“fai.o'

produto de um cruzamento racial que produziría um tipo étnico inferior, o


mulato ou mestiço negroide, era o símbolo do homem pobre aviltado pela
escravidão, acostumado à indolência, ao não trabalho. Bastava observai ,i
forma como cada um carregava a enxada para notar-se a diferença entre u
sertanejo e o brejeiro. Um a empunhava como se fosse uma espada, o outm
a carregava sobre os ombros como se fosse uma cruz:110

Párias da bagaceira, vítimas de uma emperrada organização do trabalho e dr


uma dependência que os desumanizava, eram os mais insensíveis ao martn i<»
das retiradas.
A colisão dos meios pronunciava-se no contato das migrações periódii i
Os sertanejos eram mal vistos nos brejos. E o nome de brejeiro cruelmenn
pejorativo.
Lúcia responsabilizava a íisiografia paraibana por estes choques rivais. A < udu
zona correspondia tipos e costumes marcados."1

O brejeiro aparece como o antípoda do sertanejo, homem depauperadt>


física e moralmente por séculos de escravidão, homem servil, obedienn ,
passivo, de cabeça baixa, incapaz de fazer a região retomar sua antiga
altivez. Homens que aprenderam durante séculos a ser submissos,
homens que haviam perdido toda iniciativa e a disposição para o trabalho
autônomo, conformados com suas condições de miséria. Homens que, paru
um intelectual modernizador como José Américo, não estavam dispo .ion
a acabar com a rotina. O sertanejo não se deixava domar nem quando
precisava fugir para o brejo, onde ia trabalhar no eito para sobrevivei
durante a seca. O sertão era como homem malvado para mulher: quanlu
mais maltratava, mais se queria bem. Aperreia, bota para fora e, na primeit <
fuga, se volta em cima dos pés. Para o sertanejo, o brejo significa o cativeim,
lugar de uma gente covarde e acanalhada e de senhores prepotentes <•
discricionários, mal acostumados pela escravidão a tratar os trabalhadoim
como se não fossem gente mas um rebanho. Do brejo nada se podia espci ii
para a região, a escravidão havia degenerado tanto o homem branco e 11< u,
como o homem do povo.112
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 193

O brejeiro, às vezes, é confundido com outro tipo regional que teria


sido agrupado na figura do nordestino, às vezes c chamado de matuto,
outras vezes dc praieiro, embora cm outros autores estes tipos apareçam
como distintos. Este homem do litoral c descrito como “nervoso, de
sensibilidade aguda, sabendo sorrir e sabendo rir, tem a imaginação
brilhante e o pensamento travesso, é artista, prefere as imagens coloridas,
as idéias abstratas, é esbelto, bem proporcionado de linhas, fala melhor
quando improvisa, volteia sobre os assuntos com desembaraço, às vezes
com atrevimento, não respeita, em geral, senão as suas opiniões, e é quase
sempre orgulhoso e audaz”.113
Haveria, no entanto, algo comum entre o praieiro e o sertanejo, um
fundo comum de melancólico e voluptuoso fatalismo. As criações populares
da região, nos campos da música e da poesia, seriam essencialmcnte
elegíacas. A saudade, o terror e a resignação misturar-se-iam às suas vozes
lastimosas, na toada plangente de seus cantares:

A sorte, nós bem sabemos,/ E tal qual uma mulher,/ Que quer, quando não
queremos,/ Quando queremos não quer.
Alma no corpo não tenho,/ Minha existência é fingida,/ Sou como o tronco
quebrado,/ Que dá sombra sem ter vida.114

Assim como o sertanejo, o praieiro seria talhado na luta contra a


natureza, desde sua pele requestada pelo sol e curtida pelo sal, até o seu
espírito humilde e cheio de bravura seriam formados na luta constante com
<> mar pelas necessidades da existência, encontrando muitos sofrimentos,
mas muitos prazeres nesta vida quase sempre muito pobre, mas com uma
grande liberdade. O praieiro, ao contrário do brejeiro, nunca fora escravo,
não sabia obedecer a ninguém, homens pobres e livres que viveram nas
límbrias da escravidão e que, por isso, eram quase desconhecidos. Era
preciso estudar seus costumes e sua vida simples, porque era mais uma face


desconhecida dos habitantes do Nordeste.115

II I. CARVAI.I IO, Ronald de. O/>. ri/.


II •! Idem.
11'> N/a. “Livros < lollirlo , ./< 1’eiihini/nico, Recife, 07/03/1924, p. 2, c. 6. Ver:
MENEZI'S, Djmli ni, CASCUDO, laiís da CAmara. /,,','/'"'<r
flringrilfim. Rio <l< laiKiio Sriví^o <l> I )o« nincntaçAo <lo Ministério da EducaçAo c
Cultura, I9S7
194 nordestino: invenção do “i ai o"

O homem das praias confundir-se-ia com o dos brejos: seria “baixo,


moreno de olhos e cabelos pretos, cabeça e nariz, às vezes, ligeiramenh
achatados, ombros largos, andar vagaroso, gestos lentos, voz arrastada
Descendentes do cruzamento do branco português com os pretos africanou,
não seriam indolentes como se costumava acusá-los, apenas trabalhavam
dependendo dos ritmos da natureza, combinando períodos de intem.au
atividades com longos períodos de descanso, de pouca faina, quando w
dedicariam a realizar suas variadas manifestações artísticas populares a
suas devotas atividades religiosas.116
Este homem típico das praias do Nordeste aparece em alguns autoten
sob a denominação de matuto, estando incluída aí toda a população qut>
habitaria o litoral, compreendendo o homem que, em outros autorcx,
aparece denominado como brejeiro ou como homem da mata, tipo
contrastante com o do sertanejo, que habitaria nosso interior:

As condições físio-geográficas do nordeste imprimiram ao caldeainenlii


étnico dos três elementos em fusão diferenciações acentuadas. Encontram, m
no nordeste dois habitats distintos. O litoral com a região das mala,
exuberantes, cortadas de rios que rumam ao Atlântico, o solo feracíssiiim,
onde se estendem os canaviais em ondulações imensas.
E a região que desde os tempos coloniais fixou o negro e o colono, na cullui a
da cana. Aí uma vasta população se caldeou, diferenciando-se um tipo rui.il
característico. Surgiu o matuto.
(...) Essa rica aristocracia, os negros das senzalas, o índio domado c o<
cruzados constituíram até 1888 a população rural do nordeste. Do amálgama
dessa população, dividida em duas castas: senhores e escravos, se originou ..
tipo diferenciado do matuto.
Sobre este incidiu sempre a pecha de indolente, preguiçoso e descuidado
Mas quem percorre a zona agrícola do nordeste, onde fumegam as chamm.ii
das grandes usinas de açúcar e silvam as locomotivas que arrastam .1 < .ma
do eito, verifica-se o trabalho de elaboração do progresso do matuto. I . I.
o mecânico que nas oficinas das fábricas forja o ferro, carpinta a madciia,
dirige as locomotivas e lavra a terra. Os pregoeiros sinistros da incap.u ida.l.
do mestiço veríam, então, as transformação imprevista do indolente, que «•

116 MAi.AI I lAES, Agamaiion ty. .)'*


DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 195

esprcguiçava no derrengue sensual dos sambas, no matuto erigindo sobre os


destroços dos banguês as potentes máquinas das usinas modernas."7

Ao contrário dc Gilberto Freyre, Agamenon Magalhães, como


representante das oligarquias rurais do sertão, não parece nem um pouco
saudoso do fim dos banguês, decantando o matuto que trabalha na usina,
como aquele trabalhador novo, moderno, que ia se formando no litoral.
Talvez, por isso, evite usar as denominações dc brejeiro ou de praiciro para
definir este homem, tipos muito marcados por uma imagem depreciativa,
tipos indolentes saídos dos males da escravidão. Agamenon parece estar
interessado principalmentc no sertanejo, de quem espera a redenção da
região, mas não deixa dc ver no matuto do litoral um coadjuvante deste, na
missão de tirar do atraso econômico a região.
E interessante perceber, ainda, que todos os tipos regionais que se
converteram posteriormente no nordestino são definidos como tipos
masculinos e rurais. Pela descrição que se faz do tipo de atividades que
executam percebe-se que, ao se falar cm homem, não é propriamente
num homem representante da espccie, mas num homem representante
dc um gênero específico de que se está falando, as mulheres estão
sistematicamente excluídas. Alcm disto, a própria designação matuto,
empregada por Agamenon para definir o tipo do litoral, aparece, em outros
discursos, como o nome dado para o habitante de toda a região, deixando
c laro que o contraponto é aí o habitante da cidade, tão sistematicamente
excluído da figura destes tipos c do nordestino quanto as mulheres.
Quanto à definição de classe social estes discursos são bastante ambíguos,
.10 definirem um tipo regional parece, às vezes, que se está falando apenas
das elites dominantes neste espaço, às vezes parece estar-se falando apenas
da classe trabalhadora, o que deixa impressão, na verdade, dc que estes
tipos regionais procuram, em sua definição, borrar as fronteiras dc classe,
apresentando todas as classes subsumidas nestes tipos genéricos.
O matuto aparece no discurso do jornalista Dioclécio Duarte, por
exemplo, como aquele habitante da região que ainda não se modernizara
<• que vinha sendo rapidamente substituído por um homem do campo
modificado pelos avanços civilizatórios c técnicos. O matuto, aqui, não é
mn tipo étnico, a roc ha viva da região, mas um tipo social que deveria ficar

117 MAGAI I lAl S, Ap,............ <>/■ < 79


196 nordestino: invenção do “falo”

para trás à medida que a modernização viesse modificar a face da regi.i"


O próprio sertanejo, que aqui aparece subsumido sob esta denominação
de matuto, não é visto positivamente, como no discurso tradicionalista,
por não ter se deixado contaminar pelo litoral, ao contrário é por mi
modificado pelos influxos de modernidade vindos do litoral que se tomava
um novo homem, aquele que a região precisava:

O tipo matuto, desengonçado e bronco, tendo à cabeça o largo chapéu do


couro e no peito a camisa de pelo de bezerro, servindo de armadura contia
os espinhos, durante as correrías desenfreadas através do matagal espcssu,
cedera lugar ao homem bem vestido, gentil com o sentimento primitivo di
hospitalidade mas sabendo discutir os problemas e analisar os fatos que fen m
a sua curiosidade.
Não se ajusta agora a perfeita fotografia de Euclides, cujo profundo talento
psicológico descrevera o perfil do sertanejo, apontando as cores externas c
pondo à mostra, um traço brilhante de pintor inimitável, o próprio aspe* n>
moral do indivíduo.
As influências modernas transformaram a face da estrutura social |
imprimiram um colorido diferente aos métodos tímidos da vida do inlc..... ,
que recebe, a plenos pulmões, o sopro entusiástico dos avanços vertiginoxiia,
(...)
O matuto tímido, cheio de preconceitos, acorrentado ao obscurantismo dai
superstições creoulas, passou a ser uma ilusão. Ele desapareceu guardando mi
da sua passagem simples reminiscência.”8

Este discurso mostra que a elite nordestina não era tão monolitu a
assim, que ao lado do discurso regionalista e tradicionalista existia outi i
versão do discurso regionalista nordestino, que defendia a modernizai, .ln
tecnológica da região como a saída para seus problemas econômicos c,
principalmente, para o seu problema maior, as secas. Aquele matuto do
passado seria agora apenas um bom tema para os estudos de folclore, paru
que especialistas em suas matutices fizessem as platéias urbanas darciii
sonoras gargalhadas, ao focalizarem seus costumes e suas alegres histót iau
O matuto, embora continue sendo visto em contraponto ao mundo

I 1K. I >1JA l< IT‘.,I )i<M lei íi>."()m'HiI>> IiiumiIoiiiiikIii’', / 1‘rinumbuio, lti< if <■,()'//1(1/l‘l
p. 1,C. 5.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 197

urbano, nestes discursos da modernização c do ponto de vista da cidade


que são descritos e julgados. Se para os tradicionalistas a cidade era vista
de forma negativa quando olhada desde aquela sociedade rural idílica que
descreviam, agora era a vida no campo que, se não seguisse os padrões
urbanos, era motivo de reprovações e de riso.119
Tão genérica quanto a denominação matuto é a de caboclo, que
aparece usada indiscriminadamente, tanto para definir racialmente o
habitante do sertão, como o habitante do litoral, notadamente, aqueles
que também eram chamados de praieiros. Esta denominação aparece com
destaque na imprensa brasileira quando da viagem dos jangadeiros do
Nordeste à baía de Guanabara, como parte dos festejos do centenário da
Independência do Brasil, cm 1922. Essa viagem serve não só para definir c
fixar o que seria o caboclo, como tipo étnico, mas o jangadeiro como tipo
social e regional específico. Repercussão igual só teria a viagem de outro
grupo de jangadeiros, durante o Estado Novo, para pedirem a Vargas a
extensão da Legislação Trabalhista à sua categoria. O caboclo brasileiro
teria demonstrado, ao fazer este vitorioso “raid” pelo litoral, “a sua valentia,
.1 sua resistência e fibra, em cujas almas intrépidas e destreza consumada a
pátria podería confiar tranquilamente se em qualquer emergência, exigisse
sua defesa armada”.120
O caboclo também é apresentado como o sertanejo e como aquele
capaz de prodígios modernizadores. Em visita ao Norte do Brasil, em
1919, o arcebispo de São Paulo, D. Sebastião Leme, fica maravilhado com
Paulo Afonso, que considera verdadeiro centro de civilização, “obra do
caboclo brasileiro”. Paulo Afonso seria a própria civilização no coração
sertanejo. Ao visitar as dependências da fábrica da Pedra, pareceu-lhe
achar-se em um grande centro industrial como São Paulo. Não concorda
que o nosso caboclo fosse o Jeca Tatu de Monteiro Lobato, até porque
este não seria uma questão de regionalismo, existiría em toda parte. Se
Monteiro Lobato, escrevendo Urupês, quis mostrar os defeitos, as mazelas,
as fraquezas do caboclo brasileiro em geral, do caboclo doente, não seria
o Mané Chiquechiquc, imaginado pelo deputado Ildefonso Albano, para
caracterizar o caboclo nordestino c se contrapor à descrição lobatiana,
que deveria ser generalizado para o Brasil. O que se precisava, segundo o

119 N/a. "M.ihiiit <■ • inalul •«,••• , Ihíliioiir Pfrnam/fuco, Rccifc, 30/11/1927, p. l,c. 2.
120 N/a . "Oi. i.mp «d» tu> • NmhI»ih ,/de Per Recife, 13/09/1922, p. I,cc.2
r 3.
198 noroi m ino: invenção no "fai.h"

arcebispo, era curar o Jeca e retirar os espinhos de Mané através da cidtuiu


e da educação. Um cacto bem cultivado não teria espinhos; o nosso cabo» |u
poderia ser transformado nesta planta moderna e civilizada, se os govenx u>
tivessem estes cuidados.121
O caboclo, embora “magro, chupado, cor de bronze”, teria um coraç ,to
e um espírito que bem utilizados o fariam um bastião da pátria, longe <l<
ser aquele homem de cócoras, sempre “manginando”, descrito por I xibain
Era preciso, no entanto, canalizar corretamente suas energias, sob pemi
de termos o caboclo transformado em figuras como o do jagunço e do
cangaceiro. Fenômenos sociais e psicológicos que revelariam a própria
constituição biológica do caboclo. Para Djacir Menezes, por exemplo:

Não desapareceu, assim, a fisionomia mental do índio no jagunço ressabiado


Bem ao contrário, muitas vezes. O contraste violento, que Euclides pintou a
vivos traços, de um temperamento que oscila dos extremos de apatia à uh a
vibratilidade, da postura cansada ao retesamento inopinado das eneighin,
reflete bem a ciclotimia característica do caboclo, que levou Pompeu Sobrinhi >
a incluí-lo entre os brevilíneos estênicos de Pende.122

Na definição destes tipos regionais notamos, mais uma vez, mm


característica de grande parte dos discursos das elites nordestinas, nu
período que vai dos anos 20 aos anos 30, o uso eclético de vários modcl"
teóricos para a explicação da sociabilidade humana e mesmo para explh ai
os comportamentos e atitudes dos grupos sociais ou dos indivíduos
Misturam-se em um só texto conceitos, enunciados, temas e imagen»
de tendências teóricas às vezes antagônicas, mas que são harmonizadu*
naquilo que seria uma característica do pensamento brasileiro, ou seja, min
ter amor pelas oposições e pelas dissidências e sim pelo amalgamcnto <■
a harmonização dos contrários. Na descrição do caboclo, por exemplo,
somam-se enunciados eugenistas e naturalistas, com enunciado',
biogeográficos e enunciados sociológicos e psicológicos. E quando cale
aparece sob a face do cangaceiro, um tipo criminoso, antissocial, i
explicações para que o caboclo tenha gerado estes “tipos monstruoso*"
tendem a misturar diferentes matrizes teóricas; mesmo quando se pretendí

121. N/a.“O Arcebispo dc São Paulo fala ao Diiirio", Dúbio</<• Prniunibuco, Recife, 11/10/l’<l
p. 3, c. 2. Ver Al .BANO, lldcfonso. /<•<« Tutu <■ Mant C.huiurthitiut. i/l, s/e, s/d
122. MENEZES, I Jjacir. ()f>. cit., p. 98.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 199

criticar qualquer determinismo, conceitos com ele comprometidos afloram


na argumentação:123

As exceções monstruosas do cangaço não caíram do céu. Elas saíram do


inferno das injustiças sociais e são explicadas intra societatem. Atitude
contrária rcpugnaria ao espírito científico. Buscar outras causas é postular a
insolubilidade do problema. As formas sociais exprimem as forças do grupo,
agregado biológico de indivíduos relacionados entre si em formas orgânicas
dc atividade que lhe garantam a base material de existência. Os casos de
cangaço são formas de desajustamento ao meio social, sob forma dc reação
violenta: reação do caboclo forte, que pega do rifle. Mas há a reação do débil,
que pega do rosário: reação do fraco, que protesta misticamente.124

Cangaceiros c beatos, tipos polares e complementares, seriam outras


figuras sociais incorporadas à figura do nordestino, dando a este sua dupla
face dc violência e misticismo, quase sempre vividos de forma inseparável.
O cangaceiro era uma espccie de entidade semifantástica, mistura dc
gente e de lenda que abalara o sertão ainda não domado pela civilização.
O cangaceiro seria um elemento rebelde à ordem e a qualquer disciplina
social. “São bandos turbulentos, compostos de tipos regressivos que, por
um fenômeno dc atavismo, revivem o rcbotalbo das bandeiras e entradas
dc Francisco Caldas, Garcia d’Avila e Domingos Sertão, que assalariaram,
nas suas hostes de caça ao índio, os cruzados dissolventes, os cabras
afeitos à desordem e ao crime”. Os cangaceiros seriam, pois, organizações
psíquicas enfermiças onde despontaria a virulência de instintos dc mestiços
transviados das bandeiras, aterrorizando com os seus crimes os sertões do
Nordeste. Mas isto só se daria por terem estes elementos dispersivos e
maus encontrado um ambiente social propício a seu desenvolvimento:125

A ausência de comunicações prontas, a falta dc um policiamento cuidado,


a justiça mal distribuída, a instrução rudimentar e inexistente em muitas
regiões, todas estas circunstâncias originaram os bandoleiros que infestam o

123. Sobre o ecletismo como uma característica do pensamento brasileiro, ver: DIEHL, Astor
Antônio. z7 íoçíJ/íkí/>/<íw7ró</. Passo Fundo: bdiupf, 1998.
124. MENEZES, Djai n ()/> rú.pp.80 81.
125. N/a "llm crimiiiiiMi p< t«« i<lr Pernambuco, Recife, 22/08/1922, p. I, c. 4;
MAt»Al 11AI !>, Ap uni timi,1 »/• ,1/, p 8t>
200 nordestino: invenção do“i ai <í

hinterland brasileiro. Acresce, ainda, como causa agravadora dessa anoin.ih i


social, os costumes políticos de aldeia, o mandonismo que se traduz nu
amparo dos chefes locais àquele elemento deletério.126

O cangaceiro podería ser levado a esta vida de extremos por vário»


motivos: Um deles se devia à “eclosão destruidora de latentes instinio»
de ferocidade sanguinária conduzindo ao primeiro assassinato, elo inicial
de uma cadeia maldita que se acrescerá até o final da vida". Dessa fornni
surgiría na história do cangaço a mais “perigosa e perversa camada da
classe”. Seriam os seus componentes “criminosos-natos”, “indivíduo»
degenerados a quem o momento sobrevindo aproveitam gostosamentc a
ensancha de encarreirarem no crime”. Outro grupo, “esquerdo e apagado",
exercería a contragosto a singular profissão com um “fatalismo melancóln o
e resignado”, seria formado pelos criminosos ocasionais, de difereim
matizes, os que por uma circunstância fortuita, inesperada, uma fatalidad»,
enfim, bruscamente se incluíram nas disposições punitivas do Código e sciH
coragem para enfrentar a perda da liberdade, dos azares do júri, abrigai •.<
iam à impunidade do cangaço. E, por último, os revoltados, os que tortui ad> • >
pela fome e pela sede de justiça se arvorariam contra a sociedade.127
As explicações para o surgimento do cangaceiro pareciam ser tã<*
cheias de contradições como as próprias figuras desses personagens. Como
entender um Antônio Silvino, que “vivia como um selvagem, dormiu
ao relento, andava vinte léguas por noite, tinha gestos cavalheiresco1, ili
permeio às suas proezas de facínora, defendia o pobrezinho e a viuva,
cevava-se nos chefes políticos, e com ares de campeador instaurava-se cm
protetor dos humildes e desgraçados.” Sua existência, pois, “acidentada >
doida” era cheia de “contrastes bizarros”. Uma vez preso, dedicava se a
ler Alan Kardec e decorava versículos da Bíblia. Como um “bolcheviquc"
culpava a sociedade por tudo que tinha feito, dizendo, ainda, que nau
queria ser brasileiro, pois não queria ser cidadão de um país sem moi.il,
sem justiça, sem direito e sem liberdade. O mais surpreendente era qm
essa fera tinha rosto de criança, não havendo nada nele que indu a .
perversidade.128

126. MAGALHÃES, Agamenon O/>. rí/., p. 86.


127. N/a. "A magistratura e u prolilaxia <l<> < anga. < o i .mo", Ih.lnu <l< Knllt,
16/06/1927, p. 2,» S.
128. !■ ERNANI H'.S, A. "Antônio Sllvlim", /»hih<i ,í /'.m,i"!/'«■ <, R< < ilc, 0.1/01/192 I, p. I, ■ 1
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 201

Na história do cangaceirismo, Antônio Silvino costuma ser contraposto


à figura de Lampião, pois o primeiro representaria o momento romântico
deste tipo de atividade, um homem que agia, muitas vezes, sozinho, que se
mantinha afastado da exploração política, que tirava de quem tinha para
dar para quem não tinha, vingando aqueles atingidos por prepotências de
poderosos; já o segundo representava a perda de qualquer valor ou espírito
romântico, era uma figura perversa, capaz dc cometer sem motivações
os mais torpes crimes, se locupletava desta atividade, negociando seus
prestimos a poderosos. Silvino teria sido preso por lhe faltar a proteção
dos “cangaceiros encasacados”. Enquanto a polícia de Dantas Barreto
prendia Silvino, no Estado vizinho do Ceará, Padre Cícero e seus bandidos
assaltavam o poder do Estado e recebiam honras oficiais. Já Lampião
seguia fazendo todo tipo de tropelias, mesmo não tendo sequer o garbo
c o aspecto de “cavalheiro renascentista” de Silvino. Era um tipo moreno,
franzino e bravo, cego dc um olho, por onde lacrimejava constantemente c
dc uma perversidade insólita:129*

Lampião reina incontestavelmcnte na imaginação sertaneja. Devemos


um grande bem ao hediondo bandido. Desmoralizou o tipo romântico
do cangaceiro. Outrora todos os valentões, chefes de quadrilha, tinham
atitudes simpáticas, gestos cativantes, ações generosas. Poupavam as crianças,
respeitavam os lares, veneravam os velhos, faziam casamentos, cobravam
dívidas a que os ricos se recusavam pagamento, rasgavam processos forjados
pelo mandonismo político. Lampião acabou com a tradição de Jesuíno
Brilhante, Adolfo Meia Noite, Antônio Silvino. E malvado, ladrão, estuprador,
incendiário, espalhando uma onda de perversidade inútil e de malvadeza
congênita onde passa.”0

A derrocada do mundo tradicional vinha representada pelo novo tipo


de cangaceiro, que já não respeitava sequer os santos e os oratórios que
protegiam a entrada dos lares. Homem moderno, Lampião evoluira de
supersticioso, que não entrava cm casas onde via retrato do Padre Cícero c
ficava parado, descoberto, silencioso diante dos velhos altares domésticos,

129. N/a. “Antônio Silvino Sna < In g.nla .»<» Recife. Peripécias <la viagem. Impressões", Didrio
dc Pernambuco, Rrclh , 0I I2/PH I, p I, N/w. "Antônio Silvino", Didrio de Pernambuco,
Recife, Il/I?/I9| I p !
I II) (’AS( I H H ), I m / • I•• < dh h • i y« .»/ , p 17.
202 nordestino: invenção do “falo"

era “seguidor de Lênin, para quem a religião era o ópio do povo”. Essa
mutação que Lampião representava no perfil do cangaceiro só foi saudada
com satisfação pelos poetas populares, que, já em 1927, proclamavam
o heroísmo do novo mito do sertão e narravam com admiração suas
peripécias. Nas páginas do cordel, o cangaceiro tornou-se ao lado do
coronel, seu inimigo e contraponto, modelos de ser homem no Nordeste
I Iomens caracterizados pela valentia, pela defesa a todo custo da honra, o
homem pobre rebelado, que vingava simbolicamente a todos os desvalidos
das atitudes discricionárias dos poderosos:

Vou tratar de Lampião/ Esse grande cangaceiro/ Afirmando que ele é/


Campeão do mundo inteiro/ Embora que Lampião/ Seja assassino e ladr.to/
Nos honra em ser brasileiro.
Sabe-se que Antônio Silvino/ Foi cangaceiro valente/ Brigou uns poucos dr
anos/ Feriu, matou muita gente/ Mas tinha que encadear/ Render as armas,
chorar/ Vendo um Lampião de frente.
Os que seguem Lampião/ Com ninguém fazem brinquedo/ Lampião num a
atirou/ Pra assustar, nem fazer medo/ Diz que a bala de seu rifle/ É capaz ■ !<
fazer bife/ De duro e grosso penedo.131

A figura de Lampião, tantas vezes descrita pelo discurso do cordel, tanto


em seus atributos físicos, morais, quanto em seus feitos e peripécias, fu ,uin
definitivamente gravada como uma das formas de aparecer o nordestino
Em uma de suas principais façanhas, Lampião chega a Juazeiro do Norte,
terra do Padre Cícero,e se comporta como um perfeito cavalheiro: disti ilml
moedas para os habitantes do lugar, concede entrevista a um jornali ia,
visita o Padre Cícero, aparece com ele na janela de seu casarão, para dclít m
dos curiosos. Firmava-se ali uma imagem que será várias vezes utilizada
para se falar do nordestino e de sua bravura e valentia:132

131. NOGUEIRA, Josc Pinheiro. O Lampiãoe seu heroísmo, s/1, s/c, 1927.
132. Ver: BARROSO, Gustavo. Heroes e bandidos. Rio dc Janeiro: s/e, 1917; MO I A, I .conaido V»
tempo de Lampeão. Rio de Janeiro: s/e, 1930; Cl IAND1.ER, B.J. I.ampião - o rei dos n.u
Rio de Janeiro: Paz. c Terra, 1980; EACÓ, Rui, Op. cit.', PERNA NI )ES, Raul ,7 m.uJ<,i 4
Lampião: assalto ã Mossoró. Natal: Editora Universitária, 1980; GOIS, Joaquim. laimpul» o
último cangaceiro. Sergipe: 1966; MACII I , Frederico Bezerra Lampião seu tempo e seu
Petrópolis: Vozes, 1978; PRAI A, Riinullo Lampeão Rio de Janciio Anel. 19 !•!; ROCI IA, M
Handoleiros dtu caatingas. Rioilc Janeiro: Frimclsco Alves, 1940; PEREIRA, Aurieclia l.opes II
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 203

O repórter na conversa/ Prestava toda atenção/ Gravou na mente o retrato/


Bem fiel dc Lampião/ O seu perfil natural/ De um modo original/ Com a
maior perfeição.
Estatura mediana/ O corpo bem comedido/ O rosto bastante oval/ E queixo
muito comprido/ Eis os traços principais/ Deste que entre os mortais/
Tornou-se tão conhecido.
Ele traz o seu cabelo/ Americano cortado/ Traz a nuca descoberta/ Usa o
pescoço raspado/ Os dedos cheios de anéis/ Boa alpercata nos pés/ Pra lhe
ajudar no serrado.
Tinha a calça de bom pano/ Paletó de brim escuro/ No pescoço um lenço
verde/ De xadrez e bem seguro/ Por um anel de brilhante/ Que se via
faiscante/ Por ter um metal mais escuro.
Usava óculos também/ Pra encobrir um defeito/ Moléstia que Lampião/ Sofre
no olho direito/ Mesmo assim enxerga tudo/ Pois no sertão tem estudo/ Faz
o que quer a seu jeito.
O repórter perguntou/ A Lampião sua idade/ lenho vinte e sete anos/ Com
toda serenidade/ Sinto-me bastante forte/ Não tenho medo da morte/ Nem
fujo de autoridade.153

Para as elites nordestinas, Padre Cícero, que recebera Lampião sem


resistência, era bem o exemplo de outro tipo social que afligia o Nordeste,
c era produto da falta de instrução e cultura de seu povo: o beato, líder
dc hordas de fanáticos, mostrava a face supersticiosa e mística do povo
nordestino. Quem percorria os sertões do Ceará, Pernambuco, Paraíba,
Alagoas e Piauí encontrava, invariavelmente, o formigueiro de romeiros
que, cm bandos maltrapilhos, esfomeados, com as mulheres c os filhos, iam
a Juazeiro tomar a bênção ao Padre Cícero. Um espetáculo que confrangia,
»onsolava c apavorava. Nada os detinha de seu fanatismo, nada os demovia
de sua romaria anual aos redutos do Juazeiro, que se desenvolvia cada vez
mais. Eram produto de uma civilização que tardava a chegar aos sertões c
que ameaçava, como em Canudos, acabar em derramamento de sangue:134

I 13. AT1IAYDE, João Martins dc. A entrada de Lampião acompanhado de 50 cangaceiros na


cidade do Padre Cícero, s/1, s/c, 0.3/1926; Os projetos de Lampeão, s/1, s/e, s/d; CORDEIRO,
José. Visita de Campeão a /w</zriro, Juazeiro, s/c, 1926; MAR1ANO, Ranchinho. O assalto
dr Lampeão a Mossons onde /os denotado. Mossoró: s/c, 1927.
II I MA< ;AI I lAí S, Af .in» liou < >p H7. Vc i ('OS I A, Eloro Batholoincn da. Joazeiro
e Padre Cisei" (I Yp"i" p,n,i a histmia). Rio de Janeiro: s/c, 1923; LORENÇO
Eli I IO, Manoel, / .iuío' Podu Cliri" {Sscnas r quadfos do fanatismo do Nordeste)
204 nordestino: invenção do “fai.o"

O fanatismo é ali uma diátase que se torna imprescindível combater. < >
sertanejo sem instrução nem cultura, chumbado a um meio social c físico
caracteristicamente hostil, na ignorância absoluta dos fenômenos naturius,
é um supersticioso e, por vezes, um fanático. A história das populações do
Nordeste está entremeada desses movimentos apavorantes do fanatismo qtu
imolou crianças na Pedra Bonita, em Pernambuco, que subverteu a ordem i
destroçou exércitos em Canudos, na Bahia.*
135

O romeiro fanático, pobre e andrajoso, percorrendo os sertões a pd


em busca de sua “Meca”, atualizava um aspecto que também serviría pai .1
definir o nordestino, o da sua disposição para o nomadismo, para percorrei
longas distâncias a pé, fato que se extremava no momento das long.t
estiagens, quando surgia pelas estradas outra figura que marcava, com smi
presença aterradora, as páginas sociais da região: o retirante. Descrito p< la
literatura regionalista, desde o século xix, no romance pioneiro de Antòniu
Salies, Vives de arribafão, o retirante e seu êxodo serão temas de copitnui
produção artística e literária, tornando-se um dos maiores símbolo. da
miséria e das lamentáveis condições sociais da região Nordeste:136

(...) o pobre sertanejo em sua casa baixa e estreita medindo seu último litro tll
farinha, matando sua última cabra, vendo desaparecer do fundo das cacimbas
a água que bebem ele e sua família e da qual dava a seus bichos quando o*
tinha. E preciso emigrar!
Ai! senhores, pensai nos grandes preparativos para as nossas viagens, <|uo
provisão, que conforto, que luxo! Vai o nosso sertanejo emigrar com toda a

2. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1926; MONTENEGRO, Abelardo. //ú/rfriu ./•


fanatismo religioso no Ceará. Fortaleza: Editora Batista Fontenele, 1939; 1’INI II IHt i
Irineu. O Joaseiro do Padre Cícero e a Revolução de 1914. Rio de Janeiro: Pongctti, 19
TIIEÓPIIII.O, Rodolfo.//WífãodoJoaseiro. São Paulo: s/e, 1922.
135. MAGALHÃES, Agamenon. Op. cit., p. 86.
136. SALES, Antônio. Op. cit.; RAMOS, Graciliano. Vidas secas. Rio de Janeiro: Record, I '»ll I,
ALMEIDA, José Américo de. yí bagaceira; QUEIROZ, Rachel dc. O quinze. 28 i d Itlu
de Janeiro: José Olympio, 1982.
Tão importantes quanto as imagens literárias trazidas por estes romances i< gi.maliio
para a construção dc um rosto e um corpo para o nordestino são as ihlMia\Oe« quf
estes trazem, feitas por artistas como Pcrcy I au, Manoel Bandeira, Poty, I >i < ‘aval. um
Aldemir Martins, Santa Rosa, que irmsttocm uma visibilidade paia <> tipo tioidi amo
calcada, principal mente, na ligunt do lellnurtc Essas imagens serão tema, posierimim mu,
tanto da pintura quanto do < turma d< ti imilti a tmidestina.
DURVAL MUNIZ DF. ALBUQUERQUE JÚNIOR 205

família levando, contai bem, os filhinhos pequenos, seus farrapos dc roupas,


suas redes, a provisão de boca que pode ajuntar e água para beber, tudo isso nas
costas dele desfalecido, acabrunhado pela luta contra a natureza, morrendo de
fome e com a alma cortada pela adversidade.137

Homens anônimos, sem rosto, nômades desterritorializados, os


retirantes aparecem no discurso da seca como o nordestino, independente
de condição social. Todos seriam retirantes, todos sofreriam os efeitos
das secas periódicas. Estratégia discursiva para trazer para os cofres dos
abastados recursos vindos da União e para dar aos filhos das elites novos
postos dc trabalho, sinecuras no serviço público. Mas a figura do retirante
construída pelo discurso regionalista nordestino será incorporada à do
nordestino em geral, construindo para este um rosto de miséria e dor e um
corpo flagelado, desfile de esqueletos andrajosos:

Era o êxodo da seca de 1898. Uma ressurreição de cemitérios antigos -


esqueletos redivivos, com o aspecto terroso c o fedor das covas podres.
Os fantasmas estropiados como que iam dançando,dc tão trôpegos e trêmulos,
num passo arrastado de quem leva as pernas, cm vez dc scr levado por elas.
Andavam devagar, olhando para trás, como quem quer voltar. Não tinham
pressa em chegar, porque não sabiam aonde iam. Expulsos do seu paraíso por
espadas dc fogo, iam, ao acaso, em descaminhos, no arrastão dos maus fados.
Fugiam do sol c o sol guiava-os nesse forçado nomadismo.
Adelgaçados na magreira cômica, cresciam, como se o vento os levantasse. E
os braços afinados desciam-lhes aos joelhos, dc mãos abanando.
Vinham escoteiros. Menos os hidrópicos - doentes da alimentação tóxica -
com os fardos na barriga alarmantes.
Não tinham sexo, nem idade, nem condição nenhuma. Eram os retirantes.
Nada mais.138

Homens sem identidade, mas tão fundamentais na criação de uma


identidade para o nordestino. Só não tão importante quanto aquela outra
figura que ficava na Mata a esperar que os salvados das retiradas chegassem
.<■; suas terras, para usa los como mão dc obra: o senhor de engenho. Visto,

I 1/ l‘REI I AS, l‘n» "A •«ii iin • • ui / htiHf/ df Rn ilc, 23/01/1920, p. 3, c. 4.


HR Al .MT II >A, Aih«h> <iIi //m( ixihi, p 1
206 nordestino: invenção do“iahi"

nos anos 20, por alguns discursos, como uma figura obsoleta, representaiii<
do atraso técnico, do arcaísmo econômico, da prepotência política r
dissolução moral, é construído pelo discurso tradicionalista como a figiua
basilar de toda a história e civilização desta região. Figura de aristou <i <
dos trópicos, de chapéu de abas largas, botas e esporas de prata ou d<
chambre de chita e chibata, responsável pela prosperidade e poder dc toda
esta área do país, que agora se via entregue às mãos dos usineiros e cm
debacle acentuada:119

Um senhor de engenho era um homem! De um lado da casa da vivemla,


numa longa ala de edifício, como numa imensa colmeia, cinquenta, sessenta,
às vezes mais, portas rústicas determinavam tantas habitações de hoiiicim
negros que eram como as muitas sombras de homem branco da casa-gnmd'
Fortes, resistentes, sóbrios, sadios, resignados aqueles cinquenta ou sessenta
homens moviam-se a um aceno do ‘senhor’. O ‘senhor pensava e resolvia .1
sessenta sombras agiam acionadas por aquela vontade dominadora e únn 1
Tanto manejavam uma enxada ou uma foice nos eitos como um . ..................
recontros.
E a maior força do senhor de engenho e das fazendas daqueles tcinpm
remotos residia na certeza de que de cada lado de sua propriedade, com igu d
valor e prestígio, outro senhor de engenho seu vizinho e amigo, estaria au
seu lado contra os Chichorros para resistir com dignidade a imprevide/ c a
prepotência dos governos (...).
Tanto valor e respeito próprio, a hospitalidade generosa, a largur/.i, "
cumprimento escrupuloso da palavra empenhada davam a cada um daqu< h »
homens uma tamanha força moral que nem juntos todos os ricos usineiro* •
hoje, apesar de muito respeitáveis, possuirão talvez”.139
140

139. N/a. “Impressões de Pernambuco”, Didrio de Pernambuco, Recife, 20/06/1926, |> l, < -
O senhor de engenho ou o coronel são figuras centrais em ioda a produção ht« ! •••■•
e artística identificada como nordestina, ver: Rp.(IO, José I ins do. Menino </. < mi;> »»A.»,
ALMEIDA, Josc Américo de. Coiteiroí (Novela). Rio dc Janeiro: Civilização Hi.i ah •• •♦.
1979; FONTES,Amando Corumbai. RiodcJaneiro: I.ivraria Schmidt, 19 H,Q( l| I R< •/<
Rachel dc. Joao Migutl( l'rò romances). Rio dc Janeiro: Josc Olyinpio, I94K; RAM* *8,
Graciliano. ò'<t« Hernuido. Rio dc Janeiro: Record, 19X4
140. BEI.I.(), Júlio. “Sciihoie» dc engenho", />ldrio <le Pemambmo, Rei ite, 10/08/1924, |i *. *’>
2.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 207

Essas figuras representativas de um passado de glória deveríam ser


eternizadas através da escritura de memórias e de romances e servir de
motivação para uma pintura nordestina. Deveria perpetuar a figura desse
homem por excelência, senhor de engenho de duras barbas medievais e da
senhora de engenho, gorda, e com um molho de chaves na mão, fazendo
com açúcar de casa as primeiras geleias de araçás, como também a figura de
seus escravos, homens debruçados sobre os tachos de cobre onde se cozia
o mel, a se agitarem com as enormes colheres, ao baldearem com as gingas
e ante as fornalhas, onde ardia a lenha para alumiar o fogo cor dc sangue.
E esses corpos meio nus em movimento, dorsos pardos e roxos, oleosos
dc suor, todos se douravam ou se avermelhavam, à luz das fornalhas que
ensanguentavam as próprias sombras, assumindo na tensão dc algumas
atitudes, relevos estatucscos.141
Freyre achava que um regionalismo criador, como chamava suas idéias,
devia se inspirar no que este tipo social havia produzido em várias áreas,
para desenvolver uma cultura que se modernizasse sem perder, no entanto,
seus valores c tradições. Inspirar-se no tipo de casa-grande dc engenho
na arquitetura, nos cocos, reis dc congo e maracatus dc cabras c mulatas
dc engenho na dança, nas marchas dc carnaval, na música. A cozinha do
senhor dc engenho, com as suas comidas dc coco, os seus adubos, a sua
doçaria rica, tudo isso deveria compor a cultura nordestina, ser resgatado
por quem queria ver esta região dc pé novamente.142
Assim, a figura do nordestino ao ser gestada, nos anos 20, agenciará
toda essa galeria de tipos regionais ou tipos sociais, todos marcados
por uma vida rural, por uma sociabilidade tradicional e, acima de tudo,
desenhados com atributos masculinos. São todas figuras dc homens,
hcroicos ou não. Seja o sertanejo, o brejeiro ou o praieiro, seja o vaqueiro,
o jagunço, o coronel, o cangaceiro, o beato, o retirante, o matuto, o
caboclo ou o senhor de engenho, todos esses tipos se relacionam com as
atividades econômicas e sociais atribuídas pelos códigos sociais, daquela
época, aos homens. Aristocráticos ou rudes, pobres, andrajosos, covardes

141. FREYRE, Gilberto. “Que é dos pintores... que não vêm pintar”, Diário de Pernambuco,
Recife, 22/03/1925, p I. As artes plásticas de temática nordestina tomam estas figuras
como um dos seus iioiir** principais; ver, por exemplo, uma boa parte da produção do
pintor Altlt imi M.itihi i, noladamrntc os quadros.
112 Ver I RI A RI ,< «db« Rio dc Janeiro: Josc Olympio, 1941; Afí/z/j/Zr/o
retionidiihi, 4 nl R» • ih I tmiliisá" J(,aquim Nubiico/MK', 1967.
208 nordestino: invenção do “mi ií

ou valentes, são todos expressões de uma sociedade onde a históilit,


a ação, parecia pertencer apenas aos homens. Figuras que ficaram nu
passado, destruídas pela modernização, pela emergência da socicdmlf
urbano-industrial. Figuras de um mundo ainda não dominado pni
valores burgueses, agentes de um capitalismo incipiente. Figuras vitulm
do mundo da escravidão que serão resgatadas para construir o novu
homem da região, capaz de reafirmar as qualidades que essas figurM
possuíam e capaz de superar as suas deficiências. O nordestino devei l,i
preservar o que de melhor nelas havia, principalmente o fato de sei nu
viris, potentes, capazes de intervirem na realidade. Eram maclnm,
e isso era o que mais a região precisava. O nordestino, homem novo,
nascería do resgate de alguns desses tipos e da superação de outros, nua
preservaria sempre a coragem, a valentia, o destemor, a machcza i onm
atributo principal.

6) Nordestino: uma invenção do “falo”

O nordestino é um tipo regional que surge por volta dos anos ’tl,
do século passado. Surge nos discursos das elites da região, que também
estava elaborando sua identidade desde a década anterior, levando algum i
décadas para ser introjetado como um elemento definidor de identida.h
para toda a população desta área do país. Ainda hoje, em outras regmc*»
convive, lado a lado, com outra identidade, a de nortista ou com estereót ip<
como o do baiano em São Paulo e do paraíba, no Rio de Janeiro, qu*
também servem para identificar os habitantes do Nordeste. Nos ano- 20,
encontramos outra variação para essa identidade regional, a de nordest ino,
demonstrando que esta era ainda uma identidade em elaborai, n-
Construído a partir de temas, imagens e enunciados que definiram outmi
tipos regionais anteriores, o nordestino será descrito de diferentes loim i .
mas terá alguns traços definidores que se encontrarão em todas as ver.....
será um tipo rural, que não se identifica com o mundo moderno, reativo
ao processo de transformações que, desde o século xix, implantava uma
sociedade tipicamente capitalista e burguesa no país; reativo ao processo
de implantação de uma sociedade urbano industrial, l-.le reprcscnt.ua iiiii.i
tradição agrária e patriarcal, quando nao escravista. Seta o bastião dc uniu
sociedade artesanal e folclói iva, que estaria desaparei endo, Seta definido,
acima de tudo, como uma ic-.civa dc virilidade, mu tipo masculino, um
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 209

macho exacerbado, que luta contra as mudanças sociais que estariam


levando à feminização da sociedade.141
Contemporâneo da emergência, nos Estados Unidos, da figura do
cowboy, o nordestino c uma reação à crise da masculinidade que Elizabcth
Badinter localizará entre o final do século xix c os anos 30 do século xx, no
inundo ocidental. Penso ter deixado claro, na primeira parte deste trabalho,
que esta crise também é vivenciada com muita angústia pelos homens das
dites brasileiras, notadamente, no Nordeste, região em declínio econômico
c político. Neste espaço, esta crise de um padrão de masculinidade,
trazida pelas mudanças aceleradas proporcionadas pelo mundo moderno,
sobretudo pela alteração do lugar ocupado pelas mulheres, pelos filhos c
pela própria família, é vivida como uma crise mais aguda, pois abarcaria
todos os aspectos da sociedade. E nítido como as figuras de gênero são
usadas para falar da crise econômica, política e social vivida pelo Nordeste.
Esta região é vista como se feminilizando, se passivizando, precisando, pois,
dc um novo homem, um novo habitante, que significasse uma reação viril a
este processo de horizontalização e declínio, que se anunciava mortal para
uma elite agrária tradicional que a dominara até então. Se nos Estados
Unidos foram buscar no vaqueiro americano, no desbravador do Oeste,
esta reação viril ao mundo que se feminizava, aqui será o sertanejo a base
de criação do nordestino, este homem dc novo tipo, pois militante pelos
interesses dc sua região, ou seja, pelos interesses de suas elites.143
144
O nordestino surge definido como uma reserva dc brasilidade, um tipo
mais homogêneo, nascido do caldeamcnto das três raças formadoras da
nacionalidade, mais autóctone, mais nativo, por não ter sido transformado
pela infusão recente de sangue estrangeiro. O nordestino seria “um homem
incubado, um homem explosivo, aparentemente morno e sombrio, porém,
com reservas enormes de talento e imaginação”. Esse homem “rústico e
desconhecido”seria capaz, no entanto, de dirigir um automóvel e consertá-lo

143. Para a expressão nordestano, ver: GUERRA, Felipe, /linda o Nordeste, p. 7 c 11.
144. BADINTER, Elizabcth. XY: sobre a identidade masculina. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1993. Sobre a crise da masculinidade entre o final do século xix e o
começo do xx.vci ainda: SI IOWALTER, Elaine, Anarquia sexual: sexo e cultura
no fin dc \ic</e Rio <l< |aneiio Rocco, 1993; 1’AGI.IA, Camille. “Dccadcntistas
americano» l’o<. I lawlltome, Mclville, Emerson, Whitman.Jamcs”. In: Personas
210 nordestino: invenção do“fai.<>”

depois de duas lições, “sonolento e de sorriso esfíngico, torna-se de repente


uma maravilha de coragem e desprendimento ”. Homem tradicional, mas
aberto à modernização:

A nossa mentalidade, o espírito forte do nordestino já não merece dúvida.


Em toda parte, espalhado pelo Brasil inteiro, está o nortista, o heroico
desbravador, com uma reserva admirável de talento e de firme caráter impondi >
a sua característica forte.
Tudo que possuímos é nosso, é de nosso esforço, de nossa tenacidade.
Sem os grandes fatores centrais, entontecido pelo escasso apoio económii <>
financeiro, com tudo vamos como grandes magos, abrindo horizontes <•
possibilidade raras, nessa admirável terra, uma das mais jovens do mundo.
O Nordeste foi e será sempre o tronco firme e inviolável da nação, a árvore
magnífica que tem dado e dará sempre ao país os frutos mais opimos.145

Neste discurso, além de aparecer, ainda, certa indefinição entre .1


designação de nortista e a de nordestino para nomear o habitante da região,
vemos este ter seu perfil traçado, em grande medida, através de imagens qu<
lembram o sertanejo de Euclides. Nota-se, ainda, a veiculação da reivindicai, .»• •
de atenção do governo central para com este homem que, como reserva d<
brasilidade,o melhor filho que o país teria, devia ser mais bem tratado, dandt•
se condições a ele de deixar de ser um rústico e se apropriar das conquista,
do mundo moderno. F'ilho de uma natureza rude e de uma civilização qm
tardava a chegar, o nordestino, calcado na imagem do sertanejo, era a resct v.i
de valores tradicionais que estavam sendo solapados pelo mundo urbano:

O homem, singelo, abrupto e forte, é a grandeza moral do ambiente.


Ingressou 11a vida civilizada com um passo tardo e incipiente. Ficou a uniu
caminho mantendo, integrais, a espontaneidade, a firmeza e a simplicid.uli
rústicas de caráter.
A aspereza indômita do sertão exigiu-lhe a operação de energias sobtc
humanas.
Na labuta dos restritos mistérios agrícolas à indemcncia periódica das ■.< < a<
arruinantes, nas correrías, cm campos abertos, ou cm trechos peiigohun,

145. CAVAI ( AN I I, Aifillx tto. "A nu nt.ilhl.iilr <|<> Norilcue", />í</rí» </<• l'i >R< . Ih,
DURVAl. MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 211

bordados dc valõcs, dcspenhadeiros e carrascais selvagens, montando cavalos


árdegos e bravos, o nordestino é a coragem sobreposta a todos os perigos.
A simplicidade primitiva dos rígidos hábitos domésticos plasma-lhe a
organização serena da honestidade inútil.
Ama com uma singeleza feroz, seu campo, seu gado, sua casa, totalizando-lhe
a magnitude da existência.
Essa mesma simplicidade cria-lhe na grosseria inculta do instinto um fundo
permanente dc superstição hereditária.1*'’6

Calcado na figura do sertanejo, o nordestino é descrito como um


homem centrado na vida familiar, um homem apegado à terra, contra a
qual luta insistentemente. Inculto e supersticioso, capaz de acreditar em
assombrações e manifestações do sobrenatural, era, acima de tudo, um
homem honesto e hospitaleiro. Povo filho do “requeime acre de um sol
abrasador”que, se dá a este certo ar lânguido de tocador de violão,“comunica
ao sangue alguma coisa de sua flama; c desde a guerra holandesa, toda
vez que o Brasil tem precisado do sangue de sacrifício tem sido sempre
a contribuição do Nordeste a maior c a melhor”. Ao menor incidente a
energia do homem do Nordeste era despertada:

E realmente assiin tem sido. E todo um romance ao sabor dos russos,


a conquista dos seringais pelos cearenses, c a resistência do cearense c do
paraibano aos horrores das secas, quando as últimas raízes da vida, são as
raízes venenosas do umbuzeiro.
Teve razão Arthur Orlando e tem razão o arguto José Américo dc Almeida
em considerar o homem do nordeste o verdadeiro consolidador dessa massa
bruta de gente que é o Brasil. Desse Brasil que se parece nas primeiras provas
tipográficas dum livro: primeiras provas ainda sujas e difíceis de ler. Primeiras
provas ainda plásticas à ação do lápis azul.
O homem do Nordeste mais do que qualquer outro vai consolidando a pátria.
Temo parecer retórico acrescentando: vai nos consolidando a pátria pelo
sangue.1'*7

I 16. SI I ,VA, Sevcmi" ' ll.tmliti■ mo <■ iiiínci ia", IHdrio <le Pernambuco, Recife, 22/12/1924, p. 1,
<.4.
147. IREYRf , (Jilln ib' <i9“( Aillgu Niiiiu lailo), /iulrio <ir Pernambuco, Rei ife, 10/08/1924,
p. .1,1. 1
212 nordestino: invenção do “i ai o"

Além de ser heroico, o nordestino é definido, neste texto de Freyie,


como o homem da ordem, o defensor da pátria, sempre que esta sc vr
ameaçada por grupos subversivos internos ou forças externas. Um homem
conservador, sempre acusado de indolente, mas sempre requisitado quando
se precisa derramar sangue em defesa da manutenção do status quo < dii
nacionalidade brasileira:

Depois a luta contra o invasor estrangeiro, como a reação dos Independenit»


de Pernambuco contra os holandeses, reação que é a página mais forte .1.
nativismo da nossa história, fez com que os colonos portugueses com u
africano e o indígena recuassem para o interior, organizando a resistem m
ao batavo, aparelhado e inteligente. Nessa luta em que surgem irmanado» o
branco, o negro e o silvícola, os três elementos da nossa formação histórh .1. .1
população do nordeste afirma-se assentando, como observa Reclus, as b.v.c»
da nacionalidade brasileira.148

Em 1926, numa serie de artigos escritos para o jornal A RepiUdua,


de Natal, Felipe Guerra rebaterá críticas feitas pelo engenheiro Zcimn
Fleury, após uma permanência na região como engenheiro da Inspctorlu
de Obras Contra as Secas, num opúsculo intitulado^ margem do Cariri, .111
que chamava de nordestano. Nesses artigos ele vai delineando a figura d<>
nordestino, aquilo que considerava serem suas qualidades e suas deficiência».
Enquanto afirmava Fleury: “A eficiência do nordestano no concerto dc
nosso glorioso e rico Brasil é completamente contraproducente, prejudic ial
e desconcertante: 26 milhões de habitantes não podem continuar a a 1
esbulhados na sua riqueza e no seu trabalho e na sua boa fé, para péssimo
proveito de 4 milhões de parasitas acantonados nos rincões do nordeste
brasileiro. E duro mas é verdade que assim se diga. O mata-pau de
Monteiro Lobato é bem o emblema que melhor simboliza a psique daqiu li
povo”, Felipe Guerra afirmava, após perfilar números do Ministério da
Agricultura sobre as exportações do país, o não parasitismo do Nordeste

Eis aí o parasitismo do Nordeste. Com uma área igual a 3,03 do teriiiotiu


nacional, teve o valor de sua exportação igual à de cinco Estados, possuidotr»
de uma área que representa 76,58 do território nacional, isto é, mais dc tc. u

1-18 MAt.AI 11Al' S, Ap.iiuiciii.ii <)/> iit t.t.


DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 213

quartos da superfície do Brasil; e superior a dois pujantes e progressistas


Estados do sul, com área superior, equivalente a 4,48 do território brasileiro.’49

Fleury acusa o nordestano de ser bairrista, de ter ódio pelo Sul,


já Felipe Guerra afirma que, pelo contrário, seriam conhecidas as
qualidades de hospitalidade, cordialidade e sinceridade dos nordestinos.
O engenheiro paulista se contradissera ao afirmar a falta dc pundonor
c brio do nordestano e ao mesmo tempo dizer que “suas discussões são
curtas, breves, precipites, seguem às vias de fato. À casa não levam afrontas,
não sofrem injúrias impunemente; liquidam-nas de pronto, num abrir e
fechar de olhos”. Mas contradição maior teria cometido ao dizer ser o
nordestino “um subproduto, um homem tarado, entibiado e frouxo, uma
endemia andante, macilento e esquálido. E sempre o portador dc milhões
de morbos, mais ou menos virulentos em seu sangue depauperado”, para
cm páginas seguintes reconhecer: “Não obstante estas observações que
aqui registramos, o homem c forte e rclativamente resistente. Exceções há
c muitas que são capazes de esforços inacreditáveis, o que nos empolgou
de entusiasmo pelo muito que produziam, em semanas consecutivas de
trabalhos estafantes”.*150
Para Guerra, na verdade, o próprio engenheiro dá razão para se pensar
que o trabalhador nordestino, quando tem acesso a informações de técnicas
mais modernas de produção, as assimilaria com facilidade. Os cassacos
que chegavam às obras contra as secas, em levas, “brabos”, “completamente
alheados dos serviços”, em poucos meses se assenhorcavam do manejo de
maquinismos e substituíam os mestres. Para Guerra, o operário do Nordeste
era inteligente, esforçado, corajoso e capaz de se adaptar a qualquer tipo
dc trabalho. Embora rudes e pouco civilizados já teriam sido considerados,
pelo engenheiro americano Rodcric Crandall, mais valiosos para o país do
que determinadas espécies de imigrantes estrangeiros que estavam vindo
para o Brasil.151
Surge, neste passo, outro argumento importante na constituição
da figura do nordestino, a de que este seria o trabalhador nacional,
desvalorizado pelas elites c pelo governo do país, mas que se bem assistido,
educado e preparado (ecnologicamcnte substituiría, com sucesso, os

1-19. GUERRA,l<ll|h oz.|> I I


150. Idrin, pp Ú' IA
151. klcm,|> IH 19
214 nordestino: invenção do “falo*

imigrantes, que vinham trazendo sérios problemas políticos para o país.


Alijadas do processo de importação de mão de obra estrangeira, as elites
do Nordeste procurarão, no elogio ao nordestino, garantir investimentos
em mão de obra para suas atividades econômicas:

Os Estados do Nordeste são os únicos que fornecem correntes imigratórias a


outros estados, especialmente em anos de secas.
Não podem, porém, estes emigrados mostrar o valimento de que são capazes:
são desamparados.
E curioso salientar as condições em que têm sido recebidos os estrangeiros <■
os nacionais.
Àqueles todo amparo, aos nacionais, nordestinos, é negada qualquct
assistência.IS2

O nordestino abandonado teria feito, com sua coragem, com sim


energia, com a sua iniciativa, com suas desgraças e sofrimentos, a obrii
de colonização e de trabalho no Norte. Não fossem os nordestinos, .1
Amazônia permanecería em completo abandono, impotentes que eram
as forças da União para ampará-la. A fecundidade da família sertanc ja
parecia tê-la predestinado a exercer importante papel no povoamento <
desbravamento das extensas regiões do Norte. Seriam os nordestinos o»
novos bandeirantes, os novos pioneiros da grande pátria, mas abandonadt
por ela.153

Os novos bandeirantes do Norte seguiam depauperados, exangues. Atirado»,


perdidos, abandonados na imensidão de uma região inexplorada, lutaram
contra tudo e contra todos. Com espantosa faculdade de assimilação, com
perspicaz e inculta inteligência, venciam a natureza, abriam clareira, na
floresta, sangravam as árvores, abatiam feras, conquistavam territóiio»,
habituados a receber e aguentar o choque a destruição das mortíferas força»
da natureza amazônica com a mesma resignação e coragem com que cm ai am
e recebem as furiosas cargas de nossas devastadoras secas.154

152. GUERRA, Felipe. ()[>. Cit., p. 20.


153. Ver: GUILI .EN, Isabel Cristina Martins 1'rrantri </a ifhw. biitóihi Jii >/m><
/uira a zbuazàniu, Campina», hnk amiç 1999 ( li se ilc I lontm.nlo eni 11ist<>1 ia)
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 215

Neste passo do discurso de Felipe Guerra, aparecem outros dois temas


que são agenciados no momento de se construir o nordestino: a migração
para a Amazônia, no período do chamado ciclo da borracha e a conquista
do Acre, que fazia do desprezado c mal falado nordestino, principalmente
pelos paulistas, o nosso novo bandeirante, aquele que colocara mais uma
estrela na bandeira do Brasil, uma estrela vermelha, porque tingida com
o sangue do paroara nordestino. O engenheiro paulista reagia indignado
com a comparação: “era uma blasfêmia lembrar os bandeirantes coloniais
pela ação dos nordestinos, humilhados, vexados, esfomeados, maltrapilhos.
Nunca bandeirantes do Norte às gibosas levas que deixam o Nordeste,
em demanda da vastíssima Amazônia ou do antipático sul. A auxese é
muitíssimo infeliz”.15S
Na tentativa de desqualificar o nordestino, o engenheiro Fleury
teria transferido para esta região todos os males que se costumavam
atribuir à população rural do país. Todos os jecas de Lobato pareciam
estar aí localizados, quando, lembra Guerra, Lobato quis figurar em
seu personagem o caipira paulista e o roceiro dc Minas. Nem mesmo a
exagerada afirmação do Dr. Belisário Pena de que o Brasil seria um vasto
hospital foi esquecida, sendo transferida para o Nordeste, pelo engenheiro.
Diz Guerra que, no entanto, nunca havíamos derramado sangue contra
uma simples campanha de vacinação, se isto por ventura tivesse ocorrido
teriam taxado o nordestino dc selvagem e sua população dc inapta para a
civilização. Embora se pudesse reconhecer que a população do Nordeste
apreciava o álcool, sendo o mata-bicho pela manhã um de seus hábitos,
sendo a cachaça um fator de alegria em suas festas, este funesto vício não
era uma exclusividade da população nordestina, era uma praga nacional a
ser combatida por vigorosa campanha.156
Nem mesmo o jagunço, o cangaceiro, o capanga, guarda-costas e
outras denominações aplicadas ao assassino, ao bandido, que tantos males
causavam às populações que esforçadamente trabalhavam e lutavam
honestamente pela vida, não seriam uma entidade peculiar ao Nordeste.
1 )as fronteiras do Rio Grande do Sul às fronteiras do extremo Norte poder-
se-ia ficar cm frente de “um homem que já fez trabalhos”. O cangaccirismo

155. GUERRA, 1'clipr . |> 68.


156. Ideni, pp. 72 7 I, I I > Uliiii ii Icivik i.i lio texto à Revolta da Vacina, ocorrida no Rio dc
Janeiro no anu di IM0-I, vi i SIÍVUENKO, Nicolau. X Rfvolta <l<i Wicina. São Paulo:
Braiilieinii', I oh l
216 nordestino: invenção do “falo"

seria, para Guerra, uma criação artificial da maldade aliada à ignorância


de potentados locais. Nos distritos onde as influências eram contrárias,
por sentimentos e cultura, o cangaceirismo não existiría como praga aceita
pelos costumes. Bastava haver em certos locais homens dignos e honestos
para esta praga não se proliferar. E conclui como membro da elite norte
rio-grandense: “No Rio Grande do Norte essa é a regra geral”.157
O nordestino é construído no discurso das elites da região como
um homem eternamente injustiçado, pelas outras regiões e pelo governo
federal. A energia, a atividade e a resistência do homem do Nordeste seriam
sempre colocadas em dúvida. Esses críticos, quase sempre, não conheciam
o Nordeste, apenas repetiam lendas sobre os costumes e a vida na região.
O nordestino, sempre apresentado como um retardatário, inativo, incapaz
de contribuir para o desenvolvimento de uma economia moderna no par.,
era vítima daqueles que não comparavam a situação em que vivia e a.
condições que eram oferecidas aos brasileiros de outras regiões do país.
A luta tremenda que tinha de empreender com a natureza, faltando a dc
assistência do governo, que parecia não acreditar em sua capacidade, fazia
do nordestino uma vítima da falta de incentivo para o progresso, quer do
ponto de vista moral, quer material:158

Desse erro devem ser acusados, antes, os que não souberam aperceber se
dc nossas necessidades, ou não procuraram partilhar de nossas vicissitud<
ajudar-nos na luta contra as secas periódicas, a falta de transportes, exiguid.idi
de braços, escassez de meios e tantas outras causas culpadas de nosso
estacionamento; e não o homem do campo nosso operário rural que ainda
assim não cruzou os braços a espera que a piedade de seus irmãos lhes viesse
matar a fome.159

Fica claro, neste discurso, que o nordestino de que se está falando,


ao enumerar os seus interesses e ao falar em seguida do trabalhadoi da
região como braços para o trabalho numa nova organização económn a,
é aquele identificado à camada proprietária rural, que estava enfrentando
estes problemas aos quais atribuía sua decadência econômica. Ma•>,

157. GUERRA, Eclipc. ()/> cit, p. 79.


158. 1*11,110, Lorrto. "O homem do Nool« •.!<•“ Hrviitü //»’ llci mimbmo, Rc< ilr, n" II,
julho 19 ' \ p i
159. I111 1|(), | lOirlo í y» ih , p 1
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 217

embora enfrentasse todas estas dificuldades e fosse malsinado com tantas


inverdades e calúnias, o nordestino teria um traço que o distinguiria dos
demais brasileiros c que o tornava apto para soergucr sua região, ele era
capaz sempre de uma reação viril. Ele, embora parecesse, às vezes, apático,
indolente, frouxo, entibiado, à menor mudança dc situação se estadeava
num homem valente, numa descarga de energia, retesando todas as suas
fibras, se tornava o macho rude e duro, rústico, que não aceitava desonras,
nem covardias, que não levava afrontas para casa. Essa ciclotimia de suas
atitudes era um espelho da própria ciclotimia da natureza regional, feita
de ciclos de abundância e de escassez de recursos. O nordestino era, pois,
esse ser surpreendente, cuja aparência não revelava a sua essência varonil.160
Porem, os estudiosos da antropologia nordestina teriam explicações
para este traço masculino da população, que se acentuava no sertão. A
formação histórica da raça regional, feita cm condições adversas, exigindo a
luta feroz contra a natureza e os indígenas, seria um primeiro fator, aliada às
próprias características sexuais das raças que participaram desta formação,
uma raça guerreira como o branco português, na sua maioria sendo
homens, se defrontou com “duas raças inferiores” em estágio primitivo
de civilização, onde a indiferenciação sexual seria a marca, predominando
nestas os traços masculinos:

Impressionou a Agassiz a maior semelhança entre os sexos: a mulher índia,


vista de costas, exibia um aspecto inteiramente masculino. Vem à mente aquela
passagem de Gandavo sobre certas mulheres aborígenes que ‘determinam ser
castas, as quais não conhecem homem algum de nenhuma qualidade, ainda
que as matem’. Abandonam as atividades comuns às companheiras e ‘imitam
homens e seguem seus ofícios, como se não fossem suas fêmeas’. Cortam
os cabelos, vão à guerra, caçam, pescam, mantendo outra companheira, com
quem se ‘comunicam e conversam como marido e mulher’.
O grande observador notara ainda que não havia nelas a delicadeza feminina
peculiar ao tipo civilizados. Essa similitude entre os sexos, verificável entre povos
selvagens, sugerem algumas observações interessantes. Maranon menciona a
poligamia como sexualidade indiferenciada - e é sempre encontradiça nessas

160. Esta relasan enlic iiindcstino c masculinidade, nordestino c uma cultura fálica.está muito
presente tatnlii m 111 aii< • <• literatura dc temáticas nordestinas; ver, por exemplo, toda a
série dc <">« illtuns» Llll« a» di> un i i plástico pernambucano Erancisco Brcnand ou todas
as imagens lálli i jih ipan i < ui ni>» lislos teatrais ou literários dc Ariano Suassuna
21K nokdistino: invenção do “falo1

fases culturais. A diferenciação interna cresce de sociedades inferiores para


superiores. Lembra a história evolucional da família. Só as sociedades que
ingressaram na barbárie ou já vão atingindo as fases civilizadas marcham
para a completa diferenciação monogâmica. (...) E o sexo que determina .1
primeira divisão histórica do trabalho (...). Aliás, o que os etnólogos mostram
foi a tendência masculinizante das mulheres, ditada, em certo grau, pelas
condições de vida selvagem.161

Essa tendência à “bissexualidade” dos antepassados primitivos do


nordestino se expressaria também num ritual como o da couvade, em
que o pai da criança guardava resguardo no momento em que esta nascia
e não a mãe. Sociologicamente ela representaria o reconhecimento d.i
importância do pai na geração, uma fase de afirmação do patriarcado sobre
o matriarcado, de fases anteriores. Esta afirmação do sexo masculino seria
fundamental para que este ocupasse uma posição de destaque dentro da
organização política do grupo.

A combatividade é instinto sexual secundário e caracteriza os machos mais


vigorosos da comunidade. Enquanto na mulher predominam instintos dc
passividade e submissão, que se ligam a determinadas fórmulas hormônicas -
no homem se pronunciam tendências de agressividade e lutas. O ato sexual c
efêmero: a manutenção da prole absorve a mulher no aleitamento enquanto
arrasta o homem ao contato social.162

Este discurso vai naturalizando os papéis de gênero e justificando a


dominação masculina no mundo civilizado como um processo de evolução
que leva à diferenciação entre os “sexos”, destinando a mulher aos afazeres
domésticos e aos cuidados com as crianças, enquanto o homem, liberado
por um ato sexual efêmero, tendo uma enorme reserva de agressividade
e energia para descarregar, irá fazê-lo no espaço público, dominando o
mundo político. Porém, o mais curioso é que este discurso naturalista não
diferencia o ser homem do ser macho, o comportamento social masculino
é deduzido de sua natureza, que seria agressiva e voltada para a luta. O
nordestino, antes de ser um homem, tal como definido pelo pensamento

161. MENEZES, I )j;icir. O/>. ri/., p. 55.


162. lilcm, p. 59.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 219

moderno, iluminista, era um macho, que surgiu de uma reação contra a


mulher, que seria muito mais importante à medida que se sai do nomadismo
e se passa à agricultura; o parir filhos, para que estes deem sustentação a
esta atividade, se torna uma tarefa muito importante.163
Esta necessidade dc afirmar o poder masculino, que Djacir Menezes
localiza entre os indígenas, seria extensiva a toda a plebe rural que daí
se formou. Daí nascería a tradição de violência c desmandos no sertão,
homens em constante choques entre si e com os agentes do poder, tudo
para provarem ser machos, não suportando qualquer tipo de humilhação.
A simples ação dc desarmar um “cabra” na feira podia resultar cm confusão
e ate mortes. Fazer um “matuto passar o pano”, ou seja, colocar a fralda
da camisa para dentro da calça, deixando à mostra a arma que trazia na
cintura era provocação que podia resultar em soldados mortos”:

A tropa, espalhada pelo meio do povo, manda os cabras passar o pano e vai
lhes tomando as facas e os cacetes. Aqueles que resistem vão presos debaixo
de facão até a cadeia. Vestidos dc camisa c ciroula de algodão grosso, tecido
nos teares da terra, ceroula de fundo curto de um só botão, passando o pano,
adquiriam uma aparência ridícula, provocando vaia da garotada. 1 )aí o motivo
das brigas, resistência e matança de soldados a facadas.164

Esta forma dc ser nordestino teria sido transmitida pela própria


educação que era dada pelas famílias a seus filhos. Família em que
a autoridade absoluta era do pai: cm torno de seu poder, vontades e
expectativas tudo girava. Pai, que para ser respeitado, para ser visto como
homem dc verdade, não podia voltar para casa afrontado. Nem mesmo a
esposa aceitaria uma fraqueza do marido. Uma família que definia rigorosos
e polares papéis para homens e mulheres, mundos que já começavam a se
separar na mais tenra infância. Desde cedo, quando estava chorando, o
menino ouvia que aquilo não era coisa de homem, passando a ter vergonha
de chorar em público, como se estivesse fazendo algo feio. Menino era
criado solto, menina era criada presa dentro de casa. O menino podia,
cm companhia dc companheiros de sua idade, se aventurar para além
tio terreiro c ficar na companhia dos homens adultos, onde começava a

163. MENEZI S.l»imn Op Cit., p. 59 60.


164. Ml .NI /!•’». I\mlo I Iphlm <!<• (i.iiodc meu (empo. Apud MENEZES, Djacir, O/», n/.,
p. 61.
220 nordestino: invenção do“fau>'

sua formação para o mundo, as meninas não, sempre presas ao mundo


domestico ate em suas brincadeiras:165

Naquela nossa idade havia uma natural e espontânea separação: menina


brincava com bonecas, enquanto nós montavamos em carneiro»,
empenhávamo-nos em lutas, desafiavamos para quebra-de-braços, fingíamo»
ciganos. Alguns jogavam pião, empinavam arraia, fumavam às escondida»
cigarros de palha, tão do gosto dos operários da fábrica.166

Os códigos de gênero são internalizados como se fossem coisas


“naturais”. Neles, a masculinidade é, desde cedo, definida pela competição,
pela disputa em que se pretende derrotar outro homem, pela força ou pela
astúcia. A masculinidade é agônica, é como se não pudesse pertencei a
todos, tendo que ser tomada de outro desafeto. Povina Cavalcanti fala qur
era comum o uso de uma arma, no bolso, pelos rapazotes do sertão, no
começo do século. “Punhal na cava do colete, quando não na cintura, era a
coisa mais natural do mundo. No banho de rio os homens tiravam a roupa
sumária, sob a qual o punhal mal se escondia. Em plena rua empunhavam
se armas e faziam-se trocas. Não havia proibição legal para seu uso. Eia
como se as armas fosse um complemento do vestuário.Tão logo o menino
se enfeitava de rapazote achava que para ser homem precisava andai
armado. Cedo conseguia permissão dos pais para caçar passarinhos d<
espingarda”: 167

Os que estavam na primeira infância atenazavam os vizinhos; os maiou»


procuravam, mais distante, campo de ação para suas façanhas. Vinham .1
casa comer, resingar. Principiavam descompondo-se, passando das palavra»
aos murros, saindo para se engalfinharem no meio da rua, confirmando cada
sopapo, cada murro, cada bote recebido, com um epíteto pesado.168

165. Claro que esta descrição é calcada cm grande medida nas práticas das famílias das clili >,
sendo pouco válida para o que acontecia nas famílias das camadas populares, embora
seja o modelo validado socialmentc.
166. CAVALCANTI, Povina. Volta à inJAneui Memórim. Rio dc Janeiro: José Olympio, 1972,
p. 39.
167. Idcm, p. 45,
168. Ml Dl IROS, Conolandodi O lli»il’i<l ila In/Dnria |oil<> 1'cssoa A (lm.li>, 1994,p
91
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 221

Mas já havia famílias em que estes códigos, se não eram frontalmente


contestados, pareciam estar embaralhados, como parecia ser a sensação
mais geral na sociedade. Na infância de C. A. Feitosa, o sustento da casa
era garantido pela mãe, uma exímia costureira, que tinha dc aguentar as
andanças e o jogo de cartas do marido. A mãe vivia a se queixar de ter
nascido mulher, isto era quase “um ultraje biológico para ela”.

Queria ter nascido homem, nem que fosse para ser cega de um olho ou manca
de uma perna, blasfemava ela contra a sua sorte (...). Cada vez que meu pai
desaparecia, metendo-se numa casa de jogo, escutavamos o mesmo discurso
pouco cristão sobre o desgraçado papel da fêmea na sociedade dos homens.’*■’

Curiosamente, a menina gostava dos brinquedos do menino e este


não largava a calunga que esta ganhara de um tio. Quando lhe trouxeram
um filhote de pintassilgo numa gaiola, se a irmã não toma conta este havia
morrido, dado o desprezo do menino por ele. Só o irmão tinha paciência
para aguentar os dengues de uma menina vizinha. Ela preferia brincar
com o Flávio, seu irmão, mesmo tendo que ouvir a reprimenda: - Menino
brinca com menino, menina brinca com menina.

Não concordava. Sentia curiosidade em saber onde ela aprendeu estas histórias
que repetia sem muita consciência para a gente. I listórias muito bestas para
serem citadas por adultos.
- Menino que brinca de bonecas vira mulher, cai o pintinho - falava
maliciosamente quando via o Bita segurando a boneca da Vera Lúcia.
Intrigava-me: quem definiu os papéis dc macho c da fêmea na cspccic
humana? Queria saber para dizer a esta pessoa que eu não concordava com
esta divisão. Era injusta e preconceituosa. Eu tinha que brincar só dc boneca,
como se o único destino reservado para mim fosse parir, assear, varrer, lavar...
Coisas chatas que dão às mulheres ares de perfeita idiota do lar. Esta cara
que minha mãe estava ganhando de tanto ficar no fogão c na máquina dc
costura”.169
170

169. I 1.11’4 )SA, t A A In i ihiiJki ióh, xttihor. São Paulo: Cot tez, 1980, pp. 11,14 c 15.
170. I I I lOSA.t \ <»/• .O . P 28
222 nordestino: invenção do“mi<>

Embora possa ser um discurso da mulher adulta projetado p.u.i n


criança, este discurso memorialístico fala de certo descontentamento otm
esta divisão que seria natural entre homens e mulheres,já no começo <h i<
século. Este discurso nos fala também da importância e da centralidadn
que o falo terá, desde cedo, na vida do menino. Seu irmão, ao brio, u
com boneca, era ameaçado de virar mulher, de perder o pinto, o qiltl
era mostrado como sendo uma tragédia. Esta centralidade do pcni», im
definição da masculinidade, só tende a se acentuar à medida que surgem t»«
primeiras notícias sobre o sexo e os rigores da separação de conduta cnliit
homens e mulheres pareciam acentuar-se. O nordestino é uma figuiu, um
corpo construído por discursos em que a fala encarna o falo:171

O Quinzinho apareceu com uma novidade. Era possível a gente cxcnlHf


o órgão genital, utilizando as ovelhas e as cabras soltas nos cercado* da
vizinhança e até nos nossos quintais, onde pastavam o dia inteiro, l oi um
deus-nos-acuda daí por diante. O grupo todo perseguia as ovelhinhã'.. ■ "tmi
sátiros precoces.172

O homem, criado solto no mundo, estará sempre “pulando as cru <»•*.


Desde cedo, as mulheres deveríam aprender que não se pode confiai i m
homem, que é de sua “natureza” trair a mulher. Feitosa diz que: “ti.m p o t
o homem daria uma certa forma de prazer, de se sentir experto, um pi .1 > ■
estranho que nascería não da alegria de se fazer alguém feliz, m.r. qm»
vem na intensidade dos desgostos que é capaz de possibilitar”. Poi isso, >tl
relações entre homens e mulheres que conheceu eram muito tcns.is, tniil
raros instantes de expansão de afetividade em público, homens e mullnn «
muito duros, pouco românticos, cada um, de certa forma, autoiit.ltio»,
masculinos em sua forma de se comportar, cujas relações eram miiiiit*

171. A maior parte das produções culturais populares que são identificadas como noi.l. oliuti
também valorizam o ser macho e abusam das imagens fálicas; ver a litci.iluia d> < •••.»> |,
por exemplo, em que vários títulos estão marcados pela ênfase na virilidade Hl< I • 1 '
Joaquim Nogueira. Asfaçanhas de “Ze Duro". s/1, s/d, 1954; CARLOS, Scveiiiio I i i«ul
A nega do penteado e a trouxa misteriosa, s/1, s/c, s/d; CAVALCANTI'., Rodolfo 1 ■" Iho
Maria Mata-Uomem, a valente da Paraíba, s/1, s/e, 1977; I EITE.Josc Cosia .Vew
ponta grande ou o corno ganam ioio. s/1, it/c, k/U; A veia debaixo da cama e a pei na. <d>. Ioda »/|(
s/c, s/d; PARAI‘1 JSO, O encontro da velha t/ue vendia tabaco com o matuta ywr
fu mo. s/1, s/c, s/d, SI I ,VA, (Itiiiiííi d.i (hapadm df covardei,
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 223

vezes entremeadas dc desaforos e de violência física, em que as mulheres


quase sempre levavam a pior.'73
Os homens podiam se aventurar porque em “homem nada pegava”.
E como se o corpo masculino fosse fechado, não só à penetração dc um
membro viril, mas a qualquer mal que lhe pudesse acontecer, mesmo a
qualquer pecha moral que fosse assacada contra ele. As memórias falam dc
homens que se colocavam em situações dc extremo perigo, cônscios de uma
espécie de invulnerabilidade. A onipotência masculina se expressava em
atitudes que punham constantemente em risco a sua vida e a vida de outras
pessoas, isso não importava, se era necessário provar que era macho173
174. O
furar o outro com o punhal ou com a faca, ao se assemelhar a uma atitude
de virilidade e dominação, substituiría, talvez, imaginariamente o falo. A
laca fazia o estrago no outro, deixando “seus bofes para fora”, expondo a
vulnerabilidade de um corpo masculino derrotado, furado:

Dizia-se que ele tinha o corpo fechado. Sempre se saiu incólume dos entreveros
de que participara. A propósito, recordo que ouvi algumas vezes referência
a uma sorte de oração, de que os sertanejos eram portadores, conservada
como amuleto. Havia mesmo jagunços que usavam este espécie de talismã
costurado num saquinho e trazido ao pescoço ou no forro do paletó.(...) O
André, a quem recorri, curioso afirmou-me com convicção:
-Não falha a oração, se rezando com fé.
E na sua linguagem sertaneja explicou-mc que o inimigo ficava cego. Uma
escuridão baixava à sua frente, inutilizando-lhe as ações. (...) Daí a fama de
valentia que possuíam os cabras do sertão.175

173. FE1TOSA, C. A. Op. cit., p. 15.


174. Este traço que define a masculinidade em nossa sociedade tem sido insistentemente
abordado por toda uma bibliografia que, nos últimos anos, se debruça sobre o
comportamento sexual masculino e como este expõe os homens constantemente a riscos
como o de contrair o vírus hiv ou alguma dst. Ver: PARKER, Richard; TERTO J R.,
Veriano (Orgs.). Entre homens: homossexualidade e AIDS no Brasil. Rio dc Janeiro: abia,
1998; PARKER, Richard. “A AIDS no Brasil: a construção cie uma epidemia". In: A
construfdo da solidariedade. Rio dc Janeiro: Relume-Dumará, abia, ims, UERJ, 1994, pp.
2 1 48; PARKER, Rii hard et al. A AIDS no Brasil. Rio de Janeiro: abia, ims/uerj, Relume-
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Paulo Iglu, 1991; ALMEIDA, Vagner. C.abartprevençdo. Rio dc Janeiro: abia, 1997.
175 CAVAI < AN TI, Pnvma. Op <i/.,p. 126
224 nordestino: invenção do “falo"

O mundo masculino parecia bastar-se a si mesmo, ser um mundo


fechado, do qual não deveriam fazer parte as mulheres, a não ser em
momentos e espaços específicos e quando fossem requisitadas. Entretanto,
numa sociedade rústica e agressiva como a do Nordeste tradicional, i •
mulheres pareciam ter que se masculinizar também. No Nordeste, não era
apenas o mundo masculino que estava fechado às mulheres, mas a própria
região parecia excluir o feminino. A mulher-macho era aí uma exigência
da natureza hostil e da sociedade marcada pela necessidade de coragem
e destemor constante. Portanto, o discurso regionalista nordestino vai
criando não só o homem nordestino, mas a própria mulher nordestina,
como caracterizados por traços masculinos, traços herdados do meio
rural, das atividades agrícolas e pecuárias, em grande medida, traços da
sertaneja:176

Lutadeira, resistente, honesta, é a mulher sertaneja, seja abastada, seja pobre;


cheia de filhos, deles cuida com amor e carinhos; provê as necessidade
domésticas, trabalha nas pequenas indústrias caseiras, e é poderosa auxiliar
nos serviços do marido, compatíveis com o sexo, substituindo-o em caso de
necessidade, na direção dos negócios e nos trabalhos reclamados. Essa verdade
não pode ser obscurecida pelo senhor engenheiro Fleury. Entretanto, com o
mau intuito de tudo denegrir e deturpar, em relação ao Nordeste, procurou
ao menos uma expressão pejorativa para escrever: ‘Vivem constantemcnlr
em viagem e deixam às mulheres a direção da casa, formando assim, nea.i
classe, mulheres viragos que, como os maridos, são capazes de árduos labore»'
Não é assim: Em qualquer classe a mulher do Nordeste é sempre esforçada,
dedicada, e, na direção do lar, trabalha em excesso, nunca se poupa, chega
mesmo nos mais rudes labores.177

Neste texto ficam explícitas algumas estratégias deste discurso


regionalista que constrói a imagem do nordestino e, no caso, da mulln i

176. Esta imagem masculinizada da mulher sertaneja, inicialmente, e da mulher norde.nna.


posteriormente, também vai ser presença constante na literatura de temática nordestina
e também na literatura de cordel. Ver, por exemplo OI.IMPIO, Domingos l.nriii
Homem. São Paulo: Editora três, 1973; Ql IEIIU >/., Rm liei dc .i Heata Maria </o / ipr»
(Obra reunida), vol. 5. Rio dc (anciio |i»< Olympio, 1989; Memorial dc Maria Mimiu,
CAVAI .CANTE, Rodolfo (‘oellio, M.i' i,i l\ l.ii.i Hum, ", ,i ,,,dente da l‘araiba, './I, s/c.s/d,
CAMPt)S, I ían< Ist o dc Souza /i aioiiiihn Mana latilhiia, s/l, s/e, s/d
177. GUERRA, Eclipt Gy>rt/,,pp /() - I
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 225

nordestina: imagens e enunciados ligados a um tipo anterior como o


sertanejo são agora atribuídos ao nordestino, o texto começa falando das
qualidades da mulher sertaneja e termina falando da mulher do Nordeste,
fazendo uma quase imperceptível passagem de um tipo para outro, como
se fossem sinônimos. O texto constrói um lugar para a mulher que é o do
trabalho domestico e da ajuda ao marido, ou seja, ela trabalha quando este
está ausente, mas apenas o ajuda quando este está em sua companhia.178 O
texto remete para um elemento que explicaria a masculinização da mulher
do Nordeste, a seca e a ausência dos maridos que migram nesta ocasião,
obrigando as mulheres a assumirem suas tarefas e o seu lugar na família.
As chamadas “viúvas das secas” teriam que saber circular pelo universo
masculino se quisessem sobreviver na ausência de seu homem, ausência às
vezes muito prolongada e até definitiva. O cmbrutecimento das mulheres
durante os períodos de seca e a necessidade de se masculinizarem é um
tema presente na literatura regionalista, desde pelo menos o final do século
xix, quando Domingos Olímpio escreveu o clássico Luzia Homem c será
uma constante até o recente Memorial de Maria Moura de Rachel de
Queiroz.
Nesse momento em que a distância entre os gêneros parecia encurtar-
se e as fronteiras tendiam a ser ultrapassadas, até a criminalidade, que antes
era quase um monopólio masculino, vinha crescendo assustadoramente
entre as mulheres, até chagarmos “ao espetáculo triste de uma Maria
Bonita e dc uma Dadá”. O mundo moderno, com seu mundanismo, sua
frivolidade e com o consequente declínio das barreiras morais que serviam
de amparo para as mulheres seria um terreno propício para germinar toda
sorte de figuras criminosas, inclusive entre as mulheres. A mulher que
antes só buscava o encanto c se esmerava na arte de agradar e seduzir os
homens, trazendo no rosto o reflexo da doçura e da nobreza de caráter,

178. Esta concepção dc que as mulheres apenas ajudam os maridos, mesmo quando exercem
as mesmas tarefas que eles, pode ser constatada vigendo ainda cm nossos dias, entre
mulheres da zona rural do Nordeste, por alguns trabalhos sociológicos rcccntcmcntc
produzidos. Ver: BELENS, Jussara Natália Moreira. Trabalhandofeilo homem. Campina
Grande, utrii, 1998 (Dissertação dc Mestrado cm Sociologia Rural); BARROS, Ofélia
Maria dc Na<> ser debandada no mundo: a construção social das donas de casa no Cariri
paraibano. (ampma < iiande, m pb, 1996 (Dissertação dc Mestrado em Sociologia Rural);
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géneso mi 'ii.i'...... liaíiderlry Quissamâ (.VA), Campina (írande, titrii, 1997
(Disia itaç lo dl Mlinll nlocm ’im litlogiil Rutal).
226 nordestino: invenção do “falo1

rivalizava com este em agressividade e competição, perdendo sua beleza <


se virilizando.179
E na reação a este mundo moderno, que parecia querer embaralhai
as fronteiras entre os gêneros, que vinha feminizando perigosamente a
sociedade e a região, e vinha provocando a desvirilização dos homens c .1
masculinização das mulheres, que o nordestino é inventado como um tipo
regional destinado a resgatar padrões de masculinidade que estariam em
perigo, um verdadeiro macho capaz de restaurar o lugar que seu espaço
estava perdendo nas relações de poder em nível nacional. Buscando no
passado os seus modelos, esse homem seria a única personagem capaz dc
reescrever a história desse espaço, dando a ela um novo rumo.
Foi a necessidade que a elite nordestina tinha de mudar os rumos do
espaço onde exercia o poder que a levou a projetar a mudança dos próprios
habitantes da região, de seu povo, que deveria ajudar nesta recuperação. A .
teorias eugenistas, em voga desde o final do século passado, recomendavan 1
a adoção de uma política de criação de uma raça nacional, que passava
não só por uma política de seleção racial de seus habitantes, mas por uma
ação civilizatória que preparasse esse povo para a nova realidade do murnlt >
moderno. Embora fosse minoritária a parcela da elite nortista que defendia
o branqueamento da população desta área, era quase unanimidade qui .1
raça nortista deveria passar por um processo de transformação civilizatói ia.
Se a aplicação das teorias raciais à realidade do Norte condenava csi<
espaço de população mestiça ao inevitável atraso, era preciso combate l.i.,
não desconhecendo, no entanto, que algo devia ser feito para tornai < .1.1
massa informe de nortistas em cidadãos regionais e nacionais.
Após perceberem seus espaços tradicionais em crise, sentirem
desterritorializados, membros desta elite procuram elaborar projeto , di

179. N/a. “O segredo de encantar”, Diário de Pernambuco, Recife, 08/06/1924, p. 7, c. 7


A presença da mulher no cangaço e a intensa produção literária e artística cm louio
da figura de Maria Bonita fazem dessas figuras um modelo do que seria esta iimlli. 1
masculina da região Nordeste, inspiradora em nível nacional do estereótipo da intilli. 1
macho: Ver: QUEIROZ, Rachel de. Lampião (Obra reunida), vol. 5, Rio dc Janeiio |,. .
Olympio, 1989; DIAS, José Humberto. Dada. Salvador: Empresa Gráfica Baln.i, I
SOUZA, lida Ribeiro. Sila: memórias de guerra e paz. Recife: Imprensa Univ< 1 ai
1995. Ver os folhetos: CAVALCANTE, Rodolfo Coelho. .ihc de Maria Bonita, / .m/.i.lii
e seus cangaceiros, s/1, s/d, 1976; CAVALCANTI, José; Dl I .A, Eerrcira Lampia.'. 1 /./<<.<
Bonita, s/l, s/e, s/d; CAVALCANTI, Josc. Amantes de cangaceiros. S/l, Arte < íiali. a. d,
REI .VA, José ferreira. Lampiau <■ Muna Bonita, s/l, s/e, s/d, SI I .VA, Expedito I O
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 227

unificação do espaço ameaçado, que passariam pela própria mudança de


seu povo, da sua integração nesses projetos, fazendo-os introjetar este
recorte regional. Era preciso para isso salvar c sistematizar uma cultura
regional, notadamente uma cultura folclórica advinda deste mesmo povo,
para com suas formas facilitar a transmissão dc conteúdos, de mensagens
que interessavam a estas elites que fossem introjetadas pelos outros.
Era preciso fundar um homem novo, que, no entanto, fosse capaz
de preservar tradições e costumes c fazer deles sua diferença para com
os demais brasileiros. Se o nortista, o sertanejo, o brejeiro, o senhor de
engenho, o coronel pareciam ficar para trás, por serem incapazes de
acompanhar as mudanças nos costumes do país, se estes se mostravam
incapazes dc recuperar o lugar que esta área já ocupara na economia c na
política nacional, era preciso que um homem novo surgisse, em dia com
as transformações que estavam ocorrendo, capaz de manejá-las, mas ao
mesmo tempo capaz de preservar as tradições c a memória de um passado
de glórias, que autorizava este homem novo a exigir um lugar dc destaque
no cenário nacional, abrindo espaços para a negociação em torno de
seus interesses. O nordestino deveria atualizar as qualidades dessas anti­
gas figuras, entre elas a de ser "macho", forte, destemido, ativo, brigão,
orgulhoso, capaz de defender seus interesses e de seu povo, dentro ou fora
da região.
A escritura deste homem novo procurava substituir os antigos costumes
pela lei abstrata, substituir a repartição tradicional de gêneros da sociedade
da sanguinidade, pela nova repartição da sociedade de sexualidade que se
implantava. 180 A passagem de uma sociabilidade tradicional, dita patriarcal,
centrada no parentesco, na família, em que as identidades dc gênero eram
assunto dc família, imposição dc papéis previamente elaborados, começa
a ser substituída por uma sociabilidade centrada no indivíduo, em que a
identidade de gênero c cada vez mais uma decisão pessoal, embora agora
limitada por códigos sociais cada vez mais rígidos. Os códigos de gênero
que antes estavam na esfera privada, que estavam sob a responsabilidade
da família, eram ao mesmo tempo muito rígidos, admitindo poucos papéis
e variações, e muito frouxos, ao permitirem, principalmente por parte dos
homens, a realização dc uma infinidade dc práticas que escapavam à norma.

IHO. Para a passagem da sociedade da sanguinidade para a sociedade da sexualidade, ver:


!■'( )l JCAIJI il , Mii lu l. //«Zdr m </ii texualüladr l .1 vonlailc <lr mbfr.
228 nordestino: invenção do“i ai,<i"

Neste início de século, os códigos de gênero começam a se tormit


assunto público, a lei cada vez mais invadirá esse espaço da intimidai I,,
prescrevendo papéis e criminalizando práticas antes admitidas. Ao
mesmo tempo em que se oferece, principalmente no novo mundo urbano,
a possibilidade ao indivíduo de produzir novas figuras de gênero, solm
ele se abate uma maior vigilância, uma maior disciplina, e uma btr.< a
desesperada de tudo descrever, não deixar nenhuma prática no anonimato
Processo que torna o sexo um lugar de verdade do indivíduo. Daqui l<
sexo feito sem culpa, atrás dos canaviais, daquelas cenas de "despudor" do
mundo rural, onde os bichos convidavam à prática desse sexo "acanalhado,
anônimo e animal", passamos para uma sociedade onde se têm maiorcit
oportunidades de se variar nos papéis sexuais, mas onde todas as prátii a
devem ser vigiadas, descritas, analisadas.
Aquela sociedade do sangue onde se glorificavam as guerras, as luta
fratricidas,onde a morte era soberana, onde se fazia apologia dos suplít um,
da grandeza e da honra do crime, onde o poder estava no sangue e vinha < L >
sangue começava seu lento processo de agonia, para dar lugar à sociedad.
da lei, da norma, da disciplina, da sexualidade,preocupada com o futuro <la
espécie. Anuncia-se o fim daqueles homens épicos, heroicos, trágicos, . I,
uma sociedade tradicional, onde a cultura é nitidamente masculina, hom< tm
que só permanecem vivos como literatura. O nordestino, ao mesmo tcmpí ■
em que surge para recuperar esta memória e estas qualidades que estão mi
perdendo,me parece que representa o próprio reconhecimento de que "n.to
se fazem mais homens como antigamente", de que estes homens heroii <m
se perderam, só vivem nas páginas do cordel.
O nordestino parece ser cada vez mais um homem emasculado, comum,
um homem que vai se amiudando até se tornar um "homem gabiru", ,i
medida que as décadas do século xx se sucediam e inúmeras reelaboraçòctt
de sua imagem e de seu texto eram requeridas pelas lutas pelo podei. Seul
pura coincidência que o sertanejo tenha alcançado a glória e ao mesmo
tempo o sepultamento nas páginas de Os sertões de Euclides da Cunha e n.i
própria guerra de Canudos? E que a gloriosa aristocracia do açúcat tenha
feito seu canto do cisne nas páginas de Casa-grande e senzala?'*'

181. (.'UNHA, Em Ihlo ilii. ()\ \crtoe\\ l' RlíYRlí, (íilbeilo. Cüui tfhinJr > uimihi 21 « <l Rin
«Ir (lincho |<»m* ( Xyiiipio, 1981
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 229

O nordestino é, pois, um ponto de encontro entre certo número


de acontecimentos históricos, é fruto de um conjunto de operações
de construção dc um sujeito histórico, dc um sujeito regional, dc um
personagem extremamente importante para a história política e cultural
do Brasil contemporâneo. Penso que estudar a sua emergência e suas
formas de aparecer e de ser é extremamente importante para se entender
a história dos embates regionais no Brasil do século xx e, mais ainda,
para desnaturalizar as figuras e os papéis de gcncro, fazendo-os retornar
à sua historicidade, à sua dispersão constitutiva, permitindo pensar outras
formas possíveis de ser homem e ser mulher no Nordeste, para além do
estereótipo do macho e sua companheira submissa. Desconstruir estas
falas que inventaram o falo como significante nuclear de uma forma de ser
regional, de uma identidade regional, é questionar a própria legitimidade
social a que assistimos até nossos dias para a estrutura hierárquica e
autoritária de gênero, dominante na sociedade nordestina, acompanhada
da própria legitimidade social para atos de violência contra o feminino
e dc desprezo, medo c ressentimento por tudo que ele representa. Para
promover o respeito ao feminino, em todas as variações, é preciso que na
carnação da fala se faça a descncarnação do falo. Assim eu falo!
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