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LABAN, Michel. São Tomé e Príncipe – Encontro com escritores.

Porto: Fundação Engenheiro Antonio de Almeida, 2002, p. 61-104

(este trecho refere-se às pg. 61-86)

SÃO TOMÉ, 6 de Setembro de 2000

Pergunta - O seu livro de poemas, É nosso o solo sagrado da


terra, foi publicado em 1978. Proponho que analisemos a
reivindicação que o título anuncia ...

Alda Espírito Santo - Eu vou começar explicando: o nosso país é


um país sui generis, que nós podemos considerar uma espécie de
manta de retalhos. É uma aglutinação de culturas, um país forjado por
povos que vieram do continente africano e até da Europa. Houve até
duas mil crianças judias que foram mandadas para cá. ..
Eu vivi a minha juventude no tempo do pós-guerra, portanto das
reivindicações africanas, da evolução que todo o mundo teve.
Felizmente tive por companheiros personagens que ao fim e ao cabo
fizeram a história, como Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Noémia de
Sousa, Mário de Andrade e outros. Todos tinham por mim uma certa
amizade e me ajudaram a ser um pouco daquilo que eu sou.
Portanto o meu país está dentro desse contexto de África e do
mundo em geral.
O dia 30 de Setembro de 1975 é a data da nacionalização das
terras. A independência de São Tomé e Príncipe não teria razão de
ser se a terra não fosse nacionalizada. Imagine que havia pedaços de
terra presos por correntes onde o negro não tinha entrada!
Foi dentro desse contexto, do sofrimento, das lutas que nós todos
juntos tivemos de travar para que este país pudesse progredir - não
sendo ainda aquilo que nós desejaríamos que ele fosse. É deste
modo que se pode explicar o surgimento de É nosso o solo sagrado
da terra.
meus pais enviaram-me, miúda, com dez, doze anos, para um colégio
no norte de Portugal. Cresci ligada à terra, mas cresci fora de São
Tomé. E, para se participar no pequeno universo do nosso país, tem
que se abarcar os problemas mundiais.
Houve uma série de acontecimentos muito importantes que
ajudaram os estudantes negros a tomar consciência: o facto de os
negros participarem na Segunda Grande Guerra, as modificações
sociais que houve, as consequências da revolução francesa, da
revolução socialista de Outubro, da criação das Nações Unidas, da
declaração de independência dos povos". Todas essas forças levaram
a dar uma consciência que levou à criação da negritude, que propiciou
a emancipação no sentido lato.
Há pessoas que criticam a negritude. A negritude era uma
afirmação necessária porque os povos africanos eram tidos pelos
outros como povos inferiores. Era necessário que os africanos
tomassem consciência da sua identidade. A diáspora das Américas,
do mundo todo e todas as forças progressistas estavam a favor de um
mundo novo, de uma mudança, e tudo o que demonstrasse que era
abertura, atraía-nos. Por exemplo, eu cresci, durante uns oito anos,
num colégio de freiras, no norte de Portugal, e só quando a minha
mãe chegou a Portugal e nos levou - eu e a minha irmã - para Lisboa,
encontrei um grupo de parentes e amigos africanos. Lá no Norte de
Portugal havia poucos negros. Na rua diziam-nos:
"Preta, mulata, nariz de macaca» e por aí fora outras coisas
P. - Isto explica o adjectivo nosso, a comunidade. sagrado?

A. E. S. - Porque tudo o que custa a conquistar terforça de


sagrado, tem uma ligação especial a nós pré::
A terra não era dos são-tomenses, e precisávamos qL~ fosse
nossa. Nesse desejo imperioso de conquistar o qu~ nosso, tudo
aquilo que nos era caro era e é sagrado.

P. - Seria legítimo ver também um eco da Sagrada .c rança, de


Agostinho Neto?

A. E. S. - Talvez tivesse alguma influência. Tudo isso, :


mundos irmãos ...
Quando foram os acontecimentos de 53 em São Te' houve um
poema de Agostinho Neto que me foi dedicé:
"Massacre em São Tomé». Eu tinha chegado a São Tomé . vez um
mês antes dos acontecimentos e cOnsegui escrs um artigo para
mandar para os companheiros que viviam "Õ Portugal - e, numa das
notas, dizia: "Mostrem ao Neto (ms: cina) ... ». Quando morreu
Amílcar Cabral, publicaram na rev.Õ Expresso os versos que lhe
dediquei no seu livro de curse puseram também em letras pequenas
essa carta que "Õ escrevi e que dizia "Mostrem ao Neto
(medicina) ... » Tudo tic que ser feito em muito grande
clandestinidade para não p.'"Õ judicar as pessoas que estavam lá,
nesse universo.

P. - Vejo no seu livro a preocupação de sair do contex:: local:


evoca Amílcar Cabral, Oeolinda Rodrigues, Ânge:
Oavis ... É como se quisesse reencontrar-se com outros e alé'. gar a
frente, não é?

A. E. S. - Talvez fosse bom explicar o seguinte: em Sã:


Tomé não havia liceu no meu tempo. Eu fiz a 4a classe e os

disparatadas, mas felizmente nada disso me afectou.


Depois é que tomámos contacto com o mundo. Tínhamos um
primo chamado Arlindo Espírito Santo que andava à descoberta das
pessoas! Ele é que nos levou o Mário de Andrade, o Agostinho Neto -
todo o mundo com que entrámos em contacto. Foi toda uma
descoberta que nos levou a tomar consciência de nós mesmos.

meus pais enviaram-me, miúda, com dez, doze anos, para um colégio
no norte de Portugal. Cresci ligada à terra, mas cresci fora de São
Tomé. E, para se participar no pequeno universo do nosso país, tem
que se abarcar os problemas mundiais.
Houve uma série de acontecimentos muito importantes que
ajudaram os estudantes negros a tomar consciência: o facto de os
negros participarem na Segunda Grande Guerra, as modificações
sociais que houve, as consequências da revolução francesa, da
revolução socialista de Outubro, da criação das Nações Unidas, da
declaração de independência dos povos". Todas essas forças levaram
a dar uma consciência que levou à criação da negritude, que propiciou
a emancipação no sentido lato.
Há pessoas que criticam a negritude. A negritude era uma
afirmação necessária porque os povos africanos eram tidos pelos
outros como povos inferiores. Era necessário que os africanos
tomassem consciência da sua identidade. A diáspora das Américas,
do mundo todo e todas as forças progressistas estavam a favor de um
mundo novo, de uma mudança, e tudo o que demonstrasse que era
abertura, atraía-nos. Por exemplo, eu cresci, durante uns oito anos,
num colégio de freiras, no norte de Portugal, e só quando a minha
mãe chegou a Portugal e nos levou - eu e a minha irmã - para Lisboa,
encontrei um grupo de parentes e amigos africanos. Lá no Norte de
Portugal havia poucos negros. Na rua diziam-nos:
"Preta, mulata, nariz de macaca» e por aí fora outras coisas
disparatadas, mas felizmente nada disso me afectou.
Depois é que tomámos contacto com o mundo. Tínhamos um primo
chamado Arlindo Espírito Santo que andava à descoberta das
pessoas! Ele é que nos levou o Mário de Andrade, o Agostinho Neto -
todo o mundo com que entrámos em contacto. Foi toda uma
descoberta que nos levou a tomar consciência de nós mesmos.
Por exemplo, o conhecimento de Amílcar Cabral deu-se do seguinte
modo: tínhamos ido a um piquenique lá para os lados do Parque de
Monsanto - o Parque de Monsanto não era o que é hoje, era um
parque aberto, onde fomos passar o dia, todos os parentes que
estavam em Lisboa. Ao fim da tarde vimos aparecer um indivíduo
africano, baixinho, que foi ao nosso encontro. Ele tinha chegado há
pouco tempo, estava em agronomia e vivia ali perto. Assim foi o nosso
encontro com Amílcar Cabral!

P. - Por acaso?

A. E. S. - Ele, ou ia ao parque ou passou por ali e viu uma família


africana, entrou, avançou e conheceu-nos. O conhecimento ficou para
sempre ...

P. - E Mário Pinto de Andrade?

A. E. S. - O Mário Pinto de Andrade, foi o nosso primo Arlindo que


o levou lá, à casa da tia Andreza, Rua Actor Vale, 37. Um parente
meu, Januário Graça, tinha arranjado essa casa para os filhos e
sobrinhos - e uma das irmãs, que é a tia Andreza, já deve ter ouvido
falar nela, era guardiã da casa. E aquela casa passou a pertencer a
todos os africanos! Toda a gente passou por aí, era um abrigo. Claro,
havia a Casa dos Estudantes do Império, mas havia coisas que não
podiam ser passadas ali. Foi na casa da tia Andreza que foi criado o
Centro de Estudos Africanos.

P. - Com reuniões aos domingos ...


A. E. S. - Sim, com o Mário de Andrade e Francisco Tenreiro - os
principais mentores. Havia um moço também, que era pintor,
António Domingues, que é pouco falado - filho do Mário Domingues.

P. _ Como é que Francisco Tenreiro era visto naquela época?

A. E. S. - Tenreiro foi levado pequeno para Portugal, arrancado à


mãe aos dois anos. Eu conhecia-o de o ver nalgumas palestras nos
centros universitários. Era o Mário de Andrade que o puxava para o
nosso encontro. O Tenreiro vivia com umas irmãs - umas irmãs
apenas paternas - que aqui em São Tomé procuravam fugir à sua
cor da pele, mas foi o Tenreiro que as tornou africanas, que Ihes deu
consciência da dignidade de si próprias. A casa do Tenreiro também
era um centro onde a gente se encontrava. O Tenreiro era um
estudioso das coisas africanas e evidentemente que ajudou o Mário
na criação do Centro de Estudos Africanos. Apareciam lá Amílcar
Cabral e todos esses indivíduos, aos domingos, nas tais tertúlias, em
que os temas eram apresentados ... Tenreiro teve um papel muito
importante na criação do Centro de Estudos.

P. - Em que ano a Alda saiu de Lisboa?

A. E. S. - Houve várias etapas. Embora tenha voltado muitas


vezes, o regresso definitivo foi em 1953, a 9 de Janeiro ...

P. _ Então o Centro de Estudos Africanos já existia.

A. E. S. - Já existia. Eu e a Noémia de Sousa apresentámos


trabalhos em conjunto.

P. _ Lembra-se dos temas que abordaram? Seria sobre a


música?
A. E. S. - Talvez, já não me lembro bem. Eu sei que o Mário de
Andrade, quando saiu de Portugal, deixou a sua documentação com a
Camila, que era a irmã da Noémia e que, infelizmente, já morreu.
Penso que a Camila entregou ao Mário de Andrade toda a
documentação que eu tinha guardada. Mas agora o que é feito dela?
Eu sei que as filhas do Mário de Andrade depositaram todo o espólio
dele na Fundação Mário Soares.
Evidentemente que a temática central era a descoberta do
continente africano e a sua problemática, inserida na cultura e
desenvolvimento dos nossos povos.

P. - Muita gente participava nas reuniões do Centro?

A. E. S. - Sim, todos os africanos residentes em Lisboa, ávidos


de emancipação. Olhe, por exemplo, a Maria Helena Vilhena
Rodrigues ... Já falei do encontro com o Amílcar. Eu, como tinha
chegado do colégio, tinha umas cadeiras do sétimo ano para fazer e
vinha um primo - por acaso tenho imensa pena que ele tivesse morri
do, chamava-se Luís Espírito Santo Graça, morreu na Guiné, era
médico - que me dava explicações de latim. Um dia descobriu um
caderno que eu tinha com poesia escrita. E o que é que ele fez?
Organizou, na Rua Carlos Mardel, 111, rés-do-chão esquerdo - lembro-
me -, um encontro: era a residência dele. Participaram o Amílcar
Cabral, Ema Sena Mendes - que era uma moça cabo-verdiana que
andava na Faculdade de Letras, dava-se muito bem com o Mário de
Andrade e declamava muito bem -, o António Domingues, os nossos
parentes, o Arlindo Espírito Santo, uma médica que vive aqui, nossa
prima, a Julieta Espírito Santo. A Ema Sena Mendes leu essa poesia,
Amílcar leu outros poemas e há uma coisa curiosa: eu tinha uma irmã,
que infelizmente morreu no ano passado, que tinha quinze anos
nessa altura e que viveu sempre comigo. Ela era bastante bonita e o
Amílcar Cabral até lhe dedicou uma certa poesia, «Negra Amélia»,
que parece que foi lida nesses encontros.
Foi nascendo uma tertúlia e, de quando em quando, íamo-nos
encontrando para recitar poesia. Isso foi um tempo que alargou o
surgimento de várias caminhadas para a «longa marcha».

P. - Lembra-se do ano em que foi esse primeiro encontro?

A. E. S. - Sim, lembro-me. Foi aí, em 47.

P. - Portanto o Mário Pinto de Andrade ainda não tinha chegado.

A. E. S. - Não. Eu só encontrei o Mário depois. Porque, como


disse, em São Tomé não havia liceu - a minha irmã, coitadinha, até foi
pequenina, com seis, sete anos, para o colégio. Como não havia
liceu, nós fomos muito cedo para Portugal. Entretanto o meu pai
faleceu eu ainda estava no colégio, tinha dezasseis, dezassete anos.
E a minha mãe, em 46, 47, foi a Portugal, foi-nos buscar ao colégio e
fomos para o ambiente de Lisboa. Entretanto, eu queria continuar a
estudar e não era possível - a minha mãe era professora primária. Eu
e a minha irmã viemos com a minha mãe para São Tomé, em 47-48.
Eu estive aqui uns seis ou sete meses e, em 48, regressei. Foi nessa
altura que conhecemos o Mário de Andrade o Arlindo levou lá a casa
o Mário de Andrade: foi um acontecimento porque ele tinha o poder de
atrair todos os africanos ... Puxava pelas pessoas, fazia com que se
interessassem pelas coisas de África. Atraiu toda a gente!
Ele vivia perto da Escola Politécnica, na Rua de Santo António,
parece-me ... A casa dele era onde a gente estava sempre porque o
Mário de Andrade nunca tinha nada. Ele andava andrajoso, andrajoso
mesmo, porque todo o dinheiro que ele tinha era para livros! Eu
lembro-me de nós até a cosermos os botões do sobretudo dele! A
gente sempre procurava roubar-lhe os livros, mesmo que os
devolvesse. Ele dizia: «Bom. vocês vão sair ... O que é que vocês
levam daqui?»
Foi lá que conhecemos o Orlando da Costa, um dos grandes
amigos do Mário naquela altura em que escreveu A estrada e a voz.
Foi nesse período que foi também para Portugal o irmão dele, o
Joaquim, que estava em Roma. O Joaquim apareceu com uma visão
moderna das coisas. O Mário até nos levou a uma exposição de Arte
Negra com o Joaquim, e fomos todos. De forma que toda a gente que
aparecia, africanos e tal, ia cair sempre no 37, na casa da tia Andreza
que dava todo o apoio possível. Por coincidência o Mário de Andrade
estava em Lisboa quando a tia Andreza faleceu e ele fez o elogio
fúnebre.
Ali era o centro onde muita coisa se fazia: o Amílcar Cabral aliciou
o Vasco Cabral para ir para a Guiné ali em casa! E o Vasco Cabral
tinha raízes são-tomenses: a mãe do Vasco Cabral, Adelaide Cabral,
era são-tomense ... É engraçado: São Tomé, um país pequeno, teve
sempre a força de aglutinar os estudantes. Mesmo nos tempos
recuados, no tempo do chamado proto-nacionalismo, como dizia
Mário de Andrade, eram os são-tomenses que conseguiam aglutinar!
Havia um indivíduo que tinha uma lavandaria, o Artur Pinho, que
aglutinava a juventude. Outro exemplo: a maior parte dos redactores
daqueles jornais como O Negro, etc., eram são-tomenses.
O Mário veio a São Tomé em 1985, conseguimos que o Frederico
Gustavo dos Anjos, que trabalhava na Cultura, fosse o companheiro
permanente dele durante o mês em que esteve aqui em São Tomé.
P. - Proponho que voltemos a falar de si. De que vivia a sua
família?

A. E. S. - Eram pessoas que trabalhavam. O meu avô era Manuel


da Graça Espírito Santo, que tinha um filho que era advogado, ou
bacharel - Manuel da Graça Espírito Santo, tinha o mesmo nome que
o avô - e que foi para Coimbra e formou-se em Direito. Tinha um
irmão muito mais velho que ele, que tinha filhos, Lázaro da Graça,
que era o mais velho de todos os irmãos e que era um médio
proprietário. Então, esse meu tio convenceu o irmão a mandar os
filhos estudar. Desse grupo saiu um Salustino Graça, um professor
Januário Graça, enfim ...
O meu pai era o mais novo dos irmãos. Os meus primos eram
primos-tios, o Salustino Graça, etc., eram primos-tios pertencentes a
uma outra geração. O meu pai até contava uma história muito
engraçada: antigamente os padres é que faziam o baptismo e depois
havia a boda, mas o padre esqueceu-se de fazer o reg isto de
nascimento! Quando o pai dele morreu, ele tinha cinco anos. Os
irmãos é que tiveram que o reconhecer, senão ele não teria acesso ao
reconhecimento paterno porque o padre tinha-se esquecido!
Ele pertencia mais à idade dos sobrinhos que à dos irmãos.
A tia Andreza é filha desse tio Lázaro da Graça ...
Ao lado do gabinete do Primeiro-ministro há uma casa em ruínas
que parece que vai ser reabilitada pela Cultura, que era a casa do
Lázaro da Graça - e essa casa é histórica porque ali funcionou a Liga
dos Interesses dos Indígenas. Essa casa está carregada de história.
Havia o consultório do Doutor Aires de Menezes que uma vez ganhou
as eleições e tentaram queimar a casa ... Tem uma certa história o
encadeamento de todo esse processo.
Isto era para explicar que eram pessoas que viviam do seu trabalho.
Mas entretanto havia famílias aqui que conse guiam viver doutra
maneira, Quando se deu a queda do ciclo do açúcar e os colonos
foram para o Brasil, deixaram uma descendência mestiça, Essa
descendência mestiça foi ganhando um estatuto, criou uma classe
média - que existia portanto no dealbar do ciclo do cacau e do café,
apoiando-se nas terras que possuía, Uns foram para Portugal e
tiraram cursos, outros aproveitaram esse tempo para se entregar à
boémia, Com a introdução do cacau e do café deu-se o verdadeiro
apossamento das terras de São Tomé e Príncipe pelas grandes
companhias agrícolas, Aqueles indivíduos que vinham para a colônia
para se enriquecerem - aproveitaram-se, quer da ingenuidade
daqueles que tinham terras, quer daqueles que ficavam na Europa a
gozar os rendimentos e arranjavam procuradores que Ihes iam
mandando o dinheiro que precisavam e iam ficando com as terras,
Mas havia também, nesse grupo de gente de São Tomé, os que
surgiram pelo seu trabalho e outros que foram surgindo por heranças
familiares, Isso é mais ou menos a manta de retalhos das pessoas
que formam a chamada classe intelectual, intelectualizada, dos são-
tomenses,
Outros ficaram de certo modo bloqueados, Por exemplo o
Salustino Graça, engenheiro agrônomo, veio para São Tomé mas não
lhe foi dado trabalho por pertencer àqueles movimento~ pan-
africanistas, Havia muitos são-tomenses que nem regressavam
porque havia uma política de não consentir que os africanos com um
certo nível viessem para as suas terras porque representavam um
perigo,
Eu tinha um parente, que era botânico, Joaquim Espírito Santo,
que fez a vida na Guiné, foi enviado para Moçambique, Ele conta que
naquele tempo sô permitiam que ele andasse nos autocarros se
levasse ao colo o filho de uma senhora branca! Ele acabou por ir para
a Guiné", Tem estudos sobre botânica no Jardim Botânico em
Portugal,
P. - Qual era a língua que falava na sua infância?

A. E. S. - A minha mãe era professora. O meu pai era funcionário


dos Correios, tinha a casa cheia de livros e eu gostava muito de ler.
Lembro-me que havia uma secretária enorme e um banco e eu lia de
tudo. O meu pai dizia: "Se eu tivesse posses, deixava essa moça
estudar até endoidecer ... » Coisas de pai!
Em São Tomé, a pa/aiê - a mulher que estivesse a vender no
mercado - falava na sua língua materna e as senhoras, as
portuguesas que lá iam, diziam: "Não me fales nessa língua de cão!’’
Então havia o hábito de que o falar português é que permitia o acesso
à cultura e à civilização. Havia pais, africanos, que queriam que os
seus filhos ascendessem e que, em casa, não Ihes permitiam falar
crioulo. Na minha casa não havia essa proibição mas criou-se um
ambiente em que eu não aprendi bem o crioulo. Eu fui aprendendo o
pouco que sei de crioulo em Portugal, quando saí do colégio. Hoje
falo mal, pois o meu papel foi ensinar. E quando tento falar, pronuncio
mal, as pessoas troçam - o são-tomense é muito trocista: em vez de
ensinar, troça!

P. - Estou a pensar num poema, "Às mulheres da minha terra», em


que diz: "Eu queria falar convosco no nosso crioulo cantante / [ ... ]
Mas irmãs, vou buscar um idioma emprestado / Para mostra-vos a
nossa terra».
Falar da terra numa língua que considera emprestada significa
uma situação de conflito ...

A. E. S. - Significa uma situação de conflito.


Olhe, eu fui professora - tirei o curso de professora primária e a minha
função era ensinar. Eu nunca fui capaz de dizer: "Nós». Dizia: "Os
portugueses fizeram ... », ou: "A histó ria de Portugal ... ». Mesmo em
relação ao futebol - toda a gente gostava do futebol, nós gostávamos
do Benfica porque jogavam lá muitos africanos ... -, mas nunca me
saiu a palavra nós. Era: «Os portugueses fizeram ... », «Eles
fizeram ... ».
O nós nunca me saiu porque se dizia que os africanos não tinham
história, não tinham civilização, não tinham nada. Só a partir de 74, 75
é que a população de São Tomé ouviu falar nas suas figuras
lendárias, históricas: o Amador, o Yon Gato ... Porque o africano não
tinha história, não tinha princípio, não tinha nada.
Houve um ministro das Colónias que, ao chegar a São Tomé, fez
um discurso em que dizia que São Tomé, como outras ilhas, devia a
sua existência a Deus e aos portugueses! Era essa a ideologia!
Sei porque é que disse «língua emprestada»: é que todos os
nossos países utilizaram a língua portuguesa como língua oficial.
Evidentemente, é a língua de contacto com a ciência e não nos
inferioriza nada ser a língua adoptada.

P. - No contexto actual já não é emprestada, pois não?

A. E. S. - Não. É uma lín'gua que ganhámos por direito próprio.


Perdeu essa conotação tendo em conta de que a língua era matéria
apontada como instrumento de inferioridade. A conquista da
independência, ou por outra o processo da emancipação, permitiu
visualizar a língua portuguesa: representava o contacto com o mundo.
Ao fim e ao cabo, após o acordo de Argel, terminara o diferendo
existente entre os países.
P. - Voltando aos poemas que consagrou aos «combatentes da
liberdade», gostaria que evocasse a sua relação com Deolinda
Rodrigues, pois chegou a conhecê-Ia pessoalmente ...
A. E. S. - Conheci a Deolinda Rodrigues através do Amílcar.
Antes, vou falar na Maria Helena Vilhena Rodrigues, que foi a primeira
esposa do Amílcar Cabral. No Centro de Estudos Africanos, o Amílcar
apareceu com a Maria Helena, que era a noiva dele. Ficámos muito
amigas, até hoje, e passámos a andar muito juntas. Tivemos um
relacionamento a três. Depois de 74, 75, onde eu aparecesse,
qualquer amigo da Guiné ou de Cabo Verde dizia: "O Amílcar Cabral
era muito seu amigo ... »
Criámos encontros com mulheres, através da Maria Helena
Vilhena Rodrigues e Noémia de Sousa, Rute Neto e outras.
O Amílcar era um indivíduo superiormente inteligente. Ele fez a
tese não só para ele como para vários colegas. Ajudava colegas a
terminar a sua tese. Ele acabou o curso e lembro-me que foi fazer o
estágio para uma vila no Alentejo chamada Cuba. Eu lembro-me dele
a perguntar a um miúdo de 14 anos: ,,- Não vais à escola? - Como é
que se vai à escola quando se tem fome? ... » Lembro-me de o Amílcar
ter feito referência a isso. Nós ainda o acompanhámos ao cais quando
ele foi trabalhar para a Guiné. Depois saiu da Guiné e foi trabalhar no
Centro de Investigação Agrícola que ficava lá para o Parque Eduardo
Sétimo. Depois foi trabalhar para Angola, num projecto açucareiro, e
foi aí que ele conheceu a Deolinda.
O meu conhecimento com a Deolinda veio através do Amílcar.
Começámos a escrever-nos. Uma das vezes que fui a Angola, entre
56 e 58, conheci"a pessoalmente. Vivia nessa altura em casa da mãe
do Agostinho Neto.
Em 59 fui chamada à Pide, antes de ir a Paris, pelo facto de ter
passado férias em Angola ...
Lembro-me de o Mário de Andrade ter falado da Deolinda Rodrigues,
da sua adesão à luta e da maneira como ela desapareceu. Parece
que o desaparecimento dessas moças foi um bocado de InCUrla do
partido: deixou-as cair nas mãos de: outros que as massacraram.

P. - Pode falar da sua viagem a Paris?

A. E. S. - Explico-lhe. Em 59 tive aqui a tal licença gré.ciosa, que


se dava de quatro em quatro anos, e fui a Portugé.

P. - Já era professora ...

A. E. S. - Sim, já, desde 53, quando voltei.


Fui a Portugal em 59 e, coisa curiosa, fui à Casa dc~ Estudantes
do Império, a uma palestra. Ali houve um indivduo, Mário Barradas,
que começou a recitar poemas meL.;~ que eu ignorava que
estivessem publicados! Foram conhecdos quer através do Alfredo
Margarido - que esteve aqui ~ no Príncipe, estava casado com a
Manuela Margarido, e entê.= levou alguma poesia minha -, quer
através do Palma Carlos que levou também alguma coisa. E por outro
lado havia:
Mário de Andrade, que introduzira textos nas antologias delE Ouvi
recitar poemas meus, fiquei admirada porque nã: sabia sequer que já
estivessem publicados.
Entretanto eu ia mesmo com intenções de ir a Paris, pe:: menos
passar umas férias. E fui até com uma parente minhé. que era a
esposa do Salustino Graça - ela era portuguesa. =: quem me foi
receber em Paris foi o Mário e um indivíduo qu~ foi embaixador de
Angola em Paris, Luís de Almeida, conhEceu? Estava casado com a
Karine.
Eu estive uns três meses em Paris, de Outubro de 195~ a
Fevereiro de 1960. Estava na Sorbonne naquele curso d~ civilização
francesa ... Mas a viagem teve outra utilidade, Po!~ levei na sola dos
sapatos a documentação dos cinquenta qu~ foram presos em Angola
~ para os nossos amigos: Mário d~ Andrade, Marcelino dos Santos,
esse grupo ...
Voltando à minha chegada: o Mário de Andrade e o Luís de
Almeida levaram-me ao hotel e, evidentemente, reunimo-nos em casa
do Mário, na rue Saint-Antoine ou qualquer coisa assim, para falar das
informações que eu levava. O Mário vivia já com a Sarah Maldoror
nessa altura e então reunimo-nos: o Mário de Andrade, o Marcelino, o
Guilherme Espírito Santo, que nessa altura se encontravam em Paris.
Fui viver para o XV1118, numa espécie de residência onde morou
esse meu primo Guilherme porque a mãe dele, que era esposa do
engenheiro Salustino Graça, também iria ter comigo a Paris mais
tarde. Ele é que me arranjou essa casa e o Guilherme era uma
pessoa, quanto a mim, extraordinária - com uma visão fantástica das
coisas. Aliás ele casou com uma senhora, que também veio cá passar
férias, Ada Espírito Santo. Ela é de origem judáica, creio que os pais
morreram em circunstâncias dramáticas e uma família adoptou-a. Ela
veio aqui e ficámos amigas. Tanto assim que ela disse-me: «Agora já
percebo porque é que o Guilherme era tão teu amigo!" E escrevemo-
nos habitualmente. Ela dava aulas num colégio na Suíça, entrou na
reforma e foi então fazer uma experiência para o México, para um
lugar marginal, com uma organização qualquer. Depois tencionava ir
para o Brasil ... É uma senhora muito interessante, gostei muito de a
conhecer.
É engraçado, eu ia com a Sarah Maldoror na rua e encontrámos por
acaso o Guilherme e ele ficou muito zangado porque, ele como meu
primo, devia ser a primeira pessoa a ser avisada de que eu chegava a
Paris! Então zangou-se e foi-se embora. E a Sarah disse: «Ora, o teu
primo passou por ti e parece que se viram há cinco minutos!»
Passados três minutos, ele voltou para trás e passou o dia inteiro
connosco, foi almoçar connosco. Era uma pessoa extraordinária ...
Morreu num desastre, com o filho mais velho ~ iam para a montanha,
de férias, viviam na Bélgica e uma roulotte veio ao encontro deles. A
esposa e o filho mais novo escaparam. Sofreram imenso mas
conseguiram recuperar. Gostei muito da senhora, que é uma pessoa
extraordinária.
Voltando à nossa reunião: entreguei o documento e fiz a
exposição dos acontecimentos que se passavam em Angola - e o
Marcelino voltou-se para nós e disse: «Nunca pensava a Alda capaz
de ... » E o Mário disse: «É porque tu não a conhecias! »
Aos domingos eu ia almoçar a casa do Marcelino, que vivia com
uma moça, Andrée, que era muito interessante, pertencia à esquerda,
mas dizia: «Bom, eu gosto muito do Marcelino, mas quando ele for
para África eu fico aqui a viver em França porque a minha vida é
aqui ... »
Foi durante esse espaço de tempo em que eu estive em França
que passou o Hugo Azancot de Menezes, que morreu há pouco
tempo, que era são-tomense, filho do doutor Aires de Menezes - que,
pelo facto de o pai ter sido exilado para Angola, viveu a maior parte do
tempo em Angola. E ora pertencia aos movimentos de libertação de
São Tomé, ora pertencia a Angola - em princípio pertenceu ao CLSTP,
depois passou para o MPLA.
Voltando atrás, ainda em Lisboa: o Amílcar e a esposa é que
trataram do passaporte, da papelada para eu ir a Paris. Foram eles
que me acompanharam ao comboio quando eu embarquei para Paris
- aqueles comboios levavam 48 horas, mas enfim, era muito mais
barato, a gente tinha que levar os farnéis, descia-se em Hendaya.
O Amílcar trabalhava na Estação Agronómica, que era na Rua
Castilho, e estava instalado em Portugal. Vivia sem problemas
financeiros e, de quando em quando, ele fazia as suas viagens
clandestinas dentro da sua missão - mas havia necessidade que o
Amílcar entrasse em Paris. Como eu estava menos queimada, quem
teve que escrever uma carta de Paris
a convidá-Io, fui eu. Ele então teve que inventar uma doença, um
tratamento, veio a Paris, depois escreveu à esposa a dizer que
arrumasse a vida ... Lembro-me que ela ficou tão inquieta que me
escreveu a dizer: «AI da, eu sofro tanto como quando morreu o meu
pai. .. Vou ter convosco a Paris!» E fui eu que a recebi em Paris, mas
quando ela chegou, ele tinha ido a Londres, em qualquer missão.
Entretanto o Hugo de Menezes devia partir para Tunes, para a
Conferência, que depois ficou adiada. Mas seja como for, nós fomos
acompanhá-Io ao aeroporto e, por coincidência, estavam ministros da
Guiné, ministros negros ... Para nós foi uma coisa extraordinária
encontrarmo-nos com ministros negros de um país independente!
Eles aproximaram-se de nós - um deles era Ministro da Economia - e
foi uma abertura total! Eles ofereceram as possibilidades dos
contactos que podia haver. Quando saímos do aeroporto, acompanhei
o Mário à Embaixada da Guiné e foram os primeiros contactos de
abertura para futuras incursões.
Foi nesse intervalo que o Guilherme Espírito Santo (a quem nós
chamávamos o Guido) e o Marcelino foram surpreendidos de manhã,
estavam ainda deitados, pela gendarmerie francesa - a gendarmerie
francesa e a portuguesa evidentemente tinham contactos uma com a
outra. Disseram-Ihes que tinham um período para deixar Paris. E até
um deles voltou-se para a Andrée: «Você não tem vergonha? Uma
branca a viver aqui com um preto!»

P. - Os papéis que levou a Paris diziam respeito à situação em


Angola?
A. E. S. - Pois, era um documento elaborado por
Amílcar Cabral, Agostinho Neto, sobre a prisão dos
cinquenta: era preciso denunciar a situação a nível
internacional.
P. - Em Portugal, houve uma altura em que acabou por ser presa,
não foi?

A. E. S. - Ouando cheguei em 59 a Lisboa, recebi uma intimação


para ir à Pide porque eu tinha estado a passar férias em Angola.
Estive mais tempo no Sul, no Lobito, Benguela, que era aquela região
em que o racismo era mais acentuado. Eu, como africana que era,
quando deixei Angola, no aeroporto de Luanda, era olhada como um
bicho raro, em África! Aquilo chocou-me! Aliás, durante o dia, mesmo
em Luanda, os negros só circulavam nas ruas quando saíam dos
empregos!
Entretanto, quem me foi esperar, quando cheguei a Luanda, mais
ou menos em 57, foi o Joaquim Pinto de Andrade, o Mário António e
também um primo meu que era o Lázaro Trovoada. (A mãe dele era
minha prima directa, filha do Lázaro da Graça. Por conseguinte, essa
senhora, de nome Violeta, era irmã do Engenheiro Salustino Graça e
outros.) Estive algum tempo em Luanda, de passagem - até tinha um
tio que vivia lá, o Tomé Agostinho das Neves, advogado, irmão da
minha mãe. Fomos ao Sul, conheci o racismo que aqui era encoberto,
mas lá, no Sul, era mesmo declarado - terrível ... Um indivíduo
qualquer, encontravam-no na rua, espancavam-no! Coisas terríveis
que eu vi ...
Voltando a Lisboa: em 1959 fui chamada à Pide para prestar
declarações sobre a denúncia de um embarcadiço que me teria
entregado uma contra-senha para qualquer missão: ele foi preso e
revelou isso. Eu disse que não se passava nada. Entretanto, o Palma
Carlos recomendou-me: «Olhe, você disse que ia mais tarde para
Paris, devia sair já!» E saí mais cedo do que pensava, para deixar
correr. Eu estive os três meses em Paris. Como não havia mais nada,
ia regressar.
Havia uma senhora angolana, Joana Simeão, uma moça
estudante de Direito, que por sinal foi viver para a casa onde eu
estava em Lisboa, até íamos comer juntas à Casa dos Estudantes do
Império, convivíamos muito, Era uma moça bastante esperta, Mais
tarde, constou-nos que havia um padre moçambicano que a conhecia
bem e que conseguiu que ela tivesse ligações com a Pide, E ela devia
ser uma pessoa megalómana porque fez muitas tolices, ia para Sintra,
alugava carruagens", Mas constava que ela tinha ligações: uma vez
ela telefonou a umas moças angolanas, entre elas a Rute Neto,
dizendo que estava presa, As moças, mais tarde, souberam que ela
tinha estado em casa de outra pessoa", Há coisas assim.
Quando regressei de Paris, a minha irmã foi esperar-me, A Joana
Simeão vivia no andar de cima da casa onde eu estava, A dona da
casa tinha-lhe dito: «Olhe, a Alda chegou muito tarde de Paris, é
melhor não a incomodares». Eu acordei e alguém me puxava pelos
cabelos". Era a Joana! E ela perguntou-me logo: «- O que é que
trouxeste de Paris? Como vês, não trouxe nada, respondi. - Olha,
sabes, fulano de tal esteve preso, embarcadiço, e ele pediu-me para
te avisar que foi de tal maneira torturado que teve que confessar que
ele foi portador da contra-senha que entregou em São Tomé ... »
A Joana Simeão fez coisas terríveis, Quando da «primavera
marcelista», ela foi para Moçambique e aliou-se aos movimentos que
pretendiam uma espécie de integração com Portugal. Era uma pessoa
muito falada, mas quando a Frelimo entrou, ela foi presa. Consta que
ela desapareceu ...
A Casa dos Estudantes do Império foi encerrada por volta de 1965.
Apareceram também uns panfletos, em Lisboa, em que se dizia que
havia a estruturação de um movimento de São Tomé e Príncipe e que
o líder dessa organização se encontrava no interior do país. Estou
convencida que esse panfleto é que nos levou à prisão. Eles
prenderam toda a gente de São Tomé, até as tias velhas, a tia
Andreza e outras. Fizeram as prisões a pessoas que não tinham nada
a ver, prisões absurdas. Eu tinha um primo, António Espírito Santo,
que vivia em Portugal, engenheiro agrónomo, irmão do Guilherme.
Esse era um indivíduo mesmo de esquerda, ligado aos grupos mais à
esquerda em Portugal, morreu infelizmente no Sábado de Aleluia
deste ano ... Era extraordinário. O meu irmão trabalhava no Porto, era
engenheiro electrónico e o António é que escreveu para o Porto a
dizer que eu estava presa. O meu irmão veio a Lisboa a ver o que era
possível fazer por mim. Esse António tomou mais outra medida:
enviou dinheiro a todos os são-tomenses - mais de vinte e tal que
estavam presos, evidentemente que eles não entregaram o dinheiro
aos destinatários ...
A polícia invadiu-me a casa quando estava a dormir, no dia 4 de
Dezembro de 1965, levou-me tudo e perguntou à dona da casa se
não lhe parecia que eu era líder de qualquer coisa ... Estive oitenta
dias presa, tortura de sono ... Foram esses acontecimentos que me
levaram presa e a todos os são-tomenses que estavam comigo.
Os jornais de Angola diziam que eu, além de ser de São Tomé,
era também do MPLA! Enfim, de facto, todos juntos formávamos a
CONCP ...
As senhoras portuguesas, que estavam presas comigo, que já
tinham uma experiência, gritavam: "Mulheres de São Tomé, fulana foi
para a António Maria Cardoso há mais de oito dias. Podem matá-Ia,
vocês gritem!"
Houve uma altura em que me meteram numa cela com mulheres
portuguesas, do campo, com uma experiência de trabalho. Como eu
tinha mais cultura do que elas, comecei a inventar textos e a dar-Ihes
aulas. Isso foi uma das coisas que apressaram a minha libertação:
uma negra a dar aulas às mulheres portuguesas!
Houve amizades que ficaram para sempre.

P. - Deixámos de lado até agora o que uns chamam os


acontecimentos de 53 e outros a guerra de 53, que são abordados
através de vários poemas em que se refere, por exemplo, ao Zé
Mulato, a Fernão Dias ... Em que fala numa certa personagem,
Cravid, que aparece também num romance de Sum Marky, Crónica
de uma guerra inventada ...

A. E. S. - Vamos falar primeiro de Sum Marky. Eu e Sum Marky


tivemos um contencioso muito grande, terrível, porque ele mandou-me
uma versão desse livro, mas com um título diferente, já não me
lembro. Ele punha «Alda Graça do Espírito Santo» e eu disse que não
queria ser personagem de romance nenhum, e nem estava
interessada nisso. Então ele voltou-se para mim e disse que estava
convencido de me prestar uma grande honra". Eu disse: «Não. Não
me presta honra nenhuma. Não quero!» Até pus a Inocência Mata em
contacto com ele para dizer que não admitia que o meu nome
aparecesse, que não estava interessada em ser personagem de
romance.
Entretanto em Dezembro houve umas jornadas de História aqui e
apareceram o Alfredo Margarido e a Isabel Castro Henriques.
Margarido disse-me: "Olha, o Sum Marky vai publicar através da Vega
°
o livro e és a personagem! ». Eu disse: «Não admito!» E até escrevi
uma outra carta a dizer que eu não admitia e que iria mesmo aos

romance. °
tribunais se fosse necessário, que não queria ser personagem do
Sum Marky pôs «Aida» em vez de «Alda» e pôs uma
versão de coisas que não têm nada a ver comigo: maneiras de ser,
comportamentos ... E cita pessoas: cita a Maria Amélia, que é a minha
irmã, que faleceu há um ano, fala da minha mãe com o seu nome,
Maria de Jesus Agostinho das Neves! Mas Sum Marky, se ele cita
personagens verdadeiras, não pode romancear... Fez uma mistura
tremenda! Conta coisas que não correspondem à realidade porque ele
romanceia à sua maneira. Francamente, não gostei do livro!

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