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CANGAÇO E MEMÓRIA

(CANGAÇO ANO MEMORY)

LUITGARDE OLIVEIRA CAVALCANTI BARROSl

RESUMO three decades of this century, in lhe North-east. I search,


through the analyses of the fights between Lampião and
Tem esse estudo o objetivo de analisar as diferen- his Nazarenos archenemies a reconstitution of the
tes concepções de memória do cangaço, baseada em ideology and practices of the North-east Society of this
imagens vividas, nas impressões do ambiente de comba- period.
te, passando assim a inserir-se num passado coletivo,
na história de seu povo, de seu grupo de referência. Keywords: cangaço, memory, images.
O entendimento antropológico do fenômeno
cangaço requer a metodologia de estudo de memória
coletiva e individual, através da leitura de documen-
INTRODUÇÃO
tos, reportagens, livros de memória, teoria da memória
e técnicas de história oral.
Em torno de valores como coragem, honra e va- Processos de cartórios, registros policiais, ordens
lentia, se desenvolve a história do cangaço nas três pri- do dia de quartéis, decretos governamentais, publica-
meiras décadas deste século, no Nordeste. Procuro ções em Diários Oficiais e notícias da imprensa, docu-
realizar, através da análise das lutas entre Lampião e mentos tradicionalmente utilizados na reconstituição
seus arquiinimigos Nazarenos uma reconstituição da histórica, balizam sem muita polêmica o traçado da ge-
ideologia e das práticas da sociedade nordestina deste ografia do cangaço, o mapa percorrido por Ferreiras e
período. Nazarenos num embate de dezenove anos.
Por razões até hoje não discutidas pelos autores
Palavras- chave: cangaço, memória, imagens. que explicam o cangaço como um produto do meio ás-
pero e miserável do sertão nordestino, Lampião e seus
lugares-tenentes não atacaram o Piauí nem o Maranhão
ABSTRACT e aí também não construíram refúgios em suas fugas às
perseguições, embora o Piauí possua todas as tradições
This study as its objective to analyze the different históricas de povoamento, zona sertaneja de seca como
concepts of the memory of the cangaço based on living os outros Estados da região.
memories and the impressions of the are as of combat, Enquanto Antônio Dó, o fora-da-Iei de Minas
and this mergingwith the history ofthe people and using Gerais, que sobrevive na memória popular com as mes-
this group as its reference. mas características de saga de Lampião, levou sua luta
The anthropological understanding of the até o território da Bahia, os cangaceiros que estudo, ao
Cangaço phenomenon (a banditry phenomenon that se adentrarem em terras baianas, jamais se aventura-
took place in the Nortf-east of Brazil) requires the ram na zona do sertão mineiro.
methodology of study of the collective and individual Percorrendo o espaço físico da confluência entre
memory, through the reading of documents, reports, Sergipe, Bahia, Pernambuco e Alagoas, Lampião e seus
books of memory, memory theory and oral history cabras retomaram sempre ao locus original. Paraíba e
techniques. Ceará, por suas fronteiras, pela origem de vários can-
Around values such as courage, honor and gaceiros, as brigas com Quelé e Zé Pereira de Princesa,
bravery, develops the history of Cangaço at the first a amizade com muitos poderosos e a existência do

I Antropóloga - Professora da VER]

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Juazeiro do Padre Cícero eram, no imaginário das fac- relação, os objetos, os acontecimentos, enfim as coi-
ções em combate, extensões de suas marchas, campos sas não são percebidas da mesma forma por todas as
de saque, de repouso ou de batalhas sangrentas. pessoas. Segundo esse autor A percepção, tal como a
O Rio Grande do Norte, sétimo Estado nordesti- entendemos, mede nossa ação possível sobre as coi-
no desse mapa, é outro que, embora descrito com todas sas e por isso, inversamente, a ação possível das
as características geoclimáticas do restante do Nordes- coisas sobre nós. (3)
te, é atípico na relação com o cangaço. A memória lo- Numa análise baseada em memória escrita e fa-
cal sobre Lampião dá-lhe uma só classificação: bandido, lada, como a que desenvolvo, o confronto dos depoi-
inimigo. Sua presença no Estado foi rechaçada, não en- mentos evidencia a justeza do raciocínio de Bergson.
contrando aí grandes protetores. As lembranças evocadas por ex-cangaceiros, seus fa-
Falo de memória local no sentido de memória miliares, amigos e protetores, trazem imagens destaca-
coletiva na concepção de Pierre Nora, o que fica do das da maldade da polícia e das volantes. Nessa
passado no vivido dos grupos, ou o que os grupos fa- categoria de informantes, aqueles cuja memória se ba-
zem do passado. (1) seia em lembranças de imagens vividas, separam Co-
O imaginário popular neste Estado tem em risco, Zé Baiano e Sabino como sujeitos perversos e
Jesuíno Brilhante a personificação de um código, de uns perdido de deus, identificando os demais cangacei-
um modelo que poderia ser seguido por elemento de ros numa categoria de vítimas de injustiças, gente que
qualquer classe social. Como personagem mítico, ele fugia das misérias da polícia, ou pessoas tragadas pela
encarna os componentes do ethos de um povo; no caso sorte ruim, muitas até inocentes que entraram no
sertanejo, valentia, honra, bondade e proteção aos fra- cangaço muito jovens, por espírito de aventura, e de-
cos. Todo riograndense que se preza conhece o exem- pois, já com a vida estragada, não tendo mais o que
plo cantado em versos e contado nas histórias dos fazer, era o jeito ficar no grupo até à morte. Fazer o
antigos: na seca de 1877, quando milhares de pessoas que, já marcado pelas volante, cheio de inimigo?
morriam de fome, aquele bravo que enfrentava a polí- Desde a morte de Lampião muitas décadas
cia para plantar ajustiça no sertão, assalta um carrega- haviam transcorrido quando entrevistei pessoas ligadas
mento de comida e distribui entre os flagelados da seca. ao cangaço. Suas memórias individuais, na articulação
Na memória coletiva, filho do Rio Grande do Norte, do discurso, estavam depuradas das imagens que pu-
Jesuíno Brilhante pedia quando tinha fome, sem jamais dessem comprometê-Ias. Sobreviventes de anos e anos
usar a força para roubar o produto do suor alheio. Im- de perseguições, silêncios e simulações, muitos leram
placável com os inimigos (no imaginário popular, os depoimentos publicados por chefes volantes como
bandidos perversos), destemido nos confrontos, simbo- Optato Gueiros, João Bezerra e, acima de tudo, são in-
liza o herói respeitador dos códigos da cultura de seu centivados por farta literatura simpatizante do cangaço,
povo, caráter sem jaça, orgulho da honra sertaneja. escrita por descendentes de antigos protetores e muitos
Diferentemente da memória coletiva baseada em intelectuais distanciados dos depoimentos das vítimas,
imagens vividas, nas impressões do ambiente de com- dos inimigos dos cangaceiros e próximos de filhos e
bate ao cangaço que dominava o Rio Grande do Norte netos de poderosos beneficiados pela partilha dos sa-
da época de Lampião, hoje um grupo de intelectuais ques de Lampião.
organiza uma sociedade de estudos do tema que não Como evidenciava Maurice Halbwachs ao afir-
encontra receptividade na população. Apresento outro mar que toda memória é coletiva, já não há memória
exemplo, muito explorado pela imprensa sensaciona- individual daquele passado. Pouco a pouco os que se
lista nas décadas de 70 e 80, que teria sido uma romaria identificavam ao lado do cangaço socializaram as lem-
de populares muito pobres de Mossoró ao túmulo do branças do prazer sentido pela valentia de Lampião, pela
cangaceiro Jararaca (do grupo de Lampião), mostrado vingança contra este ou aquele soldado perverso, mor-
como milagroso. Apesar do escândalo da mídia local, o to pelos cangaceiros. Em cidades como Piranhas em
movimento, não surgindo do enraizamento na paixão Alagoas, os informantes já repetiram tantas vezes suas
popular pelo cangaceirismo de Lampião, teve a vida versões para jornalistas, escritores e cinegrafistas, e
efêmera dos furos jornaIísticos. ouviram tantas vezes as histórias do cangaço, que se
Trabalho com memória na perspectiva de Henri faz necessário um rigor muito grande na checagem das
Bergson, no sentido de lembranças, principalmente informações, fazendo cruzamento de depoimentos das
sob a força das imagens, como ele desenvolve no li- pessoas em momentos diferentes e comparando-os com
vro Matéria e Memória. Estabelecendo uma relação as declarações de outros informantes sobre os mesmos
entre o corpo e os objetos que o cercam, afirma: Os acontecimentos.
objetos que cercam um corpo refletem a ação possí- Através dos diferentes relatos, acontece às vezes
vel de meu corpo sobre eles (2). Conseqüência dessa de um informante acrescentar às suas memórias lern-

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branças que não foram vividas por eie, tornando-o per- batedor da olante de Lucena ainda adolescente, en-
sonagem ou testemunho de fatos jamais vivenciados. quanto dois irmãos sentaram praça na polícia. Um tio
Esse comportamento exige do pesquisador registro mi- dele também era voluntário nas volantes de Lucena,
nucioso dos relatos de cada informante, para a compa- além da ajuda que a família deu ao tenente Higino, te-
ração de dados das entrevistas. nente Arlindo, tenente Luís Mariano, e aos Nazarenos,
Na categoria dos que se colocam explicitamente quando passavam em Alagoas. Mortos os três canga-
contra o cangaço, como suas vítimas, amigos e familia- ceiros visados, depois da morte de Lampião seu Manu-
res delas ou perseguidores (volantes e familiares), fe- el Aquino voltou para Riacho Grande, onde vive até
nômeno idêntico de seleção de lembranças também se hoje, cuidando da propriedade do pai, tendo comprado
verifica, porém na direção inversa. Diferentemente do as partes dos irmãos que permaneceram na polícia.
que afirmam os simpatizantes, Lampião, Corisco, Zé Os ferrados, castrados e mutilados pelo cangaço
Baiano e Sabino são o protótipo do cangaceiro, modelo fazem esforço para viver um presente marcado
de toda perversidade humana. Logo, não há diferencia- idelevelmente pela memória fisica da violência. A evo-
ção entre Lampião e o restante dos grupos. cação das lembranças, desencadeada pela entrevista,
Seus relatos são a história de milhares de ho- evidencia acima de tudo a dor. E como escreve Bergson,
mens que entraram nas forças do governo para se de- Toda dor consiste portanto num esforço, e num esforço
fenderem das barbaridades dos cangaceiros e poderem impotente. (5)
perseguí-Ios em nome da lei. Vingando a honra de mu- Profunda convicção permeia o discurso dos ini-
lheres da família estupradas e parentes assassinados migos do cangaço, vivos até hoje, ou seus descendentes.
pelos cangaceiros, nos sete Estados onde atuaram Lam-
pião e seus bandos, sertanejos pobres e remediados Eu nunca me misturei com bandido, nunca tive conluio com
sentaram praça na polícia ou entraram pra se ladrão, malfeitor, miserável que matapra roubar!'! (6)
esbagaçar nas volante até não sobrar um só cangacêro
nas catinga. (4) Lampião nunca enfrentou meu pai! Nunca existiu nin-
As imagens predominantes sobre o cangaço na guém que tenha levantado suspeita de proteção dele a
memória desses informantes são de destruição, fome, cangaceiro. Depois da morte dos cangaceiros muito
morte, desespero e ódio. Muito ódio e uma disposição policial ficou rico; meu pai recusou até oprêmio que o
para a guerra sem trégua (entre os que lutaram) e uma governo do Estado deu aos comandantes de tropa. Pas-
dor irremediável entre as vítimas passivas como os ho- sou a vida toda na catinga perseguindo bandido e di-
mens castrados e as mulheres estupradas ou marcadas a zia que lutou sempre no cumprimento do dever! (7)
ferro. Entrevistar esses últimos é um trabalho doloroso,
o de fazê-los evocarem imagens de pavor, desalento e Lembrando-se do passado, os mais velhos se re-
impotência, mas, principalmente reviver sentimentos de ferem aos antigos aliados de combate sempre com ex-
injustiça, da gratuidade da violência sofrida, que os iden- pressões: Era um homem de bem!
tificou no corpo e na memória individual e coletiva por Indivíduo de sangue no olho! Sujeito valente, mas
marcas que o tempo não esmaeceu. do respeito!. Em Alagoas, louvando a honra e a cora-
Em Pão de Açúcar - Alagoas, envergonhada, con- gem do coronel Lucena, amigos e inimigos apontam-
templando a dor explícita; de uma mulher ferrada por lhe um defeito grave, responsável, segundo seus
Zé Baiano em Canindé - Sergipe, penso no terror impo- julgamentos, por muitas injustiças: Lucena tinha um
tente de um povoado miserável de sertanejos desarma- grave defeito - era homem de primeira informação!
dos, entregues à sanha de oitenta cangaceiros armados. Nessa categoria de informantes também a me-
A mulher me olha, fecha os olhos, mostra o lado da mória é coletiva, dando-se uma verdadeira disputa de
cicatriz do rosto e fala: O bandido fez isso! Eu era no- lembranças de batalhas e episódios heróicos, para se
vinha! (4a) Toda a imagem do ferro em brasa está pre- saber quem foi mais valente e destemido. Cada comba-
sente como se os gritos ainda ecoassem na beira do São tente carrega suas imagens de lutas e sofrimentos, como
Francisco e o povo desesperado ainda se debatesse sob no passado o tenente Arlindo, um desses volantes cujos
as torturas do bando. descendentes entrevistei, percorreu catingas e povoa-
Refletindo sobre a impotência daquele povo do- dos carregando com naturalidade sua infieira de ore-
minado pelos cangaceiros, entendo aquela dor, senti- lhas salgadas de cangaceiros.
mento já apaziguado no semblante de seu Manuel Essa imagem, longe de desencadear os sentimen-
Aquino, um informante de Alagoas. Contando sua luta tos que sobressaltaram minha infância em Alagoas, dá
contra o cangaço, aos 85 anos, é um homem calmo, de muito orgulho a alguns entrevistados conhecidos do te-
a doce, em paz com a vida. Para vingar o pai morto nente e despertaram vaidade em muitas pessoas jovens,
gaceiro Português com dois cabras, tornou-se conhecedoras do episódio, quando o relatei numa sala

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-~ aula em Barbalha, sul do Ceará. Ali estavam descen- mais obscuros do município de Poço Redondo - Estado
centes de vários homens que lutaram contra o cangaço, de Sergipe, a partir do dia 19 de abril de 1928, quando
...., itos até ligados hoje por relações de parentesco, tal Lampião entrou com o grupo pela primeira vez no po-
..:.identidade que se estabeleceu entre os avós, gerando voado. Seu livro é a história da transformação de um
casamentos entre filhos e também entre netos dos anti- povo sob o domínio dos grupos de Lampião e das per-
= s companheiros de combate. seguições das volantes. É a memória do cangaço em
Enquanto alguns descendentes de cangaceiros si- Sergipe, do lado cangaceiro e dos coiteiros - emprega-
n iam sobre as atividades dos ancestrais fora-da-lei, dos dos grandes protetores de Lampião.
enho observado o orgulho com que muitas pessoas se Em sua casa conheci e entrevistei gente do
_ resentam como parentes deste ou daquele inimigo de cangaço como a velha cangaceira Di Ia e a sobrinha do
gaceiro. Caso exemplar desse tipo de percepção do cangaceiro Sabiá. A familiaridade de Alcino com seu
gaço como miséria e desonra é um critério de iden- objeto de estudo é tanta que ele me apresentou Marizete
dade reivindicado no Rio Grande do Norte, como o Alves dos Santos,
- povo que não teve medo de cangaceiro, homens que
- (aram Lampião pra correr, autoridades que não co- sobrinha de João Alves dos Santos - João Preto, o maior
ram dinheiro de bandido. vaqueiro que o Nordeste já teve até hoje! Quando ele
Em 1974 em Mossoró, escutei de um gabola dono entrou no bando recebeu o nome de Sabiá. Nesse dia
ce bodega: que ele ia pro bando foi cantando essa música que
Marizete vai cantar, que ela é sobrinha de João Preto.
Minha senhora, no Rio Grande do Norte cabra ruim
João Preto era irmão da mãe dela. Maria das Dores.
só dança pulando debaixo de bala!! A senhora não sabe
o que nós fizemos com Lampião aqui dentro de
Zabelê, irmão de sua mãe, era poeta repentista,
Mossoró? Ele podia ser o rei do sertão, lá por onde
mesmo na vida de cangaceiro. Conseguindo fugir do
não tinha homem do Rio Grande do Norte!
cerco de Angicos, escapa com dois amigos. A mãe de
Pela idade era óbvio que ele não participara da Alcino foi procurar o irmão no Piauí, não o encontran-
resistência ao ataque de Lampião a Mossoró em 1927. do. Depois de 1938 nunca mais tiveram notícia dele.
ias já construíra sua memória com as lembranças dos Vivendo sempre entre sua gente, o autor não es-
ais velhos, inserindo-se num passado coletivo, na his- conde o passado familiar, não anda armado, é um poeta
o ria de seu povo, de seu grupo de referência.
• que canta a coragem, engrandecendo nos mesmos ver-
No que concerne à memória escrita, privilegiei o sos a valentia de Lampião e de Odilon Flor. No seu
so dos três livros já citados como principais referências panteão de heróis, Ferreiras e Nazarenos são honra ser-
- bre Ferreiras e Nazarenos. Dois deles, O canto do taneja, enquanto o cangaceiro ferrador Zé Baiano e o
_ cauã e Memórias de Um Soldado de Volante. são de- sargento De Luz, da polícia sergipana, encarnam todo o
imentos de gente de Nazaré, das famílias Flor e mal que a perversidade humana engendra.
urubeba. O terceiro, Lampião Além da Versão, foi es- As entrevistas colhidas em Sergipe, Alagoas,
colhido porque seu autor - Alcino Alves Costa, tem Bahia, Ceará e Pemambuco, a extensa bibliografia exis-
. enso orgulho de ser sobrinho do cangaceiro Zabelê e tente, a leitura de documentos e notícias de imprensa cons-
e ter nascido em Poço Redondo, segundo ele, a capi- tituem o material utilizado neste trabalho perpassado pela
'ai mundial do cangaço, por ter sido o local do Brasil experiência pessoal de vida sertaneja até os vinte anos
ue forneceu maior número de cangaceiros para o ban- de idade. Também o livro de Frederico Pemambucano
o de Lampião. de MeIo - Guerreiros do Sol, o mais completo do ponto
Não tendo vivido o tempo de esquecimento e de de vista de dados sobre valentões do Nordeste, é muito
isfarce do passado de cangaceiro ou coiteiro, Alcino utilizado neste trabalho onde procuro traçar os perfis,
encarna a memória anti-volante, anti-injustiça, com a tirar do imaginário popular e trazer à discussão acadêmi-
mesma convicção da perspectiva anti-cangaceira dos ca os personagens tema e título desta tese.
depoimentos dos Nazarenos. Os Nazarenos deixaram memória escrita. Com o
Toda sua vida o autor dedicou à pesquisa, sendo fim do cangaço Manuel Flor viveu bastante, com tem-
amigo de velhos cangaceiros, fotografando-os e a seus po para aprimorar os conhecimentos e escrever cader-
familiares, levantando a vida de cada um, com muito nos de memória onde registrou suas impressões sobre a
respeito a seus sentimentos. Grande admirador da cora- campanha nas catingas, derrotas e vitórias, num apelo
gern e da bravura dos sertanejos, sente muita piedade pungente desdobrado por sua filha, Marilourdes Ferraz,
as vítimas da violência, vinda da polícia ou dos can- no livro O Canto do Acauã.
gaceiros. Na intimidade mais profunda dos iguais, re- O título é simbólico, explicitando o conteúdo
gistrou a tragédia do povo mais pobre, dos elementos da narrativa, já que a acauã é o pássaro agourento,

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aquele que anuncia aos espíritos crentes dos sertane- lutas entre Ferreiras e Nazarenos, com o choque de opi-
jos a chegada da seca com as desgraças que se abate- niões entre adeptos e inimigos do cangaço, desenvolvi-
rão sobre os homens. Não tive acesso aos cadernos do do num cenário típico hoje quase desaparecido sob o
combatente Manuel de Souza Ferraz - Manuel Flor. impacto massivo dos modelos difundidos pela mídia
Do depoimento original, Marilourdes Ferraz transcre- criadora de tipos sertanejos impostos como protótipos
ve na íntegra o trecho: dos personagens históricos.
A frase grifada no depoimento de Manuel Flor
... Os sertanejos tiveram que, praticamente sós, inici- foi a expressão de um código de honra que, diferente-
ar e manter por longo período o combate a mais um mente de coragem e valentia, comuns aos dois grupos
dosflagelos que tãofrequentemente os assolaram, en- em confronto, permaneceu inacessível à categoria dos
frentando carência de abastecimento, munições e ar- cangaceiros,jamais identificados como homens de bem,
mamentos, às vezes comprados com seus soldos. mesmo por seus mais ardorosos simpatizantes.
Asforças que combatiam o cangaço se compunham de Em contraposição ao depoimento de Manuel Flor,
unidades móveis denominadas "volantes ", as quais re- transcrevo Alcino Alves Costa:
alizaram verdadeira epopéia, anos afio, em esgotantes
travessias do sertão de vários Estados nordestinos. Provas claras evidenciam os desmandos dos macacos.
Certamente houve atos impensados por parte de poli- Estes, em vez de procurarem manter a ordem e a ga-
ciais, mas não foram comuns e geralmente ocasiona- rantia social daquele povo, outros não eram senão
dospelas contingências da luta. A dureza da campanha agentes da baderna e do desrespeito ao ser humano. É
e as condições em que se desenrolaram os combates verdade incontestável, o cangaceiro e o soldado eram
podem explicar algumas dessas atitudes. Não se pode farinha do mesmo saco, iguais em tudo: na coragem,
esquecer o indescritivel desgaste fisico provocado pe- na valentia, na perversidade e nos mesquinhos proce-
las marchas prolongadas e pelas emboscadas associ- dimentos, todos com a mesma sanha assassina.
adas à sede e à fome no semi-deserto sertanejo. A É uma tola ingenuidade pensar-se que volante caçava
enorme dedicação dos soldados visava a que seus con- bandido para dar paz e sossego ao sertão, para ga-
temporâneos um dia usufruíssem da tranqüilidade de- rantir as vidas e as famílias, ou dar fim ao tenebroso
sejada. Muitos moços perderam a vida, outros a saúde sofrer. Não. Puro e ledo engano. Nunca uma volante,
fisica e mental; os verdes anos dajuventude foram ir- mesmo aquelas que conseguiram nome efama, segui-
remediavelmente gastos na luta. Apesar de tudo o que am, resolutas e destemerosas, apenas pelo altruísmo
se diz, as pessoas de bem tinham confiança na atuação de bem servir à comunidade sertaneja. Algumas vo-
dos policiais. (8) lantes não caçavam bandidos pensando em acabar com
os males que eles traziam, mas apenas com afinalida-
o grifo serve para marcar uma expressão já bastan- de de saquear-Ihes os pertences e ganharem celebri-
te utilizada em páginas anteriores, caracterizando a pers- dades e divisas. Outrasfingiam perseguir cangaceiros
pectiva antropológica desta análise, em oposição ao quando, na verdade, ali estavam para maltratar os ser-
conceito de história desenvolvido por Maurice Halbwachs tanejos e receberem polpudas quantias de Lampião e
no livro A Memória Coletiva. Para ele a história parece sua grei. E outros ainda, sentavam praça na polícia
para poder enfrentar, do lado da lei, antigos desafetos
esperar que os antigos grupos desapareçam, que seus engajados no cangaço. (l0)
pensamentos e sua memória se tenham desvanecido,
para que ela se preocupe emfixar a imagem e a ordem Até o termo macaco, cuspido pelos cangaceiros
de sucessão dos fatos que agora é a única capaz de para designar os soldados, compõe o discurso legi-
conservar. Sem dúvida, é preciso então apoiar-se em timador do cangaço, a base, para usar expressão de
depoimentos antigos cujo rastro subsiste nos textos ofi- Frederico Pernambucano de Meio, de seu escudo ético,
ciais, jornais da época, nas memórias escritas pelos uma vez que muitos cangaceiros explicavam sua pre-
contemporâneos. Mas na escolha que delesfaz, na im- sença no bando como uma forma de vingança contra
portância que Ihes atribui, o historiador se deixa gui- injustiças sofridas por parte da polícia.
arpor razões que não têm nada a ver com a opinião de O termo volante, como aparece nos dois depoi-
então, por que esta opinião não existe mais; não so- mentos transcritos, mostrando o confronto de concep-
mos obrigados a levá-Ia em conta, não se tem medo ções dos memorialistas, revive um embate vivido durante
que ela venha se chocar com um desmentido ". (9) vinte anos pelos grupos em combate, escudados por seus
valores, pelas percepções de seu próprio mundo.
Contrariamente a essa perspectiva, este trabalho Iguais na produção da vida material, diferencia-
"ade resgate do clima sertanejo da época das
=~~L.C4J\' dos na ordenação e no rearranjo de valores dos códigos

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- lturais, Ferreiras e Nazarenos representam, alegori- marcada a ferro. Ela passava na cidade e fora vi-
camente, as transformações vividas pela sociedade ser- sitar José Vicente.
taneja no período recortado, espaço e tempo do palco 5 - BERGSON, H. Ibid, p. 41.
e suas lutas. 6 - Pedro Agra - Muitas vezes delegado em Santana do
Considerando a intencional idade dos agentes so- Ipanema, teve um irmão - Nenen Soares (Manu-
iais, muitos elementos devem ser considerados no es- el Soares Agra), morto pelos cangaceiros. Entre-
do da guerra que sacudiu o sertão nesse período. A vista concedida no dia 23 de julho de 1990, aos
corrupção de policiais em promiscuidade com os can- 95 anos de idade, em sua casa na Rua Benedito
::::ceiros, a presença nas tropas de homens que ali se Mello - Santana do Ipanema, Alagoas.
encontravam por não terem recursos próprios para com- 7 - Wilson Lucena Maranhão - filho do Coronel José
aterern o cangaço, os protetores - a serem diferencia- Lucena de Albuquerque Maranhão, comandante
os dos coiteiros, os militares de carreira que foram do 2° Batalhão da Polícia Militar de Alagoas, en-
incorruptíveis no combate ao cangaço, são variáveis carregado do combate ao cangaço. Entrevistas
importantes para o entendimento da luta, sua duração e concedidas em 21, 22 e 23/07/1992.
orma de desfecho. 8 - FERRAZ,Marilourdes - O Canto do Acauã. Recife:
Editora Rodovalho de Guias Especiais Ltda.,
OTAS E REFERÊNCIAS 1985, p. 13, 14. Os grifos são da autora.
9 - HALBWACHS, Maurice - A Memória Coletiva. São
BIBLIOGRÁFICAS
Paulo: Vértice Editora, Revista dos Tribunais,
1 - Citado por Jacques Le Goffin História e Memória. 1990, p. 109.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1994, p. 472. 10 - COSTA,Alcino Alves - "Lampião além da Versão -
_ - BERGSON, Henri - Matéria e Memória. Ensaio sobre Mentiras e Mistérios de Angicos ", Aracaju,
a Relação do corpo com o Espírito. São Paulo: Sergipe, Sociedade Editorial de Sergipe / Secreta-
Livraria Martins Fontes, Ed. 1990, p. 12. ria do Estado da Cultura de SE, 1996, p. 91, 92.
3 - Ibid, p. 41. Observação: Este artigo é o primeiro capítulo de minha
- José Maximiliano do Nascimento, falando sobre um Tese de Doutorado em Ciências Sociais, sob o
companheiro da volante de Lucena, que jurou vin- título A DERRADEIRA GESTA: LAMPIÃO E
gar o pai, morto por um cangaceiro. NAZARENOS GUERREANDO NO SERTÃO,
a - Em 1967 em casa de José Vicente, em Pão de Açú- defendida na Pontifícia Universidade Católica de
car, fui apresentada a uma senhora Anísia, São Paulo, em maio de 1997.

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