Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
• p. 26-31 • 1999
-~ aula em Barbalha, sul do Ceará. Ali estavam descen- mais obscuros do município de Poço Redondo - Estado
centes de vários homens que lutaram contra o cangaço, de Sergipe, a partir do dia 19 de abril de 1928, quando
...., itos até ligados hoje por relações de parentesco, tal Lampião entrou com o grupo pela primeira vez no po-
..:.identidade que se estabeleceu entre os avós, gerando voado. Seu livro é a história da transformação de um
casamentos entre filhos e também entre netos dos anti- povo sob o domínio dos grupos de Lampião e das per-
= s companheiros de combate. seguições das volantes. É a memória do cangaço em
Enquanto alguns descendentes de cangaceiros si- Sergipe, do lado cangaceiro e dos coiteiros - emprega-
n iam sobre as atividades dos ancestrais fora-da-lei, dos dos grandes protetores de Lampião.
enho observado o orgulho com que muitas pessoas se Em sua casa conheci e entrevistei gente do
_ resentam como parentes deste ou daquele inimigo de cangaço como a velha cangaceira Di Ia e a sobrinha do
gaceiro. Caso exemplar desse tipo de percepção do cangaceiro Sabiá. A familiaridade de Alcino com seu
gaço como miséria e desonra é um critério de iden- objeto de estudo é tanta que ele me apresentou Marizete
dade reivindicado no Rio Grande do Norte, como o Alves dos Santos,
- povo que não teve medo de cangaceiro, homens que
- (aram Lampião pra correr, autoridades que não co- sobrinha de João Alves dos Santos - João Preto, o maior
ram dinheiro de bandido. vaqueiro que o Nordeste já teve até hoje! Quando ele
Em 1974 em Mossoró, escutei de um gabola dono entrou no bando recebeu o nome de Sabiá. Nesse dia
ce bodega: que ele ia pro bando foi cantando essa música que
Marizete vai cantar, que ela é sobrinha de João Preto.
Minha senhora, no Rio Grande do Norte cabra ruim
João Preto era irmão da mãe dela. Maria das Dores.
só dança pulando debaixo de bala!! A senhora não sabe
o que nós fizemos com Lampião aqui dentro de
Zabelê, irmão de sua mãe, era poeta repentista,
Mossoró? Ele podia ser o rei do sertão, lá por onde
mesmo na vida de cangaceiro. Conseguindo fugir do
não tinha homem do Rio Grande do Norte!
cerco de Angicos, escapa com dois amigos. A mãe de
Pela idade era óbvio que ele não participara da Alcino foi procurar o irmão no Piauí, não o encontran-
resistência ao ataque de Lampião a Mossoró em 1927. do. Depois de 1938 nunca mais tiveram notícia dele.
ias já construíra sua memória com as lembranças dos Vivendo sempre entre sua gente, o autor não es-
ais velhos, inserindo-se num passado coletivo, na his- conde o passado familiar, não anda armado, é um poeta
o ria de seu povo, de seu grupo de referência.
• que canta a coragem, engrandecendo nos mesmos ver-
No que concerne à memória escrita, privilegiei o sos a valentia de Lampião e de Odilon Flor. No seu
so dos três livros já citados como principais referências panteão de heróis, Ferreiras e Nazarenos são honra ser-
- bre Ferreiras e Nazarenos. Dois deles, O canto do taneja, enquanto o cangaceiro ferrador Zé Baiano e o
_ cauã e Memórias de Um Soldado de Volante. são de- sargento De Luz, da polícia sergipana, encarnam todo o
imentos de gente de Nazaré, das famílias Flor e mal que a perversidade humana engendra.
urubeba. O terceiro, Lampião Além da Versão, foi es- As entrevistas colhidas em Sergipe, Alagoas,
colhido porque seu autor - Alcino Alves Costa, tem Bahia, Ceará e Pemambuco, a extensa bibliografia exis-
. enso orgulho de ser sobrinho do cangaceiro Zabelê e tente, a leitura de documentos e notícias de imprensa cons-
e ter nascido em Poço Redondo, segundo ele, a capi- tituem o material utilizado neste trabalho perpassado pela
'ai mundial do cangaço, por ter sido o local do Brasil experiência pessoal de vida sertaneja até os vinte anos
ue forneceu maior número de cangaceiros para o ban- de idade. Também o livro de Frederico Pemambucano
o de Lampião. de MeIo - Guerreiros do Sol, o mais completo do ponto
Não tendo vivido o tempo de esquecimento e de de vista de dados sobre valentões do Nordeste, é muito
isfarce do passado de cangaceiro ou coiteiro, Alcino utilizado neste trabalho onde procuro traçar os perfis,
encarna a memória anti-volante, anti-injustiça, com a tirar do imaginário popular e trazer à discussão acadêmi-
mesma convicção da perspectiva anti-cangaceira dos ca os personagens tema e título desta tese.
depoimentos dos Nazarenos. Os Nazarenos deixaram memória escrita. Com o
Toda sua vida o autor dedicou à pesquisa, sendo fim do cangaço Manuel Flor viveu bastante, com tem-
amigo de velhos cangaceiros, fotografando-os e a seus po para aprimorar os conhecimentos e escrever cader-
familiares, levantando a vida de cada um, com muito nos de memória onde registrou suas impressões sobre a
respeito a seus sentimentos. Grande admirador da cora- campanha nas catingas, derrotas e vitórias, num apelo
gern e da bravura dos sertanejos, sente muita piedade pungente desdobrado por sua filha, Marilourdes Ferraz,
as vítimas da violência, vinda da polícia ou dos can- no livro O Canto do Acauã.
gaceiros. Na intimidade mais profunda dos iguais, re- O título é simbólico, explicitando o conteúdo
gistrou a tragédia do povo mais pobre, dos elementos da narrativa, já que a acauã é o pássaro agourento,
3~ • p. 26-31 • 1999
- lturais, Ferreiras e Nazarenos representam, alegori- marcada a ferro. Ela passava na cidade e fora vi-
camente, as transformações vividas pela sociedade ser- sitar José Vicente.
taneja no período recortado, espaço e tempo do palco 5 - BERGSON, H. Ibid, p. 41.
e suas lutas. 6 - Pedro Agra - Muitas vezes delegado em Santana do
Considerando a intencional idade dos agentes so- Ipanema, teve um irmão - Nenen Soares (Manu-
iais, muitos elementos devem ser considerados no es- el Soares Agra), morto pelos cangaceiros. Entre-
do da guerra que sacudiu o sertão nesse período. A vista concedida no dia 23 de julho de 1990, aos
corrupção de policiais em promiscuidade com os can- 95 anos de idade, em sua casa na Rua Benedito
::::ceiros, a presença nas tropas de homens que ali se Mello - Santana do Ipanema, Alagoas.
encontravam por não terem recursos próprios para com- 7 - Wilson Lucena Maranhão - filho do Coronel José
aterern o cangaço, os protetores - a serem diferencia- Lucena de Albuquerque Maranhão, comandante
os dos coiteiros, os militares de carreira que foram do 2° Batalhão da Polícia Militar de Alagoas, en-
incorruptíveis no combate ao cangaço, são variáveis carregado do combate ao cangaço. Entrevistas
importantes para o entendimento da luta, sua duração e concedidas em 21, 22 e 23/07/1992.
orma de desfecho. 8 - FERRAZ,Marilourdes - O Canto do Acauã. Recife:
Editora Rodovalho de Guias Especiais Ltda.,
OTAS E REFERÊNCIAS 1985, p. 13, 14. Os grifos são da autora.
9 - HALBWACHS, Maurice - A Memória Coletiva. São
BIBLIOGRÁFICAS
Paulo: Vértice Editora, Revista dos Tribunais,
1 - Citado por Jacques Le Goffin História e Memória. 1990, p. 109.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1994, p. 472. 10 - COSTA,Alcino Alves - "Lampião além da Versão -
_ - BERGSON, Henri - Matéria e Memória. Ensaio sobre Mentiras e Mistérios de Angicos ", Aracaju,
a Relação do corpo com o Espírito. São Paulo: Sergipe, Sociedade Editorial de Sergipe / Secreta-
Livraria Martins Fontes, Ed. 1990, p. 12. ria do Estado da Cultura de SE, 1996, p. 91, 92.
3 - Ibid, p. 41. Observação: Este artigo é o primeiro capítulo de minha
- José Maximiliano do Nascimento, falando sobre um Tese de Doutorado em Ciências Sociais, sob o
companheiro da volante de Lucena, que jurou vin- título A DERRADEIRA GESTA: LAMPIÃO E
gar o pai, morto por um cangaceiro. NAZARENOS GUERREANDO NO SERTÃO,
a - Em 1967 em casa de José Vicente, em Pão de Açú- defendida na Pontifícia Universidade Católica de
car, fui apresentada a uma senhora Anísia, São Paulo, em maio de 1997.