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Texto 1:
Os grandes modernistas que mencionamos continuam ativos nessa fase e publicam obras importantes,
enquanto os mais moços estreiam em livro pela altura de 1930, como é o caso de Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987) com seu livro daquele ano, Alguma poesia. Neste, e no seguinte, ele parece um modernista de
programa, aplicando meticulosamente os preceitos estabelecidos; mas é que eles correspondiam à sua mais
profunda natureza poética, cheia de pudor e angústia, encontrando-se bem no verso duro e seco, próprio para
dissolver na ironia e no sarcasmo qualquer laivo de sentimentalismo ou ênfase, que ele sabe anular pelo recurso
ao estilo coloquial mais quotidiano. Drummond é o primeiro grande poeta brasileiro nascido intelectualmente
dentro do Modernismo, sem laivo de passado nem perigo de volta a ele. Sob este aspecto, a impressão do
leitor desse livro e do seguinte, Brejo das Almas (1934), é que Drummond deseja instaurar uma poesia não
poética, sem complacência com o mundo e sobretudo com o próprio eu. No entanto, o leitor sente ao mesmo
tempo que a força poética vem das emoções represadas, que parecem a cada instante brotar como erva
renitente por entre as frestas desse pedregoso universo.
Os livros seguintes mostram um acordo maduro entre essas tendências contraditórias, e o poeta
adquire a possibilidade de manifestar os seus impulsos, transferindo-os em parte para o passado da família
(componente tradicional) e o desejo de redenção social (componente utópica). Além de alcançar grande
maturidade na expressão implacável do eu, ele atinge então uma coisa bastante rara na poesia contemporânea:
a expressão política sem qualquer aspecto de programa, como se fosse manifestação da mais profunda
necessidade pessoal. Partindo da descrição seca da vida e das coisas, chega assim a três dimensões
complementares, refletidas nos próprios títulos das coletâneas de versos: Sentimento do mundo (1940), José
(1942), Rosa do povo (1945). Poesia individual e poesia social fundidas na poesia que penetra a realidade mais
íntima da vida.
(CANDIDO, Antonio. Iniciação à Literatura Brasileira.)
(ARRIGUCCI Jr., Davi. O xis do problema. In: Coração Partido. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. p.15-21)
1º) Entre Lobo e Cão → Reúne poemas que abordam o tema do envelhecimento e da reflexão sobre os fatos
vividos ou apenas projetados. Opõe o símbolo do lobo (vida-selvagem-inadaptado) ao do cão (morte-doméstico-
conformado).
Legado Opaco
Memórias
2º) Notícias Amorosas → A temática dessa segunda parte, o título já esclarece: o amor e seus desafios.
Amar
Que pode uma criatura senão, Amar solenemente as palmas do deserto,
entre criaturas, amar? o que é entrega ou adoração expectante,
amar e esquecer, e amar o inóspito, o cru,
amar e malamar, um vaso sem flor, um chão de ferro,
amar, desamar, amar? e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave
sempre, e até de olhos vidrados amar? de rapina. Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
Que pode, pergunto, o ser amoroso, doação ilimitada a uma completa ingratidão,
sozinho, em rotação universal, senão e na concha vazia do amor a procura medrosa,
rodar também, e amar? paciente, de mais e mais amor.
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha, Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia? amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
Deus me deu um amor no tempo de madureza, E o tempo que levou uma rosa indecisa
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme. a tirar sua cor dessas chamas extintas
Deus — ou foi talvez o Diabo — deu-me este amor maduro, era o tempo mais justo. Era tempo de terra.
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor. Onde não há jardim, as flores nascem de um
secreto investimento em formas improváveis.
Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
e outros acrescento aos que amor já criou. Hoje tenho um amor e me faço espaçoso
Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso para arrecadar as alfaias de muitos
e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou. amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,
e ao vê-los amorosos e transidos em torno,
Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia o sagrado terror converto em jubilação.
e cansado de mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado, um sistema de erros. Seu grão de angústia amor já me oferece
Amanhecem de novo as antigas manhãs
na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia
que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.
os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura
Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra e o mistério que além faz os seres preciosos
imensa e contraída como letra no muro à visão extasiada.
e só hoje presente.
Deus me deu um amor porque o mereci. Mas, porque me tocou um amor crepuscular,
De tantos que já tive ou tiveram em mim, há que amar diferente. De uma grave paciência
o sumo se espremeu para fazer vinho ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia
ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo. tenha dilacerado a melhor doação.
Há que amar e calar.
Para fora do tempo arrasto meus despojos
e estou vivo na luz que baixa e me confunde.
3º) O Menino e os Homens → São poemas feitos para pessoas em especial: o menino, seu irmão Pedro, a
quem tenta advertir sobre as “desrazões” desse mundo; e os adultos, respectivamente, os poetas Manuel
Bandeira (“O Chamado”), Mário Quintana (“Quintana’s bar”) e Mário de Andrade (“Aniversário”).
O Chamado
Na rua escura o velho poeta
(lume de minha mocidade)
já não criava, simples criatura A palavra oscila no espaço
exposta aos ventos da cidade. um momento. Eis que, sibilino,
entre as aparências sem rumo,
Ao vê-lo curvo e desgarrado responde o poeta: Ao meu destino.
na caótica noite urbana,
o que senti, não alegria, E foi-se para onde a intuição,
era, talvez, carência humana. o amor, o risco desejado
o chamavam, sem que ninguém
E pergunto ao poeta, pergunto-lhe pressentisse, em torno, o chamado.
(numa esperança que não digo)
para onde vai — a que angra serena,
a que Pasárgada, a que abrigo?
4º) Selo de Minas → Através dos poemas dessa parte, o poeta tenta compreender-se, encontrar-se consigo
mesmo, num caminho de volta ao espaço onde nasceu — Minas Gerais —, ao tempo de sua infância e da
decadência familiar.
5º) Os Lábios Cerrados → A viagem pelo passado, a volta às raízes, o reencontro com sua família, começado
na parte anterior, culmina com a consciência de que o que se perdeu passou a ser amado e vive dentro das
lembranças do poeta — “amar, depois de perder” (“Perguntas”).
Convívio
Cada dia que passa incorporo mais esta verdade, de que eles não vivem senão em nós
e por isso vivem tão pouco; tão intervalado; tão débil.
Fora de nós é que talvez deixaram de viver, para o que se chama tempo.
E essa eternidade negativa não nos desola.
Pouco e mal que eles vivam, dentro de nós, é vida não obstante.
E já não enfrentamos a morte, de sempre trazê-la conosco.
Mas, como estão longe, ao mesmo tempo que nossos atuais habitantes
e nossos hóspedes e nossos tecidos e a circulação nossa!
A mais tênue forma exterior nos atinge.
O próximo existe. O pássaro existe.
E eles também existem, mas que oblíquos! e mesmo sorrindo, que disfarçados...
Há que renunciar a toda procura.
Não os encontraríamos, ao encontrá-los.
Ter e não ter em nós um vaso sagrado,
um depósito, uma presença contínua,
esta é nossa condição, enquanto
sem condição transitamos
e julgamos amar
e calamo-nos.
Ou talvez existamos somente neles, que são omissos, e nossa existência,
apenas uma forma impura de silêncio, que preferiram.
Encontro Permanência
Meu pai perdi no tempo e ganho em sonho.
Se a noite me atribui poder de fuga, Agora me lembra um, antes me lembrava outro.
sinto logo meu pai e nele ponho
o olhar, lendo-lhe a face, ruga a ruga. Dia virá em que nenhum será lembrado.
Está morto, que importa? Inda madruga Então no mesmo esquecimento se fundirão.
e seu rosto, nem triste nem risonho, Mais uma vez a carne unida, e as bodas
é o rosto antigo, o mesmo. E não enxuga cumprindo-se em si mesma, como ontem e sempre.
suor algum, na calma de meu sonho.
Pois eterno é o amor que une e separa, e eterno o fim
Oh meu pai arquiteto e fazendeiro! (já começara, antes de ser), e somos eternos,
Faz casas de silêncio, e suas roças frágeis, nebulosos, tartamudos, frustrados: eternos.
de cinza estão maduras, orvalhadas E o esquecimento ainda é memória, e lagoas de sono
por um rio que corre o tempo inteiro selam em seu negrume o que amamos e fomos um dia,
e corre além do tempo, enquanto as nossas ou nunca fomos, e contudo arde em nós
murcham num sopro fontes represadas. à maneira da chama que dorme nos paus de lenha jogados no
[galpão.
Perguntas
6º) A Máquina do mundo → Consta de apenas dois poemas. A temática são os questionamentos do poeta
frente ao mundo, com razões tão inexplicáveis que ele prefere não saber, visto que a busca pelas respostas é
a própria razão de viver.
A Máquina do mundo
olha, repara, ausculta: essa riqueza que vou pelos caminhos demonstrando,
sobrante a toda pérola, essa ciência e como se outro ser, não mais aquele
sublime e formidável, mas hermética, habitante de mim há tantos anos,
Era tão claro o dia, mas a treva, O amor não nos explica. E nada basta,
do som baixando, em seu baixar me leva nada é de natureza assim tão casta
pelo âmago de tudo, e no mais fundo que não macule ou perca sua essência
decifro o choro pânico do mundo, ao contacto furioso da existência.
que se entrelaça no meu próprio choro, Nem existir é mais que um exercício
e compomos os dois um vasto coro. de pesquisar de vida um vago indício,