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Palavras-Chave
RELIGIÃO, CANDOMBLÉ, MÚSICA, ETNOMUSICOLOGIA.
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Textos escolhidos de cultura e arte populares, v. 3, n. 1, 2006.
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FONSECA, Edilbero José de Macedo. “...Dar rum ao orixá...”
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mento dos povos sobre a face da os propiciatórios para Exu tem, aqui, a
terra. Entretanto, cada um tinha justificativa para todo um código de prá-
uma idéia diferente para a cria- ticas, usos e possibilidades. É o mito tor-
ção, e todos encontravam algum nando-se carregado de força cultural
inconveniente nas idéias dos ou-
quando vivenciado pela comunidade.
tros nunca entrando em acordo.
Porém, o contrato de trocas que se cir-
Assim surgiram muitos obstácu-
los e problemas para executar a cunscreve no mito só é observado na
boa obra a que Olofim se propu- medida em que a estrita observância for-
nha. Então, quando os sábios e o mal dos ritos é garantida.
próprio Olofim já acreditavam Fernando Ortiz, em La Africanía de
que era impossível realizar tal ta- la Música Folklórica de Cuba (1965:
refa, Exu veio em auxílio de 300), cita Milligan para dizer que “sem
Olofim-Olodumare. Exu disse a música o negro africano não pode viver,
Olofim que para obter sucesso em morrer ou ser enterrado”. No candom-
tão grandiosa obra era necessá- blé praticamente todas as etapas da vida
rio sacrificar 101 pombos como
da comunidade são conduzidas pela
ebó. Com o sangue dos pombos
música. Dessa maneira, o fazer musical
se purificariam as diversas anor-
malidades que perturbam a von- no candomblé se apresenta como peça-
tade dos bons espíritos. Ao ouvi- chave, integrando-se simbolicamente à
lo, Olofim estremeceu, porque a cena ritual. Mas como o fazer musical
vida dos pombos está muito li- se coloca nesse contrato ritual de tro-
gada a sua própria vida. Mesmo cas? Como os diversos ritmos tocados
assim, pouco depois sentenciou: pelo gã e os atabaques aí atuam?
“Assim seja, pelo bem de meus De modo geral, podemos dizer que
filhos”. E pela primeira vez se sa- os rituais do candomblé são comporta-
crificaram pombos. Exu foi gui- mentos formalmente estabelecidos de
ando Olofim por todos os luga-
maneira cerimonial e que têm como ob-
res onde se deveria verter o san-
jetivo cumprir determinadas etapas re-
gue dos pombos, para que tudo
fosse purificado e para que seu lacionadas ao sistema de crenças, atu-
desejo de criar o mundo assim ando no sentido de afirmar forças
fosse cumprido. Quando Olofim emotivas que interligam deuses e ho-
realizou tudo o que pretendia, mens, integrando o indivíduo à comu-
convocou Exu e lhe disse: nidade-de-santo. Alguns rituais, por se-
Muito me ajudaste e eu bendigo rem secretos, estão fechados à partici-
teus atos por toda a eternidade. pação dos não iniciados; os ritos públi-
Sempre serás reconhecido, Exu, cos, porém, são abertos e franqueados à
serás louvado sempre antes do co- participação de todos.
meço de qualquer empreitada
José Jorge de Carvalho (1991) em um
(2001: 44).
de seus estudos sobre o xangô do Reci-
Assim, o cumprimento dos sacrifíci-
fe, propõe três níveis de análise do re-
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FONSECA, Edilbero José de Macedo. “...Dar rum ao orixá...”
pertório musical para os diversos con- sua dança, cada orixá é saudado com três
textos rituais,9 que livremente enuncio cantigas na entrada (primeira de rum) e
aqui como: na saída (cantigas de maló ou unló10),
- os tipos de rituais e seus respectivos interpoladas por toques instrumentais de
repertórios, rum, ou dar rum ao orixá.11
- as características musicais do reper- - Cantigas de folhas ou de Sassain:
tório de cada ritual, e 16 cantigas que louvam as folhas e plan-
- similaridades musicais do repertó- tas com poderes especiais.
rio de rituais distintos. - Cantigas de bori, de matança e de
Fixando-me aqui na primeira e na ter- padê: repertório específico entoado du-
ceira das abordagens analíticas citadas, rante esses rituais.
e tendo também como referência o que - Cantigas de iaô: entoadas nas saí-
escreve Bastide (1978) sobre as festas das do iaô (noviço) de seu ritual de ini-
públicas, enumero os seguintes momen- ciação.
tos rituais: (1) o sacrifício, (2) a oferen- - Cantigas de axexê: entoadas duran-
da, (3) o padê de Exu, (4) o chamado te os rituais fúnebres que falam dos mor-
dos deuses, (5) as danças preliminares, tos e dos ancestrais.
(6) A dança dos deuses e (7) os ritos de - Rezas: cantigas laudatórias entoa-
saída e de comunhão. Para todos esses das quase sempre sem acompanhamen-
momentos, existe um repertório mais ou to instrumental. Podem, em certas cir-
menos específico que pode variar depen- cunstâncias, ser realizadas em posição
dendo do caráter da festa e do orixá sau- agachada sobre uma esteira com a cabe-
dado. ça tocando a terra, denotando reveren-
Não há um acordo sobre o sistema de cia e respeito aos orixás.
classificação do repertório do candom- - Cantigas de entrada: entoadas quan-
blé dentro da literatura especializada. Do do da entrada dos orixás paramentados
que pude pesquisar, e partindo da clas- no barracão.
sificação proposta pela etnomusicóloga - Cantigas de comida: cantadas du-
Angela Lühning (1990), é possível sub- rante os rituais que envolvem distribui-
dividir os repertórios, de acordo com sua ção de comida.
funcionalidade: - Cantigas de procissão: cantadas du-
- Cantigas de xirê: entoadas durante rante as procissões, incluindo aí as re-
a primeira parte da festa. Geralmente são zas.
cantadas de três a sete cantigas para cada - Rodas: cantigas que aparecem no
orixá. xirê, em ordem fixa, contam histórias
- Cantigas de rum, de orô ou de fun- míticas e estão relacionadas a um orixá
damento: entoadas quando os orixás já em especial.
se manifestaram. Repertório com o qual É fácil compreender então como, no
se tem um zelo especial, pois podem des- mundo dos candomblés, a música é um
pertar o orixá nos adeptos. No início de dos elementos simbólicos do contrato
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Quadro 1
Linhas-guia de 6 e 8 batidas
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Quadro 2
Linhas-guia de 12 e 16 batidas
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Quadro 3
Fontes pesquisadas
Em seu estudo sobre o processo de alabês chamam eventualmente de bati-
aprendizagem de fórmulas de orienta- da, não aparece como uma categoria vi-
ção rítmicas segundo sílabas mnemôni- gente entre os alabês no candomblé. O
cas, Kubik propõe uma notação em que que se subentende desse conceito pro-
“x” representa articulação de som, e “.”, posto por Arom e Kubik é que essas sub-
ausência de articulação, num fluxo cons- divisões seriam, em última análise, o que
tante de batidas, o que chamou de nota- realmente orienta os tocadores.
ção de impacto. As fórmulas a seguir re- Nos quadros 1 e 2, baseado nos con-
produzem a proposta de Kubik (1979, ceitos desenvolvidos até aqui, proponho
110) para duas importantes fórmulas então uma tipificação das linhas-guia
mnemônicas presentes na música da executadas pelo gã nos candomblé ketu-
África Ocidental e Central, de 12 e de nagô no Rio de Janeiro:
16 pulsos: O toque do Foribale manifesta sim-
A fórmula rítmica de 12 pulsações bolicamente o mesmo que o paô.12 A en-
Versão a: trada na comunidade de um ogã, pessoa
(12) [x . x . x x . x . x . x] (sete batidas) ilustre e respeitada, é saudada com o
Versão b: Foribale. Por se tratar de um rufar dos
(12) [x .x . x . . x . x . .] (cinco batidas) atabaques, qualquer tentativa de nota-
ção sempre será uma redução esquemá-
A fórmula rítmica de 16 pulsações
tica do efeito conseguido na prática.
Versão a:
Com exceção do Ijexá ou Jexá, e em
(16) [x . x . x . xx . x . x . xx .] (nove
batidas) alguns casos o Aguerê, essas linhas-guia
Versão b: são tocadas pelos atabaques menores,
(16) [x . x . x . x . . x . x . x . .] (sete rumpi e lé, com fórmulas complemen-
batidas) tares na mão esquerda, desdobrada em
Essas categorias esquemáticas pro- unidades menores, como no exemplo a
postas por Arom e Kubik parecem ter seguir (quadro 4) da linha-guia de 12
muita semelhança com a idéia de batidas.
divisibilidade da escrita musical tradi- O Corrido ou Massá, denominação
cional, já que a idéia de valor operacio- genérica utilizada por alguns alabês
nal mínimo ou pulsação elementar, mes- para designar esse toque, parece ser uti-
mo aproximando-se do que alguns lizado para acompanhar cantigas de to-
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Quadro 4
Fórmula complementar
dos os orixás. Mesmo sendo essa linha- entre os mestres tocadores nos terreiros.
guia a mais produtiva dos toques execu- Relacionar etnomusicologicamente o
tados, possui andamento, toques de rum fazer musical ao contexto ritual em que
e características litúrgicas próprias. O ocorre é antes de tudo reconhecer um
Alujá de Xangô ou Oguelê de Obá, são campo de conexões simbólicas que ex-
apenas dois exemplos disso, sendo co- trapolam o corpus tanto do ritual, como
mum ouvir alabês se referirem a esse encadeamento de procedimentos litúr-
toque como um Alujá de Ogum, por gicos, como da música enquanto fenô-
exemplo. meno articulado segundo leis próprias.
Outro padrão rítmico adotado de for- O contrato estabelecido entre deuses
ma genérica e igualmente muito difun- e homens realizado por meio dos toques
dido é aquele que utiliza a linha-guia dos tambores correlaciona-se a conjun-
do Aguerê (xx. . xxx .), que também apa- tos simbólicos com múltiplas vocações.
rece em cantigas de inúmeros orixás. Assim, sem a tentativa de compreensão
Pode aparecer na variação Korin ewe ou de uma visão de mundo como força sub-
Aguerê de Ossain (xx . . x . x .) ocorren- jacente à prática ritualística descrita nos
do igualmente como toque de acompa- mitos, essa correlação seria inócua, tor-
nhamento ou solo. As cantigas para esse nando-se uma mera descrição formal de
orixá constituem-se em ofós, encanta- aspectos dos ritos ou da prática musi-
mentos, e funcionam como desencadea- cal.
dores do processo de liberação do axé No mundo dos candomblés, se o de-
contido nas plantas. sigual contrato de trocas entre a enorme
força dos deuses e a singela dádiva dos
Arremate homens se dá por meio de um conjunto
de símbolos, é pelo fazer musical que,
Nesse pequeno trabalho procurei es- por excelência, isso acontece. Todos os
tabelecer bases para uma reflexão sobre principais procedimentos litúrgicos só se
alguns aspectos da presença do fazer podem realizar tendo a música, em suas
musical dos tambores dentro das comu- diversas modalidades, como veículo en-
nidades do candomblé ketu-nagô no Rio tre o mundo ordinário, a terra ou aiê, e
de Janeiro, a partir da expressão “...dar o extraordinário, o céu ou orum.
rum ao orixá...” francamente utilizada Finalmente é preciso ver, ainda, que
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FONSECA, Edilbero José de Macedo. “...Dar rum ao orixá...”
(3) Dividido pelo ritual, unido pela músi- dita. Série Antropologia, v. 108, 1991.
ca.”
SANTOS, Juanita Elbein do. Os nagô e a
10 Cacciatore cita uma provável tradução de morte, Petrópolis: Vozes, 1976.
aunló: “aiyún” – indo: “ló” – partir (par-
FONSECA, Edilberto José de Macedo.
tindo) (1988: 56).
Olubajé: Música e Ritual numa festa pú-
11 Tocar os atabaques para o orixá dançar, blica do candomblé ketu-nagô do Rio de
em festa pública, com suas roupas e ape- Janeiro. Cadernos do Colóquio, Progra-
trechos rituais (Cacciatore 1988: 100). ma de Pós-Graduação em Artes/Unirio, v.
1, n. 4, 2001.
12 Palmas utilizadas como comunicação
quando as palavras não podem ser usadas, __________. O Toque da Campânula:
ou ainda têm o sentido de saudação aos Tipologia preliminar das linhas-guia do
orixás, isto é, uma espécie de aplauso (Pes- candomblé ketu-nagô no Rio de Janeiro.
soa de Barros: 1999, 178). Cadernos do Colóquio, Programa de Pós-
Graduação em Artes/Unirio, v. 1, n. 5,
2002.
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