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portuguesa fizeram coisa única na história do comércio de gente (e era a isso que
a afirmação do então candidato à presidência se referia): capturaram pessoas em
guerras de conquista, em ataques a aldeias, e venderam-nas como escravos aos
comerciantes ávidos, que seguiam os exércitos para estarem mais perto da
valiosa mercadoria que seria embarcada para as Américas, preferencialmente
para o Brasil. É fato que essa situação, na qual os estrangeiros brancos se
envolveram na captura direta, atuando como fornecedores de escravizados para
o comércio atlântico, não perdurou por muito tempo nem mesmo em Angola ou
na Zambézia, áreas nas quais houve envolvimento direto dos portugueses na
escravização de africanos e africanas. Conforme a norma que vigorou por todo
tempo do comércio de gente, ou trato dos viventes, eram agentes africanos que
realizavam a captura (por meio de guerras, sequestros, condenações ou outros
mecanismos), e o transporte dos escravizados até os portos, nos quais os
comerciantes europeus e seus agentes adquiriam a força de trabalho que ia
mover os empreendimentos coloniais americanos. Ou seja, não houvesse a
demanda euro-americana não haveria tráfico de escravizados na dimensão em
que ele ocorreu. Mas me parece que esse raciocínio, além de não servir aos
intentos políticos dos que usam a deformação da realidade como estratégia de
imposição do seu poder, tem uma complexidade, que nem é tanta, mas está
acima da capacidade de compreensão da gente que ora proclama e aplaude
afirmações despropositadas a título de verdades.
As complexidades da história, da vida humana e das sociedades,
transpassadas pelas transformações inerente à passagem do tempo, à ação dos
homens e mulheres, permite a manipulação dos fatos por intenções ideológicas,
que podem ser desvendadas pelas pesquisas criteriosas. A narrativa histórica,
mesmo almejando a maior objetividade possível, veicula interesses específicos,
pertinentes ao lugar ocupado pela pessoa que emite o discurso. Exemplo disso é
o lugar que Luisa Mahin passou a ocupar na história da resistência dos africanos
e afro-descendentes à violência inerente a uma sociedade que os escravizava e
reduzia a propriedades destituídas de qualquer direito. No samba da Mangueira
deste ano, que aqueceu muitos corações brasileiros nos tempos tenebrosos que
adentramos um pouco antes do carnaval, ela aparece como heroína da rebelião
dos Malês, propagando uma construção romântica e destituída de
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Mas cabe lembrar que a reconstrução dos fatos só pode ser feita a partir
da análise de documentos, seja de que natureza forem, e a partir de uma
perspectiva que considere tanto as determinações do tempo presente que
orientam as análises quanto as determinações dos tempos nos quais os
documentos foram produzidos e que orientaram a sua elaboração. O
conhecimento histórico, ou qualquer outro conhecimento, não é construído a
partir da imposição de uma vontade, que cria uma interpretação baseada apenas
no desejo de que ela vigore. Os tempos atuais de espetacularização de todos os
aspectos da vida também tornam a verdade um espetáculo, cujo tamanho é
medido pela capacidade de penetração do discurso de quem a profere e da
aceitação desse discurso, que por sua vez instaura a veracidade da verdade
transmitida de forma espetacular e não fundamentada em um compromisso com
a realidade e sim com dado desejo. Vemos assim o que parece ser um retrocesso
do comportamento humano a uma etapa regida mais pelo instinto do que pela
razão e pelos constrangimentos do social. (E essa ideia do império do instinto
tiro de conversas tidas com amigos, não é de minha autoria.) O resultado
imediato dessa situação me parece ser a vitória da lógica do mais forte, do
caçador, que despreza sua caça e nela não vê nada a ser valorizado, além de sua
qualidade de caça. Vivemos um tempo no qual predomina a irracionalidade.
Talvez a mais grave de todas seja a que levará ao colapso do meio ambiente e
com ele da humanidade: os animais e vegetais estão desaparecendo com uma
rapidez assustadora e a cadeia da vida sendo cada vez mais afetada. Estamos
assistindo ao colapso das normas de convivência humana, com a justificativa da
eliminação pura e simples do opositor. Estamos assistindo ao colapso dos ideais
humanistas, para os quais toda humanidade deveria gozar dos mesmos direitos e
que uma perspectiva evolucionista entendeu ser uma forma superior de
existência. Mas como a realidade tem vários lados, hoje também são indicados
caminhos, por homens e mulheres de talentos excepcionais, para resolver os
problemas postos pela poluição, pela explosão demográfica, pelo esgotamento
dos recursos naturais. Ou seja, os instrumentos de dominação não são
absolutamente eficazes, havendo espaços para a contestação e a criação de
alternativas à lógica da exploração absoluta do trabalho pelo capital.
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