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Jornalistas e antropólogos
Semelhanças e distinções da prática profissional
Isabel Travancas
Jornalista, Mestre em Antropologia Social pelo Museu-UFRJ e
Doutora em Literatura Comparada pela UERJ
Professora do Departamento de Antropologia Cultural do IFCS-UFRJ e da
Faculdade de Comunicação Social da Universidade Estácio de Sá
isabeltravancas@yahoo.com
Resumo
Este trabalho tem como objetivo refletir sobre as relações entre a antropologia e
a comunicação a partir da análise das especificidades destes dois campos.
Quais os pontos de contato entre o trabalho do jornalista e do antropólogo
em campo? Qual o papel das entrevistas nas duas áreas? Discutir estas entre
outras questões é uma das metas deste artigo, tendo como base os trabalhos da
Escola de Chicago, de C. Geertz e de P. Bourdieu.
Abstract
On the present work we wish to reflect on the existing relationship between
anthropology and communication based on the analysis of the singularitiesof
both fields. What are the connections between the job of a journalist and that of
a field anthropologist? This and other matters are the main subject of the present
article, which is based on the thesis of the School of Chicago, C. Geertz and
P. Bourdieu.
Palavras-chave
Antropologia, comunicação, jornalista e imprensa.
Keywords
Anthropology, communication, journalist and press.
Introdução
Jornalistas e antropólogos são profissi- pesquisador em relação à sua própria
onais com objetivos, métodos e visões sociedade. É preciso que ele vivencie
de mundo bastante distintas. Creio, o que R. Da Matta (1978) chamou de
entretanto, ser possível não só analisá- “anthropological blues” e que pode ser
los dentro de uma perspectiva compa- definido como o resultado da tentati-
rativa, como reuni-los na categoria va de transformar o “exótico em famili-
mais ampla de mediadores. Entendo ar” e o “familiar em exótico”. O primei-
aqui mediação como fenômeno socio- ro aponta o encontro do antropólogo
cultural, como afirma G. Velho com a sociedade do “outro”, com a
(2001:9), o qual, a partir da interação alteridade. É o seu confronto pessoal,
entre os indivíduos, produz e possibili- não apenas com o isolamento e a “sau-
ta a troca e a comunicação. Jornalistas dade”, mas com um universo distinto
e antropólogos estão o tempo todo do seu, com outros códigos, outras ló-
vivenciando em suas práticas profissi- gicas, outra maneira de viver e pensar.
onais o papel de mediadores, na medi- O segundo movimento diz respeito ao
da em que a vida em sociedade se dá momento em que a antropologia se
através das diferenças, e estes dois pro- dedica a pesquisar a sua própria socie-
fissionais estão intermediando relações dade, tentando olhá-la com outros
entre diversos grupos e categorias so- olhos, vivenciando o “estranhamento”
ciais. Eles podem ser vistos como elo dentro da sua própria cultura É assim
entre distintos universos de significa- que a antropologia não se dedica mais
ção. A diferença, conceito fundamen- a estudar apenas as sociedades primiti-
tal e definidor da antropologia, tem vas ou do “outro”. O antropólogo pode
também um papel importante na cons- investigar a sua sociedade, a sua cida-
trução da notícia, se pudermos de, o seu próprio grupo social. É a cha-
associar a novidade a um fato original mada antropologia urbana ou de
ou incomum. sociedades complexas. E o seu traba-
A representação que se tem do antro- lho final, – o texto – é dirigido ao lei-
pólogo é a do pesquisador-viajante que tor da sua sociedade, como o do jorna-
sai da sua sociedade, do seu mundo lista, que escreve as suas matérias para
europeu e “civilizado”, como B. o leitor do seu jornal, do seu país.
Malinowski, um dos pais da discipli- O jornalista é antes de tudo um habi-
na, para conhecer terras longínquas e tante da cidade. O mundo urbano tem
“exóticas”. A viagem é um elemento características e particularidades que se
privilegiado na construção deste pro- expressam no jornalismo. Quando
fissional: viagem, que, para o antropó- Simmel (1979) cita o anonimato, as
logo significa deslocamento, não relações transitórias, a superficialidade
necessariamente geográfico, porém. como aspectos dos indivíduos urbanos,
A experiência do trabalho de cam- não se pode deixar de associar estas
po se dá a partir do movimento do características ao jornalista. Assim
Objetividade e subjetividade
Estes dois conceitos estão em constante notícia, perdeu seu peso, mas não foi
discussão nestas duas profissões. descartada. Ela continua aparecendo
Ainda que a antropologia afirme ter se como uma meta. É o caso do Manual
afastado da idéia positivista de que a da Redação da Folha de S. Paulo
ciência tinha a obrigação de produzir (2001, p. 28) que afirma que a repor-
um conhecimento “objetivo”, e apos- tagem “deve ser iniciada com a informa-
te na subjetividade como instrumento ção que mais interessa ao leitor(...) e
de trabalho, de maneira alguma esta deve ainda contextualizar os fatos, expô-
questão parece totalmente resolvida, los objetiva e criticamente, com exatidão,
particularmente no que diz respeito ao clareza, concisão, didatismo e uso corre-
papel do antropólogo na pesquisa de to da língua”. Um pouco mais adiante,
campo. em outro verbete o Manual declara
Para o jornalismo a objetividade, que que:
junto com a clareza e a concisão Não existe objetividade em jorna-
eram as regras imprescindíveis de uma lismo. Ao escolher um assunto,
Textos e escritas
Alguns aspectos devem ser menciona- de autoria do texto dos dois. O antro-
dos em relação à subjetividade do jor- pólogo em princípio desfruta de gran-
nalista e do antropólogo, que dizem de liberdade de escolha. Seu objeto de
respeito à escolha do tema da reporta- pesquisa é definido a partir de interes-
gem e da pesquisa, assim como à idéia ses intelectuais seus, além de aspectos
pode criar o seu manual com as suas das são ainda um território preservado
regras, mas elas obviamente respeitam onde as subjetividades, opiniões e per-
as normas e regras ortográficas da lín- sonalidades podem se manifestar livre-
gua portuguesa. mente. Para o prazer do leitor e com o
Com a transformação dos jornais em consentimento do jornal.
empresas cujo principal produto é a Passemos ao texto antropológico. O
notícia, houve uma tentativa de pa- antropólogo escreve em primeiro lugar
dronizar os textos produzidos dentro das para seus pares, para a academia e, em
redações. O lide criado pela imprensa último, para o público em geral. Ele
norte-americana teve como objetivo sabe que seu trabalho será lido e avali-
atender ao leitor moderno e apressa- ado por outros antropólogos. E hoje,
do, que precisa obter o maior número cada vez mais se percebe que o texto
de informações, no menor tempo pos- produzido pelo pesquisador não pode
sível. O jornalista deve ser capaz de ser visto como algo separado da sua
criar e inovar a partir da fórmula do pesquisa de campo. Mariza Peirano
lide, respondendo com eficiência às (1992, p.134) ao comentar o trabalho
cinco perguntas mais fundamentais de V. Crapanzano sobre brancos na
sobre o fato noticiado: quem, como, África do Sul, enfatiza esta relação
quando, onde e pornquê. Entretanto, entre os dois processos.
o lide não deve ser visto como uma “ca-
Chama-se a atenção para o fato de
misa de força” para o repórter, levan-
que a maneira como se faz
do a uma rotina na elaboração da no- etnografia/pesquisa de campo está
tícia ou a uma padronização exagera- intimamente ligada à forma como
da. Várias empresas buscaram, com a se escreve, ou melhor, se constrói
introdução de novas técnicas de reda- etnografias como textos. Assim,
ção, criar um produto que pudesse ser estão intimamente relacionados na
lido como se tivesse sido escrito por um construção etnográfica a pesquisa
único jornalista. Ou seja, todos os tex- de campo (incluindo, naturalmen-
tos, da primeira à última página, deve- te, a escolha do objeto), a cons-
trução do texto e o papel desem-
riam ser uniformes e, conseqüentemen- penhado pelo leitor.
te, anônimos. O objetivo era mostrar
o jornal como um todo, apesar de suas Crapanzano vê o texto de sua pesqui-
inúmeras divisões. Muitos jornais ain- sa Waiting como um romance, princi-
da seguem este padrão até hoje. Ou- palmente por entendê-lo como
tros abriram espaço para modelos di- plurivocal na sua essência. Este aspec-
versos, misturando fórmulas e criando to de dar voz aos entrevistados aproxi-
áreas de maior individualização e mai- ma os discursos jornalísticos e antro-
or subjetividade, como é o caso das pológicos, na medida em que os dois
colunas assinadas. Discuti este tema em estão preocupados em relatar e descre-
outro trabalho (2001), “A coluna de ver fatos, situações, comportamentos,
Ibrahim Sued: um gênero jornalístico”, modos de vida e visões de mundo. E,
no qual afirmo que as colunas assina- para que estes textos não transmitam
Conclusão
A análise de certas características des- que essa tanto valoriza. Texto
tas duas profissões, me permitiu che- jornalístico não pode conter a opinião
gar a algumas conclusões. Há inúme- do repórter ou as suas impressões pes-
ras diferenças entre elas. De enfoque, soais. Ele está ali para “relatar os fatos”.
de objetivo, de duração, de concep- E ouvir as fontes, os envolvidos, de
ção. O jornalismo se define por uma preferência dos dois ou mais lados da
relação bastante estreita com o tem- questão. Ele não deve se colocar, se
po. É o tempo que transforma o novo posicionar diante da realidade. Da
em velho, é ele que ajuda a definir o mesma maneira ele não deve escrever
que é notícia e é ele, também, que um relato dos acontecimentos que o
transforma o jornal em papel amarela- envolva, salvo em raras exceções. O
do que, em apenas 24 horas, perde a jornalista deve ser testemunha e a mais
validade. A antropologia deseja a per- objetiva possível. De novo percebo,
manência, a solidez que o saber cien- que há uma idéia de “perigo” associa-
tífico propicia. O antropólogo não cor- da à subjetividade no jornalismo. Qual
re atrás do tempo como o jornalista, seria a ameaça da subjetividade ao jor-
não tem um dead line tão apertado, nem nalismo? A impossibilidade de criar
o trabalho de campo está restrito a uma reportagem dentro dos padrões e
algumas horas de conversa com os sem clareza e concisão?
entrevistados. Há o tempo da partida Termino este trabalho pensando nas
e o da volta, da pesquisa e da escrita, e possibilidades de diálogo entre estes
entre eles há o tempo da reflexão. dois campos e, ao mesmo tempo, refle-
Penso que, em alguns aspectos estas tindo sobre as efetivas contribuições de
duas profissões tentam fugir cada uma um para outro. Talvez o caminho seja
da peculiaridade da outra. A antropo- enfrentar o cruzamento destas frontei-
logia busca a todo custo se afirmar ras. O jornalismo poderá sair mais
como ciência, ciência interpretativa, enriquecido e consistente se for capaz de
que não descarta, ao contrário, procu- incorporar com rigor a idéia de subjeti-
ra lançar mão da subjetividade do pes- vidade, não como uma ameaça, mas
quisador. Mas, não quer ter sua escrita como um elemento importante que dará
de forma alguma confundida com a ao leitor uma visão mais complexa da
superficialidade do jornalismo. Há uma realidade. E a antropologia poderá des-
busca de “pureza” que me faz lembrar cobrir que o jornalismo é muito mais do
o trabalho de Mary Douglas (1976), que uma técnica de redação, fazendo
Pureza e perigo. Qual seria a ameaça com que a escrita seja parte essencial do
do jornalismo à antropologia? A falta trabalho do antropólogo, tornando seu
de rigor científico? Mas esse não é um texto o mais saboroso para o leitor, sem
critério jornalístico. que isso ameace o seu território ou seu
O jornalismo, por outro lado, também lugar como ciência.
está preocupado em se distanciar, não Robert Park (Grafmeyer: 1979,
da antropologia, mas da subjetividade p. 6 e 7), pesquisador da Escola de
Chicago, nunca negou o seu passado Portanto, Park não via nenhuma di-
como jornalista, ao contrário, sempre visão, nenhuma ruptura epistemoló-
afirmou que o sociólogo era aos seus gica entre a sua vivência de jornalista
olhos uma espécie de “super repórter”, e a sua prática como cientista social.
que deveria produzir, de uma maneira Essa aproximação poderá tornar a
mais precisa e com um pouco mais de antropologia mais dialógica e o jorna-
distância, a “grande informação”. lismo mais fecundo.
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