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Leonardo Greco2
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Palestra proferida em 10/4/2015 no Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do Ministério
Público do Estado do Rio de Janeiro.
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Professor Titular aposentado de Direito Processual Civil na Faculdade Nacional de Direito da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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parte do Estado e também dos particulares, tendo sido eficazes apenas na instituição de
filtros de acesso às instâncias recursais, que somente beneficiam a consecução das
metas quantitativas preconizadas pelos tribunais superiores.
Esse ritual falho, que um dia teremos de reformar, fica ainda mais comprometido
pelo seu sistemático abandono, inclusive nos tribunais superiores, em razão da premente
necessidade de dar vazão a um volume insuportável de recursos que precisam ser
julgados a cada sessão, cujos resultados são proclamados sem a leitura do relatório ou
até mesmo do voto do relator e sem mais qualquer outra discussão.
Em pleno século XXI, originários das mesmas fontes romanas, existem sistemas
processuais sem recursos contra as decisões interlocutórias, outros com recursos apenas
contra algumas decisões interlocutórias, e ainda outros, como o do Código brasileiro de
1973, com recursos contra quaisquer decisões interlocutórias (art. 522). Existem
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sistemas em que são considerados recursos meios de impugnação posteriores à coisa
julgada, como a ação rescisória, e outros, como o nosso, em que a noção de recurso está
associada à inexistência de coisa julgada. Existem países em que se admitem recursos
para o mesmo órgão jurisdicional que proferiu a decisão impugnada, como o Brasil,
enquanto que em outros o recurso impõe o reexame por órgão jurisdicional diverso e
mais qualificado. Raros países possuem recursos com base em voto vencido, como os
embargos infringentes do nosso Código de 1973, ou para esclarecimento de omissões e
obscuridades, como os nossos embargos declaratórios.
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DAMASKA, Mirjan R., The faces of Justice and State Authority, Yale University Press, 1986 (tradução
italiana: I volti della giustizia e del potere, Il Mulino, Bologna, 1991, p.95).
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do juiz de primeiro grau, ele pode provocar um novo julgamento, a ser proferido por um
tribunal mais qualificado, composto de magistrados mais experientes.
A extensão do princípio do duplo grau merece ser analisada sob duplo aspecto,
variando a esse respeito os diversos ordenamentos. O primeiro se refere à sua aplicação
a todos os tipos de decisão ou apenas às sentenças. Assim, por exemplo, no direito
norte-americano, pela chamada final judgement rule, em geral somente pode ser
interposto recurso da sentença final5, não das decisões interlocutórias, que o juiz profere
no curso do processo. No nosso processo do trabalho, assim como no processo civil
italiano, não existem recursos contra decisões interlocutórias.
Alcides de Mendonça Lima leciona que não se exige que toda decisão judicial
seja recorrível, mas que o sejam todas aquelas que representam a entrega definitiva da
prestação jurisdicional ou o encerramento do processo ou que levem a consequências
irremovíveis. É o que pode ser denominado de princípio da recorribilidade das
resoluções judiciais relevantes6. Parece-me que o problema deve ser posto em outros
termos. Os mesmos fundamentos que justificam a recorribilidade das sentenças finais
impõem também a possibilidade de impugnação de qualquer decisão interlocutória da
qual possa resultar algum prejuízo para a parte, seja esse prejuízo removível ou não. O
que interessa é saber se toda decisão interlocutória deve ser impugnável de imediato ou
somente por meio do recurso contra a sentença final. Parece-me que a ampla
impugnabilidade imediata de qualquer decisão interlocutória é um exagero, que pode
atravancar o processo com uma série interminável de incidentes. Por outro lado, num
processo conduzido sem planejamento, a frequente intervenção do tribunal de 2o grau na
marcha do processo, por meio do reexame recursal de quaisquer decisões
interlocutórias, retira qualquer coerência a essa marcha e dificulta a preparação de uma
boa decisão final. Além disso, causa a ilusão de que toda decisão não impugnada
preclui, o que torna o processo um jogo de espertezas e acaba provocando a interposição
de recursos contra decisões pouco relevantes. Devem ser impugnáveis de imediato as
decisões interlocutórias que causam à parte uma lesão grave ou de difícil reparação. As
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Nesse sentido, é preocupante o teor da Resolução nº 106/2010, do Conselho Nacional de Justiça, que
estabeleceu como um dos critérios objetivos de avaliação do desempenho qualitativo dos magistrados,
para efeito de promoção, “o respeito às súmulas do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores”
(art. 5º, letra e).
5
FRIEDENTHAL, Jack H., KANE, Mary Kay e MILLER, Arthur R. Civil procedure. St. Paul:
Thomson-West, 4ª ed., 2005, p. 618.
6
LIMA, Alcides de Mendonça. Introdução aos recursos cíveis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1965,
p. 138; idem MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. Rio de Janeiro:
Forense, vol. IV, 2ª ed., 1963, pp. 55-56.
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demais devem aguardar a sentença final e serem reexaminadas pelo tribunal superior
juntamente com o recurso contra ela interposto. Nesse sentido tentou evoluir o direito
brasileiro com a reforma do artigo 522 do CPC de 1973, procedida pela Lei
11.187/2005, a meu ver sem muito êxito, porque a excessiva fragmentação do
procedimento de primeiro grau e a sua demora acabaram por agravar pequenas lesões
que, num procedimento mais concentrado, poderiam ser reexaminadas apenas a final.
Ademais, se, de qualquer modo, cabe agravo contra qualquer decisão, retido ou
imediato, e parece prudente recorrer para evitar eventual preclusão, por que não tentar
processá-lo de imediato, procurando evidenciar a existência de uma lesão grave?
Novamente o Código de 2015 vem tentar romper esse automatismo de recorrer contra
qualquer decisão interlocutória, restringindo os tipos de decisões recorríveis.
7
CAPONI, Remo. L’appello nel sistema delle impugnazioni civili (note di comparazione anglo-tedesca).
In Rivista di diritto processuale, ano LXIV, n. 3, maio-junho de 2009. Padova: CEDAM, pp.632, 635-
642.
8
FERRAND, Frédérique. La restriction du champ de l’appel: les précieux enseignements du droit
allemand. In Justices et droit du procès – du légalisme procédural à l’humanisme processuel –
Mélanges en l’honneur de Serge Guinchard. 2010. Paris: Dalloz, pp. 249-266.
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de duas diretrizes basilares antagônicas, que reciprocamente se limitam e, até certo
ponto, se excluem.
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os responsáveis pela administração da Justiça têm frequentemente recorrido a
economistas e administradores, cuja visão desses problemas é puramente gerencial,
resultado do que poderíamos chamar de análise econômica do processo, que passou a
produzir dados e estatísticas de confiabilidade duvidosa e a propor metas quase
exclusivamente quantitativas. Essa falsa racionalização administrativa e gerencial erige
como escopos de uma suposta melhoria do desempenho da justiça a celeridade e a
produtividade, no intuito de dar vazão à sempre crescente quantidade de processos e de
recursos, influenciando o legislador processual a favorecer a padronização das decisões,
fortalecer a observância da jurisprudência e dos precedentes dos tribunais e a estimular
a coletivização das demandas e das questões a serem solucionadas uma única vez com
eficácia sobre todos os interessados, mesmo os que não tiveram qualquer oportunidade
de influir eficazmente na sua elaboração.
São duas diretrizes, são duas almas totalmente diferentes e contrapostas que
convivem no mesmo diploma e que pretendem impor-se à observância de todos os
protagonistas dos processos judiciais, em especial aos juízes e que, no que neste
momento nos interessa, incidem intensamente sobre a disciplina do sistema de recursos.
A par das disposições de caráter geral que se encontram nos primeiros artigos do
Código, a força do contraditório sobressai na disciplina do sistema de recursos em
diversos dispositivos, tais como:
a) no art. 933, segundo o qual, constatando o relator a ocorrência de fato
superveniente à decisão recorrida ou a existência de questão apreciável
de ofício ainda não examinada que devam ser considerados no
julgamento do recurso, intimará as partes para que se manifestem no
prazo de 5 (cinco) dias. E os parágrafos desse mesmo artigo, em
complemento, prescrevem que, se a constatação ocorrer durante a
sessão de julgamento, esse será imediatamente suspenso a fim de que
as partes se manifestem e se a constatação se der em vista dos autos,
deverá o juiz que a solicitou encaminhá- los ao relator, para audiência
das partes e subsequente exame da questão pelo colegiado.
b) No artigo 1.009, § 2º: toda vez que o apelado, em contrarrazões de
apelação, impugnar decisão interlocutória não preclusa por não ter
sido impugnável por agravo de instrumento, o recorrente será
intimado para, em 15 (quinze) dias, manifestar-se sobre ela (art. 1.009,
§ 2º).
c) No artigo 932: a obrigatoriedade de o relator, no tribunal, antes de
rejeitar monocraticamente recurso por inadmissibilidde, conceder
prazo ao recorrente para sanar o vício ou complementar a
documentação exigível.
d) No artigo 1.021, § 2º: a previsão de resposta do agravado no agravo
interno.
e) No artigo 937, faculta sustentação oral no agravo de instrumento
interposto contra decisões interlocutórias que versem sobre tutelas
provisórias de urgência ou da evidência e em outras hipóteses
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previstas em lei ou no regimento interno do tribunal. Nos casos em que
não caiba sustentação oral, assegura o direito a julgamento presencial, se
a parte se opuser ao julgamento virtual (art. 945).
f) Nos arts. 1.021, § 2º, e 1.024, § 2º, favorece igualmente o direito das
partes de influir na decisão a inclusão em pauta do agravo interno e dos
embargos de declaração, este se não for julgado na primeira sessão
seguinte à interposição.
Essa é a face mais positiva do Código de 2015, sob a perspectiva do respeito às
garantias fundamentais do processo. A outra face, não menos importante, mas a meu ver
bastante negativa, de restrições ao contraditório, influenciada pela ideologia da
eficiência, está igualmente expressa em inúmeros dispositivos. Cabe hoje à doutrina e
amanhã caberá à jurisprudência, à luz da hermenêutica constitucional, verificar em que
medida esses dispositivos resistem ao controle de constitucionalidade e, nesse
momento, será possível perceber se o Brasil tem efetivamente um Estado de Direito à
altura do grau de desenvolvimento atingido pela humanidade em todo o mundo
ocidental.
Começo com a força normativa da jurisprudência, dos precedentes e das
orientações dos tribunais superiores, que coloca aqueles que terão de sujeitar-se a ela
numa posição de nítida desvantagem, em que terão de submeter-se a decisão pré-
estabelecida da sua causa, sem nenhuma possibilidade de influir no seu conteúdo. O
artigo 927 diz que os juízes e tribunais “observarão essas decisões”. Mais enfático, o
artigo 988 estabelece que caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério
Público para (IV) garantir a observância de precedente proferido em julgamento de
casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência, em que os atingidos
não tiveram oportunidade de influir na decisão ou, se tiveram, foram tratados em
evidente posição de inferioridade.
Não menos ofensiva do contraditório é a aplicação da tese jurídica do
incidente de resolução de demandas repetitivas ou dos recursos repetitivos a todos
os processos e recursos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão
de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal. Válvula de
escape ao autoritarismo dessas regras foi a criação do agravo em recurso especial e
em recurso extraordinário, que tenta introduzir em certas hipóteses uma espécie de
distinguishing, a o q u a l s e e s p e r a q u e o S T F e o S T J d e e m a d e v i d a
acolhida.
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fungibilidade; k) o desestímulo a recursos protelatórios; l) a exaustividade do sistema
recursal; m) o acesso a um tribunal superior para coibir decisões judiciais contrárias à
lei; e n) o acesso subsidiário à jurisdição constitucional.
1- A TAXATIVIDADE
No processo civil, como relação jurídica de direito público que se trava perante
um órgão estatal, somente a lei pode facultar que a decisão de um órgão jurisdicional
seja reexaminada e revista, seja por ele mesmo, seja por outro órgão, porque, com a sua
decisão, o órgão jurisdicional, que a proferiu, cumpriu o dever do Estado de exercer a
jurisdição em relação à pretensão ou à questão que lhe foi submetida, nada mais
podendo prover, salvo se a própria lei a isso o obrigar. Não se admite, portanto, recurso
por analogia.
2– A VOLUNTARIEDADE
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O juiz não tem qualquer interesse em que a sua decisão seja revista ou
reexaminada, por ser o mais isento de todos os sujeitos processuais. Para Carnelutti, o
recurso é sempre voluntário, não porque não interesse ao Estado a verificação da justiça
da sentença, mas porque a aquiescência das partes é indicativa ou de sua justiça ou da
tolerabilidade da sua injustiça, no sentido de que a sua reparação não compensa o custo
da renovação do procedimento9.
3– A TEMPORARIEDADE
9
CARNELUTTI, Francesco. Instituciones del proceso civil. Buenos Aires, EJEA, vol. II, 1973, p.187.
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parte a sua prorrogação ou devolução, sempre que ocorrer evento, ainda que previsto,
alheio à sua vontade, que a impediu de praticar o ato (art. 223, § 1º). Além disso, todos
os prazos foram ampliados com a sua contagem apenas em dias úteis (art. 219).
4– A COLEGIALIDADE
Montesquieu, na sua clássica obra sobre o Espírito das Leis, manifestou a sua
opinião, que merece ser sempre relembrada, de que um juiz singular somente pode
existir em um governo despótico e que a história romana evidencia a que ponto um juiz
único pode abusar do seu poder10.
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mais de 80% dos recursos estão sendo resolvidos por decisões unipessoais dos relatores.
Num Estado, como o do Rio de Janeiro, em que concorrem 20 Câmaras Cíveis de
competência comum com cinco desembargadores cada uma, são 100 juízos
monocráticos diferentes adotando decisões sobre causas da mesma natureza, o que
significa que a justiça de 2º grau em nosso Estado, tornou-se decididamente lotérica,
aleatória, dependente da sorte, fenômeno altamente preocupante pela absoluta
insegurança do desfecho de qualquer demanda, que eventuais agravos internos para as
Câmaras não conseguem satisfatoriamente remediar pela massificação desses
julgamentos que impede que o colegiado exerça plena cognição sobre todas as
circunstâncias de cada causa.
A colegialidade pode ser em alguma medida flexibilizada, mas sem perder o seu
valor democrático, como o fez, por exemplo, a Alemanha na reforma de 200117,
monocratizando por delegação do colegiado as causas mais simples, nas quais o
colegiado já tem jurisprudência firmada, e não ficticiamente colegializando a partir do
juiz monocrático, como o fez a infeliz reforma do artigo 557 do nosso Código de 1973,
introduzida pela Lei 9.756/98, ratificada e ampliada no artigo 932 do Código de 2015.
5– A PUBLICIDADE
A justiça tem de ser feita de portas abertas, para que qualquer pessoa do povo
possa conhecer e controlar os seus atos, de modo que todos têm o direito de acesso ao
conteúdo dos atos processuais e ao local em que se realizam, mesmo aqueles que não
são partes no processo.
Antes da sua adoção no Brasil, vigorava nos tribunais superiores o sistema das tenções,
em que cada um passava o seu voto em segredo ao seguinte e assim sucessivamente18.
16
CIPRIANI, Franco. I problemi del processo di cognizione tra passato e presente. In Il Processo civile
nello stato democratico. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2006, p.35.
17
GOTTWALD, Peter. Civil procedure in Germany after the Reform Act 2001, 23 Civil Justice Quarterly
338, 345-350 (2004). In CHASE, Oscar e HERSHKOFF, Helen (eds.). Civil litigation in comparative
context. St. Paul: Thomson/West, 2007, p. 353.
18
MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, vol. IV,
2ª ed., 1963, pp.101-102.
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Hoje vivemos no Brasil circunstâncias francamente paradoxais em relação à
observância do princípio da publicidade e à transparência dos julgamentos dos tribunais
colegiados. De um lado, essa publicidade se expande extraordinariamente nos
julgamentos do Supremo Tribunal Federal, transmitidos ao vivo pela TV Justiça, e
também na publicação integral de acórdãos desse e de outros tribunais em sites oficiais
da internet. De outro lado, tribunais superiores têm adotado informalmente métodos de
julgamento que tornam absolutamente hermético ao público o conteúdo dos seus
julgamentos. Em alguns, voltamos ao sistema das tenções, em que o relator passa
previamente aos demais membros do colegiado o teor do seu voto, e a causa somente é
debatida publicamente se um destes pedir destaque, pois, se isso não ocorrer, o voto do
relator será considerado aprovado, sem que o público, que assiste à sessão, tome
conhecimento do que foi decidido.
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fases, e com a concessão ampla de efeito suspensivo à apelação. Esse era o preço que se
pagava pelo mérito da amplitude do reexame no segundo grau de jurisdição.
Outro caminho, trilhado na reforma italiana dos anos 90, é eliminar o efeito
suspensivo automático de qualquer recurso, deixando a sua concessão para uma
avaliação caso a caso da viabilidade do recurso pelo juízo a quo ou pelo juízo ad quem.
Essa solução pode ter efeitos benéficos, desestimulando os recursos protelatórios, desde
que a execução provisória da decisão seja exaustiva, ou seja, não fique sujeita a ônus
exagerados ou garantias que a inviabilizem para a grande maioria das pessoas. No
Direito brasileiro, essa solução encontra resistência da Fazenda Pública e, mesmo nos
recursos sem efeito suspensivo, a exaustão da execução provisória normalmente fica
sujeita a prestação de caução para a prática de atos de alienação da propriedade e para o
levantamento de dinheiro (CPC de 1973, art. 475-O, inc. III e § 2º, acrescentados pela
Lei 11.232/2005; CPC de 2015, arts. 520, inc. IV, e 521), o que dificulta a sua
continuidade e estimula recursos procrastinatórios.
Outros tipos de filtro têm sido instituídos, ora de caráter objetivo (a relevância
da matéria questionada), ora de caráter subjetivo (a probabilidade de êxito do
recorrente), este último consagrado na rejeição monocrática do recurso pelo relator
prevista no artigo 932, inciso IV, do Código de 2015. São mecanismos polêmicos que,
como já disse, acabam aceitos na dependência da credibilidade das decisões recorridas.
É difícil, sem pôr em risco o próprio direito de recorrer, evoluir de um sistema tão
tolerante como esse para um sistema de avaliação positiva da probabilidade de êxito,
sem sujeitar-se ao subjetivismo do juízo monocrático de 1º ou de 2º grau.
Por isso, apesar da adoção desses filtros em países com larga tradição
democrática, onde também têm sido objeto de críticas severas da doutrina 19, creio que o
desestímulo aos recursos protelatórios deve ser buscado através de reformas legislativas
que agravem automaticamente a situação daquele que procrastina, pelo simples decurso
19
GOTTWALD, Peter. Ob. e loc. cits.
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do tempo ou pela simples rejeição da pretensão recursal ou, ainda, que tornem inócua a
procrastinação, como a supressão do efeito suspensivo automático dos recursos
ordinários, a execução provisória exaustiva, independentemente de caução, a nova
sucumbência em grau de recurso e a adoção de juros progressivos para as condenações
pecuniárias, conforme já sustentei20. Dessas providências, as únicas parcialmente
acolhidas pelo Código de 2015 são: a nova sucumbência em grau de recurso, que o § 11
do artigo 85 prevê, respeitados os limites máximos previstos nos §§ 2º e 3º desse
mesmo artigo, mas que será inócua se a decisão recorrida já tiver fixado os honorários
da sucumbência no limite máximo; a multa pela interposição de agravo interno
manifestamente inadmissível ou improcedente (art. 1.021, § 4º), tal como nos embargos
declaratórios manifestamente protelatórios (art. 1.026, § 3º), de aplicação esporádica
pelo subjetivismo na avaliação dessas situações e pela tradicional tolerância com as
práticas desleais das partes do juiz brasileiro. O Código de 2015 atendeu timidamente a
algumas dessas sugestões, eliminando o efeito suspensivo automático dos embargos
declaratórios (art. 1.026), mas não o da apelação (art. 1.012), facultando a imposição de
nova sucumbência em grau de recurso, desde que não exceda a 20% (art. 85, § 11),
reduzindo a admissibilidade do duplo grau de jurisdição obrigatório (art. 496),
eliminando o agravo retido e reduzindo a admissibilidade do agravo de instrumento (art.
1.015). É muito tênue o esforço no sentido de reduzir o automatismo recursal e a
interposição de recursos com intuito meramente procrastinatório.
A própria ação rescisória estaria mais bem situada no sistema recursal, como em
outros ordenamentos, subordinada assim aos seus princípios gerais, como o da
temporariedade e o da singularidade.
20
GRECO, Leonardo. “A falência do sistema de recursos”. In Revista Dialética de Direito Processual,
n° 1. São Paulo: Dialética, abril de 2003, pp. 93/108.
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sentido de que, à falta de um recurso legalmente previsto, o descontente com frequência
vai encontrar algum outro meio de provocar o reexame da decisão que o prejudica.
Outros resultados positivos poderão ser alcançados com uma reforma processual
que reduza a fragmentação do procedimento ordinário numa sucessão interminável de
decisões interlocutórias e numa reforma institucional do Poder Judiciário que estabeleça
uma relação mais democrática entre os juízes inferiores e os respectivos órgãos de
progressão funcional e de controle disciplinar. Por outro lado, grande serviço prestariam
à Nação os tribunais superiores da União, especialmente o Supremo Tribunal Federal, se
em lugar de agravar essa Babel com a sugestão de utilização de sucedâneos recursais
para enfrentar problemas que, em minha modesta opinião, poderiam ser solucionados
dentro das regras do nosso ordenamento processual, definissem com clareza o relevo e o
alcance da coisa julgada e da segurança jurídica, tão abalados por decisões que os seus
prolatores muitas vezes acreditam heróicas, mas que, infelizmente, ao pretenderem
remediar um suposto defeito do ordenamento jurídico, criam outro tão grave ou ainda
mais grave do que o anterior, transformando o juiz em soberano e ilimitado intérprete
das aspirações da comunidade, o que mereceu a censura irrespondível de Calmon de
Passos, nestes termos:
“Se o direito posto for aplicado a cavaleiro de controles que
assegurem coerência e pertinência entre o formalizado como expectativa
compartilhável pelos governados (o legislado) e o produzido como norma
disciplinadora do caso concreto, em verdade se desqualifica o Direito
previamente posto e só o Direito produzido no caso concreto prevalecerá
em termos absolutos. E isso repugna visceralmente a um sistema
democrático de governo. Estaríamos, em última análise, transferindo a
soberania do povo para um segmento privilegiado do sistema político,
justamente aquele menos vinculado ao princípio representativo,
fundamental num Estado de Direito Democrático: os magistrados”21.
21
PASSOS, J.J. Calmon de, As razões da crise de nosso sistema recursal. In Adroaldo Furtado Fabrício
(coord.). Meios de impugnação ao julgado civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 370. Pesquisa
recentemente divulgada, realizada na Itália pelo Centro Studi e Ricerche sull’Ordinamento Giudiziario
(CeSROG) da Universidade de Bologna, na qual foram ouvidos magistrados italianos, revelou que 66%
dos entrevistados respondeu negativamente à seguinte pergunta: Na atividade judiciária, o magistrado
judicante deveria procurar fazer-se porta-voz das expectativas da comunidade. Se o juiz se inspirasse
nesse princípio, a qualidade da nossa administração da justiça poderia melhorar? (SAPIGNOLI, Michele.
Qualità della giustizia e indipendenza della magistratura nell’opinione dei magistrati italiani.
Padova: CEDAM, 2009, p.81).
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Com todas as críticas que possa merecer o direito italiano e a doutrina que o
inspira, nos quais em grande parte se inspiram o nosso direito processual e o nosso
sistema de recursos, como causadores do caos em que se transformou a administração
da justiça daquele país, todas as vozes que têm se levantado no sentido de instituir
filtros de acesso à instância de superposição da Corte de Cassação têm fracassado
graças à consciência solidificada dos graves danos que a seleção dos recursos para esse
tribunal, restrito à relevância, transcendência ou repercussão geral a questão suscitada,
após o esgotamento das duas instâncias ordinárias, terá para o tratamento igualitário de
todos os cidadãos. Essa exigência é ainda mais evidente em país como o Brasil, com
tantas desigualdades econômicas, sociais e regionais, inclusive no que tange à
independência, à composição, à eficiência e à qualidade de exercício dos diversos
órgãos jurisdicionais.
Ainda não temos filtros discricionários ao acesso ao STJ, embora este tribunal os
reivindique, mas temos o mecanismo considerado inevitável mas perverso dos recursos
especiais repetitivos, que igualam os desiguais, que afastam o STJ das particularidades
do caso concreto, que sempre constituiu a característica mais marcante e democrática da
administração da justiça, especialmente quando exercida por juízes profissionais e que
fecham as portas de acesso do tribunal aos litigantes atuais ou futuros que não puderam
ver examinadas as suas razões no julgamento dos casos-piloto.
Mas, o que é pior, temos uma Corte Constitucional que, apesar de a tutela
jurisdicional efetiva constituir um direito humano fundamental, reconhecido
constitucional e internacionalmente, tem a prerrogativa de restringir o exame das
violações da Constituição que considera mais relevantes ou que tenham repercussão
geral. Essa insuficiência poderia ser amplamente suprida, se ao STJ, em grau de recurso
especial, como na revista para o TST, pudessem ser suscitadas matérias constitucionais
e infra-constitucionais.
CONCLUSÃO
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Em síntese, é preciso diminuir o número de recursos, sem reduzir o acesso à
Justiça em igualdade de condições por parte dos cidadãos. É indispensável assegurar nas
instâncias recursais o mais amplo respeito às garantias fundamentais de um processo
justo e tornar desvantajosa a interposição de recursos protelatórios.
É preciso que a Justiça recupere a consciência de que recursos não são apenas
folhas de papel ou arquivos de computador, mas podem significar o acesso a direitos
que garantam a própria sobrevivência, a felicidade ou o bem-estar dos cidadãos. A
pendência interminável de recursos e a demora no seu julgamento podem obrigar a parte
que tem razão a fazer acordos injustos ou a abrir mão do seu direito porque a Justiça não
lhe garante o acesso rápido ao pleno gozo desse direito. Nos tão festejados mutirões de
conciliação, grande parte dos acordos são o reflexo da ineficiência da Justiça e a
consagração de que, à falta dela, o mais fraco tem de se curvar às imposições do mais
forte.
Mudar a lei processual é a solução mais simples, mas não suficiente, porque a
causa da litigiosidade só em pequena parte pode ser atribuída à legislação. Na maioria
dos casos, a ineficiência da administração da Justiça ou está ligada a causas externas ao
Poder Judiciário ou às deficiências estruturais daquele Poder, as quais não podem ser
resolvidas pela simples edição de uma lei processual. As causas não estão sendo
atacadas, porque, para isso, seria necessária uma mudança de postura do Estado na
assunção efetiva das responsabilidades que a Constituição lhe impõe de assegurar a
mais ampla tutela aos direitos de todos e de promover a paz social, não só na
administração da Justiça, mas especialmente na administração dos Poderes Executivos
dos três níveis, federal, estadual e municipal, melhorar a formação, a capacitação e o
controle do desempenho dos funcionários públicos, de juízes, advogados e de todos os
outros profissionais que atuam na administração da Justiça, desenvolver uma política
pública arrojada na prevenção e no equacionamento da litigiosidade junto às entidades e
grupos nas quais ela ocorre, estimulando a oferta de mecanismos alternativos de solução
mais adequados, mais rápidos e mais baratos do que a via judicial.
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