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CIENCIA POLlTICA

DEBATES SOBRE O HEGELIANISMO


DE KARL MARX
DJ ACIR MENEZES
(Da Universidade do Brasil)

A recente tradução do ensaio do Sr. Erich Fromm, inti-


tulado ConOOito Marxista do H omemJ fundamenta-se nos Ma-
nuscrito8 econÔ'mico-fiZos6fico8 de 1844 J de Karl Marx, cujos
excertos, com mais alguns artigos famosos na literatura so-
cialista, compõem o volume lançado pela Zahar-Editôres. Sem
dúvida que é, no meio brasileiro, oportunidade para o debate
já iniciado, há longos anos, nos centros cultos da Europa. E
como os temas se ramificam por matérias que venho estu-
dando desde tempos acadêmicos, decidi trazer pequena contri-
buição ao esclarecimento de idéias que não podem ser mais,
singela e inocentemente, subtraídas à crescente curiosidade
universitária. Nem também apresentadas em deformações tais
que, de antemão, são repelidas em nome do bom-senso.
O ensaio do Sr. Fromm examina os escritos do espólio de
Karl Marx, que se achavam sob custódia do Instituto Inter-
nacional de História Social, de Amsterdam. Informação anexa
à página 89 da edição brasileira, avisa terem sido publicados
pela primeira vez em 1932, na versão caprichosa de Riazanov,
pelo Instituto Marx-Engels, de Moscou, na célebre edição -
Karl Marx-Friedrich Engels Historisch-kritisch Gesammtaus-
gabeJ voI. III, em Berlim, designada habitualmente pela sigla
«Mega». Êste engano tem sido repetido, inclusive por Siegfried
Landschut e Mayer (na edição Molitor) e pelo primeiro, sozi-
nho (na edição alemã de Alfred Kroener, de 1953). A primeira
vez, entretanto, que os Manuscritos de 1844 vieram à luz, como
apurou V. Brouchlinski, foi em 1927, no terceiro volume dos
Arquivos de Karl Marx e Frederico EngelsJ em Moscou e em
língua russa, sob o título de Trabalhos preliminares para a
Santa Famíliaj sendo inseridos depois, em 1929, com a mesma
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denominação incorreta, nas Obras Completas dos fundadores
do socialismo dito científico (1).
,De qualquer maneira, só após a década de 40 puderam
os e'studiosos, tanto socialistas como adversários, dedicar mais
atenção ao exame das teses contidas naqueles opúsculos. Na
verdade, distinguem-se três posições ideológicas principais
entre os litigantes. A primeira, com a bandeira da ortodoxia
leninista, nega ou desmerece o influxo hegeliano que anima
aquelas páginas, acentuando direções que se hipertrofiaram
na doutrina bolchevista e na efetivação da ditadura do Partido
comunista. A segunda, acusada de revisionismo, de social-
democratismo, de menshevismo, etc., comportando várias mo-
dalidades, busca revelar o vigor humanista dos escritos do
«jovem Marx», valorizando o sentido de liberdade e a ação do
voluntarismo na construção da ordem pública. Aspiram à rea-
lização do socialismo sem a máquina coercitiva da ditadura
totalitária. A terceira posição é a dos adversários que capita-
neiam a reação defensiva do capitalismo: - vai desde o exe-
geta capcioso, que pretende aniquilar a fôrça científica e
filosófica da concepção, dessorando-a no subjetivismo privado
e reduzindo o processo histórico a quizilias morais, até o ba-
talhador desemcapuzado, que não se peja da solução policial
e da interdição dos livros. Êste energúmeno só enxerga inimi-
gos dos valôres sociais e éticos movidos por ódios inextinguí-
veis. Faz parte de uma falange extrema que está fora do
campo das controvérsias de idéias, e, se o permitirem as cir-
cunstâncias sociais, logo se organizarão em uma Klu-klux-klã
implacável.
A posição do Sr. Fromm é compreensiva, com disposição
de esclarecer - e convida os leitores a entrar na liça com a
honesta vontade de compreender. Decerto, há afirmaçõs exi-
gindo melhor exame das premissas em que se escoram. Assim,
por exemplo, declara no seu prefácio: «Estou convencido de
que, somente se pudermos compreender o verdadeiro sentido
do pensamento de Marx e por isso diferenciá-lo do pensamen-
to russo ou chinês, ficaremos habilitados a compreender as rea-

(1) Alegando que os Manuscritos de 1844 interessavam apenas


o especialista, o Instituto de Marxismo-Leninismo, de Moscou, não OI!
incluiu na edição das Marx-Engels Werke, em via de publicação, já
pelas alturas do 140 volume. Deveriam ter entrado no 19 , que com-
preende tôdas as publicações e inéditos, artigos, cartas, bilhetes, ras-
cunhos, etc. de 1839 a 1844. Avisa Dietz-Verlag, de Berlim, que sairá
em volume especial. Será necessário, como na igreja, licença do guia
espiritual para ter acesso aos opúsculos? Prova de maturidade ideo-
lógica a fim de não se transviar na sedução idealista, como aconte-
ceu recentemente a Henri Lefebvre?

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lidades do mundo atual e de abordar o desafio destas de manei-
ra realista e construtiva.» Linhas antes, o autor já impugnara
o sistema soviético como forma totalitária que se não poderia
identificar com o marxismo. No seu parecer, a dissidência «nos
próximos cem anos» não será entre «capitalismo» e «socialis-
mo», - mas entre «socialismo totalitário» e «socialismo huma-
nista marxista». E que foi feito do capitalismo? Sumiu? O Sr.
Fromm não tem a bondade de nos avisar de como êle desapa-
recerá. E não hesita em reconhecer que o «socialismo marxis-
ta é um rebento da tradicão humanista ocidental». Ocidental
e cristã? ~
Feitas estas afirmações, o espírito do leitor mergulha na
confusão. Desconfio que a tática do Sr. Fromm consistiu em
seguir caminho inverso ao dos marxistas ortodoxos, resvalando
no exagêro oposto, Enquanto êles encurtam cada vez mais o
valor filosófico dos Manuscmtos de 1844, por causa do hege-
lianismo que encerram, o autor do ensaio sustenta serem aquê-
les opúsculos «a obra filosófica mais importante de Marx:..
Despreza, simplistamente, outras componentes essenciais do
sistema. Nessa altura, sou obrigado a reclamar do Sr. Fromm
melhor conhecimento da literatura marxista, principalmente
de escritores de público internacional, que mantiveram, nas
polêmicas do comêço do século, límpido espírito de indepen-
dência. Citarei apenas um dos maiores estudiosos das fontes
clássicas do socialismo, o prof. Rodolfo Mondolfo, que anali-
sou, em duas obras célebres - para apontar sOmente duas -
as teses agora referidas e mal formuladas pelo ilustre psica-
nalista. Sull'Orme. di Marx teve a primeira edição pelos idos
de 1919, e a segunda, em dois volumes, em 1923; e n Materia,-
lismo histórico de Federico Engels, cuja primeira edição re-
monta a 1912. Publicadas quando ainda se desconheciam os
escritos póstumos, essas obras afirmavam o alto e robusto teor
humanístico do marxismo, mediante o alento feuerbachiano.
Em Sull'Orme di Marx, Mondolfo, ainda nos recentes anos do
advento bolchevista, expunha a dificuldade invencível de insti-
tuir o socialismo, em tôda plenitude humanista, na Rússia, em
virtude da imaturidade do proletariado incipiente. E previa, em
seu lugar, a organização de um paternalismo estatal que leva-
ria a um capitalismo de Estado (2). Entretanto, Mondolfo,
dotado de superior sagacidade crítica, não afirmou que a forma
leninista, corroendo os ingredientes humanísticos em favor da
ditadura, perdesse todo arrimo no marxismo. Evidentemente,

(2) R. Mondolfo, EZ MateriaUsmo histórico de Fr. Engels, Ra.igal,


Buenos Aires, 1956.

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nêle se inspira o regime. Apenas, deformando, aproveitou o
que lhe beneficiava a estrutura totalitária.
A dicotomia mecanicista, que o Sr. Fromm estabelece, é
inteiramente errônea. Mostra não ter êle aprofundado seus
estudos na matéria, limitando-se exclusivamente à leitura per-
functória do Manuscrito de 1844~ que utilizou para a determi-
nação do conceito de homem e do humanismo, segundo Marx.
Não escondo minha predileção por tais opúsculos, pois nêles
está pulsando um hegelianismo de alta voltagem, conforme já o
afirmei noutra ocasião. Observo agora que tais pontos de vista
não devem ser extremados além de certos limites - porque,
neste caso, em conseqüência de movimento puramente dialé-
tico, a tese sustentada vira sua própria antítese: - e Marx
se desmarxiza, ficando à vista apenas remendos hegelianos,
que se desgrudam. Em suma, do que acabo de articular s€j
conclui que «as alternativas dos próximos cem anos», como!
diz o Sr. Fromm, serão entre os dois sistemas econômicos
«capitalista» e «socialista». Creio, todavia, que será um socia-
lismo de formas amplas, arejado de humanismo, hostil ao rôlo
compressor das ditaduras, que representam um pátrio poder
estupidamente liberticida.
«É triste dizer - anota o Sr. Fromm no capítulo I - «mas
não pode ser evitado, que eSsa ignorância e deturpação de
Marx são mais comuns nos Estados Unidos do que em qual-
quer outro país ocidental» (pág. 13). Destarte, assiste-se ao
renascimento dos estudos socialistas na França, na Inglaterra,
na Itália, na Alemanha, com análise de textos esquecidos ou
escassamente divulgados; academias de teólogos, arregaçando
o burel tomista, começam a deletrear outros evangelhos; novas
interpretações aparecem para compreender novas ideologias,
interessando todos os círculos intelectuais. E que acontece nos
Estados Unidos? Ali, os professôres universitários, com rarís-
simas e altaneiras exceções, ignorando tais fontes, fazem a
crítica do socialismo na base de sovadas mistificações. O apa-
recimento de livros de Sweezy, de Vernon Venable, de Marcuse,
CaldwelI, de Wright MilIs, de Hubermann, é uma façanha: e o
boicote os cerca. O acesso à cátedra ou ao jornalismo fica-lhes
obstruído. Os órgãos de ensino superior, sob contrôle da finan-
ça das oorporations, não simpatizam com análises científicas
que exibam o conúbio dos trustes e universidades. Reinam a
docilidade e mêdo dos escritores ante determinados tabus.
Calverton falou numa «cultural compulsivy". O atrevimento
deixará o atrevido sem convite para ensinar o próximo ano,
valendo-lhe a pecha de disseminador de doutrinas prejudiciais
à saúde democrática de um povo admirável. Não é invencionice
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de inimigos a «caçada das bruxas», ameaça efetiva aos meios
de subsistência do intelectual dependente. (3)
Deixemos, porém, de lado êsse aspecto do problema. O
ensaio toca em numerosos outros pontos de importância. Ou-
çamos: «Marx achava-se tão afastado do materialismo burguês
quanto do idealismo hegeliano - daí poder dizer-se, acertada-
mente, não ser a sua filosofia nem idealismo nem materialismo,
porém uma síntese: humanismo e naturalismo.» Há, para essa
«síntese», um apelido mais corrente: materialismo dialético.
Aliás, se me não falha a memória, não encontrei em nenhuma
página do ensaio, certa compreensão da dialética, embora se
aluda à herança hegeliana e ao hegelianismo, que é a medula
dos Ma:nuscritos de 1844. Mas, ainda aqui se manifesta a ca-
rência de preparo especializado do Sr. Fromm. Não sabe êle
que, entre os italianos, a «filosofia da praxis» bateu-se por
aquela «síntese» com muito mais profundidade e segurança
doutrinárias. Expus o assunto em livro especial (4) e agora
apenas indico o exame feito por Mondolfo, com quatro decênios
de antecedência, provando cabalmente o voluntarismo huma-
nista do marxismo, que chama de «concepção crítico-prática».
Veria então o Sr. Fromm que sua «síntese» seria fruto do
movimento dialético, entendida a dialética como condição da
inteligibilidade do real. Aliás, o que anuncia o Sr. Fromm é
velho e está em Feuerbach nestes têrmos: «A verdade não
está no idealismo nem no materialismo; a verdade está na an-
tropologia, no ponto de vista das sensações, das intuições,
pois só êste ponto de vista me dá a totalidade e a individuali-
dade.» Essa totalidade, porém, não reside na unidade biológica,
mas no ser humano: - e êsse humano implica o processo
histórico da antropogênese, logo, evolução no seio da cultura
como ambiência vital do «espírito». As seguintes palavras de
Mondolfo superam a magra «síntese» do Sr. Fromm:
«É evidente que a oposição ao idealismo especulativo nasce,
em Marx e Engels, da filosofia da praxis, da teleolOgla volun-
tarista, que faz êles voltarem a vista da razão absoluta aos
homens concretos, que atuam na história e, do presente, es-
forçam-se pelo porvir. Mas, dada a equivalência, que Marx e
Engels supõem aqui, entre materialismo e humanismo realista,

(3) Hubert Park Beck, Men who control our Universities, King's
Crown Press, New York, 1947. - Carey McWilliarns, Witch Hunt, the
revivals of Heresy, Little, Brown an 0, 1950. - L. L. Mathias, Autopsie
MS :2tats Unis, Editions du Seuil, Paris, 1953. - Carl Marzani y Victor
Perlo, Dolares 'Y Desarme, Editorial Platina, Buenos Aires, 1961.
( 4) Djacir Menezes, H egeZ e a Fiwsojia Soviética, Zahar Editô-
res, Rio, 1959, premiado pela Academia Brasileira de Letras.

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a concepção crítico-prática da história que resulta de associar
a dialética, não ao idealismo absoluto, mas ao humanismo rea-
lista - pode, decerto, ser qualificada de materialismo histórico)
segundo a denominação que lhe dará mais tarde Engels.» (5)
Até que ponto se poderá aceitar a denominação? Debati algu-
rei! a pergunta, analisando a conceituação de «materialismo»
e irritei suficientemente um ortodoxo. (6) A não ser por má-fé,
nenhum estudioso atualmente considera o materialismo como
doutrina que defende a satisfação animal dos instintos - e
não será preciso gastar papel com tais explicações. «De fato
- escreve o Sr. Fromm - a interpretação marxista da His-
tória poderia ser chamada uma interpretação antropológica da
História caso se quisesse evitar a ambigüidade do têrmo «ma-
terialista» e «econômico»; ela é a compreensão da História
baseada no fato de os homens serem os autores e atôres de
sua história.» Crítica já feita, com maior alcance, por Labriola,
Sombart, Croce, Gentile, Mondolfo, e mesmo o ortodoxo An-
tônio Gramcsi.
Mas não há ambigüidade, como pensa o Sr. Fromm. O
que há é distensão do sentido do conceito «matéria» a fim de
abranger tôdas as relações exteriores à consciência: a marca
de objetividade, conforme Lenin, é a determinação essencial
da matéria. Ser objetivamente independente da consciência.
Estribando-se nisso, Erhard Albrecht não trepida em susten-
tar, fechando a questão, que «a sociedade humana e a praxis
inserir-se-ão no conceito de matéria segundo Marx, Engels e
Lenin. Primeiro, porque seria possível superar as deficiências
do conceito pré-marxista de matéria e compreender dialetica-
mente e materialisticamente todos os domínios da matéria, isto
é, abranger os múltiplos fenômenos do mundo em sua mate-
rialidade». (7)
A afirmação de Albrecht corrobora o que defendi há al-
guns anos: o marxismo forjou conceito próprio de «matéria»,
o qual não coincide inteiramente com o da tradição filo~.ófica,
inspirado na física clássica. Em troca, retirou, quase intacto,
do repertório hegeliano, o conceito de «alienação», - que hoje
se planta no centro das preocupações teóricas. Com êle se
quer resolver tôdas as incertezas. Lê-se no ensaio do Sr.
Fromm:
(5) R. Mondolfo, E·l Materiali.s-nuJ Historico en F. Engels, pág. 138.
(6) Djacir Menezes, A Querela Anti-Hegel, fasciculo editado em
resposta ao artigo do Sr. Jacob Gorender, in "Estudos Sociais", n 9 8,
do ano de 1960, Rio.
(7) Erhard Albrecht, Beitrãge zur Erkenntnistheorie und das
Verhaltnis von Sprache UM Denken, Veb Max Niemayer Verlag, HaIle,
1959, pág. 439.

Rev. d. Dit. PúbI. e Ciência Política - Rio de Jaoeiro - VoI. V, o' 2 - maio/agôsto 1962
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«A alienação ou «alheamento» significa, para Marx, que
o homem não se vivencia como agente ativo de seu contrôle
sôbre o mundo, mas o mundo (a Natureza, os outros, êle
mesmo) permanecem alheios ou estranhos a êle. .. Alienar-se
é, em última análise, vivenciar o mundo e a si mesmo passiva-
mente, rzceptivamente, como sujeito separado do objeto.»
(pág. 51)
A origem do conceito de alienação está em Hegel, nas
vozes Entfremdung e Entiiusserung. ~ste último têrmo, Jean
Hyppolite traduziu-o como e'xtraneação; outros optaram por
exteriorização. De minha parte, preferiria extrajeção e deriva-
dos. Quanto ao vivenciar, que grifei acima, não sei a que verbo
corresponde no inglês do Sr. Fromm, pois não disponho do
original neste instante. Acontece que o Sr. Fromm pesquisa
muito longe as raízes da «alienação»: vai à cata de seus ves-
tígios no Velho Testamento; como não tenho fôlego tão com-
prido, fico na fonte hegeliana, que é de onde levanta vôo a
especulação moderna. Da Phaenomenologie des Geistes saíram
Feuerbach, Arnoldo Ruge, Bruno Bauer, Moses Hess, Max
Stirner, os quais invocaram a «alienação» ex abundantia cordis,
na batalha que a esquerda hegeliana travava contra a teologia,
aí pelos meados do século passado, na Alemanha. Foi o instru-
mento crítico mais prestadio. A repercussão da obra de Hegel,
que culminava e encerrava o período de Jena, ensinava, com
tôda clareza, o valor da N egatividade como princípio genésico,
explicando o processo de autoprodução do Homem - Prozess
des menschlichen Selbstwerd,ens - mediante o trabalho. Reco-
nheceu-se no imenso livro a Revolução posta na mais alta
versão especulativa. Os resultados do trabalho humano ali
aparecem historicamente configurados como produtos objeti-
ficados ou alienados, estranhos à própria consciência. Estra-
°
nhos ao homem, constituem universo da cultura. Para Hegel
- anotou Hyppolite - «cultura» e «alienação» têm grande afi-
nidade significativa, porque, pelo processo cultural, o indivíduo
opõe-se a si mesmo. E tal oposição se realiza graças à lingua-
gem, veículo primário dessa extrojeção ou objetificação. Tôda
organização social e política passa a refletir processo de alie- °
nação, inclusive a volonté générale, de Rousseau. Todos os
valôres criados são pro- jetados e ob-jetados, formando-se ideo-
logias, que dificultam, por distorsão, a compressão das estru-
turas da vida comunitária. Em conclusão, devido a sua dialê-
tica imanente, todo êsse "mundo espiritual", que emergiu da
experiência dos indivíduos no seio do devenir histórico, torna-
se estranho, torna-se outro. Mas outro, que é adverso. Essa al-
teridade é maligna, para a «consciência vi!», que sente a rup-
tura e oposição, enquanto a «consciência nobre» exprime a ade-
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quação às instituições e à vida social. Tal dilaceração da cons-


ciência (zerrissene Bewusstsein) cinde-a em «nobre» e «vil»,
em conservadora e revolucionária, em ingênua e crítica, condu-
zindo Marx ao princípio de seu sistema, a luta de classes, em
que assentará a sua cosmovisão histórica. Hegel, em nível es-
peculativo e com mais riqueza intuitiva, enxerga o drama atra-
vés da «consciência infeliz», que se dividiu naquela contradi-
ção dolorosa. As páginas sôbre a dialética do Senhor e do Es-
cravo denunciam a profundidade trágica do conflito. A subs-
tância histórica de seu pensamento alimenta abstrações dialeti-
camente concretas, pingando vitalidade social e política.
Todavia, sem a raiz na «alienação», as explicações hege-
lianas perderiam a potente e íntima coerência dialética. Ê o
próprio Marx que nos diz que Hegel «compreende o trabalho
como ato de autoprodução do Homem». A conseqüência histó-
rica dêsse processo de alienação leva a considerar o homem
como «natureza humanizada». Mas adverte que o trabalho, de
que fala Hegel, é o trabalho espiritual e abstrato do Pensa-
mento, essência de sua Filosofia. Graças, porém, a sua intuição
dialética e histórica do processo, afirma-se sempre vinculado
ao crescimento universal da humanidade, através das formas
da «consciência-de-sÍ», da «consciência-para-sÍ» e da «consciên-
cia-em-si-e-para-sÍ», isto é, a transição 'das formas espontâneas
ou ingênuas, às formas reflexivas e racionais.
«Para Marx - escreve o Sr. Fromm - tal como para
Hegel, o conceito de alienação baseia-se na distinção entre
existência e essência, no fato de a existência do homem ficar
alheada de sua essência, de na realidade êle não ser o que é
potencialmente, ou, por outras palavras, de êle não ser Q que
deveria ser e ,de ête dever ser aquilo que poderia ser (grifo
do autor) .» (pág. 54)
De fato, hegelianamente falando, a inadequação entre a
existência do homem e sua essência humana se exprime através
do processo de alienação que se origina em dissimetrias sociais
concretas. Entretanto, Marx vai reduzir tudo a dissimetrias
econômicas, afirmando que a alienação do trabalho é produto
do agravamento da propriedade privada, que impôs a largos
setores sociais a condição de vender a fôrça de trabalho. Então,
o mundo humano, onde a atividade laboriosa poderia ser pro-
cesso de humanização das coisas, se torna o mundo desumano,
onde o trabalho é corvéia odiosa. A mecanização, que devia
aumentar a harmonia social, determina a limitação da cons-
ciência refletindo compartimentos estanques da vida, reparte
os sêres em camadas hostis, impede a compreensão humanís-
tica dos problemas mercê da cortina de ideologias mistifica-
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daras, de que o totalitarismo, em várias formas, dá exemplos
deploráveis. A essência do homem é cada vez mais estranha
a sua existência. E a interpretação humana dêsse mundo de-
sumano, rasgado de contradições, assume feição subversiva,
- quando deveria ter feição coesiva.
Algumas incompreensões decorrem da dificuldade de tradu-
zir a terminologia hegeliana, que Marx transpôs para seus
Manuscritos de 1844. Não nego o notório esfôrço do Sr. Os-
valdo Alves Velho para vingar os escolhos e louvo a tentativa
pioneira. Mas tenho algumas notas a submeter à apreciação
dos entendidos.
A primeira objeção seria a de receber o pensamento hege-
liano de Marx por intermédio do inglês de Mr. Bottomore, da
Escola de Economia e Ciência Política de Londres. Encontro,
a páginas tantas, em rodapé, o registro de que sugeri o neo-
logismo «coisidade» para traduzir «Dingheit». Embora um
tanto rebarbativo, continuo com êle, à falta de melhor vocábulo.
Os inglêses compuseram «thinghood», mas os franceses deram-
me o exemplo de choseité nesta versão da seguinte frase de
Hegel: «Die materie ... ist daher die 'daseiende Dingheit, das
Bestehen des Dings» (8) - «a matéria ... é, por conseqüência,
a coisidade ali-existente, a consistência da coisa».
Prossigo. No texto dos Manuscritos de 1844 (e me utilizo
da edição Kroener, preparada por Siegfried Landschut) lê-se:
« ... die Entiius8e11ung eLes Selbstbewusstsein es ist~ welche dtie
Dingheit setzt». Nas pegadas de Mr. Bottomore, o tradutor põe
em nosso idioma: « ... a alienação da autoconsciência que esta-

(8) Hegel, Enzykwpãdie der phiwsoph~hen Wissenschaften im


Grundrisse, nova edição de Friedhelrn Nicolin e Otto Poeggeler, Felix
Meiner, Hamburgo, 1959, § 127. - "Choseité" é tradução de J. Gibelin,
Préci8 M Z'E1ICyc1opedie MS Science8 Phiwsophiques, Librairie Philoso-
phique J. Vrin, 1952. - "Thinghood" é o vocábulo adotado por William
Wallace, The Logic of Hegel, Oxford University PreS'S, cuja primeira
edição é de 1931. Croce sugeriu "cosalità" ou "coseità". Depois dêle,
ainda em 11917, o Sr. Eduardo Ovijero y Maury lembrava também "co-
saidad" ou "cosalidad" - "o principio existente da coisa, aquilo em
que consiste a coisa", Enciclopédia de las Ciencia8 Filosóficas, l, Lo-
gica, Madrid, 1917. A tradução proposta pelo Sr. Osvaldo Alves Velho
corresponderia a Dingchalrakter. E como seriam Dinghaftigkeit e o
adjetivo dmgooft'! Na filosofia hegeliana o problema é mais difícil.
Porque, no sentido de coisa material, independente do espirito, objeto
da atividade perceptiva, temos Dtng; mas como objeto elaborado na
atividade cognoscente, aproximando-se do pragma grego encontramos
Saehe. E as duas palavras são traduzidas por uma única - coisa. Como
distingui-las em português? Como se vê, minha sugestão acompanha
o ensino de alguns mestres. Apenas êles não escreviam "na maviosa
flor do Lácio", pouco trabalhada filosôfícamente.

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belece o característico da «coisa». Melhor foi a versão de
Molitor, quando oferece: «... la exteriorisation de la cons-
cience-de-soi qui pose la materialité». Porque não é o carac-
terístico nem a situação da coisa, como se propõe. O sentido
filosófico escapa da expressão vernácula.
Também seria recomendável verificar melhor, por sua
posição no contexto, as sucessivas traduções do verbo
aufheben, e vozes derivadas. Na versão, emprega-se abolir,
substituir e revogar. Em várias passagens, entretanto, ex-
pressaria mais fielmente o pensamento hegeliano-marxista o
verbo superar, como adotam muitas versões francesas e ita-
lianas. Eis um pequeno período defeituosamente traduzido:
«O ato de revogação (Aufhebung) desempenha parte estra-
nha, onde repúdio e preservação, repúdio e afirmação se
acham entrelaçados.» (págs. 171-2) Na verdade, o que Marx
escreveu foi: «um papel próprio desempenha, portanto, a su-
peração, onde o repúdio e a conservação, a afirmação são
entrelaçadas». (9) Ademais, exercer «papel próprio» não é
desempenhar «parte estranha» como lá se menciona.
Outro descuido por andar muito no compasso de Mr.
Bottomore, sem cotejar sua linguagem com o original alemão.
Marx escreveu: «Primeiro, a consciência, a consciência-de-si
é no seu ser-outro como tal sendo ela mesma», isto é, seu
modo de ser outro é o de ser ela mesma - in se'inem
Andersein ais solchem bei sich. Que nos dá a tradução? Esta
charada: «Primeiro, a consciência - a autoconsciência -
está em casa em seu outro ser como tal (o grifo é dêle) .:.
E onde porventura se repete a frase seinem A wdersein ale-
80lchcm bei 8ich, lá vem o mesmo estar em casa, etc. Mais
adiante, quando Marx diz que «a razão é nela própria não-
-razão como não-razão», a tradução oferece essa coisa des-
tituída de senso: «a razão está em casa no absurdo como
tal». Absurdo? Mas se trata de contradição dialética, a iden-
tidade da identidade e da não-identidade, que só é «absurdo»
para a lógica formal.
Como se verteu a expressão auf sich selbst bezogen
Negation? Assim: «Negação auto-referíveb (pág. 174) . Prefe-
riria, com mais simplicidade, «negação relacionada a si pró-
pría». Para que encrespar mais uma linguagem já crespa de
dificuldades? Todavia, esta singela afirmação «Der Mensch
ist selbstisch» saiu em português, no mesmo diapasão ante-

(9) "Eine eigentümliche Rolle spielt daher das A ufheben, worin


die Verneinung und die Aufbewãhrung, die Bejahung verknüpft sind".
Karl Marx, Die FTÜhschriften, Kroener. Stuttgart, 1953, pág. 278.

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rior, «o homem é auto-referível» (pág. 165), o que atrapalha a


reflexão filosófica com novas conotações. O que se desejava
asseverar era o homem como centrado no Eu, com tôdas as
fôrças próprias. Seria mais simples e fiel escrever: «O
homem é egocêntrico.»
Setzen des Menschen é trasladado - «o homem que pos-
tula». E por postulado, em duas passagens, se traduziu im-
propriamente Position (159, 160).
N a sinopse da crítica marxista à Phaenomenologie se
contêm algumas incorreções fàcilmente sanáveis. Reza o pa-
rágrafo: «Certeza da experiência sensorial ou o «isto» e o
significado.» Ora, o têrmo «significado» pretende exprimir
«das Meinen», que seria «o crer». A nuance semântica é bem
perceptível aos estudiosos do problema. O outro passo já é
cincada mais grossa: beobachtende Vernunft jamais se po-
deria trasladar em «razão perceptível» (pág. 160), que signifi-
caria razão que pede ser percebida ou observada. O que diz
a frase alemã é «razão observadora» ou «observante». Nem
mesmo «razão percipiente» captaria plenamente o sentido.
Ainda na mesma sinopse, depara-se «auto-realização» quando
se trata de «realização», pois que lá está V erwirklichung e
não Selbstverwirklichung. Outrossim, não se deve trc.l.duzir
Folge (pág. 115) por «choque», mas «conseqüência».
Sei que, muitas vêzes, a beleza literária exige o jôgo da
sinonímia. Mas nesse gênero de trabalho, o aprimoramento
estético é função do rigor terminológico. Assim, quando
Marx escreve philosophischen Geistes não se pode traduzir
(pág. 161), por «inteligência filosófica», mas «espírito filosó-
fico». E linhas atrás, deve-se ler «espírito sobrehumano abs-
trat» , pelas mesmas razões. Quanto a Gendankenform ver-
tido em «forma de noções» é bem inadequado. Quem conhece
o léxico hegeliano discrimina, semânticamente, entre «con-
ceito», «noção» e «formas de pensamento» (houve quem su-
gerisse «configurações»).
Pelo que se vê, ao tradutor cumpria cotejar paciente-
mente a tradução de Mr. Bottomore, em que pese os seus
títulos de scholar, com o texto original de Marx. Teria en-
sejo de descobrir também lacunas, como a da pág. 161, onde
se omitiu (pág. 161) excelente reflexão sôbre Feuerbach (lO),
necessária ao entendimento de um escrito tão sincopado, que
não teve qualquer retoque do autor e onde seu pensamento

(10) Refiro-me ao trecho quase ao meio da pâgina 253, (eà cit.)


que explica como Feuerbach concebe a negação da negação.

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está em plena ebulição criadora. Virando a pagma, observa-
rei que a expressão Zurücknahme der Entausserung não é
exatamente o «retraimento da alienação», mas «retomada da
alienação", como se averigúa do sentido filosófico. Bem sei
que o dicionário dá a sinonímia, mas é preciso ir além da
superfície literária. Ainda gostaria de repisar no Entfrem-
diung, vertido, oscilantemente, em alternativa com o Entaus-
serung, por «alienação» e «alheamento». (11) Entretanto já
vai bem longa a insignificância destas glossas a propósito da
tradução brasileira da tradução inglêsa do texto alemão dos
Manuscritos econômico-filosóficos de 1844. Antepondo-lhes
ensaio de sua lavra, o Sr. Erich Fromm batizou o livro. Estas
minúsculas áchegas endereçadas à edição nacional visam a
diminuir confusões nas cabeças dos estudantes. Nada mais
cobiçam tais reparos, feitos ao correr da pena, com recurso
de cadernos de passadas leituras. Julgo mesmo que o Sr.
Otávio Alves, cujo mérito proclamo, prestaria serviço se de-
cidisse inserir, entre parênteses, as expressões alemãs que
não são satisfatórias ou plenamente vertidas ao nosso idioma
por causa de coloridos semânticos, de idiotismos ou de sig-
nificados específicos. Principalmente em se tratando de tão
densa e plástica terminologia herdada de um pensador como
Hegel.

(11) Consulte-se sObre o tema Popitz. Der Enttremdete Mensch,


Verlag fUr Recht und Gesellschaft Ag. Basil. 1953, págs. 109 segts.

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