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Rev. de Dir. Públ. e Ciência Política - Rio de Janeito - Vol. V. nO 2 - maio/agôsto 196~
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lidades do mundo atual e de abordar o desafio destas de manei-
ra realista e construtiva.» Linhas antes, o autor já impugnara
o sistema soviético como forma totalitária que se não poderia
identificar com o marxismo. No seu parecer, a dissidência «nos
próximos cem anos» não será entre «capitalismo» e «socialis-
mo», - mas entre «socialismo totalitário» e «socialismo huma-
nista marxista». E que foi feito do capitalismo? Sumiu? O Sr.
Fromm não tem a bondade de nos avisar de como êle desapa-
recerá. E não hesita em reconhecer que o «socialismo marxis-
ta é um rebento da tradicão humanista ocidental». Ocidental
e cristã? ~
Feitas estas afirmações, o espírito do leitor mergulha na
confusão. Desconfio que a tática do Sr. Fromm consistiu em
seguir caminho inverso ao dos marxistas ortodoxos, resvalando
no exagêro oposto, Enquanto êles encurtam cada vez mais o
valor filosófico dos Manuscmtos de 1844, por causa do hege-
lianismo que encerram, o autor do ensaio sustenta serem aquê-
les opúsculos «a obra filosófica mais importante de Marx:..
Despreza, simplistamente, outras componentes essenciais do
sistema. Nessa altura, sou obrigado a reclamar do Sr. Fromm
melhor conhecimento da literatura marxista, principalmente
de escritores de público internacional, que mantiveram, nas
polêmicas do comêço do século, límpido espírito de indepen-
dência. Citarei apenas um dos maiores estudiosos das fontes
clássicas do socialismo, o prof. Rodolfo Mondolfo, que anali-
sou, em duas obras célebres - para apontar sOmente duas -
as teses agora referidas e mal formuladas pelo ilustre psica-
nalista. Sull'Orme. di Marx teve a primeira edição pelos idos
de 1919, e a segunda, em dois volumes, em 1923; e n Materia,-
lismo histórico de Federico Engels, cuja primeira edição re-
monta a 1912. Publicadas quando ainda se desconheciam os
escritos póstumos, essas obras afirmavam o alto e robusto teor
humanístico do marxismo, mediante o alento feuerbachiano.
Em Sull'Orme di Marx, Mondolfo, ainda nos recentes anos do
advento bolchevista, expunha a dificuldade invencível de insti-
tuir o socialismo, em tôda plenitude humanista, na Rússia, em
virtude da imaturidade do proletariado incipiente. E previa, em
seu lugar, a organização de um paternalismo estatal que leva-
ria a um capitalismo de Estado (2). Entretanto, Mondolfo,
dotado de superior sagacidade crítica, não afirmou que a forma
leninista, corroendo os ingredientes humanísticos em favor da
ditadura, perdesse todo arrimo no marxismo. Evidentemente,
(3) Hubert Park Beck, Men who control our Universities, King's
Crown Press, New York, 1947. - Carey McWilliarns, Witch Hunt, the
revivals of Heresy, Little, Brown an 0, 1950. - L. L. Mathias, Autopsie
MS :2tats Unis, Editions du Seuil, Paris, 1953. - Carl Marzani y Victor
Perlo, Dolares 'Y Desarme, Editorial Platina, Buenos Aires, 1961.
( 4) Djacir Menezes, H egeZ e a Fiwsojia Soviética, Zahar Editô-
res, Rio, 1959, premiado pela Academia Brasileira de Letras.
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a concepção crítico-prática da história que resulta de associar
a dialética, não ao idealismo absoluto, mas ao humanismo rea-
lista - pode, decerto, ser qualificada de materialismo histórico)
segundo a denominação que lhe dará mais tarde Engels.» (5)
Até que ponto se poderá aceitar a denominação? Debati algu-
rei! a pergunta, analisando a conceituação de «materialismo»
e irritei suficientemente um ortodoxo. (6) A não ser por má-fé,
nenhum estudioso atualmente considera o materialismo como
doutrina que defende a satisfação animal dos instintos - e
não será preciso gastar papel com tais explicações. «De fato
- escreve o Sr. Fromm - a interpretação marxista da His-
tória poderia ser chamada uma interpretação antropológica da
História caso se quisesse evitar a ambigüidade do têrmo «ma-
terialista» e «econômico»; ela é a compreensão da História
baseada no fato de os homens serem os autores e atôres de
sua história.» Crítica já feita, com maior alcance, por Labriola,
Sombart, Croce, Gentile, Mondolfo, e mesmo o ortodoxo An-
tônio Gramcsi.
Mas não há ambigüidade, como pensa o Sr. Fromm. O
que há é distensão do sentido do conceito «matéria» a fim de
abranger tôdas as relações exteriores à consciência: a marca
de objetividade, conforme Lenin, é a determinação essencial
da matéria. Ser objetivamente independente da consciência.
Estribando-se nisso, Erhard Albrecht não trepida em susten-
tar, fechando a questão, que «a sociedade humana e a praxis
inserir-se-ão no conceito de matéria segundo Marx, Engels e
Lenin. Primeiro, porque seria possível superar as deficiências
do conceito pré-marxista de matéria e compreender dialetica-
mente e materialisticamente todos os domínios da matéria, isto
é, abranger os múltiplos fenômenos do mundo em sua mate-
rialidade». (7)
A afirmação de Albrecht corrobora o que defendi há al-
guns anos: o marxismo forjou conceito próprio de «matéria»,
o qual não coincide inteiramente com o da tradição filo~.ófica,
inspirado na física clássica. Em troca, retirou, quase intacto,
do repertório hegeliano, o conceito de «alienação», - que hoje
se planta no centro das preocupações teóricas. Com êle se
quer resolver tôdas as incertezas. Lê-se no ensaio do Sr.
Fromm:
(5) R. Mondolfo, E·l Materiali.s-nuJ Historico en F. Engels, pág. 138.
(6) Djacir Menezes, A Querela Anti-Hegel, fasciculo editado em
resposta ao artigo do Sr. Jacob Gorender, in "Estudos Sociais", n 9 8,
do ano de 1960, Rio.
(7) Erhard Albrecht, Beitrãge zur Erkenntnistheorie und das
Verhaltnis von Sprache UM Denken, Veb Max Niemayer Verlag, HaIle,
1959, pág. 439.
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«A alienação ou «alheamento» significa, para Marx, que
o homem não se vivencia como agente ativo de seu contrôle
sôbre o mundo, mas o mundo (a Natureza, os outros, êle
mesmo) permanecem alheios ou estranhos a êle. .. Alienar-se
é, em última análise, vivenciar o mundo e a si mesmo passiva-
mente, rzceptivamente, como sujeito separado do objeto.»
(pág. 51)
A origem do conceito de alienação está em Hegel, nas
vozes Entfremdung e Entiiusserung. ~ste último têrmo, Jean
Hyppolite traduziu-o como e'xtraneação; outros optaram por
exteriorização. De minha parte, preferiria extrajeção e deriva-
dos. Quanto ao vivenciar, que grifei acima, não sei a que verbo
corresponde no inglês do Sr. Fromm, pois não disponho do
original neste instante. Acontece que o Sr. Fromm pesquisa
muito longe as raízes da «alienação»: vai à cata de seus ves-
tígios no Velho Testamento; como não tenho fôlego tão com-
prido, fico na fonte hegeliana, que é de onde levanta vôo a
especulação moderna. Da Phaenomenologie des Geistes saíram
Feuerbach, Arnoldo Ruge, Bruno Bauer, Moses Hess, Max
Stirner, os quais invocaram a «alienação» ex abundantia cordis,
na batalha que a esquerda hegeliana travava contra a teologia,
aí pelos meados do século passado, na Alemanha. Foi o instru-
mento crítico mais prestadio. A repercussão da obra de Hegel,
que culminava e encerrava o período de Jena, ensinava, com
tôda clareza, o valor da N egatividade como princípio genésico,
explicando o processo de autoprodução do Homem - Prozess
des menschlichen Selbstwerd,ens - mediante o trabalho. Reco-
nheceu-se no imenso livro a Revolução posta na mais alta
versão especulativa. Os resultados do trabalho humano ali
aparecem historicamente configurados como produtos objeti-
ficados ou alienados, estranhos à própria consciência. Estra-
°
nhos ao homem, constituem universo da cultura. Para Hegel
- anotou Hyppolite - «cultura» e «alienação» têm grande afi-
nidade significativa, porque, pelo processo cultural, o indivíduo
opõe-se a si mesmo. E tal oposição se realiza graças à lingua-
gem, veículo primário dessa extrojeção ou objetificação. Tôda
organização social e política passa a refletir processo de alie- °
nação, inclusive a volonté générale, de Rousseau. Todos os
valôres criados são pro- jetados e ob-jetados, formando-se ideo-
logias, que dificultam, por distorsão, a compressão das estru-
turas da vida comunitária. Em conclusão, devido a sua dialê-
tica imanente, todo êsse "mundo espiritual", que emergiu da
experiência dos indivíduos no seio do devenir histórico, torna-
se estranho, torna-se outro. Mas outro, que é adverso. Essa al-
teridade é maligna, para a «consciência vi!», que sente a rup-
tura e oposição, enquanto a «consciência nobre» exprime a ade-
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belece o característico da «coisa». Melhor foi a versão de
Molitor, quando oferece: «... la exteriorisation de la cons-
cience-de-soi qui pose la materialité». Porque não é o carac-
terístico nem a situação da coisa, como se propõe. O sentido
filosófico escapa da expressão vernácula.
Também seria recomendável verificar melhor, por sua
posição no contexto, as sucessivas traduções do verbo
aufheben, e vozes derivadas. Na versão, emprega-se abolir,
substituir e revogar. Em várias passagens, entretanto, ex-
pressaria mais fielmente o pensamento hegeliano-marxista o
verbo superar, como adotam muitas versões francesas e ita-
lianas. Eis um pequeno período defeituosamente traduzido:
«O ato de revogação (Aufhebung) desempenha parte estra-
nha, onde repúdio e preservação, repúdio e afirmação se
acham entrelaçados.» (págs. 171-2) Na verdade, o que Marx
escreveu foi: «um papel próprio desempenha, portanto, a su-
peração, onde o repúdio e a conservação, a afirmação são
entrelaçadas». (9) Ademais, exercer «papel próprio» não é
desempenhar «parte estranha» como lá se menciona.
Outro descuido por andar muito no compasso de Mr.
Bottomore, sem cotejar sua linguagem com o original alemão.
Marx escreveu: «Primeiro, a consciência, a consciência-de-si
é no seu ser-outro como tal sendo ela mesma», isto é, seu
modo de ser outro é o de ser ela mesma - in se'inem
Andersein ais solchem bei sich. Que nos dá a tradução? Esta
charada: «Primeiro, a consciência - a autoconsciência -
está em casa em seu outro ser como tal (o grifo é dêle) .:.
E onde porventura se repete a frase seinem A wdersein ale-
80lchcm bei 8ich, lá vem o mesmo estar em casa, etc. Mais
adiante, quando Marx diz que «a razão é nela própria não-
-razão como não-razão», a tradução oferece essa coisa des-
tituída de senso: «a razão está em casa no absurdo como
tal». Absurdo? Mas se trata de contradição dialética, a iden-
tidade da identidade e da não-identidade, que só é «absurdo»
para a lógica formal.
Como se verteu a expressão auf sich selbst bezogen
Negation? Assim: «Negação auto-referíveb (pág. 174) . Prefe-
riria, com mais simplicidade, «negação relacionada a si pró-
pría». Para que encrespar mais uma linguagem já crespa de
dificuldades? Todavia, esta singela afirmação «Der Mensch
ist selbstisch» saiu em português, no mesmo diapasão ante-
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está em plena ebulição criadora. Virando a pagma, observa-
rei que a expressão Zurücknahme der Entausserung não é
exatamente o «retraimento da alienação», mas «retomada da
alienação", como se averigúa do sentido filosófico. Bem sei
que o dicionário dá a sinonímia, mas é preciso ir além da
superfície literária. Ainda gostaria de repisar no Entfrem-
diung, vertido, oscilantemente, em alternativa com o Entaus-
serung, por «alienação» e «alheamento». (11) Entretanto já
vai bem longa a insignificância destas glossas a propósito da
tradução brasileira da tradução inglêsa do texto alemão dos
Manuscritos econômico-filosóficos de 1844. Antepondo-lhes
ensaio de sua lavra, o Sr. Erich Fromm batizou o livro. Estas
minúsculas áchegas endereçadas à edição nacional visam a
diminuir confusões nas cabeças dos estudantes. Nada mais
cobiçam tais reparos, feitos ao correr da pena, com recurso
de cadernos de passadas leituras. Julgo mesmo que o Sr.
Otávio Alves, cujo mérito proclamo, prestaria serviço se de-
cidisse inserir, entre parênteses, as expressões alemãs que
não são satisfatórias ou plenamente vertidas ao nosso idioma
por causa de coloridos semânticos, de idiotismos ou de sig-
nificados específicos. Principalmente em se tratando de tão
densa e plástica terminologia herdada de um pensador como
Hegel.
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