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Ficha Técnica

Título original: THE PROMISE


Autor: Lesley Pearse
Capa: Maria Manuel Lacerda
Imagem de capa: Yolande de Kort/Trevillion Images
Fotografia da autora: Roderick Field
ISBN: 9789892324739

Edições ASA II, S.A.


uma editora do Grupo LeYa
R. Cidade de Córdova, n.º 2
2160-038 Alfragide – Portugal
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Fax: (+351) 214 272 201

© 2012, Lesley Pearse


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Para a Maureen, com amor
Porque tu mereces.
CAPÍTULO 1

Julho de 1914

A brigado da chuva num toldo, olhou para a montra em arco da pequena


chapelaria, do outro lado da rua.
Só de ver o nome «Belle» escrito em itálico com letras douradas por
cima da montra sentiu o coração bater um pouco mais depressa. Havia
duas senhoras no interior da loja, e a maneira como se mexiam sugeria que
estavam entusiasmadas com os bonitos chapéus em exposição. Tinha real-
izado o seu objetivo, saber se Belle concretizara o seu sonho, mas agora
que estava ali, tão perto dela, queria mais, muito mais.
Uma senhora gorducha e de faces rosadas juntou-se-lhe no toldo, para
fugir à intempérie. Debatia-se com um chapéu de chuva que o vento virara
do avesso.
– Se não para de chover em breve, vão-nos crescer barbatanas no lugar
dos pés – comentou jovialmente, enquanto tentava endireitar o chapéu de
chuva. – Nem sei o que me deu para sair de casa com um dia assim.
– Estava a pensar o mesmo – respondeu ele, e tirou-lhe o chapéu de
chuva das mãos para endireitar as varetas. – Aqui tem – acrescentou,
devolvendo-lho. – Mas receio que a próxima rajada de vento torne a virá-
lo.
A mulher examinou-o com curiosidade.
– É francês, não é? Mas fala muito bem inglês.
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Ele sorriu. Gostava da maneira como as mulheres inglesas daquela id-
ade não hesitavam em fazer perguntas a um perfeito desconhecido. As
francesas eram muito mais reticentes.
– Sim, sou francês, mas aprendi inglês quando cá vivi um par de anos.
– Voltou de férias? – perguntou ela.
– Sim, para visitar velhos amigos – disse ele, porque era em parte
verdade. – Disseram-me que Blackheath era um lugar muito bonito, mas
ainda não consegui apanhar um dia bom para conhecer a terra.
Ela riu e concordou que ninguém ia de certeza querer passear pela
charneca com um tempo daqueles.
– Deve viver no Sul de França – continuou, estudando-lhe o rosto
bronzeado com um ar avaliador. – O meu irmão esteve de férias em Nice e
voltou de lá negro como um tição.
Ele não fazia a mínima ideia do que pudesse ser um tição, mas ficou
contente por a mulher parecer disposta a conversar. Talvez conseguisse
ficar a saber alguma coisa a respeito de Belle através dela.
– Vivo perto de Marselha. E aquela loja ali faz-me lembrar as
chapelarias francesas – disse, apontando para o outro lado da rua.
A mulher olhou para a loja e sorriu.
– Bem, dizem que a dona aprendeu o ofício em Paris, mas todas as
senhoras da aldeia adoram os chapéus dela – disse, com genuína simpatia
na voz. – Eu própria tinha pensado passar por lá hoje, se o tempo não est-
ivesse tão mau. É uma jovem encantadora, sempre com tempo para toda a
gente.
– Tem um bom negócio, então?
– Sem dúvida, ouvi dizer que vêm cá senhoras de todo o lado comprar
chapéus. Mas é melhor ir andando, ou esta noite não há jantar lá em casa.
– Foi um prazer conversar consigo, minha senhora – disse ele, e
ajudou-a a abrir novamente o chapéu de chuva.
– Devia ir até lá e comprar um chapéu para a sua esposa – disse a mul-
her, enquanto começava a afastar-se. – Não encontrará uma loja melhor,
nem sequer em Regent Street.
Continuou a olhar para a loja do outro lado da rua, depois de a mulher
ter desaparecido, na esperança de ver Belle, nem que fosse de relance. Não
tinha uma mulher a quem comprar um bonito chapéu, nem precisava de
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desculpas para entrar na loja de uma velha amiga. Mas seria sensato re-
mexer no passado?
Voltou-se para examinar o seu reflexo no vidro da montra a seu lado.
Em França, os amigos diziam que tinha mudado naqueles dois anos decor-
ridos desde a última vez que vira Belle, mas ele não notava qualquer difer-
ença. Continuava esbelto e atlético: o trabalho duro na sua pequena quinta
mantinha-o em forma e tinha os ombros ainda mais largos e musculados
do que antes. Mas talvez os amigos se referissem ao facto de a velha cica-
triz que lhe cruzava a face se ter desvanecido um pouco e à maneira como
a tranquilidade e o contentamento lhe tinham suavizado as feições
angulosas, fazendo-o parecer menos perigoso.
Dez anos antes, a meio da casa dos vinte, quando precisava de infligir
medo às pessoas, ficava orgulhoso ao ouvir dizer que os seus olhos azuis
eram gelados e que havia ameaça até na sua voz. Mas tinha-se afastado
desse mundo, embora soubesse que continuava capaz de violência, quando
era necessário.
Se os elogios que a senhora do guarda-chuva tecera a Belle eram rep-
resentativos do que as pessoas daquela simpática aldeia pensavam dela,
isso só podia significar que os aspetos mais escandalosos do seu passado
não a tinham seguido até ali. O que era bom. Ele, mais do que ninguém,
tinha consciência de como erros antigos, más escolhas e episódios vergon-
hosos eram tantas vezes difíceis de pôr para trás das costas.
Agora, cumprida a sua missão, sabia que o mais sensato a fazer era
voltar à estação e apanhar o comboio de regresso a Londres.

O tilintar da campainha da porta avisou-o de que alguém saía da loja


de Belle. Eram as duas senhoras, que calculou serem mãe e filha, porque
uma teria quarenta e poucos anos e a outra não devia ir além dos dezoito.
A mais jovem correu para um automóvel que as aguardava levando na mão
duas chapeleiras às riscas pretas e cor-de-rosa, enquanto a mais velha
voltava a cabeça para o interior da loja, como que a dizer adeus. E então,
de repente, viu Belle aparecer à porta, tão elegante e encantadora como a
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recordava, com um muito recatado vestido verde-pálido de gola alta, o ca-
belo negro e brilhante preso no alto da cabeça num bonito penteado de que
só uns quantos caracóis escapavam para lhe emoldurar o rosto.
Subitamente, já não queria ser sensato, tinha de falar com ela. Os tam-
bores de guerra que haviam começado a rufar um ou dois anos antes
soavam cada vez mais alto, e com o assassínio do arquiduque Francisco
Fernando da Áustria, em finais de junho, o conflito tornara-se inevitável. A
Alemanha iria certamente invadir a França, e ele teria de lutar pelo seu país
e era muito possível que não vivesse para tornar a ver Belle.
Enquanto o carro das duas mulheres se afastava, Belle fechou a porta
da loja. Incapaz de resistir ao impulso, agora que ela estava sozinha, at-
ravessou a rua sob a chuva detendo-se apenas um ou dois segundos para a
ver através do vidro. Estava de costas para ele, a arranjar alguns chapéus
em pequenos expositores. Havia uma fila de botões de pérola ao longo das
costas do vestido, e o pensamento de que nunca seria ele a desapertá-los
despertou nele uma pontada de ciúme. Belle inclinou-se para apanhar uma
chapeleira do chão e ele teve um vislumbre dos seus elegantes tornozelos
acima dos bonitos botins rendados. Vira-a nua quando a salvara em Paris,
e sentira apenas preocupação por ela, mas naquele instante a visão de uns
breves centímetros de perna foi o bastante para o excitar.
Belle voltou-se quando a campainha da porta tilintou e, ao vê-lo, levou
as mãos à boca e abriu muito os olhos, de choque e surpresa.
– Étienne Carrera! – exclamou. – Que fazes tu aqui?
A voz dela, o azul profundo dos seus olhos e até a maneira como dis-
sera o nome dele fizeram-no fraquejar de desejo.
– Sinto-me lisonjeado por te lembrares de mim – disse, tirando o
chapéu com um floreado. – E tu estás cada vez mais bonita. O êxito e a
vida de casada ficam-te bem.
Avançou um par de passos, com a intenção de a beijar na face, mas ela
corou e recuou, como que envergonhada.
– Como soubeste que estava casada e a viver em Blackheath? –
perguntou.
– Fiz uma visita ao Ram’s Head, em Seven Dials. O novo proprietário
disse-me que tinhas casado com o Jimmy e ido viver para Blackheath. Não
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podia deixar Inglaterra sem voltar a ver-te, de modo que apanhei o com-
boio e vim até cá na esperança de te encontrar.
– Depois de tudo o que fizeste por mim, devia ter-te escrito quando me
casei – disse ela, a parecer simultaneamente ansiosa e atrapalhada pelo
súbito aparecimento dele. – Mas…
– Compreendo – disse ele, num tom ligeiro. – Os velhos amigos que
passaram por tanta coisa juntos não precisam de explicações. Sempre
soube, pela maneira como o Jimmy nunca desistiu de te procurar depois de
teres sido raptada, que deve amar-te muito. Por isso, estou feliz por as
coisas terem corrido bem entre vocês os dois. Ouvi dizer que ele e o tio
têm um pub aqui na aldeia.
Belle assentiu.
– É o Railway, ao fundo da colina. Lembras-te com certeza de eu te ter
falado da Mog, a governanta da minha mãe. Bem, casou com o Garth, o tio
do Jimmy, há dois anos, em setembro, e eu e o Jimmy casámos pouco
depois.
– E conseguiste finalmente ter a tua loja de chapéus! – Étienne olhou
com um sorriso apreciador para a decoração em tons de rosa-pálido e bege.
– É encantadora, tão feminina e chique como tu. Uma senhora lá fora
disse-me que nem em Regent Street é possível encontrar chapéus mais
bonitos.
Ela sorriu e pareceu relaxar um pouco.
– Porque é que não despes essa gabardina encharcada enquanto eu
faço um chá para nós? – Dirigiu-se a uma pequena divisão nas traseiras da
loja e de lá perguntou: – Ainda tens a quinta?
Étienne pendurou a gabardina num cabide junto à porta e alisou com
as mãos o cabelo louro e molhado.
– Tenho, pois. Mas também faço algumas traduções, e foi por isso que
vim a Inglaterra, para falar com as pessoas de uma editora para a qual já
trabalhei aqui há anos.
– Portanto, a tua vida agora é mais do que galinhas e limoeiros –
afirmou ela, voltando à loja. – Por favor, diz-me que te tens mantido no
caminho reto e estreito.
Ele levou a mão ao coração.
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– Juro que me tornei um pilar da melhor sociedade – disse, num tom
grave e com os olhos a faiscar. – Nunca mais escoltei rapariguinhas até à
América nem salvei nenhuma das garras de loucos.
Nunca se perdoara por não ter resistido quando os gangsters para
quem trabalhava na altura o tinham obrigado, através de chantagem, a en-
tregar Belle num bordel de Nova Orleães. Talvez se tivesse redimido em
parte quando, dois anos mais tarde, a salvara em Paris, mas, a seus olhos,
isso não bastara para apagar o passado.
– Não acredito que possas alguma vez ser um pilar da sociedade – riu
Belle.
– Duvidas da minha palavra? – exclamou ele, a fingir-se ofendido. –
Devias envergonhar-te, Belle, por teres tão pouca fé! Alguma vez te
menti?
– Bem, uma vez disseste que me matavas se tentasse fugir – retorquiu
ela. – E mais tarde admitiste que era mentira.
– Ora aí está o grande problema das mulheres – suspirou ele. –
Lembram-se sempre das pequenas coisas sem importância. – Estendeu a
mão e tocou num minúsculo chapéu emplumado que estava num expositor,
encantado por a determinação e o talento dela terem dado frutos. – Agora é
a tua vez de dizer a verdade. O teu casamento é tudo o que esperavas?
– Isso e muito mais – respondeu ela, um tudo-nada demasiado de-
pressa. – Somos muito felizes e o Jimmy é o melhor dos maridos.
– Fico feliz por ti – disse ele, e fez uma pequena vénia.
Belle voltou a rir.
– Ficas? Tens uma mulher na tua vida? – perguntou.
– Nenhuma suficientemente especial para assentar.
Ela arqueou as sobrancelhas, numa interrogação.
Ele sorriu.
– Não faças essa cara, nem toda a gente quer casamento e estabilidade.
Sobretudo com a guerra que aí vem.
– Com certeza que vai ser possível evitá-la – disse ela, esperançosa.
– Não, Belle. Não há a mínima hipótese disso. É uma questão de
semanas.
– Os homens não falam de outra coisa. – Belle suspirou. – Estou tão
farta. Mas ouve, porque é que não vens agora comigo para eu te apresentar
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o Jimmy, o Garth e a Mog? Eles iam ficar tão contentes por te conhecer, ao
fim de tanto tempo.
– Não me parece que fosse apropriado.
Belle fez beicinho.
– Porque não? Salvaste-me a vida, em Paris, e eles vão ficar muito de-
sapontados e intrigados quando souberem que estiveste cá e não foste
visitá-los.
Ele olhou-a pensativamente por um instante.
– Quando te mudaste para aqui, deixaste o passado para trás.
Belle abriu a boca para protestar mas voltou a fechá-la, ao aperceber-
se de que ele tinha razão. No dia em que casara com Jimmy fechara defin-
itivamente a porta ao tempo que tinha vivido na América e em Paris.
Étienne podia ter voltado a abri-la ao aparecer para a ver, e ela estava con-
tente por ele o ter feito, mas Jimmy podia não encarar as coisas da mesma
maneira.
– E o Noah? – perguntou. – Vais vê-lo? Tornaram-se tão bons amigos
quando andavam à minha procura, e tenho a certeza de que te lembras da
Lisette, que cuidou de mim no convento antes de me levares para a
América. O Noah apaixonou-se por ela, casaram e estão à espera de um
filho. Têm uma casa encantadora em St. John’s Wood.
– Tenho-me mantido em contacto com o Noah – disse Étienne. –
Talvez não tão frequentemente como devia, mas ele é jornalista e tem
muito mais facilidade em escrever do que eu. Se bem que seja agora um
colunista tão famoso que até posso ler os trabalhos dele em França. A ver-
dade é que vamos almoçar juntos amanhã, num restaurante perto do jornal.
Seremos sempre amigos, mas não vou a casa dele. Ambos sentimos que
aquilo que a Lisette menos precisa é de coisas que lhe recordem o passado,
especialmente com um filho a caminho.
Belle esboçou um sorriso triste, compreendendo exatamente o que ele
queria dizer. Também Lisette fora forçada à prostituição quando era uma
rapariguinha, e por isso se mostrara tão carinhosa para com ela.
– A respeitabilidade paga-se caro. Gosto muito do Noah e da Lisette,
mas apesar de nos mantermos em contacto, e de nos visitarmos de vez em
quando, temos sempre o cuidado de não falar da forma como nos
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conhecemos. Sei que é o melhor, agora que tanto eu como a Lisette es-
tamos casadas, mas isso não nos impede de sermos bastante amigas.
– O passado afeta a tua relação com o Jimmy? – perguntou Étienne, os
olhos fixos nos dela, a desafiá-la a mentir-lhe.
– Por vezes – admitiu Belle. – É como termos uma farpa espetada num
dedo e não conseguirmos tirá-la. Estamos sempre a senti-la, e a mexer-lhe.
Étienne assentiu. Pensou que a descrição dela era bem adequada.
– Comigo acontece o mesmo. Mas, a seu tempo, a farpa acaba por sair
e o buraco que deixa enche-se de novas recordações.
De repente, Belle riu.
– Porque é que estamos a ficar tão sombrios? Para todos nós… para
mim, para ti, para a Mog e também para a Lisette… apesar de todos os
problemas que tivemos, alguma coisa boa resultou de tudo o que aconte-
ceu. Porque serão as pessoas tão perversas que só gostam de lembrar os
maus tempos?
– São os maus tempos que recordamos, ou os bons momentos que nos
ajudaram a aguentar os maus tempos? – perguntou ele, a arquear uma
sobrancelha.
Belle corou, e ele soube que ela recordava até bem de mais os bons
momentos que tinham partilhado.
Embora tivesse sido levada para a América contra a sua vontade, Belle
servira-lhe de enfermeira quando ele enjoara durante a viagem. Muito
antes de chegarem a Nova Orleães, tinham-se tornado amigos muito próxi-
mos, e na noite em que fizera dezasseis anos ela oferecera-se-lhe. Nem ele
sabia como conseguira conter-se naquela noite, pois desejava-a, não ob-
stante a mulher e os dois filhos que tinha em casa. A recordação do corpo
dela, jovem e firme, nos seus braços, da doçura dos seus beijos, inflamara-
o muitas vezes ao longo dos anos. No entanto, estava satisfeito por não ter
sucumbido aos encantos de Belle naquela noite: já carregava consigo culpa
suficiente, em relação a ela, para não precisar de lhe somar também aquilo.
– Sempre que leio qualquer coisa a respeito de Nova Iorque, lembro-
me de como me mostraste a cidade – disse Belle. – Tenho de ter muito
cuidado para nunca dizer que lá estive, ou talvez tivesse de explicar
quando e com quem. Nunca te perguntei se também gostaste daqueles dois
dias. Gostaste?
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– Foram os melhores que tive em muito, muito tempo – admitiu ele. –
Tu estavas tão espantada, tão desejosa de ver tudo. Custou-me muito con-
tinuar a viagem até Nova Orleães, sabendo que ia ter de te deixar lá.
– Não foi assim tão mau no Martha’s – disse ela, pousando-lhe uma
mão no braço para o tranquilizar. – Nunca te culpei, sempre compreendi
que tinhas sido obrigado a fazê-lo. E de qualquer modo, quando dois anos
mais tarde, em Paris, entraste por aquela porta e me salvaste do Pascal, isso
compensou tudo o resto.
Estremeceu involuntariamente, como lhe acontecia sempre que recor-
dava o horror por que Pascal a havia feito passar. O louco aprisionara-a no
sótão de sua casa, e ela não duvidava que a teria matado se Étienne não
tivesse conseguido encontrá-la.
E Étienne não se limitara a salvá-la, tinha-a ajudado também a sarar
sentando-se junto à sua cama no hospital, deixando-a chorar, conversando
com ela e dando-lhe esperança no futuro. Também recordava o dia em que
Noah lhe dissera que a mulher e os dois filhos dele tinham morrido num
incêndio. Para sua vergonha, a sua primeira reação fora pensar que Étienne
estava livre, em vez de se horrorizar pela maneira bárbara como aqueles
que ele amava tinham morrido.
Étienne notou o estremecimento e, consciente de que a sua inesperada
visita e a recordação do passado que partilhavam estava a perturbá-la, sen-
tiu que tinha de trazê-los a ambos de volta ao presente.
– Vou alistar-me no exército quando regressar a França – disse.
– Oh não, claro que não vais! – exclamou ela.
Ele riu.
– As mulheres reagem sempre assim, mas é o meu dever, Belle. E mais
uma vez o meu passado vai apanhar-me, porque fugi ao serviço militar
obrigatório quando era rapaz, escapando para Inglaterra.
– Vão castigar-te por causa disso?
Ele sorriu.
– Espero que se contentem com pôr-me uma espingarda nas mãos –
disse. – Não vou gostar da recruta e de ter de obedecer a ordens, e não sou
suficientemente ingénuo para pensar que é o caminho para a glória, mas
amo a França e macacos me mordam se vou ficar de braços cruzados a vê-
la cair nas mãos dos Alemães.
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Belle lançou-lhe um olhar especulativo.
– És hábil e corajoso, Étienne, darás um bom soldado. Mas eu ficava
muito mais contente se continuasses na tua quinta a cultivar limões e a dar
de comer às galinhas.
Étienne encolheu os ombros.
– Nesta vida, nem sempre podemos escolher a estrada mais segura e
agradável. Tenho um passado violento, conheço o pior que os homens são
capazes de fazer uns aos outros. Pensava nunca mais ter de usar esse con-
hecimento, mas parece ser exatamente o que o meu país precisa agora.
– És um homem bom e honrado. – Belle suspirou. – Por favor, tem
cuidado. Mas se tens a certeza de que não queres ir comigo conhecer o
Jimmy, são horas de fechar a loja e ir para casa. Gostamos sempre de
jantar juntos antes de ele abrir o pub.
– Sim, claro, não te quero atrasar – disse ele, mas não fez menção de
pegar na gabardina. Queria dizer-lhe que sempre a amara, queria abraçá-la
e beijá-la. Mas sabia que era demasiado tarde. Tivera a sua oportunidade
em Paris e não a aproveitara. Agora, ela pertencia a outro homem.
– É melhor saíres primeiro. Não quero que ninguém se lembre de me
ver a descer a rua com um desconhecido – disse ela, francamente.
Étienne vestiu a gabardina.
– Encontrei o que procurava – disse em voz baixa. – Fiquei a saber que
estás feliz e segura. Mantém-te segura, ama o Jimmy com todo o teu cor-
ação, e espero vir um dia a saber pelo Noah que tens um rancho de filhos.
Pegou-lhe na mão e beijou-a, e então deu meia-volta e saiu rapida-
mente da loja.

– Au revoir – murmurou Belle quando a porta se fechou, e as lágrimas


arderam-lhe nos olhos, porque havia muito mais que teria gostado de lhe
dizer, muito mais que teria gostado de saber a respeito da vida dele.
Com dezasseis anos, julgara amá-lo. Ainda corava de cada vez que re-
cordava como se despira e se enfiara no beliche dele e o convidara a
partilhá-lo com ela. Mas ele fora um cavalheiro: abraçara-a e beijara-a,
mas não fora mais longe do que isso.
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Como adulta, ao rever os horrores por que tinha passado antes de con-
hecer Étienne, raptada em plena rua perto de sua casa e levada para Paris
para ser vendida a um bordel e violada por cinco homens, supunha que era
possível que tivesse sentido que amava quem quer que fosse gentil para
com ela depois de um tal inferno.
No entanto, não podia ter sido só por Étienne se ter mostrado gentil, ou
por ser forte, sensível e afetuoso, porque aqueles sonhos de miúda a re-
speito dele tinham continuado com ela durante o tempo que vivera em
Nova Orleães e na viagem de regresso a França.
Quando ele reaparecera para lhe salvar a vida, há muito que a sua in-
ocência se perdera e ela sabia mais acerca de homens do que qualquer mul-
her devia saber. Mas ele também devia sentir qualquer coisa por ela: senão,
porque teria corrido para Paris dois anos mais tarde, quando lhe tinham
dito que ela desaparecera?
Ao longo de toda a sua convalescença, depois do salvamento, esperara
e desejara uma confissão de amor. Sentia que ele a amava pela maneira
como a olhava, pela ternura que lhe mostrava. E no entanto, não a tomara
nos braços nem admitira que a desejava, nem sequer quando se tinham
despedido na Gare du Nord e ela chorara e tornara mais do que claros os
seus sentimentos.
Esforçara-se ao máximo por apagar da memória aquela despedida, e as
saudades que tivera dele durante muito tempo depois disso, mesmo quando
já estava a salvo em casa junto de Mog e Jimmy começara a falar de
casamento. Porque tivera então ele de ir ali naquele dia e voltar a cravar
aquela farpa no seu coração?
Dissera-lhe a verdade. Ela e Jimmy eram muito felizes. Ele era o seu
melhor amigo, amante, irmão e marido numa só pessoa. Tinham os mes-
mos objetivos, riam das mesmas coisas, ele era tudo o que uma rapariga
podia desejar ou precisar. Curara-a dos horrores do passado, nos seus
braços encontrara uma ternura maravilhosa, e satisfação também, porque
ele era um amante atento e sensível.
Jimmy era o seu mundo; amava a vida que tinha com ele. Ao mesmo
tempo, no entanto, desejava ter podido dizer a Étienne como fora maravil-
hoso voltar a vê-lo, que ele estivera muitas vezes nos seus pensamentos
naqueles dois últimos anos e que lhe devia muito.
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Mas uma mulher casada não podia dizer aquelas coisas, tal como não
podia encorajá-lo a demorar-se mais tempo na loja. Blackheath era uma
aldeia, as pessoas eram tacanhas e bisbilhoteiras, e não faltaria quem ficas-
se feliz por poder coscuvilhar a respeito de a ter visto na loja com um
homem atraente.
Começou a arrumar as coisas, limpando o balcão e apanhando do chão
pedaços de papel de seda.
Apesar de tudo, não conseguia impedir-se de perguntar a si mesma por
que razão, se era tudo assim tão bom, continuava a sentir que faltava
qualquer coisa na sua vida. Porque lia a respeito das suffragettes no jornal
e as invejava por terem a coragem de se baterem pelos direitos das mul-
heres face à hostilidade? Porque se sentia um pouco sufocada pela respeit-
abilidade? Mas, acima de tudo, por que motivo a voz de Étienne, a sua
presença e o toque dos seus lábios na mão dela ainda tinham o poder de a
fazer estremecer?
Abanou a cabeça, abriu a gaveta onde guardava a receita do dia e des-
pejou o dinheiro num saco de pano que enfiou na bolsa de rede. Prendeu o
chapéu de palha ao cabelo com um alfinete comprido, pôs a capa por cima
dos ombros e tirou o chapéu de chuva do bengaleiro junto à porta.
Deteve-se antes de apagar as luzes e recordou o dia em que inaugurara
a loja. Fora num dia frio de novembro, apenas dois meses depois de Mog e
Garth se terem casado, quando ela e Jimmy tinham o casamento marcado
para antes do Natal. Tudo fora novo e brilhante, naquele dia. Jimmy fizera-
lhe a vontade e comprara os pequenos mas dispendiosos candelabros
franceses e o balcão com tampo de vidro. Mog descobrira as duas cadeiras
estilo Regência e mandara-as forrar de veludo cor-de-rosa, e a prenda de
Garth fora pagar aos dois decoradores que tinham feito o milagre de trans-
formar a lojeca feia e miserável num paraíso feminino cor-de-rosa e bege.
Vendera vinte e dois chapéus naquele primeiro dia, e dúzias de outras
mulheres que tinham entrado só para dar uma vista de olhos tinham
voltado mais tarde para comprar. Nos dezoito meses decorridos desde en-
tão, houvera menos de sete dias em que não vendera um único chapéu, e
tinham sido todos dias de mau tempo. As vendas médias de uma semana
andavam pelos quinze chapéus, e embora isso significasse que tinha de tra-
balhar duramente para acompanhar a procura, e contratar trabalho fora
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para a ajudar, estava a ganhar um bom dinheiro. No verão, comprara uma
porção de simples chapéus de palha e enfeitara-os, e fora muito lucrativo.
A loja era um êxito retumbante.
«Como tudo o mais na tua vida», recordou a si mesma enquanto
apagava as luzes.

Étienne foi direito à estação, mas ao descobrir que acabava de perder o


comboio e ia ter de esperar vinte e cinco minutos pelo seguinte, ficou junto
da bilheteira a olhar para o Railway, do outro lado da rua.
Nunca conseguira compreender os pubs ingleses, as rígidas horas de
abertura, os homens de pé em frente do balcão a beber enormes quan-
tidades de cerveja e a cambalear de regresso a casa quando eram horas de
fechar, como se só embriagados conseguissem enfrentar as mulheres e os
filhos. Os bares franceses eram muito mais civilizados. Nunca eram vistos
como uma espécie de templo onde um homem se podia embebedar porque
estavam abertos todo o dia e ninguém estranhava se algum cliente bebia
um café ou um refresco enquanto lia o jornal.
O Railway, ao menos, parecia convidativo, com a sua pintura recente e
as janelas de vidros muito limpos. Não lhe custava imaginar que numa
noite fria de inverno fosse um refúgio quente e amistoso onde os homens
se podiam reunir.
Enquanto olhava, viu um homem grande, de cabelo e barba ruivos
aparecer na porta da frente. Usava um avental de couro por cima das
roupas e Étienne calculou que devia ser Garth Franklin, o tio de Jimmy. O
homem deteve-se a olhar para a água que jorrava de um algeroz partido e
escorria pela fachada do edifício, e chamou alguém que estava no interior.
Um homem mais novo juntou-se-lhe, e Étienne soube imediatamente
que era Jimmy. Era maior do que o imaginara, tão alto como o tio e com os
mesmos ombros largos, mas não usava barba e o cabelo ruivo estava bem
aparado e era um pouco mais escuro do que o de Garth, talvez devido à
brilhantina. Os dois, que mais pareciam pai e filho, ficaram ali a olhar e a
discutir sobre o algeroz partido, aparentemente indiferentes à chuva.
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Jimmy voltou de repente a cabeça e o rosto rasgou-se-lhe num grande
sorriso, e Étienne soube que era por ter visto Belle avançar na direção
deles.
Belle esforçava-se por manter o chapéu de chuva a cobrir-lhe a cabeça
e a capa à volta dos ombros, mas correu os últimos metros até aos dois ho-
mens. Quando chegou, o chapéu de chuva estava inclinado para trás e
Étienne notou que o sorriso dela era tão feliz como o do marido.
Jimmy tirou-lhe o chapéu de chuva com uma mão enquanto com a
outra lhe acariciava a face, e beijou-a na testa. Aqueles pequenos gestos de
ternura disseram a Étienne o quanto o homem a amava.
Teve de desviar o olhar. Sabia que devia sentir-se em paz por ter a cer-
teza de que Belle era verdadeiramente amada e protegida, mas em vez
disso sentia apenas a amarga ferroada do ciúme.
CAPÍTULO 2

B elle ergueu os olhos do desenho, a testa franzida de irritação por causa


da algazarra que vinha do pub, lá em baixo. Esperava aquele nível de
ruído num sábado à noite, perto da hora de fechar, mas não às oito da noite
de uma terça-feira.
Os dotes de Mog como dona de casa tinham-se refinado desde a
mudança para Blackheath. A sala de estar era espaçosa, com duas janelas
de guilhotina debruçadas sobre a rua. À tarde enchia-se de sol, e a decor-
ação que Mog escolhera – papel de parede verde-claro com um pequeno
motivo vegetal, cortinas de veludo verde-musgo e um sumptuoso tapete
turco que adquirira num leilão – era muito atraente na sua simplicidade.
O anterior proprietário do pub deixara ficar o enorme sofá, provavel-
mente porque já tinha visto melhores dias, mas Belle e Mog tinham-lhe
feito uma cobertura de pano estampado, e outras a condizer para os dois
cadeirões de braços trazidos de Seven Dials. Garth gostava de brincar a re-
speito das pretensões de Mog a ser «gente fina», e dizia-lhe que não
tardaria muito estaria a exigir uma criada. Mas tanto ele como Belle
sabiam que nunca Mog confiaria fosse a quem fosse o cuidado de limpar e
arrumar a sua casa; amava-a demasiado para permitir que por lá andasse
uma estranha a meter o nariz.
Quase sempre, a sala de estar era um porto de abrigo sereno onde po-
dia fugir à barulhenta azáfama do pub, e Belle adorava os seus fins de
tarde sentada à mesa perto da janela, a desenhar chapéus. Daquela vez,
porém, apercebendo-se de que não ia conseguir concentrar-se e vencida
pela curiosidade, decidiu descer para ver o que se passava.
Uma vez que Garth não aprovava a presença de mulheres atrás do bal-
cão durante as horas de funcionamento, só poderia espreitar pela porta
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entreaberta. Mas mesmo com um tão limitado campo de visão, não era di-
fícil perceber que a casa estava à cunha, cheia de jovens aos berros que
exigiam ser servidos. Mas o mais surpreendente era o facto de aqueles
jovens pertencerem aos mais variados estratos sociais. Uns eram típicos
senhores da City, de chapéu de coco, fato escuro e camisa de colarinho en-
gomado, outros trabalhadores braçais, de boné achatado e fato-macaco a
pedir barrela, mas, entre estes dois extremos, havia representantes de quase
todas as restantes profissões e estilos de indumentária. Jimmy e Garth
esforçavam-se visivelmente por manter constante o fornecimento de
cerveja.
– Que se passa? – perguntou Belle a Mog, que estava na cozinha a lav-
ar copos. – Devem estar ali pelo menos oitenta homens. O que foi que os
trouxe a todos cá esta noite?
– Estiveram a alistar-se no exército – respondeu Mog, e abanou a
cabeça, como que estupefacta por semelhante loucura.
A 4 de agosto, duas semanas antes, a Alemanha invadira a Bélgica e,
por força das alianças estabelecidas, a Inglaterra declarara guerra ao Im-
pério Germânico. Desde então, não se falava de outra coisa. O tema enchia
as páginas dos jornais, os homens juntavam-se nas esquinas para discutir o
provável desfecho, até as senhoras que entravam na loja de Belle falavam
disso, umas receosas de que os maridos ou namorados se alistassem, outras
proclamando que era dever de todos os homens fisicamente aptos irem
combater.
Belle sabia, como toda a gente, que o exército britânico era pequeno,
mas também se dizia muitas vezes que os seus soldados estavam mais bem
treinados do que os de qualquer outro exército europeu. O que nunca es-
perara fora que homens vulgares, como os que ali via, corressem a alistar-
se.
– O quê, todos? – exclamou, enquanto voltava a espreitar pela abertura
da porta. – Nem sequer são homens, são quase todos rapazes!
Agora que sabia o que provocava tamanho rebuliço, aqueles rostos
corados e olhos brilhantes fizeram-na sentir-se gelada. Reconhecera em al-
guns daqueles homens os filhos, irmãos ou maridos de mulheres que con-
hecia, e perguntou-se como reagiriam elas ao facto de eles se terem
alistado.
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– Parece que havia um soldado a tocar cornetim à porta da igreja –
disse Mog, como se aquilo pudesse servir de desculpa para um comporta-
mento tão impulsivo. – O Garth passou por lá esta tarde e viu-os fazer fila
para se alistarem. Chegou a casa com o mesmo brilho nos olhos, mas,
graças a Deus, não aceitam ninguém com mais de quarenta anos.
Belle sentiu uma pontada de medo percorrer-lhe o corpo.
– O Jimmy não está a pensar em juntar-se-lhes, pois não?
– Só se perder o juízo por completo – sentenciou Mog, e empalideceu,
horrorizada pela ideia. – Mas os homens são criaturas estranhas… quem
sabe o que lhes vai na cabeça? A maior parte só quer um pouco de aven-
tura, de modo que esperemos que seja verdade e esteja tudo acabado antes
do Natal.
Garth abriu a porta que dava para o pub e gritou a Mog que se des-
pachasse com os copos, pedindo-lhe de seguida que fosse dar uma ajuda a
servir. Enquanto subia as escadas, Belle pensou que ele devia estar mesmo
muito pressionado para ultrapassar o seu preconceito contra a presença de
mulheres atrás do balcão. Mas uma vez de regresso à sala de estar, deu por
si a preocupar-se com Jimmy.
Até ao momento, a opinião dele fora que ser soldado era uma coisa
para profissionais, não para um bando de amadores de cabeça quente. Mas,
dissesse ele o que dissesse, Belle suspeitava que a pressão dos seus pares e
a vaga de patriotismo que parecia ter empolgado o país eram bem capazes
de o fazer mudar de ideias. Mog tinha provavelmente razão quando dizia
que a maior parte dos recrutas queria apenas aventura, mas alguns deles
seriam de certeza mortos ou feridos, e Jimmy poderia contar-se entre eles.
Só a possibilidade de perder Jimmy encheu-lhe os olhos de lágrimas.
Não conseguia, e não queria, pensar na vida sem ele. Limpou com as cost-
as da mão uma lágrima perdida, sem compreender por que razão, naquelas
últimas semanas, se tornara tão emotiva a respeito de tudo. Ainda no dia
anterior se desfizera em lágrimas quando abrira uma caixa de guarnições e
descobrira que o fornecedor lhe enviara quatro rolos de fita encarnada em
vez de um de fita encarnada, outro de fita cor-de-rosa, outro de azul e outro
de amarela.
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Mas a verdade era que, desde aquele dia de julho em que Étienne
aparecera na loja, não voltara a ser a mesma. O tempo aquecera muito de-
pois daquela visita, provocando um súbito aumento na procura de chapéus
de palha. Tinha alguns de reserva, já arranjados, de modo que não havia
verdadeiro motivo para entrar em pânico, mas entrara. Correra ao seu
fornecedor habitual, em Lewisham, e comprara-lhe quase todo o stock. No
entanto, em vez de se sentar a preparar os chapéus para serem vendidos,
dava por si a olhar para a rua, distraída e ociosa, através do vidro da
montra. Deixava-se cair num sonolento torpor várias vezes ao longo do
dia, e depois à noite não conseguia dormir. Era capaz de passar o dia in-
teiro cheia de fome, mas quando Mog lhe punha o jantar na mesa,
descobria que tinha perdido o apetite. Também a capacidade de con-
centração parecia tê-la abandonado, e não conseguia manter-se a fazer a
mesma coisa durante mais de meia hora seguida.
A princípio, pensara que era apenas porque Étienne viera despertar re-
cordações adormecidas; muitas vezes se surpreendera a si mesma em flag-
rante delito de devaneio. Mas agora perguntava-se se não seria apenas a
guerra, sendo difícil como era olhar em frente quando se tornava impos-
sível prever o que traria o futuro. E, no entanto, seriam a guerra e a incer-
teza justificação suficiente para se sentir tão excessivamente emotiva, dis-
traída e cansada? Não falara do assunto a Jimmy nem a Mog porque não
havia nada de tangível para descrever e, além disso, receava dizer o que
quer que fosse a qualquer deles, não fosse escapar-se-lhe alguma palavra a
respeito da visita de Étienne.
E isto fazia-a sentir-se mal consigo mesma. Que poderia ser mais nat-
ural do que partilhar a alegria de rever um velho amigo? Mas, claro, a ver-
dade era que temia dizer qualquer coisa que levasse Jimmy a aperceber-se
de que os seus sentimentos em relação a Étienne tinham sido algo mais do
que simples amizade.
Saltava à vista de qualquer pessoa que não podia ter encontrado um
marido melhor do que Jimmy. Não acreditava que muitas antigas prosti-
tutas pudessem afirmar que o passado nunca lhes fora atirado à cara num
momento de raiva ou de ciúme.
Mas Jimmy nunca o fizera. Era terno, firme, sensível às suas necessid-
ades, disposto a fazer por ela absolutamente tudo. E, o que era ainda mais
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invulgar, e ao qual dava um valor muito especial, tinha no seu casamento
uma espécie de liberdade que se poderia considerar quase inaudita. Jimmy
nunca interferia no negócio da loja, orgulhava-se do êxito dela e, se al-
guma coisa corresse mal, tinha a certeza de que ele a apoiaria. E adorava-a.
O senso comum dizia-lhe que mesmo que Étienne lhe tivesse dito que
a amava quando estavam em Paris, e tivesse casado com ele em vez de
Jimmy, nunca teria sido o género de relação serena que tinha agora. Noah
tivera razão ao fazer notar, durante a viagem de regresso a Inglaterra, que
Étienne era perigoso. O que não queria dizer que alguma vez fosse capaz
de a magoar fisicamente. Era mais uma questão de ser um homem pro-
fundo, com um passado complicado e obscuro.
Mas agora desaparecera para sempre. Agora talvez até já estivesse a
combater os Alemães. Só esperava que estivesse a salvo.
– Um penny por eles!
Belle rodou vivamente na cadeira ao ouvir as palavras de Mog. Est-
ivera tão absorta nos seus culposos pensamentos que não a ouvira entrar.
O casamento fizera maravilhas por Mog. Durante toda a infância de
Belle em Seven Dials, Mog fora como um ratinho cheio de bondade e
amor. Andava atarefada de um lado para o outro a fazer o seu trabalho, a
cozinhar, a limpar e a remendar, sempre enfiada em roupas escuras e in-
formes, o cabelo preso num apertado carrapito. Parecia muito mais velha
do que Annie, a verdadeira mãe de Belle, apesar de terem as duas a mesma
idade.
Agora vestia roupas elegantes, bem cortadas, que lhe realçavam o
corpo esguio mas bem feito. Talvez tivesse mais alguns fios de cinza entre
o castanho do cabelo, que passara a usar presos num rolo sobre a nuca,
com alguns caracóis soltos a emoldurarem um rosto que brilhava de ar
fresco e felicidade. Podia ter trinta e oito anos, mas naquele dia, no seu
vestido às riscas cor-de-rosa e pretas com um corpete plissado, parecia dez
anos mais nova.
Fora ela própria que fizera o vestido, mas era uma costureira tão hábil
que parecia saído da luxuosa loja de roupa de senhora que havia um pouco
mais abaixo, em Tranquil Vale. Dizia sempre a quem lhe perguntava que
tinha sido governanta antes de casar com Garth, e as pessoas assumiam,
pelos seus modos, que trabalhara em casa de uma família da aristocracia.
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Nunca ninguém adivinharia que tinha passado toda a sua vida adulta,
até pouco antes, como criada num bordel e que tinha na cabeça mais con-
hecimento a respeito dessa profissão do que toda a população feminina de
Blackheath.
– Estavas a quilómetros daqui – disse a Belle, com um terno sorriso. –
Queres contar-me o que se passa?
Belle hesitou. Mog fora como uma mãe para ela desde que nascera, e
seria, normalmente, a pessoa a quem confidenciaria quaisquer problemas
que tivesse. Mas não podia falar-lhe de Étienne. Mog ficaria horrorizada só
de pensar que outro homem que não Jimmy lhe passava sequer pela
cabeça.
Suspirou.
– Nem isso os meus pensamentos valem – disse. – É só a guerra, a
loucura lá em baixo no pub. É muito perturbador.
Mog espreitou para o que ela estava a desenhar e franziu a testa ao ver
que era quase fúnebre, muito diferente do seu estilo habitual.
– Há já um par de semanas que te acho estranha – observou. – Não ter-
ás apanhado um pontapé nas costas, por acaso?
Belle abriu a boca, chocada, em parte por Mog ter usado o género de
calão que usaria em Seven Dials, mas sobretudo por nunca lhe ter passado
pela cabeça que ela pudesse pensar que estava grávida.
– Não, claro que não – respondeu. – Bem, pelo menos não me parece.
Não posso estar grávida! Pois não?
Mog riu.
– Se não te conhecesse, diria que não sabes como é que se fazem bebés
– disse.
Belle corou e deixou escapar uma pequena gargalhada. Desde que cas-
ara com Garth, nunca Mog dissera uma palavra a respeito do tempo em
que ela fora prostituta, e mesmo quando falava da época em que fora sua
criada e ama no bordel da mãe, arranjava sempre maneira de evitar
qualquer referência ao que se passava no resto da casa. Por isso, aquela ob-
líqua alusão ao assunto era tão surpreendente.
– Não tinha considerado essa possibilidade – respondeu.
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– Pois considera-a agora – aconselhou Mog, secamente. – Reparei que
ficaste verde ontem à noite quando eu estava a preparar aquela língua de
vaca. Fugiste da cozinha a sete pés.
– Foi porque tinha uma cheiro esquisito.
– Talvez, mas o cheiro da língua de vaca nunca te tinha incomodado.
Quando foi a última vez que tiveste o período?
Belle tentou pensar. Lembrava-se de o ter tido em maio, quando
houvera uma breve vaga de calor, mas mais nada. Disse-o a Mog.
– O que não quer dizer que não tenha tido outro. Só não me lembro –
acrescentou.
– Se esse foi o último, estarias agora com três meses – disse Mog, a ol-
har para Belle com uma expressão especulativa. – Tiveste mais alguns
sintomas?
– Bem, tenho-me sentido um pouco estranha – admitiu Belle. – Mas
não agoniada, nem nada disso.
– Não faças esse ar tão preocupado – disse Mog, num tom mais li-
geiro. – Se vais ter um filho, é uma bênção do céu e uma coisa que devia
alegrar-te. Eu ainda tenho esperança, mas talvez já seja demasiado velha.
A revelação apanhou Belle desprevenida. Nunca lhe passara pela
cabeça que Mog pudesse querer um filho. E, no entanto, a julgar pela ex-
pressão triste dos seus olhos ao dizer aquelas palavras, fora exatamente
isso que esperara ao casar com Garth.
– Claro que não és demasiado velha – apressou-se a dizer. – As mul-
heres têm filhos até aos quarenta e tal anos. Mas não tenho a certeza de que
seja a melhor altura para qualquer uma de nós, com a guerra e tudo o mais.
– Bem, eu sei que não vou ter filho nenhum. – Mog suspirou. – Mas tu
talvez vás, e com guerra ou sem ela, todos nós vamos adorar ter um novo
elemento na família. Imagina só como o Jimmy vai ficar entusiasmado!
– Não digas nada, por enquanto – avisou Belle. – Não me parece que
esteja grávida.
Mog limitou-se a olhá-la com a mesma expressão satisfeita que cos-
tumava fazer quando estava convencida de que ela é que sabia.
– Nunca me passaria pela cabeça dizer ao Jimmy qualquer coisa que
discutíssemos em privado, mas agora acho que é melhor voltar lá para
baixo e lavar mais alguns copos.
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Depois de Mog ter saído, Belle pousou a mão na barriga. Estava tão
lisa como sempre fora, mas era agradável pensar que talvez houvesse um
minúsculo bebé a crescer lá dentro. Em Nova Orleães, e também em Paris,
fora uma coisa a recear, e recorria a todas as medidas preventivas que con-
hecia para se certificar de que nunca aconteceria.
Estava bem familiarizada com a maior parte dos primeiros sintomas de
gravidez, por ser um assunto de que as outras raparigas em Nova Orleães
falavam constantemente. As repentinas aversões a determinados cheiros
eram dos mais comuns, tal como o peito sensível e os enjoos matinais. Mas
não tinha os seios particularmente sensíveis e não andava agoniada.
Ter um filho depois de casada era a ordem natural das coisas. Por
qualquer razão, no entanto, Belle não esperava que lhe acontecesse.
Pegou no lápis e recomeçou a desenhar, mas os seus pensamentos an-
davam por outros lados, e quando ouviu Garth, lá em baixo, tocar a sineta
para anunciar os últimos pedidos, ficou contente por a noite estar quase a
chegar ao fim.
Garth e Jimmy levaram muito mais tempo do que era costume a correr
com os últimos clientes. Belle espreitou pela janela da sala e viu os ho-
mens atravessarem aos tropeções a rua em grupos de dois e três, com per-
nas que pareciam feitas de gelatina e os braços passados pelos ombros uns
dos outros. Viu um deles estatelar-se de bruços na calçada. Não fazia ideia
se partiriam logo no dia seguinte para os campos de treino em França ou se
demorariam tempo os preparativos, mas era assustador pensar que dentro
de poucas semanas todos eles poderiam ter uma espingarda nas mãos.
Eram caixeiros de lojas, escriturários, assentadores de tijolos e jardineiros;
o mais perto que tinham estado de uma arma fora numa barraquinha de tiro
numa feira. Sentiu o estômago apertado de medo por eles, e teve a premon-
ição de que muitos não chegariam ao próximo aniversário.
Sacudiu a cabeça, para afastar estes negros pensamentos, e desceu até
ao pub para dar uma ajuda, sabendo que haveria muito que limpar depois
de uma noite tão concorrida.
Meia hora mais tarde, o balcão e a mesa estavam limpos, os bancos e a
cadeiras empilhados em cima deles, e a maior parte dos copos lavada e
seca. Mog parecia exausta. Garth estava a lavar à mangueirada o pátio das
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traseiras, enquanto praguejava entre dentes contra as poças de vomitado e
o estado de imundície em que ficara a casa de banho.
– Hoje fizemos mais do que a receita normal de uma semana inteira –
disse Jimmy, enquanto pegava numa bandeja carregada de copos e os arru-
mava nas prateleiras debaixo do balcão. – Mas espero que não voltemos a
ter outra noite como esta.
– Não te vais alistar também, pois não? – perguntou Belle, ansiosa.
Ele riu e interrompeu o que estava a fazer para lhe acariciar a face.
– O quê, e deixar sozinha a mulher mais bonita de Londres? Claro que
não, pelo menos enquanto não for obrigatório. E isso é pouco provável,
pois quem trataria das coisas em Inglaterra, se toda a gente com menos de
quarenta anos fosse mandada para França?
– Os velhos jarretas como eu – gritou Garth do pátio. – E se torno a ter
de limpar uma porcaria como esta, minto a respeito da idade e ofereço-me
como voluntário.

Nessa noite, Jimmy adormeceu quase mal se enfiou na cama, mas,


como sempre, tinha um braço passado pelo pescoço de Belle, dobrado
sobre as costas dela. Na escuridão do quarto, a ouvir-lhe a respiração
calma, Belle fez deslizar a mão direita até à barriga. Já tinha recuperado do
choque que a sugestão de Mog lhe causara, e ali, tão confortavelmente
aconchegada na cama, a ideia de ela e Jimmy terem um filho agradou-lhe.
Imaginava Mog e Garth a mimar a criança, sempre prontos para dar uma
ajuda, tão babados como quaisquer avós. E Jimmy seria um excelente pai;
era meigo, paciente e tinha um coração enorme.
Mas seria ela uma boa mãe? Não sabia nada de bebés: sem nunca ter
tido irmãos ou irmãs mais novos, e, criada como fora, nunca tivera opor-
tunidade de pegar num ao colo. O mais perto que alguma vez estivera de
um bebé fora ao ver as mulheres de Seven Dials a carregarem nos braços
os filhos embrulhados em xailes. Ali em Blackheath, a maior parte das
mães tinha amas que via a passear as crianças pela charneca, nos seus
carrinhos.
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Seria capaz de manter a loja a funcionar? Embora a ideia de desistir do
negócio não lhe agradasse, não ia com certeza fazer o que a mãe fizera
com ela: entregar o filho aos cuidados de uma Mog.
Ao pensar em Annie, perguntou-se como reagiria ela ao facto de ser
avó. Ficaria indiferente? Ou veria ali uma oportunidade para se redimir de
erros passados?
Esperara, quando Annie a ajudara a montar a loja, que se tornassem
mais próximas, mas tal não acontecera. Se não fosse ela a ir visitá-la uma
vez por mês, não haveria qualquer espécie de contacto entre as duas.
Annie continuava a gerir a pensão que comprara em King’s Cross
quando a velha casa de Jake’s Court fora destruída por um incêndio, e es-
tava a governar-se muito bem. Ninguém diria, pelas roupas elegantes que
usava e pelos seus modos refinados, que fora em tempos dona de um bor-
del. Belle suspeitava que também mantinha em segredo o facto de ter uma
filha, pelo que era pouco provável que ficasse muito entusiasmada com um
neto.
Passou a mão pelo ventre e, em silêncio, jurou a si mesma que havia
de dar ao filho ou filha todo o amor e afeto que nunca recebera da mãe.
CAPÍTULO 3

B elle abanava-se, com um jornal a fazer de leque. Estava tanto calor


dentro da loja que se sentia derreter. Não era a primeira vez, naqueles
últimos dias de calor sufocante, que perguntava a si mesma quem teria de-
cidido que as mulheres eram obrigadas a usar tanta roupa.
Vestia camisola interior, combinação, cuecas e meias, e por cima disto
um saiote com metros de tecido e um vestido justo, de mangas compridas e
gola subida. Tudo aquilo estava húmido de suor e doíam-lhe os pés, incha-
dos pelo calor, mas pensou que, mesmo assim, podia considerar-se mais
feliz do que a maior parte das mulheres, que se julgavam obrigadas a
suportar também um espartilho de barbas de baleia.
Eram quatro da tarde e não tivera uma única cliente desde as dez da
manhã. Mais cedo, tinha passado muita gente a caminho da charneca. A
maioria das senhoras levava guarda-sóis, e Belle pensou que se lhe tivesse
ocorrido ter alguns em stock poderia ter feito meia dúzia de vendas naquele
dia.
Mas estava tudo muito sossegado para uma sexta-feira, talvez um
compasso de espera, tendo em vista que a feira abriria essa noite na
charneca. No ano anterior, ficara verdadeiramente entusiasmada com o
evento; Jimmy levara-a lá no sábado à noite e tinham-se divertido imenso
nos balouços, no carrossel e no escorrega, e regressado a casa com um
coco e um peixinho-dourado que ele ganhara. Naquele ano, porém, o
entusiasmo esfumara-se. Bem podia ser o último fim de semana de agosto,
e para toda a gente talvez o fim do verão, mas a erva da charneca estava
castanha e coberta de pó devido à falta de chuva. Naquele ano, a concor-
rência seria ainda maior, porque as pessoas estavam decididas a
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divertirem-se enquanto podiam, empurrando a guerra para o segundo plano
dos seus pensamentos.
Desde aquela agitada noite em que tantos jovens se tinham alistado,
falara-se muito menos de guerra mas, em contrapartida, crescera o mur-
múrio de queixas contra os ricos que estavam a açambarcar comida. Em al-
guns casos, tinham deixado lojas completamente vazias, e o que se dizia
era que isso ia fazer os preços subir em flecha. Mas Belle vendera muito
mais chapéus, porque era cada vez maior o número de namorados que se
apressavam a casar.
Bem gostaria que ela e Jimmy pudessem ir até à praia no dia seguinte.
Seria maravilhoso inspirar a brisa que soprava do mar e fugir durante algu-
mas horas ao fedor dos esgotos que a mantinha perpetuamente agoniada.
Mas sabia que, com a feira, Jimmy não poderia deixar Garth e Mog sozin-
hos no pub.
Aproximou-se da porta aberta da loja, ansiosa por um pouco de ar
mais fresco, e encostou-se ao umbral, a perguntar a si mesma, sem pensar
muito a sério nisso, se aquela noite seria uma boa altura para falar a Jimmy
no bebé. Dois dias antes, fora finalmente consultar o Dr. Towle, em Lee
Park, e o médico confirmara-lhe que estava de facto grávida de três meses
e meio. Quase logo a seguir a Mog lhe ter sugerido que talvez estivesse, os
sintomas tinham aparecido. Primeiro, tornara-se cada vez mais sensível a
cheiros e deixara de beber chá. Mas agora tinha os seios mais cheios e dor-
idos, e o elástico do cós do saiote parecia-lhe mais apertado.
De momento, só Mog sabia, e parecia ser de opinião que não era ainda
a melhor altura para dar a notícia a Jimmy ou a Garth. Belle achava que
aquilo era a maior tolice que alguma vez ouvira, pois o que poderia ser
mais natural do que informar o marido de que ia ter um filho ou uma filha?
Mas já reparara que as mulheres da terra nunca falavam de gravidez, e com
receio de cometer uma gafe social, guardara para si a novidade, até mais
ver.
Um jovem casal subia a rua. A rapariga, provavelmente mais nova do
que ela, pequena e magra, usava um vestido rosa-pálido, com folhos nas
mangas e na saia. Dava o braço a um homem poucos anos mais velho, que,
com o seu sóbrio fato escuro e colarinho engomado, tinha todo o ar de ser
funcionário de um banco. O rapaz falava e a rapariga olhava para ele,
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embevecida, pendente de cada uma das suas palavras. Dado que parecia
demasiado jovem para ser casada, era invulgar o facto de não haver nin-
guém a acompanhá-los para servir de pau de cabeleira. Intimamente, Belle
achava ridículo que um rapaz e uma rapariga não pudessem passear juntos
sem provocar falatório, mas as coisas eram o que eram, e ali era assim.
Quando ela e Mog tinham ido viver para Blackheath, não havia tido
outro remédio senão aceitar aqueles peculiares e limitadores costumes, sob
pena de não se integrarem na comunidade e tornarem-se alvo de coscuvil-
hices. Belle conformara-se às regras, mas lá no fundo sentia-se superior
porque sabia muito mais a respeito de homens e da vida em geral do que
qualquer das mulheres afetadas para as quais fazia chapéus.
Agora que ia ser mãe, no entanto, aquele conhecimento do mundo
deixava-a um pouco triste e preocupada. Como poderia criar uma filha de
modo a ser casta, ensinar-lhe que devia obedecer ao marido e a todas as in-
úmeras regras de etiqueta para que pudesse integrar-se numa sociedade re-
quintada quando ela própria violara todas essas regras?
Ficou a observar o jovem casal até o ver desaparecer na esquina a
caminho da charneca, e então olhou para o lado esquerdo, a considerar a
possibilidade de fechar a loja e ir para casa, uma vez que a povoação pare-
cia deserta. Mais ao fundo da rua formara-se uma bruma de calor que mais
parecia uma poça de água. Perguntou a si mesma se aquilo seria uma
miragem, porque ouvira dizer que, nos desertos, as pessoas viam muitas
vezes água onde ela na verdade não existia.
De súbito, um grito estridente e o som ribombante das rodas de uma
carruagem arrancaram-na ao seu devaneio.
Olhou de novo para a direita e viu uma pequena carruagem puxada por
dois cavalos castanhos deter-se bruscamente quando o cocheiro puxou as
rédeas. No chão, diante das patas dos cavalos, jazia, enrodilhada, uma mul-
her. O cocheiro devia vir a uma boa velocidade, e, ao que parecia, a mulher
atravessara-se-lhe no caminho.
Enquanto Belle corria para ajudar, o cocheiro saltou da boleia.
– Atravessou a rua sem sequer olhar. Podia tê-la atropelado – arquejou
o homem, lívido de susto.
– Fez bem em parar – disse Belle, e ajoelhou-se ao lado da mulher.
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O chapéu tinha caído e o cabelo tapava-lhe o rosto. Belle afastou-o
cuidadosamente para trás, meio à espera de ver uma horrível ferida, se o
casco de um dos cavalos tivesse chegado a atingi-la. Mas não havia
sangue, apenas um arranhão na testa, que parecia causado pela pancada no
chão. Se tinha tropeçado e ficado inconsciente em consequência da queda
ou se tinha desmaiado era algo que Belle não tinha modo de saber, uma
vez que não vira o que acontecera. A mulher era jovem, talvez com pouco
mais de vinte anos, e vestia um elegante vestido azul-pálido.
– Consegue ouvir-me? – perguntou Belle enquanto passava rapida-
mente os olhos pelo corpo da desconhecida, à procura de qualquer coisa
que pudesse sugerir outros ferimentos.
As pálpebras da mulher estremeceram e abriram-se.
– Que aconteceu? – perguntou, numa voz fraca e pouco nítida.
– Penso que deve ter desmaiado, e teve muita sorte por não ter sido at-
ropelada pela carruagem – explicou Belle. – Consegue mexer os braços e
as pernas?
A mulher olhou para ela com uma expressão vaga, claramente em
choque.
Belle virou a cabeça para olhar para o cocheiro, um homenzinho baixo
e anafado que envergava uma libré verde e torcia as mãos, parecendo tão
em estado de choque como a mulher caída.
– Chegou a atingi-la? – perguntou.
– Não sei – respondeu o homem. – Saiu de repente do passeio e
quando lhe gritei caiu como uma pedra. Puxei as rédeas com tanta força
que só me admira os cavalos não se terem empinado. Pode ter sido at-
ingida por um casco, mas eu estava tão perto que não via nada para lá dos
cavalos. Mas a culpa não foi minha.
– Não, claro que não – disse Belle, e puxou o vestido da mulher de
modo a tapar-lhe as pernas. – Não há sangue, e ela parece mais aturdida do
que ferida. Penso que desmaiou.
Entretanto, tinha-se juntado um pequeno grupo de pessoas, e apesar de
saber que não se deve mover uma pessoa ferida, Belle não podia deixar a
mulher caída no meio da rua. Viu um homem corpulento, de cabelo escuro,
entre os espetadores, e chamou-o com um gesto da mão.
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– Importa-se de me ajudar a levá-la para a minha loja? – pediu. –
Posso chamar o médico de lá.
– Eu estou bem – disse a mulher, com uma voz trémula. – Pode só
ajudar-me a pôr-me de pé?
O homem avançou, inclinou-se e levantou a mulher do chão como se
ela não pesasse nada. Belle apanhou o chapéu azul que ficara caído e apon-
tou para a loja.
– Também parece muito abalado – disse, dirigindo-se ao cocheiro. –
Quer vir connosco? Preparo-lhe uma chávena de chá.
– É muita bondade sua, menina – respondeu o homem –, mas tenho de
ir buscar a minha senhora.
Belle já aprendera, no tempo passado em Blackheath, que os criados
tinham muitas vezes receio de desagradar aos patrões.
– Se tem a certeza de que está bem – concordou Belle. – A jovem sen-
hora não corre perigo, eu trato dela.
Quando chegou à loja, o homem que se prestara a ajudar estava a
pousar a desconhecida numa cadeira. Belle agradeceu-lhe antes de ele sair
e voltou-se para a mulher ferida.
– Chamo-me Belle Reilly – disse. – Consegue dizer-me o seu nome?
– Miranda Forbes-Alton – respondeu a mulher, e deixou-se cair para
trás na cadeira. Estava muito pálida, e tinha o arranhão na testa sujo de
terra.
Por qualquer razão, o nome Forbes-Alton pareceu familiar a Belle,
mas não conseguia situá-lo nas suas recordações.
– Muito bem, Miss Forbes-Alton – disse, num tom cheio de firmeza. –
Vou fechar a porta da loja e lavar-lhe a testa.
O instinto dizia-lhe que a mulher se encontrava ainda em estado de
choque e que isso poderia fazê-la vomitar, e não queria público. Fechou a
porta da loja e baixou as persianas.
A primeira coisa que fez foi dar-lhe água para beber. Esperou um pou-
co, para se certificar de que não ia vomitar, e só então foi buscar uma bacia
com água e um pano limpo para lhe lavar a testa.
– Estava um calor horrível e eu vinha a subir a rua – explicou Miss
Forbes-Alton enquanto Belle lhe limpava a ferida com gestos cuidadosos.
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– Estava a pensar que precisava de beber água, mas não me lembro de
nada depois disso. Como fui parar ao meio da rua?
– Penso que desmaiou – respondeu Belle. – Já alguma vez lhe tinha
acontecido?
– Só quando estava no colégio – disse Miranda, e fez uma careta
quando Belle removeu da ferida uma pequena pedra. – Aconteceu-me vári-
as vezes quando tínhamos de tomar a comunhão antes do pequeno-almoço.
A carruagem atingiu-me?
– Julgo que não – respondeu Belle. – Doem-lhe os braços ou as
pernas?
Miranda passou uma mão pelas pernas, por baixo do vestido.
– Não, só a cabeça.
– Foi uma sorte o cocheiro ter conseguido parar a tempo. Disse que
saiu do passeio e caiu mesmo à frente dele. Se aqueles cavalos a tivessem
atingido, podia ter sido muito grave.
Uma vez limpa a ferida, Belle dirigiu-se à sala das traseiras e pôs a
chaleira ao lume. Enquanto esperava que a água fervesse, olhou pela porta
e estudou a mulher um pouco mais atentamente. Apesar de estar aturdida e
abalada, era óbvio pela voz, pelas maneiras e pelas roupas que pertencia à
classe alta. Só os elegantes sapatos bege que calçava tinham de certeza
custado mais dinheiro do que o mais caro dos chapéus que tinha na loja, e
o vestido azul era de seda autêntica.
– Sempre admirei a sua loja – disse Miranda com uma voz muito mais
forte, que surpreendeu Belle. Tinha aquela maneira nítida e precisa de falar
que era característica da sua classe. – Alguém disse à minha mãe que é
francesa, mas não é, pois não?
– Não, mas aprendi chapelaria em Paris – respondeu Belle. – Vive aqui
perto?
– Sim, no Paragon. A mamã comprou-lhe um chapéu quando abriu a
loja. É o preferido dela, veludo púrpura com enfeites de violetas à volta da
aba.
De repente, Belle soube por que razão o nome Forbes-Alton lhe pare-
cera familiar. Era o de uma senhora muito empertigada que exigira que o
chapéu que acabava de comprar lhe fosse levado a casa. Belle só con-
cordara por ser o seu primeiro dia, e quando fora entregar o chapéu ao fim
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da tarde, o mordomo recebera-o e fechara-lhe a porta na cara sem sequer
uma palavra de agradecimento pelo incómodo.
A casa era uma mansão magnífica, mas a verdade era que todo o Par-
agon, um conjunto de casas georgianas de três pisos ligadas por colunatas,
era magnífico, de certeza a área mais rica de Blackheath.
– Lembro-me da sua mãe – disse. – Fui entregar o chapéu a vossa casa
no Paragon. Há de estar preocupada consigo, menina. Quer que telefone
para vir alguém buscá-la?
Belle tinha telefone instalado há duas ou três semanas apenas. O dono
da loja de vestidos, um pouco mais abaixo na rua, dissera-lhe que era de
toda a conveniência ter um, pois as senhoras ricas gostavam de marcar,
para irem escolher um vestido ou um chapéu, a uma hora em que fossem
as únicas clientes. Até então, Belle sempre considerara o telefone uma
moda que nunca pegaria junto das pessoas vulgares. Mas estava desejosa
de atrair uma clientela mais abastada, pelo que decidira experimentar.
Desde que o mandara instalar, já tinha recebido vários pedidos de inform-
ação, e era agradável poder encomendar os materiais para os seus chapéus
sem ser obrigada a deslocar-se aos armazéns. Estava agora convencida de
que, dentro de poucos anos, todas as empresas e muitas casas particulares
teriam um.
– Por favor, trate-me por Miranda. E não, não quero que telefone seja a
quem for. Mais um ou dois minutos e fico ótima.
Belle fez o chá, deitando uma porção extra de açúcar no de Miranda, e
insistiu com ela para que comesse também alguns biscoitos. Miranda con-
tinuava muito pálida, mas Belle já reparara que a maior parte das mulheres
da classe dela tinham aquele aspeto quase cadavérico.
– Não vou deixá-la ir para casa sozinha – afirmou, enquanto entregava
a Miranda a chávena de chá. – Vou acompanhá-la e vou aconselhar a sua
mãe a chamar um médico. Sei que hoje está muito calor, mas isso não de-
via ser razão para a fazer desmaiar.
Miranda abriu muito os olhos, horrorizada.
– Não! Não preciso de companhia nem de médico – disse, com a agit-
ação a fazer-lhe subir o tom da voz.
Belle ficou imediatamente desconfiada. A maior parte das pessoas
ficaria grata por ter ajuda e apoio, se tivesse passado por uma situação de
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que poderiam ter resultado ferimentos graves ou até mesmo a morte. E se a
mãe de Miranda não era sequer capaz de levar para casa uma chapeleira,
dificilmente poderia ter criado uma filha que fosse independente.
– Poderá ser por ter feito hoje qualquer coisa que não quer que a sua
família saiba? – perguntou, num tom jovial.
– É franca ao ponto de roçar a má-educação – replicou Miranda,
empinando o seu fino e aristocrático nariz. – Agradeço ter-me ajudado,
mas isso não lhe dá o direito de me interrogar.
Belle encolheu os ombros. Tudo indicava que Miranda era tão pedante
e pomposa como a mãe. Calculou que tinha sido educada na convicção de
que as pessoas «do comércio» tinham por obrigação fazer vénias às classes
superiores.
– Acredito que qualquer mulher estenderia uma mão amiga a outra que
lhe parecesse ter um problema. Deduzo pela sua suscetibilidade que sabe
exatamente porque foi que desmaiou e receia que, se eu a acompanhar a
casa, a sua mãe insista em chamar um médico.
Belle estava, por assim dizer, a atirar o barro à parede, mas quando viu
a expressão de alarme no rosto de Miranda soube que tinha tocado num
ponto sensível.
Talvez tenha sido o facto de, naquelas últimas semanas, se ter sentido
tantas vezes zonza. Houvera até um par de ocasiões em que julgara ir des-
maiar. E Miranda não usava uma aliança de casamento no dedo, nem se-
quer um anel de noivado. Seria esse o género de problema que a afligia?
Tinha perfeita consciência de que poderia facilmente ofender a jovem,
o que não deixaria de ter graves consequências para o seu negócio. Mas
não estava na sua natureza virar a cara quando o instinto lhe dizia que al-
guém precisava de ajuda, de modo que se aproximou dela e ajoelhou-se
junto da cadeira.
– Vai ter um bebé? – perguntou em voz baixa. – Pode dizer-me que me
meta na minha vida, se quiser; mas se está, vai precisar de falar com al-
guém. Pode confiar em mim, não direi uma palavra seja a quem for.
Miranda não precisou de responder. As lágrimas subiram-lhe aos olhos
e ela escondeu a cara nas mãos, esquecida toda a altivez.
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Belle sentiu uma enorme vaga de compaixão crescer-lhe no peito.
Conhecia o bastante a respeito da alta sociedade para saber que um filho
nascido fora do matrimónio causaria um escândalo tremendo.
– Não pode casar rapidamente? – perguntou, ao mesmo tempo que ab-
raçava Miranda para a confortar.
– Ele já é casado – soluçou Miranda. – Eu não sabia, quando aconte-
ceu. Mas isso já não importa porque hoje fui ver uma mulher e ela resolveu
o problema.
Belle sentiu o estômago contorcer-se-lhe. Uma das raparigas do
Martha’s, em Nova Orleães, tinha procurado uma mulher que «resolvera»
o problema da sua gravidez indesejada. Sabia o que isso implicava.
– Foi ver essa mulher hoje? Ela fê-lo com água e sabão e um duche?
Miranda confirmou com um gesto da cabeça.
– Pensei que sairia enquanto estava lá, mas ela disse-me que fosse para
casa e que aconteceria dentro de algumas horas. Quando ia a subir a rua
vinda da estação, senti-me tonta e a única coisa de que me lembro depois
disso é de vê-la a meu lado.
Belle adivinhou que Miranda era suficientemente ingénua para acredit-
ar que abortar uma gravidez no seu início era um processo simples e indol-
or. Como era evidente, a aborcionista não a esclarecera, com medo de per-
der o pagamento.
– Como se sente agora? – perguntou, pousando uma mão no ventre de
Miranda. A jovem era muito esbelta, mas apesar disso usava um espartilho
apertado.
– Tenho uma dor aguda – disse Miranda.
Belle inspirou fundo, para se acalmar.
Sabia que o mais sensato seria deixar Miranda ir para casa, como ela já
tinha planeado; ao fim e ao cabo, a jovem aristocrata não lhe era nada. Mas
duvidava que Miranda fizesse a mínima ideia de como as dores iam ser vi-
olentas, ou que muito provavelmente perderia uma grande quantidade de
sangue. Escondida no seu quarto, era duvidoso que conseguisse aguentar
tudo aquilo sem gritar. E com uma casa cheia de criados, e uma mãe tirân-
ica, o seu segredo seria revelado e ela ficaria arruinada para sempre.
Não conseguia suportar a ideia de qualquer mulher ter de enfrentar
sozinha um tal tormento.
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– Não tem uma amiga em cuja casa possa passar esta noite? –
perguntou.
Miranda olhou para ela, confusa.
– Porque havia de querer fazer semelhante coisa?
Belle suspirou, a perguntar-se como era possível alguém ser tão
estúpido.
– Porque pode precisar de ajuda. Não é uma coisa bonita – disse.
Os olhos azul-claros de Miranda abriram-se muito, de horror.
– Então não posso procurar ninguém que conheça. Ficariam todos es-
candalizados. Que vou eu fazer? Está a assustar-me.
Belle pegou na mão de Miranda e estudou-a. Não era exatamente bon-
ita, tinha um nariz demasiado afilado e uns lábios finos de mais, mas havia
nela qualquer coisa de muito atraente, mesmo com aqueles olhos avermel-
hados pelas lágrimas. Recordou todos os apertos em que ela própria já se
vira metida. Arranjara maneira de sair da maior parte deles sem ajuda, e a
experiência tornara-a mais forte. Mas não conseguia decidir-se a deixar
aquela rapariga perder tudo mandando-a para casa. Adivinhava que a mãe
era do género de a repudiar se ela a envergonhasse.
– Pode ficar aqui – disse, impulsivamente.
– Aqui?
Miranda olhou em redor, como que confundida pela sugestão.
– Não quis dizer aqui na loja – apressou-se Belle a explicar. – Referia-
me à sala das traseiras. Posso instalá-la lá com algum conforto. Há água e
uma casa de banho no pátio. Ficarei a tomar conta de si. Mas tem de tele-
fonar para casa e arranjar uma desculpa qualquer.
– Faria isso por mim? – Os olhos de Miranda voltaram a encher-se de
lágrimas. – Mas não me conhece! E, além disso, é casada. O seu marido há
de estar à espera de que vá para casa.
Belle sabia que Jimmy ficaria horrorizado por ela se ter envolvido,
mas não fazia tenção de lhe dizer fosse o que fosse, pelo menos enquanto
não estivesse tudo acabado. Falaria com Mog e recorreria à ajuda dela.
– Vou ser franca. Não quero isto – disse, com toda a simplicidade. –
Mas também não quero ter na consciência o que aconteceria se a mandasse
para casa sem ninguém para a ajudar. A sua reputação ficaria destruída se
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isto se soubesse. Conheço a sua mãe, lembra-se? Não estou a vê-la a ser
muito bondosa para consigo.
– Porque é que se importa?
– Digamos que é porque passei por alguns tempos difíceis no passado.
Ora bem, em casa de quem pode dizer à sua mãe que vai ficar?
– Esta manhã disse-lhe que ia visitar uma amiga que mora em Bel-
gravia. Por vezes passo a noite em casa dela.
– O telefone está ali – disse Belle. – Use-o.
Voltou à sala das traseiras enquanto Miranda pedia à telefonista da
central que estabelecesse a ligação. Só esperava que não fosse possível a
Mrs. Forbes-Alton descobrir que o telefonema fora feito de Blackheath e
não de Belgravia.
A sala das traseiras tinha a mesma largura que a loja, mas era menos
funda, e, num dos extremos, uma porta abria para um pequeno pátio
murado, onde ficava a casa de banho. No lado esquerdo havia prateleiras
até ao teto, cheias de caixas de aplicações, tela e rolos de feltro. Por baixo
ficava a bancada de trabalho, com os blocos e a máquina de vapor para dar
forma aos chapéus. À direita, passada a porta, havia um lavatório, um fo-
gão a gás e um pequeno fogão a lenha que Belle costumava acender nos di-
as mais frios. Se mudasse a pequena mesa para o outro lado, para junto da
bancada de trabalho, poderia improvisar no chão uma espécie de cama.
Felizmente, tinha várias almofadas, que levara de Seven Dials com a
intenção lhes fazer fronhas novas. Havia também um lençol, já velho mas
limpo, que servira para proteger do pó móveis e materiais aquando das
obras que fizera na loja.
Ouvia Miranda a falar ao telefone. Ao que parecia, a mãe não se en-
contrava em casa e ela estava a deixar recado a um dos criados. O calor era
intenso, pelo que Belle abriu a porta que dava para o pátio e correu a cor-
tina de contas para impedir as moscas de entrarem, e em seguida dispôs as
almofadas no chão e cobriu-as com o lençol.
– A mamã e o papá saíram e só estarão em casa ao fim da tarde – disse
Miranda, atrás dela. Quando se voltou, Belle viu-a parada no umbral, a ol-
har com uma expressão ansiosa para a cama improvisada. – Ainda bem,
porque o mais certo era a mamã ter-me interrogado durante horas.
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– Ótimo. Agora vou ter de deixá-la sozinha por um instante enquanto
dou um pulo a casa – respondeu Belle. Bem via que Miranda começava a
ficar assustada, agora que sabia que não ia ser tão simples como esperara.
Mas não podia fazer outra coisa. Tinha de ir a casa dar uma desculpa
qualquer para passar a noite fora, e precisava ainda de munir-se de lençóis
lavados, toalhas e outras coisas. – Não se assuste, não demoro nada.
Porque é que não despe o vestido e o espartilho? Ficará muito mais con-
fortável, e eu trago-lhe uma das minhas camisas de noite para vestir.
Saiu pelo portão do pátio, que dava acesso a um beco estreito, depois
de avisar Miranda de que regressaria pelo mesmo caminho. Enquanto cam-
inhava em direção a casa, ia fazendo mentalmente a lista das coisas de que
precisaria, ao mesmo tempo que tentava pensar no que diria a Jimmy.
A sorte esteve com ela. Encontrou Mog sozinha na cozinha, a fazer um
bolo. Jimmy e Garth tinham ido a Lewisham encomendar cadeiras novas
para o pub.
Belle era incapaz de mentir a Mog, de modo que despejou toda a ver-
dade a respeito de Miranda.
– Já sei o que vais dizer – disse, quando acabou. – Devia tê-la
mandado para casa e não me ter envolvido, mas não fui capaz, Mog.
Mog parecia fulminada e não disse nada por um momento. Belle quase
conseguia ver as emoções contraditórias que se debatiam dentro dela.
Por fim, fez um gesto com as mãos, como que a aceitar que Belle não
tivera outro remédio senão ajudar a rapariga.
– Acho que teria feito o mesmo. Mas, Belle, estas coisas podem dar
para o torto. Já ouvi falar de mulheres que morreram. Prometes-me que se
alguma coisa correr mal, se ela começar a ter febre, chamas o médico?
– Claro – respondeu Belle. Já tinha inventado uma pequena história
para uma emergência: diria que o quase-acidente com a carruagem provo-
cara em Miranda o início de um aborto e que lhe parecera melhor para ela
ficar na loja do que tentar chegar a casa.
Foi bem típico de Mog não perder tempo com mais sermões. Em vez
disso, correu escadas acima e juntou lençóis, um par de toalhas, uma manta
e alguns panos limpos para estancar a hemorragia. Voltou a descer num in-
stante, ainda antes de Belle ter acabado de comer uma sanduíche feita à
pressa.
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Mog trazia também um medicamento num frasco castanho.
– Dá-lhe uma ou duas colheres de chá disto de três em três ou quatro
em quatro horas. Vai aliviar as dores e ajudar a controlar a temperatura –
disse. – Vou dizer ao Jimmy que foste para casa da Lisette porque o Noah
está fora e ela ficou sozinha. Ele vai achar normal, estando ela à espera de
bebé, e tudo isso. Mas não te esqueças de falar com a Lisette, não vá ela
deixar o gato fugir do saco.
Belle subiu ao quarto para ir buscar umas coisas e quando voltou en-
controu Mog a enfiar lençóis, toalhas e panos num pequeno saco de
viagem. Um outro, mais pequeno, continha um frasco de sopa para aque-
cer, algumas fatias de tarte de maçã e uma pequena garrafa de brandy.
– Só para o caso de terem fome – disse, tirando as coisas das mãos de
Belle e guardando-as no saco de viagem. – E o brandy com leite quente
poderá ajudar a acalmá-la, depois.
Belle passou os braços à volta dela e abraçou-a com força.
– És um amor de pessoa – disse. – Obrigada por não estares zangada
comigo.
Mog afastou-se, mas segurou os braços de Belle e olhou-a bem no
fundo dos olhos.
– Como poderia zangar-me contigo por teres bom coração? – pergun-
tou. – Passo lá pela loja amanhã de manhã, antes de os homens se
levantarem. Mantém-na limpa e ferve água para a lavar por baixo. É
provável que vomite quando finalmente acontecer, não te assustes. Mas se
perder os sentidos ou se houver uma hemorragia muito forte, chama imedi-
atamente o médico, diga ela o que disser.
Belle percebeu que Mog já devia ter ajudado outras raparigas a passar
por aquela situação. Mais uma parte do seu passado que nunca revelara.
– Está bem – respondeu, subitamente assustada pelas potenciais con-
sequências daquilo em que se metera.
Mog voltou a abraçá-la.
– Estarei contigo em espírito, já que não posso estar em pessoa. Agora
vai, antes que o Jimmy regresse.
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Miranda estava sentada num banco junto à porta aberta das traseiras
quando Belle entrou, atrapalhada pelos dois sacos, pelo portão do pátio.
Continuava vestida e tinha o rosto cinzento de ansiedade.
– Está tanto calor – lamuriou-se. – E dói-me a barriga.
– É bom sinal – disse Belle, vivamente. – Quer dizer que está a
começar a acontecer. Porque foi que não despiu o vestido?
– Não consegui desapertar os botões – respondeu Miranda. – Em casa
temos uma criada que trata disso.
– Bem, aqui não há criadas – disse Belle e, pousando os sacos, obrigou
Miranda a voltar-se e desabotoou-lhe o vestido. O espartilho por baixo da
camisa estava apertado com tanta força que era quase um milagre ela con-
seguir respirar. Belle desapertou rapidamente os atilhos. – Dispa o resto –
acrescentou, enquanto procurava no saco de viagem a camisa de noite que
levara para ela.
Miranda voltou-se enquanto despia a combinação e a camisa, e Belle
fez uma careta ao ver os vergões vermelhos que o espartilho lhe deixara na
pele nua das costas e da cintura. Enfiou a camisa de noite pela cabeça de
Miranda e disse-lhe que tirasse também as cuecas e as meias.
– Vou aquecer água para se lavar como deve ser aí em baixo – disse. –
Mas, para já, continue sentada enquanto eu faço a cama.

Às nove já era de noite e ficara muito mais fresco. Miranda estava


deitada na cama, agora feita com lençóis lavados, e Belle tinha ido buscar
uma das cadeiras da loja para se sentar. Miranda comera um pouco de pão
e sopa e parecia mais relaxada, e só com a luz que Belle usava na bancada
de trabalho acesa, a sala tinha um aspeto quase acolhedor.
– Fale-me do homem – disse Belle. Via que Miranda estava a ter dores
a intervalos regulares, mas até ao momento, segundo ela, nada pior do que
as da menstruação. – É alguém que a sua família conheça?
Miranda já lhe contara que tinha dois irmãos mais velhos, casados e
com as suas próprias casas, e uma irmã mais nova, Amy, de vinte anos e
noiva de um solicitador. Quanto a ela, Miranda, tinha vinte e três. Quando
Belle lhe perguntara o que fazia o pai, parecera surpreendida.
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– Fazer? – perguntara. – Gere a propriedade no Sussex, claro. Era isso
que queria dizer?
Belle deduzira então que Mr. Forbes-Alton herdara a fortuna e tudo o
que tinha de fazer era manter debaixo de olho os que trabalhavam na sua
propriedade rural e lhe proporcionavam o dinheiro com que mantinha uma
luxuosa mansão em Londres. Segundo Miranda, tinham regressado re-
centemente de um mês passado no Sussex. Dissera que vivera aterrorizada
pela ideia de a mãe querer ficar mais tempo, pois sabia que tinha de fazer o
aborto o mais depressa possível.
– Não, a minha família não o conhece – disse. – Conheci-o em Green-
wich Park, na primavera. Tinha ido passear sozinha, e escorreguei na lama.
Ele ajudou-me a levantar, mas como tinha magoado o tornozelo, ofereceu-
se para me levar a casa. Foi tão encantador, divertido, interessante e aten-
cioso. Há já alguns anos que os meus pais andam a tentar casar-me, mas os
cavalheiros que eles consideram adequados são sempre tão aborrecidos e
sérios.
– E imagino que também não devia ter ido passear sozinha – sugeriu
Belle.
Miranda esboçou um meio sorriso.
– Não. A mamã teria ficado furiosa se soubesse. E também não podia
convidar o Frank a ir visitar-me, uma vez que não tínhamos sido apresenta-
dos por familiares ou amigos. Por isso, começámos a encontrar-nos em se-
gredo logo desde o princípio.
Belle calculou que Frank devia ser um perfeito patife. Aproveitara-se
de Miranda sabendo perfeitamente que, não podendo ela convidá-lo para
conhecer os pais, estava à vontade para inventar a patranha que quisesse
sem receio de ser desmascarado.
– O que foi que ele lhe contou a respeito de si mesmo? – perguntou.
– Muito pouco. Que havia para contar? Um cavalheiro com meios de
fortuna. – Miranda encolheu os ombros. – Vestia bem, e disse que vivia
em Westminster.
– Onde ia com ele?
– Íamos sobretudo passear, quase sempre para os lados de Greenwich,
porque eu não podia correr o risco de alguém de Blackheath nos ver juntos.
Por vezes apanhávamos um dos barcos que sobem o rio e íamos almoçar.
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Só podia estar com ele uma vez por semana, ou a minha ausência seria
notada.
– O que estava a perguntar era aonde foi que ele a levou para a seduzir
– disse Belle.
Miranda corou.
– A um quarto em Greenwich.
Belle abanou a cabeça.
– E isso não pareceu estranho, depois de ele dizer que vivia em
Westminster?
– Disse que os criados poderiam falar. Por essa altura, eu estava tão
apaixonada que teria ido com ele para qualquer lado.
– E quando foi que ele lhe disse que era casado?
– Quando eu lhe disse que achava que talvez estivesse grávida. – Os
olhos de Miranda voltaram a encher-se de lágrimas. – Estava sinceramente
à espera de que ele me dissesse para eu não me preocupar, que casaríamos
imediatamente. Mas ele nem sequer olhou para mim. Estávamos numa
casa de chá, e ele olhou pela janela e disse: «Nesse caso, tens um prob-
lema.» Nem sequer foi «temos» um problema. Comecei a chorar, e percebi
que isso o irritava. Saímos da casa de chá e ele disse que eu sempre
soubera que ele era casado.
– Muito habilidoso, para dar a entender que a culpa era sua! – exclam-
ou Belle. – Que patife!
Miranda suspirou e fez uma careta ao sentir uma pontada de dor mais
forte.
– Combinávamos sempre o próximo encontro. Quando me disse que
nos encontraríamos à hora do costume no roseiral de Greenwich Park, na
semana seguinte, tive a esperança de que, com tempo para pensar, ele con-
seguisse encontrar uma solução. Despediu-se de mim com um beijo junto
ao Colégio Naval, em Greenwich, com a mesma ternura de sempre. Mas
foi a última vez que o vi.
– E suponho que não tem maneira de contactar com ele?
Miranda abanou a cabeça.
– Não tinha uma morada, nada senão pequenas histórias a respeito de
pessoas que, desconfio agora, o mais certo é nem sequer serem verdadeir-
as. Fui à casa de chá onde costumávamos ir, em Greenwich, e perguntei à
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rapariga que servia ao balcão se o tinha visto, mas ela respondeu-me que
ele só lá ia comigo. Que mais podia eu fazer? Já tinha ido à casa onde ele
me levou algumas vezes e que me tinha dito ser de um amigo, mas quando
falei com uma pessoa de lá fiquei a saber que era um lugar onde arren-
davam quartos à hora.
Belle pegou na mão de Miranda e apertou-lha. Calculava que descobrir
que tinha sido usada como uma prostituta, e sem sequer ser paga, fosse a
pior das humilhações.
– Depois desta noite, deve pôr tudo isso para trás das costas – disse,
docemente. – A maior parte das pessoas tem no passado qualquer coisa de
que se envergonha. Mas a sua única culpa é ter sido um pouco ingénua. O
mau foi ele, ao fingir que a amava.
– Essa é a parte que mais magoa – disse Miranda. – Amava-o muito,
arrisquei tudo para estar com ele. Como pode alguém fazer uma coisa as-
sim a outra pessoa?
– Acho que há pessoas que já nascem más – disse Belle. – Estou con-
vencida de que é useiro e vezeiro nestes truques, mas ao menos não tentou
sacar-lhe dinheiro.
Miranda fez um ar envergonhado.
– Dei-lhe cinquenta libras, uma vez – confessou. – Foi duas semanas
antes de lhe dizer que achava que talvez estivesse grávida. Ele andava a
dizer-me há já algum tempo que sabia de um terreno nos arredores de Lon-
dres que era ótimo para construir. Até me mostrou alguns desenhos de
pequenas moradias, perfeitas para jovens casais que quisessem uma casa
no campo, não muito cara e que lhes permitisse deslocarem-se à cidade to-
dos os dias para trabalhar.
Belle adivinhou o que se ia seguir.
– Suponho que lhe disse que tinha todos os seus fundos aplicados e
que precisava de dinheiro vivo para segurar o terreno.
Miranda olhou para ela, espantada.
– Como é que sabe?
– Instinto – disse Belle. – E a Miranda ofereceu-se para lhe emprestar
as suas poupanças.
– Ele queria cem, mas eu não tinha tanto dinheiro. Prometeu devolver-
mas logo que vendesse os primeiros lotes.
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Belle sentiu um nó de fúria no estômago face a tanta baixeza.
– Detesto dizer-lhe isto, Miranda, mas penso que tem de enfrentar o
facto de que obter dinheiro de si foi a intenção dele a partir do momento
em que soube onde vivia – disse. – As boas roupas, os modos e até o lugar
onde a encontrou indicam que andava ativamente à procura de alguém para
enganar. É obviamente um trapaceiro profissional.
– Não acredita então que seja casado?
Miranda fez a pergunta com tanta esperança nos olhos que Belle quase
riu ante o espetáculo de tamanha estupidez. A perda do dinheiro e o facto
de aquele homem não ter comparecido ao encontro combinado pareciam
não ser, para Miranda, prova bastante de que se tratava de um aldrabão;
continuava a preferir acreditar que ele a deixara por ser casado.
– Talvez seja, com alguma mulher tão ingénua como a Miranda – re-
spondeu. – Mas o mais provável é que tenha uma fila de mulheres de uma
ponta à outra de Londres, todas apaixonadas por ele, a sustentá-lo e con-
vencidas de que são o seu único e verdadeiro amor.
Belle ouvira muitas vezes Jimmy e Garth falarem de homens que tin-
ham conhecido em Seven Dials e que ganhavam a vida a enganar mul-
heres. Mog costumava dizer que enquanto as mulheres não acordassem,
conquistassem o direito de votar e exigissem uma sociedade que não fosse
governada só pelos homens e para os homens, haveria sempre um lugar
onde os patifes e aldrabões se poderiam esconder.
– Como foi que soube da mulher que a «ajudou»? – quis saber. Não
conseguia imaginar como teria alguém do nível social de Miranda entrado
em contacto com uma tal pessoa.
– Através de uma mulher da casa de Greenwich – respondeu Miranda.
– Comecei a chorar quando o homem que manda naquele lugar me tratou
mal e disse que não conhecia o Frank. Ela veio atrás de mim e perguntou
se podia ajudar. Eu estava tão perturbada, e ela foi tão bondosa, que lhe
falei do bebé, e então ela deu-me a morada em Bermondsey.
Belle assentiu. Calculou que a mulher em causa era uma prostituta,
uma prostituta com bom coração. Por vezes, pensava que as únicas mul-
heres com bom coração eram mulheres caídas.
– O sítio onde me mandou era horrível – continuou Miranda. – Nunca
tinha visto uma coisa assim. Havia crianças sujas e esfarrapadas por todo o
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lado, portas e janelas partidas, e a porcaria era tanta e cheirava tão mal que
eu só queria dar meia-volta e fugir dali. Mas não podia, tinha de ir até ao
fim.
Belle conseguia imaginar o género de lugar, um pardieiro decrépito e
sobrelotado como os que havia em Seven Dials.
– Foi muito corajosa. Mas se conseguiu aguentar aquilo, consegue
aguentar seja o que for. Diga-me, como se sente agora?
– Acho que comecei a perder um pouco de sangue – respondeu Mir-
anda, vermelha como um tomate por ter de revelar algo tão íntimo.
– Deite-se para trás e deixe-me ver – disse Belle. – Não tenha ver-
gonha. Não tem nada que eu não tenha. Faça de conta que sou uma
enfermeira.
Miranda estava a sangrar um pouco, mas era sobretudo a água com
sabão que a mulher tinha usado. Uma das raparigas de Nova Orleães que
passara por aquela experiência explicara a Belle que o processo consistia
em abrir a extremidade fechada do útero e despejar água com sabão lá para
dentro. A mistura funcionava como um irritante e provocava o aborto. Era
melhor não pensar muito em que espécie de instrumento era usado para ab-
rir a extremidade do útero.
Belle lavou Miranda e estendeu um pano lavado por baixo dela. Sentiu
que já não faltava muito e deu-lhe uma dose do remédio que Mog tinha
fornecido.
Era quase uma da manhã quando as dores de Miranda se tornaram ver-
dadeiramente intensas. Belle adivinhava-lhes a violência pelo suor que lhe
alagava a testa e pela maneira como arqueava as costas e contorcia o rosto.
Mas não gritou. Só agarrou com muita força a mão de Belle.
Às duas e meia, a própria Belle estava exausta e perguntava a si
mesma durante quanto tempo conseguiria alguém suportar dores tão
terríveis.
– Está a ser muito corajosa – disse, enquanto voltava a lavar a cara de
Miranda com água fria. A infeliz contorcia-se com dores e mordia o lábio
inferior para não gritar.
Quando teve o primeiro vómito, Belle pegou rapidamente numa bacia
e colocou-lha diante da boca, mas com a mão livre puxou o lençol para
baixo e olhou. Havia muito sangue fresco, e quando Miranda voltou a
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vomitar, houve como que uma golfada de qualquer coisa semelhante a ped-
aços de fígado. Saber o que aquilo era fez com que Belle tivesse vontade
de vomitar também.
– É essa coisa? – arquejou Miranda.
Belle retirou os panos ensanguentados e substituiu-os por outros
limpos. Não queria olhar de muito perto, mas sentiu que devia fazê-lo
antes de deitar aquilo num balde. Havia qualquer coisa branca e com a
forma de um girino, e sabendo que devia ser o bebé, não conseguiu
impedir-se de chorar. Era ainda mais perturbador pensar que trazia no seu
próprio útero um bebé que seria desejado e amado, enquanto aquela pobre
e minúscula criatura tinha de ser destruída.
– Sim, é essa coisa – conseguiu dizer por entre as lágrimas. – Já não
tem dores?
– Não, estou só dorida – murmurou Miranda, numa voz rouca. – O que
teria feito eu sem a sua ajuda?
Belle esperava não ter de voltar a ver uma coisa tão horrível nem que
vivesse cem anos. Amaldiçoou silenciosamente Frank, desejou que ele
pudesse ver o que a sua ganância e a sua maldade tinham feito naquela
noite, e que sofresse por isso.
Voltou a lavar Miranda e tapou-a com o lençol.
– Da próxima vez que conhecer um homem, traga-mo para eu o sondar
– murmurou, e beijou-a na testa. – Agora vou preparar-lhe um copo de
leite quente com um pouco de brandy. Depois pode dormir.
CAPÍTULO 4

P ouco passava das seis da madrugada quando Mog entrou sem ruído
pelo portão do pátio. Estava uma bela manhã, com a promessa de mais
um dia de calor. As aves cantavam e, em qualquer outra altura, tudo aquilo
lhe teria lembrado como fora afortunada por ter conseguido fugir de Seven
Dials e ter um marido apaixonado e trabalhador.
Mas mal conseguira dormir naquela noite, preocupada com Belle.
Apesar de, nos tempos em que trabalhava como criada no bordel de Annie,
ter tido de cuidar de seis ou sete raparigas confrontadas com o mesmo
problema que Miranda, nunca fora fácil para ela. Era uma coisa suja e ver-
gonhosa, que o facto de estar grávida tornara de certeza ainda mais terrível
para Belle.
Mog desejava do fundo do coração que houvesse uma alternativa para
as mulheres solteiras que se encontravam naquela situação. Mas se não re-
corressem ao aborto, sem o apoio das famílias ou do pai da criança ver-se-
iam na esmagadora maioria dos casos atiradas para as ruas, e o hospício
seria o único lugar que as acolheria. Se o bebé não morresse durante o
parto, seria mandado para um orfanato ou entregue a uma dessas pessoas
que viam nas crianças abandonadas uma forma lucrativa de negócio e as
tratavam sem a mais ínfima ponta de ternura e só com um mínimo de
cuidados.
Mas a principal preocupação de Mog era outra: se alguma coisa tivesse
corrido mal na noite anterior, Belle estaria metida em grandes sarilhos. A
lei podia fazer vista grossa se alguém ajudasse uma prostituta numa situ-
ação daquelas, mas não uma senhora da sociedade.
Porque muitas mulheres morriam em consequência daqueles bárbaros
abortos: se não enquanto estavam a ser feitos, algum tempo mais tarde,
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quando surgiam as infeções. Belle podia não ser culpada de encorajar e
colaborar com o que Miranda fizera, mas se a rapariga morresse, a família
ia querer alguém para acusar, e ela seria o bode expiatório ideal.
Não se ouvia qualquer ruído e a porta estava entreaberta para deixar
entrar um pouco de ar. Mog empurrou-a um pouco mais e espreitou para
dentro. Belle dormia no chão, vestindo apenas a camisola interior, com o
cabelo despenteado e um braço dobrado à volta da cabeça. A rapariga
loura deitada na cama improvisada parecia igualmente tranquila. Vestia
uma velha camisa de dormir de algodão debruada a renda que se lembrava
de ter feito para Belle. Estava com boas cores, nem demasiado pálida, nem
afogueada e febril.
Sentiu-se invadida por um enorme alívio. Não havia sangue nem nada
que sugerisse que qualquer coisa fora do vulgar tivesse acontecido naquela
sala. Viu um balde coberto no pátio, e calculou que todas as provas est-
ivessem ali.
Não obstante o seu alívio por estar tudo bem, havia na rapariga loura
qualquer coisa que a fez voltar a espreitar pela porta entreaberta, e, cho-
cada, reconheceu a filha de Mrs. Forbes-Alton. Até poucos dias antes, tudo
o que sabia a respeito da mulher vinha de coscuvilhices: que era bom-
bástica e gostava de controlar tudo o que acontecia na aldeia. Conhecera-a
finalmente numa reunião convocada para criar um grupo de tricot que
fizesse coisas úteis para os soldados que combatiam na frente. Mrs.
Forbes-Alton comparecera com as duas filhas, e Mog lembrava-se muito
bem delas por terem parecido tão embaraçadas quando a mãe começara a
comportar-se como se fosse ela a mandar ali.
Mrs. Fitzpatrick, a esposa de um famoso pianista que tinha sangue azul
a correr-lhe nas veias, sugerira que talvez Mrs. Jenkins, proprietária da ret-
rosaria, pudesse aconselhar as senhoras em relação a que género de peças
tricotar e dar instrução às novatas, uma vez que era perita na matéria.
Mrs. Jenkins dissera que teria muito prazer, e que faria um desconto
em todos os novelos de lã comprados na sua loja.
– Oh, não! – exclamara Mrs. Forbes-Alton, com a sua voz enfatuada. –
Não podemos permitir que alguém lucre com a nossa iniciativa. Temos de
comprar a lã a um grossista.
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Mog ficara furiosa, tal como muitas das outras mulheres presentes,
porque Mrs. Jenkins perdera o marido na guerra contra os Boers, na África
do Sul, e semanas antes vira os dois filhos alistarem-se. Era uma mulher de
bom coração, que tricotava generosamente roupas para todos os bebés que
nasciam na aldeia e ajudara inúmeras jovens a fazer o vestido de noiva.
Toda a gente sabia que ia enfrentar sérias dificuldades, com os dois filhos
na guerra. Mas como uma das presentes fizera notar, iria provavelmente
tricotar, mesmo assim, mais peças do que qualquer outra pessoa da aldeia.
Naquela tarde, na reunião, ambas as meninas Forbes-Alton tinham
aparecido impecavelmente vestidas, a imagem perfeita da tímida docilid-
ade. O que tornava ainda mais difícil para Mog imaginar a mais velha e
menos bonita a ter um caso amoroso secreto.
Depois da reunião, crescera o ressentimento contra Mrs. Forbes-Alton
e alguém comentara que era sempre assim que ela se comportava, menos-
prezando os esforços dos outros mas fazendo muito pouco pelo seu lado.
Dizia-se que era arrogante e mesquinha, e que tratava os criados de uma
maneira execrável. Por isso não deixava de ser irónico o facto de, ao salvar
Miranda, Belle ter poupado à horrorosa criatura a vergonha e a humilhação
que tão largamente merecia.
Agora que sabia como era a mãe de Miranda, Mog tinha ainda mais
pena da filha. O mais certo era ter sido criada por serviçais, com pouco ou
nenhum afeto ou interesse por parte da mãe. Não admirava que tivesse
caído nos braços do primeiro homem que lhe dissera que a amava. Mas
pagara um preço alto por essa pequena e fugaz felicidade.
Se tudo corresse bem, recuperaria fisicamente em poucos dias, com re-
pouso e boa higiene, mas Mog sabia que a cicatriz mental de perder um
filho, por acidente ou intenção, era algo que demoraria muito mais tempo a
sarar.
Belle mexeu-se e abriu os olhos quando a porta rangeu. Sorriu ao ver
Mog, levou um dedo aos lábios e fez um gesto de cabeça na direção de
Miranda, após o que se pôs de pé e saiu para o pátio.
Fechou a porta, agarrou no braço de Mog e guiou-a até um par de caix-
otes de madeira, onde se sentaram ao sol.
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– Ela vai ficar bem, parece-me – disse. – Foi muito corajosa, não grit-
ou nem nada, e adormeceu pouco depois de ter acabado, mas eu não seria
capaz de voltar a passar por isto.
Mog passou-lhe o braço pelos ombros e puxou-a para si. Detestava a
ideia de a sua Belle ter tido de enfrentar uma coisa daquelas.
– Não quero nem pensar no que teria acontecido à Miranda se tivesse
ido para casa – disse. – Conheci a mãe dela, uma autêntica bruxa. – Contou
a Belle tudo o que sabia a respeito de Mrs. Forbes-Alton. – Mas o que é
que vais fazer agora com a rapariga?
– Deixá-la dormir o mais possível – respondeu Belle, a olhar para a
porta. – Não vou abrir a loja, claro, uma vez que é suposto eu estar com a
Lisette. Mais logo acompanho-a a casa. Felizmente, a amiga em casa de
quem é suposto ela ter passado a noite não tem telefone, de modo que a
mãe não tem forma de saber que nunca lá esteve. A Miranda pode fingir
que teve uma menstruação particularmente forte e enfiar-se na cama.
– Vais ter de ver-te livre daquilo – disse Mog, a apontar para o balde.
– Vou enchê-lo de terebintina e deitar-lhe fogo, mais tarde – respondeu
Belle. – Não pode ser agora; poderia levantar suspeitas, se alguém visse
fumo a esta hora da manhã.
– Tiro-te o chapéu, pensaste em tudo – disse Mog, num tom de admir-
ação. Nunca deixava de a espantar ver como, depois de todas as humil-
hações por que tinha passado, Belle conseguira conservar a sua humanid-
ade, a sua dignidade e um caloroso sentido de humor.
Amara-a como sua filha a partir do momento em que lhe pegara ao
colo quando ela nascera, e teria continuado a amá-la se ela tivesse perdido
a razão e a beleza. Mas o facto de ter regressado a Inglaterra e, graças à sua
força de vontade, abrir a chapelaria com que sempre tinha sonhado e
transformá-la num enorme êxito deixava-a imensamente orgulhosa.
Mog esboçou um meio sorriso.
– Não é a primeira vez que tenho de planear qualquer coisa, mas não
sei se vou ser capaz de dizer ao Jimmy. Como estava ele ontem à noite?
– Estava ótimo, mas tu sabes como ele leva sempre tudo na maior. Não
é como certos homens a quem salta a tampa quando a mulher sai de casa.
Tens ali um dos bons.
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– Eu sei – disse Belle, sombria. – É por isso que me vai custar tanto
mentir-lhe a respeito de ter estado com a Lisette.
– Nesse caso, não lhe digas muito. Em vez disso conta-lhe do bebé.
Vais ver que fica tão empolgado que nem se lembra de perguntar pela
Lisette.
Belle fez um ar pensativo.
– Achas que a Miranda se manterá em contacto comigo depois disto?
– Queres que mantenha?
– Quero. A princípio achei que era uma emproada, mas quando ultra-
passámos essa fase descobri que tínhamos muito em comum e senti-me
próxima dela. Não conseguia deixar de pensar que só pela graça de Deus
nunca cheguei a ver-me na mesma situação. Mas não lhe disse que ia ter
um bebé, não me pareceu certo.
Mog suspirou.
– Não. Mas não penses demasiado nisso. Estavas presente quando ela
mais precisava de alguém. Bem, se não precisas de mim aqui, acho que é
melhor ir para casa. Há alguma roupa que queres que leve para lavar? Não
quero que o Jimmy te veja com qualquer coisa suspeita.
– Há um lençol e uma toalha – disse Belle, e pôs-se de pé para os ir
buscar. – Estarei em casa por volta da uma.
Quando, minutos mais tarde, abria o portão do pátio com a roupa suja
num saco, Mog voltou-se para ela.
– Estou muito orgulhosa de ti – disse. – Pode ser que aos olhos da lei
tenhas agido mal ao envolver-te, mas para mim foste corajosa e bondosa.
Espero que a Miranda compreenda que Deus devia estar a sorrir-lhe
quando te mandou ao seu encontro.

Pouco depois da uma, Belle deu o braço a Miranda e iniciaram as duas


a caminhada até ao Paragon. Havia muita gente a caminho da feira, cri-
anças a correr numa excitação de um lado para o outro e música no ar.
Miranda estava pálida, com um ar cansado, mas não tinha dores. Belle
saíra logo de manhã para lhe comprar pensos higiénicos da marca Hart-
mann’s, e fora um alívio para ambas verificar que já não estava a perder
sangue.
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– As feiras parecem ser divertidas – disse Miranda, a olhar para o lado
da charneca. – Mas a mamã detesta-as. Nunca nos deixou ir, a mim e à
Amy. Uma vez, há alguns anos, planeámos escapulir-nos depois do jantar
e ir até lá, mas ela apanhou-nos a abrir a porta da frente. Castigou-nos,
ficámos fechadas nos nossos quartos durante uma semana. Disse que só as
raparigas das fábricas e as prostitutas é que iam a feiras.
– Isso não é verdade! – protestou Belle, indignada. – O meu marido
levou-me, o ano passado, e vimos lá muita gente fina. É um divertimento
inofensivo para todos.
– A mamã tem ideias muito fixas – suspirou Miranda. – Para dizer a
verdade, seria capaz de casar quase com qualquer homem só para me livrar
dela.
– Não precisa de casar com ninguém para sair de casa – exclamou
Belle, horrorizada. – Pode arranjar emprego num escritório com toda a fa-
cilidade, e depois arrendar um quarto. Eu sei que as raparigas do seu nível
social normalmente não trabalham, mas agora estamos em guerra, vai
haver muito mais oportunidades para as mulheres. E pode apostar que as
bem-educadas, como a Miranda, terão preferência em relação às outras.
Miranda apertou-lhe o braço.
– É tão inspiradora – disse. – Mal me veja livre disto, vou começar a
procurar emprego. O pior que a mamã pode fazer é deixar de me falar, e da
maneira como me sinto agora isso seria uma bênção.
Belle pensou que Miranda havia de ficar muito menos feliz quando
descobrisse a quantidade de horas que a maior parte das mulheres era obri-
gada a trabalhar por salários irrisórios. Mas estava satisfeita por lhe ter
dado alguma coisa em que pensar.
– Antes que se deixe entusiasmar pela ideia da liberdade, é melhor pre-
parar bem a história que vai contar à sua mãe – disse, num tom sério. –
Pode usar esse arranhão na testa como desculpa para se sentir um pouco
abalada. Diga que caiu esta manhã, em Belgravia, e que teve uma menstru-
ação muito intensa. Para o caso de alguém nos ver juntas, talvez seja boa
ideia dizer que me viu no comboio e porque se sentia zonza me pediu para
a acompanhar.
Miranda assentiu vivamente com a cabeça.
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– Espanta-me a maneira como pensa em tudo. Mas, e se alguém viu o
acidente, ontem?
Belle também já tinha pensado nisso.
– Bem, não reconheci nenhuma das pessoas que lá estavam, e tenho a
certeza de que se alguma delas a tivesse reconhecido a si, se teria apres-
sado a ajudar. Mas se chegar alguma coisa aos ouvidos da sua mãe, diga e
repita que nem sequer sabe do que está a falar. E se ela vier perguntar-me,
apoiá-la-ei e direi que era uma desconhecida.
– Nunca poderei agradecer-lhe – disse Miranda, em voz baixa. –
Sentira-se muito embaraçada quando acordara naquela manhã; nunca nin-
guém a tinha tratado com tanta generosidade. – Posso manter-me em con-
tacto consigo?
– Ficaria triste se não o fizesse. Espero que venhamos a ser boas
amigas.
De repente, lembrou-se de que nunca Mrs. Forbes-Alton consentiria
que a filha fosse amiga de uma lojista, e sobretudo de uma lojista casada
com um taberneiro. Além disso, era mais do que provável que, dentro de
alguns dias, Miranda começasse a recear que ela falasse.
– É claro que não pertenço ao seu círculo social – acrescentou, num
tom ligeiro. – Mas pode sempre aparecer na loja para dois dedos de con-
versa. E não tema nem por um instante que eu a traia e fale a respeito disto.
Prometo nunca dizer uma palavra que seja a quem for. A Mog, a minha tia,
sabe, mas somos as duas iguais: os nossos lábios estão selados.
– Eu sei – respondeu Miranda. – Senti-o no momento em que me
ofereceu a sua ajuda. Compreendo agora porque é que as amigas da minha
mãe falam a seu respeito. Apesar de ser tão nova, é uma mulher profunda e
fascinante.
Belle riu.
– O que é que dizem a meu respeito?
– Bem, a sua beleza foi muitas vezes notada, tanto como os seus mara-
vilhosos chapéus. Correu palavra, como disse ontem, que era francesa, e
para muita gente isso significa ser um pouco… atrevida.
Belle achou aquilo divertido.
– Acha que sou atrevida?
Miranda olhou de soslaio para ela e corou.
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– Bem, há qualquer coisa em si… É vivida, forte e compreende as
pessoas. Espero que um dia me conte tudo a seu respeito. Como foi parar a
Paris, onde conheceu o seu marido e se já tinha estado apaixonada antes de
casar com ele.
– Tenho a certeza de que contarei – disse Belle, embora suspeitasse
que se contasse toda a sua história a Miranda a pobre rapariga teria uma
síncope. – Talvez esta guerra também ajude a derrubar as barreiras sociais;
é o mais provável, quando as mulheres de todos os estratos sociais tiverem
de trabalhar lado a lado para contribuírem para o esforço de guerra. Espero
que sim. Não tenho muita paciência para as atuais restrições impostas às
mulheres.
– É tão bom ouvi-la dizer isso. A mamã está sempre a dizer: calce as
luvas, tem de usar chapéu, endireite os ombros, uma senhora não faz isto,
ou não faz aquilo. Era uma das coisas de que mais gostava quando estava
com o Frank, apesar de ele ser um patife. Sentia-me livre porque ele viol-
ava todas as regras.
– Bem, algumas dessas regras foram feitas para nos proteger –
lembrou-lhe Belle. – Mas um homem não precisa de ser um patife nem um
malandro para ser excitante e apaixonado. E agora que conhece o pior dos
homens, pode procurar o melhor, no futuro.
Despediu-se de Miranda à porta de casa e iniciou o caminho de re-
gresso à sua. Embora estivesse preocupada com a recuperação de Miranda
e esperasse que a mãe da jovem não desconfiasse de nada, a sua grande
apreensão tinha que ver com Jimmy.
Nunca lhe tinha mentido. Era culpada de nem sempre lhe dizer tudo,
mas talvez ele fizesse o mesmo. Mas não podia contar-lhe o que fizera na
noite anterior. Ele ficaria horrorizado.

Jimmy estava atrás do balcão, com Garth, quando ela entrou pela porta
lateral. Por causa da feira, o pub estava a rebentar pelas costuras, e muito
barulhento. Belle dirigiu-se à cozinha e encontrou Mog a fazer sanduíches.
– Está tudo bem? – perguntou Mog em voz baixa, apesar de a porta
que dava para o pub estar fechada.
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– Ela está ótima – tranquilizou-a Belle. – Nem dores nem febre, e es-
tava com apetite esta manhã e muito animada no caminho até casa. Estou
tão aliviada por ter corrido tudo bem.
– As minhas preces foram atendidas. – Mog ergueu os olhos para o
teto. – Mas falemos agora de coisas mais terrenas. Daqui a um minuto vou
levar estas sanduíches para o pub e dizer ao Jimmy que já voltaste. Porque
é que não aproveitas para mudar de roupa e arranjares-te um pouco?

Belle tinha-se lavado e estava a vestir uma camisola interior lavada


quando Jimmy entrou no quarto. Encostou-se ao umbral da porta, a olhar
para a mulher com um sorriso descarado.
– Ora aí está uma visão encantadora, a minha bela mulher quase sem
roupa nenhuma. É uma pena estarmos com tanto que fazer no pub, senão
era bem capaz de te atirar para cima da cama e abusar de ti.
Belle riu e aproximou-se dele. Estava muito atraente, de camisa branca
e um colete verde-esmeralda que lhe realçava os olhos castanho-claros.
– Tive saudades tuas ontem à noite – disse. – Queria muito dizer-te
uma coisa.
– Espero que não seja que andavas a pensar em fugir com outro
homem mas mudaste de ideias – disse ele, esfregando o nariz no dela.
– Não, porque não poderei correr durante muito mais tempo – re-
spondeu Belle, e segurou-lhe a cara com ambas as mãos e beijou-o.
Foi Jimmy o primeiro a afastar-se.
– Porquê? – perguntou, intrigado, e então olhou para baixo e pousou-
lhe a mão na barriga. – Estás…?
– Estou – respondeu Belle, com uma gargalhada. – Vamos ter um
filho!
Jimmy olhou para ela, como que atordoado, por um segundo, e então o
rosto rasgou-se-lhe num sorriso de orelha a orelha.
– Um filho? Tens a certeza? Quando?
– Bem, o médico não pôde ser muito preciso, mas eu penso que devo
estar de três meses e meio, mais ou menos, de modo que será para finais de
fevereiro.
Jimmy abraçou-a com força.
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– É a notícia mais maravilhosa que alguma vez recebi… bem, exceto
talvez quando me disseste que me amavas pela primeira vez – disse do-
cemente, com a boca encostada ao cabelo dela. – Oh, Belle, será possível
que haja mais alguém no mundo tão feliz como eu?
Belle inclinou-se para trás de forma a olhar para ele e viu as lágrimas
deslizarem-lhe pelas faces.
– Eu. Sou eu a pessoa mais feliz, porque te tenho a ti e ao bebé.
– Temos de dizer à Mog e ao Garth – disse ele, com os olhos húmidos
a brilharem de prazer. – Sei que a Mog vai ficar encantada, mas quanto ao
Garth, tenho as minhas dúvidas. Vai precisar de algum tempo para se ha-
bituar à ideia.
– Dizemos-lhes quando fecharem o pub – disse Belle. Sabia que Mog
nunca daria a entender que já sabia.
– E agora tenho de voltar lá para baixo e fingir que não aconteceu nada
de importante? – perguntou Jimmy. – A minha vontade era chegar lá e
anunciá-lo a toda a gente, mas não é assim que se deve fazer, pois não?
– Não – respondeu Belle, a sorrir de tanto entusiasmo juvenil. A
gravidez era uma coisa que os homens não referiam nem comentavam fora
do círculo da família, nem sequer quando era mais do que evidente. O
máximo que diziam era «Está de esperanças», e mesmo isso só quando
havia uma razão muito boa para falar no assunto. Apesar de tudo isto,
Belle já tivera ocasião de reparar que os homens mais rudes eram os mais
corteses e atenciosos para com as mulheres grávidas. – Se o fizesses, irias
embaraçá-los a todos.
– Mas nunca se importam de beber à saúde do bebé – comentou
Jimmy, com uma gargalhada. – E dão palmadas nas costas do novo pai,
como se ele tivesse feito a coisa mais difícil do mundo. E ele gaba-se do
seu novo filho, e logo a seguir apressa-se a esquecê-lo até que tenha idade
suficiente para ser útil.
– Eu sei que nunca serás um desses pais – disse Belle, e fez-lhe uma
festa na cara. – Estou a contar que partilhes tudo comigo, incluindo mudar
fraldas. Portanto, volta lá para o pub e sorri, mas não digas nada.
– Amo-te, Mrs. Reilly – disse, e voltou-se para regressar ao pub.
– E eu também te amo, Mister Reilly – disse ela para a porta que já se
fechava.
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Enquanto se vestia, Belle pensou no comentário de Jimmy a respeito
dos homens se gabarem do novo filho e depois o ignorarem até ele ter id-
ade suficiente para se tornar útil. Ouvira-o várias vezes falar num tom re-
provador dos homens que iam ao pub todas as noites, sem quererem saber
das mulheres e dos filhos que deixavam em casa.
Ambos tinham visto, em noites de sexta-feira, mulheres à espera em
frente do bar com um filho nos braços, ali e em Seven Dials, na esperança
de apanharem os maridos e conseguirem arrancar-lhes pelo menos uma
parte do salário antes que eles o gastassem todo em bebida. Muitos homens
achavam normal bater nas mulheres, tratando-as como se fossem gado.
Jimmy, cujo pai saíra de casa quando ele era ainda bebé, sabia como
era difícil para uma mulher criar um filho sozinha. Talvez por isso fosse
tão sensível às necessidades das mulheres. Sempre se mostrara muito pro-
tetor em relação a Belle, compreendendo quando ela estava cansada,
sempre disposto a ajudá-la. Agora que trazia no ventre um filho dele, Belle
sabia que podia contar com a sua força para a manter a salvo, e com o seu
sentido de humor para a animar, e com ele a seu lado não temeria o parto.
Talvez até a ajudasse também a livrar-se da recordação do horror por que
Miranda passara. Mas, acima de tudo, sabia que nunca faltaria à criança
amor e afeto. Iriam ser uma família feliz, Jimmy jogaria críquete e andaria
de barco no lago com o filho, contar-lhe-ia histórias para o adormecer,
beijar-lhe-ia as nódoas negras, acalmar-lhe-ia os sonhos maus. Em suma,
seria o género de pai que tanto ela como ele desejariam ter tido. Que cri-
ança afortunada!

Depois de o pub ter fechado para o intervalo antes da noite, Jimmy e


Garth juntaram-se a Belle e Mog na cozinha para uma chávena de chá e
uma fatia de bolo.
Mal se tinham sentado à mesa quando, incapaz de se conter por mais
tempo, Jimmy despejou o saco.
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– Vamos ter um bebé – disse, sem mais preâmbulos. – A Belle disse-
me há pouco.
A reação de Garth à notícia não foi a que ambos tinham esperado.
Levantou-se da mesa e pôs-se a dançar pela cozinha e a gritar de alegria.
Era surpreendentemente ágil, para um homem com a sua corpulência, mas
mesmo assim continuava a parecer um pouco ridículo.
– É a melhor notícia de todos os tempos – disse, e aplicou nas costas
de Jimmy uma palmada que teria atirado ao chão um homem menos ro-
busto. – Não que eu tenha muita experiência com bebés. Costumava pegar-
te ao colo de vez em quando, claro, mas isso foi há muito tempo. Espero
que seja uma menina, não estou a ver para que é que havíamos de querer
mais um homem com cabelo cor de cenoura na família.
Mog fingiu estar tão surpreendida como o marido, e foi magnífica na
sua representação; levantou-se e abraçou Belle e Jimmy, e disse que era a
melhor notícia que alguma vez tivera. Então, enquanto servia chá a toda a
gente, falou com ofegante entusiasmo acerca de fazer um enxoval para o
bebé e comprar um berço.
– Quando é que vais fechar a loja? – perguntou Garth a Belle. – Não
podes passar o dia inteiro de pé.
– Para ser franca, ainda não tive sequer tempo para pensar nisso –
disse ela.
Garth cruzou os braços e fez um ar severo.
– Pois muito bem, acho que deves tratar do assunto nas próximas sem-
anas – declarou, e olhou para Jimmy em busca de apoio. – Não concordas,
filho?
Jimmy sorriu a Belle e pegou-lhe na mão.
– Tenho a certeza de que a Belle fará o que for melhor para o nosso
bebé.
A qualquer pessoa que estivesse a ouvir, poderia parecer que ela era
livre de escolher, mas Belle sentiu que o que aquilo significava era que ia
ter de ficar em casa a tricotar e a coser até que a criança nascesse. Muito
obviamente, alguns dos valores do tio tinham passado para o sobrinho.
Garth não aprovava a emancipação feminina. Mog adorava desafiar-
lhe as opiniões, quer fosse no respeitante ao voto das mulheres, a entrar no
pub ou a fazer um trabalho que fosse tradicionalmente masculino. No
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entanto, por muito que o provocasse, era na realidade a mulher ideal para
ele, uma vez que lavava, cozinhava e limpava de uma maneira soberba, e
deixava-o tomar todas as decisões.
Até ao momento, ter um filho fora apenas um sonho cor-de-rosa. Belle
imaginara a vida a continuar como até então, mas com um bebé rechon-
chudo que todos eles adorariam a palrar no berço. Não lhe ocorrera que
também significaria o fim da sua liberdade de fazer o que queria.
– Estás com um ar cansado, Belle – disse Mog, talvez a adivinhar o
que ela estava a pensar. – Porque é que não te vais deitar um bocadinho?
– Sim, acho que é o que vou fazer – respondeu Belle. – Mas tu tam-
bém precisas de descansar. Aposto que estás a pé desde o raiar da aurora.
Ainda estava acordada quando Jimmy entrou no quarto, mas manteve
os olhos fechados e fingiu que dormia. Calculou que ele tinha subido para
falar do bebé, mas isso era uma coisa que não lhe apetecia fazer naquele
momento. Jimmy descalçou os sapatos e deitou-se na cama ao lado dela.
Passados poucos minutos, Belle soube – pelo ritmo regular da respiração
dele – que tinha adormecido.
Estava muito calor e, deitada de costas, Belle observava a dança das
partículas de pó nos feixes de luz do sol que entravam pelas cortinas de
renda. Fora ela que escolhera tudo o que havia naquele quarto, desde o pa-
pel de parede com um motivo floral de rosas à cama de latão com a sua
grossa colcha branca e o toucador com pequenas gavetas onde guardava as
suas joias. Certa vez, Garth dissera a Jimmy, meio a brincar, que nunca
seria capaz de viver num quarto tão feminino, tão cheio de folhinhos e
rendinhas, e Jimmy respondera que gostava dele assim porque ela gostava.
Aquela resposta resumia tudo o que Jimmy era. Não era um banana,
nem pouco mais ou menos. Conseguia ser muito duro com os clientes que
se portavam mal e tinha escassa paciência para os que passavam a vida a
queixar-se do que a sorte lhes reservara. Mas era um homem sem com-
plicações, que aceitava as coisas tal como elas eram e não queria saber do
que os outros pensavam a seu respeito. Na realidade, Belle não conhecia
ninguém que não gostasse dele, porque era bom, generoso, interessava-se
pelas pessoas e tinha um enorme sentido de humor. E, acima de tudo, era
honesto. Se alguém lhe pedisse uma opinião, dava-a; quando prometia
qualquer coisa, cumpria a sua palavra.
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Havia, em cima da mesa de cabeceira, uma moldura de prata com uma
fotografia dos dois no dia do casamento. Mog fizera o vestido de noiva de
Belle com um bonito cetim cor de marfim. Tinha um decote subido, man-
gas compridas, um corpete plissado e uma pequena cauda presa de um dos
lados, para dar efeito. Nunca Jimmy lhe parecera tão atraente como
naquele dia, com a sua casaca às riscas cinzento-clara. Em todas as outras
fotografias, tinham ficado com um ar rígido e sério. Mas aquela fora tirada
quando estavam a olhar um para o outro e a rir, e refletia as suas verdadeir-
as personalidades. Para Belle, era uma constante lembrança de como era
afortunada por ter alguém que a amava incondicionalmente, apesar do seu
passado.
Ali naquele bonito quarto, nada importava senão a alegria que encon-
travam no ato do amor. Jimmy podia ter chegado virgem à noite de núp-
cias, mas nos braços dele Belle experimentara um êxtase ainda maior do
que conhecera com Serge em Nova Orleães. Serge fora pago para lhe en-
sinar as delícias do sexo, e era um autêntico mestre, mas Jimmy mostrara-
lhe que o amor verdadeiro e uma paixão vinda do coração eram uma força
ainda mais poderosa.
«É tempo de lhe provares que sabes ser uma verdadeira esposa. Fazer
e vender chapéus não é assim tão importante», pensou.
Voltou-se para ele, passou-lhe um braço por cima do peito e apertou-o
contra si. Com um bebé a caminho, ia ser um novo começo, só que dessa
vez ia ter de se lembrar de ter em conta as ideias e os sentimentos de
Jimmy.
CAPÍTULO 5

O tilintar da campainha da porta fez Belle pousar o véu de rede que es-
tava a prender a um chapéu e passar para a loja.
– Jimmy! – exclamou ela, surpreendida. Jimmy só costumava ir à loja
para a acompanhar a casa quando estava a chover. Mas eram apenas três da
tarde de um belo dia de outubro. – O que te traz por cá?
– Saí para comprar tinta para as janelas – disse ele.
Belle franziu a testa. A loja de ferragens não ficava para aqueles lados
e, além disso, Jimmy parecia abalado.
– Aconteceu alguma coisa?
– Será preciso acontecer alguma coisa para eu visitar a minha mulher?
– replicou ele, num tom inusitadamente duro.
Belle aproximou-se.
– Não, mas foi de certeza preciso acontecer alguma coisa para me
falares nesse tom – disse, com uma nota de censura na voz.
– Desculpa. Uma mulher veio ter comigo e deu-me isto.
Enfiou a mão no bolso e tirou de lá uma pena branca.
Belle arquejou. Lera no jornal que um ou dois dias antes tinham an-
dado mulheres pelas ruas a entregar penas brancas aos homens. Era uma
sugestão de que eram cobardes por não se terem alistado. Tinha pensado
que se tratara de casos isolados, meia dúzia de mulheres patetas sem mais
nada que fazer do que incomodar quem trabalhava.
– Não ligues. Devia ser uma maluca qualquer – disse.
– Não, era um grupo de dez – disse Jimmy, com um ar muito perturb-
ado. – Estavam a abordar todos os homens. Vi o Willie, o lavador de
janelas, receber uma, e também o homem que vende jornais na estação, e
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outro que andava a passear com a mulher. Fiquei tão chocado que não
esperei para ver quem mais recebia uma pena e vim direito para aqui.
– Não tem importância – tranquilizou-o Belle. – Ninguém tem de se
alistar, se não quiser.
Mas mesmo enquanto dizia estas palavras sentiu um arrepio descer-lhe
pela espinha, porque apenas duas semanas antes vira na estação um
enorme cartaz que mostrava Lord Kitchner de uniforme e dedo esticado.
«O Teu País Precisa de Ti», dizia o cartaz. Na altura, achara que transmitia
uma poderosa mensagem.
– Pode não ser obrigatório, mas talvez seja moralmente certo eu fazer
a minha parte – refletiu Jimmy.
Nesse momento, Belle ficou assustada. Sabia que quando Jimmy usava
palavras como «moralmente certo» era porque já estava seguro do que
tinha de fazer.
– Não podes! Vamos ter um filho! – exclamou.
Jimmy estendeu os braços para a abraçar.
– Não quero que o nosso filho ou filha pensem que o pai foi um co-
barde – disse docemente, com os lábios muito perto do cabelo dela. – E
não te vou deixar abandonada à tua sorte para te desenvencilhares sozinha.
Terás o tio Garth e a Mog para cuidar de ti.
Belle afastou-se dele, furiosa.
– Mas podes morrer. Não quero que o nosso bebé tenha por pai um
herói morto.
– Não vai acontecer – disse ele, e fez um gesto de súplica com as
mãos.
– Vai-te embora. – Belle apontou para a porta. – E espero que, quando
chegar a casa, tenhas recuperado o juízo.
Jimmy saiu sem dizer mais uma palavra e Belle regressou à sua ban-
cada de trabalho. Estava tão zangada que, com um gesto mais brusco,
rasgou o véu em que estava a trabalhar, e pegou no chapéu e atirou-o para
o chão.
A campainha da porta voltou a tilintar e, pensando que era Jimmy que
voltara atrás para pedir desculpa, Belle ignorou-a.
– Belle? – chamou uma voz feminina, hesitante. – Está aí?
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Era Miranda. Belle fez um esforço para recuperar a compostura e
dirigiu-se à loja. Miranda estava muito elegante, com um vestido malva-
claro e um pequeno chapéu enfeitado com violetas artificiais a condizer.
Tinha as faces rosadas e parecia brilhar.
– Que agradável surpresa – disse Belle, grata por aquela interrupção
que a distraía da sua fúria. – Tenho pensado muito em si.
Miranda escrevera-lhe uma carta um par de semanas antes, quando es-
tava na propriedade da família no Sussex. Nessa carta agradecia a Belle a
sua bondade e dizia que tinha recuperado plenamente sem que ninguém
desconfiasse.
– É bom estar de volta a Londres – disse Miranda. – Quis tanto falar
consigo enquanto estive fora. A mamã esteve insuportável, ainda mais do
que é costume. Está tão desesperada por me casar que todos os dias convi-
dava pessoas com filhos solteiros para jantar. Não poderia ter tornado as
suas intenções mais claras se tivesse escrito no convite que se destinava a
arranjar-me marido.
Belle sorriu.
– E apareceu algum jeitoso?
Miranda revirou os olhos.
– Horríveis, todos eles. E, além disso, só falavam da guerra e de irem
juntar-se a um regimento qualquer. Julguei que morria de tédio. E a Belle,
como tem estado?
– Estava bem até há cinco minutos, quando o Jimmy apareceu. Acha
que tem de se alistar, mas eu não suporto a ideia de vê-lo ir.
– Oh, Céus! Claro que não. Mas tinha-me dito que ele não fazia tenção
de se alistar até que fosse obrigatório.
– Foi o que ele disse. Mas hoje uma mulher deu-lhe uma pena branca e
agora sente-se culpado e com medo de que as pessoas o considerem um
cobarde.
– A mamã juntou-se a um grupo que anda a distribuir penas brancas –
disse Miranda, de nariz franzido num gesto de reprovação. – Na minha
opinião, já é suficientemente mau para os homens terem os seus pares a
pressioná-los, mas agora com as mulheres a humilhá-los, os pobrezinhos
sentem que têm de ir. As pessoas como a minha mãe não pensam em como
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é que as mulheres e os filhos dos soldados vão sobreviver. Segundo ouvi
dizer, o que pagam no exército é uma miséria.
A compaixão de Miranda para com esposas e filhos pareceu a Belle a
oportunidade ideal para lhe dizer que ia ter um filho.
– Não estou muito preocupada com o que pagam no exército, mas é
que, bem vê, estou à espera de um filho.
– Mas que notícia maravilhosa! – exclamou Miranda, e o calor do seu
sorriso mostrava que estava a ser sincera. – Para quando?
– Finais de fevereiro.
Miranda fez um ar chocado.
– Sim, na altura já sabia – disse Belle. – Mas não fui capaz de lho dizer
naquela noite. Achei que não era a ocasião mais indicada.
– Nesse caso, foi duplamente horrível da minha parte afligi-la com os
meus problemas naquele momento – disse Miranda, e avançou para a ab-
raçar. – Mas estou muito feliz por si e, por favor, não sinta que não deve
falar no assunto por receio de me perturbar. Compreendo perfeitamente
que não queira que o seu marido se aliste numa altura destas. Mas estou
certa de que, depois de pensar bem no assunto, ele há de reconsiderar.
– A verdade é que muitos outros homens com vários filhos o fizeram.
Ainda ontem ouvimos falar de um homem de Lee Green com cinco filhos
que se alistou. O Garth disse que os homens no pub estavam a brincar com
o assunto e a dizer que se tinha alistado para fugir deles.
Conversaram durante mais alguns minutos acerca da guerra em geral e
Miranda disse que tinha pensado muito em arranjar um emprego e sair de
casa.
– Candidatei-me a vários lugares, nos últimos dias – disse. – Não me
iludo a mim mesma, sei que não tenho experiência. A única coisa digna de
nota que sei fazer é conduzir um automóvel.
– Jesus!
Belle estava impressionada; não conhecia pessoalmente nenhum
homem que soubesse conduzir, quanto mais uma mulher. Aquando da
mudança para Blackheath, os automóveis eram ainda uma raridade, mas
nos últimos dois anos tinham-se tornado muito mais comuns. Mas ainda
eram só os ricos que os tinham, e não via que isso fosse mudar nos tempos
mais próximos.
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– Pedi ao chauffeur do papá que me ensinasse quando estávamos no
Sussex – disse Miranda, alegremente. – Pensei que com tantos homens a
irem para a guerra, talvez houvesse uma oportunidade para uma mulher.
Os automóveis são muito difíceis de pôr a trabalhar, é preciso uma força
bruta para rodar a manivela. Também tenho andado a ler a respeito da
maneira como funcionam. Não quero fazer figura de pateta no caso de o
meu se avariar.
– Estou muito contente por vê-la tão organizada e otimista – disse
Belle.
– Sei muito bem a quem tenho de o agradecer – respondeu Miranda, e
arqueou as sobrancelhas. – Agora que me contou as suas novidades, talvez
haja uma maneira de eu poder pagar-lhe tudo o que fez por mim. Posso to-
mar conta da loja, se precisar de descansar ou ir a qualquer lado.
Belle ficou emocionada.
– É muita gentileza sua – disse. – Mas acho que vou fechar a loja
muito antes de o bebé chegar.
– Oh, não! – exclamou Miranda. – Não pode, porque é muito talentosa
e toda a gente adora os seus chapéus. Não pode contratar uma ama?
– Nunca faria uma coisa dessas – disse Belle, horrorizada.
Miranda riu.
– Não, suponho que não. Mas olhe que eu fiquei muito mais bem ser-
vida com uma ama do que teria ficado com a minha mãe.
– Há uma coisa que tenho de lhe perguntar – disse Belle. – Está
mesmo bem? Não falo de estar doente nem nada disso, mas já venceu o
desgosto?
O rosto de Miranda ensombreceu.
– Houve alguns dias em que andei chorosa e cheia de pena de mim
mesma – admitiu ela. – Mas ficou tudo muito melhor quando fomos para o
Sussex. Dava grandes passeios, andava ocupada a aprender a conduzir e
visitava alguns dos rendeiros do papá. Nunca o tinha feito, acho que o que
me aconteceu me abriu os olhos para o mundo real. O mais certo é terem
ficado muito espantados por eu me interessar pelas hortas deles, pelos fil-
hos e pelo telhado que metia água. Algumas daquelas pessoas são tão ter-
rivelmente pobres que compreendi que afinal a minha vida não era assim
tão má.
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Continuaram a conversar até serem horas de Belle fechar a loja.
Quando estava a trancar a porta, Miranda pousou-lhe a mão no braço e
apertou-lho.
– Espero que o Jimmy não se aliste, mas se o fizer, lembre-se de que
tem aqui uma amiga.

Quando, nessa noite, ela e Jimmy se deitaram, Belle soube que ele
tinha tomado uma decisão. Houvera pouco que fazer no pub e Jimmy pas-
sara o tempo escada acima escada abaixo. Sentava-se alguns minutos a
fazer-lhe companhia, mas sem dizer uma palavra, e voltava para o balcão.
Adivinhou, pela expressão tensa dele, que queria falar, mas temia que a
conversa descambasse em discussão. Estava ansiosa por pôr tudo a limpo,
mas conhecia suficientemente bem o marido para saber que ele gostava de
ter tempo para ponderar sozinho as situações e se o pressionasse demasi-
ado poderia vir a arrepender-se.
Naquele momento, porém, enquanto Jimmy enrolava o corpo à volta
do dela, como sempre fazia, quase conseguia ouvir-lhe as engrenagens do
cérebro a rodarem com emoções contraditórias.
Sabia que o medo dele não era por si mesmo, mas por ter de a deixar.
E também sabia que se chorasse e suplicasse, conseguiria demovê-lo. Mas
teria o direito de o fazer, quando ele sentia que era esse o seu dever?
Não duvidava que Jimmy tinha consciência de que não eram na ver-
dade necessários os dois, ele e Garth, para gerir o Railway, sobretudo
agora que a maior parte dos clientes habituais já tinha partido para França.
Provavelmente, sentia-se culpado de cada vez que ouvia dizer que fulano
ou sicrano se tinham alistado, sendo ele jovem e saudável e sem qualquer
boa desculpa para ficar em casa. Um bebé a caminho não seria certamente
considerado uma desculpa válida, uma vez que a maior parte dos homens
preferia distanciar-se de todo desse assunto e deixar que as mães e as irmãs
das respetivas mulheres tratassem de lhes dar apoio.
E sabia que Jimmy seria um bom soldado; era corajoso, forte e inteli-
gente. Os outros homens gostavam dele, e tinha a certeza de que não
tardaria a ser promovido porque possuía as qualidades necessárias para
liderar.
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Por muito que a aterrorizasse a ideia de ele ser ferido, ou até morto,
uma das coisas que mais amava em Jimmy era a honradez intrínseca à sua
natureza. Não queria vê-lo envolvido num turbilhão de sentimentos, a
tentar equilibrar aquilo que entendia ser o seu dever com a reação dela.
Não duvidava que ele receava que ela visse ali uma deserção, uma vontade
de a abandonar, e isso seria introduzir uma cunha entre os dois, abrir uma
clivagem.
Amava-o demasiado para querer prolongar a confusão em que se en-
contrava. Sabia que tinha de ser tão corajosa como ele era e deixá-lo fazer
o que pensava ser correto.
Pegou na mão que ele pousara na sua coxa e apertou-a.
– Não quero que vás – disse muito baixo na escuridão do quarto. –
Não sou como tu, não quero saber para nada do rei e da pátria, sou sufi-
cientemente egoísta para querer que as coisas continuem a ser agradáveis e
boas como até agora. Mas sei que tens princípios, e se achas que deves ir
combater, apoiarei a tua decisão.
– A sério? – sussurrou ele em resposta. – É que, estás a ver, apesar de
não querer separar-me de ti, quando o nosso país está em guerra, isso não é
uma desculpa válida para fugir à luta. Quase todos os homens que já
partiram deviam ter namoradas ou mulheres de quem não se queriam sep-
arar, mas arranjaram coragem para o fazer. A pena branca de hoje será
apenas a primeira de muitas, se eu ficar. As pessoas dirão que não só sou
um cobarde como lucrei com a guerra. Não seria capaz de viver com isso.
Belle agarrou-se a ele, a morder o lábio para não dizer que não queria
saber do que lhe chamassem desde que o tivesse a seu lado.
– Eu sei, eu também não seria capaz de o suportar – mentiu.
– Quem me dera acreditar que estará tudo acabado pelo Natal – disse
ele, puxando-a para si. – Quem me dera poder prometer-te que voltarei
para casa são e salvo. Mas acredito que tendo-te mantido viva e tendo-te
trazido de volta para mim depois de tudo aquilo por que passaste quando
foste raptada, Deus não será cruel ao ponto de deixar que eu morra em
França quando esperamos o nosso primeiro bebé.
Belle não tinha tanta certeza de que Deus funcionasse daquela
maneira. Pensava que o mais provável era colocar certas pessoas neste
mundo para serem postas à prova uma e outra vez. Ela e Jimmy tinham
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tido dois anos de sublime felicidade, e talvez isso fosse tudo o que podiam
esperar.
Jimmy passou-lhe a mão pelo ventre, acariciando a ligeira curva, como
que a dizer silenciosamente ao filho que o amava e que tencionava ser o
melhor dos pais.
– Quando é que vais então ao centro de recrutamento? – murmurou
ela, emocionada por aquela mostra de sensibilidade.
– Amanhã – respondeu ele. – Não vale a pena prolongar a agonia.

O tempo pôs-se repentinamente outonal no dia em que Jimmy foi ao


centro de recrutamento. A temperatura desceu, a chuva caiu e o vento
soprou, provocando cascatas de folhas douradas e cor de ferrugem que até
então tinham sido tão belas. Para Belle, foi um presságio de que toda a fe-
licidade que tinham partilhado ia acabar, mas engoliu as lágrimas e arru-
mou numa mala peúgas quentes e grossas, roupa interior, sabonete e al-
guns pequenos confortos, a tentar não pensar que os dois preciosos dias
que lhes restavam podiam ser os últimos.
Na manhã em que Jimmy ia apanhar o comboio que o levaria a Lon-
don Bridge para se juntar aos outros homens do Royal Sussex Regiment, o
céu estava tão sombrio como o coração de Belle e um vento frio assobiava
por baixo da porta das traseiras. Ao pequeno-almoço, Garth comentou em
tom jovial como fora animada a despedida no pub na noite anterior, mas
era evidente que também ele temia o momento em que o sobrinho teria de
partir. O rosto de Mog estava envolto num sudário de tristeza enquanto ela
embrulhava sanduíches e bolo para Jimmy levar consigo, e Belle não se at-
revia a falar.
Às oito, estavam os quatro na estação de Blackheath e Belle agarrava-
se a Jimmy, sob o olhar de Mog e de Garth. Quando os seus primeiros cli-
entes se tinham alistado, tinham os dois ficado à porta do pub, a despedir-
se dos que partiam com acenos e vivas, mas desde então tinham visto a
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lista de baixas e a realidade da guerra estava bem presente. Agora, a an-
siedade marcava todos os rostos.
– Estarás no meu coração cada minuto de cada dia e cada noite – sus-
surrou Belle.
Em London Bridge, Jimmy apanharia um comboio de tropas para
Dover, e dali viajaria de barco até França, onde faria a recruta em Étaples.
A gare estava cheia de grupos de parentes e amigos que tinham ido
despedir-se dos seus homens. Alguns eram apenas rapazes, acarinhados e
mimados por mães e irmãs chorosas. Havia alguns homens já de uniforme,
talvez de regresso às respetivas unidades no fim de uma licença, um pun-
hado de oficiais elegantemente fardados, mas muito mais homens da idade
de Jimmy. Belle calculou que, como Jimmy, tinham achado que a corrida
inicial ao alistamento fora uma tolice, mas que agora, depois das penas
brancas e dos cartazes de Kitchner, sentiam que tinham de ir.
Reparou que uma das mulheres devia estar muito perto do fim da
gravidez, e que tinha o rosto inchado e manchado como se tivesse passado
a noite inteira a chorar.
– E tu estarás no meu coração cada segundo – murmurou Jimmy ao
ouvido dela. – Não te habitues a ocupar a cama toda. O mais certo é eu não
ser capaz de acertar num celeiro e eles mandarem-me de volta para casa.
Belle forçou um sorriso. Jimmy dizia graças como aquela desde que se
alistara. Mas ela não se deixava enganar pela bravata; sabia que ele tinha
medo.
Ouviu o comboio entrar na estação, e saber que isso significava que só
lhe restava mais um ou dois minutos com ele fez-lhe subir as lágrimas aos
olhos que estivera a conter desde que acordara, duas horas antes, e os dois
tinham feito amor. Todas as carícias tinham sido tão ternas, todos os beijos
tão doces, que parecera impossível que sequer a morte fosse capaz de
separá-los, mas agora que o comboio se aproximava cada vez mais, já não
tinha tanta certeza.
– Deixa-me ir até London Bridge contigo – suplicou.
– Não, minha querida – disse ele, rodeando-a com os braços e
puxando-a para si. – Já é suficientemente mau dizer-te adeus aqui. Lá seria
ainda pior, e tu terias de voltar para casa sozinha.
– Vais escrever, não vais?
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– Claro que vou, todos os dias, se puder. Mas é natural que os correios
estejam a funcionar mais devagar, de modo que não te assustes se houver
um atraso.
O comboio tinha entrado na estação, e o fumo envolveu-os quando a
locomotiva passou. Jimmy beijou-a mais uma vez e virou-se para abraçar
Mog e Garth.
– Volta são e salvo para nós – disse Mog, numa voz que tremia.
– Mantém a cabeça baixa, filho – aconselhou Garth, roucamente. –
Não queiras ser herói, deixa isso para os outros.
De repente, as portas do comboio estavam abertas e o chefe da estação
soprava o apito para indicar aos passageiros que embarcassem. Belle
agarrou-se a Jimmy e abraçou-o com força.
– Amo-te – murmurou, e pôs-se em bicos de pés para o beijar. –
Mantém-te a salvo para mim.
Jimmy teve de se libertar à força para embarcar no comboio, mas de-
pois de fechar a porta debruçou-se da janela aberta a soprar-lhe beijos.
Com um último e longo apito, o comboio começou a mover-se, e Belle
caminhou ao lado dele, cada vez mais depressa, até correr, com as lágrimas
a rolarem-lhe pelas faces.
Viu Jimmy limpar os olhos e formar com os lábios a palavra «Amo-
te», e então a gare acabou-se e ela teve de parar. Só então se apercebeu de
que não estava sozinha; pelo menos vinte outras mulheres tinham feito o
mesmo. E ficaram todas a chorar no fim da gare até que o comboio desa-
pareceu da vista.
Ocorreu-lhe que era a primeira vez que via uma tal exibição pública de
emoção, e voltou-se para uma rapariga ainda mais nova do que ela que
chorava histericamente e abraçou-a.
– Tenho a certeza de que vai correr tudo bem – disse, a tentar confortá-
la.
– Porque teve ele de ir? – soluçou a rapariga. – Eu supliquei-lhe que
não fosse.
– Porque acreditam que é esse o seu dever, e nós temos de ser fortes e
admirar-lhes a convicção e coragem – disse Belle.
Enquanto ela e as outras mulheres voltavam para trás ao longo da gare,
muitas esticaram a mão para tocar no ombro ou no braço das outras,
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apenas um pequeno gesto de dor e compreensão partilhadas. Isso fez Belle
recordar-se de como tinha sido com as outras raparigas no bordel de
Martha em Nova Orleães: uma irmandade silenciosa mas profundamente
sentida que, à sua maneira, era mais reconfortante do que meras palavras
ocas.

Duas semanas depois de Jimmy ter embarcado para França, Belle es-
tava sentada numa cadeira, na loja, ao fim da tarde, a ler mais uma vez a
primeira carta a sério que recebera dele. Chovia intensamente e estava cada
vez mais escuro, mais uma indesejada lembrança de que o inverno não
vinha longe, e ela pôs-se de pé para acender as luzes.
Na semana anterior, recebera um postal. Era uma fotografia bastante
indistinta do porto de Boulogne, que ele devia ter comprado logo após o
desembarque, pois escrevera o postal no primeiro dia que passara em
Étaples. Eram apenas cinco linhas, só para dizer que tinha chegado e que
partilhava uma cabana com nove outros homens. Avisava-a de que não ia
ter muito tempo para escrever, pois os seus dias seriam ocupados com o
treino da recruta, que incluía tiro, ordem unida e preparação física a correr
pelas dunas e praias das proximidades.
A primeira semana sem ele arrastara-se devagar; tinha saudades do
calor do corpo de Jimmy na cama a seu lado, da mão pousada na sua bar-
riga – que parecia ter-se tornado maior depois de ele partir. Tinha saudades
de partilhar com ele a refeição da noite, das piadas que ele contava a re-
speito dos clientes do pub e os mexericos da aldeia. Garth e Mog tentavam
compensá-la. Mog entrava no quarto, à noite, para lhe dar um beijo na testa
e aconchegar-lhe as roupas, Garth limpava-lhe os sapatos e perguntava-lhe
como tinha sido o dia na loja. Mas, por muito ternos e queridos que
fossem, nunca poderiam preencher o vazio que Jimmy tinha deixado.
Todos eles sentiam a ausência do seu assobio quando regressava da
cave, dos seus passos ligeiros nas escadas, do seu riso contagiante e do seu
encanto. Mog desfizera-se em lágrimas certa tarde, quando tirara do forno
uns biscoitos acabados de cozer e os deixara em cima da mesa a arrefecer,
e ele não aparecera para roubar descaradamente um enquanto ela estava de
costas voltadas. Garth habituara-se de tal maneira a que Jimmy fizesse a
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maior parte do trabalho mais pesado, movendo barris e carregando grades
de cerveja que, agora que tinha de fazer tudo sozinho, lhe doíam as costas
e tinha dificuldade em deixar tudo tratado antes de abrir o pub.
Receber finalmente uma carta a sério fora um alívio para os três. Fora
bom ter um vislumbre das peripécias dos primeiros tempos dele na vida
militar, ler a respeito dos amigos que tinha feito e de como estava a
aguentar-se.
Jimmy começara a escrever a carta na sua segunda noite no campo de
treino, descrevendo os nove homens com quem partilhava a cabana, o
treino e até a comida. Travara amizade com um homem chamado John
Dixon, que viera de Woolwich. Descrevia-o como sendo um indivíduo
desbocado, divertido e um pouco malandro que, contava, lhe recordava al-
guns dos homens de Seven Dials.
Devia ter tido de parar de escrever e continuado na noite seguinte, ao
fim de um longo dia passado na carreira de tiro. «Fui uma desgraça», es-
creveu. «Disparávamos várias vezes contra o alvo e depois íamos ver se
tínhamos acertado. Eu nem sequer cheguei perto, nem uma única vez. O
sargento chamou-me cabeça de cenoura que não serve para nada, à mistura
com alguns outros insultos que não vou repetir.»
O dia seguinte fora de aplicação militar. Jimmy conseguira trinta
flexões antes de se ir abaixo, mas a maior parte dos outros não passara das
dez. «Sempre desconfiei que levantar barris havia de servir para qualquer
coisa», acrescentava. Naquela altura, apesar de ele nunca o dizer, percebia-
se pelas suas palavras que estava a achar tudo aquilo muito duro e difícil.
Contava que alguns homens quase tinham desfalecido de cansaço no fim
de uma longa corrida pelas dunas.
O simples facto de não escrever mais do que algumas linhas de cada
vez era prova bastante de que o mantinham ocupado do nascer do sol até à
noite, mas dias mais tarde, escrevia, com algum orgulho, que tinha obtido
uma pontuação de setenta em cem na carreira de tiro e conseguido fazer
cinquenta flexões.
Enquanto lia, Belle pensava que Jimmy devia estar a passar pelo pior
dos pesadelos – revistas constantes, corridas de quilómetros pelas dunas
com equipamento completo, rastejar pela areia húmida, treino com
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baioneta e aprender a carregar rapidamente a espingarda. Além disso, se-
gundo ele dizia, não parava de chover e fazia muito frio.
Falava de uma coisa chamada a Arena, onde treinavam ordem unida, e
dizia que Étaples era uma aldeia miserável e esquecida por Deus, que não
tinha sequer uma loja decente. As imagens que criava para ela eram todas
sombrias, e no entanto conseguia parecer surpreendentemente jovial
quando dizia que usar as botas que lhe tinham sido distribuídas era como
carregar uma bola de chumbo em cada pé.
Mas o melhor da carta eram os seus pensamentos a respeito dela.
«Imagino-te a escovar os cabelos diante do toucador, a maneira como eles
caem sobre os teus ombros, brilhantes como alcatrão derretido. Ou ver-te
quando sais para a loja de manhã, toda elegante e aperaltada. Penso na
maneira como comes maçãs, a mostrar os dentinhos muito brancos e a
ponta rosada da tua língua quando lambes os lábios.»
Belle adivinhou que ele tinha outros pensamentos bem mais íntimos,
mas não se atrevia a escrevê-los por saber que a carta seria muito provavel-
mente lida por um censor, e que ela a leria, pelo menos em parte, a Garth e
a Mog. Mas terminava dizendo: «Estás sempre nos meus pensamentos, e
pergunto a mim mesmo o que estarás a fazer, se te sentirás muito sozinha
sem mim. Penso no nosso bebé que cresce dentro de ti e rezo para estar de
volta a casa antes de ele nascer. Espero que não estejas zangada comigo
por te ter deixado quando mais precisavas de mim.»
Ela, pelo seu lado, tinha-lhe escrito uma carta todos os dias desde que
ele partira. Deixava-as no correio quando regressava a casa, ao fim da
tarde. Mas tinha cada vez mais dificuldade em descobrir coisas novas para
lhe dizer, porque os seus dias eram todos iguais. E tentar tornar as suas
cartas divertidas era ainda mais difícil. As suas clientes eram, de um modo
geral, pessoas vulgares, era muito raro alguém dizer qualquer coisa que ele
achasse mesmo vagamente engraçado. Por vezes, quando lia o que tinha
escrito a respeito do que Mog lhes fizera para o chá na noite anterior, ou de
alguma mensagem que um dos clientes deixara para ele através de Garth,
sentia que a carta mal merecia ser lida. Mas procurava sempre encontrar
alguma antiga recordação partilhada para o fazer sorrir, dizia-lhe das
muitas saudades que tinha e tudo o que ele representava para ela. E depois,
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no final de cada carta, desenhava qualquer coisa, um coelho, um gato ou
qualquer outro pequeno animal, e acrescentava um chapéu.
Pegou na carta que lhe tinha escrito e em que lhe contava que, nessa
manhã, tinha encontrado uma grande aranha em cima da sua bancada de
trabalho. Ficara muito assustada, pusera um copo em cima dela e correra à
loja do lado para pedir a Mr. Stokes, o sapateiro, que fosse tirá-la dali.
Por isso, no fim da página, começou a desenhar uma gorda e cómica
aranha de cartola, a lembrar-se de como Jimmy achava graça ao facto de
ela ter tanto medo de aranhas.
A campainha da porta tilintou e ela levantou-se de um salto, deixando
o bloco de papel em cima do balcão.
Era um homem alto e corpulento que vestia uma comprida e enchar-
cada gabardina, e a primeira coisa que lhe ocorreu foi perguntar-se se
poderia pedir-lhe que a despisse e a deixasse junto à porta, porque não a
queria a pingar para o chão.
– Boa-tarde, senhor – disse, delicadamente. – Posso ajudá-lo?
– Quero um chapéu – disse o homem, num tom brusco.
– Não vendo chapéus para cavalheiro, senhor – respondeu ela, assum-
indo que era o que ele queria, uma vez que não usava nenhum e tinha a
cabeça quase calva a brilhar molhada pela chuva. – Mas há uma loja de
roupa de homem algumas portas mais abaixo, onde poderá encontrar o que
procura.
– Eu disse que queria um chapéu de homem? – ladrou o sujeito.
Belle ficou instantaneamente assustada. Embora o homem parecesse,
visto de longe, bastante respeitável, exalava, de mais perto, um cheiro a
bafio que lhe fez lembrar Sly, um dos homens que a tinham raptado
quando tinha quinze anos. Usava bigode, mas descuidado, e uma sombra
de barba escurecia-lhe o queixo. Ao examiná-lo com mais atenção,
descobriu que o colarinho da camisa estava muito sujo.
– Deseja então comprar um chapéu para a sua esposa, talvez? –
perguntou.
Nunca antes sentira medo na loja, mas naquele instante, ao ver como a
rua estava escura, e deserta, devido à chuva, apercebeu-se de que podia ser
vista como uma vítima fácil para qualquer ladrão que olhasse para dentro
através da montra e a visse sozinha.
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– Quero dinheiro – rosnou o homem, e, enfiando a mão no bolso, tirou
de lá um curto e grosso cacete de madeira.
Belle olhou para ele, cheia de espanto e medo. O homem fizera-a
sentir-se nervosa desde o primeiro instante, mas não estava à espera
daquilo.
– Quase não fiz nada hoje – arquejou.
Era verdade, só tinha vendido um chapéu, e dos mais baratos, que
custava apenas dois xelins. Com os trocos que tinha na gaveta do balcão,
não haveria mais de sete ou oito xelins, ao todo.
O homem arrepanhou os lábios.
– Não me minta, eu sei que faz um bom negócio.
– Mas hoje não. Não parou de chover, e está muito frio – disse ela.
O homem avançou, brandindo o cacete, e Belle recuou, cobrindo a
cabeça com as mãos.
– Não me bata, dou-lhe o que tenho! – gritou.
Quando a pancada que esperava não aconteceu, espreitou por entre os
dedos. O homem já tinha aberto a gaveta do balcão e estava a tirar as
moedas e a enfiá-las no bolso. O que provava que já a tinha observado
noutras ocasiões, uma vez que a gaveta era pequena e não se notava à
primeira vista.
– Onde está o resto? – perguntou o indivíduo, voltando a avançar para
ela. – Se não mo dás, dou cabo da loja, e depois de ti.
Aterrorizada, Belle sentia o coração martelar-lhe o peito. Via o deses-
pero refletido na cara do homem e soube que a ameaça não era vã.
– Não há mais nenhum – insistiu. – Só vendi um chapéu barato, não
tenho mais dinheiro na loja.
– Não me mintas! – gritou ele. – Vai buscá-lo!
Se houvesse mais algum dinheiro fosse onde fosse, Belle teria corrido
a buscá-lo. Tinha experiência suficiente com homens desesperados para
saber que o apaziguamento era vital.
– Juro que não há mais nenhum – disse, apavorada. – Se houvesse, eu
dava-lho.
Ao ouvir isto, o homem bateu com o cacete no espelho rotativo e estil-
haçou o vidro, que caiu numa tilintante cascata.
– Vai buscá-lo, ou a próxima és tu! – berrou o indivíduo.
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– Não posso ir buscar o que não existe – gritou ela. – Já tem tudo o que
havia.
O homem soltou uma espécie de grunhido furioso, saltou para ela e
bateu-lhe com o cacete no ombro. Belle gritou de dor e recuou a cam-
balear, agarrada ao ombro.
– Está ali, não está? – perguntou o indivíduo, a apontar com o cacete
para a sala das traseiras.
Belle recuou até à parede ao lado da porta.
– Se encontrar algum dinheiro aí dentro, pode ficar com ele – soluçou.
Quando o assaltante passou por ela para entrar na sala das traseiras,
Belle julgou ver a sua oportunidade e correu para a porta da frente. Mas no
instante em que deitou a mão à maçaneta para a abrir, ele alcançou-a,
agarrou-a pelo ombro e puxou-a para trás.
– Não vais a parte nenhuma, cabra! – gritou, e, erguendo o cacete,
bateu-lhe no flanco do corpo com tanta força que ela se dobrou sobre si
mesma e tombou no chão. Mas nem mesmo assim o energúmeno ficou sat-
isfeito, e levantou a perna para lhe desferir um pontapé.
Na fração de segundo em que a perna se moveu, Belle tentou proteger
o ventre com os braços, mas era demasiado tarde e a pesada bota atingiu-a
em cheio na barriga, com tanta força que a fez deslizar pelo chão até cho-
car contra o balcão.
A dor foi tão violenta que não tentou pôr-se de pé. Em vez disso,
enrolou-se sobre si mesma, quase incapaz de ver. Ouviu-o trancar a porta
da frente e baixar a persiana, e, convencida de que ia matá-la, o seu único
pensamento foi o que uma coisa daquelas faria a Jimmy.
Mas o homem não voltou a bater-lhe. Limitou-se a passar por cima
dela e dirigir-se à sala do fundo. Belle ouviu-o revistar tudo, atirando para
o chão as caixas de aplicações arrumadas nas prateleiras, como se estivesse
possesso. Tinha quase a certeza de que ele guardara no bolso a chave da
porta. Tentar chegar ao telefone não era opção, porque ele não deixaria de
a ouvir, mal se mexesse. Não podia lutar contra ele, não se atrevia sequer a
gritar de dor com medo de o enfurecer ainda mais. Por isso, permanecer
imóvel e aparentemente inconsciente no chão parecia ser a única coisa a
fazer. Quando o homem se convencesse de que não havia mais dinheiro, ir-
se-ia embora.
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Era muito difícil ficar calada e quieta quando todo o seu ser queria
gritar de dor. Mas conseguiu. Só abriu os olhos uma vez, ao ouvi-lo abrir
uma lata, e viu despejar no bolso do casaco os biscoitos que continha.
A dor era tão intensa que a loja começou a rodopiar, e a última coisa
de que mais tarde se lembraria de ter pensado foi que ia vomitar.

– Mrs. Reilly! Mrs. Reilly!


Ouviu a voz, a voz de um homem, como que vinda de uma grande dis-
tância, e forçou-se a abrir os olhos.
– Oh, graças a Deus! – exclamou ele. – Por um instante pensei… –
Não completou a frase. – Não se mexa, há vidros partidos por todo o lado.
Vou pedir ajuda.
Belle estava suficientemente consciente para saber que era Mr. Stokes,
o sapateiro da loja ao lado, mas não sabia porque tinha tantas dores ou
porque estava deitada num chão coberto de vidros partidos. Só recordou
tudo quando ouviu várias outras vozes masculinas e reconheceu uma delas
como sendo a do Dr. Towle.
Achara-o do género pomposo, quando fora consultá-lo por causa da
gravidez. Era um homem alto e bem-parecido, com uma densa cabeleira
negra e olhos de um azul profundo, e pensara que talvez aquela afetação se
devesse ao facto de tantas das suas pacientes o cortejarem. Naquele mo-
mento, porém, ao registar o cuidado e a gentileza com que a examinava ali
caída no chão da loja, e a sua genuína indignação por ela ter sido agredida
daquela maneira, apercebeu-se de que não era o sujeito emproado que lhe
parecera, mas sim um homem capaz de compaixão.
Conseguiu falar ao polícia que estava presente do homem que a
roubara e atacara, e então Garth apareceu e, com a ajuda de outro homem,
deitou-a numa maca e levou-a para casa.
– Foi vítima de um ataque selvagem – disse o Dr. Towle num tom
cheio de gentileza algum tempo mais tarde, quando ela já estava em casa e
na sua própria cama. – Mas preferi trazê-la para aqui em vez de a levar
para o hospital porque estou convencido de que recuperará mais rapida-
mente entregue aos cuidados de Mrs. Franklin.
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Belle não foi sequer capaz de assentir com a cabeça para mostrar o seu
agradecimento por estar junto de Mog e de Garth.
– O bebé está bem? – conseguiu perguntar enquanto o médico usava
um pequeno instrumento de prata em forma de trompa para lhe auscultar a
barriga.
– O coração continua a bater – respondeu o Dr. Towle, e deu-lhe uma
terna palmadinha nas costas da mão. – Mas é essencial que permaneça aca-
mada, pois suspeito que tem um par de costelas rachadas. Pus-lhe uma
ligadura, resta-nos agora deixá-las sarar. Infelizmente, pouco posso fazer
em relação ao seu ombro; não está partido, a dor que sente resulta da viol-
ência da pancada. Vai continuar a doer-lhe mais alguns dias, e é muito
comum, depois de um tal choque, sentir-se abatida durante uns tempos.
Mas há de passar, e eu virei vê-la todos os dias.
E, depois de dar a Mog mais algumas instruções, e alguns medicamen-
tos para aliviar as dores de Belle, o médico deixou-os.
– Minha pobre querida – disse Mog, inclinando-se para afastar com
uma carícia os cabelos da cara de Belle. – Só espero que apanhem o de-
mónio que te fez isto. Disse-me o Garth que um dos polícias lhe contou
que houve um ataque semelhante a um lojista em Lewisham, a semana
passada. Acham que foi o mesmo homem.
– Pensei que ia matar-me – murmurou Belle, num fio de voz. – Estrag-
ou muito a loja?
– O Garth disse que estava uma desgraça, mas sabes como os homens
têm tendência para exagerar quando estão furiosos. Vou lá amanhã de
manhã ver por mim mesma e fazer uma limpeza. Mas tu é que não voltas
lá, minha menina.
– Foi Mr. Stokes que me encontrou – disse Belle. – Ele chegou a ver o
ladrão?
– Só um homem a fugir em direção à charneca – respondeu Mog. –
Aparentemente, estava a fechar a loja quando o patife saiu a correr da tua,
e no mesmo instante apareceu um polícia na rua. Mas Mr. Stokes disse ao
Garth que, ao princípio, julgou que estavas morta.
– Não contes nada disto ao Jimmy nas tuas cartas – pediu Belle. – Não
quero que ele se preocupe comigo.
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– Vou ter de falar com o Garth a esse respeito. Está tão furioso que só
quer bater em alguém. Mas acho que tens razão, contar ao Jimmy não ser-
viria qualquer propósito útil.
Belle começou a chorar e Mog sentou-se na beira da cama. Não podia
abraçá-la com medo de a magoar ainda mais, de modo que se limitou a
limpar-lhe as lágrimas.
– Pronto, pronto, querida, eu e o Garth estamos aqui para tratar de ti –
disse, como se estivesse a tentar acalmar uma criança.
– Sinto que os maus tempos vão voltar – soluçou Belle. – Primeiro o
Jimmy alista-se, e agora isto! Eu tinha obrigação de saber que a felicidade
não podia durar.
CAPÍTULO 6

B elle foi acordada por uma violenta pontada de dor. O que em si


mesmo não tinha nada de muito invulgar: naqueles dois dias depois
do ataque, habituara-se a ser acordada por pontadas de dor. Só que aquela
dor era diferente: em vez de vir das costelas e do ombro, era na barriga e
nas costas.
Ainda era de noite. Via, à volta das cortinas, a débil claridade do can-
deeiro a gás que iluminava a rua. Mas o remédio que Mog lhe dera
deixara-a zonza, e quando a dor acalmou voltou a adormecer.
Foi mais uma vez acordada por outra pontada. Não sabia quanto tempo
passara desde a primeira, talvez uma hora, mas a segunda foi ainda mais
forte, o suficiente para a fazer gritar. Parecia crescer até atingir um pico, e
então diminuir lentamente. Soube o que era antes de a dor desaparecer por
completo.
O bebé vinha a caminho.
Ali deitada de costas, pousou ambas as mãos no ventre, a sentir-lhe a
curva, e chorou, consciente de que o bebé não conseguiria sobreviver nas-
cendo com pouco mais de seis meses.
Recordou a imagem de Miranda deitada na cama de almofadas na sala
ao fundo da loja, a parecer exatamente como ela se sentia naquele mo-
mento. Seria Deus a castigá-la por a ter ajudado? Se sim, era um Deus
cruel e injusto, porque ela limitara-se a servir de enfermeira, não parti-
cipara no aborto e nem sequer na decisão de o fazer. Tanto ela como
Jimmy queriam aquele bebé. Teria sido amado e acarinhado porque ambos
queriam dar-lhe tudo o que eles próprios não tinham tido quando eram
crianças.
Ou seria o castigo pela sua antiga vida de prostituta?
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Uma nova pontada de dor dilacerou-lhe as entranhas, e ela agarrou-se
ao colchão. Por mais que quisesse manter silêncio, não conseguiu conter o
grito. Nunca experimentara uma dor assim.
A porta do quarto abriu-se e Mog entrou, de vela na mão.
– O que foi, querida? – perguntou.
– É o bebé! – arquejou Belle. – Ajuda-me!
– Oh, Virgem Santíssima! – exclamou Mog, aproximando-se da cama
e pousando a palmatória com a vela. – Há quanto tempo estás com dores?
A dor abrandou o suficiente para Belle lhe dizer, mas, enquanto a
ouvia, Mog acendeu o candeeiro a gás da parede, tirou da cómoda um
lençol lavado e enfiou-o por baixo dela.
– Vou só acordar o Garth e mandá-lo chamar o médico – disse, com a
mesma calma que revelava sempre, até numa emergência. – Visto-me e
venho já ter contigo. Aguenta um bocadinho, não demoro nada.

Belle teve vagamente consciência de Garth a falar com Mog no pa-


tamar. Ouviu os passos pesados dele na escada e a porta da rua a bater.
Pouco depois, Mog estava uma vez mais junto dela com uma jarra de água
quente e toalhas.
– Era capaz de matar o filho da mãe que te fez isto – disse, enquanto
lavava a cara e as mãos de Belle com uma toalha. – Mas, para já, temos de
enfrentar a situação juntas.
As dores iam e vinham, cada vez mais fortes e com menos intervalo
entre si. Mog segurava a mão de Belle, lavava-lhe a cara com água fria e
falava-lhe num tom calmante, dizendo-lhe que o médico não tardaria a
chegar.
Belle não conseguia responder-lhe, porque mesmo nas tréguas entre as
guinadas de dor já estava a preparar-se para a seguinte, e quando ela vinha
era como um ferro em brasa, uma agonia tão horrível que pensava que ia
matá-la.
O Dr. Towle chegou quando o bebé já começava a sair. Mog tapou-lhe
a cara com as mãos quando o médico puxou a roupa da cama para baixo,
mas apesar de não conseguir ver o que eles viam, Belle sentia a massa
escorregadia e quente entre as pernas e o jorro de líquido que escorria dela.
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Daí para a frente, tornou-se tudo confuso e desconexo. Quando voltou
a dar por si, o Dr. Towle estava a auscultá-la com o estetoscópio.
– Lamento muito, Mrs. Reilly. – disse o médico. – Esperava muito que
as agressões que sofreu não resultassem nisto, mas estas coisas não estão
nas nossas mãos.
Belle não teve de perguntar se o bebé tinha morrido; sabia que nunca
tivera a mais pequena hipótese.
– Era um menino ou uma menina? – conseguiu dizer.
– Uma menina, mas demasiado pequena para conseguir respirar – re-
spondeu o médico, com a voz a quebrar-se-lhe de emoção.
Jimmy queria uma menina, queria chamar-lhe Florence. Belle deixou
as lágrimas correrem livremente; sentia que lhe tinham roubado tudo.
– Agora eu e Mrs. Franklin vamos lavá-la e eu vou dar-lhe qualquer
coisa para a ajudar a dormir – continuou o Dr. Towle, enquanto lhe pegava
no pulso. – Quem me dera que estivesse ao meu alcance aliviá-la também
do desgosto, mas receio que só o tempo possa fazê-lo.
Belle sentiu outra golfada de sangue sair dela e fechou os olhos, a não
querer ver o pânico estampado na cara de Mog.

Eram dez da manhã quando Mog desceu a escada com o Dr. Towle
para o acompanhar até à porta. Ambos cambaleavam de cansaço: Mog
tinha grandes manchas vermelhas a sujar o avental branco e o médico,
sempre tão impecável e imaculado, parecia uma pessoa diferente, com um
restolho de barba na cara e os olhos raiados de sangue.
O céu estava cinzento-escuro e fazia muito frio. Ouviram Garth a ar-
rastar barris na adega. Tinha deixado a porta aberta.
– Ela vai recuperar? – perguntou Mog, com a voz a tremer. Belle per-
dera uma quantidade enorme de sangue e houvera um momento em que
não parecera possível salvá-la. Mas o médico enchera-a de gaze, e agora
estava tudo nas mãos de Deus.
– É jovem e forte – disse o Dr. Towle, e deixou escapar um suspiro
fundo, como se estivesse a tentar encontrar aspetos positivos. – Se con-
seguir ultrapassar as próximas vinte e quatro horas sem mais hemorragias e
sem infeções, julgo que recuperará completamente. Vou mandar uma
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enfermeira para ficar com ela. O seu esforço é admirável, Mrs. Franklin,
mas está exausta e a Belle precisa de cuidados especializados.
Mog assentiu com um gesto de cabeça.
– O que for melhor para ela. Não suportaria perdê-la.
– É sua sobrinha? – perguntou o médico, a olhar para ela com curiosid-
ade. Sabia que Mr. Franklin era tio de Jimmy Reilly, mas sentia o pro-
fundo amor que aquela mulher tinha pela sua paciente, e parecia muito
mais forte do que seria normal num parentesco só por afinidade.
– Fui governanta da mãe dela – respondeu Mog. – Mas criei-a desde
bebé.
– Estou a ver. – O médico anuiu. – Pois deixe-me dizer-lhe que fez um
excelente trabalho. É uma jovem encantadora e, segundo a minha mulher,
uma talentosa chapeleira. É uma pena o marido ter partido recentemente
para França. Tenho a certeza de que a presença dele lhe faria muito bem.
– Acha então que devemos tentar trazê-lo para casa? – perguntou Mog.
– A Belle não quis que ele soubesse do ataque, para não o preocupar, e
suspeito de que dirá o mesmo acerca disto.
– Sim, mas pelo que sei a respeito do Jimmy, diria que gostaria de es-
tar aqui para apoiar a mulher. É claro que vai demorar algum tempo a
contactá-lo e conseguir o seu regresso, mas sim, penso que é o que deve
ser feito.
– Mas como, senhor doutor? – perguntou Mog, a retorcer o avental
com as mãos. – Não sei nada dessas coisas.
– Dê-me o nome do regimento e outros pormenores e deixe o assunto
comigo. Tenho alguma influência que posso usar para o trazer de volta.
Depois de ter dado a Mog instruções sobre a maneira de cuidar de
Belle enquanto a enfermeira não chegasse e de ter tomado nota das in-
dicações referentes a Jimmy, o Dr. Towle saiu, dizendo que voltaria antes
do jantar.
Garth entrou na cozinha quando Mog estava a pôr a roupa suja na
celha para ser lavada. Viu, por cima do ombro dela, a água fria tornar-se
encarnada, e empalideceu.
– Ela vai conseguir? – perguntou.
– Não sei.
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Mog voltou-se para o marido, desfeita em lágrimas. Tinha-o ouvido,
durante a noite, andar de um lado para o outro no corredor, e o facto de
saber que ele tinha tanto medo como ela era reconfortante.
Garth abraçou-a e apertou-a contra o peito.
– A sorte não pode ser cruel ao ponto de levá-la agora, desta maneira,
depois de tudo aquilo por que ela passou e tudo o que significa para o
Jimmy e para nós – disse, com a voz a tremer de emoção.
Mog endireitou-se e limpou os olhos à manga do vestido.
– Tenho de voltar para junto dela – disse. – Importas-te de trazer
carvão para acender a lareira no quarto? Pôs-se muito frio, e quando a en-
fermeira chegar não podemos deixá-la gelar.
– Alguma vez pensas em ti mesma? – perguntou ele gentilmente, e
acariciou-lhe a face. – Só dormiste um par de horas antes de isto acontecer.
Não podes com uma gata pelo rabo.
– Ficarei bem logo que souber que ela vai recuperar.
Ele voltou a abraçá-la e passou-lhe as mãos pelo cabelo.
– Vai, então. Já te levo uma chávena de chá, e trato eu de acender o
lume.

Às oito da noite, Mog estava sentada num cadeirão de braços no


quarto de Belle, a observar a dança das chamas na lareira.
O Dr. Towle tinha aparecido uma hora antes para substituir os pensos
e mostrara-se encorajado ao verificar que não houvera novas hemorragias e
que o pulso da paciente estava mais forte. Por isso, mandara a enfermeira
Smethwick para casa, pedindo-lhe que voltasse na manhã seguinte para
render Mog. Dissera também que tinha conseguido enviar uma mensagem
ao comandante do campo de treino em Étaples e que tinha esperança de
que Jimmy pudesse apanhar o próximo barco para Dover.
Mog ouvia os carroções, carruagens e, muito de longe em longe, os
carros que passavam na rua. Tinha ouvido os passos de alguém que usava
protetores metálicos nas botas, mas o pub estava muito mais silencioso do
que era habitual. Pensou que Garth devia ter dito aos clientes que não
fizessem barulho por causa de Belle. Fora um dia longo e esgotante.
Smethwick, ainda que muito claramente uma excelente enfermeira, era
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uma das mulheres mais imperiosas que alguma vez tivera a infelicidade de
conhecer. A primeira coisa que exigira fora que retirasse do quarto tudo
aquilo a que chamava «patetices» e que incluía almofadas bordadas, nap-
erons de renda, o expositor onde estavam pendurados seis bonitos chapéus
e inúmeros lenços de cabeça e a colcha com folhos. Mog ainda tentara ar-
gumentar que Belle ficaria chocada ao ver-se num quarto despido de todas
as coisas que amava, mas Smethwick pusera fim à discussão declarando
que eram viveiros de germes. E assim se passara o dia todo, com Mog a
andar de um lado para o outro às ordens da mulher. Nem uma única vez a
harpia sugerira que fosse dormir um pouco, apesar de ver que mal con-
seguia manter-se de pé de tão cansada que estava. Muito pelo contrário,
mandara-a até sair para comprar um pouco de fígado, que deveria ser li-
geiramente estufado em leite e dado a Belle quando ela se sentisse capaz
de comer, para lhe fortalecer o sangue. Mog fizera notar que Belle detest-
ava fígado e que, em sua opinião, um copo de Guiness faria o mesmo
efeito de uma maneira muito mais agradável.
– Dar álcool a uma mulher doente? – escandalizara-se a enfermeira
Smethwick. – Era o que faltava!
A partir daí, Mog evitara quaisquer novas confrontações, mas estava
decidida a, no dia seguinte, dar a Belle um pouco de Guiness, se ela
quisesse, uma vez que era uma das suas bebidas preferidas.
Tencionara dormitar um pouco junto à lareira, mas agora que podia
descansar, não conseguia manter os olhos fechados. Levantou-se do ca-
deirão e foi ver como estava Belle. Só com a luz da lareira e da vela pou-
sada em cima da mesa de cabeceira, era impossível saber se estava ou não
a recuperar as cores, mas, pelo menos, parecia dormir sossegada. Tinha o
cabelo preto húmido e emaranhado, e os lábios pareciam gretados, mas,
para ela, continuava a ser a mais bonita. Lembrou-se de como a tinha
tratado quando tivera sarampo, com cinco anos. Permanecera fechada com
ela no quarto escurecido durante quinze dias, a dar-lhe banhos de esponja
para fazer baixar a febre, aterrorizada pelo pensamento de que podia ficar
cega, como acontecia a tantas crianças que contraíam a doença. Annie
aparecia de vez em quando, para saber dela, mas nunca passava da porta.
Dizia que era por não querer correr o risco de espalhar a doença, mas
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Annie tinha sempre uma desculpa qualquer para não se comportar como
uma mãe normal.
«Devia enviar-lhe um telegrama», pensou Mog, a sentir-se culpada por
não o ter feito logo a seguir ao ataque e, desse modo, preparado Belle para
o que acontecera naquele dia.
A relação de Mog com Annie desfizera-se quando o bordel fora
destruído pelo fogo, pouco depois de Belle ter sido raptada. Dois anos
mais tarde, quando Belle voltara de França, tinham-se reconciliado por
causa dela, e Mog convidara Annie para o seu casamento. Annie estivera
presente também no casamento de Belle, chegara até a ajudar nos preparat-
ivos, mas na realidade tudo o que tinham eram um passado partilhado.
Mog perguntava muitas vezes a si mesma se poderia sequer dizer que tin-
ham sido verdadeiramente amigas. Em retrospetiva, parecia-lhe muito mais
uma relação do género patroa e criada.
No entanto, apesar de Annie ser dura como pedra e muito pouco dada
a expressar os seus sentimentos, Mog sabia que amava a filha. Belle dis-
sera que da última vez que a visitara e lhe contara que estava grávida, An-
nie respondera que tinha esperança de ser melhor avó do que fora mãe.
Uma lágrima rebolou pela face de Mog. Quando Belle engravidara,
tinha ficado tão empolgada e entusiasmada que esquecera completamente a
sua própria esperança de vir a ter um filho. Já tricotara dois casaquinhos e
várias camisinhas de dormir e estava a preparar-se para começar um xaile.
As roupas não importavam, podia dá-las a qualquer outra jovem mãe.
O que verdadeiramente lhe doía era o facto de todos aqueles belos sonhos
terem sido desfeitos. Não poderia passear o bebé no carrinho até à
charneca. Não haveria férias em família à beira-mar, nem nunca iria levar à
escola, pela mão, um menino ou uma menina. O Dr. Towle dissera-lhe
naquela noite que, em sua opinião, não seria sensato da parte de Belle
tentar ter outro filho, dada a alta probabilidade de haver lesões internas ir-
reparáveis capazes de provocar uma repetição daquele desfecho.
Jimmy ia ficar inconsolável. Confidenciara-lhe uma vez que queriam
ter pelo menos quatro filhos. Não amaria Belle menos por causa disso,
claro, mas Mog sabia que havia de querer descarregar a sua fúria no
homem que a assaltara e agredira. Não quereria saber do dinheiro nem dos
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estragos causados na loja, mas aquele homem malvado roubara-lhes, a ele
e a Belle, a coisa mais preciosa da vida.
Belle mexeu-se na cama e abriu os olhos.
– Que estás a fazer aí de pé? – perguntou, numa voz que era pouco
mais do que um murmúrio.
– A olhar para ti, querida – respondeu Mog, e sentou-se na beira da
cama. – Como te sentes?
– Não sei – disse Belle. – Estou aqui há muito tempo?
– Algum. São quase dez da noite. Passaram mais de vinte e quatro hor-
as desde que começou.
– E estive sempre a dormir?
Mog apercebeu-se então de que, por ter passado o dia praticamente in-
consciente, Belle não fazia ideia de como tinha estado perto da morte.
– Sim, a maior parte do tempo – disse. – E podes voltar a dormir, mas
primeiro deixa-me arranjar-te qualquer coisa para beber. O médico disse
para te dar leite morno com uma gota de brandy. Vou buscá-lo.
Voltou pouco depois com o leite, ao qual acrescentara não só o brandy
mas também o medicamento que o Dr. Towle lhe deixara para ajudar Belle
a dormir. Passou-lhe um braço pelas costas, levantou-a com muito cuid-
ado, para não sacudir o ombro magoado, e levou-lhe a caneca aos lábios.
– Bebe tudo – disse, como fazia quando Belle era uma menina. – Para
ficares boa.
Foi bom vê-la beber o leite até ao fim – durante o dia, não conseguira
engolir mais do que alguns pequenos goles de água. Quando acabou,
arranjou-lhe as almofadas e voltou a deitá-la.
– Como é que vou dizer ao Jimmy? – perguntou Belle, com os olhos
marejados de lágrimas.
– Havemos de pensar nisso amanhã de manhã – disse Mog. – Vou
ficar aqui contigo esta noite, para o caso de precisares de alguma coisa.
– Deita-te na cama comigo. – Belle agarrou-lhe a mão. – Por favor.
Não quero que passes a noite sentada na cadeira. Deves estar tão cansada.
A ideia de que a enfermeira Smethwick não aprovaria aquilo perpas-
sou de modo fugaz pela cabeça de Mog. Mas ela e Belle tinham partilhado
muitas vezes a mesma cama, no passado, e era um conforto nos momentos
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difíceis. Além disso, quem queria saber do que pensava a enfermeira
Smethwick? Só os desejos de Belle importavam.
– Se quiseres – disse. – Vou só lá abaixo despedir-me do Garth e de-
pois vestir a camisa de noite. Agora dorme.
Inclinou-se e beijou Belle na testa. Estava morna, mas não febril. Teri-
am as suas preces sido atendidas?

Mog passou todo o dia seguinte com os nervos em franja. Belle pare-
cia ter estabilizado, até comeu algumas colheres de sopa, mas isso não sig-
nificava que estivesse livre de perigo. Mog sabia que uma infeção podia
surgir de um momento para o outro, e que era isso que matava mulheres
naquela situação.
A enfermeira Smethwick começava a mexer-lhe com os nervos, com
as suas ordens e os seus ares de superioridade. Deixara bem claro que não
a queria a entrar e sair constantemente do quarto da doente, remetendo-a
para as suas tarefas e as suas preocupações.
Tinha enviado um telegrama a Annie, que podia aparecer a qualquer
altura. O que não deixaria de tornar a atmosfera ainda mais tensa. Garth
não gostava muito dela, e se Annie se mostrasse tão abrasiva como era seu
costume, ia de certeza irritá-lo. Tudo o que verdadeiramente queria era que
Jimmy voltasse. Confortaria Belle, daria a Garth um aliado masculino e a
sua força tranquila ajudá-la-ia a ela a aguentar-se.
E então chegou o carteiro, com uma resposta de Annie: «Diz Belle
lamento. Não posso ir agora. Breve. Annie.»
– O que poderá ser mais urgente do que ver uma filha doente? – disse
Garth, de lábios arrepanhados como costumava fazer quando escondia os
seus verdadeiros sentimentos.
Como sempre, Mog sentiu-se obrigada a fazer o papel de pacificadora.
– Talvez esteja doente. Pode ter tido um hóspede mais difícil. Montes
de coisas.
– Mais provavelmente acha que perder um filho só pode ser uma coisa
boa – rosnou Garth, maldoso.
– Não digas isso – ralhou Mog. – A Belle disse-me que ela estava
muito feliz com a perspetiva de ser avó.
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– A única coisa que a faz feliz é ganhar dinheiro – replicou Garth e,
dando meia-volta, afastou-se.

Mal a enfermeira Smethwick saiu, ao fim do dia, Mog subiu para ir ver
Belle. Estava acordada e tinha os olhos vermelhos do choro.
– Que se passa, querida? – perguntou Mog, enquanto se sentava na
cama junto dela.
– Queria que o Jimmy cá estivesse – respondeu Belle, tristemente. –
Não sei como é que vou dar-lhe uma notícia destas.
– Bem, com isso podes deixar de te preocupar. O doutor enviou-lhe
uma mensagem e pediu que o mandassem para casa. Não te disse nada
antes porque pensei que vê-lo entrar porta adentro seria uma surpresa
maravilhosa para ti.
– Tinha de ser um estranho a dizer-lhe? – Belle fez um ar horrorizado.
– E porque haviam eles de deixá-lo vir por uma coisa assim? Só se pensas-
sem que eu estava a morrer!
Mog engoliu em seco. Devia ter adivinhado que Belle só pensaria em
Jimmy, não nas suas próprias necessidades.
– O doutor Towle disse que tinha alguma influência. Achou que pre-
cisavas do Jimmy aqui.
– E achou que era uma generosidade deixá-lo fazer toda a viagem a
pensar o pior?
– Tenho a certeza de que o doutor Towle há de ter dito ao comandante
que tu estavas a recuperar, querida. E também conheço suficientemente o
Jimmy para saber que ficaria zangado connosco se não tentássemos ao
menos fazer-lhe chegar uma mensagem. Seria muito mais cruel dar-lhe a
notícia numa carta e deixá-lo imaginar sabe-se lá o quê.
Belle tapou a cara com as mãos e começou a soluçar.
– Nunca mais vai voltar a ser a mesma coisa. Todos os nossos planos
foram por água abaixo. O Jimmy está na tropa e eu perdi o bebé. Não resta
nada.
– Isso é pura patetice – disse Mog, indignada. – Tu e o Jimmy con-
tinuam a ter-se um ao outro, e a guerra não há de durar para sempre. E há a
loja, também, quando voltares a estar bem.
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Belle afastou as mãos do rosto.
– Sabes muito bem que nem o Garth nem o Jimmy me deixarão voltar
para lá. Vou ter de estar como todas as outras esposas inglesas, fechada em
casa. Sem poder ser eu, a ver os anos passar sem propósito nem objetivo,
sem nada que realizar.
Mog protestou porque achou que era a sua obrigação. Disse que Belle
estava transtornada por ter perdido o bebé e a olhar para as coisas de uma
maneira distorcida. Mas sabia que ela tinha razão. Garth e Jimmy não iam
querer que voltasse à loja: teriam medo, depois do que acontecera.
Se Belle fosse como qualquer uma dessas vulgares jovens bem-educa-
das, não aspiraria a mais do que ser uma esposa bem-amada. Mas Belle
não era vulgar, não tinha tido uma infância normal com uma mãe que cui-
dasse da casa enquanto o pai trabalhava fora. Na idade mais impres-
sionável, fora levada para longe de casa e, de ambos os lados do Atlântico,
aprendera coisas que haviam apagado a sua inocência e lhe tinham en-
sinado a arte da sobrevivência.
Ela, que odiava as distinções de classes, fora, desde o primeiro dia em
que abrira a loja, obrigada a fazer vénias a snobes porque eram eles a cli-
entela que lhe permitia viver. Em casa, estava sempre a imitar as senhoras
que lhe entravam na loja, a pavonearem-se de nariz empinado e a
queixarem-se de como estavam cansadas depois da prova de um vestido,
de um almoço com amigas ou até de um jogo de bridge.
Mog, Jimmy e Garth achavam muito divertidas as suas pequenas imit-
ações, que retratavam com tão crua fidelidade a monotonia vazia das vidas
daquelas mulheres. Pouco faziam pelas suas próprias mãos, e o seu único
objetivo parecia ser assegurarem-se de que as filhas casavam bem e viviam
exatamente da mesma maneira que elas.
E no entanto, por ser uma chapeleira tão talentosa, Belle conquistara
um estatuto especial junto daquelas mulheres e habituara-se a ser lison-
jeada por elas. Podia não gostar daquilo que representavam, mas
orgulhava-se de ter conseguido pôr um pé no mundo onde elas se moviam.
Se desistisse da loja, passaria no mesmo instante a ser vista como a mulher
de um taberneiro, e as mesmas mulheres que a tinham tratado como uma
amiga não se dignariam sequer a olhar para ela.
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Belle precisava de pessoas quase tanto como precisava de criatividade.
Se tivesse tido o bebé, teria sido uma boa mãe, uma mãe cheia de amor,
mas tinha demasiado fogo, imaginação e inteligência para se conformar a
uma vida de tarefas domésticas.
– Ainda vai demorar algum tempo até voltares ao normal – disse Mog
com muito cuidado, porque não queria ir contra qualquer coisa que Garth
ou Jimmy pudessem dizer. – Descansa, melhora, e fala com o teu marido
quando ele chegar a casa. O Jimmy é muito compreensivo, tu sabes disso.
Talvez não queira que voltes à loja, mas não acredito nem por um instante
que se oponha a que faças algum trabalho voluntário para ajudar ao esforço
de guerra.
– A distribuir penas brancas, como a mãe da Miranda? – respondeu
Belle, com algum azedume. – Ou talvez queiras que me junte ao teu cír-
culo de tricotadeiras? Consegues verdadeiramente imaginar-me a fazer
esse género de coisas?
– Sabes muito bem o que penso a respeito dessas estúpidas mulheres
que distribuem penas brancas – retorquiu Mog. – Há outros papéis, papéis
úteis. Portanto, porque é que, enquanto estás aí deitada, em vez de te en-
cheres de pena de ti mesma não pensas no que é que gostarias de fazer?
CAPÍTULO 7

–E stá bem, está bem, já lá vou – resmungou Garth enquanto subia as


escadas da adega para ir abrir a porta. Sabia que Mog estava com
Belle e a enfermeira Smethwick ainda não tinha chegado, de modo que as-
sumiu que devia ser o Dr. Towle que vinha mais cedo do que de costume,
uma vez que ainda não eram sete e meia da manhã.
Correu os ferrolhos da porta lateral e rodou a chave na fechadura, e en-
controu Jimmy, de uniforme, à espera.
– Jimmy, meu rapaz – exclamou, encantado e surpreendido. – Mas que
grande alegria! Anda, entra.
Jimmy tirou a boina antes de entrar e deteve-se no vestíbulo, a olhar
para a escada.
– Como está ela? O comandante só me disse que tinha perdido o bebé,
mas eu sei que há mais.
Garth, que sempre tivera dificuldade em falar de coisas de mulheres,
hesitou.
– Não morreu, pois não? – perguntou Jimmy, com os olhos muito
abertos de medo.
– Não, não. – Garth deu-lhe uma palmada no ombro. – Claro que não.
– Esteve muito mal, mas agora estamos convencidos de que vai recuperar.
Sobretudo depois de te ver.
Jimmy correu escada acima, galgando os degraus dois a dois. Mog
acabava de tirar a bandeja do pequeno-almoço da frente de Belle quando
ele irrompeu no quarto.
– Jimmy! – exclamaram as duas mulheres.
Mog disse como estava feliz por vê-lo e Belle começou a chorar.
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Estava quase sentada, apoiada em duas grandes almofadas, mas, à luz
do dia, o seu rosto parecia um pergaminho amarelecido pelo tempo. Mog
tinha-lhe escovado o cabelo, mas mesmo assim continuava baço e sem
vida.
Jimmy correu para a abraçar, mas Mog deteve-o.
– Tem cuidado com o ombro e com as costelas. Ainda lhe doem.
– Porquê? – perguntou ele, intrigado.
– Explicamos-te mais tarde – disse Mog.
Jimmy lançou-lhe um olhar confuso, mas sentou-se na beira da cama e
acariciou a face de Belle.
– Não chores, querida – disse. – Agora estou aqui e poderás contar-me
tudo quando estiveres pronta.
Mog ouviu os passos da enfermeira Smethwick na escada.
– É a enfermeira – anunciou –, que vem lavar a Belle e fazer outras
coisas. Vem até à cozinha enquanto ela trata disso e eu preparo-te um
pequeno-almoço como deve ser. Deves estar cansado e cheio de fome, de-
pois de teres viajado a noite toda.
– Não vou ser arrastado para longe da minha mulher por causa de uma
enfermeira – declarou Jimmy, indignado.
Mog voltou-se e viu a enfermeira Smethwick de pé no umbral da
porta. Era uma mulher feia e gorda, com uma cara que parecia um pedaço
de massa de tarte acinzentado, e muito evidentemente ouvira o comentário
de Jimmy.
– A sua esposa, Mister Reilly, precisa neste momento de uma enfer-
meira – disse, num tom seco. – E não se sente na cama. Sabe Deus que
germes esse uniforme traz agarrados.
Jimmy ficou de queixo caído, mas Belle soergueu-se um pouco das
almofadas.
– Não se atreva a falar ao meu marido dessa maneira! – exclamou. –
Viajou a noite inteira vindo de França para chegar aqui. Pagamos-lhe para
que preste serviços de enfermagem, não para que dê ordens ao meu marido
ou à minha tia. É favor lembrar-se disso se quer trabalhar aqui.
Mog sorriu. Teve a certeza de que Belle estava muito melhor, para
conseguir fazer frente a um dragão como a enfermeira Smethwick.
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– Deixe-os ficar dez minutos, enfermeira – sugeriu. – Venha até à co-
zinha beber uma chávena de chá comigo enquanto preparo o pequeno-al-
moço do Jimmy.
Jimmy sorriu a Belle enquanto Mog e a enfermeira saíam.
– Onde foram desencantar aquele ogre? – perguntou.
Belle voltou a deixar-se cair nas almofadas.
– A Mog diz que foi o médico que a mandou, mas eu acho que é o di-
abo em forma de gente. Um castigo por pecados antigos.
– Agora, conta-me o que aconteceu – pediu Jimmy. – Que queria a
Mog dizer com aquilo do ombro e das costelas? Tiveste um acidente?
Belle tinha estado a tentar arranjar uma maneira de suavizar o que
acontecera para que Jimmy a deixasse voltar à loja, mas ao ver a preocu-
pação nos olhos dele, e ao pensar no medo que devia ter sentido durante
toda a viagem de regresso a casa, compreendeu que tinha de lhe dizer toda
a verdade.
Viu-o cerrar e abrir os punhos enquanto ela descrevia o incidente. Ho-
mens como ele e Garth não eram do género de ficar de braços cruzados e
esperar que a polícia e os tribunais fizessem justiça. Tinha quase a certeza
de que Garth já oferecera uma recompensa a quem lhe revelasse o nome do
atacante.
– Lamento tanto, Belle – disse Jimmy, e pousou a mão na face dela,
com os olhos marejados de lágrimas. – Não consigo suportar a ideia de al-
guém te fazer mal. E também estou muito triste pelo nosso bebé. Não con-
sigo encontrar as palavras certas para te reconfortar.
– A tua presença aqui é o suficiente – disse ela, pegando-lhe na mão e
beijando-a. Viu-a coberta de marcas e bolhas, uma maneira de lembrar que
também ele tinha passado por tempos difíceis. – Vai agora tomar o teu
pequeno-almoço, e depois toma um banho e dorme. Diz ao ogre que pode
subir. E tenta convencer a Mog a descansar hoje. Com certeza calculas
como ela tem estado.
Jimmy sorriu sombriamente.
– Durante todo este tempo, em França, imaginava-os a conversar e a
rir na cozinha, tudo como sempre costumava ser. Pensava que se pudesse
acontecer alguma coisa de mal seria a mim, nunca a ti.
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– Já estou quase bem, agora – disse ela. – Anda, vai-te embora. Falam-
os mais tarde.

Mal acabou de tomar o pequeno-almoço, gulosamente acompanhado


por três chávenas de chá, Jimmy foi procurar Garth. Estava no pub, a
limpar copos, e voltou a cabeça, ansioso, quando Jimmy entrou e fechou a
porta que dava para a casa.
– Que tal o treino? – perguntou. – Esse corte de cabelo é um pouco
rigoroso.
Jimmy sorriu a contragosto e passou a mão pelos dois centímetros e
meio de cabelo que o barbeiro do exército lhe tinha deixado.
– Com um pouco de sorte, não vou precisar de outro até ao Natal –
disse. – A Belle contou-me do ataque. Tem alguma informação sobre
quem foi?
– Só que tem havido vários semelhantes nos últimos meses, em Lew-
isham, Catford e Greenwich – respondeu Garth. – A polícia acha que é o
mesmo homem. Ataca sempre pessoas que estão sozinhas nas lojas, nor-
malmente ao fim do dia. Pensam que é de Deptford, mas tu sabes como
são as coisas para esses lados.
Jimmy sabia: prédios degradados e sobrelotados, pardieiros que mais
pareciam coelheiras e pessoas que nunca denunciariam um dos seus.
– Se pensam que é de Deptford, não têm um suspeito?
– Se têm, não estão a dizer. É difícil encontrar alguém sem uma
descrição completa. Achas que a Belle seria capaz de o desenhar? Talvez
ajudasse.
Jimmy pensou nisto por um instante. Belle era muito boa a fazer es-
boços rápidos de pessoas, mas não tinha a certeza de que desenhar um
homem que de certeza preferia esquecer fosse bom para ela. E assim o
disse a Garth.
Garth suspirou.
– Eu sei, foi por isso que não disse nada. Um homem capaz de espan-
car uma mulher indefesa está a precisar de uma boa lição. E gostaria muito
de ser eu a dar-lha.
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– Também eu – disse Jimmy. – Mas só tenho dois dias de licença, e
quero passar esse tempo todo com a Belle.
– Como é aquilo por lá?
– Doem-me músculos que nem sequer sabia que tinha – respondeu
Jimmy, com algum humor. – Mas, mesmo assim, estou em melhor forma
do que a maior parte dos outros. E também estou a tornar-me um grande
atirador… o sargento deixou de berrar comigo e há dias até me disse que
estava a ir muito bem. Só espero não perder a coragem quando estiver na
frente. A maior parte dos mais novos está ansiosa por ir, mas eu vim num
barco com os feridos e vi ferimentos tão horríveis que fiquei doente.
Não quis dizer a Garth que fora mobilizado para ajudar os enfermeiros.
Pouco mais podia fazer além de oferecer água ou levar um cigarro aos lá-
bios de um soldado. Alguns tinham-lhe pedido que escrevesse por eles
uma carta para os pardieiros onde viviam. Mas aqueles eram soldados
profissionais, homens sem medo que já tinham combatido na África do
Sul, uma raça muito diferente dos voluntários com que Jimmy estava a
fazer a recruta. Se eles, com todo o seu conhecimento da guerra, podiam
ser feridos ou mortos, que aconteceria aos novatos que ainda acreditavam
que a guerra era uma aventura?
Dois dos homens para quem Jimmy escrevera cartas tinham morrido
antes de chegarem a Dover, mas mesmo assim ele iria pôr as cartas no cor-
reio, mais tarde. Talvez fosse um pequeno consolo para as famílias saber
que tinham pensado nelas até ao fim.
Garth deu-lhe uma das suas vigorosas palmadas nas costas. Jimmy
sabia que era a maneira de o tio lhe dizer que se orgulhava dele e com-
preendia os seus medos.
Depois de um banho, um par de horas de sono no sofá e novamente
vestido à paisana, Jimmy ouviu o médico sair do quarto de Belle e
apanhou-o quando ia a descer a escada.
– Como está ela, senhor doutor? – perguntou, depois de se ter
apresentado.
– Muito mais animada, agora que está em casa – disse o médico, com
um sorriso. – Julgo que está fora de perigo, mas vai demorar algum tempo
a recuperar as forças. Perdeu muito sangue.
Jimmy anuiu.
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– Mrs. Franklin certificar-se-á de que come bem e descansa muito.
Obrigado por tudo o que fez por ela. E por me ter conseguido a licença.
Fico-lhe muito grato.
– Não teve importância. – O médico pousou a mão no ombro de
Jimmy e olhou para ele com uma expressão preocupada. – Mas receio que
haja mais uma coisa que preciso de lhe dizer. Não será aconselhável para a
sua mulher tentar ter outro filho.
Jimmy empalideceu.
– Nunca mais?
– Não posso dizer com certeza absoluta que as lesões que sofreu a im-
pedirão de levar a termo outra gravidez, mas seria arriscado – disse o
médico, gentilmente. – Sei o golpe que isto representa para os dois, e
lamento muito.
– Já o disse à Belle? – perguntou Jimmy, com a voz a tremer de
emoção.
– Não, não disse, e, por enquanto, penso que será preferível manter
isto entre nós os dois e Mrs. Franklin.
Jimmy engoliu em seco e assentiu em silêncio. Não confiava na voz,
se abrisse a boca para falar.

Dois dias mais tarde, enquanto Belle estava a descansar, Jimmy foi até
à loja.
Naquela manhã, tinham chegado várias cartas de clientes que,
sabedoras do que acontecera, queriam manifestar a sua solidariedade. Belle
perguntara-lhe como devia responder-lhes, se devia avisá-las de que não
voltaria a abrir a loja, e Jimmy não soubera o que dizer. Garth deixara bem
claro o que pensava do assunto. Para ele, manter a porta aberta era peri-
goso e o lugar de Belle era em casa. Jimmy estava de acordo, mas também
sabia o que a loja significava para Belle e por isso estava relutante em
pronunciar-se, de momento.
Pensara que, se fosse dar uma vista de olhos, talvez conseguisse arru-
mar as ideias e chegar a uma decisão. Fechou a porta da loja depois de
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entrar e olhou em redor. Mog tinha feito a limpeza no dia seguinte ao
ataque, mas o espelho sem vidro e a cadeira partida na sala das traseiras
bastavam para lhe dar uma ideia de como fora horrível. Ainda havia uma
mancha de sangue na parede, e vê-la fez com que as entranhas se lhe con-
traíssem de fúria.
No entanto, enquanto deambulava pela loja, a tocar nos pequenos
chapéus que Belle fazia tão bem, soube que não era capaz de lhe exigir que
desistisse completamente dela. Sem aquele interesse e com ele em França,
Belle sentiria que nada mais lhe restava.
O som de alguém a bater à porta interrompeu-lhe os pensamentos.
Mog pendurara um letreiro a dizer «Encerrada até nova ordem», mas,
apesar disso, viu uma jovem do outro lado do vidro, a fazer-lhe sinais para
que abrisse.
Um pouco irritado, abriu a porta. A jovem, elegantemente vestida,
usava um chapéu verde enfeitado por uma pena que tinha, de certeza, sido
feito por Belle.
– Lamento, mas a loja está fechada – disse, ao mesmo tempo que
apontava para o letreiro.
– Eu sei ler – replicou a jovem, num tom de seca ironia. – Mas estive
fora uns dias. Vim ver a Belle, somos amigas, compreende? Chamo-me
Miranda Forbes-Alton. Aconteceu alguma coisa à Belle? E já agora, quem
é o senhor?
Jimmy lembrou-se de uma referência a alguém chamado Miranda. Se-
gundo Mog, tinha uma mãe insuportável, e a julgar pelas maneiras, a filha
fora cortada do mesmo pano.
– Sou o marido – disse. – A Belle foi atacada e roubada e em con-
sequência da agressão perdeu o nosso bebé.
Para sua consternação, os olhos da jovem encheram-se de lágrimas.
– Oh, Céus, não! – exclamou Miranda, limpando os olhos com um
lenço de renda. – Pobre Belle, que coisa horrível! Estava tão feliz por ir ter
um filho. Se tivesse sabido mais cedo! Há alguma coisa que possa fazer?
Posso tomar conta da loja, se isso ajudar.
Jimmy não gostara da maneira como ela lhe perguntara quem era. No
entanto, a óbvia perturbação da jovem por causa do que acontecera a Belle
apaziguou-o.
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– É muita gentileza sua – disse –, mas decidimos manter a loja encer-
rada, de momento. Como pode imaginar, ela ainda está muito fraca e triste.
– Claro que deve estar. Desculpe ter-lhe falado com dureza, Mister
Reilly. Não esperava que fosse o senhor, sabendo que estava em França.
Conte-me o que aconteceu. A que horas foi?
Jimmy explicou tudo com mais pormenor, incluindo como Belle est-
ivera perto da morte devido à perda de sangue e como o médico tinha
usado a sua influência para lhe conseguir uma licença. Miranda
sobressaltou-se, com uma expressão horrorizada.
– Mas vai ter de voltar para o exército, não vai? – disse. – Há alguma
coisa que eu possa fazer para ajudar? Gosto muito da Belle e sei que vai
ficar ainda mais triste quando se for embora.
Jimmy reconheceu a sinceridade das palavras daquela jovem, e soube
que se sentiria muito mais descansado quando regressasse a França
sabendo que Belle tinha uma boa amiga com quem falar.
– Tenho de voltar amanhã – disse. – Tenho a certeza de que a Belle
ficaria contente por receber a sua visita, da parte da tarde. Talvez consiga
animá-la.
– Vou certamente tentar – respondeu ela. – E, por favor, diga-lhe que
penso nela e explique-lhe que só soube do ataque depois de falar consigo.
– Com certeza, Miss Forbes-Alton. A Belle agradecerá o seu cuidado,
como eu agradeço. Temos uma porta lateral no Railway; não precisará de
passar pelo pub.
– Irei por volta das duas. E mantenha-se a salvo, lá em França. A Belle
precisa de si inteiro.
Jimmy sorriu-lhe. Compreendia agora o motivo pelo qual Belle
gostava dela; podia parecer um pouco emproada à primeira vista, mas mel-
horava à medida que se dava a conhecer.

Às seis da tarde, Jimmy estava a tentar convencer Belle a comer um


pouco mais.
– Vá lá, só mais um bocadinho – disse, a segurar no garfo com um
pedaço de empada de peixe.
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Belle suspirou, abriu obedientemente a boca e deixou-o alimentá-la.
Mog fazia a melhor empada de peixe do mundo e, em circunstâncias
normais, tê-la-ia devorado gulosamente, mas não tinha apetite e só comera
um par de garfadas antes de desistir. Mas como Jimmy regressava a França
na manhã seguinte, sabia que iria menos preocupado se pensasse que ela
tinha voltado a comer.
Tê-lo em casa a seu lado fizera-a sentir-se melhor. Para grande irrit-
ação da enfermeira Smethwick, Jimmy passara a maior parte dos dois dias
anteriores sentado na cama ao lado dela, a conversar e a ler-lhe o jornal em
voz alta. Ia ter tantas saudades dele quando voltasse a partir.
Na noite anterior, o Dr. Towle dissera à enfermeira Smethwick que os
seus serviços já não eram necessários. Tanto Belle como Mog tinham fic-
ado contentes por verem pelas costas a tirana criatura.
– Vês, estás só a ser preguiçosa – disse Jimmy num tom de triunfo, en-
quanto lhe enfiava mais uma garfada na boca. – Se não comes, digo à Mog
que volte a chamar a Smethers.
– Agora é que já não posso mais, a sério. – Belle afastou o prato com a
mão. – Não estou a gastar energia suficiente para ter fome. Hei de recuper-
ar o apetite quando puder levantar-me da cama todos os dias.
– Só daqui a mais uma semana – disse Jimmy, perentório, e pousou o
prato na bandeja. – E, mesmo assim, só durante uma ou duas horas, para
começar.
– Tu não vais saber – disse ela, a provocá-lo.
– Aposto que vou. Sinto-me ligado a ti, mesmo quando estamos sep-
arados. No dia em que aquele homem te atacou tive um estranho pressenti-
mento. Só não pensei que tivesse alguma coisa que ver contigo.
– Nesse caso, o melhor é eu ter cuidado com o que faço – declarou ela,
maliciosa. – Agora passa-me o bloco de papel e eu vou tentar desenhar
aquele homem.
Jimmy recostou-se nas almofadas enquanto Belle desenhava. O facto
de alguém ser capaz de representar fosse o que fosse só com um lápis era
uma coisa que nunca deixava de o espantar. Ele só sabia fazer desenhos de
criança: cães que pareciam salsichas com palitos espetados e flores que
acabavam sempre parecidas com malmequeres.
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Custava-lhe ver Belle tão pálida e fraca. Estava a precisar de lavar o
cabelo, nunca lho tinha visto tão escorrido e baço, mas não poderia fazê-lo
enquanto o ombro continuasse a doer-lhe. Sabia que ela estava a esforçar-
se muito por convencê-lo de que a recuperação estava no bom caminho, e
fisicamente estava, mas por mais que risse e brincasse com ele, sentia a
profunda desolação que lhe assombrava a alma por ter perdido o bebé. Só
desejava que houvesse qualquer coisa que pudesse dizer ou fazer para
afastar aquele negrume.
Quando chegara a casa e lhe dissera que Miranda iria visitá-la no dia
seguinte, Belle parecera ficar muito contente.
– Ainda bem que a conheceste – dissera. – À primeira vista pode pare-
cer um pouco empertigada, mas é só a maneira como foi educada. Quando
a conhecemos melhor, não é diferente de nós.
Naquele momento, enquanto a via desenhar e pensava no facto de ela
ter travado amizade com alguém tão improvável como Miranda Forbes-
Alton, perguntou a si mesmo se o pai de Belle teria sido um cavalheiro. Já
com quinze anos ela tinha aquele ar polido e refinado que era prevalecente
nas classes superiores. Talvez fosse em parte por terem uma alimentação
melhor desde a infância, mas bastava olhar para um cavalo puro-sangue
para saber que a linhagem contava. Mog podia tê-la criado e ter-lhe en-
sinado boas maneiras, mas o cabelo negro e encaracolado e os olhos azuis
de Belle deviam ter sido herdados do pai. Achava que o aprumo e o en-
canto dela também deviam ter vindo dele.
Se Annie sabia quem era – e, tendo em conta a profissão que na altura
exercia, provavelmente não sabia –, o mais certo era que nunca o dissesse
a Belle. Mog não sabia; dizia que pouca atenção prestara a Annie até ela
estar na fase mais avançada da gravidez e que quando, certa vez, lhe per-
guntara, ela tinha respondido que não se metesse onde não era chamada.
Jimmy sabia, através de Mog, que Annie crescera numa aldeia e que o
pai era carpinteiro. Podia dar-se ares, vestir bem e ter adquirido uma certa
patine de sofisticação, mas nunca ninguém se deixaria iludir ao ponto de
pensar que nascera em berço de ouro.
– Pronto, é o melhor que consigo fazer – disse Belle, estendendo o
bloco de desenho e arrancando Jimmy ao seu devaneio.
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Jimmy pegou no bloco e examinou o desenho, mas em vez do patife
assassino que imaginara, Belle tinha desenhado um rosto muito vulgar que
poderia facilmente pertencer a um empregado bancário ou a um bagageiro
dos caminhos de ferro.
– De que é que estavas à espera? – perguntou Belle. – Lamento não ter
podido pôr-lhe uma cicatriz na cara ou uma pala a tapar um olho, mas ele
era assim, uma pessoa normal. Corpulento, quase completamente careca,
com cerca de um metro e oitenta. Tinha uma voz rouca e só quando se
aproximou de mim é que reparei no colarinho sujo, na barba por fazer e no
cheiro a mofo e a humidade. Foi então que tive medo.
– Tinha obrigação de saber, depois de tantos anos em Seven Dials, que
os maus não andam com letreiros na testa – disse Jimmy, pensativo. –
Desenhas tão bem, Belle. Talvez devesses pensar em dedicar-te a isso. A
sério, quero dizer.
– Em vez da loja? – perguntou ela, e viu-lhe nos olhos aquela ex-
pressão obstinada que conhecia tão bem.
– Não necessariamente – respondeu ele, cauteloso. – Olha, concordo
com o tio Garth: deixou de ser seguro para ti trabalhares lá sozinha. Fica
demasiado perto da charneca, é muito fácil para um patife qualquer à pro-
cura de um alvo indefeso assaltar-te e desaparecer sem ser visto. Mas se
contratasses uma ajudante, estarias muito mais segura.
– Pagar a alguém iria diminuir os lucros – argumentou ela.
– A princípio sim, mas se escolhesses a pessoa certa, por exemplo, a
tua amiga Miranda, ficarias com todo o teu tempo livre para fazer chapéus.
Podias reservar os especiais só para a tua loja e vender os mais vulgares a
outras lojas, em Lewisham ou Greenwich, por exemplo.
– Estás a dizer que vais deixar-me manter a loja?
Jimmy sorriu ao ver como os olhos dela se tinham repentinamente
iluminado.
– Sou o teu marido, não o teu dono – disse. – Sei que a maior parte dos
homens pensa que as duas coisas vão a par, mas eu cresci com uma mãe a
gerir um negócio de modista e sem nenhum homem a dar ordens em casa.
A minha mãe costumava dizer que as mulheres é que são, na realidade, o
sexo forte. Basta-me olhar para ti e para a Mog para saber que é verdade.
Belle pegou-lhe na mão, levou-a aos lábios e beijou-a.
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– Mas não voltarás para lá enquanto o doutor Towle não disser que es-
tás suficientemente recuperada – avisou ele. – E enquanto não arranjares
uma ajudante.
Belle olhou para ele por alguns instantes sem falar, e então uma
lágrima deslizou-lhe pela face.
– Porque é que estás a chorar? – perguntou ele.
– És tu que tens este efeito em mim. Por seres sempre tão compreens-
ivo e atencioso. Tenho tanta sorte em ter-te.
Jimmy inclinou-se e beijou-a.
– Bem, esperemos que o tio Garth não se lembre de querer ser o rei e
senhor da casa, porque acho que é tempo de ir ter com ele e falar-lhe dos
nossos planos. Vou levar o teu desenho comigo e peço-lhe que amanhã o
entregue à polícia.

Ainda estava escuro, na manhã seguinte, quando o despertador tocou.


Jimmy silenciou-o e começou a levantar-se.
– Um último abraço – pediu Belle, sonolenta.
Jimmy voltou-se e passou cuidadosamente os braços à volta dela,
evitando tocar-lhe no ombro ou nas costelas. O corpo quente de Belle
pareceu fundir-se no dele, e Jimmy aspirou o perfume a alfazema que exa-
lava e desejou do fundo do coração não ter de apanhar aquele comboio. O
cabelo dela contra a sua cara era suave, o corpo por baixo da camisa de
noite de algodão branco macio, e ele não fazia ideia de quanto tempo pas-
saria antes de poder voltar a abraçá-la assim.
– Tenho de ir – sussurrou. – Tu fica na cama e volta a dormir. Não
quero que tentes descer a escada… É melhor despedirmo-nos aqui.
Beijou-a ternamente, e deslizou para fora da cama, acendendo uma
vela para conseguir encontrar as roupas.
Sentia Belle a observá-lo enquanto lavava a cara e os dentes na bacia
do lavatório.
– Leva a camisola de lã que a Mog fez para ti, vai estar frio no barco.
Mog tinha-lhe lavado e engomado o uniforme, e Garth engraxara-lhe
as botas: uma forma discreta de lhe mostrarem como gostavam dele.
Naquele momento, o que mais queria era que não houvesse tantas provas
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de amor, que Mog não estivesse lá em baixo à espera com uma caneca de
chá quente, um embrulho de sanduíches para levar e mais meias e um
lenço enfiados na mochila. Tantos cuidados tornavam ainda mais difícil a
partida.
Finalmente, apertou os atacadores das botas e voltou à cama para bei-
jar Belle uma última vez. Queria dizer-lhe que se não voltasse deveria
lembrar-se sempre de que ser amado por ela fizera dele o homem mais fel-
iz do mundo. Mas não podia semear-lhe na cabeça a ideia de que podia
morrer. Nem semeá-la na sua própria cabeça. Só devia pensar no futuro
que partilhariam quando a guerra acabasse.
– Amo-te – disse apenas, e puxou a roupa da cama para cima,
aconchegando-a.
Permitiu-se um último e longo olhar, uma imagem a que poderia
sempre agarrar-se por muito más que as coisas se tornassem em França: a
tempestade de caracóis negros na almofada, os olhos azuis afogados em lá-
grimas e os lábios carnudos e macios a tremerem.
– Tem muito cuidado contigo e escreve-me todos os dias – disse numa
voz muito baixa antes de soprar a vela e voltar-se para sair do quarto.
Deteve-se no alto da escada para se recompor. Naquela casa podia ser
apenas um marido, mas quando saísse pela porta teria de ser um soldado e
pôr de parte o medo e outros sentimentos.

O som das pesadas botas de Jimmy lá fora na rua, pouco depois, fez
Belle chorar. Mais tarde, ouviu o comboio entrar na estação e voltar a
partir, levando-o para longe dela.
Mog subiu a escada, abriu a porta e espreitou para dentro do quarto,
mas Belle fingiu que estava a dormir. A última coisa que queria era com-
paixão. Só serviria para fazê-la sentir-se ainda pior. Passou o resto da man-
hã a chorar e a dormitar; agora que tinha perdido o bebé, que Jimmy tinha
partido e que se capacitara da possibilidade de ele nunca mais voltar,
sentia-se completamente arrasada.
E o facto de Mog lhe falar com dureza por não ter comido o pequeno-
almoço nem o almoço não ajudou nada.
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– Compreendo perfeitamente que estejas triste por o Jimmy ter tido de
voltar para França – ralhou. – Mas recusares-te a comer não vai trazê-lo de
volta; mas vai com certeza impedir-te de recuperar as forças. Tenho mais
que fazer do que subir até aqui com bandejas de comida que tu não tentas
sequer comer.

Quando ouviu passos no corredor, por volta das duas da tarde, Belle
pensou que era Mog que voltava para lhe dar mais um sermão e enfiou a
cara na almofada, novamente a fingir que dormia, mas a porta abriu-se e a
voz que ouviu foi a de Miranda.
– Oh, minha pobre Belle!
Belle sentou-se na cama. Tinha-se esquecido de que Miranda promet-
era aparecer. Caso se tivesse lembrado, teria pedido a Mog que arranjasse
uma desculpa qualquer para a mandar embora. Mas agora que ela ali es-
tava, com um grande ramo de flores de estufa nos braços, não foi capaz de
ser mal-educada.
– Obrigada por ter vindo – disse numa voz fraca, muito consciente da
presença de Mog atrás de Miranda, preparada para dizer qualquer coisa se
ela não se mostrasse devidamente agradecida.
– Fiquei perfeitamente horrorizada quando Mister Reilly me contou do
ataque, e lamento muito a sua perda – disse Miranda. – Tenho estado no
Sussex, e por isso não sabia de nada. Quem me dera que houvesse
qualquer coisa que estivesse ao meu alcance para a fazer sentir-se melhor.
– Já me sinto melhor só por a ver – disse Belle. – Entre, por favor, e
sente-se. Essas flores tão bonitas são para mim?
Mog sorriu, claramente aliviada por ela se ter comportado como devia
ser.
– Posso trazer-lhes um chá? – sugeriu. – E vou levar essas flores para
baixo, se achar bem, e pô-las numa jarra com água.
Miranda disse que adoraria um chá e puxou uma cadeira para junto da
cama. Mog saiu, levando as flores consigo.
– Esteve a chorar – disse Miranda, quando a porta se fechou. – Mas
seria de esperar, agora que o Jimmy voltou para França. Aposto que sente
que lhe tiraram tudo.
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– É exatamente o que sinto. – Belle suspirou. – Não sei o que faço se
perder o Jimmy. Vão mandá-lo para a frente muito em breve, e se podem
tê-lo ensinado a disparar, duvido que haja uma maneira de aprender a
evitar as balas do inimigo.
– Deu-me a impressão de ser um homem muito calmo e inteligente –
disse Miranda. – Além disso, tem muitos motivos para voltar. Tenho um
tio que é brigadeiro; uma vez disse-me que os homens que não têm nada a
perder podem ser um perigo. São com frequência muito corajosos, mas
temerários. Os que têm tudo a perder, como o seu Jimmy, não correm
riscos que os coloquem em perigo a eles e aos camaradas, e acabam por ser
os melhores a comandar.
– É reconfortante sabê-lo – disse Belle, e sorriu debilmente. – Mas
ajude-me a sair deste poço de autocomiseração. Conte-me o que tem feito.
Miranda atirou para trás o elegante lenço de seda que usava ao
pescoço, com um gesto que dizia que tinha muito para contar.
– Bem, por estranho que possa parecer, estava a ajudar num pequeno
hospital lá no Sussex – disse. – Os pacientes eram, na sua maioria, oficiais
feridos em combate e, como sei conduzir, era eu que os levava para as cas-
as de convalescença, ou para as das famílias, quando estavam em con-
dições de viajar. Mas acabou porque alguém achou mal uma mulher estar a
fazer um trabalho de homem.
– Que ridículo! – exclamou Belle. – A maior parte do homens que
sabem conduzir deve ter-se alistado.
– Parece que não – disse Miranda, sombria. – Eu era apenas uma
voluntária, claro, e, para ser franca, acho que foi muito rude da parte deles
recusarem a minha ajuda. Sugeriram que me tornasse voluntária a ajudar a
tratar dos feridos e dos doentes, se queria ter alguma coisa que fazer. Mas
eu detestei esta ideia de que as mulheres só servem para lavar pessoas e en-
rolar ligaduras. Como calcula, a minha querida mamã acha que um menina
bem-nascida não devia sequer fazer uma coisa dessas.
E, no meio de risos, começou a contar a Belle uma aventura que lhe
acontecera quando andava a conduzir. No escuro, metera pelo lado errado
na bifurcação de uma estrada rural e acabara atascada na lama no meio de
um bosque com um paciente que não podia andar.
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– Foi horrível. Tive de o deixar no carro e ir a pé procurar a quinta
mais próxima para pedir ajuda. Chovia imenso e eu estava a escorrer água
e tinha o casaco e os sapatos completamente estragados. Quando, por fim,
consegui que um fazendeiro me levasse no trator até ao carro, o malfadado
paciente pôs-se a ralhar comigo por não me ter certificado de que tinha
fósforos para lhe acender os cigarros antes de me ir embora. Dá para acred-
itar? Ele ali sentado, quentinho e seco, a queixar-se de não ter podido fu-
mar, enquanto eu tinha caminhado oito quilómetros e parecia uma ratazana
afogada!
Belle riu à gargalhada. A verdade era que Miranda dava a impressão
de ser um pouco insensível. Muito provavelmente, o paciente pensara que
ela tinha ido passar o resto da noite no hotel mais próximo e se esquecera
de onde o deixara.
– Que se segue, então? – perguntou Belle. – Distribuir chávenas de chá
aos soldados enquanto eles esperam pelos transportes de tropas?
– Fui convidada para gerir uma banca de chá – respondeu Miranda. –
Mas vai ser o inferno. Vou passar os dias com um monte de mulheres
iguais à minha mãe. Duvido que consiga aguentar muito tempo.
– Pode ajudar-me na loja quando eu estiver melhor – disse Belle, num
impulso. – O Jimmy disse que eu podia voltar, desde que tivesse alguém
comigo. Até sugeriu o seu nome. Pagar-lhe-ia, claro, e seria a pessoa ideal.
Olhe para si, uma imagem da moda!
Miranda usava um vestido cinzento-prata com uma saia comprida e es-
treita; à volta da gola do casaco justo pusera um lenço de seda em tons de
azul e prata com uma levíssima sugestão de cor-de-rosa. O discreto chapéu
cinzento, de aba larga, tinha à volta da copa uma tira do mesmo tecido que
o lenço.
– Com certeza não está a falar a sério? – perguntou, muito
surpreendida.
– Claro que estou – insistiu Belle. – Tenho de contratar um ajudante,
mas faz muito mais sentido ter alguém com bom gosto e presença do que
uma caixeira de loja que até agora só tenha cortado queijo.
Miranda riu.
– Oh, Belle, estaria como peixe na água, porque adoro chapéus. Mas
só Deus sabe o que vai a mamã dizer.
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– Talvez possa dizer-lhe que está só a ajudar-me? Fazer com que
pareça mais uma missão de misericórdia do que um emprego?
Com esta, desataram as duas a rir. No caso de Belle, foi por estar a
imaginar a formidável Mrs. Forbes-Alton toda inchada de indignação, a
manifestar as suas opiniões a respeito das empregadas de lojas como se
fossem uma espécie de roedor.
– Dirá: «Não pode estar a falar a sério, Miranda! As pessoas vão
pensar que é uma dessas suffragettes» – disse Miranda, a imitar a voz da
mãe. – Para ela, qualquer coisa ligeiramente subversiva é uma indicação de
sufrágio.
– A Mog tem grandes simpatias pelo movimento das suffragettes –
disse Belle. – E eu também. Porque não hão de as mulheres poder votar?
– Para dizer a verdade, concordo – confidenciou Miranda. – Se fossem
as mulheres a mandar, não haveria guerras. Temos coisas melhores que
fazer com o nosso tempo do que escavar trincheiras e matar pessoas.
– Em que ocuparia então o seu tempo, se pudesse fazer o que quisesse?
– perguntou Belle.
– Não me importaria de passar uma tarde com um amante
maravilhoso.
A resposta, inesperadamente audaciosa, levou Belle de volta aos dias
preguiçosos no Martha’s em Nova Orleães. As raparigas eram sempre sim-
páticas e abertas, e ela tinha saudades daquele género de cumplicidade
feminina. Miranda não fora tão explícita como qualquer delas teria sido,
mas o facto de se sentir suficientemente segura para falar provava que a
via verdadeiramente como uma amiga.
Miranda tapou a boca com a mão.
– Oh, que falta de tato da minha parte, depois de tudo por que passou –
disse, muito corada.
– De modo nenhum – riu Belle. – Animou-me mais do que pode
imaginar.
– A sério?
– Sim, a sério. Foi adorável não se ter sentido na obrigação de andar
em bicos de pés à minha volta.
Ainda estavam a rir quando Mog entrou com uma bandeja onde tinha
posto as flores numa jarra e chá e bolo para as duas.
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– Ouvi-as rir lá em baixo – disse Mog. – Posso saber qual é a graça?
– Foi só uma patetice a respeito de uma das clientes da Belle – re-
spondeu Miranda. – Fez-nos rir às duas.
– Bem, gostei de as ouvir. – Mog pousou a bandeja em cima da mesa
de cabeceira e levou a jarra com as flores para a cómoda. – Deixo-a a fazer
o papel de mãe, Miss Forbes-Alton – disse, e voltou-se para sair.
– Miranda, mente quase tão bem como eu – disse Belle, com uma nova
gargalhada.
– Foi uma coisa que aprendi para manter feliz a querida mamã. Tenho
a impressão de que ela desaparecia numa baforada de fumo, se me ouvisse
dizer que desejava uma tarde com um amante.
No mesmo instante, Belle compreendeu por que razão Miranda fora
tão imprudente com Frank. Talvez fosse um tanto ingénua quando o con-
hecera, mas não era de certeza a flor de estufa pela qual a princípio a to-
mara. No fundo do coração, era uma aventureira, e fora só a sua falta de
experiência com um certo tipo de homens que a levara a deixar-se enganar
pelo hábil sedutor. Parecia que, afinal, tinham mais em comum do que de
início pensara.
Miranda ficou com ela quase até às cinco da tarde, e o tempo passou a
correr enquanto as duas falavam disto e daquilo. Só quando se apercebeu
de que horas eram e disse que tinha de ir para casa, é que Miranda voltou a
ficar séria.
– Sei que não lhe perguntei como se sente por ter perdido o seu bebé –
disse e, inclinando-se, acariciou a face de Belle, os olhos azul-claros cheios
de compreensão. – Por favor, não pense que foi por não querer saber,
porque quero, muito. Mas depois das coisas por que passámos juntas, não
me senti no direito se perguntar uma tal coisa porque provavelmente pensa
que não senti a perda do meu bebé.
A sinceridade dela comoveu Belle.
– Sei exatamente o que quer dizer, Miranda. Foi por essa mesma razão
que, naquela noite, não lhe disse que ia ter um filho. Ambas perdemos os
nossos bebés, intencional ou acidentalmente, e o nosso desgosto é igual.
Penso que deu provas de uma grande coragem ao vir ver-me; deve ter tido
receio de que eu me voltasse contra si. Mas fez-me sentir melhor, deu-me a
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esperança de que, um dia, hei de conseguir ultrapassar isto. E isso é muito
mais valioso do que meras palavras de solidariedade.
Miranda limpou apressadamente uma lágrima do canto do olho.
– Posso voltar a visitá-la? Eu sei que precisa de descansar para recu-
perar as forças, mas que me diz de depois de amanhã?
– Gostaria muito – disse Belle. – E estava a falar a sério quando disse
aquilo a respeito de trabalhar na loja, de modo que o melhor é começar a
pensar numa maneira de preparar a sua mãe.
Voltaram as duas a rir, e Belle ainda sorria quando Miranda saiu do
quarto e desceu a escada.
CAPÍTULO 8

N uma das salas de interrogatório da esquadra de polícia de Deptford, o


guarda Broadhead tirou do bolso o esboço que Mrs. Reilly fizera do
seu assaltante e mostrou-o ao sargento Wootton.
Garth Franklin fora entregar o desenho na esquadra de polícia de
Blackheath um par de dias antes, e Broadhead não perdera tempo: saltara
para a sua bicicleta e tratara de visitar todas as outras vítimas de crimes
semelhantes cometidos na área para o mostrar. Todas menos uma confirm-
aram que era o mesmo homem que as tinha assaltado.
Pela primeira vez desde que fora recusado pela junta médica do exér-
cito, James Broadhead sentia que talvez pudesse na realidade fazer mais
pelo seu país ficando na polícia.
Com trinta e cinco anos, solteiro e forte como um cavalo, sentira que
era seu dever alistar-se. Mas então fora recusado porque lhe faltavam dois
dedos na mão direita. Perdera-os onze anos antes, quando ficara com a
mão presa debaixo de uma trave de metal enquanto tentava libertar um
rapazinho que fora brincar para um edifício em ruínas que se desmoronara.
Os médicos da junta não tinham acreditado que ele fosse capaz de dis-
parar uma espingarda. Bem gostaria de ter tido oportunidade de lhes provar
que estavam enganados – ao fim e ao cabo, a perda dos dedos não afetara o
seu trabalho na polícia. A rejeição doera-lhe durante algum tempo, fizera-o
sentir-se diminuído como homem, mas o entusiasmo que sentia agora que
tinha provas de que o atacante de Mrs. Reilly era também responsável por
outros crimes varrera tudo isso.
– O que foi que ele fez? – perguntou Wootton, enquanto aproximava o
esboço da luz e o examinava. Era um homem de cinquenta e tal anos, com
feições pesadas e um farto bigode encaracolado ao estilo militar.
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Broadhead fez-lhe um resumo dos crimes do homem e disse que outras
vítimas de assaltos semelhantes tinham confirmado que aquela era a cara
do meliante que as roubara.
– Quem fez o desenho? Alguém da polícia?
– Foi Mrs. Reilly, a chapeleira de Blackheath. Também perdeu o bebé
e esteve à beira da morte por causa do ataque.
Wootton franziu o sobrolho.
– Nesse caso, é melhor apanhá-lo antes que faça mal a mais alguém. A
cara é-me familiar, mas não consigo ligá-la a um nome. Não importa, al-
guém daqui há de saber se já o engavetámos alguma vez.
Broadhead sorriu, encantado. Aquela investigação tornara-se para ele
um caso pessoal. Fora o primeiro agente a chegar ao local do crime e ficara
horrorizado ao ver que uma mulher que há tanto tempo admirava à distân-
cia tinha sido maltratada daquela maneira. O Railway era o pub onde cos-
tumava ir beber, e porque também respeitava muito Jimmy Reilly, estava
determinado a levar perante a justiça o homem que lhe atacara a mulher.
– Podemos tratar disso agora? – perguntou a Wootton. – Quanto mais
cedo pusermos esse malandro atrás das grades melhor.

Wootton saiu para falar com os seus agentes e esteve ausente cerca de
vinte minutos. Enquanto esperava sozinho na sala de interrogatório,
Broadhead espantava-se com o barulho e agitação que reinavam no edifí-
cio. Excetuando as noites de sábado, quando tinham de arrebanhar os
bêbedos que se envolviam em zaragatas, a esquadra de Blackheath tendia a
ser um lugar muito sossegado. Mas ali era meio-dia de um dia de semana,
e uma mulher berrava como se estivessem a matá-la, outra pessoa qualquer
batia sem parar nas grades de uma cela, e de dois em dois minutos havia
uma erupção de gritos e pragas. A dada altura, houve uma confusão
qualquer mesmo à porta da sala de interrogatório, com um homem a prote-
star aos urros que não tinha sido ele.
Wootton voltou à sala com um ar satisfeito.
– Sim, temo-lo cá registado. Chama-se Archie Newbold, sem residên-
cia fixa. Dizem que foi desmobilizado do exército por invalidez há alguns
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anos e tivemo-lo cá como convidado várias vezes, por embriaguez e con-
duta desordeira.
Broadhead assentiu com um gesto de cabeça.
– Podemos então ir buscá-lo?
– «Podemos»? – disse secamente o graduado. – O homem pertence à
nossa jurisdição, vamos ser nós a apanhá-lo. Quanto a si, pode voltar para
a sua simpática e tranquila Blackheath. Entraremos em contacto com a es-
quadra de lá quando o tivermos na jaula.
Para Broadhead, aquilo foi como uma estalada.
– Mas, sargento, fui eu que fiz todo o trabalho de base neste caso.
Gostaria de ser eu a capturá-lo.
Wootton olhou com dureza para ele durante um momento, antes de
replicar:
– Aqui, para capturar os bandidos, é preciso conhecer a área. Há
montes de vielas escuras e estreitas, velhos armazéns, casas de ópio, bor-
déis e prédios onde chegam a viver dez pessoas em cada quarto, pardieiros
imundos onde as mulheres são tão más como os homens e as crianças
seguem o exemplo dos pais. Parece ser um tipo duro, mas isso aqui não
basta. Aqui é preciso ser tão manhoso como eles.
Broadhead sentiu-se ofendido pela assunção de que o seu trabalho
como polícia consistia em encontrar cães perdidos e ajudar velhinhas a at-
ravessar a rua, mas tinha demasiada experiência para se pôr a discutir com
um superior, e Wootton tinha todo o ar de não ser flor que se cheirasse,
caso o irritassem.
– Bem, sabe onde pode encontrar-me, se precisar de uma ajuda extra –
disse. – Vou levar o desenho comigo. Vai ser necessário, como prova.
Wootton voltou a dar uma vista de olhos ao esboço.
– Está muito parecido. Pergunto a mim mesmo se ela seria capaz de
desenhar alguém que lhe descrevessem. Ajudar-nos-ia a encontrar a
malandragem muito mais facilmente.
– Transmitirei o elogio, mas não a imagino a querer passar o seu
tempo a fazer esse género de trabalho, sobretudo depois daquilo por que
passou – respondeu Broadhead. – Bem, vou andando. Desejo-lhe sorte
com esse Newbold.
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Na última semana de novembro, Belle foi ver a loja pela primeira vez
desde que fora atacada. Tinha Mog consigo, e Miranda iria ter com elas a
qualquer momento.
– Cheira um pouco a mofo – disse Mog, enquanto abria a porta e
acendia as luzes. – Mas vai desaparecer logo que acendermos o fogão.
Belle entrou, hesitante, e ficou um pouco surpreendida por parecer
tudo exatamente igual ao que era antes do ataque. Sabia que Mog e Garth
tinham mandado substituir o espelho e retirado tudo o que ficara partido,
mas estava à espera de ainda encontrar algum vestígio dos acontecimentos
que tinham ocorrido na última tarde que ali estivera.
Sabia que devia sentir-se aliviada por não haver nada que lhe recor-
dasse esses acontecimentos, e até empolgada por rever o lugar que em tem-
pos tanto amara. Mas a verdade era que não queria estar ali. Nem naquele
momento, nem no futuro.
Não que tivesse medo. Só sentia que o que quer que fosse que a tinha
feito desejar tanto aquela loja, e trabalhar tão arduamente para fazer dela
um êxito, desaparecera. Pura e simplesmente, já não lhe apetecia passar
longas horas a desenhar um chapéu e depois a imaginar a maneira de o
fazer. Tal como não lhe apetecia ficar ali dia após dia a ver mulheres ex-
perimentarem chapéus e ouvir-lhes as histórias a respeito de para que os
queriam.
A ironia desta mudança não lhe passou despercebida. Passara horas a
convencer Mog, Jimmy e Garth de que precisava da loja, e agora que es-
tavam convencidos, não a queria. Mas não estava a ver como livrar-se
dela, sobretudo depois de, num impulso, ter oferecido um emprego a
Miranda.
– Vais ter de fazer algumas peças novas e mudar a montra, para as
pessoas verem que estás feliz por voltar – disse Mog.
Belle abriu a boca para dizer que nunca estaria feliz por voltar, mas
tornou a fechá-la, sabendo que se dissesse a Mog o que sentia iria deixá-la
preocupada.
– Não posso fazê-lo antes do Natal – conseguiu finalmente dizer. –
Vou esperar pelo Ano Novo.
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O seu corpo podia ter sarado, mas era como se a centelha vital que em
tempos o habitara se tivesse extinguido. Deixava-se muitas vezes invadir
por um desânimo e uma melancolia tão grandes que se refugiava no
quarto, dizendo a Mog que queria ler. Mas nem tentava abrir um livro. Em
vez disso, estendia-se na cama e ficava a olhar para o teto, a sentir-se im-
potente e desesperadamente triste.
– Acho boa ideia – respondeu Mog, sem sequer olhar para ela. Estava
a endireitar um chapéu encarnado num expositor, como se isso fosse a
coisa mais importante do mundo. – Não vais ter tempo para fazer mais do
que alguns chapéus novos, e precisas de fazer uma reabertura em grande.
Além disso, a Miranda ainda está a ajudar na banca de chá.
Como se esta última frase fosse uma deixa, Miranda chegou, a acenar-
lhes através do vidro da montra. Grata pela diversão, Belle abriu a porta e
abraçou a amiga.
Sentia que se não fossem as visitas regulares de Miranda, era bem
capaz de se ter deixado ir abaixo naquelas últimas semanas. Miranda nunca
fazia perguntas; se ela estava de humor sombrio, limitava-se a aceitar o
facto. Se estava a chorar, abraçava-a e oferecia-se para lhe arranjar o ca-
belo, ou sugeria que fossem dar um passeio. Contava-lhe histórias diverti-
das a respeito das senhoras com que trabalhava na banca de chá em Char-
ing Cross. Fora a habilidade de Miranda para a fazer rir que lhe permitira
aguentar muitos dias maus.
– Estou entusiasmada por voltar aqui – disse Miranda, ofegante, e en-
tão, ao ver um chapéu azul-escuro num expositor, correu para ir buscá-lo.
– Oh, tão querido! – exclamou e, atirando para cima de uma cadeira o
castanho de feltro que estava a usar, substituiu-o pelo azul-escuro. Então, a
fazer pose diante do espelho, chupou as bochechas para dentro e projetou
para fora os lábios franzidos. – Como é possível que me tenha escapado até
agora? É perfeito para mim.
Como sempre, conseguiu fazer Belle rir. O chapéu azul era na verdade
um pouco extravagante, todo ele tules e flores de veludo, um chapéu para
um chá da tarde num hotel elegante, e ficava perfeito no cabelo louro de
Miranda.
– Acho que a tua mãe diria que não te vai aquecer muito a cabeça –
disse.
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– Quem quer saber de aquecimento quando uma coisa é tão bonita e
divertida? – replicou Miranda. – És tão inteligente, Belle. Espero conseguir
aprender a fazer qualquer coisa que se pareça com um chapéu enquanto cá
estiver.
Belle sentiu uma pontada de culpa ao compreender que Miranda tinha
levado muito a sério a oferta de emprego. Claro que ultrapassaria o desa-
pontamento se lhe explicasse o que sentia, mas naquele momento, com a
amiga tão bonita com o chapéu, as faces brilhantes de entusiasmo face à
perspetiva de um novo começo, não teve coragem para espetar um alfinete
no balão.
Depois de Mog as ter deixado sozinhas para ir fazer umas compras,
Miranda começou a andar pela loja e a experimentar chapéus, e a cada um
que experimentava fingia ser uma pessoa diferente, descrevendo as circun-
stâncias em que poderia usá-lo.
Ao enfiar na cabeça um cloche de feltro azul-escuro, muito simples,
tornou-se uma rapariga do campo numa entrevista para um lugar de ama.
– Tenho muita experiência com miúdos – disse, com um cerrado
sotaque rural. – É que sou a mais velha de dez, está a perceber, e a minha
mã gosta da pinga, de modo que tenho eu de tratar deles. Não concordo
nada com dar com a correia nos pequeninos, nem mesmo quando eles se
portam como sanguessugas, uma boa estalada geralmente resolve o prob-
lema, e depois fechá-los na arrecadação do carvão.
Belle riu à gargalhada, porque a maneira como Miranda contorcia a
cara enquanto fazia o seu discurso lhe fazia muito lembrar uma professora
horrível que tivera na escola e estava sempre a bater nos alunos com uma
bengala.
Uma ligeira pancada na porta da loja sobressaltou-as às duas. Miranda
tirou o chapéu, com um ar culpado.
– É um polícia – disse.
Belle pôs-se de pé.
– É o guarda Broadhead, aquele de quem te falei.
Abriu a porta e convidou-o a entrar. Apesar de não se lembrar ver-
dadeiramente do papel dele no dia do ataque, depois disso o polícia tinha
ido visitá-la a casa várias vezes, e acabara por simpatizar com ele.
– O que é que o traz hoje por cá? – perguntou.
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– O homem que a atacou foi encontrado e preso – respondeu ele, com
um grande sorriso. – Foi às primeiras horas da manhã, em Deptford. Vai
amanhã a tribunal, mas ficará detido até ao julgamento. Se vai ou não ser
antes do Natal, dependerá da quantidade de trabalho que os tribunais est-
iverem a ter nessa altura.
Belle sentiu uma vaga de alívio.
– É uma excelente notícia – disse. – Saber que ele está atrás das grades
fará com que eu e os outros lojistas da rua nos sintamos muito mais
seguros.
Broadhead anuiu.
– Encontrei Mrs. Franklin pelo caminho e ela disse-me que estava
aqui. Fico contente por vê-la a pé e recuperada. Passou por um mau bo-
cado, sobretudo com o seu marido em França.
Belle apresentou-lhe Miranda e explicou que ela ia ser sua ajudante na
loja.
– O Jimmy vai a caminho da Frente Ocidental – acrescentou. – Pelo
menos ia, da última vez que tive notícias dele. Só Deus sabe quando vol-
tará a casa.
– E eles a dizerem que estaria tudo acabado antes do Natal! – disse
Broadhead. Parecia um pouco embaraçado, como se houvesse mais
qualquer coisa que queria dizer mas não conseguisse decidir-se.
– E é suposto eu aparecer amanhã no tribunal? – perguntou Belle, para
lhe dar um empurrão.
– Oh, não, é só uma audiência preliminar. Um advogado explica o
caso ao juiz.
– Dir-me-á então quando vou ser precisa?
– Sim, com certeza – disse ele, e sorriu. – É melhor ir andando, mas
quero dizer-lhe que sem o desenho que fez do homem, nunca teríamos
conseguido apanhá-lo. Tem um talento raro. E os seus chapéus também
são muito bonitos.
– Muito obrigada, guarda Broadhead – respondeu Belle. – E estou
muito feliz por terem apanhado o vosso homem.
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Depois de ele sair, Miranda encostou-se à parede, a sorrir mali-
ciosamente para Belle.
– Para que é esse ar? – perguntou Belle.
– Ele gosta de ti – disse Miranda.
– Não sejas ridícula.
– Não tirava os olhos de ti! Aposto que ouviu dizer que viveste em
França e está na esperança de um pouco de oh-la-la.
Belle agitou um dedo esticado na direção da amiga, como uma
professora.
– Tu, Miranda, tens uma mentezinha perversa e uma imaginação
hiperativa.

Miranda era, na realidade, muito perspicaz, porque, a caminho da es-


quadra, James Broadhead levava a cabeça cheia de Belle. Logo no
primeiro dia em que abrira a loja em Tranquil Vale, Belle provocara na
aldeia uma vaga de excitação que tinha chegado à esquadra da polícia. A
sua beleza era mais do que o suficiente para a tornar notada, mas, além
disso, havia naquela loja elegante e totalmente feminina qualquer coisa que
intrigava toda a gente, homens e mulheres. Sempre que passava por lá na
sua ronda, não resistia a espreitar pela montra. Ouvira rumores de que ela
era francesa, e havia nisso uma implicação de «fácil». Mas os rumores tin-
ham morrido quando se tornara público que só aprendera a arte de
chapeleira em França e que ia casar com Jimmy Franklin, coproprietário,
com o tio, do Railway.
James nunca tinha falado com Belle antes do dia em que ela fora as-
saltada. Tudo o que tivera fora vislumbres dela quando passava em frente
da montra da loja. Por vezes, estava a atender uma cliente, outras sentada a
coser ou a escrever qualquer coisa. Mas sentia sempre como que uma
descarga elétrica ao ver aquela combinação de cabelo negro e lustroso,
pele leitosa e uma figura esbelta e escultural.
Tinha passado pela igreja no dia em que ela casara, no preciso instante
em que vinha a sair de braço dado com Jimmy, e o espetáculo deixara-o
sem respiração. Gloriosa era a única palavra capaz de descrever como
ficava com o vestido de seda creme e o vaporoso véu a enquadrar-lhe o
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rosto adorável. Estava a olhar para Jimmy e a rir de qualquer coisa, e
James sentira uma pontada de pura inveja. Nunca tinha visto uma mulher
que se lhe comparasse.
Fora por puro acaso que tinha sido o primeiro a chegar ao local quando
ela fora atacada. O percurso da sua ronda tinha sido alterado no dia anteri-
or, e se estivesse a seguir o antigo teria estado a descer em direção a Lee
Green em vez de estar a subir Tranquil Vale. E quando Stokes, o sapateiro,
saíra da loja a correr e a gritar por ajuda teria encontrado outra pessoa
qualquer.
Ela estava caída no chão, amarrotada, e havia salpicos de sangue na
parede. Só na altura soubera que estava grávida: a maneira como caíra tor-
nara evidente a curva do ventre, que ela ainda tapava com uma mão, num
gesto de proteção que ele achara profundamente comovente. Mal o médico
chegara, James correra para a charneca à procura do atacante, e pensava
que se o tivesse encontrado seria bem capaz de lhe rasgar a garganta.
Desde aquela tarde, visitara Belle mais três vezes. A primeira tinha
sido no dia seguinte ao ataque, quando fora recolher as declarações.
Encontrara-a muito pálida, esgotada e cheia de dores, mas mesmo assim
ela fizera um esforço por lhe dar a maior quantidade de pormenores
possível.
Então soubera que tinha perdido o bebé e que, durante algum tempo,
estivera entre a vida e a morte. Mas felizmente escapara, e em cada uma
das outras duas ocasiões em que tivera motivo para falar com ela,
encontrara-a um pouco melhor. Nem mesmo depois de tudo aquilo por que
tinha passado se queixara; na realidade, parecia até impaciente para que
acabasse de interrogá-la sobre o sucedido para poder informar-se por sua
vez a respeito dele.
As pessoas olhavam sempre para os dedos em falta e desviavam rapi-
damente o olhar, como que repelidas pela visão. Mas Belle perguntara-lhe
o que acontecera e quanto tempo passara até ter conseguido recuperar o
uso da mão. Perguntara-lhe que ferimentos sofrera a criança que ele tinha
salvado e falara de como a mãe devia ter-lhe ficado agradecida pelo seu
gesto corajoso. James saíra do Railway naquele dia a sentir que os dedos
em falta eram uma medalha de honra em vez de um aleijão que precisava
de esconder.
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Tinha querido dizer-lhe como estava feliz por vê-la agora tão melhor,
mas o azul vivo dos olhos dela, o comprimento das pestanas negras e a tur-
gidez dos lábios tinham-lhe roubado o tino e a voz. Como desejava ser
mais dotado em matéria de graças sociais, para poder manter com ela uma
conversa mais demorada! De boa vontade examinaria todos e cada um dos
chapéus, varreria o chão e lavaria as janelas, fosse o que fosse para poder
continuar perto dela. Mas a amiga estava lá, e não se lembrara de mais
nada para dizer.
Estava entusiasmado por o atacante ter sido capturado, e orgulhava-se
de ter sido elogiado pelos seus superiores por todo o trabalho que fizera
naquele caso. Talvez até conseguisse uma promoção, o que seria ótimo.
Mas, entretanto, sabia que ia ter de deixar de sonhar acordado com Belle.
Ao fim e ao cabo, ela era uma mulher casada.

James Broadhead não era o único que naquele instante pensava em


Belle. Também Jimmy o fazia – era uma das coisas que conseguiam
sempre aquecê-lo um pouco.
A marcha através da França, partindo de Étaples, fora um tormento. As
estradas francesas eram calcetadas e muito cruéis para com os pés, sobre-
tudo porque as botas Ammos distribuídas aos soldados ingleses não tinham
ainda sido quebradas e eram rijas. Jimmy tivera a sua quota-parte de bol-
has – a que lhe aparecera no calcanhar tinha agora o tamanho de uma
moeda de meia coroa –, mas outros homens estavam bem pior; os pés
sangravam-lhes e marchavam a coxear, como velhos.
Antuérpia caíra e as estradas eram uma massa fervilhante de gente que
tentava por todos os meios fugir aos Alemães. Algumas pessoas empur-
ravam carrinhos de mão e de bebé onde tinham empilhado os seus per-
tences. Tinha visto um carroça carregada de mobílias, com uma velhota
sentada numa cadeira encarrapitada no topo. Outras caminhavam quase do-
bradas ao meio, vergadas sob o peso das enormes cargas que trans-
portavam às costas. Mulheres de olhos assustados com bebés ao colo
mendigavam leite e pão, e havia uma quantidade enorme de crianças e vel-
hos, de ar perdido e miserável. Nenhuma daquelas pessoas parecia saber
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para onde ia ou do que viveria. Jimmy pensou que eram como milhares de
ovelhas que seguiam às cegas a pessoa que caminhava à frente.
A partir do início de novembro, começara a chover sem parar, e agora
tinham de enfrentar também a neve. Não seria tão mau se todas as noites
tivessem um abrigo e uma refeição quente, se pudessem secar as roupas
como devia ser e recomeçar recuperados no dia seguinte. Em vez disso,
porém, o melhor que podiam esperar era uma noite num celeiro – nem se-
quer tinham tendas, como outros regimentos. Dormiam muitas vezes ao re-
lento, com uma capa impermeável para se cobrirem e um pedaço de carne
enlatada fria para comer.
Naquela noite, enquanto pensava em Belle, estava num celeiro, e
quando olhou em redor para os homens que tinham feito a recruta com ele
em Étaples e que tentavam dormir, deitados na palha e apertados uns con-
tra os outros em busca de um pouco de calor, perguntou-se quantos deles
não chegariam sequer à linha da frente para combater. Muitos eram sacu-
didos por violentos acessos de tosse, outros tinham de sair constantemente
por causa da diarreia, um soldado caíra redondo no chão, naquele dia, e
dizia-se que tinha pneumonia.
Eram, na sua maioria, empregados bancários, caixeiros de lojas e oper-
ários fabris – havia até um par de professores primários –, não homens ha-
bituados à vida ao ar livre. O período de treino em Étaples podia tê-los en-
durecido até um certo ponto, mas aquela interminável marcha estava pouco
a pouco a enfraquecê-los de tal modo que muitos iam, com toda a certeza,
adoecer gravemente.
Jimmy sentia que estava a aguentar-se, mas ele carregava pesadas bar-
ricas de cerveja desde os dezasseis anos, chovesse ou fizesse sol, e sempre
trabalhara de manhã à noite. Além disso, tinha várias camadas de roupa
quente, de lã, por baixo do uniforme. Mesmo assim, enquanto tiritava deit-
ado de costas em cima da mochila, não conseguia deixar de perguntar a si
mesmo até que ponto as coisas iriam tornar-se ainda piores.
Ouvira dizer que o mau tempo impusera uma espécie de trégua na
frente, mas o capitão Brunskill dissera que isso não queria dizer que iam
ficar de braços cruzados, pois as trincheiras e abrigos que o Corpo Expedi-
cionário Britânico escavara para se proteger da artilharia alemã eram
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rudimentares. O trabalho deles seria melhorar e ampliar as trincheiras, de
modo a garantir um campo de tiro satisfatório.
Bem desejava agora não ter sido tão precipitado ao alistar-se. Parecia-
lhe evidente que os Alemães dispunham de um exército temível, e dizia-se
que uma grande parte do CEB tinha já sido dizimada em Mons e na cha-
mada Corrida para o Mar. Aqueles homens eram soldados experientes,
poucos, talvez, em comparação com o enorme exército francês, mas rijos
como botas velhas e bem treinados. Agora, tudo o que a Inglaterra tinha
para oferecer para lhes engrossar o número era o Exército de Kitchner, um
heteróclito bando de rapazes que tinham saído de casa em busca de glória.
Não conseguia ver nada na escuridão do celeiro – a chuva apagara a
fogueira que tinham acendido lá fora –, mas ouvia suspiros, roncos e
tossidelas, e perguntava a si mesmo quantos daqueles homens estariam a
chorar em silêncio, a desejar não se terem deixado apanhar pelo patriot-
ismo ou ido atrás dos amigos que queriam alistar-se. Mas agora estavam
ali, e dentro de poucos dias estariam na frente. Não havia maneira de re-
gressar a casa, exceto gravemente ferido; até os mortos eram enterrados em
França.
CAPÍTULO 9

O guarda James Broadhead abriu caminho por entre o mar de gente que
enchia o vestíbulo do tribunal de Lewisham para apanhar Belle e
Mog antes de elas saírem.
– Só queria agradecer-lhe pelas provas que aqui trouxe hoje – disse,
dirigindo-se a Belle. – Não há de ter sido fácil para si.
Belle esboçou um débil sorriso. Não fora com certeza fácil esperar que
a chamassem a prestar testemunho numa sala cheia de pessoas esfarrapa-
das que cheiravam mal e olhavam para ela com expressões malévolas.
Testemunhara a respeito do assalto e dos ferimentos de que fora vítima e,
pior ainda, tivera de explicar ao tribunal que a agressão lhe provocara um
aborto. Mas o guarda Broadhead sempre tinha sido muito gentil para com
ela e não queria associá-lo aos males que sofrera.
– Estou contente por ter acabado e por ele não ir assaltar nem magoar
mais ninguém nos próximos anos – disse. – E a polícia fez um bom tra-
balho ao trazê-lo perante a justiça.
Archie Newbold fora declarado culpado em todas as sete acusações de
roubo com violência de que era alvo e condenado a dez anos de prisão. Ela
fora apenas uma de várias testemunhas, mas o juiz tivera a péssima ideia
de a elogiar pelo desenho que permitira à polícia identificar o criminoso, o
que fizera com que o homem sentado no banco dos réus a olhasse de uma
forma ameaçadora que a assustara.
Estava-se em meados de janeiro e lá fora nevava. Belle sentia-se ge-
lada até à medula e completamente torcida por dentro, mas não só por
causa do julgamento. No dia anterior, tinham lido no jornal que houvera
bombardeamentos levados a cabo por dirigíveis em Yarmouth e King’s
Lynn, dos quais tinham resultado vinte e oito mortos e sessenta feridos.
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Belle sentia que pairava sobre Inglaterra uma nuvem muito negra que não
ia dissipar-se tão depressa.
– Posso convidar as duas senhoras para uma chávena de chá, para se
aquecerem? – perguntou Broadhead, como se tivesse adivinhado o que ela
estava a sentir.
– É muito gentil – respondeu Belle. – Mas penso que a nevar desta
maneira é melhor voltarmos já para casa.
– Quem é aquele? – perguntou Mog ao polícia, indicando com um
gesto um homem alto, de sobretudo escuro e chapéu de coco. Estava en-
costado à parede perto da porta do tribunal, a olhar para eles. – Parece
muito interessado em nós. Já tinha reparado nele na sala de audiência.
Broadhead olhou para o homem.
– Julgo que deve ser um jornalista – respondeu. – Deve estar à espera
de uma oportunidade para falar convosco. Se quiserem, posso acompanhá-
las até apanharem um fiacre. Deve ser o bastante para o afastar.
Belle ainda não tinha reparado no homem, mas o que menos queria era
falar com quem quer que fosse naquele dia, de modo que deu o braço a
Mog e permitiu que Broadhead saísse à frente delas para irem apanhar um
transporte.
Mas mal Broadhead começou a descer a escadaria do tribunal, o
homem alto desencostou-se da parede e atravessou-se no caminho das duas
mulheres.
– Miss Cooper, não é verdade? – disse, estendendo a mão para apertar
a de Belle.
Ser tratada pelo nome de solteira foi um choque. Belle hesitou e olhou
para Mog em busca de ajuda.
– Sei que agora é Mrs. Reilly, mas já foi Belle Cooper, não foi? – disse
o homem num tom untuoso e sabedor, a fixar nela os olhos castanho-
amarelados.
Num lampejo de intuição, Belle sentiu que ele devia tê-la relacionado
com o julgamento de John Kent, o homem que a raptara e a vendera a um
bordel por ela o ter visto assassinar uma das raparigas que trabalhavam
para a mãe. Kent fora enforcado antes de ela casar com Jimmy e Belle
pensara, ao mudar-se para Blackheath, que o seu passado estava enterrado
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e esquecido. Mas negar o nome Cooper seria inútil e daria a impressão de
que tinha qualquer coisa a esconder.
– Sim, o meu nome de solteira era Cooper – disse, a esforçar-se muito
por não denunciar o nervosismo que a dominava. – Já nos conhecemos?
– O guarda Broadhead arranjou-nos um fiacre – disse Mog, e apertou
com mais força o braço de Mog para lhe indicar que deviam afastar-se o
mais depressa possível. – Temos de ir, não podemos deixá-lo à espera com
este frio.
– Blessard – disse o homem, ainda de mão estendida – Frank Blessard,
do Chronicle. Não nos conhecemos, mas…
Belle cortou-lhe a palavra ao apertar a mão que ele oferecia.
– Prazer em conhecê-lo, Mister Blessard. Peço desculpa, mas tenho de
ir.
Enquanto desciam apressadamente os degraus, Belle teve consciência
de que o homem fazia menção de as seguir, como se quisesse perguntar-
lhe mais qualquer coisa, mas não voltou a cabeça e perguntou a Broadhead
se queria regressar com elas à aldeia.
– É muita gentileza sua – disse ele, com o rosto a iluminar-se. – Estava
a pensar apanhar o elétrico. Mas se não incomodo, de fiacre chegarei com
certeza muito mais depressa.

– Aquele homem que falou connosco, o Blessard, disse que trabalhava


para o Chronicle – disse Belle a Broadhead, quando o fiacre arrancou. –
Nunca ouvi falar desse jornal. Conhece-o?
O polícia fez uma careta.
– Um trapo de sarjeta. Fez bem em não lhe dar corda, ia tentar con-
seguir mais pormenores escabrosos do que os que apareceram no julga-
mento. Se voltar a abordá-la, despache-o sem mais contemplações. Não
suporto estes abutres. Pegam num caso e, se não encontram uma história
sensacional, inventam-na.
Quando chegaram a Blackheath e Belle pagou ao cocheiro, se despe-
diu do polícia e entrou apressadamente em casa ao lado de Mog, a neve
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fora substituída por uma chuva persistente, que o vento tornava ainda mais
desagradável.
Garth estava na cozinha.
– Correu bem? – gritou, enquanto elas despiam as roupas de rua e se
desembaraçavam das botas. – A chaleira está ao lume. Quanto tempo apan-
hou o miserável?
As duas mulheres entraram na cozinha e aproximaram-se do fogão,
para aquecerem as mãos. Mog disse a Garth qual fora a sentença.
– Mas a Belle ficou um bocado abalada. Um jornalista que lá estava
conhecia-a como Cooper.
– Não dês importância a isso – disse Garth, dirigindo-se a Belle e
pousando-lhe no ombro a enorme patorra. – O teu nome de solteira não é
segredo. Muita gente da terra o conhece, viveste cá meses antes de casares
com o Jimmy.
– Tudo isso é verdade, mas porque terá ele usado o nome Cooper
quando no tribunal fui sempre tratada por Mrs. Reilly? E havia qualquer
coisa de viscoso no homem – respondeu Belle, e apoiou-se contra o largo
peito de Garth em busca de conforto. – Penso que esteve no julgamento do
Kent.
Garth abraçou-a.
– Pronto, pronto, não te preocupes com isso. Nunca ninguém disse
nada de mau contra ti durante esse julgamento. Cá para mim, ficou todo
entusiasmado por tu teres voltado a ser vítima de um homem mau. É uma
das tais coisas com interesse humano, não é?
– Claro que é – declarou Mog, perentória. – Tu seres tão bonita e tudo
isso, e o teu marido ter ido para a guerra, e tu teres sabido desenhar o re-
trato daquele patife. O Noah dir-te-ia que houve uma altura em que teria
sido capaz de arrancar à dentada a mão a uma pessoa qualquer para con-
seguir uma história tão suculenta.
– Talvez devesse telefonar ao Noah – disse Belle, a olhar de Garth
para Mog. – Pedir-lhe conselhos. Não sei porquê, mas tenho o pressenti-
mento de que não foi a última vez que vi aquele homem, e tenho de saber
como lidar com ele se voltar a aparecer.
– Como se não tivesses já bastante com que te preocupar, com o
Jimmy – disse Mog.
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Belle estava bem consciente de que Mog era suscetível a acessos de
uma ansiedade extrema quando julgava o seu bem-estar ameaçado, pelo
que achou melhor tranquilizá-la.
– Não estou muito preocupada com ele. O Jimmy está bem, só se
queixa nas suas cartas porque tem saudades nossas e está farto de estar
sempre molhado e com frio – disse, jovialmente. – Diz que os pés dele es-
tão muito melhores do que os da maioria dos outros homens. E se não se
pode queixar a nós, a quem vai poder queixar-se?
Belle estava, na verdade, muito preocupada com Jimmy, pois adivin-
hara a tristeza dele nas entrelinhas da última carta que recebera. Dizia que
tinha ido falar com o médico por causa de uma doença a que chamava pé
de trincheira, mas logo a seguir acrescentava que não era nem de longe su-
ficientemente grave para o mandarem para o hospital, como já acontecera a
outros homens. Dizia que era uma sorte Mog ter-lhe tricotado tantos pares
de peúgas de lã que podia mudá-las muitas vezes. O problema era secá-las.
Belle tinha investigado e sabia que o pé de trincheira era causado por
manter os pés molhados durante longos períodos de tempo. Toda ela
tremia só de pensar nas condições em que os soldados viviam e combatiam
lá tão longe.
Havia tantas coisas na vida de um soldado que eram injustas. Se
fossem feridos em combate, passavam a receber uma pensão do exército,
mas os que ficavam estropiados por outra razão qualquer ou adoeciam
devido às condições em que viviam não tinham direito a nada.
Na sua carta, Jimmy tentava fazer graça com o assunto ao dizer que a
única maneira de regressar a casa era conseguir um bilhete para Inglaterra.
Queria com aquilo significar um ferimento grave ou uma doença que não
pudessem ser tratados na frente. Contava que um homem do seu regimento
dera um tiro no próprio pé, alegando que fora um acidente enquanto estava
a limpar a arma. Outro soldado fora visto a agitar um braço acima da
trincheira, claramente na esperança de que os Boches, como chamavam
aos Alemães, lhe acertassem.
Belle achava que Jimmy não teria referido aqueles casos se não est-
ivesse ele próprio a brincar com a ideia de fazer algo semelhante. Também
lhe falara de ter feito parte de uma patrulha enviada em reconhecimento
para a Terra de Ninguém, à noite. A dada altura, os Alemães tinham
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lançado foguetes iluminantes, e ele ficara, como dizia, «petrificado pela
luz, como um coelho» em vez de se atirar para o chão, como deveria.
Acrescentava, em tom jocoso, que, aparentemente, os Boches não tinham
querido dar-se ao trabalho de lhe dar um tiro.
Mas Belle percebia que não havia ali nada de engraçado; Jimmy ficara
paralisado pelo terror. Por muito mau que fosse imaginá-lo assim, era
ainda pior pensar que não se atrevia a admiti-lo por receio de ser visto
como um cobarde.
A forma como a maior parte das pessoas glorificava a guerra
horrorizava-a. Perguntava-se se continuariam a pensar da mesma maneira
se perdessem um membro da família. Os jornais alternavam entre relatar as
atrocidades dos Alemães – que iam desde matar crianças a violar mulheres,
passando por torturar os prisioneiros de guerra – e encorajar as pessoas a
acreditarem que os exércitos aliados estavam a vencer, não obstante o
número de baixas, já então assustador. Uma vez que os soldados estavam
proibidos de dizer exatamente onde se encontravam, e não saberiam contar
a verdade a respeito de como estava a correr a guerra, mesmo que a conhe-
cessem, ninguém sabia com um mínimo de certeza o que estava na realid-
ade a acontecer.

– Estás bem, Belle?


A voz de Mog interrompeu-lhe o devaneio, e Belle ergueu a cabeça
com um leve sorriso.
– Sim, estou ótima. Acho que vou para cima acender a lareira na sala
de estar e escrever ao Jimmy. Ele há de querer saber o que aconteceu hoje.
– Não penses mais naquele jornalista – respondeu Mog. – Quando
acabar de assistir ao resto dos julgamentos do dia, já nem sequer se vai
lembrar de ti.

Belle escreveu a sua carta a Jimmy. Não lhe disse nada a respeito de
Blessard; só falou das outras testemunhas e do desfecho do julgamento.
Referiu que tinha estado a nevar, mas que de momento só chovia, e que
voltaria a abrir a loja dali a uma semana. Encontrara um fornecedor de
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chapéus elegantes e regalos de pele que venderiam bem e lhe dariam
tempo para desenhar e confecionar chapéus para a primavera.
Mas, como sempre, a maior parte da carta era preenchida com
pequenos pormenores da vida caseira, de como ela, Mog e Garth estavam
preocupados com ele, e das saudades que tinha.
O desenho que fez no fundo da página era um porco com uma peruca
de juiz, porque nessa manhã reparara que o juiz fazia lembrar um porco,
com uns olhos muito pequenos e escuros e um nariz tão arrebitado que
mais parecia um focinho.
Numa folha à parte, desenhou Blessard tal como o recordava. Rosto
ossudo, pele estragada, lábios finos e um pequeno e estreito bigode
castanho-claro, mas descobriu que não conseguia lembrar-se da forma dos
olhos. Só da astúcia que havia neles.
Estaria o passado a preparar-se para voltar e assombrá-la?

Seis semanas depois do julgamento e por volta das quatro da tarde,


Belle saiu de casa, bem agasalhada com um chapéu de pele castanho, um
casaco de tweed também castanho e o grosso lenço de pescoço azul que
Mog lhe tinha tricotado, para ir até à loja. Naquela manhã nevara muito, de
modo que ficara em casa a trabalhar nuns novos modelos e incumbira Mir-
anda de abrir o estabelecimento. No escuro, a neve parecia muito bonita;
houvera tão pouco trânsito durante todo o dia que até a rua estava coberta
por um manto branco com uns bons cinco centímetros. Mog dissera-lhe
que era tolice ir até à loja, uma vez que não ia de certeza aparecer qualquer
cliente com um tempo daqueles, mas ela precisava de apanhar um pouco
de ar fresco e, além disso, queria ver Miranda.
A montra em arco da loja parecia sempre convidativa no escuro, com a
luz do interior a derramar-se pelo passeio. Belle deteve-se por um instante,
a olhar para os chapéus e regalos de pele expostos na montra.
Via, através do vidro, Miranda empoleirada num tamborete, a arrumar
caixas numa prateleira. Estava muito elegante, como sempre, com um
vestido de lã cor de ameixa e um pequeno casaco debruado a veludo a
fazer conjunto, o cabelo louro entrançado e enrolado à volta da cabeça.
Miranda saltou do banco quando a campainha soou e Belle entrou.
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– Não esperava ver-te hoje – disse, tão surpreendida como satisfeita. –
Mas ainda bem que vieste, porque estiveram cá hoje umas pessoas horrí-
veis e queria partilhar a experiência contigo.
Belle sorriu. Miranda gostava de palavras dramáticas; «horrível» era
uma das suas preferidas.
– Horríveis como? Feias, mal-educadas, mal vestidas?
– Horrivelmente aborrecidas, sobretudo. Uma mulher falou-me do seu
querido gato que faleceu há pouco tempo. Por amor de Deus! Como pode
alguém esperar que eu passe hora e meia a ouvir descrever as virtudes de
um tareco qualquer sem bocejar? E depois apareceu aquela mulher que usa
uma espécie de turbante e está sempre a fungar.
Belle riu. Sabia exatamente a quem Miranda se referia, uma mulher
que aparecia dia sim, dia não, mas nem uma única vez tirara o curioso
turbante que usava para provar um chapéu. Belle sempre suspeitara que
talvez fosse careca.
– Deduzo que o negócio foi péssimo, nesse caso?
– Pelo contrário, vendi quatro chapéus de pele e três regalos – disse
Miranda, triunfante. – Também apareceu a pavorosa Miss Orwell, aquela
que está sempre de nariz franzido, como se tudo lhe cheirasse mal. Veio
com a mãe, perguntar se podes fazer-lhe o toucado para o casamento, em
abril. Também quer qualquer coisa para as damas de honor. Disse-lhe que
lhe telefonarias a marcar um encontro para falar do que ela quer.
– Isso é ótimo – disse Belle. – Temos de nos esforçar por gostar da pa-
vorosa Miss Orwell. Felizmente, é bastante bonita, de modo que uma das
minhas assombrosas criações não parecerá deslocada nela.
Riram as duas. Uma das coisas que mais as divertia era troçar das cli-
entes de que não gostavam, embora fossem sempre o encanto personific-
ado quando falavam com elas. Belle foi até à sala das traseiras verificar o
pequeno fogão que mantinha a loja aquecida e reabastecê-lo para a noite.
– Bebemos uma chávena de chá antes de fecharmos? – gritou a Mir-
anda, que ficara na loja.
Belle perguntava muitas vezes a si mesma o que faria se não tivesse
Miranda como amiga. Tinham um sentido de humor muito parecido, a con-
versa nunca esmorecia entre as duas e confiava totalmente nela. Por muito
que adorasse Mog e Garth, tinha de admitir que eram limitados como
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companhia, uma vez que pouco sabiam ou queriam saber do que quer que
fosse além do pub e da família. Miranda, pelo contrário, tinha viajado,
interessava-se por todo o género de coisas e tinha uma natureza alegre que
nem a prepotente mãe conseguira abafar.
– Ou podemos fechar a loja e beber um copo daquele sherry que
sobrou do Natal – respondeu Miranda, no mesmo tom.
– Eu sabia que não te tinha contratado só por seres bonita – disse
Belle, tirando a garrafa da prateleira. – Fecha a porta e baixa a persiana.
Minutos mais tarde, estavam as duas na oficina, sentadas junto ao fo-
gão com um copo de sherry na mão.
Belle admitira a Miranda, alguns dias antes, que o seu coração já não
estava na loja. Na altura, Miranda não a levara a sério, assumindo que es-
tava apenas a ter um dia mau. Belle sabia que tinha de a fazer compreender
que era mais do que isso.
– Quem me dera não ter de voltar a este assunto, Miranda – disse. –
Mas não quero mesmo continuar com a loja. Eu sei que tu a adoras, e que
achas que hei de recuperar o entusiasmo, mas eu sei que não vai acontecer.
Prefiro fazer qualquer coisa para ajudar ao esforço de guerra.
– Mas estamos a ter tanto êxito! – protestou Miranda. – Posso ficar eu
a tomar conta dela. Tu ficas em casa e fazes os chapéus.
– Já nem sequer sinto o mesmo a respeito dos chapéus – confessou
Belle. – E a renovação do arrendamento está para breve. O mais certo é
aumentarem a renda, e a verdade é que não me sinto capaz de assumir o
compromisso por mais três anos. Sobretudo se a guerra se arrastar.
Miranda olhou para ela, com um expressão avaliadora.
– Já quando reabrimos, depois do Ano Novo, notei que o teu entusi-
asmo não era o mesmo. Não disse nada porque estava na esperança de que
voltasse. – Calou-se por um instante, como que a pensar no que dizer. –
Mas se sentes que não vai acontecer, compreendo que queiras desistir. Mas
trabalhar para o esforço de guerra? Sei que precisam de pessoas nas
fábricas de munições, mas não estou a ver-te a fazer isso. Também precis-
am de enfermeiras, mas tu não tens treino nessa área. Suponho que podias
oferecer-te como auxiliar, mas queres verdadeiramente fazer os trabalhos
sujos?
– Não me importava.
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Miranda fez um ar chocado.
– Estás a falar mesmo a sério, não estás?
– Estou. Não quero fazer-te perder um emprego, mas o meu coração já
não está aqui. Antigamente, adorava desenhar e fazer chapéus, mas agora é
uma autêntica seca. Talvez se me oferecesse como voluntária para o hos-
pital e ganhasse alguma experiência, dentro de alguns meses pudesse en-
trar para a Cruz Vermelha.
– Estás a falar de ir para França?
Belle não tinha verdadeiramente pensado nisso, mas, de repente,
descobriu que era exatamente o que queria fazer.
– Sim, acho que estou.
Miranda ficou a olhar para ela.
– E que teria o Jimmy a dizer sobre isso?
Belle fez uma careta.
– Ficaria horrorizado. E a Mog e o Garth também. Ia ser o fim do
mundo. Mas a vida é minha e todas as mãos são poucas para o trabalho
que é preciso fazer. Não me vais dizer que não seria mais útil do que essas
senhoras da sociedade que nunca se vestiram sozinhas ou prepararam o seu
próprio banho. Alguém como eu não desmaiaria ao ver piolhos ou o corpo
nu de um homem.
– Como eu, queres tu dizer? – Miranda sorriu. – Mas, se me dás li-
cença, eu não desmaiava se visse um homem nu.
Belle riu.
– Não queria dizer como tu, como muito bem sabes. Mas ambas lemos
nos jornais a respeito de mulheres que se tornam voluntárias e dão as-
sistência às enfermeiras diplomadas. Se eles conseguem fazê-lo, porque
não hei de eu conseguir?
– Bem, para começar, é preciso ter vinte e três anos feitos, e duvido
muito que te aceitem, sendo tu casada.
– Podia mentir acerca disso – respondeu Belle.
Miranda deu dois estalidos com a língua e agitou severamente um
dedo.
– O que é que há no teu passado? – perguntou. – Sempre que dizes
uma coisa dessas, tenho a sensação de que já fizeste muito, já viste muito.
Somos amigas, podes confiar em mim. Porque é que não me contas?
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Belle esboçou um meio sorriso.
– Podias não querer continuar a ser minha amiga, se eu te contasse a
história toda.
Miranda estendeu a mão e pegou na dela.
– Não há nada que possas dizer-me que fosse capaz de me fazer deixar
de gostar de ti. Além disso, não posso trair-te, sabes demasiado a meu re-
speito. Por isso conta-me, e eu prometo que me junto a ti nessa ideia louca
de ir para França.
– Não podes querer fazer semelhante coisa! – exclamou Belle. – Lim-
par vomitado e cortar uniformes ensanguentados do corpo de homens
feridos?
– Admito que nenhuma dessas coisas me entusiasma por aí além. –
Miranda fez uma careta. – Mas Deus sabe que não me importaria nada de
ter um pouco de adrenalina, e não consigo lembrar-me de ninguém com
quem gostasse mais de ir à aventura. Talvez possa conduzir uma ambulân-
cia? O meu pai tem conhecimentos por todo o lado, e, como disseste,
podíamos ganhar experiência num hospital local, talvez fazer um curso de
primeiros socorros.
Belle sentiu um agradável calor espalhar-se-lhe pelo corpo. Não acred-
itava que fosse tão simples como Miranda dava a entender, mas a possibil-
idade de fazer qualquer coisa diferente e ousada era empolgante e expulsou
a melancolia que parecia ter-se instalado nela havia tanto tempo.
– Serias verdadeiramente capaz de ir comigo?
– Sim, seria. Que tenho eu a perder? Ajudaste-me quando mais nin-
guém o faria. Na verdade, sei agora que és a única verdadeira amiga que
tenho, ou alguma vez tive; os outros são apenas conhecidos. És in-
spiradora, divertida, generosa, e tens um âmago de aço que me faz sentir
melhor e mais corajosa por estar contigo.
Belle sentiu as lágrimas arderem-lhe nos olhos ao ouvir um elogio tão
sincero.
– Pode ser a maior de todas as aventuras – disse, numa voz muito
baixa. – Talvez maior e muito mais importante do que tudo o que me
aconteceu até agora.
– A respeito desse «até agora». – Miranda pegou na garrafa de sherry e
voltou a encher os copos. – Conta-me tudo.
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Belle recordou como uma tarde, antes do Natal, quando estava a
sentir-se desesperadamente em baixo, pedira a Mog que se Miranda apare-
cesse lhe dissesse que tinha saído. Miranda aparecera mas, longe de se
deixar escorraçar, insistira em vê-la. Entrara na sala, deixara-se cair no
sofá ao lado dela e abraçara-a.
Naquele abraço, havia um tesouro de compreensão. Não desbobinara o
rol de todas as razões que Belle tinha para viver, não dissera banalidades,
não pronunciara vãs palavras de encorajamento. Em vez disso, oferecera-
se como adereço, um ouvido para escutar, uma verdadeira amiga, das que
não pedem nada em troca. Naquele momento, Belle pensou que talvez lhe
devesse a verdade a respeito de si mesma.
– Muito bem, então, se nos vamos meter nisto juntas, é melhor que
saibas. Para começar, nasci e fui criada num bordel.
E contou a sua história tão simples e concisamente quanto pôde: o as-
sassínio de Millie, como fora raptada pelo assassino e vendida a um bordel
em França. Teve consciência, enquanto descrevia o modo como Étienne a
levara para a casa de prostituição de Martha em Nova Orleães, que os ol-
hos de Miranda estavam muito abertos de choque, mas não fraquejou.
– Uma vez que não tinha maneira de voltar a Inglaterra, decidi que
mais valia aceitar a situação e ser a melhor de todas as prostitutas – disse,
sem rodeios. – Era a primeira, e houve até alturas em que gostei.
Foi só quando chegou à parte sobre Pascal, que a tinha prendido no
sótão da sua casa em Montmartre, que Miranda arquejou.
– Se fosse outra pessoa qualquer a contar-me isto, pensaria que estava
a inventar – disse.
Belle prosseguiu, contando-lhe como Étienne a tinha resgatado, e ter-
minou a história com o relato do seu testemunho no julgamento de Kent.
– Que história! – exclamou Miranda. – Mas explica muitas coisas a teu
respeito que me intrigavam. Estou tão contente por teres sentido que
podias contar-me.
– Também eu – admitiu Belle. – É que, sabes, queria muito falar-te de
uma coisa que aconteceu no tribunal no dia do julgamento do Newbold.
Não podia contar-te nada, uma vez que não conhecias o meu passado. Um
jornalista falou comigo. Sabia o meu nome de solteira, e penso que tinha
estado no julgamento do Kent, o homem que me raptou, e por isso sabia
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muito a meu respeito. E ele é uma das razões porque quero deixar a loja.
Tenho o pressentimento de que vai tentar tornar a abordar-me.
– Queres dizer que pensas que vai tentar fazer chantagem contigo?
Belle encolheu os ombros.
– És rápida a ver as implicações, é uma das coisas que gosto em ti. A
Mog pensou que ele só andava atrás de uma história relacionada com o as-
salto, mas eu conheci alguns vermes, nos meus tempos, e estou convencida
de que é isso que ele é. Chama-lhe instinto visceral.
– Mas todas as pessoas importantes para ti já sabem de tudo isto – ar-
gumentou Miranda. – Só se pode fazer chantagem com uma pessoa que
tem alguma coisa a esconder dos que lhe são mais próximos e mais
queridos.
– Isso é verdade, mas uma coisa que ele pode ter percebido, se andou a
meter o nariz por aqui, é que agora sou uma senhora muito respeitável.
Imagina o que as pessoas da aldeia, as minhas clientes, diriam se
soubessem a verdade!
– Mas é impossível ele saber a história toda! Quando muito, sabe que
foste vendida a um bordel quando eras muito nova, e as pessoas mostrar-
se-iam solidárias contigo.
Belle arqueou uma sobrancelha.
– Aqui? Nunca mais ninguém me compraria um chapéu. Imaginas o
que a tua mãe diria?
Miranda assentiu com a cabeça.
– Sim, imagino, mas nem toda a gente é como ela.
– Muitos são. Os suficientes – disse Belle, num tom carregado de
tristeza. – Eu e a Mog esforçámo-nos tanto por nos integrarmos, por ser-
mos respeitáveis. Esse homem pode destruir tudo isso. Custa-me muito
menos por mim do que pela pobre Mog. Ela e o Garth são tão felizes, e ela
adora ser um membro respeitado da comunidade. Sofreu tanto quando eu
fui raptada. Não quero fazer desabar a vergonha sobre ela, agora que a sua
vida assentou.
– Fugir para França não vai impedir que isso aconteça, se esse tal
Blessard estiver decidido a denunciar-te – disse Miranda.
– É verdade. Mas desconfio que ele só quer dinheiro. Provavelmente,
olhou para esta loja e convenceu-se de que tenho muito e de que sou um
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alvo fácil porque o meu marido está na guerra. Se fechar a loja e passar a
ser uma auxiliar de enfermagem voluntária, que pode ele esperar?
– Hum. – Miranda fez um ar pensativo. – E se ele tenta o Garth?
Belle riu.
– Achas que alguém no seu perfeito juízo tentaria fazer chantagem
com o Garth? O mais certo era ele torcer-lhe o pescoço antes de acabar de
o ouvir falar.
Ficaram as duas silenciosas por instantes, a beberricar o sherry e a ol-
har para o lume que ardia no fogão.
– A respeito desse tal Étienne. – Miranda arqueou uma sobrancelha
perfeitamente desenhada. – Senti aí qualquer coisa. Foi teu amante?
Belle abanou a cabeça.
– Não, mas eu amei-o.
Miranda sorriu, maliciosa.
– E essa não será mais uma das atrações de França, pois não?
Belle abriu muito os olhos, chocada.
– Não, claro que não. Nem sequer pensei nele. Só quero fazer qualquer
coisa que valha a pena, sentir-me novamente viva em vez de ficar a contar
as horas até que o Jimmy regresse.
– Bem, fizeste com que eu queira acompanhar-te nessa ideia louca –
disse Miranda. – Acho que o melhor é começarmos a fazer planos e a
pensar numa maneira de os pôr em prática.
CAPÍTULO 10

A s luzes do Railway estavam apagadas quando Belle chegou a casa, à


meia-noite, depois do seu primeiro dia no Royal Herbert Military
Hospital. Entrou sem fazer barulho pela porta lateral, e estava a despir o
casaco no vestíbulo às escuras quando a porta da cozinha se abriu e Mog
surgiu no umbral, enquadrada pela luz que vinha do interior.
– Assustaste-me – disse Belle. – Pensava que já tinhas ido para a
cama.
– Achas que eu era capaz de ir para a cama contigo a andar sozinha
por essas ruas? – replicou Mog. – Tinha feito um chá, mas agora está frio.
Suponho que tens andado a viver a vida da alta roda com a Menina Nariz
Empinado?
Belle estava a cair de cansaço e sem a mais pequena vontade de
discutir.
– Saí há pouco do hospital – disse. – A única vida da alta roda que tive
foi o fedor da gangrena.
– Nesse caso, suponho que não vais querer lá voltar amanhã.
Mog tinha os braços cruzados sobre o peito e estava literalmente in-
chada de fúria e indignação. Durante todo o caminho até casa, Belle dis-
sera a si mesma que não podia, de maneira nenhuma, continuar a ser uma
auxiliar de enfermagem; nunca trabalhara tão duramente em toda a sua
vida nem vira coisas tão deprimentes. Mas a troça de Mog varreu num in-
stante todos estes pensamentos.
– Já alguma vez me viste desistir de qualquer coisa que quisesse fazer?
– perguntou.
Abril chegava ao fim, e durante todo o mês passado – desde que dis-
sera a Mog e a Garth que não ia renovar o arrendamento da loja e fora
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aceite como voluntária no hospital – Mog não se cansara de ridicularizar os
seus planos. Em certas ocasiões fora tão má que Belle chegara a pensar em
arranjar um quarto num lugar qualquer e mudar-se. Mas sabendo que isso
perturbaria Jimmy, acabara por ficar, na esperança de que Mog acalmasse.
– Então deves ter um parafuso a menos, para trabalhares dezasseis hor-
as por dia a troco de nada.
– Achas que ajudar a salvar as vidas de soldados não é nada? – Belle
suspirou. – Para mim é muito mais gratificante do que fazer chapéus para
mulheres vaidosas com mais dinheiro do que juízo.
– E que tal ganhares algum dinheiro para quando o Jimmy regressar a
casa? Não tardarás a gastar todo o que ganhaste na loja, se for só sair por
um lado sem nada a entrar pelo outro.
– Isso é comigo – ripostou Belle.
– Talvez seja, mas aposto que se falares sobre o assunto com a Menina
Nariz Empinado, ela vai sair-se com outro esquema maluco ainda mais
ridículo do que este.
Belle sentiu-se magoada e entristecida pelo ciúme e pelo rancor que
envenenavam o comentário.
– Já te disse dúzias de vezes que a ideia foi minha, não da Miranda, e
não lhe chames Menina Nariz Empinado porque ela não o é, e tem sido
muito boa amiga para mim. Agora vou para a cama. Só espero que amanhã
à noite tenhas encontrado maneira de aceitar que isto é o que eu quero
fazer.
Mog bufou, numa clara reprovação.
– São só mulheres como ela que estão a arranjar problemas a toda a
gente em França. Aposto que é essa a segunda parte do plano dela.
– As mulheres que foram para França não estão a arranjar problemas a
ninguém. Estão a fazer um trabalho admirável.
Mog voltou-lhe costas e regressou à cozinha, batendo com a porta.
Belle estava demasiado exausta para ir atrás dela e tentar convencê-la, de
modo que subiu a escada a custo e foi para a cama.
Sabia que a verdadeira causa da reprovação de Mog era o medo de que
ela esquecesse que era uma mulher casada. Mog via o casamento como um
ponto de chegada; uma vez pronunciados os votos, a esposa não devia
querer nem precisar de outra vida além de servir o marido e fazê-lo feliz.
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Embora compreendesse que não podia ser exatamente assim para Belle,
uma vez que Jimmy estava longe de casa, continuava a querer que ela or-
ganizasse a sua vida à volta dele, ficando sentada em casa à noite a
tricotar-lhe peúgas, a escrever-lhe cartas e a fazer planos para quando ele
regressasse.
Belle de modo algum esquecera que era casada; desejava, mais do que
tudo, que a guerra acabasse em breve e Jimmy voltasse para casa para
poderem recomeçar uma vida juntos. Mas era evidente que a guerra não ia
acabar num futuro próximo, e não tinha sequer a certeza de que Jimmy lhe
sobreviveria. Não estava na sua natureza ficar indefinidamente sentada de
braços cruzados, à espera.
E Jimmy estava com ela. Na carta que lhe escrevera, em resposta
àquela em que lhe falava da possibilidade de fazer trabalho voluntário,
deixava bem clara a sua opinião.
«Terei muito orgulho em pensar que fazes a tua parte a favor dos
soldados feridos», dizia. «Deus sabe que os feridos que tenho visto aqui
precisam de toda a ajuda que lhes puder ser dada para recuperarem dos
seus ferimentos. O tio Garth e a Mog não vão, quase de certeza, achar
graça a tu fazeres qualquer coisa que te afaste da vista deles, mas não lhes
ligues. Têm ideias fixas por causa da vida que levaram.»
«Acho que, quando eu voltar, devíamos arranjar a nossa própria casa.
Passámos demasiado tempo a permitir que as nossas vidas fossem orienta-
das por terceiros. Dou muitas vezes por mim a sonhar acordado com nós
os dois a viver perto do mar, talvez a gerir uma pensão em vez de uma
taberna. Dava tudo para estar num lugar pacato e limpo. Mesmo quando
somos mandados para a retaguarda, o barulho dos tiros nunca para, mas a
maneira como lido com todos os horrores deste lugar é imaginar-me deit-
ado a teu lado numa cama com lençóis lavados e engomados, as janelas
abertas, uma brisa suave e um silêncio absoluto, ou sentados diante de uma
lareira a comer qualquer coisa, desde que não seja carne enlatada.»
Nas suas cartas, Jimmy falava sempre do estrondo constante das det-
onações e da sua ânsia de silêncio, e Belle estava bem consciente de que o
homem com quem casara podia já não ser o mesmo quando a guerra aca-
basse. Talvez não fosse possível ir para França, mas trabalhar no hospital
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dar-lhe-ia ao menos uma compreensão melhor daquilo por que ele estava a
passar.
Deitada na cama, pensou no longo dia que tinha tido de enfrentar. A
enfermeira-chefe, uma mulher magra e de ar severo, mirara-a de alto a
baixo quando ela chegara à enfermaria, nessa manhã. Belle usava a indu-
mentária regulamentar – vestido azul-escuro de gola subida e saia pelo
tornozelo, com punhos, colarinho, avental e touca brancos, mas parecera
não merecer a aprovação da mulher.
– O cabelo tem de estar todo preso na nuca e coberto pela touca – dis-
sera a enfermeira-chefe. – Fará exatamente o que lhe for ordenado, e se eu
achar que é incompetente pedir-lhe-ei que saia de imediato.
– Sim, enfermeira-chefe – respondera Belle, enquanto escondia de-
baixo da touca dois ou três caracóis que se tinham escapado. Ficara um
pouco abalada pela gélida receção, pois apesar de não estar à espera de que
lhe agradecessem por se ter oferecido para fazer trabalho voluntário, tam-
bém não esperara ser tratada como uma colegial.
A sua primeira impressão da enfermaria com quarenta camas onde a
colocaram fora de surpresa por ser tão ordenada e silenciosa, ainda que um
pouco sombria, uma vez que a única iluminação vinha de uma estreita
janela situada muito acima, na parede mais afastada. A maior parte dos pa-
cientes estava deitada, as roupas das camas cuidadosamente alisadas, com
a dobra dos lençóis brancos a destacar-se num linha reta perfeita, e não
havia nada dos gemidos e contorções de dor que esperara. Quase todos os
olhos se voltaram para ela; alguns dos homens esboçaram até um sorriso
atrevido. Estavam duas enfermeiras das Queen Alexandra’s Sisters de ser-
viço, além de duas outras mulheres que assumira serem enfermeiras civis
ou voluntárias, tal como ela.
A primeira tarefa que lhe confiaram fora desinfetar uma cama onde um
soldado morrera na noite anterior. O desinfetante era tão forte que lhe
fizera arder as mãos e o cheiro recordara-lhe Nova Orleães e o produto que
usavam para lavar as partes íntimas dos clientes. Sorrira para consigo
mesma ao pensar em como reagiria a enfermeira-chefe se lhe contasse
aquilo.
Quando acabara de desinfetar a cama, a irmã Adams, uma mulher vul-
gar e muito magra, de trinta e muitos anos, que Belle assumira ser a mais
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graduada das enfermeiras, dissera-lhe que observasse enquanto a irmã May
fazia os pensos.
Fora como um batismo de fogo. O primeiro paciente fora atingido pelo
rebentamento de uma granada. O que lhe restara do braço direito tinha sido
amputado logo abaixo do ombro num hospital de campanha, mas todo o
peito e o flanco direito eram uma massa de carne rasgada e queimada.
Belle não se sentira agoniada, apenas horrorizada pelo terrível feri-
mento, e se lhe tivessem pedido que o limpasse sozinha com a solução sa-
lina que usavam não saberia por onde começar, com receio de magoar
ainda mais o pobre homem. Mas o soldado Lomax não gritara de dor en-
quanto a irmã May o lavava com gestos cuidadosos, e tentara até entabular
conversa.
– É o seu primeiro dia? – perguntara.
Belle respondera que sim.
– Então preste muita atenção ao que a irmã May faz. Ela é a melhor e a
mais gentil de todas. Vejo que usa aliança. O seu marido está em França?
Belle sabia, porque Miranda lho dissera, que as mulheres casadas não
eram aceites nas escolas de enfermagem. Mentira a respeito da idade,
dizendo que tinha vinte e três anos, mas confessara ser casada. Durante a
entrevista, os recrutadores tinham deixado bem claro que só estavam pre-
parados para a aceitar como voluntária porque o marido se encontrava no
serviço ativo.
– Sim, penso que deve estar perto de Ypres. Ele não pode dizer nada,
claro, mas tem havido pequenas indicações.
– Temos aqui muitos homens que foram feridos nessa região – dissera
a irmã May. – Espero que o seu marido esteja bem.
– Obrigada, irmã – respondera Belle, e voltara de novo a sua atenção
para Lomax. – Que vai fazer agora? – perguntara. Ele era tão novo, com
certeza não teria mais de dezanove anos, e o braço que lhe restava era mus-
culoso, todo o seu corpo tinha o vigor da juventude.
– Voltar para o Sussex e ajudar na quinta do meu pai. Por sorte, sou
canhoto, de modo que poderei continuar a fazer a maior parte das coisas
que fazia.
Aquela coragem e ausência de autocomiseração deixaram um nó na
garganta de Belle.
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Quando ela e a irmã May acabaram de fazer o seu trabalho ao longo de
um dos lados da enfermaria, Belle tinha chegado à conclusão de que devia
haver entre os pacientes uma espécie de código de honra que os obrigava a
não deixarem transparecer quaisquer sinais de dor ou tristeza, pois nenhum
deles se queixara ou gritara enquanto lhes tratavam os ferimentos. Um
homem tinha perdido ambas as pernas, outro tinha de estar deitado de bar-
riga para baixo porque as suas costas eram uma enorme chaga aberta.
Outro ainda recebera, naquela mesma manhã, a notícia de que iam ter de
lhe amputar a perna acima do joelho, por causa da gangrena.
O cheiro da ferida desse homem fora, durante todo o dia, a única coisa
que fizera Belle engasgar-se. Despejara inúmeros bacios, tivera de lavar
três vezes um homem que sofria de diarreia. Limpara vomitado e sangue, e
ajudara a preparar um homem que finalmente morrera de um terrível feri-
mento no ventre. No entanto, fora o cheiro da gangrena que verdadeira-
mente a afetara.
A irmã May, que devia andar por volta dos vinte e oito anos, era alta e
bem feita, com as faces rosadas de uma rapariga do campo. Era firme e
profissional, mas Belle adivinhara uma gentileza inata ao vê-la trabalhar
com silenciosa rapidez e eficiência. Era uma boa pessoa com quem apren-
der: dava a Belle alguma informação sobre cada paciente e explicava o que
tinha de ser feito. Dissera-lhe que ela e as outras enfermeiras apreciavam a
ajuda das voluntárias e que achava que Belle tinha tudo o que era preciso
para se tornar muito útil.
Durante a tarde, chegara ao hospital um comboio de ambulâncias com
mais de cem feridos estendidos em macas. Belle saíra com a irmã May e a
irmã Adams para os receber e indicar aos maqueiros para onde deviam
levá-los.
Pelo menos dois dos recém-chegados estavam em muito mau estado.
Tinham-lhes despido os uniformes e ligado os ferimentos num hospital em
França, mas agora ia ser necessário submetê-los a uma operação para
tentar salvar-lhes a vida.
Nunca Belle se sentira tão impotente. Tudo o que podia fazer era ob-
servar e aprender com as enfermeiras enquanto elas falavam com os pa-
cientes e os tranquilizavam. A irmã May indicava-lhe quais dos homens a
que se podia dar qualquer coisa para beber, ou acender um cigarro e
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segurá-lo para que o fumassem, e a dada altura chamara-a à parte e pedira-
lhe que escrevesse uma carta para um homem que ficara cego.
– Chama-se Albert Fowles e provavelmente não passará desta noite –
dissera em voz baixa. – Tem um terrível ferimento no peito e muitas lacer-
ações faciais. Disse que tinha dezoito anos para se poder alistar, mas eu di-
ria que não tem mais de dezassete, e quer que a mãe saiba que pensou nela
até ao fim.
Albert Fowles tinha a cabeça e os olhos envoltos em ligaduras e o que
se lhe via da cara era uma chocante massa de carne dilacerada. Belle
pegara-lhe na mão ao sentar-se junto à cama, munida de um bloco de papel
de carta e um lápis.
– Olá, Albert, chamo-me Mrs. Reilly – dissera. – Não sou enfermeira,
apenas uma voluntária, mas a irmã disse-me que quer mandar uma carta à
sua mãe. Pode dizer-me o que quer que escreva?
Era impossível saber como teria sido aquele rapaz antes de lhe
destroçarem o rosto, mas a mão que ela segurava, apesar de calejada e
áspera, era pequena, recordando-lhe que mal passava de uma criança.
– Nunca fui muito de escrever cartas – rouquejou ele. – Era o sargento
que as escrevia para mim, por isso escreva o que for melhor.
– Querida mãe, então? – sugerira Belle.
– Eu trato-a por mã.
– Querida mã, estou agora no Royal Herbert Hospital em Woolwich –
começara ela. – Parece-lhe bem?
– Sim, diga-lhe que não estou muito bem, mas que estou em boas
mãos. Diga-lhe que não me acagacei quando saltei da trincheira e que peço
desculpa por lhe dar tantas preocupações.
Calara-se, e era evidente pela respiração ofegante que tinha dificuldade
em falar.
Belle já tinha ouvido a palavra «acagaçar» várias vezes durante o dia.
Significava ter medo. Estava convencida de que todos aqueles homens de-
viam ter tido medo, mas que era considerado um comportamento honroso
escondê-lo, tal como não se queixar dos ferimentos. Como era possível al-
guém ser corajoso ao ponto de saltar da trincheira sabendo muito bem que
o mais provável era levar um tiro?
– Tem alguns irmãos ou irmãs que eu deva referir? – perguntara.
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– Só resto eu, o pá morreu há uns anos – sibilara Albert. – Diga-lhe
que faça uma festa ao Whisky por mim. É o meu cão. Não me lembro de
mais nada.
– Podia dizer que a ama – sugerira Belle.
– Nunca dizemos coisas piegas.
Belle apertara-lhe ternamente a mão, grata por ele não poder ver as lá-
grimas que lhe marejavam os olhos.
– Agora é uma boa altura para ser piegas. Eu sei que gostaria que o
meu corajoso filho me dissesse essas palavras.
– Está bem, então. E diga-lhe que cuide de si e não trabalhe tanto.
A irmã May sugerira que tomasse nota do que ele dissesse e escrevesse
mais tarde uma carta como devia ser.
– E vou assinar «Do filho que a ama, Albert» – dissera Belle.
– E irá pô-la no correio por mim?
– Claro que irei, Albert. Agora durma até que o médico venha vê-lo.
– É nova? – perguntara ele. – A sua voz é nova, e as suas mãos são
macias.
– Sim, sou nova – respondera ela, a fazer um esforço enorme para con-
trolar o tremor da voz. – Não trabalho aqui há tempo suficiente para ficar
com as mãos ásperas, mas estou convencida de que não há de tardar muito.
– Nunca sequer beijei uma rapariga. Alguns dos outros contavam-me
que tinham feito isto e aquilo com raparigas. Acha que estavam a mentir
para se armarem em importantes?
– Sim, tenho a certeza de que estavam – respondera ela, a desejar
poder dizer-lhe que havia de pôr-se bom para também poder fazer todas es-
sas coisas, um dia. – Agora tenho de ir, mas voltarei para o ver.
Albert morrera uma hora mais tarde, mas a irmã May estava com ele, a
segurar-lhe a mão. Belle esforçara-se por conter as lágrimas, e a irmã
pousara-lhe a mão no braço.
– Foi o melhor para ele, Reilly – dissera, numa voz muito suave. –
Acabaram-se as dores, e que espécie de vida ia ele ter cego e desfigurado?
E foi também melhor a mãe não ter chegado cá a tempo de o ver assim.
Vai poder orgulhar-se da coragem dele e recordá-lo como era.
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– Vai ser sempre assim? – perguntara Belle, a pensar que não sabia se
seria capaz de aguentar, no caso de cenas como aquela serem uma ocorrên-
cia regular.
– Temos de ir buscar ânimo àqueles que sobrevivem, em vez de ficar-
mos a pensar nos que não conseguiram. Fazemos o melhor que podemos
por todos eles, e mesmo se tudo o que pôde fazer pelo Albert foi escrever
uma carta à mãe, isso deu-lhe mais conforto do que a morfina.
Enquanto começava a deslizar para o sono, Belle perguntou-se como
teria sido o dia de Miranda. Tinham ido para o hospital juntas naquela
manhã, mas Miranda fora colocada noutra enfermaria e Belle não voltara a
vê-la, nem sequer quando o comboio de ambulâncias chegara.

Passaram três dias antes de Belle voltar a encontrar Miranda. No seu


segundo dia de trabalho, apresentara-se no hospital às seis da manhã e
saíra às seis da tarde, e era muito possível que tivesse sido atribuído a Mir-
anda um horário diferente.
No terceiro dia, porém, ia a subir Shooters Hill quando o tilintar da
campainha de uma bicicleta a fez voltar a cabeça. Miranda pedalava
afanosamente na direção dela.
– Mas que boa ideia! – exclamou Belle. – É muito mais rápido do que
ir a pé.
– Foi o papá que ma comprou – explicou Miranda, a ofegar enquanto
desmontava e começava a caminhar ao lado de Belle, a empurrar a bi-
cicleta. – Como é que te estás a sair?
– Para já, estou a ficar muito consciente de que a enfermagem não é
para os fracos de coração – respondeu Belle. – E tu, o que é que estás a
achar? Não te via há tanto tempo que já pensava que tinhas desistido.
– Puseram-me na enfermaria dos oficiais. Estive muito perto de virar
costas e fugir. É perfeitamente horrível! O facto de serem todos cavalheir-
os não torna os ferimentos deles mais tragáveis do que os dos outros pos-
tos. Mas não vou desistir. Não vou dar esse prazer à minha mãe.
Belle riu.
– Sinto o mesmo. A Mog está à espera de que eu desista. Tem sido
muito mazinha.
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Continuaram a conversar a respeito das atitudes das duas mulheres
mais velhas enquanto caminhavam.
– Penso que em setembro já teremos adquirido experiência suficiente
para nos podermos candidatar a ir para França – disse Miranda. – Ainda
não disse lá em casa que é esse o plano. E tu?
– Não, não me atrevo. Só lhes vou dizer no último momento.
– Talvez fosse boa ideia arranjares também uma bicicleta – disse Mir-
anda, enquanto empurrava a sua para a arrecadação. – Eu posso ensinar-te
a andar.
– A sério? – perguntou Belle, entusiasmada. – Tenho folga ao domin-
go. Tu também?
Miranda disse que sim e sugeriu que se encontrassem à tarde para uma
lição.
– Podemos ir para Greenwich Park.
A primeira tarefa de Belle naquela manhã foi esfregar um par de ca-
mas, no pátio. Enquanto trabalhava, pensava em Miranda a ensiná-la a an-
dar de bicicleta e sorria. Tornaria muito mais rápidas as viagens entre casa
e o hospital.

No domingo à tarde, Miranda esperava com a sua bicicleta junto à


igreja quando Belle apareceu, por volta das três. O dia de sol convidava a
sair e a charneca estava cheia de famílias que manobravam papagaios de
papel, se dirigiam ao lago com barcos para lançar à água, passeavam cães e
praticavam jogos de bola.
– A mamã disse que eu não devia andar de bicicleta ao domingo –
comentou Miranda. – Disse que era uma impiedade!
Belle riu. Tinha tido a infelicidade de voltar a encontrar Mrs. Forbes-
Alton pouco antes de fechar a loja. A mulher interrogara-a a respeito do
voluntariado e deixara bem claro que a responsabilizava por ter posto na
cabeça da filha aquilo a que chamava «ideias esquisitas». Belle estivera
tentada a responder que se ela não passasse o tempo a distribuir penas
brancas, talvez houvesse menos homens a precisarem de quem os ajudasse
a recuperar a saúde. Mas não se atrevera. A mulher era demasiado intimid-
ante, e no fim acabaria por ser Miranda a sofrer as consequências.
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Levaram a bicicleta para uma parte sossegada do parque.
– Monta – disse Miranda, quando encontraram um caminho onde não
se via mais ninguém. – Eu mantenho-te direita até que apanhes o
equilíbrio.
Belle montou, com Miranda a agarrar o selim, deu impulso para a
frente e começou a pedalar. Miranda corria ao lado dela, a segurá-la.
Quando a largou, Belle caiu.
A cena repetiu-se várias vezes. Belle prendeu a saia na corrente,
magoou-se nos pulsos quando caiu e esfolou um joelho, mas estava de-
terminada a conseguir.
– Quanto tempo demoraste a aprender? – perguntou a Miranda,
ofegante.
– Séculos, e usava sempre calças de golfe, o que torna tudo muito mais
fácil.
– Não disponho de séculos. Tenho de aprender hoje, para poder pedir
ao Garth que me compre uma bicicleta amanhã e ir nela para o hospital na
terça-feira.
Cerrou os dentes e voltou a montar. Dessa vez, conseguiu percorrer
cerca de dez metros antes de perder a concentração e cair.
– Já lhe apanhaste o jeito – gritou Miranda, atrás dela. – Volta a
montar e não pares de pedalar.
Belle conseguiu. Oscilava, não conseguia seguir a direito, mas estava a
andar de bicicleta.
– Muito bem! – gritou Miranda, muito lá de trás. – Continua até en-
contrares um sítio suficientemente largo para dares a volta sem teres de
desmontar e volta para trás.
Belle assim fez. Não só se aguentou sem cair como deu a volta e ped-
alou na direção de Miranda cada vez mais confiante. A amiga bateu pal-
mas, encantada.
– Aprendeste muito mais depressa do que eu – disse. – Agora vamos
tomar um chá, e depois podes ir a pedalar até casa.
Enquanto bebiam chá e comiam uma fatia de bolo na casa de chá do
parque, e depois de Belle ter controlado o entusiasmo de ter aprendido a
andar de bicicleta, conversaram sobre aquela primeira semana no hospital.
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– Não nasci para isto – confessou Miranda. – Despejar arrastadeiras
dá-me náuseas e penso que nunca seria capaz de fazer um penso, mas feliz-
mente são as enfermeiras a sério que tratam disso. A irmã McDonald está
sempre a implicar comigo. Acho que não gosta nem um bocadinho de
mim. Mas eu recordo a mim mesma que vou ser condutora de ambulân-
cias, só preciso do treino básico de primeiros socorros, e isso ajuda-me a
aguentar.
Pelo que Miranda contou a respeito do seu trabalho na enfermaria,
Belle chegou à conclusão de que só lhe confiavam tarefas de limpeza.
Também ela as fazia – limpar o chão, entregar e retirar arrastadeiras, dar
de comer aos soldados que não conseguiam alimentar-se sozinhos e fazer
camas – mas não só. Também lavava e barbeava os pacientes, e até já tinha
aplicado pensos em ferimentos menos graves.
Mas nenhuma das duas perdeu demasiado tempo a falar das agruras do
trabalho. Havia um rol de histórias divertidas para as fazer rir.
– Na sexta-feira, começou a trabalhar na nossa enfermaria uma nova
voluntária – contou Miranda. – A irmã mandou-a levar uma arrastadeira a
um paciente que tinha as cortinas corridas à volta da cama. Estava uma en-
fermeira a dar-lhe banho, de modo que ele estava nu, excetuando as li-
gaduras. Só queria que a visses quando voltou a aparecer: vermelha como
um tomate e a tremer como um pudim. Mais tarde, disse-me que nunca
tinha visto um homem nu, nem sequer tinha irmãos.
Belle riu. As enfermeiras da enfermaria dela contavam histórias semel-
hantes. Na realidade, diziam até que ela era a primeira voluntária que não
parecera ficar envergonhada. Na altura, pensara que era uma sorte todas
saberem que era casada, pois caso contrário poderiam ter estranhado.
– Para os homens não é melhor – disse. – Ontem tivemos um rapaz
muito novo, e eu tive de lavá-lo. Manteve sempre os olhos fechados com
muita força. Calculo que imaginou que se não pudesse ver-me, também eu
não poderia vê-lo a ele. Suponho que nunca ninguém, exceto a mãe, o
tinha visto nu. Ainda estava corado e a evitar o meu olhar quando fui dar-
lhe de comer, mais tarde.
– Como é que aguentavas quando estavas a fazer, hum, bem, tu sabes?
Em Nova Orleães? – perguntou Miranda.
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– Depois da primeira meia dúzia de homens, a vergonha desaparece. –
Belle suspirou. – Aprendi demasiado a respeito de homens. Tentei varrer
tudo isso da minha cabeça depois de voltar de Nova Orleães, mas não
consegui.
– Pergunto-me muitas vezes como será para mim quando e se con-
hecer um homem de quem goste verdadeiramente – disse Miranda. – Digo
a mim mesma que nunca mais voltarei a fazer aquilo enquanto não for cas-
ada, mas não sei se serei suficientemente forte.
Belle olhou para a amiga. Adivinhou que o que ela queria na realidade
dizer era que pensava muitas vezes em fazer amor, que o desejava. Todas
as outras mulheres daquele estrato social e daquela idade que conhecera
eram afetadas e severas, mas Miranda devia ter nascido com uma costela
rebelde. Quanto mais a conhecia, mais se convencia de que nunca se con-
formaria às estritas regras que a sociedade impunha às jovens. Talvez fosse
aquela similitude entre ambas que as fizera tornarem-se tão próximas.
– Nesse caso, certifica-te de que te apaixonas por um homem que te
mereça – disse Belle, em tom de aviso. – Não vais querer voltar a passar
por todo aquele desgosto. A guerra pode estar a abrir um pouco mais o
mundo para as mulheres, com mais escolhas e oportunidades, mas há
coisas que nunca hão de mudar.
– Eu sei. – Miranda suspirou. – A minha mãe, por exemplo. É tão hor-
rivelmente snobe. Acho que pensa que a merda dos oficiais não cheira tão
mal como a dos soldados.
Belle riu.
– Se detestas assim tanto o hospital, o melhor é desistires. Aposto que
conseguirias arranjar emprego como motorista de alguém. Deve haver
montes de pessoas cujos chauffeurs se alistaram. Podes pôr um anúncio no
jornal.
Miranda fez uma careta.
– Preciso de fazer isto, Belle. Quero ser capaz de provar a mim própria
e à minha família que consigo levar uma coisa até ao fim, ser útil e inde-
pendente. A irmã Crooke disse-me ontem que tinha pensado que eu não
chegaria ao fim do primeiro dia. Não é do género de fazer elogios seja a
quem for, mas acho que estava a tentar dizer que eu a tinha surpreendido
por estar a ir tão bem. Isto tem de valer alguma coisa.
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Belle ergueu a chávena de chá e tocou com ela na de Miranda.
– À França – disse.
– À França – repetiu Miranda. – Achas mesmo que vamos conseguir lá
chegar?
– Qualquer pessoa consegue fazer seja o que for, se tiver determinação
suficiente – respondeu Belle. – E vou provar-to indo na tua bicicleta até
minha casa.
Belle pedalou com confiança até à igreja, na charneca, e aí esperou que
Miranda a alcançasse.
– Muito bem – disse Miranda. – Estava a pensar que se o tal Blessard
voltar a tentar contactar-te e tu tiveres uma bicicleta, ao menos poderás fu-
gir num instante.
– A minha esperança é que ele desista, agora que fechei a loja. É uma
criatura repelente, e não sei o que é que na verdade quer de mim. Não
parece ser só uma história para o jornal.
– Penso que o que ele quer és tu. Sabe o suficiente a teu respeito para
ser estimulado pelo teu passado. Diria que isso o excita.
– Oh, não digas isso, lembra-me o que aquele homem em Paris me fez
– exclamou Belle, alarmada.
– Sentir-se-ia muito menos estimulado por ti se te visse de uniforme. –
Miranda fez uma careta, e então riu. – Vai para casa e não te preocupes
com ele, não passa de um idiota. Espero que consigas convencer o Garth a
comprar-te uma bicicleta.
Enquanto descia Tranquil Vale, Belle não conseguia impedir-se de
pensar em Blessard.
Depois do julgamento de Newbold, não voltara a estar sozinha na loja
e, à medida que o tempo passava, quase o esquecera. Mas um dia, quando
Miranda saíra para ir à papelaria, ele aparecera, assustando-a. Aparente-
mente, o homem tinha estado a vigiar a loja e aproveitara a primeira opor-
tunidade em que a apanhara sozinha.
Mas não deixara transparecer o seu alarme. Blessard dissera que só
tinha passado por ali para lhe perguntar se poderia entrevistá-la para um
artigo que estava a escrever acerca dos diferentes processos que a polícia
usava para identificar criminosos. O seu interesse nela prendia-se com o
facto de ter desenhado o retrato do homem que a assaltara.
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Ela respondera que lamentava muito mas não desejava ser entrev-
istada, nem naquele momento nem em qualquer ocasião futura. Feliz-
mente, o telefone tocara e ela aproveitara para o despachar.
Blessard retirara-se tão prontamente que Belle pensara que talvez
tivesse interpretado mal as suas intenções. Mas, duas semanas mais tarde,
voltara a aparecer, no único dia em que fora ela a abrir a loja para dar uma
folga a Miranda.
Dessa vez fora muito mais atrevido, sentando-se sem ter sido convid-
ado e tratando-a por Belle, como se uma velha amizade lhe permitisse tal
familiaridade.
– É Mrs. Reilly – dissera ela, severa. – Na sua última visita, disse-lhe
que não queria ser entrevistada. E agora, se me dá licença, tenho trabalho
para fazer, e um cavalheiro sentado na minha loja está a afastar as minhas
clientes.
Ele pusera-se de pé e dirigira-se à porta. Quando se voltara, Belle
pensara que ia pedir desculpa. Mas estava enganada.
– Não teria sido tão não-me-toques quando estava em Paris – dissera
Blessard. – Sei muito a seu respeito, Belle. Seria melhor para si lembrar-se
disso.
– E seria bom para si lembrar-se de que não me deixo intimidar facil-
mente – respondera ela. – Se volta a aparecer aqui, chamo a polícia e
queixo-me de que anda a perseguir-me.
Mas, depois de ele sair, tivera de ir para a sala das traseiras e sentar-se,
de tão abalada que ficara.
Durante o julgamento de Kent, fora revelado que ele a tinha levado
para Paris e vendido a um bordel. No entanto, Belle tinha a certeza de que
Blessard não estava a referir-se a essa altura e sim ao período, dois anos
mais tarde, em que regressara a França e trabalhara como prostituta. Não
imaginava como teria o homem sabido disso quando os seus amigos em
Paris tinham conseguido esconder os factos à polícia francesa. Mas sabia,
por Noah, que os jornalistas com fome de um grande furo eram capazes de
escavar e escavar até encontrarem aquilo que procuravam.
Blessard não tornara a aparecer desde esse dia, mas ela tivera o cuid-
ado de nunca mais voltar a estar sozinha na loja. Garth dissera que lhe tor-
ceria o pescoço se ele aparecesse no Railway. No entanto, o comentário de
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Miranda acerca de o homem se sentir excitado pelo seu passado
perturbava-a. Sabia o que era ter homens obcecados por ela. Mas agora que
sabia andar de bicicleta poderia, como Miranda observara, fugir-lhe se ele
tentasse emboscá-la.
CAPÍTULO 11

1916

S entado no chão, Étienne apoiou as costas contra o tronco decepado da


árvore, acendeu um cigarro, fechou os olhos e saboreou o calor do sol
de maio no rosto. Era tão bom ter alguns dias longe da linha da frente, em
Verdun, para poder dormir, comer, remendar o uniforme rasgado e o es-
pírito esfarrapado. O fedor dos cadáveres que jaziam na Terra de Ninguém
tornara-se ainda pior desde que o tempo começara a aquecer, a diarreia
dizimava as fileiras, os abastecimentos de água potável continuavam
retidos na retaguarda, muitas vezes não tinham sequer tempo durante os in-
cessantes combates para comer as rações.
De momento, tudo o que queria era imaginar que estava em casa, na
sua pequena quinta perto de Marselha, mas o som constante da artilharia,
ao longe, não lho permitia.
Estivera pela primeira vez em Verdun quando tinha vinte anos. Na
época, era uma autêntica joia. A cidade medieval, com as suas ruas es-
treitas e sinuosas, encantara-o, e quando subira às velhas muralhas e olhara
para baixo, lá estava o refulgente Mosa a correr em lentos meandros por
entre pastagens férteis e bosques verdes. Ao contemplar os fortes de pedra
erguidos nas colinas circundantes, vinte pequenos e quatro grandes, re-
cordara as lições de História da sua infância. Verdun fora a última praça a
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cair durante a guerra franco-prussiana, e tinha resistido durante dez longas
semanas antes de se render.
Por causa da sua história e pela coragem das suas gentes, que se tin-
ham batido ferozmente para a conservar em mãos francesas, Verdun ocu-
pava um lugar especial no coração de todos os Franceses. E era, claro, ex-
atamente por isso que os Alemães queriam tomá-la. Sabiam que os gen-
erais franceses enviariam todos os homens que pudessem para defender a
cidade, e então, com o seu formidável exército e o seu poder de fogo, san-
grariam a França até a deixarem exangue, arrancando deste modo da mão
da Grã-Bretanha a sua «Melhor Espada».
As verdes pastagens que recordava eram agora um deserto calcinado,
salpicado de crateras de bombas, árvores arrancadas pelo fogo inimigo ou
abatidas para fornecer lenha e barrotes para as trincheiras. Não havia ali
aves a cantar, e se isso se devia à ausência de árvores onde se abrigassem,
ao estrondear dos canhões ou ao solo empapado em sangue, não saberia
dizer. Mas sabia que se fosse uma ave, também ele não quereria ficar num
lugar daqueles.
Espalhados à sua volta havia outros soldados franceses, a fazer exata-
mente o mesmo: aproveitar alguns dias de descanso e trégua longe da
frente. Mais para trás, no que fora em tempos uma pequena aldeia, outros
ainda saboreavam uma refeição e alguns copos de vinho num estaminet,
um simples café com toscas mesas e bancos de madeira.
Havia também o som de corpos a chapinhar e grandes gargalhadas.
Não sabia se era num lago, num ribeiro ou numa simples cratera cheia de
água da chuva, mas pensou que talvez fosse até lá e se juntasse aos outros,
mais tarde. A oportunidade de despir aquelas roupas imundas e lavar-se to-
do não era de desperdiçar.
Quando ali chegara como recruta, em outubro de 1914, acreditava-se
que Verdun era inexpugnável, rodeada como estava de colinas e cristas em
ambas as margens do Mosa e protegida por anéis de fortins, dos quais Fort
Douaumont era o mais formidável e imponente. E assim continuara a pare-
cer até ao dia de Ano Novo de 1916, quando os Franceses tinham con-
seguido manter as suas posições a despeito dos pesados bombardeamentos
do inimigo. Fort Douaumont podia e devia ter aguentado, mas o general
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Joffre, na sua sabedoria, retirara a maior parte dos canhões para os usar
noutros pontos da frente.
Étienne ainda sentia um estremecimento de horror quando recordava o
dealbar do dia 21 de fevereiro, quando os Alemães tinham voltado a atacar,
dessa vez com uma força incrível. Só mais tarde se soubera que havia já al-
gum tempo estavam a transferir homens e artilharia para a área. Na altura,
os seus aviões de combate tinham intercetado todos os voos de reconheci-
mento ingleses ou franceses que poderiam ter dado conta desta intensa
atividade.
Ao longo dos treze quilómetros da frente, chovera fogo sobre os
Franceses, arrancando árvores pela raiz, lançando-as ao ar, matando e fer-
indo muitos milhares de homens. A artilharia alemã destruíra as linhas de
comunicação francesas e bloqueara o envio de reforços.
Os Chasseurs do tenente-coronel Driant, a que Étienne pertencia, tin-
ham oferecido uma feroz mas inútil resistência. Gallant Driant fora morto
nessa tarde, quando tentava recuar para Beaumont com o que restava do
seu batalhão. Uma porção substancial da frente cedera e as baixas france-
sas tinham sido assustadoras, mas Étienne sentia que tinham feito o in-
imigo pagar cara a vitória: as baixas alemãs tinham sido igualmente eleva-
das, sobretudo entre as tropas de assalto.
Samongneux caíra na madrugada de 24 de fevereiro. A 51.ª e a 72.ª
Divisões perderam dois terços dos seus homens e estavam perto do ponto
de rutura. Seguira-se Beaumont, e os Trailleurs marroquinos e os Zouaves
argelinos, acabados de chegar, foram lançados na voragem da batalha sem
quaisquer defesas contra o frio intenso ou os incessantes bombardeamentos
alemães. Pouco depois, Douaumont caía também.
Todos os franceses que ali estavam sabiam que a queda de Douaumont
provocaria ondas de choque que se estenderiam à França inteira, não só
por se tratar de um símbolo do orgulho nacional, mas também porque
deixava o caminho aberto ao inimigo para tomar a cidade de Verdun.
No entanto, abandonar uma cidade tão cara ao coração dos Franceses
era impensável, e fora o general Pétain que o impedira. É possível que, se
pudesse escolher, este pragmático homem tivesse optado por uma retirada
controlada, mas sabendo que não podia, concentrara-se na defesa. Pétain
tinha duas qualidades inestimáveis: uma verdadeira compreensão da
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natureza do moderno poder de fogo e a capacidade de conquistar o respeito
e a confiança dos soldados que se batiam na linha da frente.
Étienne recordava o modo como a sua chegada a Verdun restaurara
imediatamente a confiança e levantara o moral. Uma das primeiras coisas
que fizera fora entrar no jogo dos Alemães, ordenando à sua artilharia que
infligisse ao inimigo o maior número possível de baixas. E uma vez que as
ligações ferroviárias a Verdun já tinham sido cortadas, tomara medidas
para que os abastecimentos fossem transportados por uma estreita estrada,
que passara desde então a ser conhecida como Voie Sacrée, ou Via Sacra.
Todos os dias, aquela estrada era percorrida por um fluxo constante de
veículos que levavam reforços e mantimentos.
No entanto, ainda antes de a ação de Pétain começar a ter um ver-
dadeiro impacto no campo de batalha, a ofensiva alemã parecera perder
ímpeto. Étienne, como muitos outros, deliciava-se a vê-los tentar fazer
avançar os pesados canhões pelo terreno cravejado de crateras, e
regozijava-se ainda mais a alvejá-los sem remorsos.
As batalhas tinham-se arrastado, com milhares de bocas de fogo a mar-
telar implacavelmente as trincheiras de ambos os campos, sem um instante
de pausa. A cada ataque alemão seguia-se um contra-ataque francês, e em
finais de março dizia-se que o número de mortos era quase igual de ambos
os lados. Mas oitenta e oito mil baixas francesas iam muito além do
tolerável.
Naquele momento, em maio, tudo parecia ter piorado, porque o gener-
al Pétain fora promovido e o general Nivelle assumira o comando, com o
general Mangin como comandante de divisão. Dizia-se que Mangin era um
oficial de velha escola, favorável aos ataques maciços independentemente
do seu custo em vidas humanas. Já lhe chamavam «O Carniceiro», ou «O
Devorador de Homens», e Étienne só conseguia prever mais miséria no
futuro.
Já perdera todos os amigos que fizera quando se tinha alistado. À me-
dida que o mandavam de um lado para o outro ao longo da frente, outros
soldados tinham substituído os primeiros e tinham-se tornado seus amigos,
mas perdera também a maior parte deles. Agora, tinha relutância em saber
fosse o que fosse de pessoal a respeito dos homens que lutavam a seu lado.
Em tempos mais tranquilos, teria jogado cartas e bebido e brincado com
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eles, mas sabia que se ouvisse falar das mulheres, dos filhos, das famílias,
das coisas em que acreditavam, dos sonhos que tinham, as suas mortes
custar-lhe-iam muito mais.
Sabia que cada dia que passava na linha da frente podia ser o último, e
a única coisa que pedia nas suas orações era morrer imediatamente. Sabia
que não seria capaz de viver com os terríveis ferimentos que vira serem in-
fligidos a outros homens.
Por vezes, perguntava a si mesmo por que motivo a sorte da guerra tê-
lo-ia poupado tanto tempo. Seria por ter aprendido muito cedo a arte da
sobrevivência? Ou seria por ser rápido, decidido e destemido, como o cap-
itão Beaudin dissera quando o tinha promovido a cabo, em janeiro? Dis-
sera também, na altura, que ele era um excelente soldado, um líder nato e
uma mais-valia para o regimento. Étienne sorrira para consigo mesmo, a
perguntar-se se o capitão lhe teria feito tantos elogios se soubesse como em
tempos ganhara a vida.
Foi arrancado ao devaneio em que caíra pelo som de vozes exaltadas e
pôs-se de pé para olhar na direção do estaminet. Viu um camião e quatro
homens que envergavam o uniforme caqui dos Ingleses no meio de um
grupo de soldados franceses. Mesmo à distância de quase quinhentos met-
ros, percebeu, pela atitude dos ingleses, que aquela era uma situação sus-
cetível de degenerar em luta.
Era relativamente raro aparecerem por ali soldados ingleses, ocupados
que estavam a defender a linha da frente à volta de Ypres. Calculou que
teriam pedido indicações sobre como chegar aonde quer que pretendiam ir,
mas os franceses estavam quase de certeza embriagados, e poucos – se al-
gum – deviam falar inglês, pelo que, em vez de ajudar, tinham provavel-
mente optado por provocar os estrangeiros.
Não querendo ver sangue derramado, sentiu-se obrigado a intervir.
À medida que se aproximava e começava a ouvir o que era dito,
apercebeu-se de que não se enganara. Os Tommies tentavam obter in-
dicações sobre como chegar ao quartel-general francês, e os franceses
tinham-no sem dúvida compreendido, mas, porque estavam bêbedos,
divertiam-se a ser deliberadamente evasivos e a fazer comentários
insultuosos.
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Estava a cerca de cem metros do estaminet quando um dos Tommies
se aproximou do mais exaltado dos soldados franceses e lhe agarrou os
ombros. Era evidente que se preparava para lhe desferir um murro.
– Não lhe batas, não passa de um idiota bêbedo – gritou Étienne. – Eu
ajudo-os.
O inglês olhou em redor, surpreendido. Étienne dirigiu-se então aos
soldados franceses, dizendo-lhes que deviam ter vergonha por não ajudar-
em os seus aliados. Invetivados desta maneira, todos eles se afastaram a ar-
rastar os pés, regressando ao café.
– Posso oferecer-vos uma bebida? – perguntou Étienne aos ingleses. –
Gostaria de compensá-los pela má educação dos meus compatriotas. Posso
dar-vos indicações e desenhar-vos um mapa.
Os quatro ingleses olharam uns para os outros, e então o cabo que os
comandava, um homem baixo e de cabelo escuro, agradeceu-lhe e disse
que aceitavam com prazer.
Como nenhum deles estava muito interessado em entrar no estabeleci-
mento onde se encontravam os homens que os tinham insultado, sentaram-
se no chão, no exterior, e Étienne foi buscar uma garrafa de vinho para
partilharem.
– Não há cerveja – disse, enquanto distribuía os copos. – E o vinho
também não é grande coisa.
Perguntou-lhes de onde eram e explicou-lhes sumariamente onde es-
tava localizado o quartel-general francês.
Os homens tratavam o cabo baixo e nervudo por «Corp». A um rapaz
louro que não teria mais de dezanove anos chamavam, por razões sobre as
quais Étienne só podia especular, «Donkey», e o homem alto e corpulento
que estivera à beira de esmurrar o soldado francês era «Bin». O quarto, a
quem chamavam «Red» – sem dúvida por causa do cabelo ruivo –, ex-
plicou na galhofa que «Bin» ganhara a alcunha porque já tinha «estado»
em todo o lado.1
Enquanto Étienne traçava um esboço do caminho que tinham de
seguir, os ingleses fizeram-lhe perguntas a respeito de Verdun, e de há
quanto tempo estava na frente. Na sua resposta, Étienne contou-lhes parte
dos horrores que ali se viviam. Também eles tinham as suas histórias de
horror a respeito de Ypres, mas disseram que, ultimamente, as coisas
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tinham estado bastante tranquilas e que passavam a maioria do tempo ocu-
pados a melhorar as condições nas trincheiras.
– Falas muito bem inglês – comentou Red. – Já viveste em Inglaterra?
– Uma vez, durante quase dois anos. Vivi em Londres, e tu és de lá,
não és? Reconheço o sotaque.
– Pensava que, para vocês, nós, os Tommies, falávamos todos da
mesma maneira.
– Não quando se presta atenção. Se vivesses em França durante algum
tempo, aprenderias a distinguir entre uma pessoa de Paris e outra do Sul –
respondeu Étienne, a olhar com muita atenção para o londrino. Parecia-lhe
familiar, mas não conseguia perceber porquê. Que se lembrasse, nunca
tinha falado com um inglês ruivo, nem ali nem em qualquer outro lugar.
– Como estão vocês a aguentar-se? – perguntou o cabo. – Ouvimos
dizer que foi uma chacina, mais de oitenta mil mortos.
– Foi o que se disse, talvez até mais. – Étienne suspirou. – Mas os
Boches perderam quase outros tantos. Que vão vocês fazer ao quartel-
general?
Reparou na maneira como todos eles trocavam olhares.
– Não precisam de me dizer só porque lhes ofereci uma bebida – disse.
– Foi apenas curiosidade.
– Viemos buscar um par dos nossos homens – explicou Red. – Não se
sabe muito bem se desertaram ou se se perderam. Os vossos apanharam-
nos.
– Mas vocês não são Boinas Vermelhas, pois não?
Étienne desprezava a polícia militar e se soubesse que aqueles homens
pertenciam a esse Corpo, não se teria dado ao trabalho de os ajudar.
– Raios, não! A viagem não é oficial. O nosso capitão é boa pessoa, e
esses dois que desapareceram são veteranos, bons soldados. Todos pensá-
mos que estavam no arame quando vimos que não tinham voltado depois
de saltarmos da trincheira; perdemos muitos naquela noite, e alguns corpos
ficaram enterrados na lama. Mas então o capitão recebeu uma mensagem a
dizer que tinham sido apanhados e lembrou-se de que tinha estado muito
nevoeiro naquela noite. É fácil perder o sentido de orientação com um ne-
voeiro daqueles. Por isso decidiu mandar-nos buscá-los para os interrogar.
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Se tivesse mandado os Boinas Vermelhas, não teriam a mais pequena
hipótese.
Étienne arqueou uma sobrancelha. Nunca ouvira falar de um oficial,
francês ou inglês, que tivesse dado a alguém o benefício da dúvida
tratando-se de deserção. Tinham-lhe contado que soldados franceses tin-
ham sido abatidos a tiro quando iam a fugir, em Ypres, mas esses não
queriam desertar, estavam só a tentar escapar aos gases venenosos.
– Então têm muita sorte – disse.
– Não acho que os desertores, intencionais ou acidentais, devam ser
fuzilados – disse o ruivo, acaloradamente. – É um desperdício de vida. Se
se acagaçaram, deviam pô-los a trabalhar como faxinas nos quartéis…
onde são precisos homens tanto como nas trincheiras.
– Aqui o nosso Red Reilly era capaz e defender os direitos de uma
ratazana que se preparasse para lhe morder os tomates – disse o cabo, com
um sorriso torcido. – Ainda bem que sabemos que não é um filho da mãe
de um cobarde.
Ao ouvir aquele nome, Reilly, Étienne quase deu um salto. Os quatro
ingleses riram, mas ele só conseguia olhar para Red, estupefacto.
Não podia ser Jimmy, pois não? Só por ser de Londres, chamar-se
Reilly e ser ruivo? Não, era uma coincidência demasiado incrível. Além
disso, o Jimmy de Belle tinha uma taberna, não se teria alistado antes de
ser obrigatório. E mesmo que tivesse, qual era a probabilidade de a sorte
juntar dois homens que amavam a mesma mulher junto a um estaminet
perdido algures em França?
Só tinha visto Jimmy uma vez, no dia em que fora a Blackheath, fu-
gazmente e ao longe. Tudo o que recordava do homem, na realidade, era
que era alto e tinha cabelo ruivo; nunca lhe olhara bem para a cara. Quanto
a ter-lhe parecido familiar, podia ser a imaginação a pregar-lhe partidas e
todos aqueles meses de inferno estarem finalmente a fazer mossa. Reilly
era um nome bastante comum em Inglaterra; devia haver centenas de
Reillys só em Londres.
– Que se passa, companheiro? Parece que viste um fantasma.
Étienne foi uma vez mais sobressaltado pelo comentário do cabo, e
forçou um sorriso.
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– Estava só a pensar em como reagiria se uma ratazana me mordesse
os tomates – respondeu.
A conversa derivou para os ataques com gás venenoso.
– Tivemos a sorte de não ser a nossa vez naquele dia – disse Bin. –
Ficavam com as caras todas negras e saíam das trincheiras a esgatanhar a
garganta. Foi uma coisa horrível.
O cabo contou que lhes tinha sido dito que tapassem a boca e o nariz
com um pano encharcado em água, ou na própria urina, e que o capitão lhe
explicara que os homens que tinham morrido se tinham afogado na espuma
que se lhes formara nos pulmões.
– Já os tiveram aqui?
Étienne preparava-se para dizer que não passara pessoalmente pela ex-
periência mas que ouvira muitos relatos de homens a quem isso tinha
acontecido, quando a atenção do cabo foi distraída pelo aparecimento, à
porta do estaminet, de um homem com um prato de comida na mão.
– Há ovos com batatas fritas! – exclamou o inglês. – Quero uma
pratada daquilo!
O cabo levantou-se de um salto, logo seguido por Bin e Donkey. Red
pediu-lhes que arranjassem uma dose também para ele e ficou com
Étienne.
Estar de repente a sós com Red pareceu a Étienne a oportunidade per-
feita para afastar de vez aquela louca ideia.
– Já te chamavam Red, lá em casa, ou tinhas outro nome? – perguntou.
O homem sorriu.
– Em Étaples, o sargento chamava-me cabeça de cenoura. Quando
descobriu que eu era bom atirador, passou a chamar-me Red. A alcunha
pegou, mas o meu verdadeiro nome é James, sempre conhecido como
Jimmy.
Étienne sentiu um calafrio gelado descer-lhe pela espinha, e a boca
seca.
– O que é que fazias antes de te alistares? – conseguiu dizer.
– Tinha um pub, com o meu tio – respondeu Jimmy. – Acho que devia
estar com um parafuso a menos quando me alistei. A minha mulher estava
à espera de bebé, e eu ainda estava em Étaples quando soube que o tinha
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perdido. Deixaram-me ir a casa, por ela estar tão mal, e digo-te uma coisa,
estive muito tentado a não voltar.
– É por isso que és tão compreensivo em relação aos desertores?
– Talvez. A Belle estava muito mal, tinha sido assaltada e agredida na
loja que tinha, e eu senti que não devia tê-la deixado sozinha. Mas ela re-
cuperou, chegou até a voltar a abrir a loja durante algum tempo. Agora de-
sistiu e está a fazer trabalho voluntário no Hospital Militar.
Étienne desejou ter continuado encostado ao cepo de árvore em vez de
intervir para ajudar aqueles homens. Desse modo, teria podido continuar a
acreditar que Belle estava a viver a vida feliz que merecia.
– Enfermeira?
– Bem, para já, é o pau-mandado da enfermaria, mas é feita da matéria
de que são feitas as enfermeiras. Meteu-se-lhe na cabeça a ideia maluca de
que se conseguir ganhar experiência no hospital poderá juntar-se à Cruz
Vermelha passado algum tempo e vir para cá conduzir uma ambulância.
– Isso não é trabalho para uma mulher – declarou Étienne. Só tinha
conhecido duas ou três condutoras de ambulância, e eram todas mulheres
de rostos que pareciam talhados à faca e com nervos de aço. – É perigoso,
têm muitas vezes de aproximar-se bastante da linha da frente. Não a
deixes.
Jimmy fez uma careta.
– Quando a minha Belle mete uma coisa na cabeça, não há nada a
fazer – disse. – Mas o hospital está a rebentar de feridos, e ela faz lá falta,
de modo que tenho esperança de que acabe por desistir da ideia. Já há al-
gum tempo que não fala do assunto nas cartas que me escreve.
Étienne queria muito dizer que sabia bem como Belle era obstinada e
impulsiva, mas sabia que não devia. Se revelasse quem era, poderia
acontecer que revelasse também, sem querer, os seus sentimentos por ela.
Não podia permitir que o homem voltasse para o campo de batalha com
esse conhecimento a pesar-lhe no coração.
– Tenho de ir – disse, e pôs-se de pé. – Gostei de te conhecer. Mantém
a cabeça baixa e mantém essa tua mulher a salvo em casa, para quando
voltares.
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– Tive muito prazer em conhecer-te – disse Jimmy, pondo-se igual-
mente de pé e estendendo a mão a Étienne. – Tem cuidado, tu também. E
obrigado pelo vinho e pelas indicações.
Étienne afastou-se, apressado. Ouviu Jimmy gritar que não lhe dissera
como se chamava, mas fingiu não ter ouvido e continuou a andar.

– Onde se meteu o francês? – perguntou o cabo quando regressou com


dois pratos de ovos e batatas fritas. – Trouxe uma dose para ele.
– Teve de ir embora – respondeu Red. – É pena, parecia ser bom tipo.
Tinha pensado pedir-lhe que nos ensinasse umas frases que nos ajudassem
quando chegarmos ao quartel-general francês.
– A mim pareceu-me um filho da mãe dos duros – comentou Bin, que
voltava transportando também dois pratos de comida. – Repararam nos ol-
hos dele? Frios como gelo. Não admira que os frenchies tenham recuado
quando lhes gritou. Até agora, estava convencido de que os franciús eram
todos uns maricas.
– Porquê? Já tinhas «estado» com algum? – perguntou Donkey em tom
maldoso, e os outros riram à gargalhada.
– Ah é? Então como eu as batatas do francês, e vocês bem podem as-
sobiar pela vossa parte.

Enquanto regressava ao campo, Étienne sentia-se abalado. Depois de


deixar a Inglaterra, em 1914, conseguira remeter a recordação de Belle
para o fundo dos seus pensamentos, mas o que acontecera momentos antes
tinha-a feito voltar à superfície.
Podia ter passado menos de meia hora com Jimmy, mas fora o sufi-
ciente para perceber o que ele era. Talvez tivesse ficado satisfeito se fosse
um fraco, um pateta. Mas não, era um homem forte, reto e cheio de princí-
pios, com essa firmeza calma que faz os bons soldados e os melhores
amigos.
Iria Belle aparecer em França? A maior parte das mulheres, pensou,
teria demasiado medo de considerar sequer a possibilidade de viajar para
um país assolado pela guerra, mas Belle tinha mais coragem do que lhe
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convinha. Era também absolutamente obstinada quando queria qualquer
coisa, quer fosse escapar do Martha’s, em Nova Orleães, ou abrir a sua
própria loja de chapéus.

1 Na eventualidade de haver algum(a) leitor(a) menos versado(a) na língua inglesa, uma


pequena explicação: Corp é a abreviatura de Corporal, cabo; Donkey significa burro e Red ver-
melho. Bin, que também pode significar lata ou caixote, é aqui uma corruptela de pronúncia do
particípio passado do verbo to be (no caso, estar). (N. do T.)
CAPÍTULO 12

1 de julho de 1916

–É um raio de uma cotovia! – gritou Donkey, a olhar para o céu límp-


ido e azul e a tentar, enquanto bebia a sua ração de rum, descobrir
a ave que cantava. – Ei, Red, achas que é um bom presságio, ou ela está só
feliz por os canhões se terem finalmente calado?
Eram sete e meia da manhã, estava já muito calor e, após cinco dias de
um constante e ensurdecedor bombardeamento das linhas inimigas, o es-
trondear da artilharia tinha repentinamente cessado. Reinava agora uma es-
tranha quietude, interrompida apenas pelo canto da ave. Até os canhões
alemães se tinham silenciado.
O regimento de Jimmy tinha chegado ali, ao Somme, vindo de Ypres,
duas semanas antes, para se juntar ao que parecia ser a totalidade do Corpo
Expedicionário Britânico acampado num espaço de quilómetros atrás das
linhas. Como de costume, ninguém achara apropriado dizer-lhes por que
razão aquela parte da Frente Ocidental era tão importante para os generais.
Tudo o que sabiam era que não havia estradas principais nem nós fer-
roviários de monta na retaguarda das linhas alemãs e que aquele tinha sido,
até então, um setor relativamente tranquilo. No entanto, quaisquer que
fossem os motivos por que fora escolhido para lançar uma grande ofensiva,
a primeira reação dos homens foi de satisfação, quanto mais não fosse por
terem deixado para trás os pântanos de Ypres. O terreno calcário
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significava que as trincheiras não ficariam inundadas, e o que tinham à sua
volta era uma vasta extensão de terra agrícola, bonita e verde,
preguiçosamente atravessada pelo rio Somme.
Só no dia anterior Jimmy ficara a saber que aquela batalha se destinava
a atrair os Alemães para longe de Verdun e aliviar a pressão sobre o exér-
cito francês que lá continuava a combater. O capitão dissera que os cinco
dias de bombardeamento tinham esmagado as defesas de arame farpado do
inimigo e eliminado todos os combatentes e armas pesadas da primeira
linha. Naquele momento, enquanto esperavam pelo som do apito que
lançaria a primeira vaga de homens por cima do parapeito da trincheira, to-
dos acreditavam que a travessia da Terra de Ninguém seria uma espécie de
passeio pelo parque e que a luta a sério só começaria quando chegassem à
segunda linha.
– A cotovia é um bom presságio – disse Jimmy, e despejou de um só
trago a sua ração de rum. Não estava totalmente convencido de que fosse
ser tão fácil como todos pensavam. Mas já era bom não ter de ouvir o ri-
bombar da artilharia pesada e poder saborear o calor do sol.
A paz e o sossego foram de curta duração. Repentinamente, os can-
hões britânicos recomeçaram a atroar os ares, dessa vez apontados para a
segunda linha de defesa do inimigo. A este sinal, os soldados que aguar-
davam deitados na Terra de Ninguém puseram-se de pé e, com os seus ofi-
ciais, começaram a marchar em direção ao inimigo a um passo regular e
bem ensaiado.
Chegou então o momento de a primeira vaga saltar da trincheira. A
companhia de Jimmy fazia parte da segunda vaga. Esperaram, a ver os ofi-
ciais correrem ao longo do parapeito a gritar palavras de encorajamento e
inclinarem-se para estender a mão aos homens sobrecarregados de equipa-
mento e ajudá-los a subir. Da posição onde se encontrava, Jimmy não con-
seguia ver o que acontecia noutros pontos da linha, mas sabia que era o
mesmo que ali. Uma vez do outro lado, era o seu próprio arame farpado
que teriam de atravessar, mas, na noite anterior, tinham sido cortadas vári-
as secções para permitir a passagem, ou colocadas tábuas para fazer uma
espécie de pontes.
– Somos a seguir – disse Bin jovialmente, esmagando a ponta do ci-
garro com a biqueira da bota. – Meu Deus, estou pronto para isto.
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Foi então que ouviram o matraquear das metralhadoras inimigas. Não
apenas algumas, mas centenas, todas a disparar ao mesmo tempo. O sor-
riso de Bin desapareceu, e Donkey voltou-se para Jimmy com uma ex-
pressão que dizia: «Julgava que os tínhamos arrumado.»
– Soa pior do que é – disse Jimmy, mas sentia as entranhas
transformarem-se-lhe em água enquanto avançava e fazia sinal aos outros
para o imitarem e ocuparem as respetivas posições, à espera da sua vez de
passar para o outro lado.
A espera, com a visão obstruída pela alta parede da trincheira, era o pi-
or. O estrépito do fogo das metralhadoras retinia-lhes nos ouvidos, o peso
das mochilas esmagava-lhes os ombros e a terrível sensação de que não
iam sequer conseguir atravessar a Terra de Ninguém era incapacitante. Ho-
mens que minutos antes riam estavam agora pálidos e trémulos, e Jimmy
viu um rapaz vomitar, um pouco mais adiante na trincheira.
Mas a ordem chegou instantes depois. Quando alcançou o parapeito,
Jimmy viu que a primeira linha do inimigo estava totalmente guarnecida e
que os Alemães concentravam o fogo de algumas das suas armas nos es-
paços abertos no arame farpado britânico. Era como fazer tiro ao alvo.
Havia homens caídos, mortos, em cima do arame, e os camaradas tinham
de trepar por cima deles.
Mais adiante, era ainda pior. Jimmy calculou que mais de metade dos
homens da primeira vaga jaziam mortos ou feridos, e no segundo antes de
saltar viu tombar mais alguns dos restantes.
Conseguiu passar o arame, esperou um segundo para se reagruparem,
como lhes fora dito, e, com Donkey à sua direita e Bin à esquerda,
começou a avançar num passo determinado ao encontro de uma saraivada
de balas.
Tinham percorrido dez metros quando Donkey foi atingido. O corpo
dele estremeceu, como se tivesse sido sacudido por uma descarga elétrica,
e então caiu para trás e ficou imóvel. Um único olhar bastou a Jimmy para
saber que estava morto; tinha sido atingido no peito e o sangue jorrava aos
borbotões.
– Anda, Red – incitou-o Bin, quando ele hesitou. – Não podes fazer
nada por ele. Vamos safar-nos.
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Continuaram a avançar sob a chuva de balas do inimigo. Jimmy rezou
uma silenciosa oração pela sua segurança enquanto via mais homens que
conhecia cambalearem e caírem à sua volta. O fumo, o alucinante matra-
quear das metralhadoras e os gritos dos feridos eram aterrorizadores, mas
não podia hesitar, tinha de chegar às linhas inimigas custasse o que
custasse.
Uma dor súbita e dilacerante no antebraço direito disse-lhe que tam-
bém ele tinha sido atingido. Olhou para baixo, horrorizado, e viu o sangue
jorrar. Continuou a avançar, mas era como se tivesse o braço em fogo, a
dor era tão intensa que o fazia cambalear de um lado para o outro. Mal
conseguia empunhar a espingarda, quanto mais dispará-la.
– Fui atingido, Bin – gritou. – Continua, não percas a coragem e junta-
te aos outros.
Bin voltou a cabeça, hesitou por um segundo, mas então, com um
gesto da mão, seguiu em frente. Jimmy deu mais alguns passos e, vendo a
cratera de uma granada, deixou-se cair nela.
Devia ter desmaiado. Quando voltou a si, havia dois outros homens do
seu regimento com ele, ambos a gemer de dor. Ainda tinha a mochila às
costas e, cerrando os dentes, desembaraçou-se dela. Estava muito calor,
apesar da hora matinal. Soube, pelos homens que passavam a correr lá em
cima, determinados a alcançar as linhas alemãs, que não poderia esperar
ajuda antes do pôr do sol. Olhou para as paredes do buraco para onde tinha
saltado e compreendeu que não conseguiria sair dali sozinho.
A perda de sangue estava a fazê-lo sentir-se zonzo. Ou talvez fosse
apenas o rum que bebera momentos antes.
– Estão muito feridos? – perguntou aos outros homens. – Posso ajudá-
los de alguma maneira?

Foi o mais longo, o mais doloroso e o pior dia da sua vida, e desde que
se alistara tinha tido muitos dias maus. Despiu o dólman e aplicou um
penso sobre a ferida, numa tentativa de evitar infeções, e fez o que pôde
pelos outros dois homens. Ambos tinham graves ferimentos no peito e per-
deram os sentidos por volta das onze da manhã. Jimmy tentou poupar a
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água que tinha no cantil, mas o calor era tanto que a sede acabou por levar
a melhor.
Tudo o que conseguia ver do fundo do buraco onde estava era o céu
azul e sem nuvens lá em cima e a corrente infindável de soldados que pas-
savam. O fogo de metralhadora continuava a crepitar, igualmente infind-
ável, e ouvia os gritos e os gemidos dos homens que morriam a poucos
metros de distância. Quando o sol incidiu a pique na cratera,
transformando-a num forno, já não lhe restava uma gota de água e a dor no
braço era tão violenta que o fazia querer gritar também.
Tentou pensar em Belle e imaginar a frescura da cozinha da casa. Mas
apesar de conseguir manter estas imagens durante um ou dois segundos, o
barulho e a carnificina ao seu redor depressa o traziam de volta à realidade.
Viu uma ratazana correr por cima de um dos homens inconscientes.
Sentiu um arrepio e atirou-lhe uma pedra para a enxotar. A ratazana desa-
pareceu, mas era óbvio que não tardaria a voltar, acompanhada por outras,
atraídas pelo cheiro do sangue. Tentou então pôr-se de pé, com a intenção
de sair do buraco e voltar às linhas britânicas. Mas quer fosse devido ao
enorme número de corpos que viu caídos à volta da cratera, à ferida ou
apenas ao calor, as pernas cederam-lhe e não teve outro remédio senão vol-
tar a deixar-se cair. Examinou os outros dois homens e verificou que es-
tavam mortos.
Foi raiva o que então sentiu. Como podiam os generais enviar tantos
homens para uma morte certa? Se o que via do seu buraco estava a aconte-
cer ao longo de toda a linha, então as forças britânicas tinham de certeza
sido completamente dizimadas.

O crepúsculo adensava-se quando finalmente o encontraram. Devia ter


passado inconsciente a maior parte da tarde. Quando lhe chegaram um can-
til de água aos lábios, quase não conseguiu engolir, de tão inchada que
tinha a língua e toda a cara.

Belle recebeu a nota de Jimmy a dizer-lhe que tinha sido ferido uma
semana depois de ter acontecido.
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«Fui ferido no antebraço, mas não te preocupes, não é grave. Puseram-
me um remendo e vão mandar-me para casa em breve, de licença. Fui um
dos felizardos: o meu amigo Donkey morreu, e muito mais homens de
quem eu gostava. Mas suponho que aí já sabem quantas baixas houve a 1
de julho.»
Belle sabia. Os feridos tinham começado a chegar, a conta-gotas no
dia 4 de julho, em catadupas no dia seguinte. Um oficial da enfermaria de
Miranda dissera que calculava que tivesse havido dezoito mil mortos e
mais de trinta mil feridos, só no primeiro dia da batalha do Somme. Belle
não sabia, na altura, que era onde Jimmy estava, mas receara que sim, pois
ele tinha-lhe escrito algum tempo antes a dizer que ia a caminho de um
novo lugar. Por isso passara todos aqueles dias até receber a carta dele a
preparar-se para o temido telegrama.
Ficou contente por ele só ter sido ferido, mas ao mesmo tempo re-
ceosa. Muitos dos homens que via no hospital pareciam ter-se fechado em
si mesmos e tinham pesadelos horríveis. Através de coisas que diziam,
muitas vezes de passagem, soube que naquele dia, em França, tinham visto
o Inferno na Terra.
Jimmy voltou a casa na última semana de julho. Tinha o braço enfiado
numa funda e a pele da cara a pelar, mas o seu sorriso era tão radioso como
sempre.
– Não exageres – disse ele, enquanto ela se afadigava à sua volta a
tentar instalá-lo confortavelmente, a oferecer-se para lhe cortar a comida e
despi-lo. – Estou bem. Nunca tinha gostado tanto de te ver a ti e a esta
casa, mas estou em condições de voltar à luta.
Tivera sorte, em comparação com tantos outros homens que estavam
no Herbert. O ferimento mantivera-se limpo e estava a sarar bem. Con-
forme ele próprio fizera notar, a funda destinava-se apenas a evitar que es-
forçasse o braço; tinha os dedos todos a funcionar, como demonstrou
tocando uma musiquinha no piano do pub.
– Acho que vou conservar a funda, para as outras pessoas – disse. –
Descobri que gosto de ser tratado como um herói.
Tinham passado vinte meses desde que se alistara, e naquela primeira
noite em casa fez amor com Belle como se pensasse que nunca mais vol-
tariam a ter uma oportunidade.
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– Só por isto vale a pena ser ferido – disse a dada altura. – Não con-
seguia pensar noutra coisa enquanto estava no hospital, e as enfermeiras
estavam sempre a perguntar-me porque estava a sorrir.
Um ou dois dias mais tarde, admitiu que ficara aliviado por o terem
mandado para casa. Não estava a contar com isso. Os ferimentos como o
dele eram habitualmente tratados num hospital louco, e depois era o re-
gresso à frente. Disse que achava que o comandante do batalhão interviera
a seu favor.
No entanto, por muito maravilhoso que fosse tê-lo em casa, saber que
Jimmy ia ter de regressar à frente de combate aterrava Belle. Não con-
seguia partilhar a perspetiva dele, segundo a qual aquele ferimento era a
sua conta e que dali em diante estaria a salvo. Cada vez que lhe lavava e
renovava o penso da ferida no braço não conseguia impedir-se de pensar
no que sentiriam as mulheres que recebiam um telegrama a dizer que os
maridos tinham morrido.
Mesmo no meio da doçura das noites de amor, o espírito dela es-
voaçava entre o medo de o ver partir outra vez e a culpa de sentir que se
aguentara muito bem sozinha durante todo aquele tempo.
As histórias que Mog, ufana de orgulho, contava a Jimmy a respeito de
como gostavam de Belle no hospital, e os louvores que Garth lhe tecia pelo
muito que os ajudava, faziam-na parecer um paradigma de virtude.
Custava acreditar que Mog tinha em tempos sido tão contra o trabalho e
Miranda, de tal maneira fora radical a sua mudança de atitude, chegando
agora a incitá-la a passar os seus dias de folga com a amiga. Poucas sem-
anas antes, tinham ido de bicicleta passear pelos campos, para lá de
Eltham, e, à noite, iam muitas vezes as duas a concertos e ao teatro.
Agora que Jimmy tinha voltado depois de ter escapado por tão pouco,
Belle sentia-se dividida entre ser a esposa perfeita, a fada do lar e correr at-
rás do seu próprio sonho. Queria muito ir para França com Miranda. Já se
tinham candidatado duas vezes ao lugar de condutoras de ambulância, e de
ambas tinham sido recusadas. Miranda tinha a certeza de que era apenas
por as autoridades acharem que não tinham experiência suficiente e insistia
em que tentassem outra vez.
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O tempo estava bom e Belle conseguira um par de dias de folga para
ela e Jimmy poderem estar juntos. Levaram uma cesta de piquenique para
Greenwich Park, sentaram-se à sombra de uma árvore e conversaram.
Jimmy falou-lhe dos amigos que fizera na tropa, das condições em que
tinha combatido e queixou-se dos generais, que considerava de um modo
geral estúpidos e incapazes de liderar homens.
– Os cinco dias de bombardeamento no Somme foram um desperdício
de tempo e de recursos – disse, com alguma raiva. – Metade das granadas
não rebentaram, e as que rebentaram não arrasaram o arame farpado nem
mandaram os Boches a correr para a segunda linha de trincheiras. Um
homem que vi no hospital passou horas preso no arame, atingido em
quatro pontos diferentes do corpo durante o dia e quase feito em pedaços.
E foi apenas um entre centenas. Os nossos descobriram, mais tarde, que os
Boches se tinham preparado bem. Tinham abrigos de betão e canhões
muito maiores e melhores do que os nossos. Não tivemos a mais pequena
hipótese.
À medida que os dias passavam, Belle apercebeu-se de que Jimmy es-
tava um pouco envergonhado por se ter atirado para o fundo da cratera e
ficado lá o dia inteiro. Não tinha qualquer razão para se sentir assim. Belle
bem via, pelo aspeto do ferimento, que ele jamais teria conseguido usar a
arma e que teria de certeza perdido os sentidos devido à perda de sangue, o
que significava que poderia ter sido novamente atingido, dessa vez fatal-
mente. Assim lho disse, e então desviou-se do assunto para falar das
greves que surgiam por todo o país, da subida do custo de vida e da escas-
sez de alimentos.
Estava um pouco envergonhada por não lhe dizer que continuava a
querer ir para França e que Miranda andava a dar-lhe aulas de condução
sempre que conseguia pedir emprestado o carro ao tio. Mas desculpava-se
perante si mesma argumentando que podiam nunca chegar a ser aceites, de
qualquer modo. Além disso, era possível que a guerra acabasse em breve,
apesar de Jimmy pensar que não. Estava aliviada por ele não ter sido ferido
com gravidade e queria que regressasse a França com a recordação do
parque no verão, das longas noites de amor, das boas refeições e do riso.
Não de uma mulher que parecia ter sempre qualquer coisa escondida na
manga.
CAPÍTULO 13

B elle chegou à arrecadação das bicicletas e, antes de tirar a sua, puxou


a saia do uniforme alguns centímetros para cima e apertou o cinto
para a segurar.
Estava uma tarde amena de abril, e no fim de um longo dia encafuada
na abafada e sombria enfermaria, era bom voltar a respirar ar fresco. O tra-
jeto até casa deixava-a sempre revigorada e estava desejosa de o iniciar.
Mas quando tirou a bicicleta da arrecadação viu que, mais uma vez, os dois
pneus estavam vazios. Não valia a pena tentar enchê-los com a bomba,
sabia que aquilo fora feito intencionalmente. Quando fez girar as rodas lá
encontrou, também como de costume, uma tacha de cabeça chata espetada
em cada uma.
Tinha-se tornado perita em remendar furos. Na realidade, desde que
aprendera a andar de bicicleta tornara-se perita em todo o género de re-
parações. Mas não ali. Ia ter de levar a bicicleta à mão até casa e tratar
disso mais tarde.
Enquanto caminhava, a empurrar a bicicleta, várias enfermeiras, outras
voluntárias e auxiliares a caminho de casa ou a chegar para o turno da
noite, acenaram-lhe a dizer olá ou até amanhã. Tornara-se conhecida no
Herbert e fizera muitas amigas. Ia ter saudades delas quando partisse para
França com Miranda, dentro de duas semanas.
Aquela história dos pneus furados era uma coisa de que não ia ter
saudades. Toda a gente achava que era uma brincadeira estúpida, que não a
visava particularmente. Mas ela não estava assim tão certa disso; pelo con-
trário, sentia que era o alvo deliberado daquela maldade.
Não havia qualquer espécie de regularidade nos «ataques». Por vezes
surgiam de quinze em quinze dias, seguindo-se várias semanas sem que
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nada acontecesse – a dada altura tinham sido três meses, tempo suficiente
para a convencer de que quem estava a fazer aquilo se fartara da
brincadeira.
Mas o culpado, ou culpada, voltava sempre. Tentara deixar a bicicleta
noutros lugares, correndo o risco de uma reprimenda, mas mesmo assim
continuara a acontecer. A irmã Adams sugerira que era uma questão de in-
veja, por ela ser bonita e popular tanto entre o pessoal como entre os pa-
cientes. O consenso geral era que devia ser alguém que trabalhava no
hospital.
O último ano fora terrível para toda a gente em Inglaterra. No início da
guerra, o entusiasmo e o fervor patriótico tinham empolgado as pessoas.
Mas quando o conflito não acabara quando todos estavam convencidos de
que acabaria, e as listas de baixas se haviam tornado cada vez mais longas,
juntamente com o terror provocado pelos ataques aéreos e a escassez de al-
imentos, o cansaço e a dúvida tinham-se instalado. As mulheres mais
jovens haviam conquistado maior liberdade, ocupando lugares que apenas
cinco anos antes teriam sido impensáveis. Havia motoristas de autocarro e
motoristas de táxi, carteiras, mulheres a trabalhar nas fábricas de munições
e na agricultura. Os paus de cabeleira tinham-se tornado uma coisa do pas-
sado; com tantos homens em França, deixara de haver necessidade deles.
No entanto, Belle ainda sorria muitas vezes ao ler as cartas que velhas
matronas empedernidas escreviam aos jornais a indignarem-se contra o de-
scalabro da moralidade. Afirmavam que as jovens estavam a comportar-se
de uma maneira inaceitável e temerária, saindo para dançar, passeando
pelas ruas de braço dado com homens de uniforme depois de escurecer e
bebendo em bares. Tudo isto era verdade, e Belle achava totalmente com-
preensível que os jovens aproveitassem o momento presente quando acred-
itavam que a morte podia chegar a qualquer altura.
Para ela, pessoalmente, fora um bom ano, excetuando as saudades e a
preocupação com Jimmy. O abatimento que se seguira à perda do bebé
tinha desaparecido, deixando apenas uma tristeza com a qual sabia que ia
ter de aprender a viver. Tinha a sua amizade com Miranda, e Mog e Garth
não só aceitavam o seu trabalho no hospital como até se orgulhavam dela.
Por vezes, Mog ainda dizia que esperava que a guerra acabasse em breve e
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ela pudesse voltar a abrir a loja de chapéus, mas admitia que tinha feito
bem em oferecer-se para trabalhar como voluntária no hospital.
Era um trabalho duro, sem tréguas desde que entrava na enfermaria de
manhã até que saía, às seis da tarde. O afluxo de feridos era constante, dia
após dia, embora nunca tantos como tinha sido depois da batalha do
Somme, em julho passado.
Ao longo daquele ano, Belle vira mutilações tão terríveis que de-
safiavam a sua ideia daquilo que o corpo humano era capaz de aguentar:
perda da visão, braços e pernas arrancados, queimaduras terríveis e feri-
mentos abdominais. Mas o que mais detestava era os ferimentos na cara e
na cabeça. As pessoas tratavam os homens que andavam de muletas ou de
cadeira de rodas como heróis, cumulando-os de admiração e respeito. Mas
os que ficavam horrivelmente desfigurados faziam-nas desviar os olhos, e
por vezes as próprias famílias tinham dificuldade em lidar com eles.
Fora o colossal número de baixas em 1916 que tornara possível que
Miranda e Belle fossem aceites como condutoras de ambulância. As in-
fernais batalhas à volta de Verdun tinham deixado oitenta e sete mil mortos
do lado francês, e a batalha do Somme, que se prolongara até novembro,
causara quatrocentas mil baixas entre os Aliados, e isso fizera finalmente a
Cruz Vermelha mudar de perspetiva. Além disso, muitos condutores de
ambulância americanos tinham-se alistado para combater, quando final-
mente a América decidira juntar-se aos Aliados. Com os submarinos
alemães a atacarem implacavelmente as rotas marítimas, desde fevereiro, e
a batalha de Arras, que começara pouco antes, a causarem um número
ainda maior de baixas, as autoridades mostravam-se dispostas a aceitar
toda a ajuda que lhes fosse oferecida.
Ambas as raparigas tinham excelentes referências das irmãs das en-
fermarias e da enfermeira-chefe, e além disso sabiam conduzir. Mas Belle
achava que aquilo que fizera pender a balança para o lado delas de modo
decisivo fora o facto de falarem um pouco de francês e de nunca terem de-
sistido de candidatar-se, dando provas de determinação.
A enfermeira-chefe, que raramente louvava até as profissionais mais
experientes, quanto mais simples voluntárias, surpreendera Belle.
– Ao início, pensei que fosse mais uma jovem tola e iludida – dissera,
fixando nela aqueles olhos a que nada escapava. – Mas provou ser fiável,
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conscienciosa e firme. Se não fosse casada, ter-lhe-ia pedido que fizesse o
curso de enfermeira. Não quero perder a sua ajuda aqui, mas sei que
quanto mais depressa os feridos puderem ser transportados das enfermarias
de campanha para os hospitais, mais probabilidades terão de sobreviver.
Afiançarei à Cruz Vermelha que tem o desembaraço e a coragem ne-
cessários, e que adquiriu aqui experiência suficiente para desempenhar a
tarefa.
Belle estava animada por ir, mas também assustada. Ela e Miranda tin-
ham falado daquilo durante muito tempo, mas agora que ia realmente
acontecer, ambas duvidavam das suas capacidades. Uma coisa era mudar
um penso sob o olhar vigilante de uma irmã, outra muito diferente era
levar homens gravemente feridos e cheios de dores até à segurança de um
hospital. Tinham medo de se perderem, de a ambulância ter uma avaria, de
não conseguirem manter a calma numa emergência.
Mas não era no que podia acontecer-lhe em França que Belle pensava
enquanto caminhava para casa a empurrar a bicicleta; os seus pensamentos
e os seus medos estavam com Jimmy. Tivera muita sorte em escapar só
com um ferimento quando tantos homens do seu regimento tinham mor-
rido naquele primeiro dia da batalha do Somme, e nunca ela esqueceria a
maneira apaixonada como falara daquilo a que chamava «a carnificina»
que então acontecera. E por mais que ele insistisse em que o seu ferimento
não era grave e que estava ótimo, Belle vira-lhe fugazmente nos olhos,
durante o tempo que passara em casa, a mesma expressão assombrada que
todos os dias via nos feridos que enchiam o hospital.
No seu último dia antes de regressar a França, Jimmy dissera-lhe, num
inesperado desabafo, que, em Ypres, os Alemães tinham usado fogo
líquido contra eles. Contara como repentinamente, ao longo das trincheiras
à sua direita, uma parede de chamas se erguera para o céu, e como ouvira
os homens a gritar e sentira o cheiro a carne queimada quando tentavam
saltar das trincheiras e fugir. O fogo não chegara ao sítio onde ele estava,
mas nessa noite cerca de cinquenta homens que conhecia bem tinham mor-
rido, e muitos mais que haviam conseguido sobreviver viveriam o resto
das suas vidas desfigurados e atormentados pelas dores.
Tinha feito parte do grupo encarregado de recolher os corpos para ser-
em sepultados. Contara que alguns estavam ainda agarrados como lapas às
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paredes da trincheira, apanhados pelas chamas quando tentavam trepar.
Outros tinham caído de costas sobre os corpos de outros homens, todos
eles negros e calcinados, os uniformes reduzidos a cinzas. Vomitara ao ver
aquele espetáculo, e durante vários dias não conseguira comer.
Quase no mesmo instante, pedira desculpa por estar a sobrecarregá-la
com aquelas imagens. E ela respondera que era melhor falar daquilo do
que guardar tudo dentro de si, mas bem vira que ele se arrependia de lhe
ter contado. Talvez achasse que os verdadeiros homens tinham a obrigação
de guardar recordações como aquela para si mesmos.
Desde que regressara, as suas cartas eram curtas mas bem dispostas,
cheias de pequenas histórias engraçadas a respeito de outros soldados.
Havia os que eram bons a conseguir coisas, que desapareciam durante al-
gum tempo e voltavam com uma garrafa de brandy ou um coelho. Alguns
escreviam poemas ou sabiam cantar, outros faziam toda a gente rir, outros
ainda sabiam contar boas histórias. Qualquer outra pessoa que lesse
aquelas cartas pensaria que ele estava num acampamento de escuteiros e
que passava o dia sentado com os companheiros a contar anedotas. Mas
Belle tornara-se perita a ler nas entrelinhas. Sabia que ele tinha medo
sempre que o mandavam para a linha da frente, mas acreditava que a sua
sorte estava predeterminada e que não havia nada a fazer para a alterar.
E sabia também que quando começasse a conduzir uma ambulância,
veria coisas tão chocantes como as que Jimmy via. Os feridos que
chegavam ao Herbert já tinham sido lavados e ligados. Esperava ser capaz
de lidar com horrores muito piores sem se deixar ir abaixo.
– Olá, Belle, teve um furo?
Belle quase deu um salto ao ouvir a voz masculina atrás de si, e
mesmo sem se virar soube que era Blessard. Naquele instante, o instinto
disse-lhe que era ele o responsável pelos pneus furados e que estivera à es-
pera de a ver passar, escondido do lado de dentro do portão de um jardim.
Adivinhou também que não era a primeira vez que o fazia. Mas, em
todas as outras ocasiões em que encontrara os pneus da bicicleta vazios,
Belle tinha apanhado boleia para casa de um médico que calhasse sair ao
mesmo tempo, ou de Mr. Eldredge, o merceeiro que fornecia o hospital e
que passava sempre pelo Railway para uma bebida.
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– Para si é Mrs. Reilly. Já lho tinha dito – disse, e continuou a andar
sem voltar a cabeça.
Ele alcançou-a e agarrou o selim da bicicleta, para a obrigar a parar.
– Não seja assim. Só queria dizer olá.
Belle virou-se então para o enfrentar. Ele vestia um casaco aos quadra-
dos, de bom corte, e umas calças de flanela cinzenta. A elegância das
roupas sugeria que estava a tentar impressioná-la.
– Muito bem, já disse olá, agora faça o favor de largar a minha
bicicleta.
Ele obedeceu, mas quando ela recomeçou a andar, acompanhou-a.
– Deve ser um trabalho duro, no hospital. Admiro sinceramente as sen-
horas que se oferecem para trabalhar lá. Não deve ser fácil.
– Também não é fácil para os soldados feridos – respondeu ela,
secamente. – Surpreende-me não o ver fardado. Porque será?
O serviço militar fora tornado obrigatório no ano anterior, e Blessard
não tinha qualquer incapacidade visível.
– Tenho problemas de coração – explicou ele. – Se não fosse isso, es-
taria na frente, a fazer a minha parte.
Belle lançou-lhe um olhar gélido. Podia estar a dizer a verdade, claro,
mas era muito mais provável que tivesse subornado um médico para o
isentar.
– Ouça, Mister Blessard, não quero ser mal-educada, mas não tenho
nada para lhe dizer e não tenho qualquer prazer na sua companhia. Por
isso, faça o favor de ir à sua vida e deixar-me em paz.
Ao ouvir isto, ele agarrou-lhe o braço e apertou-lho com tanta força
que a magoou.
– Como foi que uma prostituta como tu se tornou tão altiva? – disse. –
Sei tudo a teu respeito. Tudo. É que, sabes, faço questão de descobrir
coisas acerca das pessoas que me interessam. Podes ter convencido as
gentes de Blackheath que estiveste em Paris a aprender a fazer chapéus,
mas eu sei qual era a tua verdadeira profissão. Podes ter tido um par de
amigos influentes para te encobrir, mas um jornalista consegue sempre
chegar à verdade.
Belle largou a bicicleta, que caiu no chão com estrépito, rodou sobre si
mesma e, erguendo o joelho num gesto rapidíssimo, atingiu-o entre as
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pernas com toda a força de que foi capaz. Blessard dobrou-se ao meio,
com um gemido de agonia.
– Aprendi muita coisa em Paris – rosnou-lhe ela. – E uma delas foi a
lidar com ratazanas como tu. Se voltas a aproximar-te de mim, vais-te
arrepender.
Levantou a bicicleta do chão e afastou-se a estugar o passo. Num
rápido olhar por cima do ombro, viu que ele continuava dobrado pela cin-
tura e soube que não estava em condições de a seguir.
Quando chegou a casa, Garth e Mog estavam a preparar-se para jantar.
Ambos notaram como vinha afogueada, e ela contou-lhes o que tinha
acontecido.
– Vou tratar da saúde a esse patife – exclamou Garth, levantando-se da
mesa.
– Já não o vai encontrar – disse Belle. – Deve ter rastejado de volta ao
buraco de onde saiu.
– Mas e se ele torna a tentar apanhar-te sozinha? – perguntou Mog,
com os olhos muito abertos de medo.
– Parto para França dentro de duas semanas. Duvido que consiga
recompor-se antes disso – respondeu Belle.
– Não devias ter feito aquilo – murmurou Mog. – Só vai enfurecê-lo
ainda mais contra ti.
– Mog! O malandro não merecia outra coisa! – exclamou Garth, apar-
entemente espantado por a mulher não estar a apoiar Belle. – Que querias
tu que ela fizesse? Deixá-lo tratá-la como quisesse?
– Não, mas a violência só gera mais violência – respondeu Mog, quase
a medo.
– Uma ova! Cá para mim, há que combater o fogo com fogo – exaltou-
se Garth. – Fizeste muito bem, rapariga, e entretanto vou dar uma palav-
rinha a esse polícia, o Broadhead. Ele encarrega-se de descobrir de onde
veio esse tipo, e depois trato eu do assunto.
Mog abanou a cabeça.
– Não podes contar ao Broadhead o que o homem disse à Belle!
– Não, não pode – concordou Belle. Gostava do guarda Broadhead,
que parecia ser um bom homem, mas sabia que ele tinha uma paixão
secreta por ela e que era bem capaz de ir a correr prender Blessard. – É
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melhor deixar as coisas como estão. Ele não poderá voltar a incomodar-me
se eu não estiver cá.
No entanto, apesar do que tinha dito, quando nessa noite escreveu a
sua habitual carta a Jimmy, estava muito nervosa. Blessard deixara passar
tanto tempo sem tentar contactá-la que Belle se convencera de que ele
tinha perdido o interesse nela. O encontro daquele dia provara-lhe que não
era esse o caso, e fora só por uma questão de sorte que Blessard não a em-
boscara numa das muitas outras ocasiões em que lhe furara os pneus da bi-
cicleta. Mas, ao reagir da forma como reagira naquela tarde, ela revelara a
matéria de que era feita, e o mais provável era que isso o deixasse ainda
mais determinado a desmascará-la.
Não estava verdadeiramente preocupada por si mesma. Se mais nada
lhe tivessem ensinado, a guerra e tudo o que vira tinham-lhe mostrado que
as coisas más acontecem e que nunca nada permanece imutável. Ela e
Jimmy podiam mudar-se para outro lugar qualquer quando aquilo aca-
basse, mas, como sempre, eram Garth e Mog que a preocupavam. Eram fe-
lizes ali, toda a gente gostava deles e os respeitava. No último ano, Mog
tornara-se uma figura destacada nos eventos destinados a angariar fundos
para o esforço de guerra na aldeia: cozinhava, cosia, tricotava, vendia nas
bancas, fazia trajes para festas e desfiles. Pela primeira vez na sua vida, as
pessoas procuravam-na e contavam com ela.
Belle sabia que se o seu passado fosse revelado, Mog iria sofrer.
Mesmo que o seu antigo emprego como governanta de um bordel nunca
chegasse a ser conhecido, o simples facto de ser tia de uma ex-prostituta
bastaria para que a aldeia inteira a marginalizasse.
Não havia, porém, nada que pudesse fazer para impedir Blessard de a
denunciar, se fosse essa a sua intenção. Tudo o que podia esperar era que
os estragos se circunscrevessem à sua pessoa.

Duas semanas mais tarde, Belle e Miranda estavam finalmente no


comboio a caminho de Dover. O vagão ia a abarrotar de soldados que re-
gressavam a França, mas elas tinham a carruagem Só Senhoras toda para
as duas.
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– Graças a Deus acabou – disse Miranda, radiante, enquanto se
afastava da janela de onde estivera a acenar e se deixava cair no assento.
Os pais tinham ido despedir-se dela, e a mãe embaraçara-a ao soluçar
convulsivamente, comportando-se como se estivesse convencida de que
nunca mais voltaria a ver a filha.
Belle baixou a janela e limpou sub-repticiamente as lágrimas dos olhos
antes de voltar a sentar-se. Mog mantivera-se silenciosa e calma na es-
tação, mas ela sabia que voltaria com Garth e então se iria abaixo e se des-
faria em lágrimas na intimidade da sua casa, e que as suas lágrimas seriam
genuínas. Uma maneira bem oportuna de lhe lembrar como era afortunada
por ser amada. Miranda podia ter todas as vantagens que acompanham a
riqueza e pais bem relacionados, mas a família renegá-la-ia no momento
em que desse um passo em falso. Não tinha a mínima dúvida de que Mrs.
Forbes-Alton encheria os ouvidos das amigas com afirmações de que a
filha fora para França fazer um trabalho vital para o esforço de guerra, mas
que as suas lágrimas na gare não tinham sido genuínas, vindas do coração,
e de que na realidade estava contente por se ver livre de uma filha
problemática.
– A mamã é tão falsa – exclamou Miranda. – Ainda esta manhã, antes
de sairmos de casa, a ouvi dizer à criada que empacotasse as minhas coisas
e as guardasse na cave, e que preparasse o meu quarto para a irmã que vem
viver com ela. Nunca mais volto a pôr lá os pés. Hoje é o primeiro dia da
minha nova vida independente.
– Deixa que a minha não é melhor do que ela – admitiu Belle. –
Escrevi-lhe há duas semanas e disse-lhe que me ia embora e perguntei-lhe
se podia vir no domingo para me ver antes de eu partir. Mandou-me um re-
cado a dizer que não ia ter tempo, mas que me desejava felicidades. Tam-
bém não faço tenção de me preocupar mais com ela.
– Como pode alguém ser assim? – perguntou Miranda.
Era uma pergunta que Belle fizera a si mesma inúmeras vezes. Annie
nunca lhe dissera uma palavra de conforto por ter perdido o bebé, nem se
mostrara preocupada com a segurança de Jimmy, ou interessada no tra-
balho dela no hospital. A única coisa de que falava era de como a sua
pensão estava a prosperar e de quantos oficiais encantadores lá se alo-
javam. Não parecia sequer particularmente incomodada pelo facto de
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muitos dos nomes desses hóspedes terem mais tarde aparecido nas listas de
baixas.
– Nunca foi uma verdadeira mãe para mim – disse Belle, com um sus-
piro. – É uma mulher fria e egoísta. A melhor coisa que fez por mim foi
deixar-me ao cuidado da Mog.
– A minha é má. Quanto éramos pequenos, só nos via durante cerca de
dez minutos antes de irmos para a cama. É tão falsa que consegue conven-
cer as outras pessoas de que fazia tudo por nós. Mas a verdade é que fomos
criados por serviçais. Mas há pouco o meu pai enfiou-me algum dinheiro
na mão. – Miranda sorriu. – Cem libras! Fiquei sem saber muito bem se
era para garantir que eu não voltava ou se estava a tentar mostrar que quer-
ia saber de mim para alguma coisa.
Belle pensou nas roupas novas que Mog fizera para ela, no bolo de
fruta que cozinhara e guardara na mala. O tempo e o trabalho que dedicava
a estas pequenas coisas tornavam o seu amor visível, e significavam muito
mais do que um maço de notas. Quanto a Jimmy, demonstrara o seu amor
ficando contente por ela ter tido a oportunidade de fazer algo que queria
fazer. Dissera que ficaria orgulhoso por ela abraçar um trabalho tão im-
portante e que talvez conseguisse algum tempo para estar com ela.
– Bem, agora somos só nós as duas – disse. – Esperemos que sejamos
mesmo capazes de conduzir ambulâncias. E de nos lembrarmos de algu-
mas palavras em francês.
– Claro que vamos. Vamos ser brilhantes. E agora, vamos ter de ficar
nesta carruagem Só Senhoras? Tenho a certeza de que nos divertiríamos
muito mais ao pé dos soldados.
– Miss Forbes-Alton, não está aqui para se divertir – replicou Belle, a
imitar a enfermeira-chefe do Herbert. – Além disso, o comboio vai à
cunha. Temos muita sorte por ter um assento, quanto mais uma carruagem
inteira só para nós.
– Podíamos sentar-nos nos joelhos de alguém – disse Miranda,
descaradamente.
– Aproveita enquanto podes o conforto que aqui temos. O barco vai
estar cheio de soldados. Calculo que quando chegarmos a Calais até tu vais
estar farta de namoriscar.
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– Nem quero acreditar que seja contra as regras as voluntárias darem-
se socialmente com o pessoal militar – disse Miranda, tirando uma
pequena caixa de compacto da mala de mão e começando a espalhar pó no
nariz. – Estava na esperança de encontrar um oficial galante para nos
escoltar quando não estivermos de serviço.
Belle riu.
– Desconfio que, quando não estivermos de serviço, estaremos de-
masiado cansadas para fazer seja o que for além de dormir.
– Pergunto a mim mesma se irás conseguir ver o Jimmy, ou até o tal
francês – disse Miranda, pensativa.
– O que espero, de certeza, é não ver nenhum deles numa ambulância
– respondeu Belle. Bem desejava que Miranda não falasse tantas vezes «do
francês». Não tinha maneira de saber se Étienne ainda estava vivo, e
preocupava-a um pouco o facto de ele se lhe insinuar tão frequentemente
nos pensamentos. – Mas, e os teus irmãos? Onde estão?
Sabia que só se tinham alistado depois de o serviço militar ter passado
a ser obrigatório, e que eram ambos oficiais, mas Miranda nunca dissera
em que região de França estavam.
Miranda fez um ar um pouco embaraçado.
– Conseguiram ambos lugares à secretária em Londres. Como, não
faço ideia. Suponho que a querida mamã tenha puxado alguns cordelinhos.
Belle não pôde deixar de sorrir. Mrs. Forbes-Alton era uma autêntica
peça, a perseguir os homens para se alistarem enquanto os filhos ficavam a
salvo atrás de uma secretária. Só a espantava como conseguia a mulher
manter a cabeça erguida.

Eram altas horas da noite quando finalmente chegaram a Camiers,


onde se situava a principal base do exército britânico. Belle sabia que
ficava a norte de Étaples, onde Jimmy fizera a recruta, e perto do mar, mas
não esperava que fosse um lugar tão vasto. Havia, de ambos os lados da
estrada, filas atrás de filas do que pareciam ser grandes barracas de chapa
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de zinco, apenas com uma débil luz por cima da porta, e, para lá delas,
mais filas de tendas em forma de sino.
Além delas as duas, viajavam na caixa do camião dez enfermeiras
voluntárias, e ainda duas mulheres mais velhas que trabalhavam para a
Cruz Vermelha mas se mostraram evasivas quanto ao seu papel. Fora uma
viagem fria e sacudida desde Calais, pois o camião tinha uma cobertura de
lona que o vento enfunava dos lados e a estrada parecia estar cheia de
buracos.
– Espero que não tencionem pôr-nos a dormir numa tenda – disse uma
das enfermeiras, numa voz muito afetada.
Belle olhou para Miranda, ansiosa. Também a ela a ideia não agradava
nada.
– As construções que parecem barracões são sobretudo enfermarias –
explicou uma das mulheres mais velhas. – São muito melhores por dentro
do que parecem vistas de fora. Têm grandes claraboias no teto, de modo
que recebem muita luz, sobretudo nos dias de sol. Entre elas há salas de
operações, cozinhas e coisas assim. Tenho a certeza de que serão alojadas
numa cabana: as tendas são sobretudo ocupadas pelos homens que trabal-
ham aqui e usadas como enfermarias de recurso quando há grande afluxo
de feridos. O ano passado, durante a batalha do Somme, foi preciso pô-las
todas ao serviço.
As enfermeiras foram instaladas numa cabana, muito mais pequena do
que as que tinham ficado a saber serem enfermarias. Belle e Miranda fo-
ram conduzidas a uma outra, diferente e próxima de um amplo espaço
onde havia filas de ambulâncias.
– Uma das mulheres explica-vos tudo o que precisam de saber – disse-
lhes o condutor do camião. – Boa sorte. Vão precisar, que este sítio pode
ser o Inferno na Terra.
Uma mulher corpulenta com cerca de trinta anos, de cabelo muito
curto e enfiada num pijama de flanela azul, levantou-se da cama onde es-
tava sentada quando as duas raparigas entraram na pequena cabana.
– Devem ser a Reilly e a Forbes – disse, estendendo-lhes a mão. –
Sally Parson. Fiquei acordada para vos dar as boas-vindas; as outras tam-
bém queriam, mas acabaram por adormecer.
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– Foi muita gentileza sua – respondeu Miranda. – Mas não queremos
impedi-la de ir dormir. Pedimos desculpa por chegarmos tão tarde.
Enquanto Miranda falava pelas duas, Belle olhava em redor. Havia
seis camas, três das quais estavam ocupadas, e a de Sally era muito clara-
mente a que tinha uma pequena luz acesa ao lado. Não havia confortos.
Era apenas uma barraca com chão de madeira, um par de janelas de cada
lado, um fogão no meio e uma mesa e dois bancos corridos na parede
oposta à porta. Ao lado de cada cama havia um pequeno baú com cadeado.
– A casa de banho é por aquela porta. – Sally estava a apontar para
uma porta na parede mais afastada, atrás da mesa. – Há um par de bacias,
mas receio que só água fria. E também lá deixamos as batas e as botas.
Amanhã mostro-vos onde podem tomar banho. Agora, se não se importam,
vou fechar a porta à chave e dormir.
Assim que Miranda acendeu a luz entre a sua cama e a de Belle, Sally
apagou a dela e deitou-se. As duas amigas olharam uma para a outra, sem
saberem se haviam de rir ou chorar. Não estavam à espera de luxos, mas
aquilo era espartano. E muito frio, ainda por cima.
Miranda apalpou o colchão e fez uma careta.
– Parece uma placa de cimento – murmurou.
– Pelo menos temo-nos uma à outra – respondeu Belle, também num
sussurro.
Dez minutos mais tarde, estavam enfiadas nas respetivas camas, e
apesar de Belle se ter rido quando Mog pusera na mala um xaile de lã que
tinha tricotado, naquele momento, enquanto se embrulhava nele, sentiu-se
grata, porque os lençóis eram ásperos e frios e as mantas tinham um cheiro
esquisito.
Entrava um pouco de luz pelas pequenas janelas, e ouvia homens a
conversar em voz baixa ali perto. De vez em quando, alguém passava pelo
caminho que o camião seguira para as levar até ali, e chegava-lhe aos
ouvidos o ocasional bater de uma porta.
– Dorme bem – sussurrou a Miranda. – De manhã vai parecer tudo
melhor.
CAPÍTULO 14

A cordaram para uma manhã cinzenta e húmida e Sally apresentou-as


às três outras raparigas, Maud Smith, Honor Wilkins e Vera Reid.
– Eu e a Maud andámos na escola juntas, em Cheltenham – disse. – A
Honor é do Sussex, a Vera da Nova Zelândia. Somos as únicas mulheres a
conduzir ambulâncias. Os homens metem-se connosco, mas nós mantemo-
nos unidas e somos superiores a isso.
Sally, Maud e Honor pareciam saídas do mesmo molde: provavel-
mente por volta dos trinta, nem bonitas nem feias, robustas e com vozes
um tudo-nada afetadas. Fizeram lembrar a Belle professoras da instrução
primária, sensíveis, com bom coração mas quase de certeza pouco interess-
antes como companhia.
Vera, por outro lado, parecia diferente. Era mais nova e tinha um rosto
sardento e aberto, olhos azul-esverdeados e um sorriso rasgado e caloroso.
– A minha única desculpa para estar aqui é ser maluca – disse. – Bem,
pelo menos é o que parece a maior parte dos dias.
Belle nunca conhecera ninguém da Nova Zelândia e o sotaque dela
pareceu-lhe estranho.
Não houve tempo para mais conversas. Sally distribuiu a Belle e a
Miranda batas de caqui para vestirem por cima da roupa e sugeriu-lhes que
encurtassem as saias alguns centímetros, ou andariam a arrastá-las pela
lama. Então, com o cabelo firmemente preso debaixo de uma boina tam-
bém de caqui, dirigiram-se à cantina, onde comeram, como pequeno-al-
moço, algumas fatias de pão, um par de tiras de bacon frito cheio de
gordura e uma caneca de chá. O passo seguinte foi um encontro com o
capitão Taylor, do Royal Army Medical Corps, que tinha a seu cargo os
condutores de ambulâncias.
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– Esperamos ali – disse Sally, e apontou para outra cabana um pouco
mais afastada onde, através da porta aberta, viram cerca de trinta homens
sentados. – Tocam uma campainha quando está a chegar um comboio com
feridos, e nessa altura corremos para a estação. Toda a gente tenta chegar à
frente, porque os pacientes sentados são os primeiros a ser descarregados.
O capitão Taylor era um homem já de alguma idade e mirou as duas
recém-chegadas de alto a baixo com o género de expressão divertida que
dizia que não estava convencido de que qualquer mulher fosse suficiente-
mente forte para pegar numa maca. Falou muito pouco, apenas o suficiente
para lhes dizer que esperava que se mantivessem a si mesmas e às res-
petivas ambulâncias limpas e que deviam obedecer às regras afixadas na
parede da cabana dos condutores. Em seguida emparelhou cada uma delas
com um maqueiro, que passaria a acompanhá-las na ambulância.
Miranda ficou com Alf, que devia ter cerca de cinquenta anos e era
muito baixo, com umas pernas notavelmente tortas mas uns ombros
maciços.
– Não vou sonhar com ele esta noite – sussurrou a Belle, a tapar a boca
com a mão.
A Belle tocou David Parks, de Sheffield. Tinha só vinte e cinco anos,
um rosto fresco, cabelo louro e orelhas salientes. Contou a Belle que tinha
sido dado como inválido depois de, em 1915, ter sido atingido numa perna,
em Ypres, mas que pedira para ficar a ajudar os feridos. Quando ele se
afastou para falar com outra pessoa, Belle notou que coxeava muito, e
perguntou-se se estaria verdadeiramente em condições de carregar grandes
pesos.
Uma hora mais tarde, já tinha tido ocasião para ficar contente por lhe
ter calhado David. Não só sabia exatamente aonde ir e o que fazer quando
chegaram à estação, como parecia compreender as pequenas idiossincrasi-
as da ambulância e não se importar de fazer equipa com uma mulher. Fa-
lava com um sotaque nortenho cerrado, mas tinha uns modos gentis, quase
tímidos, de que ela gostava. Explicou que não podia guiar uma ambulância
porque o ferimento o impedia de exercer pressão suficiente na
embraiagem.
– Porque não foste para casa depois de teres sido ferido? – perguntou-
lhe ela enquanto seguiam num comboio de ambulâncias na primeira saída
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do dia até à estação. Tinha de lutar com as mudanças e a pesada direção,
mas David ia-lhe dando indicações e incutia-lhe confiança. – Com certeza
já tinhas tido guerra que chegasse.
– O que é «casa» para um aleijado como eu? – disse David, com um
encolher de ombros. – Ninguém me vai dar trabalho, a minha mãe não
quer mais uma boca para alimentar, com uma casa cheia de filhos, e os
meus amigos estão todos aqui.
Aquelas palavras ecoavam as que ela já tinha ouvido da boca de outros
soldados no Herbert. Muitos deles vinham de famílias pobres de cidades
como Leeds, Manchester e Birmingham. Tinham-se alistado para fugir à
miséria, ao meio onde viviam e à falta de oportunidades. Infelizmente,
muitos daqueles homens regressariam a casa amargurados, para enfrentar-
em uma vida ainda pior do que a que tinham antes.
No entanto, Belle também tinha conhecido alguns que achavam que o
exército fora uma mudança para melhor. Refeições regulares e exercício
físico haviam transformado rapazinhos escanzelados em homens robustos.
As amizades feitas com outros de origens diferentes e a orientação dos
oficiais tinham-lhes aberto a mente e ensinado novas competências. Estava
certa de que David se enquadrava nesta categoria.
– Talvez consigas arranjar trabalho num hospital quando a guerra
acabar – sugeriu.
Ele esboçou um sorriso tímido.
– Tenho andado a ler a respeito de fisioterapia. É uma coisa que
gostava de fazer. Acho que é uma área onde uma pessoa não será recusada
por ser coxa.
Quando se aproximaram o suficiente, na longa fila de ambulâncias,
para ver a gare da estação, os feridos sentados já tinham sido todos levados
para o hospital e só restavam os feridos deitados. Apesar de a estação estar
apinhada de enfermeiras, homens estendidos em macas e outro pessoal
militar, Belle ficou surpreendida com a organização e a calma. À porta de
cada carruagem, uma enfermeira do exército, de avental branco e touca,
tendo na mão uma prancheta com as notas dos homens a seu cargo, in-
dicava aos maqueiros a ordem pela qual deviam ser levados. Cada ferido
tinha ao lado um saco fechado por um cordão com os seus objetos pess-
oais, mas poucos usavam a bata azul que Belle se habituara a ver no
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Herbert. A maior parte estava de camisola interior, em muitos casos
rasgada e ensanguentada. Viu cotos de braços e cabeças envoltos em li-
gaduras, rostos queimados, formas onde faltava o vulto das pernas por
baixo da manta que as cobria. Ouvia gemidos e um ou outro grito de dor,
mas no geral os feridos mantinham-se silenciosos, alguns deles tão imóveis
que pareciam mortos.
– Avança, é a nossa vez – disse David quando a ambulância que os
precedia arrancou depois de ter sido carregada com seis macas colocadas
nos suportes montados com esse propósito. – Quando começarmos a car-
regar, tenta não deixar que os homens percebam que é a primeira vez que
fazes isto nem mostrar horror por causa dos ferimentos.
Belle podia achar que estava habituada a ver ferimentos terríveis, e a
ajudar a levar pacientes para a cama, mas nunca antes carregara uma maca.
No Herbert, eram sempre os auxiliares que tratavam disso. Quando ela e
David pegaram na primeira maca, com um homem ferido no abdómen,
cambaleou momentaneamente ao descobri-la tão pesada, e os olhos cheios
de dor do ferido suplicaram-lhe que não o magoasse mais.
– Vai ser tudo muito melhor em breve – disse, numa voz embebida de
ternura. – Não voltarão a mexê-lo depois de chegarmos ao hospital.
Quando ergueram a maca e a fizeram deslizar para dentro da ambulân-
cia, teve a sensação de que os braços se lhe iam soltar das articulações,
mas depois voltou a tranquilizar o ferido e limpou-lhe a testa com um pano
húmido.
– Estás a ir bem – disse-lhe David em voz baixa, quando iam buscar o
segundo ferido. – Nasceste para isto… um sorriso e uma palavra de con-
forto fazem quase tanto bem como a morfina.
Quando ficaram completamente carregados, com as notas relativas aos
feridos presas a cada maca, Belle iniciou o regresso à base, a tentar evitar
os buracos da estrada. Estava encharcada em suor, sentia os braços como
se tivessem sido esticados numa roda medieval e sabia que o mesmo pro-
cedimento seria repetido, por ordem inversa, no hospital. Pouco passava
das nove da manhã e ia ter de fazer aquilo uma e outra vez até às seis. Per-
guntou a si mesma se conseguiria chegar ao fim do dia.
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Se não fosse David, talvez tivesse atirado a toalha ao chão ao fim da
manhã. Mas ele disse-lhe que o primeiro dia era sempre o pior e incitou-a a
não desistir.
– Eu sei que parece impossível conseguir levantar mais uma – disse, e
deu-lhe uma caneca de chá para a ajudar a engolir um par de aspirinas. –
Mas os músculos depressa ficam mais fortes, e não queres dar ao capitão
Taylor o prazer de ver uma rapariga que não está a altura da tarefa.

Quando, às seis da tarde, Miranda e Belle voltaram à cabana,


deixaram-se ambas cair em cima da cama com um gemido. Tinham feito o
percurso de ida e volta até à estação tantas vezes que lhe perderam a conta.
Todos os músculos dos seus corpos haviam sido forçados até ao limite, as
visões horríveis, os cheiros e os gritos de dor que lhes tinham assaltado os
sentidos ao longo de todo o dia tinham-lhe deixado os nervos à beira do
ponto de rutura.
– Não esperava que fosse assim – disse Miranda, com a voz enfraque-
cida pela exaustão.
– Nem eu – concordou Belle. – Duvido que consiga sequer levantar os
braços para me despir e escovar o cabelo.
– Chega de lamúrias – interrompeu-as Vera do outro lado da cabana.
Despira-se até ficar apenas com um saiote debruado a renda, correra a to-
mar um banho e estava naquele momento a enfiar um vestido azul, como
se fosse para uma festa. – Vão tomar banho. Verão que se sentem melhor.
Belle conseguiu sentar-se.
– O dia de hoje foi particularmente agitado? – perguntou, com uma
nota de esperança na voz.
– Esteve dentro da média, para quando há combates em curso – re-
spondeu Vera. – As coisas estiveram relativamente sossegadas até à Pás-
coa, mas então começaram os combates em Arras, e pouco depois rece-
bemos cerca de duas mil baixas, ingleses, franceses, australianos e cana-
dianos. Dizem que em breve vai ser ainda pior.
– Acho que não consigo enfrentar outro dia igual ao de hoje – admitiu
Miranda, dando voz ao que Belle estava a pensar.
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– Consegues – disse Vera, convictamente. – Pensei o mesmo no meu
primeiro dia, mas depois habituamo-nos. Vão lá tomar banho, comam
qualquer coisa e metam-se na cama. Vão dormir como bebés, e amanhã
quando acordarem não vai parecer assim tão mau. Deem-me as vossas sai-
as, para eu lhes subir as bainhas hoje à noite.
– Farias isso por nós? – espantou-se Belle. A saia comprida
atrapalhara-a durante todo o dia, mas não se sentia com forças para a en-
curtar naquela noite.
– Claro, estamos nisto todas juntas – respondeu Vera. – Ajudarmo-nos
umas às outras é a única maneira de aguentar.
– Mas não vais sair a algum lado? – perguntou Miranda. Vera tinha
tirado os ganchos do cabelo e estava a escová-lo vigorosamente.
– Só para ir jantar, mas mudamos sempre de roupa quando voltamos.
Como a Sally diria: «Nós, as raparigas, temos de manter as aparências.»

Belle iria descobrir ao longo dos dias seguintes que a filosofia de en-
treajuda de Vera não só tornava o trabalho mais fácil como criava ca-
maradagem. Não era necessário um esforço extra assim tão grande para
ajudar outro condutor a carregar a sua ambulância, e esse esforço era in-
variavelmente retribuído, sobretudo nos casos dos pacientes mais pesados.
Chovera quase sem parar desde que tinham chegado e, certo dia, a ambu-
lância de Miranda ficou atascada na lama, e no mesmo instante vários ho-
mens acorreram para ajudar, com sacos de serapilheira para pôr debaixo
das rodas. Numa outra ocasião, David tropeçou quando carregava uma
maca, e surgiu imediatamente uma mão para o ajudar a equilibrar-se.
Nas alturas em que havia menos comboios, ela e Miranda apro-
veitavam para conhecer os outros condutores e maqueiros. Vinham dos
mais variados estratos sociais. Alguns, como David, apesar de declarados
inválidos e desmobilizados, tinham querido ficar para ajudar os outros. Al-
guns tinham sido recusados pelo exército devido a pequenos problemas de
saúde. Mas a esmagadora maioria estava ali por razões semelhantes às que
a tinham movido a ela e a Miranda: contribuir com a sua parte ou fugir à
monotonia do que faziam em casa. Quaisquer que fossem as razões, todos
se davam bem, havia muito riso e muitas brincadeiras e, apesar de ser um
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trabalho extremamente duro, tanto ela com Miranda se sentiam libertadas
por terem sido aceites num mundo predominantemente masculino.
Um dos condutores mais velhos, que ambas julgavam ter um precon-
ceito absoluto contra mulheres a fazer aquele trabalho, riu à gargalhada
quando, um dia, as ouviu imitar duas enfermeiras que eram verdadeira-
mente insuportáveis. No dia seguinte, quando a correia da ventoinha da
ambulância de Belle se partiu, o homem foi em seu auxílio e ensinou-a a
substituí-la. Quando ela lhe agradeceu, disse que não era nada, que ela e
Miranda eram como raios de sol e que estava muito contente por se terem
juntado ao grupo. Belle ficou encantada por esta prova de aceitação, e
naquele momento sentiu que por muito árduo que fosse o trabalho, ou
muito primitivas as condições de vida, tinham tomado a decisão correta.
Até o capitão Taylor lhes fazia de longe em longe um aceno de
aprovação. David contou-lhe o que ouvira dizer a outro oficial do RAMC:
«Aquelas duas raparigas novas são feitas de boa massa.»
O céu, sem remorsos, continuava a abrir-se num dilúvio infindável.
Ambas chegavam muitas vezes ao fim do dia encharcadas e geladas até aos
ossos. À noite, a cabana mais parecia a sala de uma lavandaria, com roupas
estendidas a secar e botas molhadas cheias de jornais espalhadas à volta do
fogão. E no entanto, apesar de tudo isto, Belle parecia ter mais energia do
que alguma vez tivera quando estava em casa. Em vez de voltar para a
cabana logo a seguir ao jantar para jogar às cartas ou ler e escrever cartas,
gostava de passar uma ou duas horas nas enfermarias, a informar-se dos
progressos dos homens que tinha transportado.
Oferecia muitas vezes uma pequena ajuda às enfermeiras, escrevendo
cartas para homens que não conseguiam pegar na caneta, lendo para algum
que tivesse cegado ou simplesmente dando de comer aos que não estavam
em condições de se alimentarem sozinhos. Miranda brincava com ela por
causa disto, dizendo que já tinha a sua conta de sangue e tripas durante o
dia e não precisava de ir procurar mais à noite.
Por estar sempre tão ocupada, as cartas que escrevia a Jimmy eram
muitas vezes tão breves como as que ele lhe enviava a ela. Também
tentava escrever a Mog e a Garth todas as semanas, mas era difícil respon-
der aos mexericos de Mog a respeito das pessoas da aldeia, da escassez de
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comida e de quem estivera na reunião semanal do grupo de costura. Tudo
aquilo lhe parecia tão trivial face às coisas a que assistia diariamente…
Compreendia agora por que razão Jimmy sempre dissera tão pouco
sobre a sua vida quotidiana. Havia o censor a espreitar-lhe por cima do
ombro, claro, mas mais provavelmente pensava que as coisas que
testemunhava todos os dias não podiam ser compreendidas por quem não
as tivesse experimentado. Ela sentia o mesmo: não era capaz de explicar o
humor negro que todos usavam como uma forma de lidar com o horror que
viam, ou por que razão se tornara tão ligada às pessoas com quem trabal-
hava. Sabia agora que a vida de um soldado não tinha nada que ver com a
maneira como os jornais a retratavam.
Até chegar ali, imaginara Jimmy encolhido numa trincheira, constante-
mente debaixo de fogo. Agora, graças a David, que estivera na frente,
sabia que os homens só passavam quatro dias seguidos na primeira linha
antes de serem enviados para a retaguarda.
Jimmy tinha voltado à frente depois de o seu ferimento ter sarado, mas
para um outro regimento, e, pelo menos até à última carta que recebera
dele, continuavam na reserva. Mas David dissera-lhe que mesmo que est-
ivesse na linha da frente, isso não significava que se encontrasse num
perigo constante de ser alvejado. Aparentemente, os homens tinham de
suportar longos períodos de absoluto tédio, durante os quais tudo o que tin-
ham de fazer era estarem atentos a qualquer atividade do inimigo. Além
disso, havia pontos ao longo da linha onde os combates eram raros, onde,
segundo David, se praticava, de um e do outro lado, uma política de «vive
e deixa viver». Claro que mesmo naqueles lugares mais tranquilos se podia
ser morto por um sniper ou por uma granada atirada, mas o verdadeiro
perigo surgia quando os generais ordenavam um assalto, ou quando os ho-
mens eram mandados para a Terra de Ninguém em patrulhas destinadas a
descobrir o que andava o inimigo a fazer.
Belle também imaginara que estar «na reserva» significava descansar,
mas, segundo David, não era bem assim. Estavam sempre muito ocupados,
a treinar, a transportar abastecimentos, a melhorar as trincheiras, a enterrar
os mortos, a reparar o arame farpado, a levar munições para onde fossem
necessárias, além de lavar e remendar o uniforme.
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Desde que acabara a recruta, em 1915, Jimmy tocara muito ao de leve
em assuntos como piolhos, lama, uniformes encharcados, ratazanas e o es-
tado das latrinas, mas sempre de uma maneira despreocupada, como se
fossem inconvenientes que não o incomodavam por aí além. Mas os con-
dutores, que tinham todos, numa ou noutra ocasião, ido até à frente recolh-
er feridos nas enfermarias de campanha, eram bem mais gráficos na
descrição destes horrores. Um deles contou a Belle como os homens quase
enlouqueciam por causa dos piolhos e passavam velas acesas pelas costur-
as dos uniformes para os queimar. Disse que tinham o corpo coberto de ba-
bas, algumas delas infetadas. Ficou a saber que a espessa lama onde os
soldados eram obrigados a patinhar se misturava muitas vezes com excre-
mentos das latrinas e até pedaços de corpos de homens que ali tinham mor-
rido. As ratazanas eram do tamanho de gatos e infestavam as trincheiras,
de tal maneira que mesmo um pequeno ferimento podia facilmente gan-
grenar e resultar numa amputação.
Na segunda-feira de Páscoa, 9 de abril, quando a batalha de Arras
começara, a todos estes males tinham-se ainda somado o granizo e a neve.
Os feridos que chegavam todos os dias falavam de tanques atascados na
lama, de mulas que caíam e se afogavam na lama, de homens feridos que
não conseguiam arrastar-se para fora da lama e morriam lá, como as mulas.
Jimmy estava alojado num celeiro e escrevia mais a respeito de ter be-
bido um copo de vinho ou comido um prato de ovos com batatas fritas
num estaminet do que das condições no terreno baixo e pantanoso, mas era
claramente apenas uma questão de tempo antes de o regimento ser lançado
na batalha. Sabendo o que isso significaria, Belle tinha dificuldade em
escrever-lhe cartas leves e alegres, quando todos os dias via com os seus
próprios olhos o que podia muito bem acontecer-lhe.
Vera estava muito entusiasmada com a chegada iminente dos seus dois
irmãos que se tinham alistado no Anzac e já tinham partido da Nova
Zelândia. Chamavam-se Tony e «Spud», e ela limitara-se a rir quando
Belle lhe perguntara o porquê da alcunha.2 No entanto, apesar de animada
com a possibilidade de os ver, ainda que fugazmente, ao mesmo tempo re-
ceava que os mandassem de imediato para a frente, como acontecera aos
canadianos e aos australianos.
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Também Sally, Maud e Honor tinham irmãos ou primos em França, e
Belle notara que, embora pouco falassem sobre eles, todos os dias con-
sultavam discretamente a lista de baixas. Parecia haver entre todos um
acordo tácito quanto a controlarem a ansiedade em relação a parentes
mandados para a frente. Henry, um dos condutores, soubera que o
sobrinho estava dado como desaparecido, presumivelmente morto, poucos
dias depois de ela e Miranda terem chegado. Belle vira-o atrás da cabana,
de cabeça inclinada e os ombros sacudidos por soluços, mas mesmo assim
saltara para a ambulância ao toque da campainha e continuara a trabalhar
todo o dia como se nada fosse. Sally dissera, com o seu característico prag-
matismo, que manter-se ocupado era a melhor maneira de lidar com o
desgosto.
Mas se as enfermeiras, condutores, auxiliares, médicos e outras pess-
oas que trabalhavam no hospital conseguiam controlar-se, o mesmo não se
diria de quem chegava de Inglaterra para ver filhos ou maridos que não se
esperava que sobrevivessem. Dia após dia, Belle e Miranda viam estas
pessoas chegarem ao hospital. Distinguiam-se do pessoal não só pelas
roupas civis mas também pelo ar cansado e as expressões confusas. Muitas
delas, a maior parte, nunca tinham saído de Inglaterra, não falavam
francês, e sabiam que os filhos ou maridos iam morrer. Muitas vezes, vin-
ham demasiado tarde e eles já tinham morrido. O pessoal de enfermagem
era sempre carinhoso e fazia o que podia para os confortar, mas tudo pare-
cia ainda mais trágico para aqueles que tinham vindo de tão longe e sido
privados da oportunidade de dizer um último adeus. Os funerais eram
quase diários: Belle sentia o sangue gelar-se-lhe nas veias sempre que
ouvia o cornetim tocar a Silêncio.
David era muito filosófico no que respeitava aos chorosos parentes.
Dizia que ao menos sabiam onde estavam sepultados os corpos dos entes
queridos, e tinham ouvido as orações, ao contrário dos pais de milhares de
outros homens enterrados em valas comuns perto dos campos de batalha. E
alguns corpos nunca chegavam a ser encontrados; eram feitos em pedaços
e ficavam espalhados pela lama. Para as famílias desses homens, devia ser
uma verdadeira tortura, na eterna esperança de que tivessem sido feitos pri-
sioneiros, ou que jazessem numa cama de hospital, algures, e que um dia
regressassem a casa.
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Em finais de maio, quando Belle e Miranda estavam em França há já


mais de um mês, disseram-lhes que poderiam tirar o dia seguinte de folga.
Até então, só tinham tido meio dia de vez em quando, geralmente ao
domingo, quando havia menos comboios. Mas como a aldeia mais próx-
ima não tinha grande coisa para oferecer, e não era assim tão perto como
isso, optavam sempre por ficar na cabana ou tratar da roupa.
Só o facto de não terem de levantar-se cedo era em si mesmo um
motivo de festa, e quando finalmente acordaram e viram o sol a brilhar no
céu, Miranda sugeriu que nessa tarde apanhassem uma boleia até Calais,
para dar uma vista de olhos à cidade.
Havia todos os dias um intenso tráfego de camiões entre a base e Cal-
ais, para ir buscar os abastecimentos desembarcados no cais, e elas sabiam
que não teriam qualquer dificuldade em convencer um dos condutores a
levá-las. Tomaram banho, lavaram o cabelo e vestiram os seus melhores
vestidos. Tinha-lhes sido dito, antes de partirem de Inglaterra, que
levassem apenas roupas práticas, de uso quotidiano, uma vez que o espaço
seria limitado nos seus novos alojamentos. Mas nenhuma das duas resistira
a enfiar na mala qualquer coisa um pouco mais elegante, para o caso de
surgir alguma ocasião especial. O vestido de Miranda era de crêpe-de-
chine azul, e o de Belle era malva, com um motivo floral.
– Quem me dera ter um chapéu mais bonito – disse Miranda, enquanto
punha na cabeça o de feltro azul-escuro que usara na viagem até França.
– Se saímos daqui a parecer que vamos para uma festa, vai chamar de-
masiado a atenção – respondeu Belle, enquanto ajeitava na cabeça o
pequeno chapéu castanho-claro que fizera para dar com o casaco de in-
verno. Nem sequer tinha a certeza de ser permitido ir a Calais. Uma das
enfermeiras dissera-lhe que nem elas nem as voluntárias estavam autoriza-
das a confraternizar com os soldados e que podiam ser mandadas para casa
se surgisse a suspeita de que o faziam. E a mesma enfermeira acrescentara
que fora recusada a uma colega autorização para sair da área do hospital
acompanhada pelo pai, que era um oficial no ativo. Aquilo parecera-lhe o
cúmulo do ridículo, mas a verdade era que já a enfermeira-chefe do Her-
bert era igualmente dura para com as suas subordinadas. – Talvez
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possamos comprar chapéus novos em Calais – acrescentou. – Não po-
demos usar estes durante todo o verão.
– Não estás mesmo mortinha por ficar uma hora de molho numa ban-
heira de água quente e depois vestir qualquer coisa bonita e ir a um sítio el-
egante? – perguntou Miranda, a beliscar as bochechas para lhes dar cor.
– Estou mortinha por um monte de coisas – admitiu Belle. – Os cozin-
hados da Mog, uma cama confortável e o Jimmy a abraçar-me à noite. A
única altura em que fui a sítios elegantes foi em Paris, e não me quero lem-
brar do que lá ia fazer.
– Talvez pudéssemos ir a Paris, um dia – disse Miranda, com esper-
ança na voz. – Podias procurar aquele teu amigo de lá que é dono de vários
restaurantes. Aposto que íamos divertir-nos.
– Essa parte da minha vida está morta e enterrada. Nunca penso nela –
respondeu Belle, com alguma rispidez.
Não era estritamente verdade; desde que voltara a França, tinha
pensado muito mais em Étienne e em Philippe, o dono de restaurantes a
que Miranda se referira. Sempre que ouvia falar francês, era como se a
atirassem de novo para o passado. Mas admiti-lo abriria a comporta de
uma represa de recordações que teria de partilhar.
– Desculpa ter falado – disse Miranda, e fez uma careta. – Só quero
divertir-me um pouco.

O condutor do camião a quem pediram boleia era um francês com


cerca de cinquenta anos. Não falava muito inglês, mas lá conseguiu dizer-
lhes que regressaria às seis e que se não estivessem no local de encontro
teria de vir embora sem elas.
– Calais não é um lugar bom para jolies filles – acrescentou, re-
provadoramente. – Muitos soldados!

O homem tinha razão a respeito de haver muitos soldados. Estavam


por todo o lado, nos cafés, nos bares, em camiões e a deambular pelas ruas.
Eram franceses, ingleses, australianos e havia até alguns Scots Guards de
kilt. As duas foram miradas, assobiadas e um jovem soldado começou a
199/474
cantar «If You Were the Only Girl in the World» em voz muito alta, acom-
panhado pelos amigos.
Empinaram ambas o nariz e seguiram em frente, apesar de estarem
cheias de vontade de rir, pois receavam que alguém do hospital as visse, e
se parecessem estar a encorajar os homens teriam contas a dar no dia
seguinte.
Era inebriante andar à luz do sol, ver lojas, cafés e pessoas normais a
tratar dos seus assuntos, longe das vistas, dos sons e dos cheiros do hospit-
al. Descobriram uma pequena e poeirenta loja de chapéus numa rua secun-
dária, compraram um de palhinha para cada e puseram-nos imediatamente,
relegando os chapéus que levavam para os sacos de compras. Também
compraram meias, beberam uma chávena de chocolate quente num café e
foram passear para a praia.
O canal da Mancha estava cheio de navios, uma recordação de que a
guerra não se travava só em terra. Os Alemães detinham Zeebrugge e
Ostende, um pouco mais a norte, e os seus submarinos atacavam con-
stantemente a navegação britânica.
Miranda ergueu os olhos para um avião que passava lá em cima.
– É estranho como agora nos limitamos a aceitá-los – disse, pensativa.
– O papá mostrou-me a fotografia de um, há anos, e estava muito empol-
gado com a ideia do voo. Mas eu não conseguia compreender como era
que se mantinham no ar e achava que eram apenas uma moda que acabaria
por passar.
– A verdade é que continuo a não perceber como é que voam – admitiu
Belle. – E os automóveis! Devia ter treze anos quando vi o primeiro, no
Strand, e corri ao lado dele. As pessoas diziam que não ia pegar. Mas
pegou, e agora até pessoas como nós podem conduzi-los. Imagina quando
tivermos filhos e lhes contarmos isto! Não vão ser capazes de imaginar a
vida antes de estas coisas terem sido inventadas.
– Eu não consigo imaginar como será a vida quando a guerra acabar –
disse Miranda. – Quer dizer, como é que vou poder voltar ao que era
antes?
Belle ficou surpreendida com a tristeza do comentário.
– Não será a mesma coisa – garantiu. – Como poderia ser, quando a
guerra mudou tudo?
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– Tantos milhares de homens que já morreram, e tantos mais que
ficaram aleijados – disse Miranda. – Haverá ainda menos probabilidades
de eu me apaixonar e casar do que havia antes. Tu vais ter o Jimmy, e eu
serei a solteirona que vai envelhecer a viver em casa dos pais.
– Mas que atitude tão derrotista – respondeu Belle, num tom indig-
nado. – Vais conhecer alguém e vais apaixonar-te, tenho a certeza. Além
disso, disseste que nunca mais voltarias a casa dos teus pais, que este ia ser
o início da tua vida independente. Saíste-te tão bem neste trabalho que,
quando a guerra acabar, vais ser capaz de fazer tudo o que quiseres.
– Nesse caso, porque é que não consigo sequer imaginá-lo? – Miranda
pegou em pequenos seixos e começou a atirá-los para a água. – Aposto que
tu consegues.
– Bem, sim, consigo – admitiu Belle. – Mas imaginar é apenas pensar
no que queres que aconteça. Eu gosto de imaginar-me a mim e ao Jimmy a
viver perto do mar, talvez a gerir uma pensão, ou coisa assim. Duvido que
venha a acontecer, mas se não tiveres um sonho e trabalhares para o realiz-
ar, nada mudará.
Voltaram à cidade e entraram num café para comerem qualquer coisa
antes de apanharem a boleia de regresso à base.
Era um café pequeno e pobre, com simples mesas de madeira que es-
tavam a precisar de uma boa esfregadela, mas todos os outros estabeleci-
mentos mais agradáveis estavam cheios de soldados. Dois velhos comiam
um prato do que parecia ser guisado de carne e cheirava deliciosamente, de
modo que quando a criada se aproximou para perguntar o que queriam,
apontaram para eles e pediram também um jarro de vinho.
Estavam a comer quando entraram dois soldados americanos. Eram
jovens, talvez vinte e três ou vinte e quatro anos, altos e bronzeados, e em
comparação com os dos seus congéneres ingleses, os uniformes que vesti-
am pareciam elegantes.
Miranda sorriu-lhes, e Belle lançou-lhe um olhar de aviso.
Os dois homens tiraram as boinas e detiveram-se junto da mesa das ra-
parigas, a olhar não só para elas mas também para a comida.
– Isso tem bom aspeto, Miss – disse o de cabelo escuro, que tinha na
manga as três divisas de sargento. – Recomendam?
– É muito saboroso – respondeu Miranda, e corou um pouco.
201/474
– Nesse caso, acho que é o que vamos pedir – continuou ele. – Ainda
não nos orientamos muito bem por aqui, só chegámos há um par de dias.
Podemos partilhar a vossa mesa?
– Com certeza – disse Miranda, sem olhar para Belle, sabendo muito
bem que ela não aprovava. – Chamo-me Miranda Forbes-Alton, e a minha
amiga é a Belle Reilly. Também não conhecemos o lugar, é a primeira vez
que vimos a Calais.
– Will Fergus – apresentou-se o sargento de cabelo escuro, estendendo
a mão. – E este é o Patrick Mehler – acrescentou, apontando com o queixo
na direção do seu companheiro louro. – Têm a certeza de que não
incomodamos?
– Vamos ter de ir embora daqui a pouco para apanhar a nossa boleia de
regresso – disse Belle, na esperança de que fosse indicação suficiente para
Miranda não se deixar entusiasmar pela presença de dois homens tão
atraentes.
– De regresso aonde, Miss? – perguntou o sargento, enquanto os dois
homens se sentavam.
– A Camiers. Ao hospital – explicou Miranda. – Somos condutoras de
ambulância. E não precisam de tratar-nos por Miss. Miranda e Belle está
muito bem.
Will riu, mostrando uns bonitos dentes muito brancos.
– Miranda e Belle, então. Não acredito que duas raparigas tão bonitas
consigam fazer um trabalho desses. Valeria a pena ser ferido só para ser
conduzido por qualquer das duas.
Belle soube naquele instante que Miranda ia apaixonar-se por aquele
homem. Era atraente, encantador e bem constituído. Além disso, não tinha
aquele ar cansado e ligeiramente perdido que caracterizava a maior parte
do pessoal do hospital.
Os homens encomendaram a refeição e os quatro conversaram a re-
speito de trivialidades. Will era de Filadélfia, Patrick de Boston, e faziam
parte de uma espécie de guarda avançada que tinha ido preparar o terreno
para a chegada das tropas americanas, o que aconteceria mais para o fim
do ano.
Belle deixou de imediato bem claro que era casada; Patrick também, e
Belle teve a perceção que ele sentia algo parecido com o que ela própria
202/474
sentia: o receio de ser arrastado por Will para qualquer coisa que não dese-
java. Por isso conversou com ele acerca de Jimmy, e do motivo pelo qual
ela e Miranda estavam ali, e perguntou-lhe pela mulher, esclarecendo sem
margem para dúvidas a sua posição.
Não precisou de muito tempo para perceber que Will estava tão entusi-
asmado com Miranda como ela com ele. Riam como dois velhos amigos,
falando pelos cotovelos e inclinando-se um para o outro por cima da mesa.
Se não fossem as regras contra confraternizar com pessoal militar, teria fic-
ado encantada por Miranda, mas conhecia suficientemente bem a amiga
para saber que ela estaria disposta a arriscar fosse o que fosse por um
homem de quem gostasse.
Quando começou a lembrar a Miranda que tinham de ir para apanhar a
boleia de regresso à base, Will ofereceu-se imediatamente para as levar.
– Tenho um carro de serviço – disse. – Fiquem um pouco mais. Ainda
mal começámos a conhecer-nos um ao outro.
Belle sabia que se insistisse em ir já embora, Miranda ficaria zangada
com ela. Mas, mais do que isso, via ali os primeiros sinais de um romance
a florescer, e não era capaz de censurar a amiga por querer ficar. Por isso
sorriu e aceitou mais um copo de vinho.
Will cumpriu a sua palavra. Depois de uma volta pela cidade e mais al-
gumas bebidas, levou-as de carro até à base. Pelo menos, Patrick conduziu
enquanto Will e Miranda, sentados no banco traseiro, trocavam beijos dur-
ante todo o caminho.
– Não aprovas – dissera Patrick a Belle no último bar onde entraram.
Will e Miranda estavam um pouco afastados, tão perto um do outro, a
olharem-se nos olhos, que pareciam uma só pessoa.
– Não é isso. Fazem um par encantador. – Belle suspirara. – Só não
quero que ela se magoe, ou arranje problemas no hospital.
– Nunca o tinha visto assim com uma rapariga – comentara Patrick. –
Fulminante, diria eu. E, raios, porque é que não hão de divertir-se um pou-
co? Tenho a certeza de que acontece o mesmo com vocês em Inglaterra, as
pessoas sempre a dizerem «faz isto, não faças aquilo». Estamos em França,
há uma guerra e podemos ser mortos a qualquer momento. Nós os dois
somos casados, Belle, mas ambos já tivemos essa mesma louca sensação.
Não deveremos ficar felizes por eles a experimentarem também?
203/474
– Sim, tens razão – admitira ela. – Mas isto foi demasiado rápido. A
Miranda é muito determinada.
– E o Will é bom rapaz. – Patrick pousara a mão no ombro dela. – Não
escolhemos o amor, é o amor que nos escolhe a nós. Além disso, és de-
masiado nova e bonita para te preocupares com o que pode correr mal.
Will e Patrick deixaram-nas à porta do hospital. Eram quase onze da
noite e, quando começou a andar ao lado de Miranda em direção à cabana,
Belle apercebeu-se de que estava um pouco tonta.
– O Will não é maravilhoso? – disse Miranda, ofegante, enfiando o
braço no dela.
Belle olhou de lado para a amiga. Mesmo à pálida claridade das luzes
por cima das portas das enfermarias, viu os olhos dela brilharem.
– Sim, é – respondeu, a tiritar de frio. – Mas receio muito que, neste
preciso momento, estejamos metidas num valente sarilho.
– Vou voltar a encontrar-me com ele amanhã – continuou Miranda,
num tom que dava a entender que não se deixaria dissuadir. – Encontrei o
homem com quem quero passar o resto da minha vida, e não quero saber
de mais nada.
Vera estava a ler deitada na cama quando entraram e levou um dedo
aos lábios para lhes lembrar que as outras dormiam.
– É tarde – sussurrou. – Começava a ficar preocupada. Divertiram-se?
– O mais possível! – sussurrou Miranda em resposta, e atravessou a
cabana a fazer piruetas, como se estivesse a dançar, até à porta da casa de
banho.
Belle sentou-se na cama de Vera.
– Alguém perguntou por nós? Estamos metidas em sarilhos?
– Não, só por me terem preocupado. – Vera sorriu. – Conta-me, o que
aconteceu?
– A história completa de manhã – respondeu Belle. – Mas digamos
que a Miranda se apaixonou. Não digas nada às outras; não queremos que
o capitão Taylor saiba.
Belle olhou para Miranda antes de apagar a luz. Não estava a dormir,
estava só deitada de costas na cama, com um sorriso estampado no rosto.
Nunca parecera tão radiante.
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2 A palavra «spud» tem em inglês, uma vasta gama de significados: coisa curta e grossa, um
pénis com uma determinada forma, uma batata, etc. (N. do T.)
CAPÍTULO 15

B elle achava notável a mudança operada em Miranda desde que conhe-


cera Will. Apesar de se escapulir quase todas as noites para estar com
ele, e de voltar sempre já muito perto da uma, de manhã estava a pé alegre
como uma cotovia, a cantar, a rir e a ser simpática para toda a gente.
Sally desaprovava. Dizia que Miranda estava a ser «fácil», mas, apesar
de afetada e invejosa, não era do género de contar histórias. Até a própria
Belle tinha dificuldade em não sentir uma pontinha de inveja. Ver a amiga
de olhos brilhantes e expressão sonhadora lembrava-lhe o que sentira por
Étienne, e com o coração apertado pela culpa, perguntava-se por que razão
aquilo lhe lembraria os seus sentimentos por Étienne, e não por Jimmy.
– Como é esse rapaz da Miranda? – perguntou David uma manhã,
quando faziam a primeira viagem até à estação para irem buscar feridos.
– De que estás a falar? – perguntou por sua vez, na defensiva. Não
falara a ninguém do namorado de Miranda, e estava convencida de que
nenhuma das outras raparigas o tinha feito.
– Deixa-te disso, percebi que alguma coisa tinha acontecido no dia
seguinte a vocês as duas terem ido a Calais – disse ele, com um sorriso. –
Tu estavas perturbada e ela andava por aí aos saltos como um cabrito
montês. Não é preciso ser um génio para somar dois e dois.
Belle não viu vantagem em mentir a David. Era um bom rapaz, e
sempre se mostrara discreto.
– Bem, guarda isto para ti. Americano, muito bonito, simpático. É
sargento.
– Um Dough Boy, hein? – exclamou Jimmy. – Diz-lhe da minha parte
que traga o resto dos ianques e nos ajude a acabar com esta maldita guerra.
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– Hão de vir, ou pelo menos é o que se diz. Quando isso acontecer,
deixará de ter tanto tempo livre para estar com a Miranda.
– Porque é que estás tão preocupada, se ele é um homem decente?
– Bem, é que ela perdeu completamente a cabeça. – Belle suspirou; era
bom ter alguém com quem desabafar. – Tenho medo de que a mandem
para casa, ou que as coisas não resultem entre os dois.
– Não vale a pena estares a preocupar-te com isso. – David encolheu
os ombros. – Se eu conhecesse uma rapariga que me fizesse brilhar como a
Miranda brilha, era capaz de caminhar sobre carvão em brasa para estar
com ela. Além disso, não foi por essa mesma razão que vieste para cá, para
estares mais perto do teu homem?
Belle assentiu, mas sentiu uma pontada de vergonha por não ser ver-
dade. Nem sequer lhe ocorrera perguntar ao capitão Taylor se seria pos-
sível ter um ou dois dias de licença para se encontrar com Jimmy num
lugar qualquer. Porquê?

Um par de noites mais tarde, Miranda estava a arranjar o cabelo – ia


mais uma vez encontrar-se com Will – quando Belle entrou na cabana,
com a capa de oleado a escorrer chuva. Não disse uma palavra, limitou-se
a tirar a capa e pendurá-la num cabide junto à porta e inclinar-se para de-
scalçar as botas.
As outras quatro raparigas estavam reunidas no extremo oposto da
cabana. Ergueram os olhos e acenaram-lhe. Ela retribuiu o gesto, pegou na
toalha e preparou-se para secar o cabelo molhado. Pareceu a Miranda que a
amiga estava a ignorá-la deliberadamente.
– Estás zangada comigo? – perguntou, quando Belle se sentou na
cama.
– Claro que não – respondeu Belle, parecendo surpreendida pela per-
gunta. – Porque haveria de estar?
– Pensei que talvez fosse por eu sair todas as noites com o Will e
deixar-te sozinha.
– Não me importo com isso, a Vera também é muito boa companhia –
disse Belle. – Temo-nos tornado muito próximas.
Miranda sentiu que aquilo era uma rejeição.
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– Não quero perder-te como amiga – disse.
Belle riu.
– Vai ser preciso mais do que um homem para correr comigo – disse.
Miranda soltou um suspiro de alívio. Belle não diria uma graça se est-
ivesse zangada.
– Sabes, é que temos de aproveitar ao máximo enquanto podemos. Ele
pode ser mandado para outro lado qualquer de um momento para o outro –
disse, a sentir que precisava de justificar-se.
Desde que tinha cerca de dezasseis anos ansiava pelo género de amor
de que os livros falavam. Fora dama de honor três vezes, e em todos esses
casamentos fora mais uma questão de a noiva encontrar um parceiro ad-
equado que a família aprovasse do que de estar extasiadamente apaixon-
ada. Quando conhecera Frank, começava a acreditar que o amor talvez
nem sequer existisse.
Mas depois de todo o mal que Frank lhe fizera, dera por si a pensar
que o melhor seria contentar-se com um homem bom e decente em quem
pudesse confiar e com quem pudesse contar. E então aparecera Will,
quando e onde ela menos esperava encontrar romance, e de repente
soubera com uma certeza absoluta que ele era o homem com quem sempre
tinha sonhado.
Tudo nele era tão perfeito; podiam falar a respeito de tudo, riam das
mesmas coisas. Will fazia o coração dela voar, enchia-lhe o pensamento
desde que acordava de manhã até que adormecia à noite. Mas o melhor de
tudo era saber que ele sentia o mesmo por ela. A guerra tornava o futuro
incerto, mas tinha a certeza de Will. Aquele era o amor por que sempre
esperara.
No entanto, por muito que ele dominasse os seus pensamentos e os
seus sonhos, não queria perder a amizade de Belle. Belle era muito espe-
cial, e Miranda envergonhava-se ao pensar que talvez andasse a
negligenciá-la.
Belle inclinou-se e pousou uma mão fria e húmida no braço de
Miranda.
– Compreendo, e estou feliz por ti – disse. – Só te peço que tenhas
cuidado. Guarda qualquer coisa de reserva.
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Miranda olhou em redor, para se certificar de que não estava ninguém
a ouvir: Sally lia, Vera remendava umas peúgas e Honor e Maud jogavam
xadrez.
– Ainda não o fizemos – sussurrou. – É isso que te preocupa?
Belle deixou escapar um risinho abafado.
– Não era disso que estava a falar. Não sou exatamente a pessoa mais
apropriada para te pregar moral e bons costumes. Só tenho medo de que
estejas a ir demasiado depressa, demasiado cedo.
– Talvez seja um pouco tarde para me avisares a esse respeito. O cap-
itão Taylor disse-me que podia tirar folga este domingo e o Will vai levar-
me a passar a noite num sítio qualquer.
Ao ver que Belle não respondia, Miranda agarrou-lhe a mão.
– Eu sei que estou a arriscar muito, Belle, mas amo-o. Amo-o a sério.
E ele também me ama.
Belle sorriu-lhe.
– Palavra que compreendo, e não serei de certeza eu a julgar-te. Se est-
ivesse no teu lugar, provavelmente faria o mesmo – disse. – Mas o que es-
tás tu aqui a fazer quando ele está à tua espera? E é melhor levares a minha
capa, ou vais ficar encharcada.
Miranda saiu da cabana minutos mais tarde, com a capa de oleado por
cima da cabeça. Desceu a estrada de acesso aos terrenos do hospital, e en-
tão, como de costume, cerca de cem metros antes do portão principal da
base, desviou-se por uma passagem entre duas enfermarias até chegar à
vedação, que atravessou graças a uma abertura nas fiadas de arame
farpado.
Tinha descoberto aquele caminho havia já algum tempo, sabendo que
se usasse o portão principal o mais certo era a sentinela de serviço dar con-
ta da ocorrência. Will esperava-a no carro ali perto, a coberto de uma
densa mata de arbustos. Como sempre que ia ter com ele, Miranda estava
esfuziante de excitação. Nem quando tivera o seu caso com Frank experi-
mentara aquela sensação, mas a verdade era que nunca chegara a sentir que
o conhecia verdadeiramente.
Will era muito diferente. Era caloroso, aberto e fiável, sempre pontual
nos encontros, e não a pressionara a ter sexo com ele, embora dissesse que
cada vez que se beijavam era como o 4 de julho. Miranda gostava muito da
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descrição, porque também para ela era como se houvesse fogo de artifício
a explodir por todo o lado; só precisava de lhe tocar na mão para o desejar.
Na realidade, fora apenas o medo de voltar a engravidar que a retivera até
então.
Claro que a mãe nunca aprovaria qualquer homem que não tivesse
sangue azul ou fosse muito rico. E a família de Will em Filadélfia não
tinha nada que a distinguisse. O pai fora um dos milhares de irlandeses
pobres que tinham emigrado para a América em finais do século xix. Cas-
ara com a filha de uns imigrantes italianos um par de anos mais tarde e
gerara cinco filhos, dos quais Will era o mais velho. Tinha uma pequena
empresa de construção e queria que Will trabalhasse com ele, e Will
fizera-lhe a vontade durante alguns anos, mas logo que o irmão mais novo
tivera idade suficiente para o substituir, alistara-se no exército. Conforme
dizia, tinha os olhos postos em horizontes mais vastos do que assentar
tijolos.
Mas apesar das suas origens humildes, Will era um cavalheiro. Tratava
Miranda com grande ternura e respeito, e parecia gostar de tudo nela.
Nunca ninguém a tinha tratado daquela maneira, nem sequer na sua própria
família. Miranda queria viver com ele na América quando a guerra aca-
basse, abraçar a vida dele e esquecer a que antes vivera. Na verdade, não
ficaria nem um bocadinho triste se nunca mais voltasse a ver a família.
Will abriu a porta do carro ao ver Miranda correr para ele.
– Olá, linda – disse, com os dentes a brilharem muito brancos no
escuro.
Miranda desembaraçou-se da capa molhada, atirou-a para o banco tra-
seiro e voltou-se para ele, anelante.
– Humm – disse Will, depois de um longo e apaixonado beijo. – Valeu
a pena esperar por isto. Espero que consigas escapar-te este fim de semana.
Descobri um lugar para ficarmos.
– Sim, está tudo resolvido – respondeu Miranda, e apoiou a cabeça no
ombro dele. – Mas vais ter de ter cuidado. Percebes o que estou a dizer?
– Claro, amor, tudo sob controlo. – Riu. – Não quero que tenhas já um
bebé. Só depois de estarmos casados há pelo menos nove meses.
– Casados? – exclamou Miranda.
Will voltou a rir.
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– Acho que devia ter-te pedido como mandam as regras. Era o que ten-
cionava fazer no fim de semana, mas escapou-se-me. Mas o que é que
dizes? Casas comigo quando esta loucura desta guerra acabar?
Miranda lançou-lhe os braços ao pescoço.
– Casava contigo amanhã, mesmo no meio desta loucura – disse, en-
quanto lhe cobria o rosto de beijos.
Ele pegou-lhe nas mãos e segurou-as, beijando-lhes os dedos.
– Não posso oferecer garantias quanto aonde iremos parar – disse. –
Posso ser colocado sei lá onde, mas sei que quero que estejas comigo onde
quer que seja.
– Não me importo que tenhamos de viver num deserto, no cume de
uma montanha ou na Lua, desde que estejas comigo – disse ela, com lágri-
mas de alegria a correrem-lhe pelas faces.
– Pronto, querida, não chores – pediu Will, a limpar-lhe as lágrimas
com o polegar. – Já falei de ti numa carta que escrevi aos meus velhos e
tenho a certeza de que vão amar-te tanto como eu te amo. O que é que os
teus pais vão dizer?
– Quem me dera poder dizer que vão ficar encantados – respondeu
Miranda, tristemente. – Mas já te contei como é a minha mãe. Não quero
saber disso para nada, a minha vida vai ser contigo e eles que se danem.
– Vão achar que não sou suficientemente bom para ti?
– Ninguém seria, a menos que a minha mãe conhecesse a família e
fosse gente muito próxima da realeza. – Suspirou. – Mas não te preocupes
com isso. É comigo que vais casar, não com ela.

Belle estava a dormir quando Miranda entrou sorrateiramente na


cabana, bem depois da meia-noite. Estava tão excitada que tinha de falar
com a amiga.
– Não pode ser já de dia, pois não? – murmurou Belle, tonta de sono,
quando Miranda a abanou.
– Não, não é, mas tenho uma coisa para te contar que não pode esperar
até de manhã.
O luar que entrava pelas janelas dava à justa para Miranda ver Belle
esfregar os olhos.
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– Para teu bem, é melhor que seja importante – resmungou Belle.
– É. O Will pediu-me em casamento. Vou com ele para a América
quando a guerra acabar. Não é maravilhoso? Estou tão feliz!
Belle sentou-se na cama, pegou na mão de Miranda e apertou-lha.
– É uma notícia maravilhosa, fico muito contente por ti. Mas vais casar
aqui? – perguntou, num murmúrio.
– Ainda não decidimos. Eu gostava, mas ele quer que a família esteja
presente. Falamos melhor sobre o assunto no fim de semana.
– Vais dizer aos teus pais?
– Não, a mamã ia ser horrível. Vou colocá-los perante um fait
accompli.
– Espero que o casamento seja cá, para poder estar contigo – disse
Belle. – Mas agora posso voltar a dormir?
– Sim, podes voltar a dormir – respondeu Miranda, com um risinho.
– Então desanda e cala a boca – disse Belle. – E não te esqueças de
que eu sou a madrinha.

No sábado não choveu, para variar, mas continuava a estar muito frio.
Ainda nessa tarde um motorista francês dissera que aquele era o verão
mais chuvoso de que se lembrava. Havia grandes poças de água à volta dos
terrenos do hospital, o que dava a toda a gente uma boa ideia de como de-
viam ser terríveis as condições para os homens que se encontravam na
frente.
Miranda encontrou-se com Will às seis, no local habitual das suas es-
capadelas noturnas. Era a primeira vez desde a noite em que se tinham
conhecido que o via à luz do dia, e notou que o carro tinha sido lavado e
encerado. E ele também; sentiu o cheiro a sabonete de limão quando o bei-
jou, e apesar de Will estar de uniforme, era evidente que o mandara engo-
mar, e as botas brilhavam de graxa.
– Pensei que esta noite nunca mais chegava – disse ele, e esfregou-lhe
o nariz no pescoço. – Fartei-me de ouvir piadas do resto da malta; disseram
que tinha passado o dia a olhar para o relógio.
– Também eu – admitiu ela. – Foi um dia de muito trabalho, e as
mudanças da minha ambulância estavam sempre a emperrar, de modo que
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me dói o braço de tanto puxar pela alavanca. Esperava ter tempo para to-
mar um banho antes de vir ter contigo, mas não tive sorte. E tu tão elegante
e bem arranjado.
Nunca Will lhe parecera tão atraente. A pele era dourada, os olhos bril-
havam e tinha o cabelo escuro muito bem cortado e penteado. Sentia o cor-
ação a bater muito depressa na expectativa da noite que se avizinhava, mas
desejava ter tido tempo para se pôr bonita para ele.
– Para mim estás maravilhosa, suficientemente apetitosa para te dar
umas trincas – disse ele. – É melhor levar-te daqui para fora antes que
mudes de ideias.

Apesar de a França ser uma zona de guerra e de toda a destruição que


o combate provocava, dos campos de batalha onde não restava uma árvore
ou um arbusto de pé, das valas comuns, dos hospitais construídos à pressa,
dos depósitos de abastecimentos, das estradas atulhadas de camiões,
armões, carroças puxadas por cavalos e soldados em marcha, a poucos
quilómetros de distância desta fealdade continuava a existir um idílico
paraíso rural. As pessoas comentavam muitas vezes este facto, e à medida
que Miranda e Will se afastavam do hospital em direção a Rouen, ela teve
oportunidade de o constatar com os seus próprios olhos. Ali continuava a
haver beleza, campos verdes cultivados, pastagens salpicadas de vacas e
anciãos que cuidavam amorosamente das suas hortas.
– É adorável – disse Miranda, enquanto percorriam os estreitos camin-
hos campestres. – Cheira a feno acabado de cortar e a terra húmida, e há
tantas flores silvestres. É como estar de volta ao Sussex, tão diferente dos
arredores de Camiers.
Will sorriu-lhe.
– Só não estejas à espera do Waldorf, querida. O oficial francês que
me falou deste lugar falava tão mal inglês como eu falo francês; tanto
quanto sei, podia estar a dizer-me que é um pardieiro. Mas disse-me que
tinha lá levado uma amiga, e foi ele que tratou dos contactos.
– Estou impressionada por saberes o caminho. Não vi uma única
indicação.
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– Não comeces já a elogiar-me, é muito possível que nunca lá chegue-
mos – gracejou ele.

– Cá estamos – disse Will um pouco mais tarde, enquanto parava o


carro diante de um pitoresco mas decrépito casarão de pedra com janelas
protegidas por portadas de madeira de onde a tinta há muito que tinha las-
cado. O sol era uma grande bola avermelhada suspensa sobre o horizonte
atrás da casa, banhando-a num clarão rosado.
«Le Faisan Doré», anunciava a desbotada tabuleta. Miranda sabia que
doré significava dourado, mas não compreendeu a outra palavra. O casarão
podia parecer um pouco degradado, mas comparado com uma gélida
cabana com telhado de zinco e rodeada de lama, era um palácio.
O interior, igualmente decrépito, ostentava apesar disso uma espécie
de elegância antiquada, como acontecia com tantas velhas casas rurais em
Inglaterra. A porta principal dava diretamente para uma vasta sala de teto
baixo. À direita havia um bar e uma área de convívio; algumas das cadeir-
as e sofás tinham o estofo a espreitar das costuras, e os tapetes que cobriam
o chão de pedra estavam desfiados. Do lado esquerdo ficava a sala de
jantar, com simples mesas de madeira que estavam a ser postas para a re-
feição por um rapazito escanzelado que não devia ter mais de catorze anos.
Em cada um dos extremos da sala havia uma lareira acesa, e uma mulher já
de alguma idade, rechonchuda e sorridente, avançou para os receber,
oferecendo-lhes sem mais preâmbulos um copo de vinho tinto.
Explicou-lhes, num francês sem contemplações para com ouvidos es-
trangeiros, que se queriam jantar seria melhor encomendarem já, pois
havia sempre muito movimento nas noites de sábado. A ementa parecia
consistir de um único prato, de cuja descrição Miranda só reconheceu a pa-
lavra boeuf. Traduziu-a para Will, que concordou com um aceno de
cabeça.
Sentaram-se junto à lareira para se aquecerem enquanto bebiam o
vinho e, quando acabou de pôr as mesas, o rapazinho guiou-os até ao
quarto, que ficava no alto das escadas atrás do bar.
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Miranda arquejou, deliciada, ao abrir a porta nas traseiras da casa. O
quarto era tão decrépito como o vestíbulo e a sala de jantar, mas tinha a
mesma confortável e esmaecida magnificência que lhe recordava a casa
dos avós quando era pequena. Havia uma velha e bonita cama de nogueira,
com um guarda-fatos do mesmo conjunto, um toucador e, ao lado da janela
que dava para os campos, uma jarra com rosas em cima de uma pequena
mesa redonda.
Will teve de baixar a cabeça para não bater nas traves do teto, e en-
quanto o rapaz saía, a sorrir-lhes, Miranda apalpou a cama e pensou que
devia ter um colchão de penas, de tão macia que era.
– Que achas, querida? – perguntou Will, com uma expressão ansiosa.
– Acho que é encantador – disse ela, e estava a ser sincera. Podia já ter
ficado noutros quartos muito mais bonitos, mas aquele era romântico e
acolhedor. – O lugar perfeito para passarmos a nossa primeira noite juntos.
Puxou para baixo a colcha estampada desbotada e, para sua surpresa,
descobriu que os lençóis eram de linho, com um debrum de renda. Talvez
um pouco amarelecidos pelo tempo, mas esmeradamente engomados, e a
cheirar a alfazema. A segunda porta dava para uma pequena casa de banho,
com banheira e bidé. Rodou a torneira, e ficou ainda mais surpreendida ao
ver que a água saía a escaldar.
No hospital, tinham muita sorte se conseguissem mais de sete centí-
metros de água na banheira antes de começar a correr fria. Sally dissera
que era de propósito, para que ninguém se demorasse no banho, e de facto
ninguém se demorava, porque a casa de banho era um lugar escuro e cheio
de correntes de ar. Voltou-se para Will, encantada.
Ele envolveu-a nos braços e beijou-a.
– Estou a ver pela tua cara que estás mortinha por te enfiares na ban-
heira, de modo que vou até ao bar beber qualquer coisa e espero lá por ti.
Desce quando estiveres pronta.
Mais uma vez, a sensibilidade dele comoveu-a. Estivera à espera de
que lhe saltasse literalmente em cima mal a porta do quarto se fechasse, e
apesar de o desejar muito, também queria que fosse tudo como devia ser.
Tinha vestido uma blusa e uma saia, para não chamar a atenção
quando saísse do hospital. Mas guardara na mala um vestido de cetim en-
carnado que nem sequer a Belle tinha dito que trouxera de Inglaterra.
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Quando vira como iam ter de viver no hospital, parecera-lhe ridiculamente
inadequado. Deixara-o durante todas aquelas semanas embrulhado no pa-
pel crepe em que o tinha envolvido antes de sair de casa, convencida de
que nunca iria ter uma oportunidade de o usar.
Tirou-o da mala enquanto a banheira enchia e, para sua alegria, veri-
ficou que não estava vincado.
Will ia no seu segundo brandy, a ver a sala encher-se de oficiais
franceses, nos seus uniformes cinzentos, que tinham aparecido para o
jantar, quando reparou que todos os olhos se voltavam para a escada.
Miranda vinha a descer, e estava deslumbrante. Enrolara o cabelo
louro e prendera-o com um par de travessas de tartaruga, e o vestido
vermelho-escuro colava-se-lhe ao corpo e realçava a brancura muito
inglesa da pele. O decote expunha os ombros leitosos e a saia ondulava at-
rás dela quando entrou na sala de jantar. Com um refulgente colar, brincos
a condizer e uns elegantes sapatos, parecia saída de uma revista de moda.
Will estava impante de orgulho por aquela beldade ser a sua namorada.
– Sirvo? – perguntou ela num murmúrio, ao chegar junto dele.
Will teve de engolir para desfazer o nó que lhe apertava a garganta.
Miranda parecia exatamente aquilo que era: uma jovem da alta sociedade
vinda de um meio privilegiado, e mal podia acreditar que o amava.
– Estás a brincar? Servias até para o presidente, quanto mais para um
humilde sargento.
– Tenho de confessar uma coisa – disse ele mais tarde, já sentados a
uma mesa junto à janela. A sala enchera-se de gente e o rapaz que os escol-
tara até ao quarto estava a tocar acordeão. O jantar era bife com batatas
fritas; o bife estava quase em sangue mas era muito tenro, e o vinho era
frutado e leve.
Havia quatro ou cinco outras mulheres na sala. Estavam bem vestidas,
mas empalideciam em comparação com Miranda, que já comentara que
achava que eram esposas e não amantes, uma vez que pareciam muito à
vontade e pouco falavam com os homens que as acompanhavam.
– Espero que não seja que já tens uma mulher em casa – disse Mir-
anda. – Se é, sou capaz de te atirar este copo de vinho à cara.
– Claro que não! – disse ele, com uma gargalhada. – É uma confissão
embaraçosa.
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– Tens uma perna artificial? – sugeriu ela, com os olhos a brilhar. Não
faz mal, consigo viver com isso.
– Acho que já o terias descoberto, se fosse isso. Não, é o meu nome.
– O que é que Will tem de mal?
– Pensas que é um diminutivo de William?
– E não é?
– Não, é de Wilbur.
Ela soltou uma gargalhada.
– Wilbur?
– Receio que sim. Consegues viver com isso?
– Bem, a verdade é que não sei. É bastante sombrio. A Belle vai ficar
histérica, se for ao nosso casamento.
– Nesse caso, o melhor é casarmos em segredo. E o mais depressa pos-
sível, porque depois desta noite vou precisar de fazer de ti uma mulher
honrada.
Miranda limitou-se a olhar para ele, e o brilho dos seus olhos disse-lhe
tudo o que precisava de saber. O pai dissera-lhe uma vez que quando con-
hecera a mãe sentira uma pancada no coração, e fora assim que soubera
que era amor verdadeiro. Will sentiu a mesma pancada naquele momento;
tudo o que queria da vida estava ali mesmo à sua frente.
– Casava contigo amanhã, se fosse possível – disse ela, numa voz
muito baixa.

Quando a aurora rompeu e os primeiros raios de luz se insinuaram à


volta das cortinas, Miranda soergueu-se, apoiada num cotovelo, e olhou
para Will. Ele tinha adormecido, com um braço musculoso e bronzeado at-
ravessado sobre a cintura dela, e a cara enterrada na almofada. Quase não
conseguia acreditar como fora maravilhoso fazer amor com ele. Varrera
tudo o que acontecera antes, a humilhação que Frank a fizera sentir, a ideia
de que a mãe não queria saber dela e a sensação de que não valia grande
coisa.
Will beijara cada centímetro do seu corpo, incluindo lugares que lhe
afogueavam o rosto só de pensar nisso, carícias de uma ternura tal que a
tinham feito chorar. Fazer amor com Frank fora escaldante e frenético, mas
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agora sabia o que faltara; Frank nunca a fizera sentir-se como uma deusa,
como Will. Nunca houvera aquela alegria e aquela doçura, aquela delícia
sem pressa em dar prazer um ao outro.
Passou ao de leve os dedos pelas costas dele, a saborear o toque da
pele lisa e sedosa e das nádegas duras e musculadas. Ao ver a perfeição do
corpo dele, sentiu uma pontada de medo ao pensar que podia ser ferido
quando tivesse de ir para a batalha com o seu regimento. Experimentava
diariamente o horror de todos aqueles jovens estropiados e desfigurados,
mas a ideia de que o mesmo pudesse acontecer a Will era intolerável e foi
o suficiente para lhe encher os olhos de lágrimas.
Durante a noite, dera voz àquela ansiedade.
– Vou manter-me a salvo para ti – prometera ele jovialmente, como se
pensasse que o amor era por si só uma espécie de armadura. – Não acredito
que Deus me deixasse conhecer uma rapariga como tu, fazer amor contigo
de alma e coração, para depois permitir que eu fosse morto ou gravemente
ferido.
E, na altura, conseguira fazer com que também ela acreditasse. Não
era, com certeza, possível amar tanto para lhe ser tudo roubado por uma
bala ou uma bomba. Mas naquele momento, a vê-lo dormir, voltou a ter
medo.
Ocorreu-lhe que nunca Belle manifestara os mesmos medos em re-
lação a Jimmy. Seria por se ter convencido a si mesma de que o seu
homem era invulnerável? Ou estaria, na verdade, aterrorizada e sentia que
se falasse dos seus medos eles podiam tornar-se realidade?
– Porque é que estás a olhar para mim? – perguntou Will, sonolento,
abraçando-a com mais força e puxando-a para si.
– Porque és tão bonito – sussurrou ela.

Eram quase onze da manhã quando por fim desceram, saciados de


amor. Teriam gostado de passar o dia inteiro a dormir nos braços um do
outro, mas tinham de deixar o quarto.
Havia apenas um casal e três militares franceses no bar. Tinham visto
o casal na noite anterior, mas os militares eram outros, soldados que tin-
ham entrado para beber um café.
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A dona do hotel perguntou a Will, em francês, se queriam café, e sor-
riu sugestivamente, como se soubesse como tinham passado a noite.
Miranda respondeu pelos dois, num francês bastante coxo, dizendo
que sim.
– Suponho que vê pessoas como nós todos os dias – sussurrou a Will.
– Em Inglaterra, um tal comportamento seria censurado.
– Os Americanos também conseguem ser muito hipócritas – disse
Will. – É preciso fingir que se é casado para conseguir um quarto de hotel.
A mulher levou-lhes um jarro cheio de café e um cesto com croissants
quentes. Quando se afastou, disse qualquer coisa aos soldados, em francês.
Miranda não percebeu, mas, fosse o que fosse, teve a certeza de que fora a
respeito deles, porque os homens olharam para os dois e sorriram.
– Achas que este é um lugar que só os franceses conhecem? – pergun-
tou a Will.
– É possível. Fica na área do exército francês – respondeu ele. – Fi-
caria demasiado longe para a maior parte dos oficiais ingleses. De qualquer
modo, e pelo que ouvi, são poucos os que recebem a visita das mulheres.

Um dos dois cabos dirigiu-se a Will, a falar num francês tão rápido
que nem sequer Miranda conseguiu perceber uma palavra. Will olhou para
ele, confuso.
– Perguntou quando é que os Americanos vão chegar para nos ajudar –
traduziu o sargento, num inglês perfeito.
– Vêm a caminho – respondeu Will.
O homem perguntou-lhe então onde era a sua base e quando estariam
as tropas prontas para entrar em combate.
Will explicou que estava em Calais e que lhe tinham dito que as tropas
estariam prontas no início de 1918. Foi então a sua vez de perguntar a re-
speito de Verdun e da batalha do Somme, acrescentando que ficara cho-
cado ao saber do enorme número de baixas, tanto francesas como inglesas.
O sargento traduziu para os companheiros o que ele dizia.
Will tinha dito a Miranda, dias antes, que era muito difícil saber a ver-
dade acerca das condições na frente e, o que era ainda mais importante,
acerca de como as tropas francesas e aliadas encaravam a chegada dos
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soldados americanos. Se houvesse hostilidade, era uma coisa que tinha de
ser resolvida e ultrapassada. Miranda compreendeu que Will via naquele
encontro casual com alguns soldados franceses uma oportunidade de ouro
para ficar a saber o que pensavam. Deixou-o falar enquanto bebia o seu
café e comia os croissants, mas não conseguia desviar os olhos do sargento
francês, e não era só pelo facto de falar tão bem inglês e de ele e Will pare-
cerem estar a entender-se às mil maravilhas, conversando a respeito de
armas e das vantagens e inconvenientes dos tanques e do uso da cavalaria.
Na realidade, tudo no homem era fascinante: os olhos azuis e frios
como aço, a angulosidade das feições, a antiga cicatriz que parecia ter sido
feita com uma faca. Até o cabelo era invulgar, de um castanho muito claro
com madeixas de puro louro. Não o descreveria como bonito, não da
mesma maneira polida e saudável como Will era bonito; tinha um ar de-
masiado duro para isso. Mas tinha aquele élan que caracterizava os oficiais
franceses, além de um sorriso caloroso, e falava um inglês excelente; sen-
tia que estava ali muito mais do que um simples soldado.
– Peço desculpa por não me ter apresentado – disse Will. – Sargento
Will Fergus, e esta é a minha noiva, Miranda Forbes-Alton, de Inglaterra.
A Miranda conduz ambulâncias em Camiers.
– É demasiado bonita para esse trabalho – disse o francês, galante,
tornando-se instantaneamente ainda mais interessante aos olhos dela. –
Estes dois são os cabos Pierre Armel e Deguire, e eu chamo-me Étienne
Carrera. Estamos todos encantados por conhecê-los.
O nome quase fez Miranda dar um salto. Tanto quanto sabia, podia ser
um dos nomes mais comuns em França, mas, de alguma maneira, tudo o
que Belle lhe contara a respeito do seu Étienne parecia corresponder
àquele homem. Nunca referira o apelido nem o descrevera fisicamente;
dissera apenas que tinha um passado obscuro e falava muito bem inglês.
Como seria estranho se fosse ele!
Will começou então a fazer perguntas acerca de um recente motim no
seio do exército francês. Explicou que tinha ouvido dizer que um grande
número de homens desertara e queria saber se era apenas um boato sem
fundamento.
– Sim, é verdade, mas nenhum de nós os três esteve envolvido – re-
spondeu Étienne. – Mas não censuraria nenhum dos que estiveram por
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terem tomado uma posição. Os nossos homens sempre estiveram prepara-
dos para defender as suas posições na linha, mas era uma loucura teimar
em lançá-los em assaltos que significavam a morte certa. Os homens en-
volvidos não desertaram, essa parte é mentira. Estavam exaustos, mal ali-
mentados e mal equipados; sabiam que o inimigo os excedia largamente
em número e tinham muito menos canhões de grande calibre do que os
Boches. Protestaram da única maneira que podiam. E resultou, porque, fi-
nalmente, a situação melhorou, e estamos a receber comida melhor e a des-
cansar mais.
Esta conversa continuou durante algum tempo, com os dois cabos a
fazerem perguntas em francês e o sargento a traduzir. Miranda continuava
a olhar para Étienne. E quanto mais olhava mais sentia que tinha de
descobrir se era o homem que Belle tinha amado.
Esperou por uma pausa na conversa antes de falar.
– Sargento Carrera, por acaso é de Marselha? – perguntou.
– Sim, sou – respondeu ele, parecendo muito surpreendido pela per-
gunta. – Conhece a cidade?
– Não, mas uma amiga minha conheceu alguém chamado Étienne que
era de lá. Estava a perguntar a mim própria se seria o senhor.
Étienne pareceu fechar-se sobre si mesmo, semicerrando os olhos.
– E como se chama essa sua amiga? – perguntou.
– Belle Reilly.
Ele fez um ar estupefacto.
– Sim, sou eu. Conheço a Belle.
Will olhou para Miranda, surpreendido.
– Como o mundo é pequeno – disse.
– Ela está aqui, em França – continuou Miranda. – Trabalha comigo no
hospital.
Foi interessante ver como a notícia o afetou. Não reagiu imediata-
mente, mas ela quase conseguia ler-lhe os pensamentos, a querer fazer per-
guntas, mas ao mesmo tempo preocupado com o que ela podia saber a seu
respeito.
– Também é condutora de ambulâncias?
– Sim, viemos para cá juntas. Somos amigas há algum tempo; vivemos
na mesma parte de Londres.
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Étienne estava agora inclinado para ela, claramente ansioso por saber
mais, e, de repente, ocorreu a Miranda que talvez Belle não ficasse satis-
feita se ele aparecesse no hospital.
– O marido está na Bélgica, julga ela que em Ypres – disse. – Foi
ferido no Somme, felizmente sem gravidade. Alguma vez foi ferido?
Ele sorriu-lhe, os olhos a suavizarem-se de uma maneira que o tornava
terrivelmente atraente.
– Só coisas sem importância. Pode dizer à Belle que a minha sorte
continua a aguentar.
Houve na resposta dele qualquer coisa de tão íntimo que Miranda se
sentiu enervada; sugeriu a Will que eram horas de irem andando. Desejou
muito ter pensado melhor antes de perguntar àquele homem se conhecia
Belle. Seria ela a culpada se ele aparecesse no hospital e colocasse a amiga
numa posição difícil.

Mais tarde, Miranda e Will foram de carro até outra pequena aldeia e
passearam um pouco pela margem de um rio antes de arranjarem um sítio
onde almoçar.
– Conta-me como é que a Belle conhece o sargento francês – pediu
Will. – Não há dúvida de que ele ficou muito surpreendido quando soube
que ela estava em França.
Miranda queria contar-lhe a história toda, mas não podia fazê-lo sem
revelar demasiado acerca do passado de Belle.
– Conheceu-o quando esteve em Paris, antes da guerra – disse, caute-
losamente. – Foi muito antes de nos termos tornado amigas.
– Diria que houve alguma coisa entre os dois, para ela te ter falado
dele – observou Will. – Qualquer coisa que, pelo menos para ele, foi im-
portante… Quase deu um salto na cadeira quando disseste o nome dela.
– Talvez tenha havido qualquer coisa. Mas ela voltou para casa e ca-
sou com o Jimmy, o seu namorado de infância.
– Esse Jimmy deve ser um homem e tanto, nesse caso.
Miranda sabia exatamente o que ele queria dizer. Mesmo durante
aquele breve encontro, apercebera-se de que os dois amigos de Étienne, e
até o próprio Will, o admiravam. Não por qualquer coisa que ele tivesse
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dito ou feito, era apenas essa superioridade inata que certas pessoas têm.
Ser capaz de falar fluentemente outra língua era uma parte da explicação,
mas o seu aspeto e maneiras faziam o resto.
– O Jimmy é uma excelente pessoa – disse. – Amante, fiável e não
menos carismático, à sua maneira. São muito felizes juntos e perfeitos um
para o outro.
– Nesse caso, talvez seja melhor não dizeres à Belle que encontraste o
seu velho amigo? – sugeriu Will.
Miranda achou que era muito perspicaz da parte dele. Não acreditava
que muitos homens tivessem sido capazes de avaliar tão rapidamente a
situação.
– Sim, és capaz de ter razão. Mas vai ser difícil guardar para mim uma
notícia destas.

As outras três raparigas já dormiam quando Miranda chegou, às onze


horas, mas Belle estava sentada na cama a ler, à espera dela.
– Então, como foi? – perguntou num murmúrio, pousando o livro e
batendo no colchão para que Miranda se sentasse a seu lado.
– Tão maravilhoso que acho que não consigo sequer explicar – disse
Miranda.
– Bem, e se começasses por me contar como era o lugar onde ficaram?
– Velho, gasto mas acolhedor, e um paraíso comparado com isto. Isto
é verdadeiro amor, Belle, todo o meu ser o sente, não há a mais pequena
sombra ou vestígio de dúvida. Nunca julguei que pudesse ser tão feliz.
– Já decidiram quando vai ser o casamento?
Nunca vira a amiga tão adorável. Era como se a felicidade a tornasse
bela, e todos os receios que Belle alimentara a respeito daquele caso se
desvaneceram face àquilo.
– Pensámos fazê-lo aqui, mas o Will disse que ia ter de pedir autoriza-
ção ao comandante. É possível que recuse, claro, com a chegada das tropas
americanas tão para breve. E não faço a mínima ideia de onde iremos
viver, se vou ficar aqui, nem de coisa nenhuma, na realidade.
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– Tudo se há de resolver. Resolve-se sempre – disse Belle, num tom
tranquilizador. – Talvez tenhas de ter paciência durante mais algum tempo.
Mas não é assim tão mau.
– Para ti é fácil falar. – Miranda sorriu maliciosamente. – Agora que
consegui o que queria, vou desejá-lo ainda mais, vais ser horrível esperar.
E vou ter de comprar um vestido para o casamento. Achas que consigo en-
contrar uma modista em Calais?
– Tenho a certeza de que consegues, mas agora é melhor ires para a
cama. Ouvimos dizer que vêm muitos feridos a caminho. Não há sossego
para os malvados!

Miranda ficou acordada durante muito tempo depois de Belle ter ad-
ormecido, a reviver a sua noite com Will. Só pensar nisso excitava-a e
fazia-lhe o coração bater mais depressa. Para tentar dormir, pôs-se a ima-
ginar que a guerra tinha acabado e que estava a embarcar num navio com
Will a caminho da América. Ele dissera que a casa dos pais «era pequena»,
uma «casa popular», como lhe chamara, do que ela assumira que seria
como as casas geminadas inglesas, construídas em filas. Mas só lá ficariam
muito pouco tempo, até Will receber uma nova colocação; depois disso,
viveriam nos alojamentos dos casados.
Quando Belle lhe aparecera com o plano para fazer trabalho voluntário
no Herbert, Miranda não queria verdadeiramente fazê-lo. Só se deixara ar-
rastar pelo entusiasmo da amiga. Estivera dúzias de vezes à beira de desi-
stir, porque o trabalho era demasiado duro e também porque não suportava
que lhe dessem ordens. Só ficara, para dizer a verdade, porque sabia que se
saísse a mãe diria: «Eu bem te disse.» Por isso avançara com a sugestão de
conduzir ambulâncias, que lhe parecia um trabalho mais leve e muito mais
glamoroso. Agora tinha todos os motivos para se rir desta ideia tola. Não
havia ali glamour absolutamente nenhum e o trabalho era ainda mais
pesado.
Parecia, no entanto, que era seu destino ir para França e conhecer Will.
Esperava-a um novo começo num país que sempre quisera visitar. Will
contara-lhe tanta coisa naquele dia, as dificuldades que os pais tinham tido
de ultrapassar quando haviam chegado como emigrantes, o bairro
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sobrelotado e difícil onde vivera quando era mais novo, a beleza daquela
terra, longe das grandes cidades.
Dissera que ia comprar um livro sobre a América para lhe oferecer,
para que pudesse fazer uma ideia mais clara de como era a vida lá. E no
dia seguinte ia começar a fazer perguntas também a Belle. Nunca até então
se lembrara de o fazer.
Era estranho pensar que era a Frank que tinha de agradecer por tudo
aquilo. Se não fosse o caso que tivera com ele e o aborto, nunca teria con-
hecido Belle, e a sua vida fora completamente diferente. Os pais já teriam
provavelmente conseguido casá-la e passaria os seus dias a tricotar peúgas
e cachecóis para os soldados, tornando-se cada vez mais parecida com a
mãe.
Belle era a única pessoa de quem ia ter saudades quando iniciasse a
sua nova vida. A amizade dela significara muito, os segredos partilhados,
os risos e a alegria de estar com alguém que sabia tudo a seu respeito mas a
amava apesar disso. E achava que ter conhecido Belle a tornara uma pess-
oa melhor.
Ia ser muito difícil dizer-lhe adeus.
Olhou para a cama de Belle. Estava demasiado escuro para conseguir
vê-la, mas ouvia os pequenos sons que fazia ao respirar pelo nariz en-
quanto dormia. Queria muito falar-lhe do seu encontro com Étienne, mas
Will tinha razão: saber que ele estava tão perto poderia perturbar-lhe a
serenidade.
Sorriu para si mesma. Étienne era o género de homem que perturbaria
qualquer mulher. Os olhos cor de aço, as feições cortadas à faca e o
sotaque francês seriam o suficiente, mas havia mais qualquer coisa. Belle
dissera certa vez que outro amigo o comparara a um tigre, e Miranda
achava que era uma comparação apropriada. Podia ser um caçador, forte,
implacável e perigoso, se o enfurecessem.
No entanto, não tinha a mínima dúvida de que ele tivera, e ainda tinha,
sentimentos muito profundos em relação a Belle.

– Horas de levantar, meninas – anunciou Sally, às seis da manhã.


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Belle gemeu, esfregou os olhos e, ainda cansada, afastou as roupas da
cama.
– Não pode ser já de manhã. Parece que ainda só há alguns minutos
nos deitámos – disse.
– Para algumas de nós, é possível que tenha sido – respondeu Sally
num tom ríspido, a olhar para Miranda, que continuava a dormir
profundamente.
– Não é preciso sarcasmos, Sally – interveio Vera. – Isso é só inveja.
– Para que saibas, chegou às onze. Falei com ela – disse Belle, e es-
tendeu a mão para abanar o braço da amiga.

A chuva tinha voltado. Quando saíram para ir tomar o pequeno-al-


moço, tiveram mais de uma vez de patinhar nas poças de água. Quinze
minutos mais tarde, Belle estava a correr para a sua ambulância, com a
capa a tapar a cabeça, e viu que David já se encontrava no seu lugar e o
motor a funcionar. Quando se sentou ao volante, viu Miranda ao lado da
dela, com Alf. Parecia estar furiosa com qualquer coisa.
– Que se passará? – perguntou a David, enquanto se preparava para
arrancar.
– Acho que está zangada por ter de conduzir outra vez aquela – re-
spondeu David. – Lembras-te de no sábado ela se ter queixado de que a
caixa de velocidades estava sempre a emperrar?
Belle lembrava-se. Miranda dissera que tinha o braço dorido de fazer
tanta força para engrenar as mudanças.
– Suponho que no sábado estava com tanta pressa que se esqueceu de
comunicar a avaria – disse.
As duas tentavam sempre conduzir atrás uma da outra. Desse modo, se
houvesse algum atraso na estação, podiam entreter-se a conversar. Por isso
Belle esperou um pouco, para ver se Miranda conseguia conduzir a ambu-
lância. Quando a viu avançar, arrancou, e Miranda arrancou atrás dela.
– Parece estar tudo bem – disse David, que espreitava pelo retrovisor
lateral. – Talvez tenham reparado a avaria, ao fim e ao cabo. O fim de sem-
ana dela foi bom?
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– O melhor. – Belle sorriu. – Parecia estar nas nuvens quando voltou.
Mas o dia de hoje vai fazê-la descer à terra num instante, se é verdade que
vai haver ainda mais feridos do que é costume.
David começou a contar-lhe a discussão que rebentara na noite anteri-
or entre dois homens da sua cabana por causa de um bolo de fruta enviado
de casa que desaparecera. Dan, o dono do bolo, estava convencido de que
o outro homem, Ernie, lho roubara e o comera todo.
– E é verdade? – perguntou Belle.
– Não. O Dan tinha-o guardado na mala, para o esconder, e esqueceu-
se. Abriu a mala, por qualquer outra razão, e lá estava ele. Claro que não
teve outro remédio senão partilhá-lo, e o Ernie obrigou-o a dar-lhe uma fa-
tia das grandes, como pedido de desculpa.
Belle riu. Havia constantemente discussões a respeito de coisas como
aquela na cabana dos homens. As raparigas eram muito mais civilizadas;
quando recebiam qualquer coisa de casa, dividiam-na sempre entre todas.
– Maldita chuva! Achas que vai durar o verão todo? – perguntou, en-
quanto se inclinava para a frente para tentar ver através dos para-brisas,
que as escovas de borracha não limpavam muito bem. A passagem de nível
ficava à frente, mas ao chegar à guarita onde costumava estar um homem
que agitava uma bandeira se algum comboio se aproximasse, viu que se
encontrava deserta. – Onde se terá ele metido? – perguntou. Tinha muitas
vezes ficado a conversar com aquele homem, quando era obrigada a esper-
ar pela passagem de um comboio.
– Talvez afinal não esteja para chegar nenhum comboio – disse David,
esperançosamente. – Ou talvez já tenha passado.
Belle atravessou os carris e olhou pelo retrovisor, para ver se Miranda
a seguia. Mas Miranda ficara para trás cerca de quatrocentos metros, o que
significava que devia estar outra vez a ter problemas com a caixa de
velocidades.
Abrandou um pouco para a deixar alcançá-la, e nesse momento ouviu
o apito estridente do comboio.
– Raios, vem aí um comboio! – gritou, em pânico. Travou e ela e
David apearam-se de um salto para avisar Miranda. Mas quando chegaram
à traseira da ambulância, viram que ela já estava na passagem de nível, e
que parecia estar emperrada.
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– Santo Deus! – exclamou David. – Que está ela a fazer?
Começaram a correr os seiscentos ou setecentos metros que os separa-
vam de Miranda, a agitar os braços e a gritar, mas ela não se mexia, e
mesmo àquela distância perceberam que não conseguia fazer o veículo
avançar nem recuar.
Os comboios de feridos eram lentos, mas a linha fazia uma curva perto
da passagem de nível e o maquinista não ia conseguir ver a ambulância a
tempo de parar.
– Saiam daí! – gritaram David e Belle a plenos pulmões. – Saiam daí
já!
O comboio estava muito perto, escondido pelas árvores, mas viam o
penacho de vapor e ouviam o pesado matraquear das rodas aproximar-se
cada vez mais.
Belle gritou de terror; estava agora suficientemente perto para ver o
pânico estampado na cara lívida de Miranda, e o comboio que avançava
para ela. No banco do passageiro, Alf gesticulava, claramente a gritar a
Miranda que saísse dali, e então abriu a porta do seu lado, saltou para o
chão e correu para Belle.
Nesse momento, o tempo pareceu abrandar. Perceberam que o ma-
quinista do comboio tinha visto a ambulância, pois ouviram o chiar agudo
dos travões. Miranda voltou a cabeça na direção do comboio, a mexer os
braços como se continuasse a lutar com a alavanca das mudanças. E então,
de repente, o comboio estava em cima dela, a embater na ambulância e a
arrastá-la ao longo dos carris como se fosse um pedaço de cartão.
Viram Miranda erguer os braços para proteger a cabeça quando a am-
bulância tombou de lado, e o comboio passou por cima dela até que final-
mente se deteve.
CAPÍTULO 16

D avid tentou segurar Belle, mas ela libertou-se com um safanão e cor-
reu para a ambulância destroçada. Enquanto corria, sabia que havia
poucas probabilidades de Miranda não estar gravemente ferida; o comboio
esmagara toda a parte da frente do veículo.
O maquinista e o fogueiro saltaram da locomotiva, e ao longo do com-
boio as enfermeiras espreitavam das janelas, a tentar perceber o que tinha
acontecido.
De joelhos na estrada, Alf uivava enquanto tentava arrancar Miranda
dos destroços. Belle gritou a David que o ajudasse.
O fogueiro do comboio tentou impedi-la de se aproximar.
– Não vai ser um espetáculo digno de uma rapariga ver – disse,
agarrando-lhe os braços.
– Ela é minha amiga e vejo homens feridos todos os dias – soluçou
Belle. – Deixe-me ver se ainda há alguma esperança.
Empurrou-o para longe de si com a força do desespero e correu os últi-
mos metros. A primeira roda do lado esquerdo da locomotiva cortara ao
meio o que tinha sido o banco do condutor, e uma vez que Miranda não es-
tava visível, dava a impressão de que tinha sido atirada para o lado do pas-
sageiro. O para-brisas estilhaçara-se e havia pedaços de vidro espalhados
pela via, todos eles sujos de sangue.
Nesse instante, Belle quase perdeu a coragem. As pessoas gritavam e a
locomotiva vomitava vapor, mas ela tinha de olhar e, pondo-se de joelhos,
espreitou para dentro do que restava da cabina esmagada.
Mesmo ao fundo, o cabelo louro de Miranda destacava-se no escuro,
contra a porta, mas o corpo estava suspenso de cabeça para baixo e
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grotescamente torcido, com ambas as pernas presas debaixo da roda de
ferro. Havia tanto sangue que Belle foi sacudida por uma violenta náusea.
– Miranda, ouves-me? – gritou. – Sou eu, a Belle, estou aqui. Por
favor, responde-me, se puderes.
Não houve qualquer som ou movimento. Belle conseguia, com di-
ficuldade, distinguir a mão da amiga, ainda levantada como que para pro-
teger a cabeça, como quando o comboio embatera na ambulância. Esticou
o braço e agarrou o de Miranda, tateou-lhe o pulso em busca de um sinal
de vida.
Mas não havia nenhum. Miranda estava morta.
– Amei-te muito, Miranda – sussurrou Belle, com a chuva a misturar-
se com as lágrimas e a escorrer-lhe pela cara. – Nunca tinha tido uma ver-
dadeira amiga antes de te conhecer e não sei como vou conseguir continuar
sem ti.
O maquinista do comboio aproximou-se e ajudou-a a levantar-se, e ela
deixou-se cair contra o peito dele, a soluçar.
– Venha comigo, querida, vêm aí pessoas para retirar a ambulância.
Não pode fazer mais nada. Temos de levar os feridos que estão no com-
boio para o hospital.

Foi o pior de todos os dias. Apareceram homens dos caminhos de ferro


com maquinaria pesada para fazer recuar o comboio e retirar a ambulância
dos carris. As rodas da locomotiva tinham ficado tortas, pelo que seria
preciso endireitá-las antes de o vagão poder prosseguir até à estação. En-
tretanto, todas as ambulâncias que já esperavam junto à gare tiveram de
dar uma volta enorme para irem buscar os feridos ao comboio, parado na
linha.
Este atraso perturbou ainda mais todos os envolvidos, além de o tra-
balho ter sido duas vezes mais difícil sem a ajuda da altura da plataforma.
Os nervos estavam em franja, as pessoas irritadas e as sacudidelas a mais
foram dolorosas para os feridos. Com os condutores e maqueiros profunda-
mente chocados pelo terrível acidente, nada correu como devia.
Belle teve de fazer o seu trabalho; com tantos homens gravemente
feridos e a precisar de cirurgias e tratamento, não lhe restava outra
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alternativa. Mas era impossível pôr de lado o espectro do que vira e do que
perdera. Alf estava em estado de choque profundo; levaram-no para o hos-
pital, mas ele continuava a arengar a todos os que tinham conhecido Mir-
anda, claramente desesperado por ouvir dizer que não podia ter feito outra
coisa senão sair da ambulância. Daquilo que dizia, havia uma coisa que
ressaltava com toda a clareza: Miranda não ficara paralisada pelo medo;
tentara corajosamente até ao último instante tirar a ambulância dos carris,
com medo de que o embate fizesse descarrilar o comboio.
A tarde chegava ao fim quando os soldados conseguiram retirar o
corpo de Miranda do meio dos destroços. A chuva que continuava a cair,
encharcando toda a gente até aos ossos, acrescentava uma outra dimensão
à tristeza daquele dia terrível.

Quando Belle e David regressaram ao hospital, quase às oito da noite,


com a última carga de feridos, aguardava-os uma mensagem para se ap-
resentarem ao capitão Taylor.
– Era só o que nos faltava – gemeu David. Fora forte por Belle durante
todo o dia. Dera-lhe chá quente e doce, confortara-a e protegera-a contra
todos os que queriam fazer-lhe perguntas. Mas também gostara de Mir-
anda, e também assistira ao terrível acidente; estava tão pálido que dava a
impressão de poder desmaiar de um momento para o outro.
O capitão Taylor era um excelente organizador, mas podia ser muito
brusco para com aqueles que tinha sob o seu comando e toda a gente sabia
que não aprovava a aceitação de mulheres como condutoras. Tanto Belle
como David esperavam vê-lo adotar uma posição dura naquela questão da
morte de Miranda, se ela não tivesse comunicado a avaria na caixa de
velocidades.
Taylor estava a falar com alguém ao telefone quando entraram no
gabinete. Fez-lhes sinal para esperarem. Tinham os dois as capas encharca-
das, a água escorria para o chão e estavam gelados, talvez até mais em con-
sequência do choque do que da temperatura.
O capitão Taylor era baixo e robusto, com cabelos grisalhos e um bi-
gode de pontas retorcidas. O seu uniforme estava sempre impecável, como
se fosse engomado todos os dias, e era do conhecimento geral que, na vida
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civil, fora gerente de um banco. Enquanto falava, mirava Belle de alto a
baixo, como que chocado pelo seu aspeto de ratazana afogada.
– Estão encharcados – disse, enquanto pousava o telefone. – Não vou
retê-los mais tempo do que o necessário, mas quero ouvir a vossa versão
do que aconteceu hoje.
– Não havia ninguém na passagem de nível, senhor – respondeu Belle.
– Reparei nisso quando atravessámos. Ambos assumimos que era porque
não estava nenhum comboio a chegar.
Sentia que tinha de deixar o facto bem assente antes de mais nada, uma
vez que fora a verdadeira causa do acidente. A falha da caixa de velocid-
ades fora secundária.
– Parks! – disse o capitão, a olhar para David. – Conte-me o que
aconteceu. Do princípio ao fim.
David começou por confirmar que não estava ninguém na passagem de
nível, e então explicou que tinham reparado, depois de atravessarem, que
Miranda ficara para trás, pelo que tinham parado.
– Tencionava sugerir-lhe que deixasse a ambulância e fosse até à es-
tação connosco, meu capitão.
Passou então a descrever o que tinha sucedido depois de ouvirem o
apito do comboio.
– A ambulância estava empanada na passagem de nível. Víamo-la a
tentar engatar a mudança. Quando ouvimos o comboio aproximar-se, cor-
remos e gritámos-lhes, a ela e ao Alf Dodds, que saíssem dali. A linha faz
uma curva antes da passagem e sabíamos que quando o maquinista do
comboio visse a ambulância já não conseguiria parar.
– A Forbes-Alton disse a algum de vocês que tinha um problema com
a caixa de velocidades antes de arrancar?
– Disse que no sábado tinha tido dificuldade em engrenar as
mudanças, senhor – respondeu Belle.
– Mas não comunicou o facto?
– Não sei, senhor. – Não falei com ela no sábado à noite, uma vez que
não esteve na base.
De repente, a fúria que lhe fervilhava no peito explodiu. A sua amiga
estava morta, e agora aquele homenzinho pomposo que passava o dia sen-
tado à secretária e nunca pegara numa maca, nem sequer se aproximara da
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estação para ver os feridos, estava a dar a entender que a culpa fora de
Miranda.
– O que está aqui em causa não é com certeza o estado da ambulância
– disse, num tom que foi como uma chicotada. – Devia estar um homem
na passagem de nível. Mesmo que a Miranda tivesse conseguido passar em
segurança, a ambulância seguinte podia ter sido atingida. E agora ela está
morta, sem culpa nenhuma, uma morte horrível precisamente quando
planeava casar. E os pais? Já os contactou?
Taylor teve a graça de fazer um ar ligeiramente embaraçado.
– Não, ainda não contactei, Reilly, mas vou enviar um telegrama.
– Não pode telefonar-lhes? – implorou ela, aproximando-se mais da
secretária. – Imagine a reação deles ao receberem um telegrama a dizer
que a filha foi atingida por um comboio!
– O procedimento correto é um telegrama – respondeu ele, com uma
expressão opaca.
– Peço desculpa se estou a exceder-me, senhor – disse Belle, com as
lágrimas a afluírem-lhe aos olhos. – Mas acho que o Exército e a Cruz
Vermelha devem aos pais dela um telefonema pessoal e uma explicação
das razões por que a filha morreu.
– Compreendo que esteja perturbada, mas o protocolo do exército tem
de ser seguido. Um telegrama é a maneira de informar os parentes.
– Mas ela não era um soldado, era uma voluntária. E quem vai dar a
notícia ao noivo? Ou vai esperar que ele apareça por cá à procura dela?
– Não sabia que ela tinha um noivo.
– Pois tinha, e é um sargento do exército americano. Chama-se Fergus.
Neste momento, está a organizar a chegada das tropas americanas.
Taylor anotou o nome no seu bloco e voltou a erguer os olhos para
Belle.
– Contactarei o comandante dele. Neste caso, vou atribuir a sua falta
de respeito ao choque de ter perdido uma amiga chegada. Podem ir.
Vistam roupa seca.
David fez continência e voltou-se para sair, mas Belle continuou onde
estava.
– Por favor, senhor, a Miranda trabalhou duramente, e tem pais influ-
entes – argumentou. – Devia telefonar-lhes esta noite e dar-lhes a notícia
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da morte da filha. Tem de dar-lhes a oportunidade de organizarem as
coisas para que o corpo seja transferido para Inglaterra. Ou estava a
planear mandá-la para a mesma vala comum onde vão ser enterrados os
soldados que morrerem dos seus ferimentos esta noite?
Por um momento, Taylor cravou nela um olhar duro, mas acabou por
baixar os olhos.
– Muito bem, Reilly, ganhou. Dê-me o número e eu faço o telefonema.
Agora vá mudar de roupa. Podem os dois tirar o dia de amanhã, percebo
que precisem de um pouco de descanso para ultrapassar isto.
Belle avançou, pegou num lápis que estava em cima da secretária e es-
creveu o número de telefone dos Forbes-Alton no bloco de notas de
Taylor.
– Obrigada, senhor – disse, e voltou costas antes que ele pudesse ver
que estava a chorar.
No exterior, David passou-lhe um braço pelos ombros.
– Foste muito corajosa – disse, e apertou-a com força contra o peito. –
Houve um momento em que pensei que lhe ias bater, se ele não cedesse.
– Foi só o facto de eu ter dito que os pais dela eram pessoas influentes
que o convenceu – disse Belle, a soluçar com a cara encostada ao ombro
dele. – Depois de tudo o que vemos aqui todos os dias, seria de esperar que
ganhássemos uma carapaça, não era? Consegui aceitar aqueles dois solda-
dos que chegaram mortos ao hospital com ferimentos abdominais, para
eles a morte foi um alívio. Mas a Miranda tinha todas as razões para viver.
Ansiava tanto por amor, e finalmente tinha-o encontrado. É tão cruel ter
sido levada desta maneira.
David continuou a abraçá-la durante mais algum tempo, para a
confortar.
– Anda, eu acompanho-te até à tua cabana – acabou por dizer.
– Estou preocupada com o Will – disse ela, deixando-se levar. – A
Miranda tinha combinado encontrar-se com ele amanhã à noite. E se o cap-
itão Taylor não o contacta?
– Acho que vai contactar. Depois do que tu lhe disseste, não se at-
reveria a fazer outra coisa. Mas e tu, vais a Inglaterra para o funeral?
Belle olhou para ele com uma expressão vazia; não conseguia ver para
lá da sua dor.
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David pareceu compreender. Não insistiu. Limitou-se a levá-la até à
cabana, abrir a porta e empurrá-la gentilmente para dentro.
– Pede a uma das raparigas que te faça uma botija de água quente –
disse. – E amanhã fica na cama.

No dia seguinte, tinha parado de chover e o sol brilhou. Belle ficou na


cabana, a chorar, a pensar em tudo o que amara em Miranda e a olhar para
o teto. Quando as outras raparigas voltaram, ao fim da tarde, perguntaram-
lhe se tinha comido e como se sentia, e aquelas manifestações de carinho
fizeram-na ter outra vez vontade de chorar. Com a desculpa de que precis-
ava de apanhar ar fresco, saiu e foi sentar-se no degrau.
As grandes poças de água do dia anterior estavam agora muito mais
pequenas, a temperatura subira e tudo parecia mais limpo e mais fresco.
Sentia-se estranhamente entorpecida, e pensou que devia ser a maneira que
a natureza tinha de lidar com o desgosto. Sabia que devia emalar as coisas
de Miranda, e escrever uma carta aos pais, mas ainda não se sentia capaz
disso. Não conseguia sequer escrever a Jimmy ou a Mog.
Tantas recordações de Miranda continuavam a perpassar-lhe pelo es-
pírito, mas agora eram só as mais felizes. Viu-a na loja a experimentar
chapéus e a fazer caretas diante do espelho, recordou as gargalhadas partil-
hadas quando estava a tentar ensiná-la a conduzir o carro do pai, e a
maneira como a confortara quando tinha perdido o bebé. Recordou o dom
da amiga para imitar pessoas, e os pequenos apartes sarcásticos, sempre
tão certeiros e engraçados. E, no entanto, Miranda nunca era deliberada-
mente maldosa, sempre fora generosa, afetuosa e leal. Belle sempre ima-
ginara que continuariam a ser amigas quando fossem as duas velhotas. Sa-
biam tudo a respeito uma da outra, nada ficara por dizer. Miranda era a ún-
ica pessoa com quem sentia sempre que podia ser ela própria. Não acred-
itava que fosse possível encontrar outra amiga assim.
– Manda-me embora, se preferires estar sozinha.
A voz de Vera sobressaltou-a. Não a tinha ouvido abrir a porta.
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Vera era uma pessoa viva, feliz, conhecida pela sua jovialidade. Até os
mais azedos condutores e maqueiros reconheciam que era como um bál-
samo, com os seus sorrisos e a sua disponibilidade constante para ajudar os
outros.
O rosto de elfo, bonito e sardento, o cabelo ruivo e encaracolado, a
figura esbelta, tudo nela disfarçava a força que na verdade tinha. Cos-
tumava dizer, a brincar, que ganhara músculo ainda criança, a ajudar o pai
a amassar pão na padaria da família.
– Não, fica – disse Belle, a lembrar-se de que fora Vera quem lhe
fizera companhia sempre que Miranda estava com Will. – Pensei que quer-
ia estar sozinha, mas acho que na verdade não quero.
– Vocês as duas eram tão chegadas que suponho que não consegues
imaginar a vida sem ela – disse Vera, enquanto se sentava a seu lado.
– É mais ou menos isso – respondeu Belle, num tom lúgubre. – Sobre-
tudo, pensava que era eu que a apoiava; eu tinha as ideias, ela seguia-me.
Mas agora, sem ela, sinto que nunca mais voltarei a ter uma ideia, ou um
plano. Há pouco estava a pensar como é estranho sentir isto. Ao fim e ao
cabo, se ela tivesse fugido com o Will, ou decidido voltar para casa, eu ter-
ia ficado bem sozinha.
– Mas não estavas à espera do que aconteceu, e é definitivo, e é por
isso que magoa tanto. Nenhuma de nós chegou a ser verdadeiramente
próxima dela, mas mesmo assim deitou-nos abaixo. Todos os condutores e
maqueiros sentiram o mesmo.
– Não sei se vou conseguir continuar aqui – disse Belle, num tom
pesado de tristeza. – Dava tudo para estar em casa com a Mog e o Garth, e
ao mesmo tempo sei que se for para casa me sentirei tão vazia como me
sinto aqui.
– Sentir-te-ias melhor se fosses ver a mãe da Miranda?
Belle abanou a cabeça.
– É a última pessoa que quero ver. Havia de fazer um grande es-
petáculo de dor, mas eu estaria a pensar em como era falso, porque nunca
foi boa para a Miranda.
– E o Will? Vai precisar de alguém com quem falar.
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– Sim, é verdade. Pobre homem, tinha feito tantos planos. A Miranda
nem sequer teve tempo de mos contar todos, mas acho que não seria capaz
de falar com ele, pelo menos por enquanto.
– Podes falar comigo sempre que quiseres – disse Vera, e pousou a
mão no braço de Belle.
Ficaram ali sentadas durante algum tempo, a partilhar o silêncio. De
vez em quando viam passar um par de enfermeiras ou de auxiliares, e
havia também alguns civis, talvez parentes de feridos. Um pouco mais
abaixo, um grupo de homens, pacientes que estavam suficientemente bem
para sair da enfermaria, alguns de muletas, um braço enfiado numa funda,
uma cabeça envolta em ligaduras. Ali perto, aves chilreavam, mas a servir
de fundo a tudo isto, o ribombar abafado dos canhões, a quilómetros de
distância, na frente.
Foi Belle a quebrar o silêncio.
– Os canhões devem fazer um barulho horrível, para conseguirmos
ouvi-los a esta distância – disse. – Lá, deve ser um inferno. Três anos de
guerra, e não estamos mais perto de lhe pôr fim. Quantos mais homens ter-
ão de morrer antes que se deem por satisfeitos?
Vera pegou-lhe na mão e apertou-lha, como que a dizer que partilhava
a sua revolta.
– Sabes, por vezes pergunto a mim mesma o que foi que me fez vir de
tão longe. Lembro-me de pensar que era meu dever ajudar, mas não tinha
verdadeiramente noção da destruição, da pura bestialidade da guerra.
– Eu e a Miranda vimo-la como uma aventura – confessou Belle. –
Parece tão estúpido, agora. Afinal, trabalhávamos as duas num hospital e
sabíamos do horror que significava. Mas achámos que estávamos a ser
corajosas e nobres.
Riu, com uma gargalhada que soou a oco.
Vera anuiu.
– Acho que também eu pensei que estava a ser nobre e altruísta. Mas a
verdade verdadeira é que estava farta de trabalhar na padaria. Ouvia as cli-
entes a falar à minha mãe dos seus problemas, coisas triviais, como um
filho que partira um bom prato de porcelana, e o tédio da minha vida dava-
me vontade de gritar.
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«Costumava sonhar com viver numa grande cidade, sair à noite para
dançar, ter dinheiro para comprar tudo o que quisesse. Mas não tinha ha-
bilitações para fazer mais nada senão trabalhar numa loja. Quando soube
que eram precisos voluntários em França, pareceu-me que era a resposta a
todos os meus problemas. Ia ver o mundo, aprender coisas que nunca
aprenderia em casa.»
– Bem, pelo menos isso conseguiste, sem a mínima dúvida – disse
Belle. – Mas não trabalhaste em nenhum hospital, para ganhar experiência,
antes de vires para cá?
– Só um mês, em Auckland. Mas como sabia conduzir, puseram-me a
ir buscar velhotes a casa e voltar a levá-los, de modo que não aprendi
grande coisa. Foi por isso que me mandaram para as ambulâncias. Mas,
logo no primeiro dia, os feridos que vi deixaram-me abalada até ao fundo
da alma.
– Acredito – concordou Belle. Também ela ficara chocada, e já estava
habituada a ver sangue.
– Queria ir para casa – continuou Vera. – A vida tranquila que lá fazia
pareceu-me paradisíaca quando me vi rodeada de sangue e tripas e jovens
soldados a chamar pelas mães. Agora estou tão habituada que o meu medo
é nunca mais conseguir readaptar-me à vida de antigamente.
– Por vezes sinto o mesmo. É difícil escrever para casa porque sei que
eles não conseguem ter uma ideia daquilo que fazemos, ou talvez seja por
não querer semear-lhes estas imagens na cabeça. Mas fala-me da Nova
Zelândia. Assim terei coisas bem mais agradáveis para lhes descrever. Faz
lá muito calor?
– Pode fazer, na ilha do Norte, que é de onde venho. É subtropical.
Mas na ilha do Sul chega a estar muito frio, e chove imenso. É uma terra
muito bonita, com montanhas cobertas de neve durante o inverno, lagos e
rios. Há muitas ovelhas, muito mais do que pessoas, e há tanto espaço que
podes percorrer quilómetros sem ver uma única casa.
«Mas eu vivo numa pequena cidade chamada Russell. Fica na baía das
Ilhas. O mar é azul-turquesa, salpicado de pequenas ilhas cheias de
árvores, e é tudo muito tranquilo e bonito. Mas houve uma época em que
era horrível. Chamavam-lhe o Inferno do Pacífico porque os baleeiros cos-
tumavam ir para lá embebedar-se e procurar mulheres.»
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Belle esboçou um sorriso, porque aquilo lhe recordava Nova Orleães,
mas não ia dizê-lo a Vera.
– Deve ser encantador. Alguma vez viste uma baleia?
– Montes de vezes. Costumava ir pescar com o meu pai e os meus
irmãos e víamo-las muitas vezes, e golfinhos também, são muito engraça-
dos, brincalhões e bonitos. Mas suponho que ninguém sabe apreciar as
coisas com que cresceu, pelo menos até estar longe delas.
– A mim parece-me um paraíso – Belle suspirou. – Eu e o Jimmy cos-
tumávamos pensar que gostaríamos de viver perto do mar quando a guerra
acabasse, mas quanto mais tempo aqui passo menos penso no futuro. Já
não consigo imaginar-me a fazer coisas vulgares, como lavar roupa ou
fazer um bolo. Talvez tenhas razão e não consigamos adaptar-nos quando
voltarmos a casa.
Nesse instante, viram o capitão Taylor avançar na direção delas.
– Vem falar contigo – disse Vera. – Deixo-te sozinha.
– Obrigada pela conversa, Vera – disse Belle, quando a rapariga se pôs
de pé. – Animaste-me, e estou-te grata por isso.
– Boa-noite, Reilly – cumprimentou o capitão, enquanto se aproxim-
ava. – Vim só dizer-lhe que consegui contactar os Forbes-Alton. Vão tratar
do necessário para que o corpo da filha seja levado para casa. Será amanhã
de manhã.
– E conseguiu contactar também o sargento Fergus?
– Não pessoalmente. Falei esta manhã com o comandante dele, que já
o deve ter avisado. É uma coisa triste. Estamos todos, infelizmente, habitu-
ados a informar parentes de militares mortos em combate, e de vez em
quando temos também de informar um dos nossos homens da morte de um
parente em Inglaterra, mas nunca esperei ter de dar a notícia da morte de
uma das nossas voluntárias.
– Posso ir com a Miranda? – perguntou Belle. – Quer dizer, no mesmo
comboio e no mesmo barco? É o que ela teria querido.
Percebeu, pela forma como a expressão dele se tornava tensa, que não
seria possível.
– Ou de maneira a poder chegar a tempo do funeral? Eu sei que deve
ser difícil, com a falta de uma condutora, estar outra a pedir uma licença.
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– Lamento, Reilly, mas Mrs. Forbes-Alton deixou bem claro que não
quer que esteja presente no funeral da filha – disse Taylor.
Belle ficou siderada.
– Mas porquê? Como pode ela dizer uma coisa dessas? Eu era a amiga
mais chegada da Miranda. Ela haveria de me querer lá.
O capitão, que parecia muito pouco à vontade, fez um gesto de impot-
ência com as mãos.
– Foi perentória, extremamente enfática. Estou certo de que foi o des-
gosto. Por vezes, leva as pessoas a fazer coisas irracionais. Parece culpá-la
a si pela morte da filha.
– A mim? – Belle nem queria acreditar. – Como posso eu ser culpada?
O capitão encolheu os ombros.
– Diz que a Reilly a convenceu a vir para cá, que deixou de ser a
mesma rapariga a partir do momento em que a conheceu. Mas, como disse,
as pessoas dizem muitas tolices nestas ocasiões.
– Essa mulher é uma autêntica bruxa – arquejou Belle. – A Miranda
era mais velha do que eu, pensava pela sua própria cabeça, não a obriguei a
nada, foi ela que quis vir. Como se atreve a mãe a dizer semelhante coisa?
– Tenho de confessar que fiquei bastante chocado com a reação dela –
disse Taylor. – Fiz-lhe notar que a filha tinha sido feliz aqui, que era um
membro muito apreciado da equipa e que achava que tinha em si uma in-
fluência estabilizadora. Mas não serviu de nada. Lamento, Reilly.
– Disse-lhe que ela ia casar com o sargento Fergus?
– Não, não disse. Não me pareceu apropriado dizer uma coisa dessas,
dadas as circunstâncias.
– Sou uma voluntária. Se quiser ir a casa de licença amanhã, pode
impedir-me?
Taylor ficou a olhar para ela por um instante, como que a avaliar a
situação.
– Não, não posso impedi-la. Mas aconselho-a a pensar bem. Precisam-
os de si aqui, e Mrs. Forbes-Alton tem conhecimentos nas altas esferas que
provavelmente usará se contrariar os seus desejos. Pense com muita calma,
por favor. Tenho a certeza de que a sua amiga não quereria que compro-
metesse o seu futuro só para estar presente no funeral dela.
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Belle preparava-se para dar uma resposta furiosa quando viu passar um
carro de serviço americano. Viu um rosto familiar olhar de relance para ela
e para o capitão, e então o condutor travou e começou a fazer marcha-
atrás.
– É o sargento Fergus – arquejou Belle. – Peço a Deus que já lhe ten-
ham dito, não quero ser eu a dar-lhe a notícia.
Viu, pela cara de Will ao apear-se do carro, que ele já sabia. Parecia
ter encolhido cinco centímetros e aquela espécie de brilho que irradiava no
primeiro dia tinha desaparecido.
Will fez continência ao capitão, e então voltou-se para Belle com uma
dor tão grande espelhada nos olhos que ela sentiu um nó apertar-lhe a
garganta.
– Will, apresento-te o capitão Taylor, que comanda a unidade de am-
bulâncias – disse. – Capitão Taylor, este é o sargento Will Fergus, noivo
da Miranda.
O capitão ofereceu as suas condolências e explicou que o corpo de
Miranda seria enviado para Inglaterra na manhã seguinte. Então,
apercebendo-se talvez de que Belle e o sargento queriam falar a sós, acres-
centou que se Fergus tivesse mais perguntas para fazer, estaria no seu
gabinete.
– Oh, Will, lamento tanto – disse Belle, depois de Taylor se ter
afastado. – O que foi que te disseram?
– O mínimo – respondeu ele. – Que a ambulância dela foi apanhada
por um comboio. A morte foi instantânea, Belle? Não consigo suportar a
ideia de ela ter sofrido.
Sentou-se no degrau da cabana, ao lado dela, e Belle explicou-lhe ex-
atamente o que acontecera e garantiu-lhe que tinha sido instantâneo.
– Corri para ela, e já estava morta, Will. Não teve a mais pequena
hipótese.
– A Miranda disse-me no sábado à noite que lhe doía o braço de tanto
ter lutado com a alavanca das mudanças. Quem me dera que se tivesse re-
cusado a voltar a conduzi-la.
Contou-lhe então que haviam falado do casamento, e que embora ele
preferisse que fosse em Filadélfia, com toda a sua família presente, tinham
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decidido que se casassem em França seria muito mais fácil levá-la para a
América quando a guerra acabasse.
– Outra razão foi que ela queria que estivesses presente – continuou
ele. – Disse que ia obrigar-te a vestir uma coisa tão feia que não lhe farias
sombra.
Estas palavras puseram lágrimas nos olhos de Belle, porque não tinha
dificuldade em imaginar Miranda a dizer aquilo.
– Nunca me passou pela cabeça, quando parti dos Estados Unidos, que
viria encontrar o amor aqui em França. Eu e os outros rapazes vínhamos na
ilusão de que as raparigas francesas iam fazer fila para estar connosco,
quase não falámos de outra coisa durante toda a viagem. Se alguém me
tivesse dito que ia apaixonar-me por uma inglesa da alta sociedade, ter-me-
ia rido na cara dessa pessoa. Estava tão orgulhoso dela que pouco faltava
para rebentar. Tinha escrito para casa e contado aos meus velhos tudo a re-
speito dela. Tinha todo o meu futuro planeado à volta da Miranda, e tinha
medo de morrer aqui. Nem por um segundo me ocorreu que pudesse ser
ela.
Belle contou-lhe então o que o capitão Taylor dissera acerca de não ser
bem-vinda no funeral de Miranda, e isso fê-la chorar.
– Pelo menos foste poupado a ter aquela mulher horrível como sogra –
soluçou. – Não posso acreditar que ela me culpa a mim.
– Ei, não leves isso tão a peito – disse ele, e passou-lhe o braço pelos
ombros, e também ele tinha lágrimas a escorrer pelo rosto. – A Miranda
disse que não se importaria nada se nunca mais voltasse a ver a mãe. Na al-
tura pensei que fosse uma birra passageira, mas acho que estava a ser sin-
cera. Não te sujeites a um vexame indo lá só para marcar uma posição.
– Tudo o que queria era estar com a Miranda nesta última jornada.
Éramos tão importantes uma para a outra que me parece horrível ela ter de
ir sozinha. Como pode alguém ser tão má e cruel?
– Não faço ideia – respondeu Will, tristemente. – Não admira que a
Miranda tenha dito que não ia dizer nada à família antes de estarmos casa-
dos. Mas escuta uma coisa, e se eu voltasse amanhã com flores e fôssemos
até à passagem de nível e nos despedíssemos da Miranda lá?
Belle fungou, a engolir as lágrimas.
– Seria muito bom – respondeu.
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– Ela amava-te como a uma irmã – continuou Will, apertando-a contra
o ombro. – Disse que ter-te conhecido foi a melhor coisa que lhe aconte-
ceu… bem, até me ter conhecido a mim. Agora temos ambos o coração
destroçado, não consigo sequer imaginar o meu a sarar, mas sei que ela iria
querer que voltasses a rir, que fosses feliz com o teu marido. Tens de fazê-
lo, por ela.
– Vou tentar – disse Belle, profundamente comovida por ele estar a
tentar confortá-la ignorando a sua própria dor. – Acho que é melhor ir para
dentro. Eu sei que o capitão Taylor nos deu mais ou menos autorização
para falar, mas mesmo assim o facto de estar aqui contigo não será visto
com bons olhos.
– Podes encontrar-te comigo amanhã? Estarei à espera junto da
vedação, onde costumava encontrar-me com a Miranda.
Belle assentiu.
– Ainda bem que vieste, estava tão preocupada contigo. Fui eu que
disse ao capitão Taylor que tinha de te informar. Por vontade dele, até os
pais da Miranda receberiam apenas um telegrama.
– Obrigado por teres dito que eu era o noivo dela. Fez-me sentir que
tinha verdadeiramente o direito de estar aqui, compreendes o que quero
dizer. E se me amanhã me deres a morada dos pais, escrevo-lhes o faço-os
ver como a Miranda era especial.
Belle dirigiu-lhe um sorriso lacrimoso. Pensou que era um dos homens
mais gentis que alguma vez conhecera, tudo o que Miranda afirmara que
ele era.
– E digo-lhes também que joia tu és – continuou Will. – Vamos
manter-nos em contacto, está bem? Talvez, depois de termos resolvido esta
trapalhada aqui, eu dê um pulo até Inglaterra para conhecer a tua gente e o
teu marido. É um felizardo por ter alguém como tu à sua espera.

Depois de Will se ter ido embora, Belle entrou na cabana e, com a


ajuda de Vera, reuniu os pertences de Miranda. Encontrou o exemplar da
amiga da fotografia que tinham tirado juntas antes de partirem de
Inglaterra. Envergavam vestidos de um estilo semelhante, com folhos sol-
tos ao longo do corpete e uma larga faixa na cintura. A dela era de seda
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verde, a de Miranda de crepe azul com riscas beges, e usavam ambas boni-
tos chapéus que Belle fizera. O tom sépia da fotografia não fazia justiça
aos vestidos nem aos chapéus, mas os sorrisos das duas eram reais, porque
estavam entusiasmadas com a perspetiva de ir para França. Pensou dá-la a
Will, pois tinha o seu próprio exemplar, de que nunca se separaria.
Quando encontrou o vestido de veludo vermelho-escuro, adivinhou
que tinha sido o que Miranda usara na sua última noite com Will e
apertou-o contra o peito, a aspirar o perfume que ainda exalava. Era tenta-
dor ficar com ele, mas tinha todo o ar de ter custado uma pequena fortuna e
era possível que Mrs. Forbes-Alton a acusasse de o ter roubado.
Mesmo assim, ficou com uma pequena pulseira de prata, como re-
cordação, e com o macio xaile de seda que Miranda costumava pôr à volta
dos ombros quando se sentava na cama. Ainda cheirava à água-de-colónia
com aroma a alfazema que ela usava.
– Porque é que não dás o diário dela ao Will? – sugeriu Vera, quando
encontrou o pequeno livro com capa de couro azul no baú de Miranda. –
Aposto que escreveu todo o género de coisas a respeito dele. E não havia
de querer que a mãe o lesse.
Belle concordou. Depois disto, dobraram as roupas e arrumaram-nas
na mala. Um pouco mais tarde, Belle levou-a ao gabinete do capitão
Taylor.
Depois, deitada na cama, leu o diário, e pela primeira vez desde o
acidente encontrou qualquer coisa capaz de a fazer sorrir. A escrita era tão
irracional e extravagante como Miranda tinha sido. Havia dias em que en-
chia uma página inteira, com uma caligrafia cuidada, e outros em que
rabiscava uma única frase. Uma das entradas fez Belle rir à gargalhada.
Referia-se a 19 de janeiro. «A irmã Fogget pode ser uma excelente enfer-
meira e um bom exemplo para uma idiota ignorante como eu, mas gostava
de a amarrar aos postes das camas que ela me obriga a esfregar e bater-lhe
com uma toalha molhada.»
No dia em que partira de Inglaterra, tinha escrito: «Pobre Belle, a
esforçar-se por não chorar por causa da Mog. Mas hei de convertê-la e
torná-la tão não-te-rales como eu.»
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E alguns dias mais tarde: «A Belle nasceu para isto, tem um sorriso
capaz de fazer um cego ver e um paralítico andar. Até me transformou a
mim numa pessoa meio decente.»
Também Will aparecia. No dia em que o conhecera, tinha escrito:
«Conheci o Will, um ianque, em Calais. Sou rápida. Bastou-me olhar para
ele uma vez para saber que é o tal de que tenho estado à espera. Beijos que
me deixaram zonza de desejo. Espero ter tido o mesmo efeito nele.»
Belle fechou o diário. Tinha-o folheado rapidamente e verificado que
todas as últimas entradas eram a respeito de Will, e achava que só deveri-
am ser lidas por ele. Esperava que o fizessem sorrir e ver como tê-lo con-
hecido mudara Miranda para melhor. E, acima de tudo, seria um conforto
para ele saber que estivera no coração dela até ao último momento.
CAPÍTULO 17

S ally passou por Belle quando, ao fim do dia, ela estava a lavar a
ambulância.
– O capitão Taylor pediu-me para te informar de que está uma pessoa
à tua espera na sala dos condutores – disse secamente.
Belle assumiu que era Will. Haviam passado duas semanas desde a
noite em que tinham ido os dois até à passagem de nível deixar flores para
Miranda. Fora um momento particularmente doloroso, porque a ambulân-
cia destruída ainda lá se encontrava, tombada de lado junto aos carris. A
cabina parecia ter sido aberta com um gigantesco abre-latas para se poder
retirar o corpo de Miranda, mas apesar de a chuva ter lavado o sangue, o
horror do instante em que vira a locomotiva esmagar o frágil veículo vol-
tara a assaltar com a mesma força o espírito de Belle. Para Will, devia ter
sido simplesmente devastador ver como a mulher que amava encontrara a
morte. Fora-se abaixo e soluçara de uma forma tão convulsiva que Belle se
arrependera de ter aceitado mostrar-lhe o local do acidente.
– Tinha tantos planos para nós – dissera ele, banhado em lágrimas. – Ia
levá-la ao Waldorf de Nova Iorque e fazer um piquenique no Central Park.
Os meus velhos tê-la-iam adorado, teríamos tido uma boa vida juntos.
Tudo o que Belle pudera fazer fora ajudá-lo e falar-lhe de todas as
coisas adoráveis que Miranda dissera a respeito dele. Que tinha esperado
toda a vida por um amor como aquele e que estava ansiosa por casar com
ele.
Tinham-se sentado num velho tronco de árvore e choraram sozinhos, e
então Belle entregara-lhe a fotografia e o diário.
– Não li as entradas depois de ela te ter conhecido – dissera-lhe. – São
só para os teus olhos. Mas espero que te proporcione algum conforto ler as
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coisas engraçadas que ela escrevia, e que isso te ajude a compreendê-la
melhor. Tenta recordá-la como era na última noite que passaram juntos,
não como a vida dela acabou. Ela há de estar a ver-te lá de cima e a querer
que sejas feliz com outra pessoa qualquer, um dia.
A recordação daquela dolorosa noite com Will continuava gravada no
espírito de Belle, e esperou que a visita dele fosse para lhe dizer que tivera
notícias dos pais de Miranda, pois não se sentia capaz de lidar com mais
cenas emocionais.
– Vais arranjar problemas, se continuares a ter visitantes masculinos –
observou Sally, venenosa. – Mas suponho que conseguiste insinuar-te com
falinhas mansas junto do capitão Taylor.
As alfinetadas como aquela, da parte de Sally, tinham-se tornado con-
stantes. Faziam lembrar a Belle o tom acintoso de algumas raparigas do
Martha’s, em Nova Orleães. Só não percebia de que podia ela ter inveja:
ali ninguém estava em competição, e mesmo que estivessem, Sally era
muito melhor condutora, e ainda por cima uma excelente mecânica.
– Bem, a ti ninguém te pode acusar de te insinuares com falinhas man-
sas. És mais do género cobra, cospes veneno e paralisas as tuas vítimas.
Sally afastou-se sem responder. Vera, que ouvira a troca de palavras,
sorriu a Belle e ergueu o polegar, num gesto de aprovação.
Vera tinha sido um grande conforto para Belle. Mudara-se para a cama
que fora de Miranda, talvez por compreender que seria à noite que Belle
sentiria mais a falta da amiga. As outras raparigas nunca mencionavam o
nome de Miranda – era como se ela nunca tivesse ali estado –, mas Vera
punha Belle a falar dela, e isso ajudava-a muito.
Não querendo que Will visse provas da natureza do seu trabalho, Belle
correu à cabana, despiu a bata ensanguentada, lavou a cara e as mãos e
escovou rapidamente o cabelo antes de ir ter com ele.
A porta da cabana dos condutores estava aberta e ela entrou, preparada
para cumprimentar Will com um sorriso, mas quando viu quem a esperava
deteve-se, petrificada pelo choque.
Era Étienne.
Sempre que evocava a imagem dele, era como o tinha visto em Paris,
na Gare du Nord, com um chapéu de aba estreita, fato escuro e colete às
riscas, os olhos como vidro azul. Agora, porém, estava magnífico com o
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uniforme azul-escuro do exército francês, as botas brilhantes como espel-
hos e as divisas de sargento na manga. Mas os olhos azuis eram os mes-
mos, e fizeram o coração dela dar um salto.
Quando chegara a França, perscrutava sempre os grupos de soldados
franceses, meio na esperança de o descobrir. E também costumava verifi-
car os nomes dos feridos franceses que ocasionalmente eram levados para
o hospital. Mas o que de certeza não esperava era vê-lo aparecer ali à pro-
cura dela.
– Étienne! – exclamou. – O que…? Como…?
Calou-se, tão chocada que não conseguia dizer coisa com coisa.
– Encontrei o Will Fergus na base americana, quando lá fui buscar uns
abastecimentos – disse ele. – Contou-me o que tinha acontecido à namor-
ada. Senti que tinha de vir ver como estás. Sei que há de ter sido tão duro
para ti como foi para ele.
Aturdida pela surpresa, Belle teve de se sentar.
– Mas como soubeste que eu a conhecia? – perguntou.
Étienne franziu a testa e sentou-se também.
– A Miranda não te contou que nos conhecemos quando eles estavam
no Faisan Doré?
– Não, não contou. Mas nessa noite chegou tarde e morreu na manhã
seguinte. – Fez uma pausa, a olhar para ele com uma expressão confusa. –
Mas como conseguiu ela fazer a ligação entre nós?
Étienne encolheu os ombros.
– Eu estava lá com um par de homens da minha companhia. O Will
falou connosco e eu traduzi o que ele dizia para os outros dois. A dada
altura, apresentámo-nos. Só posso supor que ela reconheceu o meu nome
de qualquer coisa que tu lhe disseste, pois perguntou-me se era de
Marselha. Quando eu disse que sim, perguntou-me se conhecia alguém
chamado Belle. Fiquei como tu estás agora, aturdido. Disse-me que estavas
cá.
– Mas nunca me falou disso – arquejou Belle.
– Deve ter sido por ter pensado que era melhor não falar. Mais tarde,
apercebi-me de que devias ter-lhe contado muita coisa a meu respeito, para
ela se lembrar do nome. Isso tocou-me. E depois, saber que ela tinha
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morrido daquela maneira tão horrível! O Will quase não foi capaz de falar
do assunto.
– Sim, foi terrível. A verdade é que ainda mal consigo acreditar que
aconteceu. Éramos muito amigas, e eu pensava que seríamos sempre.
Sinto-me perdida sem ela.
– Calculei que fosse esse o caso, e é por isso que tinha de vir. Mas
confesso que descobrir que lhe tinhas falado sobre mim me fez ficar feliz
por não me teres esquecido completamente.
A porta da cabana estava aberta, eles estavam sentados em frente um
do outro, e alguém que olhasse para o interior nada veria que sugerisse que
ela e o sargento francês eram mais do que simples conhecidos. Apesar
disso, Belle sentiu-se de repente muito nervosa.
– Oh, tivemos uma vez uma daquelas conversas do género tu-contas-
me-a-tua-história-e-eu-conto-te-a-minha – disse num tom despreocupado,
como se nada daquilo tivesse grande importância. – Foi a única pessoa a
quem falei de Nova Orleães e de Paris e do teu papel em todo o drama.
Mas a Miranda era uma romântica, com uma queda muito especial para ver
mais nas coisas do que na verdade lá está.
– Ela deve ter sido muito importante para ti, para te sentires capaz de
lhe fazer confidências acerca dessa época da tua vida. – Étienne olhou-a
nos olhos, com uma sobrancelha inquisitiva erguida. – Como foi que a
conheceste?
– Na minha loja – respondeu Belle. – Morava perto, e sim, acabou por
ser muito importante para mim. A morte dela deitou-me completamente
abaixo. Foi horrível e não teria acontecido se a passagem de nível estivesse
vigiada, como era suposto estar.
– É duro perder bons amigos – disse ele. – Perdi tantos desde o
começo da guerra que agora evito fazer amizade seja com quem for.
– Nunca tinha tido uma amiga verdadeira, alguém com quem pudesse
desabafar e falar de tudo. E penso que ela também não. Podíamos vir de
meios muito diferentes, mas tínhamos muita coisa em comum.
– Que aconteceu à loja?
– O Jimmy alistou-se, eu perdi o bebé e acabei por deixar de achar
graça a fazer e vender chapéus. Parecia-me uma coisa tão frívola, com tan-
tos homens a morrer na guerra.
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– Lamento muito teres perdido o bebé. Compreendo que tenha mudado
tudo para ti, sobretudo com o teu marido longe de casa. Mas o que foi que
vos fez vir até cá, a ti e à Miranda?
Belle sentiu que aquela linha de interrogatório tinha como objetivo
descobrir se a recordação dele tinha, de algum modo, influenciado a
escolha. Sabia que devia deixar muito claro que não, mas os sentimentos
que nutria por ele e que julgara mortos e enterrados estavam mais uma vez
a fervilhar-lhe no peito. Aquele sotaque francês era tão cativante, e evoc-
ava tantas boas recordações do tempo que tinham passado juntos.
– Foi por puro acaso – disse, sem se atrever a olhá-lo nos olhos com
medo de que ele lesse nos dela que não estava a dizer toda a verdade. –
Decidimos fazer a nossa parte a favor do esforço de guerra trabalhando
como voluntárias no hospital militar, e no ano que lá passámos a Miranda
ensinou-me a conduzir. Então disseram-nos que aqui em França precis-
avam desesperadamente de condutores de ambulâncias. E pensei que tam-
bém teria oportunidade de ver o Jimmy com mais frequência.
– E tens estado muito com ele desde que vieste para cá?
Como antes, quando questionada a respeito de ter estado com Jimmy,
sentiu uma pontada de culpa por não ter sequer tentado.
– Não, infelizmente temos estado demasiado ocupados para sair daqui.
– A Miranda conseguiu – fez ele notar.
Belle corou. Devia ter calculado que ele não deixaria escapar aquela.
– Para ela era mais fácil. O Will não estava preso por deveres regulares
e, além disso, estava mais perto.
– Eu não estou perto, e também tenho deveres regulares, mas quando
soube que estavas aqui quis vir ver-te imediatamente. A única coisa que
me travou não foram as dificuldades, foi o receio de que não quisesses ver-
me.
Belle sentiu que ele estava a encurralá-la, a tentar forçá-la a admitir os
seus sentimentos. A maneira mais fácil de sair daquilo seria dizer que não
tinha querido vê-lo, mas não foi capaz.
– Não esperava voltar a ver o Will – continuou Étienne. – Mas a sorte
entrou na jogada e mandaram-me ao depósito onde ele se encontrava, em
Calais. Quando ele me disse como a morte de Miranda te tinha afetado,
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senti que precisavas de um velho amigo. Mas se estou a perturbar-te, então
talvez o melhor seja ir-me embora.
– Perturbaste-me da última vez que apareceste – disse ela. – Porque é
que teimas em fazer isto?
– Porque é que apareço? Ou porque é que te perturbo? – perguntou
Étienne. Os olhos azuis pareciam sondar a alma dela até ao fundo. –
Apareço porque não consigo manter-me afastado. Só tu podes dizer porque
é que isso te perturba.
– Nesse caso, porque é que não foste ver-me a Inglaterra, depois de eu
ter deixado Paris? – disse ela, num súbito desabafo. – Devias saber que es-
tava na esperança de que o fizesses.
Ele suspirou.
– Pensei que precisavas de tempo para ultrapassar todas as coisas por
que tinhas passado.
– Aquela única carta que me escreveste podia ser de um tio a informar-
se sobre a minha saúde – acusou ela, indignada.
Ele levantou-se do banco e aproximou-se para lhe pegar nas mãos.
– Eu disse-te que não era muito bom a escrever em inglês – disse, num
tom de censura. – A tua carta estava cheia de Jimmy isto e Jimmy aquilo,
estavam os dois a viver sob o mesmo teto. O Noah escreveu-me a dizer
que achava que iam casar. Eu queria que fosses feliz e pensei que o melhor
seria sair da tua vida.
– Como podia eu dizer-te o que sentia quando tu nunca me encorajaste
a acreditar que me vias como mais do que uma amiga? – perguntou ela,
com a proximidade dele e a maneira como lhe pegava nas mãos a fazerem-
na tremer.
– Pensei que ter corrido a socorrer-te tão depressa e ter ficado a teu
lado enquanto recuperavas, em Paris, eram provas suficientes dos meus
sentimentos por ti. Depois de tudo aquilo por que tinhas passado, não me
atrevia sequer a beijar-te.
E então largou-lhe as mãos, segurou-lhe a cara e beijou-a.
Foi o mais suave e o mais terno dos beijos, e durou apenas o tempo su-
ficiente para fazer o coração dela correr à desfilada.
– Sou uma mulher casada – disse ela, mas não se afastou, e soube que
o seu tom não fora sequer indignado.
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– No amor e na guerra vale tudo, segundo dizem. – O sorriso dele foi
malicioso e arrapazado. – Nenhum de nós sabe se vai sobreviver a esta
guerra. Não gostaria de morrer sabendo que não tive coragem para te dizer
o que sinto por ti.
– Isso é um golpe baixo – disse ela, e agora sim, estava indignada. –
Suponho que vieste até cá a pensar que eu ia cair-te nos braços porque me
sinto muito sozinha sem a minha amiga e porque o Jimmy está na frente?
Pois bem, pensaste mal. Tiveste a tua oportunidade para expressar os teus
sentimentos em Paris.
– Se o tivesse feito, terias ficado comigo?
Belle recordou os últimos minutos com ele na Gare du Nord e a dor
que lhe dilacerara o coração por desejá-lo tanto.
– Na estação, pedi-te que dissesses qualquer coisa em francês. Não
compreendi o que disseste, mas sei que não foi que me amavas.
– Disse que desafiaria incêndios, inundações e o próprio Inferno para
estar contigo – disse ele, a olhá-la nos olhos. – Se isso não foi dizer que te
amava, não sei o que foi. E continuaria a desafiar todas essas coisas, e até o
teu desagrado por ter cá vindo agora que és uma mulher casada.
Os olhos de Belle encheram-se de lágrimas. Sentiu que alguma coisa
se derretia dentro dela, e embora soubesse que devia dizer-lhe que aquelas
palavras chegavam demasiado tarde e afastar-se dele, mais uma vez não foi
capaz.
Étienne levantou a mão e, em silêncio, limpou-lhe as lágrimas com o
polegar, e então inclinou a cabeça e os seus lábios encontraram os dela e
estava a beijá-la como, em Paris, ela esperara que fizesse.
Involuntariamente, ergueu os braços para o abraçar. A língua dele de-
safiava a dela, o seu corpo apertava-se contra o dela, e a paixão deflagrou
entre os dois como um incêndio na floresta. Belle esqueceu que a porta es-
tava aberta e que qualquer pessoa que passasse poderia vê-los; esqueceu
também que tinha um marido que ficaria com o coração destroçado se
soubesse daquilo.
Estava perdida, e sabia-o. Não havia maneira de se afastar agora e fin-
gir que aquilo não significara nada para ela. Queria que ele a possuísse, o
sentimento era demasiado forte para ser combatido.
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– Vem comigo – disse ele, quando os seus lábios finalmente a liber-
taram, embora os braços continuassem a prendê-la. – Conheço um sítio
onde podemos estar juntos.
– É errado, Étienne – disse ela, debilmente.
– Como é que pode ser errado quando acabo de encontrar a rapariga
que amo, por puro acaso, num país dilacerado pela guerra? Posso ser morto
na próxima batalha, e o Jimmy também. Temos de aproveitar o que temos
agora, não sabemos o que o amanhã nos vai trazer.
Belle tinha ouvido aquelas palavras inúmeras vezes desde que estava
em França, e sempre concordara com o sentimento, mas uma vozinha in-
terior tentava recordar-lhe que não se aplicavam à sua situação porque era
casada. No entanto, uma outra voz muito mais forte abafava-a, gritava-lhe
que era agora ou nunca com Étienne e que mandasse para o diabo as
consequências.
Ouviu-se a si mesma a dizer-lhe que saísse dos terrenos do hospital e a
esperasse junto da mesma abertura no arame por onde Miranda costumava
passar para se encontrar com Will.
Um novo beijo selou a combinação. Étienne meteu-se no camião e par-
tiu, e ela correu para a cabana para mudar de roupa e preparar uma mala.
Quis a sorte que Vera estivesse lá sozinha, deitada na cama a ler um
livro. Disse que as outras tinham ido jogar ténis.
– Arranjas-me uma desculpa qualquer? – pediu Belle, depois de lhe ter
dito apenas que ia sair com um velho amigo. – Sê evasiva, diz que foi o
meu marido que veio visitar-me. Estarei de volta amanhã a tempo de
trabalhar.
– Mas não é o Jimmy? – perguntou Vera. Parecia surpreendida, mas
não horrorizada; parecia não sofrer da rigidez moral dos Ingleses. E tam-
bém dissera muitas vezes que achava que qualquer oportunidade de ser fel-
iz devia ser agarrada com ambas as mãos.
Belle abanou a cabeça.
– Amanhã explico-te tudo. E reza pela minha alma, porque não tenho a
certeza de dever estar a fazer isto.
Depois de se ter lavado apressadamente e de ter vestido roupa interior
limpa e o seu único vestido decente, enfiando as roupas de trabalho num
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saco, para a manhã seguinte, Belle saiu a correr, escapuliu-se por entre as
filas de enfermarias e chegou à estrada onde Étienne a esperava.
Sentia a pulsação muito acelerada e o coração a dar-lhe cambalhotas
no peito, mas quando saltou para a cabina do camião, a visão do rosto dele,
incendiado de alegria, disse-lhe que, acontecesse o que acontecesse, ia
valer o risco.
– É só um café com alguns quartos no andar de cima – disse ele. – Mas
conheço outros homens que levaram lá as mulheres e disseram-me que os
quartos são muito limpos. Prometo trazer-te de volta ao hospital antes das
seis, isto se ainda não mudaste de ideias.
Belle só conseguiu abanar a cabeça, sorrir e esticar-se para o beijar na
face. Naquela noite, ia fingir que era livre como um passarinho. A conta
seria paga mais tarde.
O café ficava a cerca de vinte e cinco quilómetros de distâncias, por
um caminho cheio de curvas. O lugarejo era tão pequeno que mal se lhe
podia chamar uma aldeia: meia dúzia de casas, uma loja que vendia de
tudo e o café, com quartos para arrendar no primeiro andar.
Comeram ovos com batatas fritas acompanhados por um copo de
vinho tinto tão áspero que Belle teve de se esforçar para o beber sem fazer
uma careta. Havia alguns soldados franceses, mas Étienne conseguiu uma
mesa ao fundo da sala, e se conhecia alguns deles, não o disse. Tinha, logo
à chegada, falado a respeito de um quarto com o homem que estava atrás
do balcão, uma conversa pontuada por muitos encolher de ombros e agitar
de mãos. Quando Belle lhe perguntara o que fora tudo aquilo, limitara-se a
rir e dizer que o homem comentara que ela era uma beldade e ia dar-lhes a
suíte nupcial.
– Então é isto a suíte nupcial? – perguntou Belle quando, mais tarde,
subiram ao primeiro piso. Era um quarto muito pequeno nas traseiras da
casa, quase sem espaço para passar à volta da cama de casal, e o papel de
parede, com um padrão de flores, estava a descolar-se em diversos pontos.
– Bem, tem uma cama de casal – disse Étienne, a experimentá-la com
a mão. – E há uma casa de banho na porta ao lado… A retrete suponho que
será nas traseiras.
Belle sentiu-se pouco à vontade quando ele foi espreitar da janela. Não
era uma prostituta, da qual se esperava que tomasse a iniciativa, nem uma
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esposa, que normalmente se enfiaria na cama primeiro e esperaria para ver
qual era a disposição do marido. Tinha vergonha de se despir à frente dele,
o que, considerando que com dezasseis anos se enfiara nua no beliche onde
ele dormia, no barco a caminho de Nova Orleães, e se lhe oferecera
descaradamente, era no mínimo ridículo.
Étienne voltou-se para ela e sorriu-lhe. O sol da tarde entrava pela
janela e transformava-lhe o cabelo num halo dourado.
– Com medo?
Ela anuiu, sem confiar na voz. Ele contornou a cama e abraçou-a.
– Tenho um remédio para isso – disse em voz baixa, e beijou-a.
Quando os lábios dos dois se colaram e a língua dele lhe entrou na
boca, a excitação sexual foi imediata e varreu o medo e a vergonha.
Étienne empurrou-a para trás até a fazer cair em cima da cama, e con-
tinuou a beijá-la até que ela se debateu debaixo dele, a puxar-lhe pelo uni-
forme para que o despisse.
– Tu primeiro – sussurrou ele, e fê-la voltar-se para poder desabotoar-
lhe o vestido. Beijou-lhe e lambeu-lhes as costas à medida que desapertava
cada botão, e então fez deslizar a manga pelo braço, sem parar de a beijar,
até a fazer passar pelo pulso, e em seguida fez o mesmo ao outro braço.
Puxou então o vestido para baixo e deitou-a de costas para poder beijar-lhe
os seios que a camisola interior mal cobria.
– Magníficos, seios de mulher, tal como eu imaginava que se
tornariam.
Continuou a beijá-los enquanto desapertava o cós do saiote e o atirava
para o chão, e depois tirou-lhe as meias, as cuecas e finalmente a camisola
interior, deixando-a nua.
A sarja áspera do uniforme contra a pele dela excitou-a ainda mais, e
Étienne parecia não ter pressa de se despir. Enfiou uma coxa entre as dela
e começou a movê-la ritmicamente, sem parar de beijar-lhe e chupar-lhe os
seios.
Impaciente, ela desabotoou-lhe o dólman, puxando o tecido com ges-
tos bruscos na ânsia de sentir a pele dele contra a sua. Étienne usava sus-
pensórios por cima de uma camisa de algodão azul, e Belle agarrou-os para
lhos tirar.
– Qual é a pressa, pequenina? – sussurrou ele. – Temos a noite toda.
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Belle vira-lhe o peito nu dúzias de vezes, a caminho da América,
admirara-lhe os ombros largos e musculosos e a cintura estreita, mas
quando lhe despiu a camisola interior, reparou na cicatriz que lhe descia do
ombro ao longo do flanco.
– Foste ferido! – exclamou, tocando-lhe com as pontas dos dedos. Pen-
sou que era muito mais extensa do que a de Jimmy, e no mesmo instante
desejou não ter sido recordada da existência do marido num momento
daqueles.
– Não tem importância – disse ele. – Quando era rapaz, sempre quis
ter uma cicatriz assustadora, para me fazer parecer mais duro.
– Já pareces suficientemente duro sem isto – disse Belle, e voltou a
passar os dedos pela cicatriz.
Étienne puxou-a para si e silenciou-a com um beijo, enquanto lhe en-
fiava a mão no cabelo.
Belle deixou de ouvir o som dos soldados a rir e a conversar lá em
baixo no café, não viu o dia tornar-se noite nem quis saber de que prob-
lemas aquelas horas de bem-aventurança poderiam atrair sobre a sua
cabeça. A cicatriz de Étienne era um testemunho da verdade do que ele
dissera a respeito de não haver quaisquer garantias de que sobreviveriam
àquela guerra. Nunca lhe passara sequer pela cabeça que ela ou Miranda
pudessem perder a vida, e no entanto a amiga estava morta, e embora fosse
muito mais provável que Jimmy e Étienne tombassem no campo de batalha
do que ela ser vítima de um acidente fortuito, não podia ter a certeza.
Tudo o que sabia de certeza era que a sorte interviera e trouxera
Étienne de volta para ela. Tinha de haver uma boa razão para isso. Amara-
o quando tinha dezasseis anos. Fora ele quem lhe permitira ultrapassar
tudo aquilo a que fora sujeita depois de ter sido raptada, e fora ele quem
lhe dera a força e a determinação para aguentar o que Nova Orleães lhe
atirara à cara.
E, dois anos depois disso, fora ele quem, em Paris, a salvara das garras
de Pascal e se sentara à sua cabeceira enquanto ela recuperava. O resto do
mundo podia pensar que era apenas mais uma esposa infiel que cedera à
tentação de arranjar um amante porque estava longe de casa e se sentia
sozinha, mas, para ela, Étienne tinha direitos de precedência no seu
coração.
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Cada carícia, cada beijo, cada palavra de amor murmurada levavam-na
mais alto no êxtase. Étienne não tinha pressa em penetrá-la e parecia ex-
clusivamente concentrado em proporcionar-lhe prazer, lambendo-a até que
ela gritou ao atingir o clímax e lhe suplicou que entrasse nela.
Seguiram-se longas e lentas arremetidas até ambos pingarem suor,
tanta ternura num instante, tanta ferocidade no seguinte. Teve um novo or-
gasmo e, nos espasmos da delícia, não se apercebeu sequer de que ele se
tinha retirado de dentro dela. Quando sentiu a humidade pegajosa no
ventre percebeu que, mesmo no auge da paixão, Étienne tinha pensado
nela e não quisera arriscar uma gravidez.
– Minha bela rosa inglesa – disse ele, apoiado num cotovelo, a olhar
para ela enquanto lhe limpava docemente as lágrimas das faces. – Foi tudo
o que sonhei, e muito mais.
– Quem me dera – disse ela, com mais lágrimas a subirem-lhe aos
olhos.
Ele pousou-lhe nos lábios um dedo que cheirava a ela.
– Não digas isso. Temos de acreditar que se a sorte voltou a juntar-nos,
é porque tem mais planos para nós. Amo-te, Belle, não só esta noite, mas
para sempre. O amor encontra sempre maneira.
– Vais voltar à frente?
– Sim, muito em breve. Mas hei de escrever-te, e virei ver-te sempre
que puder. Vais acreditar que um dia esta guerra há de acabar e nós
poderemos estar juntos?
– Sim, porque te amo. – Não era aquele o momento para falar dos ob-
stáculos que o impediriam. – E penso que chegou o momento de te recom-
pensar por todo o prazer que me deste, qualquer coisa para te fazer ficar
acordado nas trincheiras.
E então brincou com ele, com a boca e a língua. Sempre que ele
tentava acariciá-la, afastava-lhe as mãos com uma palmada, e continuou a
fazer o que estava a fazer até que Étienne desistiu e aceitou que aquilo era
só para ele.
Recordações do Martha’s voltaram a encher-lhe a cabeça enquanto o
ouvia gemer de prazer. Da primeira vez que lhe haviam dito que tinha de
tomar o sexo de um homem na boca, achara que aquilo era a coisa mais
nojenta que alguma vez ouvira. E continuara a ser algo que evitaria se
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pudesse. Mas não havia nada de repelente em fazê-lo a Étienne, parecia até
ser a coisa mais natural do mundo. Sentia prazer em proporcionar-lhe um
tão grande gozo.

Eram quase seis da manhã e chovia quando ele a deixou perto do hos-
pital. Já levava vestidas as roupas de trabalho e uma bata lavada – o
vestido estava no saco –, de modo a poder seguir diretamente para a ambu-
lância. Tinha os lábios inchados de tantos beijos e o sexo dorido, estava
cansada da falta de sono e sentia o coração pesado por não fazer ideia de
quando voltaria a vê-lo.
– Guarda isto num lugar seguro – disse ele, enquanto lhe enfiava um
pedaço de papel na mão. – Estão aí moradas onde posso ser contactado se
te acontecer qualquer coisa inesperada, ou se eu não conseguir vir ter con-
tigo aqui.
Belle olhou para o papel: indicações sobre o regimento, uma morada
de Marselha e outra de Paris.
– Vou tentar escrever melhor em inglês – continuou Étienne, com um
sorriso triste, e enrolou uma madeixa de cabelo dela à volta do dedo. – Mas
se não conseguir fazer um bom trabalho, lembra-te de que te amo e que de-
safiaria incêndios, inundações e o próprio Inferno para estar contigo.
Ela sentiu as lágrimas subirem-lhe aos olhos.
– Mantém-te a salvo para mim – disse, com a voz a tremer de emoção.
– Mas se fores ferido, pede para te trazerem para aqui.
– Agora tenho todas as razões para me manter vivo. – Étienne
inclinou-se para a beijar uma última vez. – Agora vai, não quero que ar-
ranjes problemas.
Belle ficou parada alguns instantes, a vê-lo afastar-se. Subitamente, a
enormidade do que tinha feito desabou-lhe sobre a cabeça. Como seria
capaz de voltar a encarar Jimmy? Porque fora que cedera à tentação? Seria
uma noite de paixão compensação suficiente para a culpa com que ia ser
obrigada a viver?
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Vera aproximou-se quando Belle estava a usar a manivela para ligar o
motor da ambulância. David tinha ido à arrecadação buscar mais mantas.
– A Sally foi um bocado mazinha depois de tu teres ido embora, ontem
à noite – segredou Vera. – Pensou que tinhas saído com o Will e disse que
já era mais do que tempo de o deixares aguentar-se sozinho. Eu não lhe
disse que não era o Will, de modo que não deixes escapar nada se ela te
falar no assunto.
Belle olhou para ela, horrorizada.
– Pensou que eu estive com ele toda a noite?
Vera esboçou um meio sorriso.
– Não, ela e as outras estavam na cama às nove, de modo que não
sabem que não voltaste. Esta manhã, acordei antes de elas se levantarem e
desfiz a cama e destranquei a porta.
– Graças a Deus – exclamou Belle. – Não aguentaria se elas pensas-
sem que roubei o homem à Miranda. Já me sinto mal que chegue.
Vera pegou-lhe na mão e apertou-a, num gesto de compreensão.
– Podes ter sido um pouco irresponsável – disse –, mas não foste má.
Aceitaste um pouco de conforto, foi só isso.
Belle sentiu-se comovida ao ouvir estas palavras.
– Obrigada por me teres ajudado. Hei de tentar explicar-te tudo, mais
tarde.

Às dez da manhã, Belle já tinha feito três viagens até à estação. Como
a dela fora a segunda ambulância a sair do hospital, da primeira vez trans-
portara apenas pacientes sentados, muito mais fáceis do que os de maca.
Mas na segunda e na terceira tinham-lhe calhado sobretudo canadianos,
homens grandes, pesados, todos eles com ferimentos terríveis.
– Hoje tens estado muito calada e sonhadora – comentou David en-
quanto lavavam a ambulância, depois de um dos feridos ter vomitado. –
Alguma razão especial?
A verdade era que estivera a recordar a noite com Étienne, de tal
maneira que começara a sentir calores e a ficar novamente excitada. Per-
guntou a si mesma quando voltaria a vê-lo.
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Contava quase tudo a David; tinham-se tornado bons amigos ainda
antes da morte de Miranda, mas o terrível acidente aproximara-os ainda
mais. Mas, claro, não podia falar-lhe de Étienne: a ideia de uma mulher
casada com o marido na frente passar a noite com outro homem deixá-lo-ia
horrorizado.
Foi só então que teve plena consciência da sua situação. Jimmy era um
bom homem, e amava-a. Ia destroçar-lhe o coração se lhe dissesse que
queria deixá-lo. E se o fizesse perderia também Mog, que nunca poderia
tomar partido por ela estando casada com Garth.
– A mesma coisa do costume, a pensar demasiado nas mortes que esta
guerra tem causado – respondeu rapidamente. – A vida é tão efémera, não
é?
– Tiveste notícias do teu marido desde que lhe escreveste a contar o
que aconteceu à Miranda?
– Não. E da Mog e do Garth também não. Pergunto a mim mesma se a
Mog terá ido ao funeral da Miranda. Mrs. Forbes-Alton arranjou de certeza
maneira de toda a gente ficar a saber, e a Mog deve ter ficado chocada por
eu não ter ido a casa para estar presente. Claro que lhe expliquei a razão na
minha carta, mas duvido que a tenha recebido a tempo.
– Esperemos que ela não tenha ido para a Mog com aquela conversa a
respeito de tu seres responsável – disse David. – É uma coisa horrível para
dizer seja a quem for.
– Talvez Mrs. Forbes-Alton seja infeliz no casamento – sugeriu Belle.
– Suponho que é quanto basta para azedar qualquer um.
– Sim, acho que sim. Tive uma tia que era um autêntica peste para toda
a gente, e no fim acabei por descobrir que não a tinham deixado casar com
o homem que amava. O homem com quem a obrigaram a casar era um
bom tipo, mas um banana. Era isso que a tornava tão má.
– Penso muitas vezes em como será que as mulheres dos homens que
ficaram muito feridos lidam com a situação, quando eles voltam para casa
– continuou David. – Por muito que se tenham amado antes, viver de uma
pensão de miséria com alguém que precisa de cuidados constantes pode ser
um pesadelo.
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Aquelas palavras fizeram Belle endireitar-se bruscamente. Étienne
falara como se acreditasse que haviam de arranjar uma maneira de estar
juntos. Estaria na esperança de que Jimmy fosse morto?
CAPÍTULO 18

D ias depois da sua noite com Étienne, Belle passou pela sala do correio
antes de iniciar o trabalho para ver se havia correspondência para ela.
Quando lhe entregaram uma carta, o coração deu-lhe um salto no peito:
talvez fosse de Étienne. O desapontamento que sentiu ao reconhecer no
sobrescrito a caligrafia familiar de Jimmy foi imediatamente seguido por
uma profunda vergonha.
«Meu querido amor», leu.

Tenho tanta pena do que aconteceu à Miranda. Mal posso


acreditar que ela tenha sido levada por um acidente tão trágico e
evitável. E também é horrível pensar que assististe a tudo. Ver um
amigo morrer é cem vezes pior do que saber da sua morte mais
tarde.
Quem me dera ter podido estar aí para te abraçar e confortar.
Deves ter-te sentido, e provavelmente ainda sentes, muito sozinha.
Fiquei furioso por a mãe dela ter dito que não te queria no funer-
al. Que espécie de mãe será ela para negar à melhor amiga da
filha a oportunidade de lhe dizer um último adeus? Mas não so-
fras com isso, querida, lembra-te de que a Mog há de espalhar a
história de uma ponta à outra de Blackheath e toda a gente ficará
a saber que Mrs. Forbes-Alton é tão má como se pensava.
Também tenho pena do Will. Sei que, se te perdesse, não teria
mais razões para continuar. Se voltares a vê-lo, dá-lhe a nossa
morada e talvez, quando a guerra acabar, ele possa ir passar al-
gum tempo connosco. Poderias mostrar-lhe todos os lugares
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preferidos da Miranda. Talvez o ajudasse a suportar a sua perda
poder imaginar de onde ela veio, como era a sua vida antes da
guerra. Embora talvez seja melhor não o apresentar à mãe dela!
Quanto a mim, cá me vou aguentando, embora esta chuva que
nunca mais acaba numa região já de si pantanosa não augure
nada de bom para a grande ofensiva de que estamos à espera.
Ninguém nos disse o que está planeado e correm rumores de que o
Haig tem feito demasiadas asneiras e vai ser substituído pelo gen-
eral Plumer. Se isso vai ser melhor ou pior para nós, os soldados,
é o que falta ver. A nossa malta tem tido sorte desde há algum
tempo, sem nada de fantasias na frente, mas julgo, pelo treino que
estamos a receber, que isso vai mudar em breve. Estamos todos
fartos deste lugar, quantas mais batalhas poderá haver por causa
de umas centenas de metros de terreno? Estamos fartos da lama,
da porcaria e da destruição, já para não falar da perda de vidas.
Quem me dera que houvesse maneira de saber quando é que tudo
isto vai acabar! A mim não me parece que estejamos a chegar a
parte nenhuma. Os Boches não dão sinais de fraquejar, e têm ab-
rigos de betão, de modo que estão mais protegidos e mais con-
fortáveis do que nós.
Mas eu para aqui a queixar-me quando tu tens de lidar com o
resultado de toda esta loucura. Se Deus quiser, não há de durar
muito mais tempo. Sonho com estar outra vez em casa contigo,
com roupas lavadas, banhos quentes, passeios por Greenwich
Park, uma caneca de cerveja e nunca mais ouvir um tiro. Pedi uns
dias de licença para ir ter contigo, mas foi recusada. Disseram
que talvez no outono, mas ainda falta muito tempo para o outono.
Disse-me a Mog, da última vez que me escreveu, que as tuas
cartas para ela e para o Garth são agora muito curtas. Suponho
que é por teres tanto trabalho. Sei que o que ela mais quer é que
faças as malas e voltes para casa, tem muitas saudades tuas.
Talvez agora, sem a companhia da Miranda, também tu queiras
ir. Por mim, gostava muito mais de te saber a salvo em casa.
Disseste, na carta antes daquela em que me contaste o que
aconteceu à Miranda, que havia muitos canadianos no hospital.
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Tenho conhecido bastantes aqui. Portaram-se muito bem ao tomar
Vimy Ridge, são homens bons e corajosos. Se os Americanos
tiverem metade da capacidade deles, talvez consigamos correr
com os Boches até ao Natal e voltar todos para casa. Mas a ver-
dade é que há três anos que estamos à espera disso.
Um milhão de beijos.
Teu para sempre, Jimmy

Belle limpou os olhos húmidos com as costas da mão. A carta espel-


hava bem quem Jimmy era, um homem bom e amoroso que se preocupava
mais com os outros do que consigo mesmo. Não dizia exatamente onde es-
tava por causa do censor – na realidade, até era surpreendente ter ousado
referir Haig e Plumer –, mas pela descrição que fazia das condições, tudo
indicava que seria perto de Ypres; Belle sabia, pelos que lá tinham sido
feridos, que eram atrozes.
Desde a noite passada com Étienne, vivia numa espécie de bolha que a
impedia de pensar muito no futuro. De certa maneira, permitira-se acredit-
ar que aconteceria um milagre qualquer que lhe evitaria ter de escolher
entre os dois homens.
Naquele momento, porém, com a carta de Jimmy na mão, sabia que
tinha estado a enterrar a cabeça na areia. Que ia ela fazer? Sabia que, se ele
lhe aparecesse ali, não seria capaz de o enfrentar. Descobrir que ela lhe
fora infiel iria matá-lo, e Jimmy não fizera nada para merecer uma coisa
daquelas.
Sentir-se-ia justificada se ele a tivesse negligenciado, se fosse um
bêbedo ou lhe batesse. E, além disso, amava-o. O reaparecimento de
Étienne não mudara os seus sentimentos. Mas como era possível amar dois
homens ao mesmo tempo?
– Más notícias? – perguntou David.
A pergunta sobressaltou-a. Não vira nem ouvira David aproximar-se, e
calculou que ele a tinha visto ler a carta e limpar os olhos.
– Não, David, não são más notícias. As cartas do Jimmy fazem-me
sempre chorar – disse apressadamente. – Há muito tempo que não o vejo e
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ponho-me a pensar que vai ser tudo muito diferente entre nós quando a
guerra acabar. Já não somos as mesmas pessoas.
David passou-lhe o braço pelos ombros e deu-lhe um aperto
compreensivo.
– Pelo menos, tu também estiveste cá, compreendes como tem sido
para ele. Isso deve tornar as coisas muito mais fáceis para ti do que para as
esposas que ficaram todo este tempo em casa.
– Talvez. – Belle suspirou, dobrou a carta e guardou-a no bolso da
bata. – É melhor irmos andando.
Já tinham percorrido uma parte do caminho até à estação quando
David voltou a falar.
– Há qualquer coisa que te perturba, sinto-o. Podes contar-me. Não
direi uma palavra a ninguém.
Belle tentou sorrir. Também David era um bom homem. Sempre bem-
disposto, sempre fiável e leal. E também muito intuitivo. Soube que tinha
de dizer qualquer coisa para o fazer parar de sondar.
– É só que a morte da Miranda me deixou completamente arrasada.
Tão depressa estou bem como no instante seguinte me sinto de rastos. A
minha vontade é fazer a mala e voltar para casa.
– Não podes fazer isso! Que faria eu sem ti? – exclamou ele. –
Chamam-me um filho da mãe com sorte porque trabalho com a rapariga
mais bonita do hospital. É muito bom para o meu ego.
Belle não conseguiu conter uma gargalhada.
– Podias pedir para fazer equipa com a Vera. É uma rapariga encanta-
dora, e não tem namorado.
– Ora aí está uma boa ideia! – David sorriu. – Mas o mais certo era
porem-me com a Sally, e essa é tão fina que me mete medo. Já te contei do
condutor com quem trabalhei antes de estar contigo? Chamava-se Buck e
era um sabichão americano que estava sempre a queixar-se de tudo. Não
conseguia suportá-lo. Felizmente, pôs-se a andar antes de a minha paciên-
cia chegar ao fim. Mas por falar na Vera, estivemos os dois a conversar, a
noite passada, e ela também não quer que te vás embora. Disse que ter-te
conhecido foi uma das melhores coisas que lhe aconteceu desde que veio
para cá.
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Estas palavras comoveram-na. Gostava de Vera. Era viva, calorosa e
muitas vezes divertida. E completamente isenta de malícia. Na realidade,
Belle tinha muitas vezes de lhe explicar os pedantismos de Sally porque
Vera, criada numa sociedade sem classes, não tinha qualquer experiência
dessa faceta da personalidade inglesa. Vera tinha compreendido o dilema
dela com Étienne e Jimmy, sem aprovar nem desaprovar. Dissera, à sua
habitual maneira calma e racional, que achava que ela só se tinha voltado
para Étienne em busca de conforto depois da morte de Miranda e que não
devia precipitar-se e fazer ou dizer qualquer coisa de que, quase de certeza,
viria a arrepender-se mais tarde.

Na manhã seguinte, recebeu uma curta missiva de Étienne. Dizia que


tinha sido transferido. Não podia dizer para onde e não explicava se o seu
regimento estava de reserva ou na frente de combate. «Só quero que saibas
que estás constantemente nos meus pensamentos», escrevia. Tinha razão a
respeito de escrever mal em inglês; usava as palavras certas, mas a maior
parte com erros de ortografia.

Sofro porque sei que te pus numa situação impossível. Por


vezes penso que não devia ter ido procurar-te porque agora estou
aqui, com tantos Tommies por perto, e tenho vergonha de mim
mesmo por desejar a mulher de outro homem.
Mas isso não me impediu de fazer planos na minha cabeça.
Um que me pareceu perfeito, apesar de agora o ver apenas como
desespero da minha parte, era tu desapareceres do hospital e ires
para a minha casa em Marselha esperar por mim. Como posso eu
sugerir semelhante coisa? Perderias tudo o que te é querido, e os
teus voltariam a chorar a tua perda, como quando desapareceste
da primeira vez. Nunca conseguiria ser feliz causando tanta dor a
outras pessoas, e tu nunca serias capaz de perdoar-te a ti mesma.
A única forma verdadeira de o fazer é a forma honesta, en-
frentarmos o Jimmy juntos e dizer-lhe a verdade. Digo a mim
mesmo que se ele te ama, há de querer a tua felicidade. Mas sei
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muito bem que poucos homens são assim tão nobres. E muito
menos quando sabem que vão perder a pessoa que é mais pre-
ciosa para eles.

Neste ponto, Belle começou a chorar. A primeira ideia de Étienne era


uma possibilidade que ela própria já considerara e descartara em grande
parte pelas mesmas razões. Com a segunda, por mais honrosa que fosse,
sabia que nunca poderia concordar. Nunca teria coragem suficiente para
ver Jimmy destroçado.
Quase desejava que Étienne estivesse apenas a divertir-se com ela e
em breve se cansasse do jogo. Mas todo o resto da carta era uma de-
claração de amor, e saltava à vista que ele não fazia a mínima intenção de
desistir dela.

Durante a última semana de junho, o número de comboios que


chegavam diminuiu consideravelmente. Todos os que trabalhavam no hos-
pital há um ano ou mais foram unânimes em afirmar que era apenas uma
trégua antes da tempestade. Tudo indicava que Jimmy tinha razão e que
haveria em breve mais uma ofensiva de grande envergadura, porque
quando Belle percorreu as enfermarias, reparou que os médicos e as enfer-
meiras se esforçavam por desembaraçá-las de todos os que estavam sufi-
cientemente bem para serem deslocados. Era evidente que o hospital se
preparava para receber mais um enorme afluxo de baixas.
Com menos comboios a chegar, Belle e alguns outros condutores deix-
aram de fazer o trajeto da estação e, em vez disso, começaram a transportar
para Calais os feridos em convalescença, para serem embarcados nos
navios-hospital. Belle ficou contente com a mudança; os pacientes estavam
encantados por terem finalmente conseguido o seu bilhete para casa e
mostravam-se bem-dispostos, e além disso era agradável ver o que se pas-
sava no azafamado porto.
As ruas de Calais estavam cheias de soldados: australianos,
neozelandeses, canadianos e novos recrutas chegados de Inglaterra e a
caminho dos campos de treino ou da frente. Também havia mais
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americanos, um grupo relativamente pequeno de profissionais que treinari-
am os soldados que haviam de chegar.
Dois destes homens estavam no cais a ajudar Belle e David com os
feridos, mas embora agradecesse a ajuda no pesado trabalho de carregar as
macas, Belle achava a atitude dos soldados um pouco irritante. Eram ex-
cessivamente joviais e não escondiam que consideravam o exército amer-
icano muito superior ao britânico. Considerando que os Estados Unidos
tinham ficado de braços cruzados durante três anos, e só se tinham final-
mente decidido a ajudar quando os seus navios tinham começado a ser
torpedeados, parecia-lhe que não tinham o direito de se comportar como se
fossem os salvadores.
Um deles, louro, grande, com uma cara fresca, que parecia acabado de
sair de uma quinta, não parava de fazer comentários depreciativos a re-
speito do ar esfarrapado e abatido dos Ingleses.
– Que se passa com eles? – perguntou. – Comportam-se como se já
tivessem perdido a guerra. E ainda por cima são cínicos, quando lhes per-
guntamos qualquer coisa respondem: «Não vais tardar a descobrir, com-
panheiro.» E os Frogs ainda são piores, na sua maioria parecem vagabun-
dos, com os uniformes sujos, e nem sequer fazem a barba. Nem parecem
soldados.
– Estão exaustos, foram bombardeados, gaseados e metralhados – re-
torquiu Belle. – Não querem dizer-lhes como é porque quase todos viram
morrer amigos com que vieram para cá. A comida não presta, quase não
descansam, comem, dormem e vivem nas condições mais horríveis, muitos
deles não tiveram um único dia de licença desde que chegaram. Mas não
duvide nem por um instante da coragem destes homens, todos eles estão
prontos quando o apito toca e chega o momento de saltar da trincheira, to-
dos eles têm corações de leão. E quanto a alguns franceses não fazerem a
barba, não pensem que lá por terem uniformes elegantes e os cabelos bem
cortados, isso os vai manter a salvo. O que conta na frente é ter coragem,
ser rápido e certeiro a disparar e ter a capacidade de rastejar para dentro da
cratera de uma bomba quando se é ferido. Caso contrário, vão morrer em
França.
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– Bem, minha senhora, pôs-nos no nosso lugar – disse o rapaz, clara-
mente surpreendido por uma mulher tão jovem ter falado com tanta paixão.
– Acho, pelo que diz, que nos espera uma surpresa.
– Podem ter a certeza. Só espero que vocês os dois consigam regressar
a casa. Não há praticamente uma mulher em Inglaterra que não tenha chor-
ado a morte de um marido, um filho ou um irmão. Os que aqui veem hoje
são os afortunados, os que vão voltar. Estão estropiados e partidos, mas ao
menos estão vivos. Todos chegaram cá tão entusiasmados como vocês,
crentes na boa causa do rei e da pátria. Agora, a maior parte admitirá que a
guerra é a coisa mais cruel e mais feia que alguma vez viram, e vão ter
pesadelos durante muitos e muitos anos.

– Raios, Belle! – exclamou David, quando já estavam de novo na am-


bulância. – Que grande ensaboadela.
Belle corou.
– Estavam a pedi-las. Quem julgam eles que são, uma dádiva de Deus?
– Nem parece teu, zangares-te tanto. Talvez estejas, na verdade, a pre-
cisar de ir para casa.
Belle só lhe dissera que estava a considerar a possibilidade de voltar
para casa para impedir novas perguntas acerca dos motivos porque parecia
tão fechada. No entanto, nos dias que se seguiram, começou a pensar que
talvez fosse essa a solução para os seus problemas.
Não lhe parecia certo estar ali em França, tão perto dos dois homens
entre os quais se dividia. Tanto quanto sabia, eles próprios podiam estar
perto um do outro, embora fosse pouco provável. Ao fim e ao cabo,
mesmo que estivessem os dois em Ypres, a linha da frente estendia-se por
quilómetros, com dezenas de milhares de homens nas trincheiras. Mas isso
pouco importava, eles estavam ali, e ela estava ali. E sentia que tinha de se
distanciar de ambos.
Étienne ia com certeza voltar a aparecer. Não era do género de se pre-
ocupar com autorizações, passara uma vida inteira a infringir regras e a
usar estratagemas para sobreviver. Mas se ela já ali não estivesse, não teria
razões para se sentir tentado. Em casa, de regresso à normalidade da vida
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com Mog e Garth, seria capaz de pensar como devia ser e pôr fim àquela
loucura.
E era uma loucura. Como podia pensar sequer em deixar Jimmy? Ele
era o género de marido com que todas as mulheres sonhavam. E que sabia
ela, verdadeiramente, a respeito de Étienne? Podia ter-lhe salvado a vida
em Paris, mas quando o conhecera não passava de um bandido a soldo.
À luz fria do dia, pareceu-lhe que quando a guerra acabasse e Jimmy
voltasse a casa, era bem capaz de descobrir que ele era, afinal, o homem
que queria. Talvez Vera tivesse razão e o arrebatamento com Étienne
tivesse sido apenas um momento de desvario provocado pela morte de
Miranda.
Mas se continuasse a desejar Étienne no final da guerra, poderia ao
menos poupar a Jimmy a dor da sua infidelidade. Diria que chegara à con-
clusão de que já não o amava e sairia de casa. Não havia necessidade de o
ferir ainda mais com o conhecimento da verdade.
Nos dias que se seguiram, fez o seu trabalho com o mesmo empenho
de sempre. Continuou a ir às enfermarias ao fim da tarde, a ler para os ho-
mens que tinham cegado, ou a escrever cartas para os que não conseguiam
fazê-lo sozinhos. Depois, ela e Vera sentavam-se a conversar enquanto be-
biam uma caneca de cacau quente. Belle não queria discutir o seu dilema.
Vera não era tão rigidamente moralista como a maioria das mulheres ingle-
sas e compreendia que Belle se tivesse voltado para um velho amigo num
momento de desgosto, mas até ela ficaria chocada se soubesse toda a
verdade.
Por isso, falavam sobre os pacientes aos quais tinham acabado por
afeiçoar-se, sobre o grupo heterogéneo que os outros condutores form-
avam, sobre as suas antigas vidas. Belle adorava ouvir histórias da Nova
Zelândia, e Vera tinha um jeito muito especial para pintar quadros com pa-
lavras. Belle quase conseguia ver a casa dela, uma construção de madeira
pintada de branco com fachada dupla, perto do mar, onde os pais faziam
pão e bolos na loja das traseiras. Imaginava o calor dos fornos, o cheiro do
pão a cozer, o pequeno quarto no sótão com vista para o mar onde Vera
dormia.
– Os meus irmãos tinham o quarto das traseiras, e por vezes, à noite,
escapavam-se pela janela e desciam para o telhado da padaria para irem
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encontrar-se com os amigos sem a mã e o pá saberem – contou Vera, certa
vez. – Eram sempre apanhados, havia sempre alguém que no dia seguinte
dizia à mã que os tinha visto. Nunca compreendi porque é que o faziam;
nunca acontece nada em Russell, bem, além de os homens irem
embebedar-se para o pub. Mas, na altura, eles eram demasiado novos para
os deixarem lá entrar.
Os irmãos, Spud e Tony, estavam algures em França. Tudo o que Vera
recebia deles era um ou outro postal que lhe dizia ainda menos do que as
cartas de Jimmy para Belle. Vera estava muito contente por pertencerem
ambos à Engenharia, cujo trabalho consistia em estender linhas telefónicas,
escavar túneis e fazer outras coisas que mantinham o exército a funcionar.
Ainda que, pelo que Belle sabia, essas tarefas não fossem isentas de peri-
gos: as linhas telefónicas iam até à frente, onde tinham de ser constante-
mente reparadas.
Tinham passado três semanas desde a noite com Étienne. Belle tomara
a decisão de voltar para casa, e disse-o a Vera antes de fazer fosse o que
fosse para a concretizar.
– Tenho de ir – explicou. – Sei que é errado enganar o Jimmy, mas se
ficar aqui, o Étienne vai voltar a aparecer e não posso confiar em mim
mesma quando estou com ele.
O rosto de Vera como que se amarrotou.
– Não quero que vás – disse. – Vou ter muitas saudades tuas.
Belle ficou muito comovida e recordou como tinha dependido do
apoio de Vera naquelas últimas semanas.
– Então vem comigo. Eu podia mostrar-te Londres, e podíamos arran-
jar trabalho juntas. A Mog ia adorar ter-te lá em casa, e eu também.
Vera suspirou e pareceu ficar ainda mais acabrunhada.
– Quem me dera poder, mas com a Miranda morta e agora tu a ires-te
embora, quando começar a próxima grande ofensiva vai haver muita ne-
cessidade de condutores. Além disso, não me sentiria bem comigo mesma
se não estivesse cá para ajudar os meus irmãos, se eles precisarem de mim.
Podem pensar que são uns grandes homens, fortes e duros, mas para mim
são só os meus irmãozinhos.
– Não vejo outra saída senão voltar para casa – disse Belle,
tristemente. – Não faço outra coisa senão pensar no Étienne. Está nos meus
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pensamentos desde que acordo até que adormeço, à noite. Tudo aqui mo
recorda. Tenho de tentar salvar o meu casamento, e tenho mais probabilid-
ades de o conseguir em casa.
Vera assentiu com um movimento de cabeça.
– Então deves ir, Belle. Não sou perita nessas coisas, nunca estive
apaixonada, de modo que a minha opinião não vale nada. Mas pelo que me
contaste a respeito do Jimmy, parece ser um bom homem e tu eras feliz
com ele antes de o Étienne aparecer. Tenho a certeza de que quando est-
iveres em casa, tudo voltará ao seu lugar. Promete-me só que vais manter-
te em contacto. Não quero perder-te.

Belle tinha planeado desempenhar as suas tarefas habituais no dia


seguinte e ir falar com o capitão Taylor por volta das cinco da tarde. Mas,
como fazia todas as manhãs antes de começar a trabalhar, foi ver se havia
alguma carta para ela, e havia uma, de Mog.
Ver no sobrescrito a caligrafia que tão bem conhecia foi o suficiente
para a animar um pouco. Não recebera qualquer resposta a respeito do fa-
lecimento de Miranda, e além de querer saber se Mog tinha ido ao funeral,
também precisava do conforto das suas palavras maternais.
A carta começava, tal como esperava, com Mog a dizer-lhe como
ficara chocada e triste ao saber da morte de Miranda, bem como todos os
habitantes da aldeia. Mas então, quando estava à espera de que Mog lhe
sugerisse que voltasse para casa, a missiva adquiria repentinamente um
tom muito diferente que quase a fez sentir-se zonza de choque.

Se não me parecesse que talvez estivesses a pensar em voltar


para casa por causa de teres perdido a tua amiga, não te falaria
sequer do que está a acontecer por aqui. Por isso tenho de te
dizer, para que continues onde estás.
O tal homem, o Blessard, tem andado a despejar o saco a teu
respeito. Não se fala de outra coisa na aldeia. Deve ter descoberto
que a Miranda foi para França contigo, e quando soube da morte
dela, arranjou maneira de entrevistar a mãe.
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A morte da Miranda apareceu noticiada nos jornais antes de
eu receber a tua carta. Foi uma notícia igual a qualquer outra, a
respeito de como aconteceu o acidente e de como a família estava
inconsolável, acrescentando a data e a hora do funeral. Fiquei
horrorizada, claro, ao ler aquilo, mas sabia que tu ias escrever
imediatamente e que a tua carta com mais pormenores chegaria
em breve.
Por isso fui ao funeral. Estava lá muita gente e não tive opor-
tunidade de falar com Mrs. Forbes-Alton, mas algumas das amig-
as dela lançaram-me olhares que me fizeram sentir muito pouco à
vontade, como se não tivesse o direito de estar ali. Tinha a in-
tenção de escrever à família a apresentar as minhas condolências
logo que recebesse notícias tuas.
Então, um par de dias mais tarde, no mesmo dia em que re-
cebi a tua carta, alguém levou esse pedaço de lixo onde o
Blessard trabalha para o pub e mostrou-o ao Garth. O sujeito
tinha escrito um artigo acerca do acidente da Miranda e dizia que
ela tinha ido para França contigo. A dada altura, citava a mãe
como tendo dito: «Nunca estive de acordo com a ideia, mas ela
deixou-se convencer por Mrs. Belle Reilly. Não percebia porque
haveria uma mulher casada de querer ir para França conduzir
ambulâncias. Era tudo muito suspeito.»
Isto só por si já era suficientemente mau, Belle, mas então ele
foi desenterrar todas aquelas velhas histórias a respeito do julga-
mento do Kent, tudo enviesado de maneira a fazer-te ficar mal.
Finalmente, afirmava haver provas de que tinhas continuado a
trabalhar como uma «senhora da noite» em Paris até pouco antes
de teres regressado a Inglaterra e casado com o Jimmy.
Dava a entender, embora não o dissesse explicitamente, que
fora por isso que tinhas querido voltar a França.
O Garth, claro, rasgou o jornal e informou o homem que o
tinha levado de que era tudo pura fantasia. Telefonámos ao Noah,
e ele disse que não podemos processar o Blessard e o jornal por
calúnia porque ele não inventou nada, é tudo verdade, e que tudo
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o que ele fez foi apresentar as coisas de uma maneira que não é
simpática para ti.
Segundo o Noah, o que devemos fazer é manter um silêncio
digno e esperar que a tempestade passe, mas apesar de os clientes
habituais do pub parecerem não ter acreditado numa palavra de
tudo aquilo, tenho sido marginalizada pelas mulheres do grupo de
costura e não me sinto capaz de lá voltar.
Quase não tenho saído de casa à conta de tudo isto. Não
suporto pensar que as pessoas andam a murmurar a teu respeito.
Penso que talvez tenhamos de vender tudo e mudar para outro sí-
tio qualquer. Mas não podemos fazê-lo agora, com a guerra e
tudo isso, as coisas estão difíceis em todo o lado, e o Garth diz
que se formos embora vai parecer que somos culpados. Mas am-
bos estamos de acordo em que é melhor manteres-te afastada, por
enquanto. Suponho que podias ir para casa da Annie. Fui vê-la
para falar do assunto, mas ela foi tão fria como sempre, mais pre-
ocupada com o negócio do que contigo.
Oh, querida Belle! É tão horrível ter de te dizer estas coisas.
E tão injusto, também, estando tu longe e eu sem poder abraçar-te
e prometer-te que em breve tudo se há de resolver. Esse Blessard
devia ser enforcado, mas o Garth não pode tocar-lhe sem arranjar
mais problemas. Aquele polícia simpático, Mr. Broadhead, está
do nosso lado, já disse a um par de coscuvilheiras que tudo isto
não passa de uma vingança e que deveriam ter vergonha por
acreditar nestas mentiras. Quem dera que houvesse mais pessoas
como ele.
Escreve em breve, e tem cuidado contigo. Tu e o Jimmy estão
sempre no nosso coração e nos nossos pensamentos. Desculpa ser
portadora de más notícias numa altura em que já deves estar tão
triste. Não tenho coragem para falar disto ao Jimmy, que já tem
mais do que o suficiente com que se preocupar neste momento.
Com muito amor, Mog
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Para Belle, foi como se se lhe tivesse aberto um alçapão debaixo dos
pés e estivesse a cair num fossa escura. Esquecera completamente Blessard
quando saíra de Inglaterra e nem por um instante pensara que ele voltasse a
incomodá-la. Como fora estúpida! O homem estivera apenas alapado de-
baixo de uma pedra qualquer, à espera de uma oportunidade de voltar a
aparecer. E Mrs. Forbes-Alton dera-lhe essa oportunidade.
Por muito mau que fosse as pessoas andarem a falar da vida dela, era
Mog que na verdade a preocupava. Esforçara-se tanto por conquistar o re-
speito da aldeia, e agora devia estar com medo e desmoralizada.
Sentia que tudo aquilo era um castigo pelos seus erros.
Conseguiu, sem saber muito bem como, aguentar o dia sem se ir
abaixo, mas quando voltou à cabana nessa tarde, Vera esperava-a
ansiosamente.
– O capitão Taylor ficou zangado contigo? – perguntou.
– Não falei com ele. Não vou voltar para casa – respondeu Belle.
– Porquê? Por causa do Jimmy?
Sally e as outras duas raparigas estavam a mudar de roupa, e todas elas
se voltaram para olhar para ela.
Belle inclinou a cabeça na direção da porta. Mal conseguia conter as
lágrimas e não queria que as outras a vissem chorar.
Vera saiu com ela e foram as duas sentar-se num banco perto de uma
das enfermarias.
– Então, vá lá, conta-me – pediu Vera, impaciente. – É porque o
Étienne vem cá ver-te?
– Não, não tem nada que ver com ele – respondeu Belle. – A Mog diz
que é melhor eu ficar porque correm alguns rumores muito feios a meu
respeito.
Vera olhou para ela com uma expressão confusa, e Belle percebeu que
tinha cometido um erro. Devia ter dito que Mog estava doente, tudo menos
a verdade, porque agora ia ter de explicar.
– Estive envolvida numa coisa horrível quando era muito mais nova –
disse. – Alguém foi desenterrar essa história e anda a espalhá-la.
Fora fácil falar a Miranda da sua vida anterior por causa de tudo o que
tinham passado juntas, mas apesar de ter feito a viagem desde a Nova
Zelândia para ir conduzir ambulâncias em França, Vera não era
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exatamente um paradigma de sofisticação e experiência do mundo. Por
isso, contou-lhe apenas uma versão abreviada da história, mas nem mesmo
assim conseguiu impedir-se de chorar.
– Suponho que não vais querer continuar a ser minha amiga – disse,
entre soluços. – Pensava que tudo isto tinha ficado para trás, e que tinha
compensado os meus erros trabalhando no hospital em Inglaterra e vindo
para aqui. Mas estava enganada, não estava? As mulheres caídas não têm
emenda possível. Se calhar foi por isso que não consegui resistir ao
Étienne.
Vera envolveu-a nos braços e apertou-a com força.
– Estou chocada – admitiu. – Mentiria se dissesse o contrário. Mas o
que me espanta é teres passado por tudo isso e teres conseguido continuar
a ser tão boa pessoa. E claro que continuo a querer ser tua amiga. Tudo o
que me disseste só serviu para revelar ainda mais a tua profundidade. Uma
pessoa fraca ter-se-ia desmoronado, ter-se-ia permitido ser uma vítima para
sempre. Tu lutaste, e eu admiro isso.
O sol já desaparecia e estava a ficar frio, mas Vera não sugeriu que
fossem para dentro. Continuou a abraçar Belle e deixou-a chorar.
– Agora compreendo isso do Étienne – disse, numa voz muito baixa. –
E outras coisas em ti que muitas vezes me deixaram intrigada. Quando
chegaste com a Miranda, pensei que eram as duas iguais, filhas de boas
famílias que queriam experimentar qualquer coisa fora do seu mundozinho
privilegiado. A Sally fez um par de comentários sarcásticos a vosso re-
speito que davam a entender que não pertenciam à nata. Não sendo inglesa,
não o reconheci imediatamente. Mas o que vi, e isso muito cedo, foi que tu
é que tinhas o coração, a coragem e a vontade. Gostava da Miranda, mas
eras tu que eu queria verdadeiramente conhecer. Fazes-me lembrar algu-
mas mulheres que a minha mãe conhece, as pioneiras que chegaram à
Nova Zelândia e construíram uma boa vida para si mesmas à custa de tra-
balho duro e determinação. Vais ficar bem, Belle. És feita de boa massa.
Seja o que for que a vida te atire à cara, saberás aguentar.
– São palavras muito bonitas. – Belle fungou, a engolir as lágrimas. –
Mas, graças ao meu passado, estraguei a vida à Mog e ao Garth. E o
Jimmy? O que é que lhe vou fazer a ele?
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– Não podes ser responsável pela felicidade de toda a gente. – Foi o
que a minha mãe disse aqui há uns anos, quando a irmã estava a passar por
tempos difíceis e esperava que ela lhe resolvesse os problemas. Talvez des-
cubras que o Jimmy é o único homem para ti, ou talvez não. Talvez a Mog
e o Garth descubram que têm de mudar para outro sítio, ou talvez as pess-
oas acabem por esquecer. Uma coisa que devíamos ter aprendido com esta
guerra é que não podemos prever seja o que for. É só o destino.
– És muito sábia – disse Belle.
– E também estou muito gelada – respondeu Vera. – Vamos ver se há
alguma coisa que se coma na cantina e beber um cacau bem quente.
CAPÍTULO 19

–A única coisa boa de estar muito ocupada é não termos tempo para
ficar a remoer as coisas – disse Belle a Vera enquanto comiam
uma sanduíche e bebiam uma chávena de chá entre duas viagens à estação.
Estava-se a meio da noite. Os comboios que transportavam os feridos
tinham começado a circular à noite, por causa dos bombardeamentos. A
aviação alemã visava em particular as vias-férreas, numa tentativa de de-
sorganizar os serviços e as linhas de comunicação, e não tinha escrúpulos
em atacar feridos e doentes. Por isso, agora as ambulâncias só saíam de-
pois do escurecer, sem luzes, o que tornava a tarefa ainda mais difícil
naquelas estradas esburacadas e cheias de curvas.
Além disso, tinha recomeçado a chover. As pessoas diziam que aquele
era o verão mais frio e chuvoso de que havia memória, e não seria Belle,
que recordava as sufocantes noites de verão em Seven Dials, quando era
criança, e o calor húmido de Nova Orleães, a contestar a afirmação.
O rosto sardento de Vera rasgou-se num sorriso.
– Pode ser que trabalhar te dê jeito, mas eu gostava de ter tempo para
lavar a cabeça e escrever para casa – disse. – Sei que estou de meter medo,
e a mã vai ficar frenética se não receber notícias minhas em breve.
Belle não duvidava de que também ela estava de meter medo; há muito
que deixara de se preocupar com o seu aspeto.
– Já não sei o que dizer nas cartas – confessou, com um suspiro. – Que
está outra vez a chover e que temos de patinhar nas poças para chegar às
ambulâncias? Já o disse não sei quantas vezes. Que a comida é tão má
como sempre foi e que quase nunca temos uma folga? Não tem ponta de
interesse, e também já o disse. Quanto aos feridos, a única diferença é que
agora vêm mais carregados de lama. Talvez gostassem de saber lá em casa
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que o número de baixas em Ypres é quase tão elevado como foi no
Somme, mas não consigo sequer pensar em homens a afogarem-se em
crateras de bombas, quanto mais escrever a esse respeito.
A terceira batalha de Ypres começara a 31 de julho, precedida por um
bombardeamento que durara quinze dias e durante o qual tinham sido dis-
parados quatro milhões de granadas. O estrépito dos canhões era tão forte
que se dizia que podia ser ouvido em Inglaterra, e no hospital a sensação
que dava era que estavam a ser disparados a poucos quilómetros de
distância.
Chegaram notícias de que na manhã do dia 31 o tempo estava seco,
embora a terra estivesse revolvida e esburacada por dois anos de bom-
bardeamentos. Segundo os relatos, a infantaria, acompanhada por cento e
trinta tanques, fizera bons progressos em direção ao planalto de Gheluvelt,
a sudeste de Ypres. Era considerado importante conquistar esta posição aos
Alemães porque o terreno ligeiramente elevado proporcionava bons pontos
de observação sobre as terras baixas circundantes.
Mas então, durante a tarde, os Alemães tinham contra-atacado com um
fogo de artilharia tão cerrado que a vanguarda da Força Expedicionária
Britânica tivera de fugir. Como se isso não bastasse, uma chuvada torren-
cial súbita dera uma consistência de papa ao solo já ensopado. Novas di-
visões tinham sido lançadas para a batalha, mas continuara a chover sem
parar durante os três dias seguintes. As linhas de comunicação foram corta-
das, os homens afogavam-se nas crateras deixadas pelos rebentamentos, os
tanques afundavam-se na lama, as mulas e os cavalos não conseguiam
avançar, e nesse ponto o general Haig mandara cessar a ofensiva.
O total das baixas, incluindo os soldados franceses, foi estimado à
volta de trinta e cinco mil, e calculou-se que os Alemães tinham tido um
número igual de mortos.
A primeira vaga de feridos chegara a 1 de agosto, e a partir desse dia
os números tinham crescido regularmente. Belle não tinha meio de saber se
Jimmy e Étienne ainda estavam vivos, tal como Vera não sabia dos irmãos.
Tinham de obrigar-se a acreditar que a ausência de notícias era um bom
sinal.
Mas as histórias que os feridos contavam a respeito das condições em
Ypres eram da matéria de que os pesadelos são feitos. Aqueles feridos
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eram os afortunados, os que tinham conseguido manter-se fora dos buracos
cheios de água até serem recolhidos pelos maqueiros. Alguns contavam
como tinham tentado arrancar um amigo à lama que o sugava, só para o
verem voltar a escorregar para trás e desaparecer.
Embora Belle, Vera e os outros condutores não tivessem, nem
pudessem ter, uma verdadeira compreensão do panorama geral e de qual
era o plano de Haig, tudo aquilo lhes parecia fazer tão pouco sentido como
a batalha do Somme: um número esmagador de baixas para conquistar al-
guns metros, só para voltar a perdê-los mais tarde num contra-ataque
alemão.
Nos postos de socorros da frente e nos comboios, as enfermeiras
esforçavam-se ao máximo por desembaraçar os feridos da lama que os
cobria e vestir-lhes batas de hospital, mas mesmo assim muitos homens
chegavam à estação envoltos numa autêntica carapaça de barro. Era por
isso que Belle e Vera não tinham tempo para lavar a cabeça ou escrever
para casa, porque mal acabavam de transportar os últimos feridos para o
hospital, iam para as enfermarias ajudar também lá. As enfermarias per-
manentes estavam cheias a transbordar, pelo que tinham sido montadas
dúzias de grandes tendas para receber o excedente. Muitos dos médicos e
enfermeiras mantinham-se a trabalhar quarenta e oito horas seguidas.
– O capitão Taylor quer que amanhã nós as duas levemos até Calais os
homens que têm bilhete para Inglaterra – disse Vera, enquanto engolia o
resto da sanduíche. – Suponho que isso significa que vêm ainda mais a
caminho nos comboios.
– Bem, espero que sejamos as últimas a saber. Mas agora temos de
voltar à estação. Não há sossego para os malvados.
– Ultimamente não tens falado de tu sabes quem – comentou Vera, en-
quanto se encaminhavam para as ambulâncias.
– Tento não pensar nele – respondeu Belle. – Mas não sou muito bem-
sucedida.
Vera pousou-lhe a mão no braço e apertou-lho; era a sua maneira de
dizer que compreendia.
– Amanhã compramos uma garrafa de qualquer coisa em Calais e
apanhamos uma de caixão à cova quando voltarmos. Talvez nos faça es-
quecer as pessoas que amamos durante uma ou duas horas.
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A caminho da estação, Belle pensou na sugestão de Vera. David ia
meio a dormir; como tantos outros, também ele ajudava nas enfermarias
durante o dia. Todo o pessoal do hospital estava exausto, não só devido às
longas horas de trabalho mas também ao horror que testemunhavam diaria-
mente e para o qual não havia fim à vista. Ela e Vera não eram as únicas a
ter na frente pessoas que amavam; quase toda a gente tinha alguém com
quem se preocupar. E depois havia as famílias em casa a debaterem-se
com a escassez de comida e os bombardeamentos, a temerem pelos que es-
tavam em França e a perguntarem-se se alguma vez a vida voltaria a ser o
que fora antes da guerra.
As cartas de Mog tinham-se tornado muito diferentes desde que os
comentários de Blessard tinham aparecido na imprensa. Em vez de mexeri-
cos, passara a escrever a respeito de fazer geleia ou compota de fruta, ou
de no domingo ter ido dar um passeio com Garth pelo campo. Esforçava-se
muito por parecer alegre, mas era evidente que se fechara em si mesma.
A culpa e o remorso roíam Belle, pelo passado que pusera uma nuvem
tão negra sobre a cabeça de Mog e pela sua infidelidade a Jimmy. Ele es-
crevia sempre que podia, mas também nas suas cartas havia cansaço.
Quanto a Étienne, a inabalável e otimista convicção de que um dia poderi-
am ser felizes era muitas vezes assustadora, porque Belle sabia que
qualquer felicidade com ele seria sempre à custa da infelicidade de outros.
Dissera-lhe, em todas as cartas que lhe escrevera, que nunca poderia ser
tão simples como ele julgava. E ele dizia em resposta que estava preparado
para esperar todo o tempo que fosse preciso.
Parecia a Belle que estava sempre à espera. À espera na fila de ambu-
lâncias para carregar os feridos, à espera de cartas, à espera de que aca-
basse uma guerra que parecia interminável, à espera de que nascesse uma
manhã em que ela acordasse a não desejar tanto Étienne que até doía.

Étienne estava sentado a limpar a espingarda, de manhã cedo, abrigado


da chuva por uma tenda improvisada, quando lhe chegou aos ouvidos o
som de vozes que falavam inglês. Aquela era a primeira batalha em que o
seu regimento ia combater ao lado dos Tommies. Tinha um enorme re-
speito pela capacidade dos Britânicos de aguentar tudo o que lhes
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atirassem para cima; lutavam tenaz e corajosamente e mostravam muito
menos sinais do cansaço e da apatia que estavam a afetar tantos soldados
franceses.
Julgara ter visto Jimmy Reilly de relance, na noite anterior, a levar
uma maca para um posto de primeiros socorros, mas dissera a si mesmo
que só podia ser o seu cérebro a pregar-lhe partidas, pois o que menos de-
via faltar entre os Ingleses era homens altos e ruivos. No entanto, o
pensamento persistira, e deu por si a apurar o ouvido numa tentativa de
perceber o que estava a ser dito.
As palavras que apanhava, aqui e ali, não tinham qualquer significado
para ele, eram apenas conversa entre soldados, e perguntou a si mesmo de
que lhe serviria saber que Jimmy estava perto. A resposta foi que seria uma
distração que dispensava. Belle já era distração suficiente; a recordação
dela perseguia-o a toda a hora, e se fechava os olhos por um segundo que
fosse via os seus caracóis escuros a emoldurarem-lhe o rosto adorável, os
olhos azuis límpidos a sorrirem-lhe e os lábios túrgidos à espera de serem
beijados.
Havia momentos em que se arrependia de ter ido procurá-la ao hospit-
al; se não tivessem tido aquela noite juntos, ela não teria agora de carregar
o peso da culpa. Detestava-se a si mesmo por tê-la colocado numa posição
tão insustentável, e ao mesmo tempo desejava-a tanto que se sentia com-
pelido a manter a pressão.
Pôs-se de pé, embrulhou-se na capa impermeável e observou a cena
que o rodeava. Manchas de lama espessa e pegajosa circundavam cada
uma das tendas ensopadas em água. O desconforto e a esqualidez de tudo
aquilo refletiam-se nos rostos dos homens que fumavam um cigarro,
tentavam fazer a barba, bebiam café morno, escreviam uma carta ou
limpavam uma arma. Todos eles quase tinham esquecido como era estar
limpo e seco, comer uma refeição quente sentados a uma mesa ou dormir
numa cama quente. Mais tarde, nesse mesmo dia, ele e todos aqueles ho-
mens avançariam para o Inferno da Terra de Ninguém, onde as explosões
dos obuses revolveriam os cadáveres dos que, de um e do outro lado, tin-
ham tombado e ficado enterrados na lama, na estupidez assassina de outros
ataques. O fedor da morte, o estrondear enlouquecedor das barragens de
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artilharia, o terror de saber que aquele dia podia ser o último… era esse o
quinhão dos soldados.
Quando tinha vinte anos, Étienne gostava de uma boa luta. Mas esmur-
rar a cara ou o estômago de um homem com o qual se tinha uma desavença
era uma coisa; ali era matar ou ser morto. Tinha visto de perto alemães su-
ficientes para saber que eram rapazes, iguais aos que ele próprio coman-
dava. Não havia satisfação em ver um homem gritar de dor quando uma
bala o atingia. Nas ocasiões em que chegara a um bunker alemão e fora
confrontado com rapazes aterrorizados a gritar «Nicht schiesen», sentira o
estômago revolto. Quando a guerra acabasse, quantos dos soldados que ali
estavam reviveriam vezes sem conta nos seus pesadelos aquelas imagens
grotescas?

Às duas da tarde, o apitou soou, e Étienne e os seus homens saltaram


da trincheira para a Terra de Ninguém, até certo ponto protegidos pela
artilharia pesada que, atrás deles, martelava as linhas inimigas. Foi uma
tortura desde o início. As mochilas que carregavam às costas pesavam
cerca de trinta e seis quilos, alguns dos homens levavam também uma pá, e
o peso adicional fazia-os enterrarem-se na lama até aos joelhos. Cada
passo exigia um grande esforço para levantar do chão o pé que estava a ser
sugado pelo atoleiro, e a cortina de chuva não deixava ver fosse o que
fosse a mais de meia dúzia de metros. Étienne sabia que era suposto haver
dez homens por cada metro de frente e, em teoria, depois de um bom-
bardeamento tão prolongado, e se conseguissem avançar a direito até às
linhas inimigas, a força dos números seria o suficiente para tomarem e
manterem a posição.
Mas a teoria não tivera em conta que um quilómetro se transformava
em quatro ou cinco quando se era obrigado a serpentear por entre as
enormes crateras cheias de água. E então as granadas começaram a cair
antes que tivessem percorrido trinta metros. Não havia onde se abrigarem,
não restava uma árvore nem um edifício de pé naquele lugar amaldiçoado
por Deus. Só, aqui e ali, um tronco despido de casca e de folhas, erguido,
calcinado e espectral, como um monumento à devastação.
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Quando explodiam, as granadas atiravam para o ar jorros de água
lamacenta que subiam a dez ou mais metros de altura, como grandes
géisers, reduzindo ainda mais a visibilidade. Era praticamente impossível
manter o sentido de orientação; Étienne viu soldados ingleses que se tin-
ham perdido misturados com os seus homens, e havia sem dúvida outros
tantos franceses misturados com os ingleses.
Fez uma pausa para indicar aos que se tinham atrasado que não se
deixassem ficar para trás, e esperou – enquanto os via chafurdar na lama –
que não tivessem esquecido a última ordem que lhes dera antes de
avançarem: certificarem-se de que mantinham os fósforos secos. Alguns
dos mais novos tinham trocado olhares de perplexidade ao ouvi-la, mas
haviam de perceber a razão mais tarde. A única coisa pior do que ficar en-
curralado e ferido na cratera de uma granada era dar por si nessas circun-
stâncias e impossibilitado de acender um cigarro.
Quando se voltou para olhar para os seus homens e viu o número de
Tommies que avançavam na sua direção, compreendeu que quando
chegassem às linhas alemãs, os dois exércitos se teriam fundido um no
outro. Uma granada explodiu, e Étienne viu dois dos seus homens serem
projetados para o ar e desmembrarem-se antes de voltarem a cair na sopa
pastosa em que o terreno se transformara. Mais uma explosão, e um
Tommy teve a mesma sorte.
Já sem a certeza de estar a seguir uma linha reta, mas capaz de ver at-
ravés da chuva que dois alemães com uma metralhadora alvejavam ho-
mens como se estivessem numa carreira de tiro, deteve-se por um instante
para disparar contra eles. Teve alguns segundos de sombria satisfação ao
vê-los tombar para cima da arma. Então, olhando novamente em redor, viu
que já nenhum dos seus homens o seguia; só Tommies, a avançar com uma
determinação de buldogues para as linhas alemãs.
Tinha sobrevivido ao horror de Verdun e estivera também nas fases
finais da batalha do Somme, e fora por causa daquilo que na altura era
referido como «assinalável coragem», ao salvar o seu comandante de com-
panhia – que fora ferido – que o tinham promovido a sargento. No entanto,
por muito terríveis que aquelas batalhas tivessem sido, aquela parecia-lhe
muito pior. A combinação de um terreno escorregadio e empapado, chuva
torrencial e buracos infernais cheios de água fétida, e muitas vezes de
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corpos e pedaços de corpos, tornava difícil fazer qualquer verdadeiro pro-
gresso. Ao dar por si sozinho com obuses a explodir à sua volta, fez uma
pausa ao abrigo da carcaça de um tanque meio enterrado, na esperança de
que o resto da secção o alcançasse e pudessem continuar juntos. Enquanto
esperava ia disparando, visando um a um os alemães que faziam fogo con-
tra os homens que corriam para eles. Uma bala perdida atingiu-o no braço,
mas mesmo assim continuou a disparar até conseguir matá-los ou obrigá-
los a agacharem-se para se abrigarem.
Um soldado inglês passou por ele a correr, tão perto que teve de parar
de disparar para não o atingir. O soldado escorregava na lama, e então
caiu, e quando caiu o capacete saltou-lhe da cabeça e revelou uma
cabeleira ruiva.
O instinto disse a Étienne que aquele era o mesmo homem que vira na
noite anterior e que pensara ser Jimmy. Enquanto olhava, a considerar a
hipótese de ir ajudá-lo, rebentou uma granada no pedaço de terreno que os
separava.
Por um instante, pensou que tinha ficado cego em consequência da ex-
plosão, porque não via nada. Mas apesar de sentir a ferida no braço, não
tinha dores na cara. Tateou-a cuidadosamente, e percebeu que ficara apen-
as coberta por uma espessa camada de lama. Procurou o cantil que levava à
cintura e lavou os olhos. Para seu grande alívio, recuperou a visão.
Já o homem ruivo não tivera tanta sorte. Contorcia-se à beira de uma
cratera, com a perna e o braço esquerdo transformados numa massa san-
guinolenta. Quando tentou mexer-se, Étienne viu-lhe a cara. Era Jimmy
Reilly.
Tinham sido muitas as noites em que aquele homem se insinuara nos
seus sonhos. O sonho era sempre o mesmo: ele e Jimmy de um lado, Belle
do outro. Ele olhava de um rosto suplicante para o outro, e não sabia o que
fazer. Tentava fugir deles, só para descobrir que não se conseguia mover.
Aquele sonho parecia-lhe agora profético. E, tal como no sonho, não
sabia o que fazer.
Gostara de Jimmy quando o conhecera em Verdun e o seu instinto era
correr a ajudá-lo. Mas então a imagem de Belle perpassava-lhe pela
cabeça, e sabia que aquilo podia ser a resposta para o dilema dela. Se o
deixasse ali, o homem morreria devido à perda de sangue; ou talvez outra
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granada acabasse com ele antes disso. E então nada nem ninguém se inter-
poria entre os dois.
Mas enquanto olhava, viu Jimmy começar a escorregar em direção à
cratera cheia de água fétida. Tinha a mão levantada, a mexer desesperada-
mente os dedos à procura de qualquer coisa a que se agarrar.
Foi aquela mão que o decidiu. Tinha-a apertado naquele dia, perto de
Verdun. Não era capaz de deixar um homem afogar-se à sua frente, sobre-
tudo um homem de quem gostava.
Uma outra granada explodiu ali perto, e Étienne saltou para a frente e
agarrou a mão de Jimmy, puxando-o para fora do buraco. Jimmy tinha a
cara coberta de lama, e estava tão apanhado na sua dor que pareceu não se
aperceber da presença dele. Étienne olhou em redor. Parecia que a vaga de
assalto tinha passado; não havia sinal de qualquer dos seus homens. Havia
muitos outros, franceses e ingleses, mortos ou feridos, espalhados por todo
o lado, mas o bombardeamento era ainda demasiado intenso para permitir
aos maqueiros aproximarem-se e recolher os caídos.
Uma das regras era que nenhum soldado podia parar a meio de um
ataque para ajudar um camarada; a ordem era continuar a avançar para as
linhas alemãs e fazer o que tinha de ser feito. Jimmy já não morreria
afogado, mas podia ser atingido por outra explosão.
Étienne hesitava. Como sargento, o seu dever era encontrar os seus ho-
mens e continuar a liderá-los. Mas a imagem do desespero de Belle era de-
masiado forte para lhe permitir abandonar Jimmy à sua sorte. Imaginou os
olhos dela cheios de lágrimas, e soube que mesmo que isso significasse re-
mover o único obstáculo que o impedia de tê-la só para si, não conseguiria
suportar na consciência o peso de ter abandonado à morte o marido dela.
Olhou freneticamente em redor, à procura de um maqueiro a que
pudesse fazer sinal, mas não viu nenhum. Limpou então o melhor que
pôde a lama que cobria a cara de Jimmy e disse:
– Estou aqui, Jimmy. Estás muito ferido, mas acho que consigo levar-
te até às nossas linhas.
Jimmy ergueu para ele os olhos embargados pela dor.
– Não podes ajudar-me – rouquejou. – Vais arranjar problemas, e eu
estou arrumado de qualquer dos modos.
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– Deixa que seja eu a preocupar-me com isso – respondeu Étienne. –
Vai doer como o diabo quando pegar em ti, mas não posso deixar-te aqui.
Étienne pousou a mochila no chão e levantou Jimmy até ele ficar apoi-
ado na perna sã. Jimmy estava à beira de perder os sentidos, de modo que
Étienne encostou o ombro à barriga dele e deixou-o cair para a frente, do-
brado ao meio. Conseguiu apanhar a espingarda, endireitou-se e começou a
caminhar em direção às linhas aliadas.
Já fora suficientemente difícil chegar até ali sozinho, mas vergado sob
peso morto que carregava ao ombro, a abrir caminho pelo mar de lama e
com obuses a explodir por todo o lado, era quase impossível. Mas não
parou, com todos os músculos e tendões doridos do esforço. A dada altura,
quando quase caiu de lado numa cratera cheia de água, perguntou a si
mesmo porque estava a fazer aquilo.
Faltavam cerca de duzentos metros para chegar às trincheiras quando
apareceram os primeiros maqueiros franceses.
– Vais ficar bem, Jimmy – disse, enquanto os homens se aproxim-
avam. – Agora tenho de deixar-te e voltar para junto dos meus homens.
Os maqueiros pegaram em Jimmy e estenderam-no numa maca.
– Prenez bien soin de lui – disse Étienne. – Son nom est James Reilly.
Quando chegaram à trincheira e outros homens acorriam para ajudar,
os maqueiros olharam para o salvador do inglês. Sabiam que também es-
tava ferido, tinha um rasgão na manga do dólman e o sangue escorria-lhe
para a mão. Mas ele corria a toda a velocidade, saltando por cima das crat-
eras e contornando os obstáculos em direção às linhas alemãs. Abanaram a
cabeça, espantados.
– Il doit être fou – disse um deles.

– Como se chama o homem que me trouxe até aqui? – perguntou


Jimmy algum tempo mais tarde, depois de lhe terem dado morfina para as
dores. Só conseguia recordar fragmentos do que tinha acontecido. Mas
sentia que conhecia a cara do homem e que ele o tinha tratado por Jimmy.
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– Je suis française – disse a enfermeira, e encolheu os ombros como se
aquilo encerrasse a questão.
– Era francês – insistiu Jimmy. O homem que tinha falado com ele em
inglês, mas usava o uniforme azul dos franceses. Mas era demasiado difícil
fazer qualquer esforço adicional para levar a enfermeira a compreendê-lo,
porque o seu cérebro estava a ficar cada vez mais enevoado.

Mais tarde, voltaram a deslocá-lo. Ouviu alguém dizer Hôpital de


Campagne, o que lhe pareceu significar hospital de campanha. As dores
voltaram com as sacudidelas enquanto estava a ser transportado numa am-
bulância com outros homens, e tencionava perguntar como estavam os
seus ferimentos, mas deram-lhe outra injeção antes que pudesse fazê-lo e
então ficou demasiado sonolento para querer saber.
Era de dia quando voltou a acordar, e estava num lugar que parecia um
celeiro com toscas paredes de pedra. À luz que entrava por duas pequenas
janelas, viu que estavam talvez outros vinte homens com ele.
Tinha muita sede e tentou levantar-se, mas, para seu horror, descobriu
que o braço esquerdo tinha desaparecido; havia apenas um coto envolto em
ligaduras onde antes estivera o cotovelo. Uma enfermeira viu que ele es-
tava a tentar mexer-se e aproximou-se, levando um dedo aos lábios para
lhe indicar que não fizesse barulho. Ajudou-o a sentar-se e a beber água, e
foi só quando ele olhou para baixo que viu que havia apenas um vulto e
não dois debaixo das mantas.
– Tiraram-me um braço e uma perna? – perguntou, a apontar para o
lugar onde tinham estado os seus membros.
A enfermeira anuiu, e deu uma palmadinha na mão que lhe restava.
Jimmy voltou a deitar-se depois de beber, fechou os olhos e tentou
dizer a si mesmo que aquilo não passava de um pesadelo. Tanto a perna
como o braço continuavam onde sempre tinham estado, até era capaz de
agitar os dedos. Mas quando fez deslizar a mão por baixo das mantas, en-
controu apenas uma perna, do lado direito. E também não conseguia mexer
o braço esquerdo.
A morder os lábios para não chorar, ficou ali deitado a ouvir os gem-
idos dos outros feridos. Não ouvia o estrondear dos canhões: se era por
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estar em curso uma trégua ou por o terem levado muito para trás das linhas
não fazia ideia. Ouvia o tamborilar da chuva lá fora. Parecia que não
parava de chover havia semanas. Agora ia de certeza conseguir o seu bil-
hete para Inglaterra, mas como podia ele voltar a casa transformado num
inválido?
Não poderia ajudar o tio no pub. Sem um braço, ou até sem uma perna,
talvez tivesse conseguido adaptar-se, mas sem os dois, que hipóteses lhe
restavam? E Belle? Para que o quereria ela naquele estado?
CAPÍTULO 20

B elle e David estavam a lavar a ambulância, ao fim do dia, quando


viram o capitão Taylor aproximar-se.
– Reilly! – ladrou o capitão. – Vá ao meu gabinete quando acabar o
que está a fazer.
Belle olhou para David enquanto o oficial se afastava.
– O que foi que eu fiz? – perguntou.
– Talvez te vá dar uma licença – sugeriu ele.
– Não me parece, há muitas outras pessoas que estão cá há mais tempo
do que eu. Além disso, neste momento precisamos de toda a gente.
– Bem, nesse caso o melhor é ires ver o que ele quer. Eu acabo isto.
Belle dirigiu-se apressadamente ao gabinete do capitão,
desembaraçando-se da bata e da boina pelo caminho. Pela porta aberta, viu
Taylor sentado à secretária, mas hesitou, sem saber se devia ou não entrar.
Felizmente, ele olhou na direção dela.
– Entre e sente-se – disse. – É melhor fechar a porta.
O tom não foi zangado, mas Taylor parecia perturbado enquanto en-
direitava a almofada mata-borrão, enroscava a tampa do tinteiro e puxava
pelo colarinho.
– Não vou pôr-me com rodeios – disse por fim. – Lamento, mas tenho
más notícias. Recebi um telefonema a dizer que o seu marido foi ferido em
Ypres, há já vários dias.
Belle arquejou e empalideceu. Aquilo era a última coisa de que estava
à espera.
– Ficou muito mal? – perguntou.
O capitão inclinou-se para ela e, quando respondeu, foi numa voz mais
suave.
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– Receio que tenha perdido um braço e uma perna.
Os olhos de Belle encheram-se de lágrimas. Devia ter visto mais de
cem homens mutilados daquela maneira, e o seu coração sofrera por todos
eles. Mas estavam ali a falar do seu Jimmy, não de um estranho que se en-
contrasse de passagem.
– Lamento muito, Mrs. Reilly. Dar notícias destas nunca é fácil, mas a
um elemento da minha equipa é ainda pior. Tenho também de avisá-la de
que dentro de um ou dois dias receberá uma carta a informá-la de que o
seu marido está dado como desaparecido em combate, presumivelmente
morto. Deve ignorá-la, uma vez que foi enviada antes de se saber que ele
estava num hospital.
Belle limitou-se a olhar para ele, sem saber o que dizer.
– É que veio a saber-se que tinha sido recolhido por um soldado
francês, durante um ataque – explicou o capitão. – Carregou o seu marido
às costas até às linhas francesas, salvando-lhe quase de certeza a vida. Mas
o hospital de campanha francês para onde o mandaram não transmitiu ime-
diatamente essa informação, e daí a confusão. Esta manhã, no entanto,
quando se soube o que tinha acontecido, o comandante dele telefonou-me a
explicar a situação e pediu-me que a preparasse.
– Um francês salvou-o? – perguntou Belle, enquanto limpava os olhos
com um lenço.
– Sim. É estranho. Na verdade, os Franceses são conhecidos pela sua
coragem em combate, mas não por salvarem os nossos feridos. O regi-
mento do seu marido estava ao lado do setor da frente ocupado pelos
Franceses, e foi-me dito que, na confusão da batalha, é muito comum os
soldados perderem-se e misturarem-se com os de outras unidades.
– O meu marido vai ser mandado para cá?
– Penso que sim, mas não tenho a certeza. Pedi, é claro, que fosse.
– Agradeço-lhe. – Belle pôs-se de pé. Queria afastar-se do capitão
Taylor antes de se ir completamente abaixo.
– Dir-lhe-ei em que enfermaria está, logo que ele chegue. Lamento
muito, Mrs. Reilly.
Taylor era por natureza frio e seco, mas só a maneira como a tratava
por Mrs. Reilly em vez do habitual Reilly era prova suficiente de que tinha
pena dela e queria transmitir-lhe a sua solidariedade.
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– Obrigada, senhor – disse Belle, e saiu do gabinete.
Uma vez no exterior, sentiu-se atordoada. Quando Jimmy se alistara,
vivera num sobressalto constante, mas, depois de ele ter sido ferido no
Somme, supunha que acabara por comprar a ideia de que mais nenhum
mal poderia suceder-lhe. Além disso, que ela soubesse, ele não voltara a
estar na frente desde então. Não parecia pura e simplesmente possível que
tivesse perdido um braço e uma perna; era demasiado horrível para
imaginar.
Aturdida e a sentir-se fraca em consequência do choque, meteu por
uma passagem entre duas enfermarias rumo à vedação de arame.
Os dias de Jimmy como soldado tinham chegado ao fim, mas não era
assim que era suposto acabar. Em tantas das suas cartas, ambos escreviam
a respeito do que aconteceria a seguir. Houvera o sonho cor-de-rosa de
uma pensão junto ao mar, e Jimmy falara muitas vezes de lugares em
Inglaterra que gostaria de visitar – o Lake District, os Norfolk Broads e o
Devon –, quase sempre por ter conhecido alguém de um desses sítios.
Agora não iam poder fazer nenhuma dessas coisas. Mal ele estivesse
capaz de viajar, mandá-lo-iam para casa, e Belle assumia que iria com ele.
Não conseguia sequer começar a imaginar como iriam viver no Railway;
ele nunca conseguiria subir e descer as escadas, quanto mais voltar a tra-
balhar no pub. Ela podia ter ligado ferimentos, lavado e alimentado pa-
cientes e distribuído arrastadeiras no Herbert, mas nunca tivera a seu ex-
clusivo cargo alguém com dois membros a menos.
Desejara tanto que acontecesse qualquer coisa que resolvesse o seu
dilema a respeito de com quem devia ficar depois da guerra, Jimmy ou
Étienne. O dilema estava resolvido, claro, porque não podia sequer pensar
em abandonar Jimmy naquela situação. Mas a sorte era cruel. Porque teria
sido precisa uma coisa daquelas? Jimmy não fizera nada para merecer uma
sorte tão catastrófica, ou seria aquilo o castigo último para a sua
infidelidade?
Já era suficientemente mau ter de ir para casa e enfrentar as coscuvil-
hices a seu respeito; não duvidava de que Mrs. Forbes-Alton continuara a
espalhar o veneno. Agora, acrescia a isto a obrigação de cuidar de Jimmy e
viver com todos os problemas que isso acarretaria, além do seu enorme
fardo de culpa.
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Mas sabia que aquele não era o momento para pensar em si mesma.
Jimmy era o seu marido, tinha prometido perante Deus amá-lo na saúde e
na doença. E também não podia esquecer que ele nunca desistira de a pro-
curar quando ela fora raptada em plena rua, em Seven Dials. Ia ter de com-
pensar o seu adultério ficando ao lado dele, amando-o e protegendo-o.
Começou outra vez a chover, e ouvia ao longe o ribombar ensur-
decedor da artilharia pesada, mais uma coisa para lhe recordar aquilo por
que Jimmy tinha passado. Os seus pensamentos voltaram-se para todos os
feridos que vira cobertos de lama, os olhos assombrados a refletirem a he-
dionda natureza da guerra, e as lágrimas por Jimmy escorreram-lhe pela
cara.

Na cabana, todas as raparigas manifestaram a sua dor e emoção


quando finalmente regressou, encharcada até aos ossos. Até os olhos de
Sally se encheram de lágrimas quando ela contou o que tinha acontecido.
Mas foi Vera quem assumiu o controlo, a ajudou a despir as roupas molha-
das e a enfiar a camisa de noite, e depois a abraçou com muita força e a
deixou chorar.
– Vais ver que vai acabar por conseguir andar – disse, num tom
apaziguador. – Podem pôr-lhe uma perna artificial. Já vi pessoas usá-las, e
governam-se perfeitamente. Disseste que ele é um homem paciente, e é só
isso que é preciso.
Sally levou-lhe uma caneca de chá e uma fatia do bolo que lhe tinham
enviado de casa.
– O meu avô perdeu uma perna na Guerra da Crimeia – disse. –
Mandou fazer uma de madeira, e conseguia andar de um lado para o outro
tão depressa como eu. Mas agora fazem umas muito boas, e enquanto o
Jimmy estiver a convalescer vão ensiná-lo a usar muletas e todo o género
de coisas para o ajudar a cuidar de si mesmo.
Belle não fez notar que Jimmy não poderia usar muletas só com um
braço. Não era capaz, quando todas elas estavam a ser tão carinhosas e
bem-intencionadas.
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Já perto do amanhecer, e incapaz de dormir, Belle escreveu a Étienne
uma última carta. Contava-lhe o que acontecera a Jimmy e dizia saber que
ele compreenderia que aquilo mudava tudo e que o seu dever era estar
junto do marido.
Havia muito mais que queria dizer-lhe, que era como se tivesse o cor-
ação rasgado ao meio, que havia de conservar a imagem dele na cabeça até
ao dia em que morresse, mas sabia que não devia dizer essas coisas. Por
isso, terminou dizendo que esperava que ele continuasse bem, e desejando-
lhe felicidade e sorte para quando a guerra acabasse.
Jimmy chegou ao hospital uma semana mais tarde. Sally foi a con-
dutora que o recolheu na estação, e deu a notícia a Belle nessa tarde,
quando se cruzaram na estrada.
– Pareceu-me bem-disposto e sem muitas dores – gritou da janela. –
Está ansioso por te ver, claro. Levei-o para a enfermaria K.

Belle correu para a enfermaria K mal acabaram o trabalho do dia, sem


se lavar nem mudar de roupa. Estava tão cheia de medo que queria acabar
com aquilo o mais depressa possível. Já tinha visto centenas de homens
com ferimentos horríveis, mas aquilo era diferente, era o seu Jimmy.
– Está ali no canto. – A irmã Swales agitou a mão na direção do ex-
tremo mais distante da enfermaria. – Mas aviso-a, está muito em baixo.
A irmã Swales não era a enfermeira preferida de Belle. A meio da casa
dos quarenta, era entroncada, com pelos a crescerem-lhe no queixo, e
tratava todas as voluntárias e o pessoal auxiliar com uma desdenhosa su-
perioridade. Belle só ajudara uma vez na enfermaria dela, e fora tão mal
tratada que jurara a si mesma nunca mais lá pôr os pés. Até tinha medo de
levar novos pacientes para a enfermaria da irmã Swales, porque ela era
invariavelmente mal-educada. Mas as outras enfermeiras mais velhas e os
médicos afirmavam que era uma das melhores enfermeiras de todo o
hospital.
– Sabe se há alguma razão para ele estar assim tão em baixo? – per-
guntou Belle.
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Swales olhou-a do alto do seu nariz empinado.
– Se tivesse perdido dois membros, não estaria de certeza muito bem-
disposta – replicou.
– Claro que não. – Belle reprimiu a irritação, porque precisava da
aprovação da mulher. – O que quero dizer é que o meu marido é habitual-
mente um homem muito jovial e estoico, de modo que estava a perguntar
se há algum razão médica para o seu estado de espírito.
– Nenhuma. Talvez ele lhe diga o que o perturba. Mas não fique de-
masiado tempo, o seu marido precisa de repouso.
Jimmy estava estendido na cama do canto, a olhar para o teto. Não
virou a cabeça quando Belle se aproximou. Tinha o braço direito enfiado
na manga do pijama do hospital, abotoado até acima, e o coto envolto em
ligaduras do esquerdo escondido debaixo do casaco. Havia uma grade por
baixo das mantas para proteger o coto da perna, e tinha uma cicatriz ainda
lívida na face esquerda.
– Meu querido – disse ela, a voz a tremer de emoção. – Não sei o que
dizer. É tão horrível e eu tenho tanta pena.
Jimmy voltou a cabeça para ela e tentou sorrir.
– Não há razão para teres pena, é a lotaria da guerra. Mas agora já não
te sirvo para nada, teria sido muito melhor morrer dos meus ferimentos.
– Não digas isso – pediu ela, num tom de reprovação, e inclinou-se
para o beijar. – Amo-te e preciso de ti e só posso estar feliz por estares
vivo. Tudo isto é um terrível choque para ti e não admira que penses as-
sim, mas tens de dar tempo ao tempo.
– Tempo para quê? Achas que me vai crescer uma perna nova?
O sarcasmo magoou-a, apesar de saber que o que dissera fora uma in-
anidade. Mas não lhe ocorria nada que expressasse o que sentia e ao
mesmo tempo pudesse confortá-lo. Que se podia dizer a um ente querido
que perdera dois membros?
– Claro que não. Oh, Jimmy, não consigo encontrar as palavras certas
– disse, desanimada. – É terrível, horrível, mas eu sei que com o tempo
vais acabar por te habituar. Lembra-te de que vejo homens feridos todos os
dias. É espantoso como alguns deles aprendem a lidar com os seus
problemas.
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– Poupa-me a conversa fiada – respondeu ele secamente, e desviou a
cabeça.
– Ouve o que te digo, Jimmy Reilly – disse Belle, severa. – Isto
aconteceu, não temos maneira de o fazer desaparecer e vamos ter de apren-
der a aceitá-lo. Não te voltes contra mim, não te obriguei a alistares-te.
Jimmy continuou a olhar para o teto, sem responder.
– Se não vais falar comigo e contar-me tudo, então talvez seja melhor
eu ir-me embora – disse Belle, passado algum tempo. – Estou a trabalhar
desde as sete da manhã e não como nada desde o meio-dia.
Ele suspirou.
– Desculpa, querida – disse, numa voz muito baixa. – Sempre pensei
que era um dos felizardos que iam regressar a casa intactos. Naquele dia
nem sequer estava assustado. Avancei a correr e a pensar: «vamos lá
acabar com isto e amanhã estás outra vez na retaguarda, são e salvo». E en-
tão «Bang!», explodiu uma granada. A força da explosão atirou-me pelos
ares.
Belle estendeu a mão e acariciou-lhe a face.
– O capitão Taylor diz que foi um francês que te salvou – disse.
– É verdade. Carregou-me às costas e levou-me até às nossas linhas. É
estranho, estava capaz de jurar que me chamou pelo nome, mas talvez o
tenha imaginado, por causa das dores.
– Não o conhecias, então?
– Não. Pelo menos, julgo que não. Foi tudo muito confuso, não ima-
gino sequer porque foi que ele me levantou, durante um ataque é suposto
seguirmos sempre em frente. E eu já tinha visto alguns Frogs feridos e caí-
dos na lama. Ainda agora me pergunto porque foi que me ajudou a mim e
não um dos seus compatriotas.
– Ainda bem que o fez – disse Belle, e voltou a beijá-lo na face. – Tens
de recuperar forças, e depois podemos voltar os dois para casa.
– Nunca mais nada será como dantes – murmurou Jimmy, e a voz
quebrou-se-lhe e as lágrimas afluíram-lhe aos olhos. – Nem sequer poderei
andar numa cadeira de rodas, porque perdi também um braço. Fiquei im-
potente, Belle.
– Não estás impotente coisa nenhuma. O teu braço direito está ótimo, e
dependendo de por onde te amputaram o esquerdo, poderás andar de
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muletas dentro de algum tempo. O teu cérebro, olhos, ouvidos e voz estão
a funcionar, os teus órgãos internos estão todos bem. Já vi homens em
muito pior estado do que tu.
– Mas quanto tempo passará até te fartares de cuidar de mim? Não es-
tou a tentar apelar à tua compaixão, Belle, estou só a ser realista. Já não
sou um homem, já não posso trabalhar para te manter. Tu és jovem e bon-
ita, e não devias ficar amarrada a um inválido.
– Casei contigo para o melhor e para o pior, na saúde e na doença –
disse ela, docemente. – Se fosse eu nessa cama com esses ferimentos, sei
que cuidarias de mim. Porque é que achas então que eu me vou fartar de
cuidar de ti?
Jimmy olhou para ela, e os seus olhos, normalmente tão expressivos,
estavam frios como pedaços de vidro ambarino.
– Vai comer qualquer coisa – disse. – Estou contente por estar aqui
perto de ti, e talvez amanhã veja tudo isto com outros olhos.
Belle afastou-lhe o cabelo da testa. Não sabia que mais podia dizer-lhe
para o convencer de que continuavam a ter um futuro juntos. Também a
ela as perspetivas pareciam sombrias. Mas sabia que tencionava continuar
a tratar dele, custasse o que custasse.

Nos dias que se seguiram, Belle sentiu que, se não fosse a ajuda de
Vera e de David, talvez não tivesse conseguido aguentar. Fisicamente,
Jimmy estava a recuperar bem, não havia sinais de infeção em qualquer
dos cotos, mas alternava entre retrair-se ao ponto de não querer falar com
ninguém e ficar tão furioso que gritava com as enfermeiras. Disseram-lhe
que estava a ter pesadelos.
– Tudo isso é de esperar – disse David, com um encolher de ombros,
quando ela lhe contou. – Se tu não estivesses aqui, aposto que seria uma
simpatia para toda a gente e estaria ansioso por ir para casa. Passou por um
inferno, não admira que tenha pesadelos. Mas provavelmente ainda não se
apercebeu dos grandes progressos que a medicina fez desde o início da
guerra. Agora sabem fazer transfusões de sangue, enxertos de pele nas
queimaduras, coisas com que nem sequer sonhávamos. Aposto que neste
preciso momento há de estar um desses crânios a trabalhar para fazer bons
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membros artificiais. E ele vai receber uma pensão, não vai ficar na miséria,
e tem-te a ti, o felizardo.
David tinha razão a respeito dos extraordinários avanços feitos pela
ciência médica desde o início da guerra. Na realidade, praticamente tudo
dera grandes saltos em frente, desde os automóveis aos aviões. Belle
lembrava-se de, quando era criança, terem apenas velas e candeias de
azeite, de a maior parte das pessoas ter as latrinas no pátio das traseiras e
de, até poucos anos antes, os ómnibus serem puxados por cavalos. Agora a
eletricidade era uma coisa comum, cada vez mais pessoas tinham
automóvel, e não só retretes interiores mas também casas de banho com to-
dos os confortos. Por isso, parecia razoável pensar que todos estes pro-
gressos significavam que Jimmy ia conseguir uma perna artificial que lhe
permitisse voltar a andar.
David era quem tinha o conhecimento prático, mas Vera era aquela a
quem Belle podia confidenciar os seus medos mais íntimos.
– Vai ser muito difícil. Vamos voltar para casa, onde as pessoas falam
a meu respeito e do meu passado. Tenho a certeza de que a mãe da Mir-
anda fará tudo para manter os mexericos a circular durante o máximo
tempo que puder – disse à amiga. – Se o Jimmy continuar maldisposto e
zangado, não sei se serei capaz de aguentar. E toda a gente vai estar à es-
pera de que eu arranje um amante, de modo que vão vigiar-me como fal-
cões. Quero fazer o que está certo, mas nunca pretendi ser uma santa.
– Encara as coisas um dia de cada vez – disse Vera. – O falatório a teu
respeito acabará por parar, se não houver mais nada que o alimente. O
Jimmy ficará de certeza muito mais calmo quando deixar de ouvir os can-
hões à distância e estiver em casa. Arranjará maneira de fazer coisas sem
ajuda, e tu não estarás sozinha com ele, vais ter a Mog e o Garth perto de
ti. Mas vais manter-te em contacto comigo, não vais? Adorava ir a
Inglaterra antes de voltar à Nova Zelândia. E vou ajudar-te a animar o
Jimmy.
Havia uma coisa acerca da qual Belle não podia falar fosse com quem
fosse. Jimmy dissera que já não era um homem. Sabia que com aquilo, em-
bora não o tivesse dito explicitamente, queria dizer que acreditava que não
poderiam voltar a fazer amor. Que ela soubesse, não havia qualquer razão
física para que assim fosse. Na sua opinião, quando os ferimentos dele
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sarassem completamente e deixasse de ter dores, se estivessem juntos na
cama ele descobriria que tudo funcionava como sempre funcionara. Mas
também sabia que quando os homens desenvolviam uma fixação a respeito
de uma coisa daquelas, ela se tornava muitas vezes um facto.
Se Jimmy não fosse capaz de falar sobre o assunto com ela, também
nunca perguntaria a um médico. E não podia ser ela a perguntar.
Como se tudo isto fosse pouco, não conseguia deixar de pensar em
Étienne. Quando estes pensamentos lhe invadiam o espírito durante o dia,
reprimia-os, obrigava-se a pensar noutra coisa qualquer. Mas muitas vezes
acordava de noite a meio de um sonho escaldante em que os dois estavam
a fazer amor, excitada e a desejá-lo, e isso fazia-a ter vergonha de si
mesma.
Então, em finais de agosto, recebeu uma carta dele. Sentiu que devia
rasgá-la sem a ler, mas não foi capaz. E quando começou a ler, não con-
seguiu conter as lágrimas.

Minha adorada Belle,


Lamento muito saber que o Jimmy foi gravemente ferido, e
compreendo que sintas que tens de ficar com ele. É um homem
muito afortunado por te ter, e eu estaria disposto a trocar de lugar
com ele só para estar perto de ti.
Sei, enquanto escrevo isto, que não recuarás na tua decisão.
Admiro a tua determinação e altruísmo, e sabendo que há sempre
a possibilidade de ser morto antes que esta loucura acabe, fiz um
testamento em que te deixo a minha quinta e o pouco dinheiro que
me resta. Nomeei o Noah como meu parente mais chegado, por
ser a única pessoa em Inglaterra em quem posso confiar para
tratar deste assunto.
Se isto vier a acontecer, o Jimmy não terá motivos para achar
estranho ou suspeito. Sabe que fui teu amigo e que te salvei em
Paris, e que não tenho família à qual deixar a quinta.
É claro que não tenciono deixar-me matar. Quero voltar à
minha quinta no fim da guerra e passar o resto dos meus dias a
cultivar limões e criar galinhas. Agora não haverá outra mulher,
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porque mais ninguém poderá preencher o lugar especial que ocu-
pas no meu coração.
Peço a Deus que tu e o Jimmy possam ser felizes juntos, e
também desejo ter revelado o que me ia no coração quando es-
távamos em Paris, e ter-te mantido a meu lado. Não voltarei a
escrever-te, nem irei procurar-te. Sei que devo deixar-te sozinha
para refazeres a tua vida e peço desculpa se te causei tristeza;
nunca foi minha intenção.
O meu amor, sempre,
Étienne

Belle leu a carta uma e outra vez, e chorou. Nessa noite, dobrou-a até a
reduzir a um pequeno quadrado, cortou alguns pontos no forro do pequeno
saco onde guardava os utensílios de costura, enfiou-a na abertura e voltou
a cosê-los. Tinha queimado todas as outras cartas de Étienne. Mas não se
sentia capaz de se separar daquela.
CAPÍTULO 21

V era estava sentada na cama, a ver Belle fazer a mala. – Vou ter muitas
saudades tuas – disse, com o lábio infeior a tremer.
– Não tantas como eu de ti – respondeu Belle tristemente. – Não tenho
uma única amiga, agora que a Miranda morreu, e se encontro a mãe dela
sou bem capaz de lhe bater.
– E a tua mãe? Vais estar com ela?
Belle fez uma careta.
– Duvido. Nem sequer se deu ao incómodo de responder à minha carta
a contar o que aconteceu ao Jimmy. Graças a Deus pela Mog; ao menos
essa vai ficar feliz por me ver.
– Vais então levar o Jimmy diretamente para casa? – perguntou Sally,
do outro lado da cabana.
Sally tinha-se tornado muito mais simpática desde que Jimmy fora
ferido; tinha muitas vezes um chá feito quando Belle voltava da visita e
perguntava sempre por ele.
– Não, vai ficar numa casa de convalescença em Sevenoaks. Vou
acompanhá-lo até lá, para o instalar, e depois sigo para casa.
Outubro já chegara e os ferimentos de Jimmy estavam a sarar bem.
Nos dias em que não chovia a cântaros, Belle levava-o muitas vezes a dar
um passeio de cadeira de rodas, ao fim da tarde. Mas, a bem da verdade,
não podia dizer que estivesse mais animado. Mostrava-se bem-disposto
junto dos outros pacientes e do pessoal da enfermaria, mas quando estava
sozinho com ela tornava-se irritadiço e sombrio.
A batalha de Ypres nada perdera da sua fúria. Houvera pouco antes um
bombardeamento de três semanas durante o qual a 1.ª e 2.ª Divisões aus-
tralianas se tinham juntado à 23.ª e 41.ª britânicas e atacado a estrada de
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Menin, a leste de Ypres. Os Alemães tinham recuado perante a devasta-
dora chuva de fogo, e o planalto de Gheluvelt fora finalmente tomado
pelos Aliados. Mas dizia-se que não podia haver uma vitória decisiva no
campo de batalha meio inundado, esventrado e calcinado que era Ypres.
Os Aliados ganhavam algumas centenas de metros e avançavam para uma
nova posição, só para os Alemães contra-atacarem e a reconquistarem.
Muitos afirmavam que tudo aquilo era um exercício de perfeita futilidade e
que o general Haig devia pôr fim à ofensiva.
Parecia, porém, que Haig pouco se importava com a perda de vidas, ou
até com o senso comum. Com o exército britânico praticamente exaurido,
planeava recorrer ao Anzac e às tropas canadianas para tomar o que restava
da aldeia de Passchendaele. Todos no hospital receavam que o número de
baixas fosse enorme, e para Vera, com dois irmãos no Anzac, isso era
muito assustador.
– Fica com isto, vai manter-te quente no inverno. – Belle estendeu-lhe
o xaile de lã que Mog lhe tricotara. – Gostaria de imaginar-te embrulhada
nele. Fiquei muito contente por o ter quando cá cheguei naquela primeira
noite e estava tanto frio.
Belle sabia que deveria estar feliz por ir para casa, mas a verdade era
que o receava. Ali podia ter tido de trabalhar duramente, mas sentira-se
livre de todas as mesquinhas restrições e formalidades que eram uma parte
tão integrante da vida em Inglaterra. Os outros condutores tratavam-na
como uma igual, usava as saias mais curtas por questões práticas, podia ser
ela mesma sem que ninguém a julgasse. E também adorava ajudar nas en-
fermarias, onde sentia que era valorizada e necessária.
Parecia-lhe que fora numa outra vida que ela e Mog se tinham mudado
para Blackheath e passado dias a ouvir e a ver como a classe média falava
e se comportava, para se poderem integrar. Agora, tudo isso se lhe afig-
urava tão sem sentido como aquela guerra; tudo o que tinham feito fora
porem-se a jeito para serem derrubadas por gente pedante e de vistas cur-
tas, enclausuradas nas suas vidas de privilégio.
Mesmo assim, orgulhava-se de ter realizado o seu sonho de abrir uma
loja de chapéus. Quando recordava esses dias, o casamento com Jimmy e a
felicidade que tinham partilhado, via-os como uma época dourada em que
todas as coisas más do passado tinham sido banidas para sempre.
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Mas não estava destinado a acontecer. A guerra rebentara, Jimmy
partira para França e ela perdera o bebé.
No entanto, trabalhar no Herbert e ir para ali voltara a fazê-la sentir-se
realizada. Acabara por acreditar que, quando a guerra acabasse, toda a ex-
periência adquirida por ela e Jimmy lhes permitiria construir juntos uma
nova vida que seria ainda melhor do que o seu primeiro ano de casados.
Essa esperança parecia perdida. Jimmy, em tempos forte e determ-
inado, era agora um homem desfeito e dependeria dela para tudo. Graças a
Blessard, o seu passado desonroso tornara-se do conhecimento público.
Em vez do respeito e admiração de que em tempos gozara, as pessoas mur-
murariam à sua passagem e pô-la-iam de parte. E, como se tudo isto não
bastasse, também o dinheiro seria apertado, pelo que não poderiam ir para
outro lugar qualquer e começar de novo.
– Que se passa? – perguntou Vera. – Estás com cara de quem vai
desfazer-se em lágrimas.
– Estava só a pensar que vou ter saudades de tudo isto. – Belle con-
seguiu um débil sorriso e deixou-se cair na cama ao lado da amiga. Não ia
perturbar Vera dizendo-lhe o que verdadeiramente a preocupava. – Vou
sentir falta das conversas, das gargalhadas e da comida má. Bem sei que
vou ter a minha cama confortável, os cozinhados da Mog e tudo o resto,
mas a verdade é que estou um pouco assustada.
Vera passou-lhe o braço pelos ombros e apertou-a com força. Era
muito intuitiva e provavelmente adivinhava a verdadeira causa da relutân-
cia de Belle em voltar para casa.
– Vai correr tudo bem, tenho a certeza. O Jimmy voltará a ser o que
era, e as pessoas lá do lugar onde vives acabarão por esquecer o que leram
nos jornais. Talvez tenhas um filho... pensa em como seria bom! E os
Americanos vão estar prontos para combater no Ano Novo, e a guerra
acabará em breve.
Para si mesma, Belle pensou que a única certeza daquela lista era que
os Americanos se juntariam à luta em janeiro. Mas Vera já tinha preocu-
pações suficientes com a segurança dos irmãos e do que menos precisava
era de se preocupar também com a sua amiga inglesa.
– Ficarei bem logo que vir as Brancas Falésias de Dover – disse. –
Mas não te esqueças de me ir visitar antes de voltares à Nova Zelândia.
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– Olha, Jimmy, vê como é bonito! – exclamou Belle entusiasmada,


quando o carro que fora buscá-los à estação de Sevenoaks meteu por uma
longa avenida ao fundo da qual se erguia uma bela mansão campestre de
estilo georgiano.
Duas filas de árvores que começavam a ganhar as cores do outono
ladeavam o caminho. Do outro lado de uma vedação de madeira, à direita,
pastavam ovelhas num prado. À esquerda havia um jardim, um vasto
relvado muito verde orlado por canteiros ainda pintalgados de crisântemos
e ásteres. Depois da desolação de França, era bom voltar a ver, intocados,
os campos ingleses.
– É uma das melhores casas de convalescença destas bandas –
informou-os Mr. Gayle, o condutor. Devia ter cinquenta e poucos anos e
era um homem elegante, quase careca e com um fino bigode. Já explicara a
Belle que era solicitador, mas que se oferecera para transportar soldados
feridos até à casa de convalescença porque o seu filho mais velho fora
morto no Somme. – Ao lado da casa há uma bela estufa; está-se lá muito
bem mesmo em pleno inverno, e os homens adoram-na. Vêm fisiotera-
peutas fazer tratamentos um par de vezes por semana, e vão pô-lo a andar
de um lado para o outro num instante, meu rapaz. As senhoras das aldeias
vizinhas fazem bolos e empadas para os homens, e há concertos e festas de
todos os géneros. Os donos foram muito generosos: mudaram-se para
Dower House para deixar mais espaço. Acho maravilhoso alguém ceder a
sua casa desta maneira.
– Devem ser pessoas encantadoras, Jimmy. Imagina, cederem a casa
aos feridos – disse Belle, do banco traseiro. Queria tanto que ele mostrasse
algum apreço e entusiasmo. Tinham deixado o hospital numa ambulância,
nessa manhã, com outros cinco homens que tinham conseguido os seus bil-
hetes para Inglaterra. Todos eles estavam empolgados por regressarem a
casa, mesmo os que tinham ferimentos piores do que os de Jimmy. Mas ele
ignorara as piadas e recusara falar. No barco em que tinham viajado desde
Calais, insistira com Belle para que levasse a sua cadeira de rodas para
longe dos outros e remetera-se a um silêncio sombrio.
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– Se têm uma Dower House, não devem estar a passar assim tão mal
como isso – respondeu Jimmy secamente.
Belle sentiu-se mortificada. Ele nunca tivera qualquer espécie de res-
sentimento contra as classes mais abastadas, como parecia agora ter desen-
volvido. Não dava mostras de estar grato pela sorte que tivera ao ser
mandado para um lugar como aquele, normalmente reservado a oficiais.

Duas horas mais tarde, Belle encontrou Mr. Gayle à espera junto do
carro diante da porta principal, pronto para a levar de volta à estação. En-
tretanto escurecera, e estava muito frio.
– O seu marido ficou bem? – perguntou ele, enquanto ligava o motor.
– A verdade é que não sei, mal abriu a boca – respondeu Belle. –
Tenho de pedir desculpa por ele, normalmente não é mal-educado para
ninguém, mas está muito em baixo.
– Estas coisas afetam os homens de maneiras diferentes, como certa-
mente sabe, uma vez que esteve em França. Vi homens tão gravemente
feridos que na realidade não podiam aspirar a uma qualidade mínima de
vida, e que apesar disso se mostravam otimistas e joviais, ao passo que
outros com ferimentos muito mais ligeiros pareciam revoltados contra tudo
e contra todos. Mas uma vez longe do barulho dos canhões e da pressão da
guerra, até os mais difíceis acabam geralmente por recuperar. O seu mar-
ido é um homem afortunado por ter uma esposa tão bonita e dedicada. Tem
muito que agradecer. Dos que foram gaseados, dos que ficaram cegos e
paralisados, é que tenho verdadeiramente pena. Não têm muito por que es-
perar em termos de futuro.
Belle achara Haddon Hall um lugar maravilhoso e estava muito
agradecida ao capitão Taylor por ter puxado os cordelinhos para que
Jimmy fosse mandado para lá. Tinham-no mudado para uma cadeira de ro-
das, ao chegar, e levado para o dormitório que partilharia com cinco outros
homens, no piso térreo. Era um quarto encantador, cheio de luz, com uma
parede coberta de livros porque tinha sido a biblioteca. Tinham-lhes
mostrado a casa de banho, recentemente construída, com um dispositivo
para ajudar os que precisassem a entrar na banheira. Havia uma sala de bil-
har, uma sala de estar com piano e confortáveis sofás e cadeirões, uma sala
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de jantar e a estufa de que Mr. Gayle já tinha falado. Havia jogos de tab-
uleiro, puzzles, aguarelas para os que gostassem de pintar, e um homem
que perdera ambas as pernas estava a construir um modelo de navio.
Fora na estufa que tinham tomado o chá da tarde: scones, sanduíches e
bolo, tudo delicioso, mas Jimmy mal dissera uma palavra.
– Ora bem, quando vier visitá-lo outra vez, telefone, e ou vou eu
buscá-la, ou arranjo alguém que o faça – disse Mr. Gayle, entregando-lhe
um cartão de visita. – Todos nós sabemos como as coisas podem ser di-
fíceis para as esposas e mães dos feridos, sobretudo as que têm filhos
pequenos e vivem longe.
– Estava a pensar em arranjar um sítio para viver aqui perto, para torn-
ar as visitas mais fáceis – disse Belle. – Acha que será possível?
– Posso fazer umas perguntas por aí – respondeu ele. – Uma vez que
foi condutora de ambulâncias, estaria disposta a fazer um pouco de
condução?
– Com certeza que sim. E também trabalhei como auxiliar de enfer-
magem no Royal Herbert antes de ir para França. Teria muito prazer em
voltar a fazê-lo.
– É uma jovem muito corajosa – disse ele, olhando-a de lado enquanto
conduzia. – Espero sinceramente que o seu marido consiga dar a volta en-
quanto aqui estiver. Precisa de aproveitar toda a ajuda e conselhos que lhe
puderem dar.
– Estou certa de que o fará. Vou deixá-lo sozinho durante um par de
dias, para ele se adaptar. Parece ficar ainda mais triste quando eu estou por
perto.
– Suponho que tem medo de a perder. Os homens são muito estúpidos;
muitas vezes atacam precisamente aqueles que deviam adorar.

Belle deteve-se por um instante ao sair da estação de Blackheath.


Parecia-lhe que tinham decorrido anos desde que dali partira numa manhã
de abril, com Miranda, apesar de ter sido há apenas sete meses. Lembrou-
se de como tinham tentado comportar-se como adultas responsáveis e
ajuizadas porque os pais de Miranda, assim como Mog e Garth, estavam a
observá-las, quando na verdade se sentiam zonzas de excitação, inebriadas
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pelo cheiro da liberdade. Tinham rido durante toda a viagem até Dover, in-
conscientes de que se tinham comprometido a fazer uma coisa que ia testá-
las de todas as maneiras possíveis, sem lhes dar tréguas.
Três meses mais tarde, tinham desenvolvido nos braços músculos de
que um pugilista se orgulharia, tinham catado piolhos na cabeça uma da
outra, tinham escorregado tantas vezes na lama que já nem davam por isso.
Raramente tinham tempo para arranjar o cabelo, o máximo que con-
seguiam era lavá-lo e enrolá-lo num carrapito. Havia dias em que a chuva
as encharcava até aos ossos, outros em que escorriam suor. Viviam numa
cabana que, na opinião de Miranda, mal serviria para albergar gado e co-
miam comida que em casa teriam deitado para o lixo. Sabiam que eram
apenas um minúsculo elo na gigantesca cadeia da administração da guerra,
mas orgulhavam-se de levar os feridos para o hospital o mais rápida e
suavemente possível, e de lhes proporcionarem todo o conforto que
podiam.
Miranda encontrara o amor com que sempre sonhara. Podia ter tido
apenas umas breves semanas com Will, mas ao menos não morrera sem
nunca ter experimentado a felicidade da verdadeira paixão.
Enquanto olhava para as luzes acolhedoras do Railway, do outro lado
da rua, pensou que ia ter de se precaver para nunca deixar que Mog perce-
besse que também ela conhecera essa felicidade. Embora duvidasse que
Mog a condenasse por isso, confidenciar-lhe o que acontecera tornaria
ainda mais difícil apagar Étienne dos seus pensamentos. E isso era uma
coisa que precisava de fazer.
Olhou para um lado e para o outro; à luz dos candeeiros a gás, parecia
tudo exatamente igual ao que sempre fora. As boas-vindas de Mog e Garth
seriam calorosas, sabia que iam abraçá-la e prometer-lhe que ela e Jimmy
teriam sempre uma casa junto deles. Mas, no resto da aldeia, iria ter de en-
frentar o desprezo. E, de momento, iria ter de aguentar.
Pegou na mala, endireitou resolutamente os ombros e atravessou a rua.
– Belle! Pensei que nunca mais chegavas! – exclamou Mog, ao abrir-
lhe a porta lateral. – Deves estar exausta. A que horas partiste de França?
Como está o Jimmy?
A saraivada de perguntas foi o que esperava, e deixou-se arrastar para
o estreito vestíbulo para ser abraçada.
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– O Jimmy está bem, Haddon Hall é um lugar encantador e, sim, estou
exausta e é maravilhoso estar em casa – respondeu, e escondendo a cara no
pescoço de Mog, aspirou aquele cheiro familiar a alfazema e bolos a cozer.
– Entra, entra, deixa-me preparar-te uma chávena de chá – disse Mog.
– A tua cama está feita, e pus-lhe uma botija de água quente para a tornar
mais aconchegante. O Garth já vem ver-te quando fechar o pub. Nunca há
muito trabalho, nos tempos que correm.
Enquanto Mog punha a chaleira ao lume e enchia um prato de fiambre,
queijo e pão, Belle notou-lhe o ar cansado, reparou que tinha muito mais
cabelos brancos e que parecia ter envelhecido anos. Trazia um vestido
azul-escuro que, apesar de não ser velho, tinha um ar baço, como os que
costumava usar em Seven Dials. Era espantoso como as revelações de
Blessard e a maldade de Mrs. Forbes-Alton a tinham feito reverter ao rat-
inho que em tempos fora.
– Guarda as notícias do Jimmy até o Garth chegar – disse, pousando o
prato com comida à frente de Belle. – Diz-me só como estás. Disseste na
tua última carta que ele estava muito em baixo, e calculo que não deve ter
sido fácil para ti. Tenho a certeza de que não vais querer falar dessas coisas
com o Garth por perto.
A intuição de Mog conseguiu arrancar-lhe um meio sorriso.
– Não, não tem sido fácil, sobretudo por ele estar tão resmungão que
me sinto derrotada. Mas umas quantas boas noites de sono põem-me fina.
Sinto-me melhor agora, que ele está em Haddon Hall, de modo que vou
limitar-me a lidar com as coisas à medida que elas acontecerem.
– Também não vai ser fácil para ti na aldeia. – Mog suspirou. – As
pessoas continuam a olhar para o outro lado quando entro numa loja, e
tenho medo de que te digam coisas más.
– Se disserem, ignoro-as – disse Belle, com mais coragem do que na
verdade sentia. – A única coisa que me preocupa é ver-te tão desgastada e
triste.
Mog encolheu os ombros.
– O Garth diz que vai vender o pub quando a guerra acabar e que nos
mudamos para Folkestone ou Hastings. Mas não compreende verdadeira-
mente o que tem sido para mim; como imaginas, ninguém se atreve a
dizer-lhe seja o que for a respeito do assunto, e por isso zanga-se comigo e
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acha que estou a imaginar as desconsiderações e os murmúrios. E vais
descobrir que também não tem uma verdadeira compreensão de como o
Jimmy se sente. Para ele, o sobrinho é um herói ferido e um braço e uma
perna a menos são uma medalha de honra. O estúpido do homem pensa
que o Jimmy é capaz de ficar o dia inteiro sentado no pub e ser feliz como
um porco num campo de trevo.
Belle fez uma careta, porque aquela era exatamente a maneira como
Jimmy previra que Garth ia reagir. Mas notou na voz de Mog a mágoa por
o marido não acreditar na maneira como as vizinhas a tratavam.
– Descansa que eu encarrego-me de esclarecer o Garth acerca de todos
esses pontos – disse. – Da maneira como o Jimmy está agora, teremos
muita sorte se conseguirmos convencê-lo a descer a escada. Para ser
franca, Mog, ele tornou-se amargo e fechado.
– Não é carinhoso contigo?
– Não, nem por isso. Bem, pede desculpa quando diz qualquer coisa
mais áspera, e eu sei que ele não quer de verdade portar-se assim. Mas está
muito agressivo.
– Oh, Céus. – Mog deixou-se cair numa cadeira. – Não consigo
imaginá-lo assim. Sempre foi tão gentil e atencioso. Parece que tens pas-
sado um mau bocado com ele.
– Talvez não tenha sido suficientemente compassiva. Afinal de contas,
habituei-me a ver homens muito feridos. A verdade é que acho que teria
sido melhor ele ter ido para outro hospital: lá toda a gente tinha tendência
para lhe dar um tratamento especial por causa de mim. E também acho que
ele se ressentia por eu trabalhar durante o dia. Oh, não sei, Mog, talvez to-
dos os homens sejam assim com as mulheres, ao princípio. Por favor, não
contes nada disto ao Garth. Pode ser que o Jimmy volte a ser como era, lá
em Haddon Hall.
Enquanto comia, Belle perguntou a Mog como ia a vida dela com
Garth, se o negócio do pub estava a correr bem e se tinha notícias de Noah.
– Recebemos uma carta dele a dizer que lamentava muito o que tinha
acontecido ao Jimmy – respondeu Mog –, podes levar-lha quando o fores
visitar. Claro que passa a maior parte do tempo fora, como correspondente
de guerra. A Lisette não tem um momento de descanso com a Rose, a be-
bé, e o Jean-Philippe. O Noah disse que iria ver o Jimmy logo que pudesse.
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E tu devias ir visitar a Lisette. O Noah disse que ela gostaria muito de
saber a respeito do teu trabalho em França.
Belle sorriu. Gostaria muito de ir visitar Lisette, que era das poucas
pessoas de quem não precisava de esconder o seu passado, sendo o dela tão
semelhante. Quanto a Noah, sempre sentira um afeto muito especial por
ele. Fizera tanto como Étienne para a salvar, em Paris, e era a única pessoa
que na altura sabia que ela o amava e nunca dissera nada a ninguém.
– E o pub? – insistiu. Sentia que Mog estava a tentar evitar o tema.
– Não está nada bem, querida. Não é por causa de os clientes habituais
mais novos terem ido para França; continuamos a ter os mais velhos. Mas
esses são capazes de ficar diante de uma caneca durante horas. A vida está
difícil para toda a gente, e as pessoas estão cansadas da guerra. Tudo junto,
tem significado uma grande quebra nas receitas.

Garth apareceu na cozinha mais tarde, esboçou um sorriso de orelha a


orelha ao ver Belle e deu-lhe um grande abraço.
– É muito bom ter-te de volta – disse. – Temos andado ambos perdidos
sem ti.
Ele, ao menos, continuava tranquilizadoramente igual ao que sempre
fora, com o seu cabelo e barba flamejantes e ombros da largura da porta de
um celeiro.
– Fala-me do herói ferido – disse. – Não podem pôr-lhe uma perna de
pau?
Belle contou-lhes pormenores a respeito do que Jimmy recordava da
maneira como fora ferido, do tratamento que recebera e das possibilidades
de recurso a um membro artificial. Também realçou a sorte que ele tivera
em ser mandado para Haddon Hall.
– Vai lá passar pelo menos dois meses. Pensei em tentar arranjar por lá
um sítio onde ficar, mas primeiro vou deixá-lo assentar.
– Devia era estar aqui connosco – declarou Garth, num tom indignado.
– Tu e a Mog podem perfeitamente tratar dele.
Belle eriçou-se. A intenção de Garth era boa, como era bom o facto de
querer acolher Jimmy, mas a verdade era que não fazia ideia de como era
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difícil cuidar de um amputado, sobretudo num sítio como aquela casa,
onde havia escadas e portas estreitas.
– O Jimmy tem de aprender a fazer algumas coisas sozinho antes de
vir para casa – disse. – E também tem de se conformar com o que lhe
aconteceu.
Garth bufou desdenhosamente, e então Belle irritou-se a sério.
– Eu e a Mog não somos suficientemente fortes para o levantar e
sentá-lo na sanita, e além disso o Jimmy não tem estado com a melhor das
disposições. Talvez imagine que ele ficará feliz por passar o dia inteiro
sentado no pub enquanto toda a gente lhe diz que é um herói, mas garanto-
lhe que está enganado e que isso seria mesmo a pior coisa que lhe poderi-
am fazer. Em Haddon Hall está com outros homens que têm as mesmas in-
capacidades que ele e com pessoas que podem ensiná-lo a lidar com elas.
Neste momento, está cheio de azedume, e precisa de livrar-se dele.
– Podemos transformar a arrecadação num quarto para ele – afirmou
Garth, e apontou para a divisão ao lado da cozinha como se não tivesse
ouvido uma palavra do que ela dissera. – Podemos pôr uma rampa nos de-
graus das traseiras para a cadeira de rodas, e assim ele poderá usar a latrina
do quintal. Não vão precisar de o levantar.
– Ele não consegue movimentar uma cadeira de rodas só com um
braço – respondeu Belle, de dentes cerrados. – Não consegue sequer baixar
as calças sozinho. Por amor de Deus, Garth, não faça mais planos antes de
o ver e falar com ele. Sei que a sua intenção é boa, mas Haddon Hall é o
melhor sítio para o Jimmy estar agora.
Garth ficou a olhar para ela por um instante, e de repente baixou a
cabeça, abatido.
– Então é assim tão mau?
Belle só conseguiu assentir com a cabeça. Foi evidente para ela,
naquele instante, que Garth ainda não tinha tomado consciência da gravid-
ade dos ferimentos de Jimmy.
– Não sabia – admitiu. – Só queria tê-lo aqui comigo.
– Eu sei – disse Belle, e o afeto daquele homem pelo sobrinho varreu
para longe toda a sua irritação. – Mas vamos ter de ser pacientes durante
mais algum tempo, antes de podermos voltar a ser uma família normal.
Garth avançou para ela e apertou-a novamente contra o peito.
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– Pelo menos temos-te a ti de volta – disse, numa voz rouca. – Estás
com um ar cansado e demasiado magra, mas a Mog resolve depressa essa
parte do problema.
Belle apoiou-se contra ele, tranquilizada pela certeza de que, por muito
más que as coisas fossem, Garth continuava tão forte e fiável como
sempre. Fossem quais fossem as dificuldades que os esperavam, sentiu que
os três juntos seriam capazes de as enfrentar.

Durante a primeira semana que passou em casa, Belle sentiu-se com-


pletamente perdida. Não tinha um papel a desempenhar; Mog cozinhava e
fazia as limpezas, Garth tomava conta do pub, e não restava nada para ela
fazer. Tirou do armário as suas velhas roupas e experimentou-as; ficavam-
lhe todas muito largas, devido à perda de peso. Mas até as que antigamente
preferia lhe pareciam agora demasiado coloridas e vistosas e faziam-na
parecer a mulher que as pessoas acreditavam que era.
Logo na primeira manhã, foi vexada na padaria. Duas senhoras que
conhecia de vista voltaram-lhe deliberadamente as costas quando entrou,
como se sofresse de alguma doença contagiosa. Comprou o pão que Mog
queria e, quando ia a sair, ouviu-as falar a seu respeito.
– É preciso ter descaramento, para voltar para cá – disse uma delas.
– É da pobre tia que tenho pena – acrescentou a outra.
Voltou de imediato ao Railway, a fazer um esforço muito grande para
manter a cabeça erguida, mas por dentro ia a chorar. Não tornou a sair dur-
ante o resto do dia, preferindo mentir a Mog e dizer que se sentia cansada a
admitir o que tinha acontecido.
Mais tarde, sentada à janela do quarto, recordou como ela e Jimmy se
tinham sentido felizes a tratar da decoração juntos, pouco antes do
casamento. Nunca nenhum dos dois aplicara papel de parede, e tinham es-
tragado um rolo inteiro furando as tiras com as mãos, pendurando-as de
esguelha ou rasgando-as, antes de lhe apanharem o jeito. Mas tinham rido
tanto, encantados com a ideia de criarem o seu próprio refúgio. Bem vira
os defeitos: partes onde o padrão não acertava, pontas de papel que se tin-
ham descolado da parede, uma ou outra bolha de ar que não chegara a ser
alisada. Mas nada disso lhes importara, nem o facto de a mobília ser em
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segunda mão. Ela fizera a colcha e os cortinados cobertos de renda, e
Jimmy lixara o toucador e o guarda-fatos, cheios de riscos, até os deixar
lisos, e voltara a envernizá-los.
A fotografia do casamento estava gora de novo no seu lugar, em cima
da pequena mesa de cabeceira: mais uma coisa a recordar-lhe como ambos
tinham acreditado naquele dia que seriam felizes para sempre. Belle tinha
apenas vinte e três anos, e a perspetiva de ficar a viver durante os próximos
anos num lugar onde as pessoas lhe viravam as costas e tinham pena de
Jimmy era demasiado horrível para considerar.

Uma semana depois de deixar Jimmy em Haddon Hall, Belle voltou


para o visitar pela primeira vez. Tinha feito um esforço sério para melhorar
a sua aparência, por pensar que isso lhe agradaria. Lavara o cabelo no dia
anterior, e arranjara-o da maneira que ele gostava, com alguns caracóis sol-
tos à volta do rosto. Apertara laboriosamente o vestido de lã encarnado que
ele lhe oferecera no primeiro Natal que tinham passado juntos, para lhe
servir melhor, e encurtara a saia de modo a ficar-lhe pelos tornozelos,
como tinha visto em revistas de moda. O chapéu vermelho e azul-escuro
era também um dos que ele mais gostava; era para ser colocado de lado na
cabeça, num ângulo atrevido, e tinha de ser preso com alfinetes. Por cima
do vestido levava a capa azul-escura com gola de pele, porque estava
muito frio.
– Está encantadora – disse Mr. Gayle enquanto lhe abria a porta do
carro para ela entrar, na estação. – Vai animar o seu marido, de certeza.
Tem sido bom estar de novo com a família?
– Sim, muito – respondeu ela. – Embora estranhe ter tão pouco que
fazer. É como se o tempo se arrastasse. Mas tudo isso há de mudar quando
o Jimmy voltar para casa.
O vento estava a arrancar as folhas das árvores, cobrindo os caminhos
campestres de uma espessa alcatifa enquanto se dirigiam para Haddon
Hall. Belle estava gelada e não conseguia impedir-se de pensar em Étienne
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e perguntar-se como estaria ele a lidar com o frio, a somar a todas as outras
desgraças que os soldados tinham de enfrentar.
– Ontem falei um pouco com o seu marido – disse Mr. Gayle, fazendo-
a voltar, com um sentimento de culpa, ao momento presente. – Pareceu-me
muito mais descontraído, e ansioso por vê-la. Lamento não poder levá-la à
estação, hoje, mas virá alguém buscar Mrs. Cooling, a esposa de um outro
paciente, às quatro e meia, e levá-la-á também a si.
Belle agradeceu-lhe e perguntou-lhe como tinham ele e a mulher lid-
ado com a perda do filho.
– Não muito bem, ao princípio – respondeu ele, pensativo. – Estáva-
mos zangados, cheios de azedume, pensávamos: «Porquê nós?» Mas então
houve tantas pessoas que perderam filhos, irmãos e maridos que deixámos
de nos sentir sozinhos no nosso desgosto. Na nossa aldeia, houve uma
viúva que perdeu todos os filhos, eram três. Nós temos a sorte de ter duas
filhas e outro rapaz que é demasiado novo para ser chamado. Fazer o que
podemos pelos feridos ajuda-nos. Tornámo-nos muito amigos de vários
jovens que passaram por Haddon. Por vezes, quando vejo os terríveis feri-
mentos que alguns deles têm, quase fico contente por o nosso John ter
morrido logo.
– Sim, é cruel – admitiu Belle. – Vi muitos assim, tanto em França
como no Herbert. Costumava perguntar a mim mesma como conseguiam
as famílias cuidar deles.
– Mas o seu marido vai melhorar. – Mr. Gayle estendeu a mão para lhe
tocar no braço. – Acredite nisso. A vida não voltará a ser como era antes
da guerra, mas vão voltar a ser felizes, vocês os dois.
– Sim, claro que vamos. – A bondade dele fez com que lhe surgissem
lágrimas nos olhos, mas ela reprimiu-as. – Temos muito por que dar
graças, e pelo menos eu tenho alguma experiência dos problemas que o
Jimmy vai ter de enfrentar.
– Disse-me ele que costumava fazer chapéus. Talvez possa voltar a
essa atividade agora que está em casa, para lhe dar um interesse e fazer en-
trar algum dinheiro extra?
– Sim, é uma possibilidade.
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Belle sorriu-lhe. Gostava daquele homem, da sua simpatia, bondade e
sentido prático. Prometeu silenciosamente a si mesma que não ia continuar
a chafurdar no lamaçal da autocomiseração.

Jimmy estava muito mais bem-disposto. Sorriu a Belle quando ela en-
trou na estufa e apresentou-a a três companheiros com evidente orgulho.
Fred, de dezanove anos, tinha perdido ambas as pernas, Henry apenas
uma, e Ernest ficara cego e parcialmente paralisado em consequência de
uma lesão na coluna vertebral. Belle conversou com cada um deles,
perguntando-lhes de onde eram e há quanto tempo estavam em Haddon
Hall. Eram todos da zona sul de Londres, mas só Ernest estava ali há mais
de três meses.
– Os meus pais não têm condições para cuidar de mim – disse, com
uma surpreendente jovialidade. – Mas eu também não quero ir para casa.
Gosto de estar aqui.
Um pouco mais tarde, Belle levou Jimmy para a sala de estar, para
poderem ter um pouco mais de privacidade. Ajoelhou-se ao lado da cadeira
de rodas e beijou-o, e, pela primeira vez, ele correspondeu com
entusiasmo.
– Assim está melhor – disse ela, e sentou-se sobre os calcanhares. – Já
começava a pensar que um pedaço do meu Jimmy tinha ficado em Ypres.
Jimmy sorriu, envergonhado.
– Tenho sido um idiota, demasiado ocupado a ter pena de mim mesmo.
– Tinhas todas as razões para ter pena de ti mesmo – respondeu ela. –
Agora conta-me como é a vida aqui.
Enquanto o ouvia falar, Belle apercebeu-se de que, mais do que
qualquer tratamento, tinham sido a paz e o sossego, o calor e o conforto, os
principais responsáveis por aquela melhoria do seu estado de espírito. Os
únicos sons que se ouviam no exterior eram o vento, o canto das aves e, de
vez em quando, alguém a rachar lenha, ao contrário do que acontecia no
hospital em França, onde o troar da artilharia à distância e o barulho dos
aviões a passar lá em cima eram companhias constantes.
Também os outros pacientes estavam a ajudar, até porque alguns,
como Ernest, estavam muito pior do que ele e não tinham o consolo de
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visitas familiares. Belle ficou satisfeita ao ouvir Jimmy expressar admir-
ação pelo seu novo amigo. Parecia mais otimista na maneira como en-
carava a sua incapacidade porque lhe tinham dito que, quando o coto do
braço estivesse completamente sarado, lhe aplicariam uma prótese que po-
deria usar para se apoiar às muletas ou manobrar a cadeira de rodas em
pequenas distâncias.
Aproveitara o tempo para ler, para aprender a jogar xadrez, e disse, a
rir, que descobrira que era capaz de se levantar da cadeira e saltitar ao pé-
coxinho até à mesa de jantar, à retrete ou à cama.
– O único problema é que tenho de aprender a equilibrar-me – acres-
centou, com uma expressão compungida. – Ontem à noite esqueci-me, caí
e não consegui voltar a levantar-me. Um dos rapazes sugeriu que pendur-
asse pesos do lado esquerdo do corpo.
Belle sentiu o coração mais leve ao ouvi-lo brincar com o assunto. Re-
ceara que isso nunca acontecesse.
– Gostarias que eu arranjasse um sítio para morar aqui perto? –
perguntou-lhe, um pouco mais tarde. – Poderia vir ver-te todos os dias, e
Mister Gayle disse que talvez eu pudesse conduzir um pouco.
– Não me parece que seja muito boa ideia – respondeu Jimmy,
surpreendendo-a com a súbita dureza do tom. – Já estiveste longe de casa
tempo que chegue, e de qualquer modo eles não iam querer que viesses cá
todos os dias.

No comboio de regresso a casa, Belle continuou a pensar no que ele


tinha dito. Duvidava que a parte acerca de não ser bem-vinda a Haddon
Hall todos os dias fosse verdade; nesse caso, Mr. Gayle ter-lhe-ia dito. «Já
estiveste longe de casa tempo que chegue», era mais revelador. Queria que
Mog e Garth a mantivessem debaixo de olho; já não confiava nela!
Não conseguia sentir-se zangada, porque sabia que não era digna de
confiança, mas entristecia-a o facto de ele pensar que procuraria outro
homem por causa das suas mutilações. Não teria compreendido que ela
sugerira a mudança para estar perto dele?
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*

Novembro trouxe consigo uma chuva forte e incessante que tornava


impossível até um simples passeio para aliviar o tédio. Mog estava empen-
hada nas suas tarefas domésticas e recusava partilhá-las, por mais que
Belle lho pedisse.
– Gosto das coisas à minha maneira – respondia, inabalável. – Vai ler
um livro ou desenhar. Só estás a atrapalhar-me.
Belle ofereceu-se para ajudar Garth na cave, mas ele não aceitou
porque era um «trabalho de homem». Ela bem via que lhe doíam as costas
por ter de carregar pesadas grades de cerveja, e recordou-lhe que se tinha
habituado a levantar macas com cargas muito mais pesadas, mas não
conseguiu demovê-lo.
Tentou desenhar, mas as únicas imagens que lhe acudiam ao espírito
eram as da estação em França e dos feridos a serem retirados do comboio.
Fez uns esboços de algumas, mas acabou por pôr o bloco de parte. Desen-
har aquelas cenas deprimia-a, além de fazê-la pensar demasiado nos bons
amigos que fizera em França.
No segundo domingo depois de Jimmy ter voltado, Garth e Mog foram
com ela visitá-lo, e esse foi um bom dia. Mog fizera um bolo e levara vári-
os boiões de fruta em calda, e tanto ela como Garth ficaram muito felizes
por ver que Haddon Hall era tudo o que Belle dissera. Mog chorou ao ver
Jimmy, e até Garth tinha os olhos húmidos. Tinha parado de chover, como
que de propósito, e o sol brilhava, de modo que levaram Jimmy para um
passeio na cadeira de rodas, e os quatro gostaram de ver a bela paisagem
inglesa vestida com as suas galas outonais.
Jimmy estava muito bem-disposto. Quando regressaram a Haddon
Hall, quis até demonstrar a sua técnica de pé-coxinho para passar da ca-
deira para a mesa, na estufa. Mas quando Garth lhe perguntou quando ia
voltar para casa, respondeu sem rodeios que não tinha pressa.
– Estou melhor aqui – disse, como se estivesse a sentir-se encurralado.
– Gosto do sossego e da companhia quando a quero. E não serei útil a nin-
guém no pub.
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Felizmente, Garth não discutiu, talvez por perceber que o sobrinho es-
tava melhor onde estava, mas mais tarde, no comboio, Mog expressou a
sua opinião.
– Tem medo de que as pessoas se ponham a olhar para ele e lhe façam
perguntas a respeito da guerra – disse. – Como podemos fazê-lo com-
preender que Londres está cheia de homens mutilados? A maior parte das
pessoas perdeu um parente ou um amigo chegado, de modo que ninguém
lhe vai perguntar nada.
Apesar de não ter saído muito depois de voltar de França, Belle sabia
que Mog tinha razão. Quase todos os homens com menos de cinquenta
anos que vira vestiam uniforme ou estavam feridos. Logo no dia em que
chegara, assistira ao triste espetáculo de um homem que perdera ambas as
pernas a mendigar à porta da estação. Mog dissera-lhe que cenas como
aquelas eram ainda mais comuns em Lewisham.
– Bem, ele não vai poder ficar em Haddon Hall eternamente – disse
Garth.

À medida que o Natal se aproximava, Belle encheu-se de coragem e,


sem consultar Jimmy, foi falar com o médico em Sevenoaks antes de
seguir para Haddon Hall.
A clínica do Dr. Cook ficava na parte da frente da residência, uma
villa com dupla fachada muito perto da estação. Belle tinha-o visto duas
vezes durante as suas visitas a Jimmy, mas nunca falara com ele. O Dr.
Cook era um homem com cerca de sessenta anos, corpulento, de cabelo
branco e pele rosada, que se deslocava a Haddon Hall numa charrete pux-
ada por um cavalo.
Uma vez sentados frente a frente, com a secretária de permeio, Belle
reparou na expressão bondosa dos seus olhos azuis e brilhantes, e sentiu
que podia confiar nele.
– Não será tempo de o meu marido voltar para casa? – perguntou. – Eu
sei que ele não quer, mas já lhe pôs uma prótese no braço e ele está a
habituar-se bastante bem às muletas. Sinto que devia estar em casa
comigo. Estou a viver numa espécie de limbo.
– Quere-o em casa? – perguntou ele, e pareceu surpreendido.
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– Claro que quero, e os tios, com quem vivo, também. Ele disse-lhe
que não queríamos?
– Não explicitamente, mas fiquei com a nítida impressão de que havia
a ideia de que gerir um pub é uma atividade que envolve múltiplas di-
ficuldades. Tinha planeado pedir-lhe que viesse visitar-me para falarmos
sobre o assunto. Precisamos da cama dele em Haddon Hall, mas a senhora
adiantou-se ao vir aqui hoje.
Belle franziu a testa.
– O tio gere o pub e a esposa dele trata da casa. Eu não tenho qualquer
papel a desempenhar. Estou livre para cuidar do Jimmy. A única di-
ficuldade são as escadas, mas eu sei que ele consegue subir e descer as de
Haddon Hall, ainda que tenha de o fazer sentado.
O Dr. Cook sorriu.
– Sim, já o vi fazê-lo, e bastante depressa, devo acrescentar. Diga-me,
Mrs. Reilly, em sua opinião, a que se deve esta relutância dele em voltar
para casa?
– Os tios pensam que é por recear que as pessoas se ponham a olhar
para ele, mas eu não acredito. Penso que tem medo de… – Calou-se, sem
saber como dizer aquilo.
– Medo das questões conjugais? – incitou-a o médico.
Belle corou.
– Sim, disse qualquer coisa nesse sentido, uma vez, em França. Na al-
tura, estava ainda tão gravemente ferido que fiquei espantada por ter
pensado sequer nisso! Tentei abordar o assunto várias vezes, mas ele cala-
se e não me dá saída.
– É um problema que surge com frequência em pacientes amputados.
Sentem que são só meios homens, e é mais fácil afastar a mulher que
amam do que exporem-se a uma possível troça ou desdém.
– O Jimmy sabe com certeza que eu nunca troçaria dele nem o desden-
haria! Cuidei de homens feridos durante a maior parte da guerra.
– A razão raramente prevalece nos homens que passaram por aquilo
por que ele passou. Está tudo encurralado aqui – explicou o médico,
batendo com um dedo na testa. – Os horrores que viram, o medo durante
os ataques, o barulho dos canhões, até o sentimento de culpa por terem
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sobrevivido quando tantos camaradas morreram. Acrescente a isto um
corpo muito danificado, e tem um homem que se sente sem qualquer valor.
– Que posso então fazer para lhe devolver um pouco de autoestima? –
perguntou Belle.
– Vou dizer-lhe que precisamos da cama e que ele está suficientemente
bem para ir para casa. É possível que isso o assuste, de modo que o melhor
será a senhora e a sua família não empolarem de modo algum o aconteci-
mento. Nada de festas de boas-vindas, nada de pessoas a aparecerem para
o ver. Tentem manter tudo calmo e normal. É possível que ele peça para
dormir num quarto separado; já tive homens que insistiam em dormir no
chão. Corte o mal pela raiz, mas sem fazer disso um caso. Se ele levar a
sua avante, poderá nunca mais se aproximar de si. Vai quase de certeza ter
mais pesadelos, e é até possível que se mostre agressivo para consigo uma
ou outra vez. Mas se conseguir manter-se afetuosa, sem esperar grande
coisa em termos de resposta, o seu marido voltará, a pouco e pouco, a ser o
homem que era antes de tudo isto acontecer.
– E se não voltar? – perguntou ela, num fio de voz.
O Dr. Cook sorriu-lhe.
– Não tenho a mínima dúvida de que uma mulher bonita, amante e
corajosa como a senhora é capaz de conseguir tudo o que estiver determin-
ada a conseguir. Vá para casa e faça planos para ter o Jimmy consigo antes
do Natal.
CAPÍTULO 22

D e pé junto à janela da sala de estar, no primeiro piso, Belle vigiava


ansiosamente a rua, à espera de ver o carro de Mr. Gayle. A tarde de
23 de dezembro já ia a meio e Mr. Gayle ficara de levar Jimmy a casa às
onze da manhã, mas um denso nevoeiro envolvia Londres e estava muito
frio.
Por muito desagradável que fosse, o nevoeiro tinha ao menos a vant-
agem de evitar os bombardeamentos aéreos. Apenas três dias antes, fora
noticiado que tinham aparecido aviões alemães na costa do Kent e do Es-
sex e que mais de dezasseis pessoas tinham sido mortas pelas bombas.
Belle fora visitar Jimmy na semana anterior, para lhe levar roupas
civis, mas ele não se mostrara minimamente entusiasmado com a ideia de
regressar a casa. Naquele momento, não sabia se Haddon Hall decidira
conservá-lo lá ou se tinham sido apenas atrasados pelo nevoeiro. Se Jimmy
tivesse ficado preso num carro durante várias horas, com aquele frio, ia de
certeza estar de muito mau humor quando chegasse. No entanto, depois de
todos os esforços que ela e Mog tinham feito para preparar a festa, iam
ficar muito dececionadas se não aparecesse.
Tinham passado os dois últimos dias a enfeitar a árvore e a decorar a
sala de estar e a cozinha com ramos de azevinho presos por fitas encar-
nadas. Estava tudo com um ar muito festivo e acolhedor. Belle só esperava
que Garth tivesse compreendido tudo o que lhe dissera a respeito de
Jimmy e não minasse os seus esforços convidando pessoas para o ver, ou
incitando-o a beber.
A árvore, no canto da sala, estava encantadora, com as prendas em-
brulhadas por baixo. Belle fora desencantar as bonitas bolas de vidro que
tinham comprado juntos para o seu primeiro Natal em Blackheath, e fizera
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dúzias de anjinhos com varetas de limpar cachimbos a que vestira vestidos
de renda e pusera asas de papel dourado e pequenos halos. Sentia que
quando acendesse as velas vermelhas, na Consoada, ficaria ainda mais
bonito.
Estava tudo pronto: um grande peru na despensa à espera de ser as-
sado, pudim de Natal e bolo feitos com todos os cuidados por Mog, e dúzi-
as de outras guloseimas especiais que tinham obrigado Belle a esperar hor-
as em filas para as comprar.
Nos três Natais anteriores não se tinham esforçado muito, porque
Jimmy não estaria com eles para partilhar, e Belle lembrava-se de terem
falado do que iria ele fazer no Dia de Natal, e do que iria comer.
Na sua carta depois do primeiro Natal, Jimmy dissera que tinham tido
muito que comer, e rações extra de rum, porque as pessoas em Inglaterra
tinham mandado imensa coisa para as tropas que estavam em França. Até
recebera um embrulho com peúgas, uma balaclava, chocolate e cigarros.
Descrevia jovialmente as condições em que tinham passado o dia, mas na
altura estava aboletado num celeiro a alguma distância das linhas da frente.
Nos dois anos subsequentes, continuara a haver embrulhos e rações
extra, mas muito menos jovialidade da parte de Jimmy. Belle esperava que
no Dia de Natal daquele ano ele experimentasse uma sensação de paz,
sabendo que nunca mais teria de passar por aquelas terríveis experiências.
Tinha lido nos jornais da manhã que todos os hospitais estavam a fazer
grandes esforços para proporcionar aos soldados feridos um Natal muito
especial. Além disso, muitos homens que se encontravam na frente haviam
tido licença; Garth não tivera mãos a medir, na noite anterior, e esperava
que aquela noite e a seguinte fossem ainda mais atarefadas. Belle espreit-
ara por uma fresta da porta do pub e vira um autêntico mar de caqui. A
maior parte daqueles homens, pensou, devia ter acordado com dores de
cabeça naquela manhã. Segundo Garth, tinham bebido como se o mundo
fosse acabar.
A ela doía-lhe a cabeça por causa da tensão e sentiu uma ligeira náusea
de nervosismo quando olhou uma vez mais para o espelho suspenso por
cima da lareira para verificar o seu aspeto.
Garth dissera-lhe, horas antes, que estava bonita, mas ela não concor-
dava. Os acontecimentos dos últimos meses tinham extinguido a centelha
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que antes a animava, emagrecera bastante, os olhos escuros pareciam de-
masiado grandes para a cara e estava muito pálida porque já quase não saía
de casa.
O vestido de lã azul-escuro, de decote subido e mangas compridas, era
uma peça já antiga que ela própria arranjara, subindo um pouco a bainha e
apertando-o para lhe cair melhor. Acrescentara uma gola e uns punhos de
renda para para lhe dar um ar mais alegre, mas o resultado não fora o dese-
jado. Continuava a parecer aquilo que era: um vestido velho a fingir ser
novo.
Não haveria roupas novas num futuro previsível. Ia ter de vigiar cada
penny, uma vez que a pensão de Jimmy não daria para muito. Ainda lhe
restavam algumas libras do tempo em que fechara a loja, mas sentia que
devia guardá-las para o futuro.
Havia muito movimento na rua, apesar do denso nevoeiro. Ouvia pess-
oas a falar, bebés a chorar, crianças a palrar e o bater de botas no passeio,
mas só muito de longe em longe tinha um vislumbre de qualquer coisa a
surgir do nevoeiro. Quando, de manhã cedo, saíra para ir comprar legumes,
havia filas em todas as lojas, e sabia que continuava a haver, escondidas na
bruma. A frutaria tivera um ar muito festivo, com montes de maçãs ver-
melhas, laranjas e nozes, mas tudo o que naquele momento via dela era o
clarão alaranjado das luzes. No talho, a poucas portas de distância do Rail-
way, parara para admirar os perus, os gansos e as galinhas suspensos sobre
a laje de mármore branco na qual estavam dispostos grandes pedaços de
carne de vaca, de porco e de borrego. Ouvira mulheres queixarem-se de
que todos os preços tinham subido, apesar de o jornal da manhã dizer que
o Governo prometera multar os que tentassem aproveitar-se da escassez de
bens alimentares. Talvez o fizessem nos bairros mais pobres de Londres,
mas duvidava que a lei fosse aplicada nas áreas mais ricas como
Blackheath.
Ainda à janela, viu um automóvel subir a colina a passo de caracol e
desaparecer no nevoeiro. Os automóveis tinham-se tornado tão comuns
que já quase ninguém reparava neles, e embora o padeiro, o leiteiro e o
carvoeiro continuassem a fazer as suas entregas de carroça, Belle calculava
que dentro de dez anos o transporte de tração animal teria desaparecido por
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completo. Só esperava que, nessa altura, ela e Jimmy já estivessem a viver
noutro sítio qualquer.
Garth começava a cansá-la com os seus preconceitos contra as mul-
heres. Compreendia que não era ele que estava agora pior; ela é que tinha
uma nova perspetiva depois de ter passado por França, mas os seus
comentários depreciativos constantes e a recusa em fazer fosse o que fosse
que considerasse coisas de mulher eram irritantes. Mog podia não se im-
portar de se lhe submeter, mas ela não estava disposta a seguir-lhe o exem-
plo, nem sequer a troco de uma vida tranquila.
Viu finalmente o carro de Mr. Gayle, e saiu disparada da sala, des-
cendo a escada a correr.
– Põe a chaleira ao lume, Mog, ele chegou! – gritou ao passar pela
porta da cozinha, onde Garth e Mog estavam sentados junto ao fogão.
Abriu a porta do carro para Jimmy se apear. Há muito tempo que não o
via usar outra roupa que não fosse o uniforme ou o pijama do hospital, e
pareceu-lhe muito diferente com o seu velho casaco de tweed, uma camisa
branca e o pulôver castanho que Mog lhe tinha tricotado.
– Bem-vindo a casa, Jimmy – disse, e estendeu a mão para lhe agarrar
o braço, mas repentinamente lembrou-se de que era artificial e retirou-a,
indo em vez disso abrir a porta de trás para tirar as muletas.
Jimmy aprendera técnicas para se deslocar e ela já descobrira que não
reagia bem a qualquer tentativa de interferência. Quando acabou de pegar
nas muletas, já ele rodara no banco e tinha o pé apoiado no chão.
– Passa-me uma – pediu, e, pegando na muleta, enfiou-a debaixo do
braço direito e conseguiu pôr-se de pé sem ajuda, equilibrando-se sobre a
única perna. Como sempre, Belle sentiu uma pontada de piedade ao ver a
perna das calças vazia e dobrada, e soube que todos eles iam ter de se ha-
bituar àquela visão. – Agora, põe essa debaixo do meu braço – continuou
Jimmy, a apontar para a segunda muleta. E então, enganchando os falsos
dedos na barra da muleta, saltitou agilmente em direção à porta lateral do
pub.
Era muito tentador elogiar-lhe a destreza com as muletas, mas Belle
sabia que ele detestava qualquer género de comentário, pelo que se limitou
a segui-lo, resistindo ao desejo de estender a mão para o agarrar se
tropeçasse.
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– Venha, Mister Gayle – disse por cima do ombro, depois de ter visto
Jimmy chegar ao vestíbulo. – Deve estar a morrer por uma chávena de chá.
Garth esperava no vestíbulo e, apesar de tudo o que Belle lhe tinha
dito, agarrou o braço do sobrinho.
– Largue-me – disse Jimmy secamente. – Só está a atrapalhar.
– Como esteve ele durante a viagem? – sussurrou Belle ao ouvido de
Mr. Gayle.
– Calado, quase não falou – murmurou ele em resposta. – Foi difícil
deixar os amigos, mas isso já era de esperar. E ter de vir tão devagar
quando apanhámos o nevoeiro não ajudou nada. Vi-o ficar mais tenso a
cada quilómetro.
Na cozinha, Jimmy escolheu a cadeira Windsor de braços junto ao fo-
gão e encostou as muletas à parede, a seu lado. Parecia agitado, a olhar em
redor como se nunca ali tivesse estado.
– É tão bom ter-te em casa – disse Belle, inclinando-se para o beijar e
abraçar, desapontada por ele não ter dito que era bom estar em casa com
ela. – Estamos todos muito entusiasmados por te ver, mas diz-nos se est-
ivermos a aborrecer-te, e paramos já.
– Como poderiam vocês aborrecer-me? – disse ele, mas não houve riso
e nem sequer um sorriso para mostrar que o dizia como um elogio.
– Sabes o que quero dizer, se estivermos a ser demasiado exigentes, ou
a falar de mais, ou se quiseres estar sozinho.
Beberam chá e comeram uma fatia de bolo de fruta e conversaram a
respeito de Haddon Hall e da viagem até casa. Foi uma conversa salpicada
de silêncios incómodos, que Mog tentou preencher com banalidades e Mr.
Gayle fez os possíveis por encaminhar para temas mais gerais.
– Ouvi dizer, esta manhã, que os lagos de Keston e Chislehurst têm
gelo suficientemente espesso para se poder patinar. Não me lembro de ter-
em gelado assim antes de janeiro – disse. – Mas o jornal também diz que lá
para o Norte já têm neve. Vai ser uma alegria para muitas crianças, ainda
que nós, os mais velhos, o encaremos com horror.
– Com o carvão ao preço que está, há muita gente que não vai con-
seguir manter um lume aceso – declarou Garth, num tom indignado. – O
Governo diz que vai baixar o preço, mas eu só acredito quando vir. É um
escândalo haver quem esteja a ganhar fortunas com tudo isto.
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– Eu nem queria acreditar no preço das nozes este Natal – interveio
Mog. – A quatro pence o quilo! E mesmo assim é preciso encontrá-las.
Ainda bem que comprei as minhas no verão, ou este ano não havia bolo
nem pudim de Natal.
– Tenho de ir – anunciou Mr. Gayle, mal acabou de beber o chá. – A
minha mulher convidou umas pessoas para esta noite e vai ficar zangada se
eu chegar atrasado.
Belle acompanhou-o até ao carro para se despedir.
– Ele vai ficar bem – disse Mr. Gayle, e fez-lhe uma festa na face. –
Vejo que está muito ansiosa… é assustador pensar que pode cair. Mas
agora domina perfeitamente as muletas e o equilíbrio, só é preciso que não
o deixe esforçar-se de mais demasiado cedo.
– Feliz Natal para si e para a sua família. E obrigada pelas boleias,
pelos conselhos e pela bondade.
– Feliz Natal também para si. O Jimmy é um homem com sorte por ter
uma mulher tão encantadora. Recorde-lho de vez em quando e não o trate
com luvas de veludo. É um homem adulto, não uma criança doente.
Quando voltou a entrar, Belle viu Garth sair do pub com um copo de
whisky na mão.
– Se isso é para o Jimmy, torne a levá-lo para dentro – disse em voz
baixa. – Não vai ajudá-lo de maneira nenhuma.
– Que mal pode fazer um copo? – ripostou ele, com aquela expressão
obstinada que tantas vezes fazia.
– Se ele começar a depender do whisky para aguentar o dia, vai ser ter-
rível para todos nós, não só para ele – disse ela, com uma inesperada
dureza. – Já lhe é suficientemente difícil equilibrar-se naquelas muletas es-
tando sóbrio; bêbedo, vai andar a cair por aí e a magoar-se. Pode beber um
ou dois copos à noite, quando estiver lá em cima, mas mais nada.
– Tu, minha menina, estás a tornar-te uma autêntica fera – respondeu
Garth e, dando meia-volta, regressou ao pub.

Jantaram na cozinha às seis, como de costume, antes de Garth ir abrir


o pub, à noite. Mog tinha feito a sua empada especial de bife e rim, de que
Jimmy sempre gostara tanto, mas ele pôs-se a empurrá-la de um lado para
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o outro, no prato, e só comeu meia dúzia de garfadas. Belle desejou com
todas as suas forças que Mog não dissesse nada. Em contrapartida, Jimmy
fez justiça ao pudim de arroz e às ameixas em calda.
– Fez pudim de arroz da primeira vez que cozinhou para nós, lá em
Seven Dials. Na altura desejei que ficasse connosco – disse.
Mog corou.
– Quem diria que te lembravas disso – respondeu, claramente
agradada. – Mas era um prazer dar-vos de comer, a ti e ao Garth. Meu
Deus, aquilo é que era despachar comida!
Depois de ter ajudado a lavar a louça, Belle disse a Jimmy que iam
subir à sala de estar do primeiro piso.
– A lareira está acesa, e é mais sossegada e mais confortável – ex-
plicou, mas a verdade era que não confiava em que Garth não tentasse
arrastá-lo para o pub se ele ficasse ali em baixo.
Notou o lampejo que perpassou pelo rosto de Jimmy, mas não saberia
dizer se tinha sido de pânico ou de irritação. Fosse como fosse, ele
levantou-se da cadeira.
No vestíbulo, sentou-se na escada e, agarrado ao corrimão, subiu os
degraus um a um, como ela o tinha visto fazer em Haddon Hall. Belle
seguiu-o, levando as muletas.
Quando Jimmy entrou na sala e viu a árvore de Natal e a lareira acesa
e as decorações, mostrou alguma emoção pela primeira vez desde a sua
chegada.
– Está muito bonito e acolhedor – disse, e voltou-se para ela com um
sorriso. – Como no primeiro Natal depois de termos casado.
Belle correu as cortinas enquanto ele se sentava no cadeirão junto à
lareira.
– Podemos jogar às cartas. Ou ler. Trouxe da biblioteca alguns livros
que achei que te iriam agradar.
– Ou podemos ficar só aqui sentados a olhar para o lume – sugeriu ele.
– Não costumavas ser tão nervosa. É por causa de mim?
– Penso que é só por termos estado tanto tempo longe um do outro –
disse ela, pensativa. – Calculo que sintas o mesmo. Não podemos fazer o
relógio andar para trás até onde estávamos antes de ires para França. –
Sentou-se no tapete ao lado da cadeira dele. – Antigamente quase não
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tínhamos tempo para isto – continuou. – Tu estavas sempre a trabalhar no
pub, e eu aqui a desenhar chapéus.
Jimmy estendeu a mão e tocou-lhe no ombro.
– Mas naquele tempo tínhamos sempre tanto que dizer um ao outro.
Seria de esperar que, ao fim de três anos, tivéssemos ainda mais.
– Penso que dentro de alguns dias voltará a ser assim. – Belle ergueu
os olhos para ele e sorriu-lhe. – Para mim foi estranho voltar aqui, e para ti
deve ser ainda mais estranho.
– Em Haddon Hall era tudo fácil – disse ele, pensativo. – Ninguém es-
perava nada de mim, os outros homens tinham passado pelo mesmo que
eu, não precisávamos de falar.
– Aqui também ninguém espera nada de ti – fez ela notar. – E muito
menos eu. Mas tens de dizer o que queres; ler pensamentos não é um dos
meus dons.
Esta fê-lo sorrir.
– Achar-me-ias miserável e ingrato se dissesse que a maior parte do
tempo tudo o que quero é absoluto silêncio?
Ela abanou a cabeça.
– É compreensível. Eu sinto muitas vezes o mesmo quando a Mog se
põe a tagarelar. O David… era o maqueiro que trabalhava comigo… disse-
me uma vez que não suportava a ideia de ir para casa porque sabia que a
mãe não ia parar de lhe fazer perguntas. Sei exatamente o que ele queria
dizer.
– Nesse caso, talvez corra tudo bem – disse ele.

Jimmy pareceu ficar muito perturbado quando quis ir para a cama e


descobriu que a arrecadação continuava a ser isso mesmo, uma
arrecadação.
– Não tiveste tempo para a despejar? – perguntou a Belle.
– Nem sequer tentei. – Jimmy tinha falado naquela divisão durante a
última visita dela, mas, seguindo o conselho do Dr. Cook, Belle ignorara-
o. – Vais dormir onde é o teu lugar, comigo no nosso quarto.
Dessa vez, a expressão dele foi mesmo de pânico.
– Mas vou incomodar-te se tiver pesadelos. Posso dormir no sofá.
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– Não, Jimmy – disse ela, inflexível. – O teu lugar é comigo. E se
tiveres um pesadelo, poderás contar-mo. Pus o teu pijama na cama. Vou só
lá abaixo buscar-te um copo de leite quente. Quando voltar, espero
encontrar-te na cama. E não há mais discussão.
Eram quase horas de fechar. Garth ainda estava no pub e, felizmente,
Mog parecia estar com ele, pois caso contrário Belle sabia que a bom-
bardearia com perguntas. Enquanto aquecia o leite na cozinha, esforçava-
se por não chorar. Jimmy não dera o mais pequeno sinal de querer beijá-la
durante todo o serão. E além de uma ou outra palmadinha no ombro, tam-
bém não lhe tocara.
Não sabia como dizer: «Não precisas de fazer amor comigo, basta que
me abraces.» Mas como era isso possível? Houvera um tempo em que po-
dia dizer tudo a Jimmy. A maior parte das vezes, nem sequer precisavam
de falar para se compreenderem.
Como ia conseguir romper o muro que ele erguera à sua volta? Em que
estava ele a pensar?
Quando voltou a subir a escada com o leite, ia meio à espera de o en-
contrar na sala, deitado no sofá. Sentia-se demasiado cansada para con-
frontações naquela noite, de modo que se estivesse, que lá ficasse.
Para sua surpresa, Jimmy estava na cama, enrolado sobre o lado direito
e com as mantas puxadas até às orelhas, como se pensasse que conseguia
tornar-se invisível. Belle pousou o leite ao lado dele, disse que não se de-
morava e foi para a casa de banho.
Quando voltou, de camisa de noite, ele tinha bebido o leite e tornado à
mesma posição. Enfiou-se na cama, apagou a luz e disse boa-noite.
Esperou. Nunca, nem uma única vez desde que se tinham casado, ele
deixara de lhe dar um beijo de boas-noites. Mas sentia como estava rígido
de tensão mesmo sem lhe tocar.
Finalmente, incapaz de ficar calada mais tempo, falou.
– Se tivesse sido eu a ser ferida, continuaria a querer que me ab-
raçasses – disse, de chofre. – Não me lembro de uma única noite nesta
cama em que não tenhas adormecido com um braço à minha volta.
Jimmy não respondeu.
– Não finjas que estás a dormir – atirou-lhe ela. – Ignorar-me não vai
fazer o problema desaparecer.
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– Então as prostitutas não sabem tudo a respeito de homens?
A resposta, apesar de quase sussurrada, pareceu ecoar pelo quarto.
Belle não conseguia acreditar que ele tivesse dito uma coisa tão cruel.
Demasiado aturdida para ripostar imediatamente, ficou ali deitada, a
olhar para a escuridão.
– Não acredito que tenhas sido capaz de dizer uma coisa tão má – disse
finalmente, com a voz a tremer. – Eu sei o que fui, mas tu costumavas ser
o homem mais bondoso e menos egoísta que alguma vez conheci. Uma vez
que pareces ter perdido o coração ao mesmo tempo que o braço e a perna,
é melhor eu voltar para França e deixar-te aqui a apodrecer de pena por ti
mesmo.
Levantou-se da cama e saiu a cambalear para a sala. Sentia-se como se
ele lhe tivesse batido.
Era impossível dormir. Tinha frio e não havia mantas e não podia ir
buscá-las sem que Mog se apercebesse de que alguma coisa tinha aconte-
cido. Estava furiosa e profundamente magoada porque nunca esperara que
Jimmy lhe atirasse o passado à cara, sobretudo para evitar qualquer con-
tacto físico com ela.
Detestava o facto de estar encurralada. Ele podia tratá-la tão mal
quanto quisesse, mas ela não podia abandoná-lo. E não seria justo para
Mog deixá-la a apanhar os cacos do seu casamento.
Talvez ele estivesse só a vingar-se por ela o ter obrigado a dormirem
juntos. Mas em quase todas as suas cartas dos últimos anos ele falara de
como sonhava estar aninhado na cama ao lado dela. Não podia tê-lo esque-
cido, e por muito medo que tivesse de ter perdido a capacidade de fazer
amor, com certeza continuava a querer tê-la perto de si. Ou não?
Ouviu-o levantar-se da cama, ouviu o som das muletas a bater no chão
e refugiou-se na casa de banho. Conteve a respiração, segura de que ele
iria procurá-la e pedir desculpa, mas Jimmy voltou para o quarto e fechou
a porta.

Muito antes de haver luz, quando ainda não se ouvia qualquer som na
rua, Belle levantou-se, vestiu-se na casa de banho, escovou o cabelo,
prendeu-o num rolo e desceu as escadas. Era véspera de Natal, o dia mais
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atarefado no pub, e Garth e Mog não tardariam a descer para se preparar-
em. A ideia do encontro amedrontava-a. Sabia que, fosse qual fosse a
mentira que inventasse, não conseguiria enganar Mog.
Por isso pôs um avental e preparou a mesa para o pequeno-almoço,
com a intenção de ser corajosa e fingir que só se levantara mais cedo para
os ajudar. Preparou também uma bandeja para Jimmy, porque se lhe
levasse o pequeno-almoço à cama, quando ele descesse, horas mais tarde,
Mog e Garth estariam demasiado atarefados para reparar fosse no que
fosse.
Estava a fritar bacon e ovos quando Mog desceu.
– Oh, querida! Que agradável surpresa. Mas devias ter ficado na cama
e deixado isso para mim – disse, com o rosto esguio enrugado num sorriso.
– Como está o Jimmy?
– Ainda estava a dormir quando desci – respondeu Belle. – Vou levar-
lhe o pequeno-almoço.
Levou a bandeja de Jimmy para cima enquanto Garth e Mog se sen-
tavam à mesa. Jimmy continuava deitado na mesma posição em que ela o
vira na noite anterior, como se não se tivesse mexido.
– O teu pequeno-almoço, Jimmy – disse ela secamente. – Talvez fosse
boa ideia ficares aqui, por enquanto. Não quero que a Mog perceba que
aconteceu alguma coisa e fique preocupada.
– Desculpa, Belle. O que eu disse foi imperdoável.
Uma parte de si queria aceitar as desculpas e dizer que sabia que o que
ele dissera não viera do coração. Mas a outra parte estava ainda demasiado
magoada para perdoar assim tão facilmente.
– Nada é imperdoável com o tempo, e algumas provas de que não es-
tavas a falar a sério – disse, cautelosa. – Mas neste momento estou muito
magoada, portanto senta-te e come para que eu possa ir tratar das minhas
outras tarefas.
– Por favor, fica e fala comigo – pediu ele.
– Não posso, há muito que fazer lá em baixo. Compreendo que te
sentes só meio homem e que precisas de tempo para te resignares com o
que aconteceu. Mas pôr-me à margem e ser mau para mim por causa do
meu passado não é a melhor maneira de lidar com o assunto. Falamos mais
tarde.
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Disse a Mog e Garth que Jimmy estava cansado e ia ficar na cama.


Tinham os dois tanto que fazer que nenhum fez perguntas. Belle foi para o
pub com Mog tratar da limpeza, Garth foi trabalhar para a cave.
Mais tarde, Belle saiu para limpar os latões da porta do pub. Estava
muito frio, e o nevoeiro era tão denso que não conseguia ver o outro lado
da rua. Sentia-se desolada, assustada e esmagada pela perspetiva de que
aquela ia passar a ser a sua vida, com as tarefas domésticas como única
maneira de fugir à frustração.
A meio da manhã, levou a Jimmy uma chávena de chá e uma fatia de
bolo. Encontrou-o sentado na cama a ler um livro, e quando pousou o tab-
uleiro no colchão ele tentou agarrar-lhe a mão, mas ela sacudiu-o e saiu do
quarto.
Mog levou-lhe sanduíches e sopa à hora do almoço. Comunicou que o
achara «abatido» e que ele dissera que ia ficar no quarto para não atrapal-
har ninguém.
– É um rapaz corajoso – disse carinhosamente. – Vai ser agradável
amanhã, quando pudermos estar todos juntos sem termos de nos preocupar
com o pub. Agora está lá imensa gente! Quatro filas de profundidade em
frente do balcão quando fui levar os copos, e logo à noite vai ser ainda pi-
or. Eu bem queria ir à missa da meia-noite, mas este ano Deus vai ter de
me desculpar, acho que não vou ter forças para ir até à igreja quando
fecharmos a porta.
Belle ficou contente por haver fartura de copos para lavar e de san-
duíches para fazer. Depois de o pub fechar para o intervalo da tarde,
varreu-o e tornou a lavar o chão, e em seguida limpou a latrina exterior que
os clientes usavam, tudo para evitar estar com Jimmy. Entretanto, a raiva
tinha desaparecido, deixando apenas a dor e o cansaço.
Já passava bem das onze quando Garth conseguiu pôr os últimos cli-
entes na rua e fechar a porta. Tinha passado a noite a beber e não estava
muito firme nas pernas. Mog empurrou-o escada acima, e depois ela e
Belle recolheram os copos e limparam as mesas e o balcão.
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– O resto pode esperar até depois de amanhã – disse Mog, a olhar para
o chão cheio de poças de cerveja onde nadavam pontas de cigarro. – Vou
só fechar a caixa, e depois cama.
Foi Belle que deu a volta para verificar se todas as portas e janelas es-
tavam fechadas e apagar as luzes. Estava morta de cansaço e sabia que não
seria capaz de aguentar mais uma noite no sofá, mas também não queria ter
de enfrentar Jimmy. Sabia que não devia ter sido agradável para ele ter fic-
ado sozinho no quarto, com a gritaria e os risos que vinham lá de baixo. A
última vez que o vira fora às seis e meia, quando lhe levara um jantar frio
de fiambre, queijo e pickles. Mas Jimmy sabia como era a véspera de Natal
num pub, de modo que não estivera com certeza à espera de que qualquer
deles subisse para o ir ver.
Estava a ler na cama quando ela entrou no quarto, já de camisa de
noite vestida.
– O Garth devia estar bêbedo – disse ele. – Ouvi-o falar sozinho no
corredor. Tiveram todos muito que fazer esta noite, e tu estás com um ar
cansado.
– Sim, estou – respondeu ela. – Era capaz de dormir uma semana.
– Ainda bem que vieste dormir comigo. Estou muito arrependido,
Belle. Quem me dera poder retirar o que disse.
– São águas passadas – disse ela, e estendeu a mão para lhe acariciar a
cara. – Daqui a nada é Dia de Natal. A Mog costumava dizer-me, quando
eu era pequena, que no Natal havia magia no ar, de modo que talvez,
quando acordarmos amanhã, esteja tudo bem no mundo.
Enfiou-se na cama e apagou a luz. Enquanto deslizava para o sono,
sentiu-o beijar-lhe a parte de trás do pescoço e sussurrar que a amava.
CAPÍTULO 23

N a manhã de Natal, Belle levantou-se às sete, quando Jimmy, Mog e


Garth ainda dormiam profundamente, e acendeu a lareira na sala de
estar.
Acordara com Jimmy aninhado contra as suas costas, e aquilo fora tão
bom que decidira pôr de lado a sua mágoa e certificar-se de que toda a
gente tinha um dia feliz.
Depois de acender a lareira, desceu à cozinha, arrumou o que ficara da
noite anterior e pôs o peru a assar no forno. Mais tarde, quando ouviu Mog
a movimentar-se lá em cima, levou uma bandeja com o chá e as chávenas e
sugeriu que se reunissem todos na sala.
Mog tinha feito um grande esforço para melhorar a sua aparência.
Usava um vestido rosa-chá, com bordados num tom mais escuro no cor-
pete, que Belle não lhe conhecia e que lhe tornava mais brilhante a pele
emaciada. Pareceu ficar encantada por ter outra pessoa a tratar de tudo e
sentou-se, com um ar satisfeito, no sofá.
– Lembrei-me de fazer sanduíches de bacon para comermos aqui, e de-
pois podemos abrir os nossos presentes – disse Belle, enquanto pousava a
bandeja ao lado de Mog, para que fosse ela a servir.
Garth entrou na sala. Estava claramente a sofrer os efeitos dos ex-
cessos da noite anterior, mas vestira uma camisa ofuscantemente branca,
com colarinhos de pontas reviradas, e um casaco verde-escuro.
– Isso é chá? E alguém falou de sanduíches de bacon? – disse Jimmy,
da porta. – Meu Deus, estão todos muito elegantes. Eu devo parecer o par-
ente pobre.
– Não pareces nada – respondeu Belle. Jimmy vestira o casaco de
malha castanho que Mog lhe fizera, e ela apercebeu-se de que lhe era
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muito mais fácil movimentar-se só com uma mão do que se estivesse a
usar um casaco formal. – E, sim, ouviste falar de sanduíches de bacon.
Vou lá abaixo buscá-las. Não deixes a Mog sair daqui.
Jimmy sentou-se no cadeirão de braços, com as muletas ao lado. Belle
inclinou-se para o beijar na face antes de sair da sala.
– Estás com um ar mais descansado hoje – observou.
Ele pousou-lhe a mão no rosto e olhou-a nos olhos.
– Durmo melhor contigo a meu lado – sussurrou.

Acabou por ser um dia encantador. Lá fora, estava um frio de rachar e


o nevoeiro continuava denso, mas isso só tornava o ambiente à volta da
lareira ainda mais aconchegado. As prendas de Mog para eles eram tudo
coisas que ela própria fizera. Devia ter planeado tudo com um ano de
antecedência, pois havia um bonito casaco de lã verde-escuro para Garth,
uma camisa de flanela macia para Jimmy e um xaile rendado de lã encar-
nada para Belle.
– Não pude comprar nada para nenhum de vocês – disse Jimmy
tristemente.
– Deste-nos a melhor de todas as prendas de Natal estando em casa
connosco – respondeu Belle, enquanto punha o xaile novo à volta dos
ombros.
Garth pareceu surpreendido quando Jimmy e Belle abriram as prendas
oferecidas por ele. Todos riram, sabendo perfeitamente que fora Mog
quem comprara o pijama para Jimmy e as meias para Belle. Mas Garth
comprara sozinho a prenda para Mog, e pedira na loja que lha embrul-
hassem. Era uma estola de raposa prateada para usar por cima do casaco,
uma coisa que ela sempre quisera. Ela deu um grito de contentamento ao
abrir a caixa, e saltou para Garth para o abraçar.
– Achei que não ouvias quando eu falava nela – disse. – Nunca tive
nada tão bonito. É melhor começar a ir outra vez à igreja, para poder exibi-
la.
Garth revelara o segredo a Belle, que se escondera no quarto durante
dias para fazer um chapéu que desse com a estola. Era estilo cloche, que
ficava bem a Mog, com uma base de cetim cinzento-prateado, aplicações
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de um cinzento ligeiramente mais escuro e rosetas de cetim em dois tons
de um dos lados. Para Garth comprara um lenço de pescoço de cetim
branco e para Jimmy um jogo de xadrez. Sabia que ele jogava muito xad-
rez em Haddon Hall e esperava que lhe ensinasse para poderem jogar
juntos.
Mog fê-los rir pondo o chapéu e a estola de raposa e pavoneando-se
pela sala como uma duquesa. Belle apercebeu-se de que era a primeira vez
que ria a sério desde que regressara de França, e era muito bom ver Jimmy
relaxado e feliz por estar com eles.
Annie enviara-lhe uma magnífica caixa de chocolates. Mas por muito
bons que fossem, Belle teria ficado mais satisfeita com uma carta que
manifestasse alguma preocupação com Jimmy e perguntasse como todos
eles estavam. Não havia sequer um simples bilhete a acompanhar a caixa.
– Às vezes não sei mesmo o que pensar dela – disse Mog, indignada. –
Escrevi-lhe quando soubemos do Jimmy. Não se deu ao trabalho de re-
sponder. Mas aposto que se estivesse num aperto, aparecia aqui em menos
de um fósforo.
– Ela que não conte que eu fique feliz por a ver, se o fizer – disse
Belle. – Nem sequer vou agradecer-lhe os chocolates. Graças a Deus por ti,
Mog! Vales mais sozinha do que cem Annies.
Mais tarde, Belle e Mog foram para a cozinha tratar do jantar, deixan-
do Garth e Jimmy a jogar xadrez.
– O Jimmy hoje está muito melhor. Ou talvez seja por tu estares a ser
mais simpática para com ele – observou Mog num tom carregado de in-
tenção, enquanto preparavam os legumes.
– Ontem mantive-me afastada porque ele me disse uma coisa horrível
– desabafou Belle. – Não o merecia, e não vou consentir que o torne a
fazer. Mas agora já passou, disse o que tinha a dizer e está esquecido.
– Espero que vocês os dois consigam voltar a ser como eram – disse
Mog, pensativa. – Mas suponho que isso seria pedir este mundo e o outro.
Esta guerra mudou-nos a todos.
– Talvez um dia descubramos que nos mudou para melhor – respondeu
Belle, e aproximou-se de Mog, abraçando-a.
Mog desfez o abraço ao cabo de alguns instantes e segurou a cara de
Belle com ambas as mãos.
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– Conheço-te melhor do que ninguém – disse, olhando-a nos olhos. –
Por isso sei que te aconteceu qualquer coisa em França. E não foi só a
morte da Miranda, nem as coisas que viste. Foi mais qualquer coisa. Seja o
que for, podes contar-me.
Mog sempre tivera a capacidade de perceber quando alguma coisa a
perturbava, e Belle recordava, do passado, que se sentia sempre melhor de-
pois de ter desabafado, mas agora era uma adulta, e havia coisas que era
melhor manter em segredo.
– Cresci, foi só isso – disse, e sorriu carinhosamente à mulher mais
velha. – Quando eu e o Jimmy casámos, tinha tudo o que podia desejar.
Convenci-me de que os tempos maus tinham passado e que viveríamos fel-
izes para sempre. Sei que também tu pensaste o mesmo quando te mudaste
para aqui e casaste com o Garth. Mas não estava destinado a acontecer.
Talvez precisemos de tempos maus para nos fazer apreciar plenamente os
bons.
– Hoje parece ser um dos bons.
– Sim, é verdade, e demos graças por isso. Vou pôr a mesa, e vamos
empanturrar-nos de comida até não podermos mais. Vamos esquecer a
guerra e o que o futuro pode trazer e limitar-nos a ser felizes juntos.

– Foi um dia maravilhoso – disse Jimmy quando se deitaram nessa


noite. – Tu e a Mog trabalharam tanto para o tornar perfeito. Foi o melhor
jantar da minha vida. Se os rapazes em França soubessem o que comemos
babavam-se todos.
Ao longo do dia, Jimmy falara de vários amigos, e era evidente para
Belle que tinha saudades da camaradagem do Exército e compreendia que
mesmo que pudesse voltar a trabalhar atrás do balcão, nunca mais ia en-
contrar na vida civil aquela profundidade de amizade. A ela acontecia-lhe
o mesmo, mas a incapacidade de Jimmy ia tornar mais difícil para ele fazer
novos amigos.
– Tens de escrever a alguns deles – disse. – Tenho a certeza de que hão
de querer saber como vais indo, e talvez até possam voltar a juntar-se todos
quando isto acabar.
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– Acho que tens razão – concordou ele, pensativo. – E também seria
bom saber em primeira mão o que está a acontecer por lá. Os jornais não
contam as coisas como na verdade são. E tu, continuas a escrever àquela
tua amiga do hospital?
– Já escrevi à Vera várias vezes – respondeu Belle. – Estão a receber
cada vez mais feridos australianos, canadianos e neozelandeses. Está pre-
ocupada com os irmãos, sempre meio à espera de os encontrar no próximo
comboio. Tenho saudades dela.
– E eu tenho saudades da rapaziada com quem estava – admitiu
Jimmy. – Estávamos sempre a discutir, a implicar uns com os outros, e eu
costumava pensar que alguns deles eram idiotas chapados. Mas agora,
quando olho para trás, vejo-os como os irmãos que gostaria de ter tido.
Amigos como nunca tive na vida civil.
– Nunca tiveste tempo para fazer amigos, estavas sempre a trabalhar.
Eu também nunca tive uma verdadeira amiga até conhecer a Miranda.
Temo-nos um ao outro, Jimmy, somos bons amigos, mas não é a mesma
coisa que ter amigos do nosso próprio sexo, pois não?
– Não, querida, não é. Mas eu prefiro ter-te a ti como única amiga do
que um batalhão inteiro de homens.
– É bom saber disso – disse ela, e chegou-se mais para ele.
– Boa-noite – disse Jimmy, e voltou-lhe as costas.
Belle ficou ali deitada durante algum tempo, a sentir-se triste e desa-
pontada. Fora um dia tão agradável, e de certeza não era pedir demasiado
esperar um pouco de carinho agora que chegara ao fim. Pois não?

Na noite de Ano Novo, por insistência de Garth, Jimmy juntou-se-lhe


relutantemente no pub. Voltou a sair menos de uma hora mais tarde, com
um ar abalado, e foi sentar-se na cozinha com Mog e Belle.
– Não aguentava mais – explicou. – Metade deles queria saber os por-
menores mais mórbidos do que me aconteceu, a outra metade conhecia al-
guém que tinha ficado ainda pior do que eu e seguira em frente. Não quero
falar de ferimentos. Nem de quem morreu. Ainda por cima, estava um des-
graçado qualquer sentado num canto a tossir de tal maneira que parecia
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que ia deitar os pulmões cá para fora. Tinha sido gaseado. Não estou pre-
parado para isto.
Belle pensou que devia estar satisfeita por ele não ter gostado de estar
no pub. Um dos seus maiores medos fora que Jimmy quisesse ir para lá to-
das as noites, e então ela teria de ajudá-lo a subir a escada depois do fecho
e ouvir as suas divagações de bêbedo. Mas não conseguia sentir-se satis-
feita. Apesar de tudo ter corrido bem no Dia de Natal, depois disso ele vol-
tara a fechar-se em si mesmo, sem falar, sem mostrar o mínimo interesse
em coisa alguma nem ninguém.
Tentara atraí-lo para fora da concha, conversando acerca de pessoas e
de coisas de que ele tinha gostado, pedindo a Mog que cozinhasse os seus
pratos preferidos, interrogando-o a respeito dos amigos que fizera na tropa.
Mas o muro que Jimmy erguera à sua volta parecia estar a tornar-se mais
alto de dia para dia.
O nevoeiro tinha levantado no dia 26, e então nevara. Belle fora dar
um passeio pela charneca e vira grupos de crianças a arrastar trenós, a trav-
ar batalhas com bolas de neve e a fazer bonecos de neve. Regressara a casa
revigorada e sugerira que comprassem uma cadeira de rodas, para que
Jimmy pudesse sair também. Mas ele mostrara-se desdenhoso,
perguntando-lhe se ela achava que seria capaz de o empurrar colina acima.
Era verdade que fosse qual fosse a direção que tomassem a partir do
Railway encontrariam uma colina, mas ela era forte, conseguiria empurrá-
lo, ou pelo menos tentar. Tencionaria ele verdadeiramente ficar fechado
em casa para sempre?
Dentro de mais um par de horas seria 1918. Uma altura para ser
otimista e esperar que o ano que aí vinha fosse melhor. Porque não con-
seguiria ele ver as coisas deste modo?
– Vou para a cama – disse Jimmy.
– Tão cedo? – exclamou Mog. – Fica connosco a ver chegar o novo
ano.
– O que é que há para ver? – perguntou ele, com um encolher de om-
bros. – Centenas de copos para lavar, a latrina do pátio a transbordar de
mijo e vomitado, e bêbedos a dizer disparates. Prefiro estar na cama.
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Belle sentiu o coração afundar-se-lhe no peito. Embora compreendesse
que ele se sentisse inútil por não poder trabalhar, aquele negativismo a re-
speito de absolutamente tudo estava a afetá-los a todos.
– Vai então – disse. – Antes isso do que estragares o prazer dos outros.
Mog voltou-se para ela assim que Jimmy saiu da cozinha.
– Não consegues ser mais generosa? Não costumavas ser cruel.
– Sou cruel por querer que ele fale connosco? Por aceitar o que aconte-
ceu e pensar nas coisas que ele ainda pode fazer em vez de todas aquelas
que já não pode? – eriçou-se Belle. – Para começar, podia começar a tratar
das contas do pub, que são uma dor de cabeça para o Garth.
– Já lho sugeriste?
– Claro que já lho sugeri, mas ele quase me arrancou a cabeça. Pergun-
tou como era possível alguém perceber o sistema do Garth.
– O Garth não tem nenhum sistema – disse Mog. – É por isso que as
contas são uma dor de cabeça. Nunca conheci ninguém tão desorganizado.
– O Jimmy podia inventar um: é inteligente, é bom a fazer contas.
Além disso, já o fazia antes de se alistar.
– Estás sempre tão impaciente – queixou-se Mog. – Ele só voltou para
casa há uma semana. Não podes deixá-lo sossegado durante algum tempo?
Deixá-lo encontrar o seu próprio caminho?
Belle queria dizer a Mog que talvez tivesse razão, que era a frieza de
Jimmy para com ela que estava a fazê-la parecer cruel e impaciente, mas
não conseguia admitir algo tão pessoal.
Durante as duas semanas que se seguiram, não voltou a fazer qualquer
sugestão a Jimmy a respeito de coisas que podia fazer. Ignorou os longos
silêncios e os comentários venenosos dele, deixou-o ir cedo para a cama
sem dizer nada, apesar de saber que era um estratagema para evitar
qualquer contacto físico, ou até qualquer conversa.
O tempo também não estava do lado dela. Primeiro a neve, que de-
pressa se transformou em lama, e depois mais nevoeiro, que mesmo
quando se dissipava era para mostrar um céu cor de chumbo. Estava tanto
frio que até um curto passeio a fazia sentir-se como se alguém estivesse a
arrancar-lhe a pele da cara, e embora conseguisse sempre encontrar o que
fazer em casa, os dias arrastavam-se, intermináveis.
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As coisas tinham estado muito sossegadas no pub desde o Ano Novo,
o que deixava Mog e Garth com imenso tempo livre. Belle percebia que
também eles começavam a ser afetados pelos humores de Jimmy, como
provava o facto de agora discutirem por causa de ninharias. Mog queixava-
se de constantes dores de cabeça, e Belle sentia que a pressão estava a
acumular-se no interior de todos eles e que, se rebentasse, só poderia resul-
tar em mais perturbação e infelicidade para toda a gente.
Por isso decidiu que, a bem de todos, tinha de arranjar quem a aconsel-
hasse a respeito de Jimmy e, numa terça-feira à tarde, foi até ao Herbert
Hospital, na esperança de que uma das irmãs que conhecera pudesse
recomendar-lhe alguém capaz de a ajudar.
Dirigiu-se à sua antiga enfermaria, onde encontrou as irmãs, na sua
maioria desconhecidas, a instalar mais uma leva de feridos. Já quase tinha
esquecido a atividade frenética daqueles momentos, e quando se deteve à
porta, à procura de um rosto familiar, ficou chocada ao ver que os novos
pacientes eram maioritariamente queimados, com a cara, os ombros e os
braços em carne viva. O cheiro era tão horrível que a fez engasgar-se.
– Veio ver um dos pacientes? – perguntou-lhe uma enfermeira que car-
regava uma resma de lençóis lavados.
Belle explicou que trabalhara ali e que tinha ido na esperança de en-
contrar a irmã May.
– Deve estar noutra enfermaria – disse a irmã. – Esta agora é só para
queimados. Talvez um dos porteiros possa dizer-lhe aonde se dirigir.
– Porque é que há tantos casos de queimados? – perguntou Belle.
– Fogo líquido – explicou a enfermeira. – Estes vieram de Cambrai,
pobres diabos. De todas as armas que usam na guerra, penso que esta é a
pior. Os que sobrevivem ficam marcados para toda a vida.
Belle agradeceu à enfermeira e retirou-se. Adivinhou que naquele mo-
mento a azáfama seria igual em todas as enfermarias e que ninguém teria
tempo nem vontade para falar de um homem que já não se encontrava em
estado crítico. Pensou que o melhor seria procurar o Dr. Towle e pedir-lhe
conselhos.
Enquanto regressava a casa com as imagens daqueles homens horrivel-
mente queimados a encher-lhe a cabeça, a raiva que tentara com tanto es-
forço reprimir naquelas duas últimas semanas começou a fervilhar-lhe no
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peito. Desejou que Jimmy pudesse ver aqueles homens. Talvez então per-
cebesse que perder um braço e uma perna nunca poderia ser tão mau como
sofrer aquelas terríveis queimaduras.
No entanto, enquanto caminhava, apercebeu-se também de que a sua
raiva não era só por causa de Jimmy. Havia todo um conjunto de coisas a
provocá-la e ela estava a projetar tudo nele só porque estava mais perto e o
via todos os dias.
Como podia alguém não estar furioso com uma guerra que matava
tantas dezenas de milhares de jovens e deixava mutilados muitos mais?
Havia viúvas deixadas com filhos sem pai, algumas em situações desesper-
adas, incapazes de pagar a renda da casa e comprar comida. Estava a
tornar-se cada vez mais comum encontrar homens feridos a mendigar nas
ruas, e ainda um ou dois dias antes lera que em algumas áreas mais pobres
das grandes cidades a subnutrição infantil estava a atingir níveis equipará-
veis aos da época vitoriana.
E depois havia os seus agravos pessoais. Que não tinham que ver só
com Jimmy. Era a falta de interesse ou de solidariedade da mãe, e a in-
justiça de Mog ser ostracizada na aldeia por causa do que Blessard tinha
escrito no seu pasquim. A tudo isto somava-se o desgosto pela morte des-
necessária de Miranda, e a dor e a culpa que sentia por ter deixado Étienne
voltar a entrar na sua vida.
Sabia que era a impotência que lhe alimentava a raiva. Não podia fazer
o que quer que fosse em relação a qualquer daquelas coisas. Não podia
acabar com a guerra, ajudar os que precisavam nem tornar Jimmy inteiro
outra vez. Tudo o que podia fazer era aguentar, esperar sem esperança que
o tempo trouxesse soluções para todos os problemas.
Parecia-lhe, no entanto, que passara demasiado tempo da sua vida a
aguentar isto e aquilo. Só por uma vez, gostaria de ripostar, recusar ser
como uma folha levada pelo vento de um lado para o outro. Assumir uma
posição e mantê-la.
Assomou-lhe ao espírito uma recordação de Miranda. Estava sentada
na cama, na cabana, certa noite, a escrever uma carta para casa. Vestia uma
camisa de noite cor-de-rosa e o cabelo louro caía-lhe em cascata sobre os
ombros. Mas, de repente, atirara a carta para o chão.
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– Estou farta de tentar fazê-la gostar de mim! – exclamara, e começara
a chorar.
Belle levantara-se da sua cama e fora para junto da amiga, passara-lhe
um braço pelos ombros.
– A tua mãe? – perguntara-lhe.
– Quem havia de ser? – soluçara Miranda. – Não quer saber para nada
do que faço aqui, só está encantada por me ter longe da vista e do
pensamento. Escrevo todas as semanas, tento tornar as cartas interessantes
e mostrar-lhe que sou boa no meu trabalho, uma autêntica Florence
Nightingale numa ambulância. Mas tudo o que consigo é algumas linhas
de tantas em tantas semanas, nada a meu respeito, a dizer que a Amy vai
casar com um visconde, que os meus irmãos estão a ganhar muito dinheiro
e a descrever os bailes e festas de sociedade a que vai. A única coisa capaz
de a fazer ficar satisfeita comigo era eu morrer aqui, para ela poder gabar-
se às insuportáveis das amigas que dei a vida pelo rei e pela pátria.
No dia seguinte, Miranda pedira desculpa pelo desabafo, mas não o
desmentira. E quando, depois de ela morrer, Belle estava a emalar as
coisas da amiga, lera as poucas cartas da mãe que estavam no cacifo. Era
como se tivessem sido escritas por alguém que mal conhecesse Miranda,
ainda mais frias do que ela dissera.
Recordar isto lançou mais lenha para a fogueira da fúria de Belle. A
odiosa Mrs. Forbes-Alton nem sequer respondera à carta em que lhe dava
mais pormenores sobre a morte da filha e contava como toda a gente no
hospital estava desolada. Em vez disso, acusara-a maldosamente de ter
sido a culpada e caluniara-a nos jornais, destruindo o bom nome e a feli-
cidade de Mog ao ponto de ela já não ter sequer coragem de ir à igreja com
receio de ser humilhada.
Como um raio que tivesse caído do céu de chumbo, Belle viu que
aquilo era uma coisa que não tinha de aguentar. Devia ter ido até ao Par-
agon logo que regressara de França e dito umas verdades a Mrs. Forbes-
Alton. Era o que Miranda teria esperado que fizesse.
À medida que uma ideia começava a formar-se-lhe no espírito, quase
conseguia ouvir Miranda a incitá-la a fazê-lo. Mog não aprovaria, Jimmy
ficaria horrorizado, mas ela não queria saber do que qualquer um dos dois
pensava. Estava farta de permitir que as pessoas a espezinhassem, e há
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alturas em que é preciso combater o fogo com fogo. Não podia endireitar o
mundo, mas podia dar àquela malvada mulher o castigo que merecia.

Nessa noite, Belle foi capaz de ignorar o silêncio sombrio de Jimmy


porque tinha o cérebro a fervilhar com os pormenores do seu plano. Pensar
nele animava-a da mesma maneira que, em tempos, desenhar costumava
animá-la.
E tencionava pô-lo em prática já no dia seguinte.
Miranda dissera que a mãe organizava uma tarde de bridge em sua
casa todas as quartas-feiras. Explicara, em tom de brincadeira, que sabia
sempre quando eram duas horas porque a campainha da porta da frente
tocava pontualmente, e que as amigas da mãe se retiravam, com igual pon-
tualidade, às quatro. Acrescentara que os jantares de quarta-feira eram
sempre um tormento, porque era obrigada a ouvir uma extensiva repetição
das coscuvilhices da tarde, e que o seu desejo era poder fazer o que o pai
invariavelmente fazia, e que era ausentar-se.
Às quatro em ponto, um pouco mais abaixo na rua, Belle viu as
jogadoras de bridge saírem de casa dos Forbes-Alton. Já tinha escurecido,
mas a luz do vestíbulo no número 12 era suficientemente brilhante para
permitir ver Mrs. Forbes-Alton recortada no umbral, e Belle ouviu a voz
estridente da mulher dizer os últimos adeus.
Duas das mulheres entraram para um automóvel que as esperava, en-
quanto as restantes se afastavam apressadamente em direção a casas vizin-
has. Quando a porta se fechou, Belle avançou, determinada, e tocou à
campainha.
Tinha feito um esforço sério para parecer elegante e cativante. Era im-
portante transmitir a mensagem de que era dura e implacável. O bonito
chapéu encarnado, pequeno e redondo, realçava o negro dos caracóis, e ve-
stira o casaco que Jimmy lhe comprara pouco depois de terem casado,
azul-escuro, cintado e assertoado ao elegante estilo cossaco, com um
debrum de pele ao longo da bainha, na gola e nos punhos.
Tal como esperara, foi a própria Mrs. Forbes-Alton quem abriu a
porta, imaginando que uma das amigas voltara para trás por ter esquecido
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qualquer coisa. Quando viu Belle à sua frente, o sorriso desapareceu-lhe do
rosto.
Belle colocou um pé, calçado com uma elegante bota, na abertura da
porta, para a impedir de a fechar, e disse:
– Sim, sou eu. Penso que é tempo de termos uma conversa.
– Não tenho nada para lhe dizer – trovejou a mulher. – Saia da minha
casa.
Era mais alta do que Belle se lembrava, e muito corpulenta. Tinha o
cabelo grisalho elaboradamente arranjado em rolos com a forma de
salsichas presos no alto da cabeça, o que só servia para chamar ainda mais
a atenção para os seus múltiplos queixos. Vestia um vestido de chá púrpura
com folhos de renda cruzados sobre o peito volumoso, e a cor fazia-a pare-
cer biliosa.
– Não precisa de falar, só de ouvir – disse Belle, com uma sugestão de
ameaça. – Se não ouvir, vou daqui diretamente ter com o seu amigo Mister
Blessard e falo com ele. Garanto-lhe que não vai gostar.
– Como se atreve a ameaçar-me? – exclamou Mrs. Forbes-Alton, os
olhos azul-claros muito abertos de surpresa face a tamanha audácia.
– Não a ameacei – respondeu Belle descontraidamente. – Só lhe disse
que era melhor ouvir-me. Não há nenhuma ameaça nisso. E agora, vai
convidar-me a entrar, ou vou ter de gritar diante da sua porta?
Belle esperara estar nervosa; o seu grande medo era não ser suficiente-
mente corajosa e eloquente para transmitir o ultimato como devia ser. Mas
agora estava ali, diante da mulher que causara tanta infelicidade a Miranda,
e via que era uma déspota e, como a maior parte dos déspotas, a única
coisa de que tinha medo era de alguém mais poderoso do que ela.
O rosto da mulher traía-lhe os pensamentos. Não queria uma cena à
porta de casa, onde alguém podia ouvir, e esperava que Belle se sentisse
intimidada uma vez no interior da magnífica mansão dos Forbes-Alton.
– Não tenho o hábito de falar com ninguém à porta da rua – disse,
voltando-se a começando a atravessar o vestíbulo.
Belle sorriu. A mulher esperava que ela hesitasse, mas, em vez disso,
fechou a porta e seguiu-a até à sala de estar. Viu duas mesas de jogo, com
as cartas ainda espalhadas pelo pano verde. Calculou que a criada já devia
ter saído, ou estaria naquele momento a limpar e arrumar.
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– Uma bonita sala – disse enquanto olhava em redor, interessada. Era,
na realidade, uma sala vitoriana, com móveis pesados, quadros sombrios e
uma quantidade enorme de ornamentos muito feios. – Claro que a Miranda
ma descreveu em pormenor, de modo que é como se já cá tivesse estado.
– É uma jovem muito impertinente. Faça o favor de não esquecer o seu
lugar – ladrou Mrs. Forbes-Alton num tom indignado. Foi colocar-se atrás
de uma cadeira, a olhar para Belle com uma expressão furiosa.
– O meu lugar? – troçou Belle. – Que noção tão deliciosamente anti-
quada. Que eu repudio, claro.
– O que é que quer? – perguntou Mrs. Forbes-Alton, traída por algum
nervosismo. Belle calculou que era por estar sozinha em casa.
– Quero que diga às suas amigas e conhecidas na aldeia que foi levada
por Mister Blessard, com afirmações falsas, a acreditar que eu era uma
mulher de virtude fácil. Vai compensar a dor que causou à minha querida
tia, Mrs. Franklin, certificando-se de que, de futuro, ela será convidada
para todos os eventos sociais em que costumava participar.
– Mas você foi uma mulher da noite, isso é um facto – atirou-lhe Mrs.
Forbes-Alton.
– A verdade é que fui vítima de um homem malvado que foi enforcado
pelos seus crimes – respondeu Belle. – Tinha quinze anos quando fui
raptada e levada para França. Mas não vim aqui hoje para testar a sua ca-
pacidade de distinguir os factos da ficção no que respeita ao meu passado,
nem para a acusar de não ter tido compaixão para com uma mulher que foi
maltratada.
Fez uma pausa, para a deixar digerir aquilo.
– A minha tia, Mrs. Franklin, é uma das mulheres mais decentes e
bondosas que alguma vez existiu – continuou. – E a senhora causou-lhe
um grande mal com as suas coscuvilhices venenosas. Como sem dúvida
saberá, o meu marido foi ferido em combate, e por causa disso não
podemos mudar-nos para um lugar onde as pessoas sejam mais generosas.
Como tal, a senhora, cara Mrs. Forbes-Alton, vai tornar as coisas mais
fáceis para todos nós.
– Porque hei de fazer seja o que for por si, uma vulgar prostituta? –
rosnou a mulher, num tom de desdém.
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– Porque se não o fizer enlamearei o nome da sua família como en-
lameou o da minha – disse Belle. – Acredite, sei coisas a vosso respeito
que não só despertariam o interesse da boa gente de Blackheath como
chegariam sem dúvida à imprensa nacional.
– Que disparate! Não há nada relacionado com a nossa família que seja
vergonhoso.
– Não? – Belle arqueou uma sobrancelha e sorriu. – Uma mulher que
distribui penas brancas certifica-se de que os filhos passam a guerra senta-
dos atrás de uma secretária? Não lhe parece hipócrita? E quando a filha
morre em França, pavoneia-se na glória de quem deu a vida para contribuir
para o esforço de guerra quando a verdade é que a Miranda quis ir para
França para ficar longe de si.
– Os meus filhos fazem um trabalho de importância vital, e quem
acreditaria que a Miranda queria ir para longe de mim?
– As pessoas acreditariam se eu deixasse os jornais publicarem as
cartas que a senhora lhe escreveu – disse Belle. – E eu tenho-as, trouxe-as
de França. É difícil acreditar que qualquer mãe tenha sido capaz de escre-
ver cartas tão frias e insensíveis.
– As pessoas da minha condição não têm o coração ao pé da boca,
como as classes trabalhadoras – retorquiu Mrs. Forbes-Alton. – Se essas
cartas fossem publicadas, só ganharia solidariedade pela minha perda. Ser-
ia você a ser vilipendiada.
– Concordo que as pessoas da sua classe não são emocionais no que
respeita aos filhos, talvez por os porem nas mãos de criadas logo que
nascem – disse Belle. – Mas também há, claro, a questão do aborto que a
Miranda fez no verão de 1914. Como é que o aborto é encarado entre as
pessoas da sua condição?
Mrs. Forbes-Alton empalideceu e teve de agarrar-se às costas da ca-
deira para se equilibrar.
– De que está a falar? Não posso acreditar que esteja a dizer uma coisa
tão baixa.
– É melhor sentar-se, antes que caia – sugeriu Belle docemente.
Começava a achar aquilo divertido, e quase podia ouvir a amiga a aplaudi-
la.
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– Ela não fez uma coisa dessas, não pode ter feito – balbuciou a
mulher, deixando-se cair na cadeira.
– Oh, fez, sim. Foi assim que a conheci. Cuidei dela quando caiu à
porta da minha loja depois de o ter feito.
– Isso é uma mentira indecente!
– Não, não é. Pense bem. Tenho a certeza de que se recorda da tarde
de agosto de 1914 em que ela telefonou e deixou recado à sua criada a
dizer que ia passar a noite em casa de uma amiga em Belgravia. Telefonou
da minha loja. Acompanhei-a até aqui na manhã seguinte, depois de o bebé
ter saído. A Miranda tinha um hematoma na cara e disse-lhe que tinha
caído na rua.
Belle estava a vigiar a expressão da mulher mais velha e soube que ela
se lembrava daquele dia.
– Como é capaz de inventar uma calúnia dessas quando a Miranda está
morta? – perguntou Mrs. Forbes-Alton, mas a sua voz tinha perdido a
força.
– Sabe muito bem que não estou a inventar coisa nenhuma. Até tenho
uma prova, numa carta que a Miranda me escreveu a agradecer a minha
ajuda – disse Belle. – Até a senhora deve ter perguntado a si mesma
porque foi que nós as duas nos tornámos tão amigas.
Mais uma vez, viu qualquer coisa perpassar o rosto da mulher. Sem
dúvida recordava as vezes em que admoestara a filha por escolher a com-
panhia de uma «vulgar lojista» em vez de alguém do seu estatuto.
– Teve um caso com um homem que conheceu em Greenwich Park.
Era um patife, e casado, ainda por cima. A pobre Miranda acreditou que
ele a amava, mas mal lhe falou do bebé que trazia na barriga, ele desapare-
ceu. E ela arriscou a vida fazendo um aborto porque sabia que a senhora a
renegaria.
«É claro que não tenho o mínimo desejo de arrastar pela lama o nome
da minha querida amiga. Mas se ela tivesse sabido o que a senhora fez à
minha tia e a mim, teria ficado enojada consigo e ter-me-ia incitado a fazer
tudo o que estivesse ao meu alcance para a envergonhar.»
Fez uma nova pausa, para deixar as suas palavras falarem por si.
– Amei muito a Miranda – continuou, instantes depois. – E ela amava-
me a mim. Na realidade, fui a única pessoa que a amou até ela ter
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conhecido o Will Fergus, o sargento americano que conheceu em França e
com quem tencionava casar. Aposto que nem sequer respondeu à carta que
ele lhe escreveu depois de ela ter morrido, pois não?
Mrs. Forbes-Alton abriu a boca e voltou a fechá-la.
– Calculei que não – disse Belle. – E ele era um bom homem. Quando
o conheceu, a Miranda foi feliz como nunca tinha sido em toda a sua vida.
Mas a senhora não era capaz de compreender porque foi que ele e eu
chorámos tanto a morte dela, porque nunca quis saber da sua filha para
nada. Que espécie de mulher não é capaz de amar um filho?
– Eu gostava dela – disse Mrs. Forbes-Alton, num fio de voz.
– Não, não gostava. A Miranda tinha razão ao pensar que a poria na
rua se soubesse do bebé. Destruiu também a felicidade da minha tia, e sim,
antes que pergunte, ela sabe tudo a respeito da Miranda, mas nunca disse
uma palavra a ninguém, nem sequer depois daquilo que a senhora lhe fez.
Mas eu não sou tão generosa. Quero justiça.
– Quanto quer?
Belle atirou a cabeça para trás e riu.
– Pensa que quero o seu dinheiro? De si não aceitaria nem um casaco
velho, mesmo que estivesse a morrer de frio. Já lhe disse uma parte do que
quero: que Mrs. Franklin volte a ocupar o lugar que tinha na comunidade.
Quero que a cumprimente amistosamente na igreja diante de toda essa
corja de gente mesquinha que lhe lambe as botas.
Belle percebeu que a mulher ia concordar com aquilo.
– Falou de «uma parte» do que quer – disse Mrs. Forbes-Alton,
cautelosa.
– Sim. Quero que Mrs. Franklin volte a ser feliz. Mas também quero
que fale com os superiores de Mister Blessard nesse pasquim nojento onde
ele trabalha. Diga-lhes que ele distorceu as suas palavras quando estava
transtornada pelo desgosto depois da morte da sua filha e que tudo o que
escreveu a meu respeito é mentira. E certifique-se de que o despedem.
– Como posso eu fazer isso?
Belle ficou deliciada ao ver o medo estampado na cara da mulher.
– Se a senhora e o seu marido têm influência suficiente para conseguir
manter os vossos filhos seguros em Whitehall durante toda a guerra, uma
coisinha tão simples não deverá ser problema. Destacará que eu podia
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processar o jornal por difamação, que tudo o que fiz em Paris foi aprender
a fazer chapéus. E fará notar que o meu marido é um herói ferido em com-
bate, e que eu passei a guerra a cuidar dos nossos homens no Herbert e a
conduzir ambulâncias em França. Desde que eles publiquem um pedido de
desculpas e essa história a meu respeito fique esquecida para sempre, e que
a minha tia possa voltar a andar na aldeia de cabeça erguida, dar-me-ei por
satisfeita.
– Não sei se posso fazer tudo isso.
Belle encolheu os ombros.
– Se não puder, já sabe o que acontece. Vou começar a falar, muito
alto. Aposto que não quer que as hipóteses de casamento da sua outra filha
sejam arruinadas por uma coisa destas… ouvi dizer que está noiva de um
visconde.
Uma expressão de puro terror passou pelo rosto de Mrs. Forbes-Alton.
– Por favor, não faça isso, Mrs. Reilly – suplicou. – Lamento muito tê-
la magoado a si e à sua tia. Fiquei muito perturbada com a morte da Mir-
anda e aquele homem pôs-me na boca palavras que eu não disse. Mas vou
tentar remediar o mal feito.
– Vai ter de fazer mais do que tentar. Dou-lhe duas semanas. Lembre-
se de que não tenho mais nada a perder. A guerra fez do meu marido um
inválido, perdi a minha melhor amiga e o meu bom nome. A senhora, em
contrapartida, tem tudo a perder. Se este assunto não ficar resolvido nas
próximas duas semanas, iniciarei a minha própria campanha contra si e a
sua família.
E, com isto, Belle pôs-se de pé, alisou o casaco e encaminhou-se al-
tivamente para a porta.
– Não precisa de me acompanhar – disse. – Sei sair sozinha seja de
onde for ou do que for.
CAPÍTULO 24

N uma tarde de abril, Mog entrou a correr na cozinha, corada de


entusiasmo.
– Perguntaram-me se podia tomar conta da banca dos bolos na festa do
verão! – disse atropeladamente. – Nem posso crer! Mrs. Parson disse que
eu era a melhor pasteleira da aldeia e uma inspiração para as mais novas.
Belle estava a engomar, e embora o triunfo de Mog empalidecesse face
à preocupante notícia, divulgada dias antes, de que os Alemães tinham
rompido as linhas aliadas em França, não deixava de ser um triunfo. Pou-
sou o ferro no descanso e foi abraçar Mog.
– E tem toda a razão – disse. – Se alguém merece que lhe aconteça
qualquer coisa de bom, és tu.
Jimmy, sentado junto ao fogão, a ler o jornal, ergueu os olhos e sorriu.
– Há anos que ando a dizer às pessoas que é a melhor pasteleira de
Londres.
Mog pareceu brilhar ainda mais ao ouvir isto.
– Mas onde é que vou arranjar os ingredientes, com este raciona-
mento? – perguntou, ansiosa.
– Hão de estar a contar que o tio Garth puxe alguns cordelinhos para
os conseguir – disse Jimmy.
Era verdade que Garth tinha contactos no mercado negro e que, de vez
em quando, lhe chegava às mãos um misterioso meio quilo de fiambre, de
manteiga ou de queijo, mas Belle sentiu que a maneira como Jimmy
fraseara o comentário significava que, na opinião dele, Mog só fora distin-
guida naquele dia por causa da habilidade do marido para obter fosse o que
fosse.
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Jimmy nunca fora cínico antes de ir para a guerra, mas agora era. A
generosidade e o sentido de humor que em tempos demonstrara ainda vin-
ham à tona de longe em longe, mas, infelizmente, a maioria das vezes era o
azedume que prevalecia.
– As senhoras da comissão de festas não sabem dessas coisas – disse
Mog. – Mas talvez tenham qualquer coisa guardada na despensa que me
possa ajudar.
Belle esteve tentada a admoestar Jimmy pelo seu comentário, mas de-
cidiu deixar passar, uma vez que Mog parecia não se ter apercebido da in-
sinuação. Nos dois últimos meses, Jimmy tinha melhorado em algumas
áreas. Falava mais, e passara a ocupar-se da contabilidade do pub. E tam-
bém começara a ter menos pesadelos.
No entanto, apesar de estar triste por não conseguir trazer o antigo
Jimmy de volta, Belle fora bem-sucedida na sua tentativa de fazer com que
Mog fosse novamente aceite na comunidade, porque Mrs. Forbes-Alton
fizera exatamente o que ela exigira. O Chronicle publicara um pedido de
desculpas no qual se dizia que o jornalista Mr. Blessard tinha explorado
malevolamente o desgosto de Mrs. Forbes-Alton na sequência da morte da
filha e feito afirmações infundadas a respeito da sua amiga, Mrs. Belle
Reilly.
Acrescentava que Jimmy tinha sido gravemente ferido em combate e
que o jornal lamentava muito ter contribuído para aumentar o desgosto da
família num momento tão difícil. Terminava com a notícia de que Mr.
Blessard tinha sido despedido.
O artigo aparecia numa das páginas interiores do jornal, tão bem
escondido que seria fácil não dar sequer por ele. Mas pouco importava
quantas pessoas o tinham lido. Mrs. Forbes-Alton ficara suficientemente
assustada pela ameaça de Belle para se certificar de que a história circulava
pela aldeia, e passara de imediato a incluir Mog nos diversos chás de an-
gariação de fundos que organizava. Um desses chás fora na sua própria
casa e Mog voltara de lá incandescente de alegria por ter deixado de ser
ostracizada.
Belle sentia que triunfara em toda a linha, mas a Mog dissera apenas
que tinha falado com Mrs. Forbes-Alton a respeito de Miranda. Então, al-
gumas semanas depois da publicação do artigo no Chronicle, o guarda
352/474
Broadhead passou pelo Railway para informar que Blessard tinha sido
detido depois de atirar um tijolo a uma das janelas do jornal quando estava
embriagado. Blessard alegara que não conseguia arranjar outro emprego e
que perdera a casa por não poder pagar a renda. O argumento não fora o
bastante para levar a polícia a mostrar-se mais compassiva; em vez disso,
tinham-lhe dito que se alistasse imediatamente, o que resolveria de imedi-
ato todos os seus problemas.
Não havia dúvida de que o Exército precisava de mais homens, ainda
que fossem ratazanas como Blessard. O limite de idade para a mobilização
passara a ser de cinquenta e um anos, e Garth, que ultrapassara recente-
mente esse limiar, dizia a brincar que nunca tivera tanto prazer em admitir
a sua verdadeira idade. Os Americanos tinham finalmente chegado em
força a França e entrado na luta, e apesar de serem inexperientes, tinham
permitido à Grã-Bretanha voltar a acreditar que a vitória era possível.
Belle recebera uma carta de Vera a dizer que Étaples tinha sido bom-
bardeada mas que, felizmente, o hospital não fora atingido. Mas acres-
centava que outros hospitais mais próximos da frente não haviam tido a
mesma sorte; com as linhas elétricas cortadas pelos bombardeamentos, as
operações tinham de ser feitas à luz de candeias. Era tão grande o número
de feridos que chegavam que, num período de quatro dias, tinham sido
feitas duzentas e setenta e três intervenções cirúrgicas, com os médicos e
enfermeiras a trabalhar vinte e quatro horas seguidas. A transferência de
tantos médicos e enfermeiras americanos para os novos hospitais deixara o
pessoal restante com uma tal sobrecarga de trabalho que muitas vezes
havia apenas uma enfermeira de serviço durante a noite em cada
enfermaria.
Em finais de março, os Alemães usaram um enorme canhão montado
sobre carris – que ficaria conhecido como Canhão de Paris, mas que a im-
prensa posteriormente confundiria com o Grande Bertha, uma outra peça
de artilharia pesada ao serviço desde 1914 – para bombardear a capital
francesa de uma distância de cento e vinte quilómetros. Segundo Vera, es-
tava toda a gente com medo que Étaples fosse o alvo seguinte, como se
não bastassem os bombardeamentos aéreos que se sucediam todas as
noites.
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Nenhuma destas alarmantes notícias aparecia nos jornais, que em con-
trapartida falavam muito do Barão Vermelho, o famoso piloto alemão que
fora finalmente abatido. Talvez a imprensa achasse que era importante le-
vantar o moral com algumas boas notícias, dado o clima geral de cansaço e
desânimo.
O Governo mandou afixar cartazes que incitavam a população a «Cer-
rar os Dentes e Ir Até ao Fim», e isso era tudo o que as pessoas podiam
fazer, tendo de enfrentar o medo dos zepelins e dos bombardeiros, os
preços que não paravam de subir, a escassez de comida, o racionamento e
as intermináveis filas para comprar um pão e meio quilo de açúcar. Em to-
das as vilas e cidades era cada vez mais frequente ver nas ruas homens mu-
tilados, cegos ou portadores de outros ferimentos graves. Os hospitais, as
clínicas e as casas de convalescença estavam a transbordar, mas todos os
dias chegavam novos feridos e o número de mortos continuava a subir
implacavelmente.
«Neurose de guerra» e «choque traumático» eram expressões que
nunca ninguém tinha ouvido até à batalha do Somme, e então eram de um
modo geral encaradas como desculpas para a cobardia. Na altura, graças à
glorificação da guerra feita pela imprensa, poucas pessoas tinham uma ver-
dadeira noção dos horrores que os homens que se batiam na frente eram
obrigados a suportar. Mas essa visão começara a mudar à medida que os
feridos revelavam a verdadeira natureza da guerra. Muitas mulheres tin-
ham visto um marido, um irmão ou um filho de licença gritarem involun-
tariamente quando ouviam um ruído mais forte e inesperado, terem
pesadelos ou tornarem-se retraídos, e o público começava a mostrar-se
muito mais compreensivo.
Mas a compreensão só por si não bastava para ajudar os mais afetados.
Muitos nunca mais conseguiriam manter um emprego, alguns tornavam-se
violentos, outros viravam-se para a bebida ou até para o suicídio. E muitos
mais ficariam a elanguescer em asilos para alienados e nunca
recuperariam.
Do mesmo modo, no início da guerra a maior parte das pessoas
pensava que todos os desertores eram cobardes e deviam ser fuzilados.
Mas também aqui a maré virara, porque embora a coragem continuasse a
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ser aplaudida e a cobardia desprezada, a esmagadora maioria considerava
errado executar alguém que fugira num momento de puro terror.
Belle bem via que a guerra mudara muita coisa. A 6 de fevereiro fora
finalmente concedido o direito de voto às mulheres com mais de trinta
anos. Uma conquista que entusiasmou Mog, mas que Garth encarou com
ansiedade. Algumas das condutas sociais que Belle e Mog tinham apren-
dido depois de se mudarem para Blackheath estavam praticamente ex-
tintas. As distinções de classe eram menos marcadas; o desgosto pela
perda de entes queridos aproximara as pessoas, as senhoras da sociedade
ombreavam com raparigas da classe operária no trabalho em prol do es-
forço de guerra, muitos oficiais sentiam-se em dívida para com os homens
que comandavam.
Os paus de cabeleira eram uma coisa do passado; os casais jovens
aproveitavam ao máximo o presente, não sabendo o que o futuro lhes re-
servava. As mulheres tinham aceitado o desafio dos tempos de guerra, não
só desempenhando tarefas tradicionalmente masculinas como revelando-se
excelentes nesse desempenho. Já ninguém ficava surpreendido ao ver uma
mulher conduzir um elétrico ou um ómnibus, e em Londres havia um
grande número de condutoras de ambulâncias. Por toda a Inglaterra, as
fábricas, as quintas, as lojas e os escritórios contavam no seu pessoal tantas
mulheres como homens, e as mulheres até já podiam entrar num pub ou
num bar sem causar espanto ou olhares de reprovação.
Garth pusera finalmente de parte o seu velho preconceito nesta
matéria, apesar de ter sido mais uma questão económica do que de ver-
dadeira mudança de atitude. Se não deixasse um soldado de licença levar a
mulher ou a namorada ao pub, eles iriam para outro lado qualquer. Mog
ajudava-o a servir quase todas as noites, e Belle também, ao fim de sem-
ana, mas só porque a ajuda delas lhe saía de borla.
No entanto, a mudança por que Belle verdadeiramente ansiava não se
materializara em Jimmy. Podia falar um pouco mais e ajudava Garth
encarregando-se das contas, mas não fazia o mais pequeno esforço para se
ajudar a si mesmo. Tinham-lhe dado uma perna artificial, mas ele não tinha
paciência para praticar a andar com ela. O Dr. Towle tentara convencê-lo a
consultar um psiquiatra seu amigo para o tirar daquele estado de espírito,
mas ele rejeitara. Quanto a fazer amor, Belle já experimentara todos os
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truques que aprendera para voltar a interessá-lo, mas ele opunha-se feroz-
mente, e chamava-lhe muitas vezes prostituta por tentar agradar-lhe.
Bastava fazer-lhe uma festa para ele se pôr rígido, e já nem se lembrava da
última vez que a beijara. Agora já só muito raramente tentava; era demasi-
ado doloroso ser rejeitada.
Havia muitas noites em que ficava acordada a recordar, cheia de
tristeza, o homem que mal podia esperar por levá-la para o quarto. Por
vezes, faziam amor a noite inteira, só adormecendo quando o dia já des-
pontava, e nesse tempo ele venerava cada centímetro dela.
Nunca mais voltara a despir-se à frente dele. Em ocasiões passadas,
quando o fizera, Jimmy acusara-a de não ter vergonha. Zangara-se com
ele, mas a única coisa que conseguira fora criar uma atmosfera que in-
vadira a casa toda. Jimmy recusava falar do assunto, recusava ajuda, e
Belle acabara por aceitar que era assim que ia ser para sempre.
Manter-se ocupada era a sua maneira de aguentar o dia. Arranjava
roupas para as vizinhas, fazia alguns chapéus para uma loja de Lewisham e
chamara a si o encargo de limpar a casa e o pub para que Mog tivesse mais
tempo livre. Mas havia alturas em que desesperava. Ver casais a passear de
mão dada, ver mães a rir enquanto corriam atrás dos filhos na charneca ou
famílias a fazer um piquenique em Greenwich Park, eram tudo coisas que
lhe lembravam o que poderia ter sido se Jimmy não tivesse sido ferido.
Dizia a si mesma que milhares de outras mulheres aceitavam as cartas
que o destino lhes distribuíra e que podia considerar-se afortunada por ela
e Jimmy terem uma casa junto de Garth e Mog. Mas apesar de ser capaz de
aceitar todas as limitações que as incapacidades físicas de Jimmy
implicavam, irritava-a o facto de ele continuar a chafurdar na autocomiser-
ação. E tinha medo de um dia não conseguir aguentar o peso daquela
responsabilidade.
– Ajudas-me a organizar a banca dos bolos?
A pergunta de Mog trouxe-a de volta ao presente.
– Claro – respondeu. Por muito má que estivesse a sua vida, era bom
voltar a ver Mog esfuziante e feliz.
– Pensei que podias pintar uma faixa para pôr por cima da banca –
disse Mog. – Com imagens de bolos e coisas alegres, para chamar a
atenção.
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Garth entrou na cozinha com uma carta na mão.
– O fulano da loja de ferragens trouxe isto – anunciou, entregando-a a
Jimmy. – Quem a enviou enganou-se na morada. Parece que é de França.
– Sim, posso pintar uma faixa – disse Belle, mas a sua atenção estava
mais em Jimmy do que em Mog. Apesar de ele dizer que ia escrever a al-
guns dos seus antigos camaradas da tropa, nunca chegara a fazê-lo. Só es-
perava que aquela carta não trouxesse más notícias que o deixassem ainda
mais sombrio.
– De quem é, Jimmy? – perguntou Mog.
– Do Bin – disse Jimmy, enquanto tirava a carta do sobrescrito. – O
verdadeiro nome dele é Jack Cash, mas chamávamos-lhe Bin porque
sempre que falávamos de um lugar, ele dizia que já lá tinha estado. É o
único dos amigos que fiz em Étaples que ainda está vivo.
Jimmy começou a ler a carta, enquanto Belle e Mog continuavam a
falar da banca.
– Mas que diabo!
A exclamação de Jimmy fez Mog e Belle olharem para ele.
– O que foi? – perguntou Belle.
– Meteu-se-lhe na cabeça descobrir quem foi o Frog que me salvou –
disse Jimmy. – Parece que é um autêntico herói, deram-lhe a condecoração
mais alta, a Croix de Guerre. É o equivalente à nossa Victoria Cross.
– Sempre achei que ele era um herói por te ter salvado – disse Belle,
com uma gargalhada. – Mas não sabia que os Franceses davam medalhas
por essas coisas.
Jimmy torceu os lábios num sorriso duro.
– Não me fez nenhum favor, pois não? Devia era ter-me dado um tiro
e acabado com a minha miséria.
– Não digas isso! – exclamou Mog, horrorizada.
– Devia ter sido castigado por ter deixado os seus homens para me
levar até às linhas, mas segundo o Bin, deixou-me com os maqueiros e
voltou para o combate. Destruiu sozinho um ninho de metralhadora dos
Boches e depois, a disparar como um louco, encontrou os homens dele e
levou-os até ao objetivo daquele dia. O Bin calcula que as ações dele sal-
varam dúzias de Frogs, e fizeram mais de cinquenta prisioneiros.
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– É incrivelmente corajoso – disse Belle. – Diria que mereceu bem a
medalha.
– Mas o mais estranho é que o Bin diz que já o conhecíamos – con-
tinuou Jimmy. – Em 1916, mandaram-nos a Verdun buscar um par dos
nossos homens suspeitos de deserção que tinham sido apanhados pelos
Frogs. Parámos num estaminet para perguntar onde ficava o quartel-gener-
al, e este fulano ajudou-nos e ofereceu-nos uma bebida. Falava muito bem
inglês e conversámos durante algum tempo, mas nunca nos disse como se
chamava. O Bin acha que foi por isso que me salvou. Reconheceu-me por
ser ruivo.
– Imagine-se! – exclamou Mog. – Afinal sempre há alguma vantagem
em ser ruivo.
Belle achou a história espantosa, mas o mais importante para ela era
ver Jimmy animado com qualquer coisa, para variar.
– O Bin diz a mesma coisa. – Jimmy conseguiu uma pequena gar-
galhada. – Diz: «Nós a pensar que ser ruivo era uma maldição, e agora to-
dos gostávamos de ser.» Diz que a história se tornou uma das lendas de
Ypres. Diz também que tencionava encontrar este tal sargento Carrera para
lhe agradecer pessoalmente. Mas também ele foi desta para melhor.
Belle quase deixou escapar uma exclamação ao ouvir o nome, mas
conteve-se a tempo.
– Morreu? – perguntou.
– É o que ele diz. Portanto, não imaginei quando o ouvi tratar-me pelo
nome. Ele conhecia-me.
Jimmy dissera a Belle, ainda no hospital em França, que lhe parecera
que o homem que o salvara o tinha chamado pelo nome. Mas que, por
causa das dores, não tinha a certeza de isso ter mesmo acontecido ou se o
tinha imaginado.
Belle teve de voltar a cabeça para que Jimmy não visse o horror e a
culpa que, de certeza, tinha estampados no rosto.
Não podia ser Étienne! Era muito mais provável que fosse outro
francês com o mesmo apelido. Mas, no fundo, sabia que era ele. E agora
estava morto.
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Voltou a pegar no ferro e a colocá-lo em cima do fogão para o aque-
cer, e ocupou-se a dobrar uma fronha com gestos cuidadosos. Mas Mog es-
tava fascinada pela história e queria saber mais.
– Já tinhas, então, conhecido esse homem? Como era ele?
– Já não me lembro de grande coisa. Era mais velho do que eu, com
um ar duro, e disse que tinha aprendido inglês em Londres, anos antes da
guerra. Naquele dia falámos sobretudo a respeito dos combates e dessas
coisas. Gostei dele, bem, todos gostámos. Mas agora é mais um pequeno
mistério que fica resolvido. É que me disseram que ele deu o meu nome
quando me entregou aos maqueiros. Pensei que tinha sido por ter visto a
minha chapa. Mas talvez não tenha sido, porque naquele dia, em Verdun, o
Bin e os outros trataram-me por Red Reilly, e ele perguntou-me se só pas-
sara a ter aquela alcunha depois de ir para França e qual era o meu ver-
dadeiro nome.
Belle sentia as pernas a transformarem-se-lhe em gelatina, ao mesmo
tempo que uma vertigem a fazia cambalear. Quando tentou voltar a pegar
no ferro de engomar, a mão tremia-lhe tanto que quase o deixou cair.
– Não é uma história maravilhosa? – disse Mog. – Que se passa,
Belle? Ficaste tão pálida.
– Preciso de apanhar um pouco de ar fresco – respondeu ela apressada-
mente. – Está muito abafado aqui dentro.
– Deixa que eu engomo o resto – disse Belle. – Vai-te deitar um bo-
cadinho. Nestes últimos tempos não te sentas para descansar nem cinco
minutos.

Belle refugiou-se no quarto, e deixou-se cair em cima da cama a


soluçar. A imagem que lhe enchia o espírito era a de Étienne a beijá-la
naquela noite, perto do hospital, e a dizer-lhe que ia correr tudo bem e que
um dia estariam juntos.
Perdera toda a esperança de que isso viesse a acontecer quando
soubera que Jimmy tinha sido ferido, e apesar de desde então não ter pas-
sado um único dia em que não pensasse em Étienne, orgulhara-se de fazer
o que estava certo.
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Mas não estava certo ele ter morrido. Morto naquele campo de batalha,
enterrado numa vala comum. O seu forte e corajoso Étienne, que era mais
importante para ela do que conseguia realmente explicar, até a si mesma.
Mas porque não lhe teria ele dito que tinha conhecido Jimmy em
1916?
Teria sido por pensar que se o tivesse admitido na noite em que fora
buscá-la ao hospital, isso a impedisse de o acompanhar? Como, aliás, teria
quase de certeza acontecido, pois tê-la-ia feito recordar a imagem de
Jimmy.
No entanto, qualquer que tivesse sido a razão que o levara a guardar
segredo sobre aquele encontro, fora extraordinário da parte dele salvar o
seu rival. Ter-se-ia sentido, mesmo que fugazmente, tentado a deixá-lo
morrer? Se fora, isso só tornava o seu gesto ainda mais admirável.
De repente, a preocupação contraiu-lhe o estômago. Não conseguia
lembrar-se se tinha ou não dito a Jimmy que o apelido do seu salvador em
Paris era Carrera. Mas Noah sabia-o de certeza, e se lhes telefonasse e
Jimmy lhe falasse daquilo, reconhecê-lo-ia imediatamente e estranharia o
facto de ela não ter dito nada; ao fim e ao cabo, seria a reação natural de
qualquer pessoa, a menos que tivesse alguma coisa a esconder.
Escondeu a cara na almofada, enquanto as imagens de Étienne con-
tinuavam a invadir-lhe o espírito. Já fora difícil afastá-lo dos seus
pensamentos ao longo de todos aqueles meses, mas agora sabia que, nos
tempos mais próximos, Jimmy, Mog e Garth não iam falar de outra coisa.
Como devia reagir? Voltar à cozinha naquele preciso instante e dizer-lhes
que acabava de se lembrar de que o apelido de Étienne era Carrera?
Mas sabia que não seria capaz de o fazer. Pelo menos já. Dizer o nome
dele em voz alta ia de certeza deixá-la com lágrimas nos olhos. Tinha de
continuar a esconder aquilo dentro de si.
Nessa noite, Jimmy pareceu muito mais animado depois de ter rece-
bido a carta do antigo camarada de armas. Até sugeriu que acendessem a
lareira na sala de estar, quando normalmente ficava na cozinha até às oito e
então ia para a cama.
– Podíamos jogar xadrez, ou fazer um puzzle juntos – alvitrou.
Belle pensou que não deixava de ser irónico ter tentado tantas vezes,
sem êxito, convencê-lo a fazer uma daquelas coisas, e ele ter escolhido
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precisamente a noite em que ela queria estar sozinha para mudar de ideias.
Mas subiu ao primeiro andar e acendeu a lareira; era, afinal de contas, um
passo em frente.
– Foi tão bom ter notícias do Bin e do resto da malta – disse Jimmy,
pouco depois. O pub, lá em baixo, estava calmo, e com as cortinas corridas
e a lareira acesa, a sala era um refúgio aconchegante e confortável. – Vou
escrever-lhes, apesar de não ter muito para dizer.
– Vão ficar felizes por saber que estás bem – respondeu Belle. – Podes
contar-lhes as coisas que lês nos jornais. Ou recordar momentos divertidos
que partilharam.
Sentado na sua cadeira junto à lareira, Jimmy fez um ar pensativo.
– Detestava aquilo tudo – disse, passado algum tempo. – Quando tinha
cinco minutos de paz, fechava os olhos e imaginava-me aqui, como agora.
– Mas agora que estás cá, gostavas de estar lá outra vez? – perguntou
ela.
Jimmy conseguiu esboçar um sorriso.
– Não exatamente. Só gostava de voltar a estar inteiro. Trabalhar no
pub, passear contigo, não me sentir tão sem esperança. Mas tenho saudades
dos meus camaradas.
Noutros tempos, ela ter-se-ia aproximado para o abraçar. Mas
descobrira, à sua custa, que qualquer demonstração de afeto o irritava.
– Fala-me deles – pediu.
– Havia um a que chamávamos Rapa-Tachos, porque devorava tudo o
que nós não comêssemos. Era divertidíssimo, sempre à procura de
qualquer coisa para comer. E a verdade é que conseguia sempre arranjar
bebida, ou ovos, uma galinha ou um coelho. Antes da guerra tinha uma
banca no mercado, no East End, com o pai, e suponho que foi lá que
aprendeu a arte. Só tinha dezoito anos, mas era um excelente rapaz.
Belle sorriu. Era bom ouvi-lo falar como costumava antes de ser
ferido.

*
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– E depois havia o Pai. Chamávamos-lhe assim não por ser velho, mas
porque toda a gente lhe confessava coisas. Uma vez disse-lhe que ele devia
ter ido para padre, mas respondeu-me que gostava demasiado de mulheres.
– Que coisas tinhas tu para confessar?
Jimmy encolheu os ombros.
– Ter medo antes de saltar da trincheira, pensar muitas vezes no meu
pai.
– A sério? – exclamou Belle, surpreendida. – Nunca, nem uma única
vez, me disseste que pensavas nele.
– E não costumava pensar, até ir para lá. Suponho que teve qualquer
coisa que ver com conhecer tantos géneros diferentes de homens que fa-
lavam muitas vezes sobre os pais. Sempre acreditei que o meu era podre
até ao caroço por ter abandonado a minha mãe, mas talvez essa história
tenha dois lados, como quase todas as histórias.
– Alguma vez falaste com o Garth a respeito dele?
– Não. Ele iria tomar partido pela minha mãe, e não havia mais nin-
guém com quem falar.
– Também eu penso muitas vezes no meu pai. Mas como a Annie nem
sequer se mantém em contacto comigo, é pouco provável que queira falar
dele. Quem me dera que a Mog soubesse.
Jimmy sorriu-lhe.
– Há de ser um homem bom e generoso, e criativo, também. Não her-
daste nada disso da tua mãe.
O elogio fez-lhe crescer lágrimas nos olhos, mas não achava que o
merecesse. De repente, sentiu que tinha de revelar pelo menos uma parte
do seu segredo.
– Esse homem que te salvou, disseste que se chamava Carrera. Era
esse o apelido do Étienne – disse.
– O quê? O homem que te levou para a América?
– Prefiro recordá-lo como o homem que ajudou o Noah a encontrar-me
em Paris.
Jimmy ficou silencioso por um instante, a olhar fixamente para ela.
– Naquele dia, em Verdun, perguntou se só me chamavam Red na
tropa, depois de ouvir os outros tratarem-me por Red Reilly. Agora que
penso nisso, foi uma pergunta estranha; normalmente, ninguém quer saber
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qual é o nosso verdadeiro nome. Até me perguntou o que fazia eu antes da
guerra. Contei-lhe que me chamava Jimmy e trabalhava num pub; referi o
teu nome e disse que tinhas perdido o bebé. Se era o mesmo homem,
porque foi que não me disse nada?
– Talvez só tenha feito a ligação mais tarde – sugeriu Belle. – Ou en-
tão achou melhor não trazer o passado de volta, uma vez que não estavas
sozinho. Falei-lhe muito a teu respeito durante a viagem para a América, e
claro, dois anos mais tarde soube pelo Noah que nunca tinhas desistido de
me encontrar.
– Estás a dizer que me salvou para ti?
– Duvido que tenha encarado as coisas dessa maneira. Provavelmente,
lembrou-se de te ter conhecido em Verdun, naquele dia, e não foi capaz de
te deixar indefeso.
Jimmy bufou, com um som que foi quase um assobio. Belle não sabia
o que dizer mais; quando olhou para ele, quase conseguiu ouvi-lo pensar, a
assimilar todas as facetas da situação.
– Achou que me devia a minha vida? Porquê? Eu não tinha feito nada
por ele. Arriscou-se a ser castigado por ter parado para me ajudar. Duvido
que o comandante dele tivesse considerado uma prioridade salvar um
Tommy quando havia dúzias de franceses feridos espalhados por todo o
lado. Tens de ter sido tu a razão. Ele amava-te!
Belle sentiu o estômago revirar-se. Desejou não ter dito nada. Jimmy
era um pensador, ia ficar a remoer aquilo, a dar voltas ao assunto, e ia
querer respostas para tudo o que não conseguisse perceber.
– Sabes muito bem que ele sempre teve remorsos por me ter levado
para Nova Orleães – disse. – Foi precisamente por isso que foi a Paris
ajudar o Noah a encontrar-me. Diria que isso prova que se preocupava
comigo, mas não havia mais nada entre nós. Nunca tinha ficado tão feliz
por ver alguém como quando ele arrombou a porta do sótão onde estava
presa. Mas depois disso, tudo o que queria era voltar para Inglaterra, para
te ver a ti e à Mog.
– É curioso teres dito tão pouca coisa a respeito dele depois de voltares
– observou ele, com a voz carregada de suspeita. – Um homem salva-te a
vida e tu nem sequer queres manter-te em contacto com ele?
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– Claro que teria querido, mas tive medo de que tu não gostasses. Oh,
Jimmy, não queiras fazer disto uma coisa que não é. Eu tinha acabado de
passar por várias espécies de inferno, estava em casa, novamente a salvo,
queria esquecer tudo e começar de novo.
Jimmy estendeu a mão para a muleta e levantou-se do cadeirão.
– Acho que vou para a cama – disse.
«Isso mesmo, agita as coisas e depois vai esconder-te para remoer»,
pensou ela, mas não teve coragem de o dizer em voz alta. Era o que ele
fazia constantemente, e ela sentia que não ia aguentar muito mais; era
como caminhar sobre cascas de ovos.
– Quem me dera ter o meu antigo Jimmy de volta – disse tristemente.
– Não imaginas as saudades que tenho dele.
Jimmy apoiou-se na muleta e olhou de cima para ela, a boca contor-
cida num esgar de escárnio.
– Como podes esperar que seja o mesmo quando me falta metade do
corpo? Tu também não és a mesma Belle com quem casei. Que desculpa
tens para isso? – Voltou-se e atravessou a sala. Belle ficou a vê-lo afastar-
se, com o coração cada vez mais pesado.
CAPÍTULO 25

B elle hesitou à porta do consultório do Dr. Towle. Viu-o sentado à


secretária, a escrever num bloco de notas, e por um segundo sentiu
que não ia ser capaz de ir com aquilo para a frente.
Mas o médico ergueu os olhos e sorriu-lhe.
– Entre, Mrs. Reilly – disse. – Eu não mordo.
O Dr. Towle tinha na aldeia uma certa fama de conquistador. Belle,
que o conhecia pela bondade que lhe demonstrara quando perdera o bebé e
pela simpatia com que recebera Jimmy quando ele regressara a casa, con-
siderava essa reputação imerecida. Mas tinha de reconhecer que era um
homem atraente. Alto, bem constituído, com um sorriso aberto, dentes
bonitos e um brilhozinho nos olhos escuros. O cabelo igualmente escuro
estava salpicado de grisalho, a única indicação de que já passara dos quar-
enta, e ela achava muito triste que pessoas estúpidas interpretassem de
forma maldosa a sua compreensão dos problemas das mulheres.
Sentou-se na cadeira em frente da secretária, muito consciente de que a
partir do momento em que desse voz ao seu problema com Jimmy nunca
mais poderia voltar atrás.
– Está pálida e com um ar cansado – disse ele, com a voz profunda e
calmante, cheia de simpatia. – Não se sente bem? Ou esta visita tem que
ver com o seu marido?
– Sim, é a respeito de Mister Reilly – disse ela, e baixou a cabeça. – Já
não aguento mais, senhor doutor. Ele está tão zangado, tão… – Calou-se,
incapaz de conter as lágrimas. – Peço desculpa – conseguiu dizer, en-
quanto procurava o lenço no bolso.
Julho chegava ao fim e o tempo estivera tão quente nas duas últimas
semanas que tornava impossível ter uma boa noite de sono ou ter a energia
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necessária para realizar as tarefas mais simples durante o dia. Mas ela teria
conseguido enfrentar o calor, a comida que se estragava ainda antes de ser
cozinhada, o pó que parecia cobrir tudo, se ao menos Jimmy saísse do
poço de negrume onde se encontrava.
Estava constantemente a fazer-lhe perguntas acerca de Étienne, quase
sempre para o censurar por tê-lo salvado, mas por vezes com a nítida sus-
peita de que houvera qualquer coisa entre os dois, em Paris. Pelo menos
disso não era ela culpada, mas ele também a interrogava a respeito do
tempo que passara no hospital, de como eram os outros condutores e os
maqueiros. Parecia um cão de volta de um osso, não largava o assunto, ao
ponto de ela ter vontade de gritar. Em certos momentos, sentira-se seria-
mente tentada a sair porta fora e nunca mais voltar. A única coisa que a im-
pedia era o pensamento do que isso faria a Mog.
O médico inclinou-se para a frente, apoiando os antebraços no tampo
da secretária.
– Tenho observado que esse parece ser um dos efeitos secundários em
homens feridos em combate quando regressam a casa. Mesmo que detest-
assem todos os momentos que passaram na frente, ao menos lá tinham uma
noção de propósito, que agora perderam. A senhora e muitas outras espo-
sas aprenderam a desenvencilharem-se sozinhas enquanto os vossos mar-
idos estavam longe. Por muitas saudades que tivessem deles e os
quisessem de volta, deve ser difícil adaptarem-se ao regresso deles quando
já não são os homens fortes e capazes a quem disseram adeus.
Belle assentiu, enquanto limpava os olhos.
– Tenho recebido neste consultório muitas esposas dedicadas que me
falam da extrema atenção que os maridos agora exigem, de como as crit-
icam, de como, em alguns casos, deixaram de mostrar qualquer apreço por
elas. São estas coisas que está a descobrir?
Belle inspirou fundo. Se outras mulheres podiam confiar nele ao ponto
de lhe fazerem aquelas confidências, também ela podia.
– Sim. Tornou-se um homem diferente. Antes disto, toda a gente
gostava do Jimmy, ele gostava das pessoas, era generoso com o seu tempo
e o seu afeto. Um homem encantador. Mas tudo isso desapareceu. Está tão
amargo, tão difícil.
– Vai melhorar, Mrs. Reilly – disse o médico.
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– Irá? – perguntou ele tristemente. – Mal saiu de casa desde que
voltou. Não tenta sequer andar com a perna artificial. Não fala comigo. Por
vezes, olha para mim como se me odiasse. Está a desgastar-me ao ponto de
me fazer querer fugir para longe.
– E como se porta ele com Mrs. e Mister Franklin?
– Não tão mal como comigo, mas há alturas em que também eles
desesperam. Não vou fugir, claro, nunca poderia ser tão injusta com Mrs. e
Mister Franklin. Mas esta situação está a afetar-nos a todos, e já não sei
para que lado me virar.
– De que maneira tem ele sido mau para si? Bateu-lhe?
– Oh, não, nunca faria uma coisa dessas – respondeu Belle apressada-
mente, apesar de ele ter tentado várias vezes fazê-lo, obrigando-a a
esquivar-se para o evitar. – Mas vai buscar coisas ao meu passado, descon-
fia de mim. Já não há alegria nele, em relação a coisa nenhuma.
O Dr. Towle arqueou interrogativamente uma escura sobrancelha.
– Não acontece – disse ela, adivinhando o que ele queria saber mas
não ousava perguntar para não a embaraçar. – Rejeita qualquer espécie de
afeto da minha parte.
– Poderá ser por recear que engravide? Eu disse-lhe, depois do seu
aborto, que não seria aconselhável.
– Disse? – exclamou Belle. – Ele nunca me falou nisso. – A notícia
atordoou-a como uma pancada. Recomeçou a chorar. – Quer dizer que
nunca mais posso ter filhos?
– Lamento muito, Mrs. Reilly, assumi que o seu marido lho tinha dito
depois da sua recuperação. Não disse que não podia ter filhos; apenas que,
em minha opinião, havia um elevado risco de voltar a abortar.
Belle fungou, a engolir as lágrimas.
– Bem, é pouco provável que aconteça, de qualquer forma, da maneira
como as coisas estão – disse.
Uma das suas grandes esperanças para o futuro fora um filho. Pensara
que seria a única coisa capaz de arrancar Jimmy ao seu marasmo. E
pensara também que obliteraria de vez a recordação de Étienne. Além
disso, traria também uma grande alegria à vida de Mog e de Garth. Agora,
até isso lhe fora tirado.
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– Pode ser que ele não só receie por si, como também tenha medo de
não conseguir sustentar um filho – sugeriu o médico, num tom conciliador.
– Os homens são muito sensíveis a essas coisas.
– Se treinasse andar com a perna, poderia gerir o pub – disse Belle. –
Mas parece gostar de chafurdar na infelicidade. Apetece-me gritar com ele
e fazer-lhe ver que outros soldados mutilados são obrigados a mendigar
nas ruas para porem comida na mesa. Mas ele parece não se aperceber de
como é afortunado por ter um teto e pessoas que o amam.
O médico anuiu, compreensivo.
– Só muito recentemente os médicos e psiquiatras começaram a recon-
hecer os efeitos que esta guerra está a ter na saúde mental dos soldados –
disse. – Nas guerras anteriores, nunca houve estes bombardeamentos con-
stantes da artilharia pesada, nem combates tão prolongados. A maior parte
dos homens que sofria ferimentos como os de Mister Reilly morria no
campo de batalha. Todos nós, na profissão médica, estamos agora con-
scientes de que nesta guerra não são só os ferimentos físicos que precisam-
os de tratar, mas também os mentais. Infelizmente, não há, de momento,
medicamentos que nos ajudem; tudo o que podemos recomendar é des-
canso, tranquilidade e silêncio, e esperar que, falando com os nossos pa-
cientes, consigamos dissipar as terríveis imagens que lhes enchem o
espírito.
– Mas e se eles não falam? Ou tentam qualquer coisa? – perguntou
Belle, com as lágrimas a correrem-lhe pela cara. – O Jimmy nem sequer
pensa em deixar que eu ou o tio o levemos a passear na cadeira de rodas
que lhe comprámos. Um passeio pela charneca ou por Greenwich Park
podia ajudá-lo, mas ele recusa. Não pode ser benéfico para ele ficar sen-
tado numa cozinha escura dia após dia, sem ver um pássaro, uma flor ou
uma árvore.
– Concordo absolutamente. O seu marido precisa de luz do sol, de con-
tacto com a Natureza e com outras pessoas para o ajudar a sair do poço
onde caiu. Vou falar com ele e tentar levá-lo a perceber isto.
– O mais certo é ele recusar falar com o senhor doutor – disse Belle
sombriamente. – Quando lhe falei em trazê-lo ao consultório, respondeu-
me que a única coisa que queria dos médicos era que o abatessem, como se
faz aos cães.
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O Dr. Towle voltou a assentir.
– Uma frase repetida por muitos mutilados, mas não acredito que seja
o que lhes vai verdadeiramente no coração. Passarei por vossa casa aman-
hã de manhã, quando sair para as minhas visitas. Não lhe diga que vou, ou
ele é capaz de arranjar uma desculpa para não me receber. Disse-lhe que
vinha falar comigo hoje?
– Não, não disse. Só serviria para arranjar mais uma discussão.
– Nesse caso, não lhe fale desta visita. O único conselho que posso
dar-lhe, Mrs. Reilly, é que seja firme com o seu marido. Se ele amuar,
deixe-o e afaste-se. Não tente estar sempre a apaziguá-lo, não resulta, e só
a fará ficar ainda mais zangada com ele. E tente descansar um pouco.
Parece exausta.

Depois de Belle sair, o Dr. Towle ficou por um instante a olhar para as
notas que tinha tomado enquanto falava com ela. Belle sempre o intrigara,
desde que ela e a tia tinham ido morar para uma casa a poucas portas de
distância da clínica depois de se terem mudado para Blackheath. A sua
beleza era o bastante para a tornar notada, mas era mais do que isso; não
tinha nada da patetice ameninada a que estava habituado, olhava as pessoas
nos olhos e tinha uns modos desenvoltos que ele achava muito atraentes.
Durante todo o tempo que tivera a loja de chapéus em Tranquil Vale,
fora um tema de conversa regular para ambos os sexos. Era admirada pelo
seu talento, elegância e beleza, mas havia mais qualquer coisa que nin-
guém conseguia verdadeiramente definir. Havia quem dissesse que era
sofisticada e usasse palavras como «confiante», «segura» e até «cheia de
raça» para a descrever, mas até Mrs. Towle, conhecida pela maneira inci-
siva como avaliava as pessoas, o mais que conseguia dizer era que achava
que Belle «tinha um passado».
Era muito admirada pelo trabalho voluntário que fizera no Herbert
Hospital. Constara que era conscienciosa e competente, mas quando re-
solvera ir para França, muita gente tinha achado que conduzir ambulâncias
não era ocupação adequada para uma jovem casada. A venenosa Mrs.
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Forbes-Alton ateara as chamas afirmando que ela lhe extraviara a filha, e a
coscuvilhice subira de tom. Mais tarde, depois da trágica morte de Mir-
anda, aparecera no jornal aquele insidioso artigo a respeito dela, e as
pessoas tinham-no feito circular com uma alegria malévola.
O Dr. Towle lembrava-se do julgamento e subsequente execução do
tal Kent. Na altura, sentira uma enorme compaixão por todas as suas víti-
mas inocentes, e ficara chocado ao descobrir que Belle Reilly fora uma
delas. No entanto, como fizera notar à mulher, que infelizmente era quase
tão virulenta como Mrs. Forbes-Alton na condenação de Belle, fora precisa
muita coragem para sobreviver e certificar-se de que o criminoso era
julgado.
Que podia ele então dizer ao marido para o arrancar ao marasmo? Ser-
ia lícito insinuar que podia perder a sua encantadora esposa se o não
fizesse?

Belle perdeu a visita do médico a Jimmy porque saíra para tentar com-
prar um pouco de carne e tivera de esperar na fila uma hora só para
descobrir, quando chegou ao balcão, que o talhante já não tinha mais nada
para vender. Mas conseguira alguns ovos e queijo, e planeava fazer uma
saborosa empada para o jantar.
Estava cansada e cheia de calor, e quando entrou na cozinha e viu
Jimmy sentado no sítio onde o deixara ao sair, já tinha na ponta da língua
um comentário mais azedo. Mas, para sua grande surpresa, ele ergueu os
olhos e sorriu-lhe.
– Estás com um ar arrasado – disse. – Tiveste de ficar muito tempo na
fila?
Era a primeira vez que ele dava sequer a entender que sabia que havia
filas para comprar comida, quanto mais expressar preocupação.
– Mais de uma hora, e não consegui nada no talho. – Belle suspirou. –
Espero que esta noite o Garth consiga arrancar a alguém um coelho, ou
coisa que o valha.
Dirigiu-se ao lava-louça, encheu um copo de água e bebeu-o de um
trago.
– Onde está a Mog? – perguntou.
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– Saiu para ir à reunião de costura e o Garth está a dormir uma sesta. O
doutor Towle passou por cá.
– Ah, sim? – disse ela. – E quem lhe abriu a porta?
– Eu. Sei abrir portas – replicou Jimmy, mas não houve na resposta a
habitual nota de sarcasmo. – Deu-me um sermão sobre apatia.
Belle sentou-se à mesa, compondo a adequada expressão de surpresa.
– Disse que preciso de sair mais, e que devia praticar com a perna de
pau todos os dias, usando-a por períodos cada vez mais prolongados.
– E que disseste tu a isso?
– Que ia fazê-lo.
Dessa vez, a surpresa de Belle foi bem real.
– Ficaríamos todos muito satisfeitos – disse. Queria acrescentar que
andava a dizer a mesma coisa há várias semanas e que ele a ignorara, mas
ficou calada.
– Suponho que tenho sido patético – admitiu ele. – O doutor explicou-
me que os músculos do que me resta do braço e da perna ficarão cada vez
mais fracos se não os usar. E apanhar sol vai fazer-me sentir melhor.
– E que tal praticar um bocadinho agora? – sugeriu Belle. – Podias
fazê-lo no pub, quando está fechado. Lá não há muitos obstáculos para
contornar.
– Agora não. Começo amanhã, com o Garth por perto para me ajudar.
Belle achou que aquilo era uma estratégia dilatória.
– Vou fazê-lo, Belle. Prometo – disse ele. – Tu não és suficientemente
forte para me apoiar. E estarei melhor com o Garth.

Para surpresa de Belle, Jimmy não faltou à sua promessa. Todas as


manhãs, depois de Garth ter acabado o trabalho na cave, ia com ele para o
pub e praticava. O balcão tinha a altura exata para ele se apoiar com a mão
direita, e quando chegava ao fim pelos seus próprios meios, Garth ajudava-
o a dar a volta e regressar ao ponto de partida.
Todos os dias faziam um pouco mais, aumentando gradualmente o
tempo do exercício até uma hora. Ao princípio, Jimmy tinha dores no coto
da perna amputada, devido ao atrito com o encaixe da artificial, mas Belle
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ou Garth massajavam-no todas as noites com álcool cirúrgico para o
endurecer.
Belle estava tão encantada com o esforço que Jimmy fazia que passava
por cima dos seus momentos de mau humor, e, durante a tarde, ajudava-o a
ir até ao pátio das traseiras para se sentar um pouco ao sol. Finalmente,
começava a parecer mais animado, e numa tarde de domingo até concor-
dou em sair na cadeira de rodas, desde que Garth estivesse com paciência
para o empurrar.
Belle e Mog ficaram entusiasmadas por poderem voltar a sair todos
juntos. Vestiram-se ambas para a ocasião e puseram os seus melhores
chapéus, e Garth usou um blazer às riscas e um chapéu de palha com fita.
Até Jimmy entrou no espírito da coisa e deixou que Belle o ajudasse a ve-
stir o casaco de linho verde que antigamente usava para servir ao balcão.
Não era fácil empurrar a cadeira rodas colina acima até à charneca,
mas uma vez lá, valia o esforço. Como sempre nas tardes de domingo,
havia imensa gente a aproveitar o sol. Mas poucos homens entre os dezoito
e os cinquenta anos; os que viram estavam todos de uniforme, em casa de
licença, a passear com as mulheres ou namoradas. Os grupos de crianças
que faziam piqueniques ou jogavam à bola eram vigiados pelas mães ou
avós.
Jimmy pareceu ficar mais à vontade quando viu outros homens com
braços enfiados em fundas ou de muletas – havia até dois que se deslo-
cavam de cadeira de rodas –, mas o número de mulheres vestidas de luto
ou com uma braçadeira negra no braço entristeceu-o visivelmente.
A dada altura, estendeu a mão para pegar na de Belle, um gesto silen-
cioso que dizia que estava por fim a pensar na dor dos outros e não apenas
nos seus próprios males.
Quando chegaram ao lago, Garth e Mog deixaram-nos sozinhos e
afastaram-se para ir comprar gelados para todos.
Belle sentou-se num banco ao lado de Jimmy e ficou a ver as crianças
brincarem com os seus barcos.
– Lembras-te do dia em que viemos até cá quando ainda estávamos em
Seven Dials? Disseste que já cá tinhas estado com a tua mãe, quando tin-
has sete anos.
Jimmy olhou para ela e sorriu.
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– Sim, lembro-me, foi um dos melhores dias da minha vida. Mas
nunca pensei que seis anos mais tarde voltaria a estar aqui sentado numa
cadeira de rodas.
– Pelo menos estás aqui sentado – disse ela, num tom de reprovação. –
Podias estar numa daquelas valas comuns em França. E eu seria apenas
mais uma das centenas de viúvas de guerra a quem nada resta senão re-
cordações. Não podemos alterar o que já aconteceu, mas continuamos a
poder escolher o nosso futuro.
Ele olhou-a nos olhos durante longos segundos.
– Talvez, se eu conseguir aprender a andar com a perna artificial, ainda
possamos ter a tal pensão junto ao mar – disse.
– É assim que gosto de te ouvir falar. – Belle inclinou-se para lhe aca-
riciar a face. – Já passámos pelo pior, daqui para a frente só pode melhorar.

A perturbadora carta de Vera a respeito do número de homens que es-


tavam a morrer vitimados pela gripe espanhola em França chegou um dia
depois de Mog ter lido no jornal um artigo que falava de alguns casos re-
gistados em Londres e várias outras cidades por todo o mundo.
Belle sentira-se inclinada a pensar que os jornais estavam a exagerar
aquela «epidemia» por estarem a ficar sem assunto no que respeitava à
guerra. Mas sabia que Vera não era uma alarmista.
«Estão a morrer da noite para o dia», escrevia Vera.

É absolutamente terrível. Um dia, recebi seis casos sentados,


todos com ferimentos que podiam ser tratados sem qualquer prob-
lema. Dois dias mais tarde, três deles tinham febres altíssimas, um
morreu na primeira noite e os outros dois no dia seguinte. Estão a
pôr os casos suspeitos numa enfermaria de isolamento, mas é tudo
muito rápido, num minuto estão bem e no minuto seguinte estão a
suar desalmadamente e a perder o controlo de tudo. E o mais es-
tranho é que está a atacar as pessoas saudáveis e os jovens: os
velhos e as crianças parecem imunes.
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A carta de Vera tinha chegado no início de agosto, e uma semana mais


tarde Mog anunciou duas mortes causadas pela gripe espanhola na aldeia,
ambas de mulheres de vinte e poucos anos. Garth notou uma diminuição
de clientela no pub, que atribuiu ao facto de as pessoas estarem a evitar os
lugares onde se juntava muita gente. Nas filas das lojas, todos pareciam
conhecer alguém que tinha a terrível gripe, ou já fora vitimada por ela.
Depressa se tornou óbvio que a imprensa não estava empenhada em
espalhar o pânico nem queria aproveitar a epidemia como alternativa aos
relatos da guerra. A gripe estava ali, a ceifar pessoas que tinham sido
saudáveis e fortes. Uma manhã, Belle viu passar dois carros funerários só
no espaço de tempo que levou a limpar os latões da porta do pub. O medo
pairava no ar, via-o nas caras das mulheres que passavam apressadas a
caminho das lojas, e o grupo de costura de Mog deixou de se reunir, as re-
uniões de whist foram canceladas e as pessoas passaram a andar a pé em
vez de apanhar o ómnibus.
E então Garth adoeceu. Mog nunca o vira ter sequer uma constipação,
mas ao meio-dia queixou-se de dores de garganta e às quatro da tarde tir-
itava tão violentamente que teve de recolher à cama.
O Dr. Towle foi vê-lo nessa noite e disse a Mog que tinha de usar uma
máscara de gaze a tapar a boca e o nariz quando tratasse dele. Tudo o que
podia receitar era muitos líquidos e banhos de esponja com água fria, se a
febre subisse.
– Não se aproximem – disse firmemente a Belle e a Jimmy, que pair-
avam junto à porta do quarto. – Deixem que Mrs. Franklin cuide do mar-
ido. E mantenham o pub fechado até nova ordem.

Belle ouviu Mog sair do quarto durante a noite e levantou-se da cama


para a apanhar quando ela descia a escada com os braços carregados de
lençóis.
– Como está ele? – perguntou. – Posso fazer alguma coisa?
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– Está muito mal – respondeu Mog, com o lábio inferior a tremer. –
Deixou de controlar os... – Calou-se, envergonhada, e Belle compreendeu
que os lençóis estavam sujos. – Está a delirar. Vou levar isto para baixo
para os deixar de molho.
– Eu trato disso – disse Belle, e tirou-lhe os lençóis das mãos. – E vou
fazer-te um chá. Queres uma sanduíche, ou qualquer coisa?
Mog abanou a cabeça.
– Não consigo comer, estou demasiado assustada. Eu sei que ele é um
homem forte, mas isto é muito grave.
– As coisas parecem sempre piores à noite – disse Belle, a tentar
tranquilizá-la. – Volta para junto dele, que eu trato dos lençóis. Já bato à
porta daqui a um minuto para te levar o chá.
– Podes trazer mais lençóis e outra toalha? – pediu Mog. – Mudei a
cama, mas o mais certo é tornar a acontecer. E também precisava de mais
água quente.

Quando, na manhã seguinte, Mog tornou a sair do quarto, tinha o rosto


cinzento de exaustão.
– Está ainda pior – disse. – Lavei-o todo com a esponja, tentei obrigá-
lo a beber, mas a febre não baixa. E nem sequer me reconhece.
Belle lavou os lençóis e as toalhas sujos e pô-los a secar. Fez um caldo
de carne e tentou convencer Mog a deixá-la ficar a vigiar Garth e ir dormir
um pouco.
– É meu marido e tenho de cuidar dele – respondeu Mog. – Já tenho
medo suficiente de que tu também a apanhes só por estares a viver na
mesma casa. Portanto, não te aproximes de mim. E não te atrevas a entrar
naquele quarto.
Belle e Jimmy sentiram que tinham de obedecer aos desejos dela.
Jimmy sentava-se no pátio enquanto Belle se ocupava com a lida da casa.
Mais tarde, Mog deixou-se persuadir a comer um pouco de ovos mexidos
com torrada, mas voltou imediatamente para cima, e quando abriu a porta
do quarto, Belle, que estava na cozinha, ouviu Garth gritar qualquer coisa
ininteligível.
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– Vou pedir ao médico que venha cá outra vez – disse a Jimmy. –
Demoro o menos possível.
A porta da clínica foi-lhe aberta por uma mulher baixa e forte, que
usava um vestido azul-escuro e tinha ar de governanta.
– O senhor doutor saiu para as suas visitas – disse secamente, quando
Belle pediu para o Dr. Towle ir ver o marido. – Como deve imaginar, não
tem tido mãos a medir com esta epidemia. Tem dito a todos os que não
pode visitar que arrefeçam os pacientes e os obriguem a beber líquidos.
Não há mais nada que possa fazer.
– Mas eu receio que Mister Franklin esteja a morrer – suplicou Belle.
– Eu digo-lhe que esteve cá – respondeu a mulher. – Não posso fazer
mais nada.
O médico não apareceu. À meia-noite, Belle soube que já não ia apare-
cer e começou a ficar cada vez mais assustada. Mog estava exausta, tinha
lavado Garth e mudado a roupa da cama dúzias de vezes, e tentado obrigá-
lo a beber, mas continuava a recusar permitir que Belle a substituísse para
poder dormir um par de horas.
– Não quero que adoeças também – disse através da porta fechada. –
Posso dormitar aqui, na cadeira. Tu e o Jimmy vão para a cama.
Foram para a cama, e Jimmy adormeceu, mas Belle não conseguiu,
com o ouvido atento a um possível chamamento de Mog.
Devia ter finalmente dormitado, pois acordou sobressaltada ao ouvir
um som no corredor. Já havia luz, pelo que calculou que fossem cerca de
cinco da manhã. Saltou da cama e correu para fora do quarto. Mog estava
parada à porta do seu próprio quarto, com as lágrimas a correrem-lhe pela
cara.
– Está…? – perguntou Belle.
Mog ergueu a mão, a fazer-lhe sinal para não se aproximar.
– Não, mas não deve tardar. A cara pôs-se-lhe negra e já mal consegue
respirar.
Belle via Garth através da porta aberta. Parecia ter encolhido: a cara
habitualmente corada estava manchada de negro, o cabelo ruivo escorrido
e encharcado em suor, e exalava um cheiro nauseabundo.
– Já te reconhece? – perguntou Belle, num murmúrio.
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– Agora não. Há pouco reconheceu-me, e eu pensei que tinha con-
seguido dar a volta – soluçou Mog. – Perguntou-me o que era o jantar e
disse que eu fazia as melhores empadas de Londres. Eu disse-lhe que lhe
faria a maior empada que alguma vez tinha comido, se se pusesse bom.
Mas então voltou a delirar.
– Oh, Mog. – Queria muito abraçá-la e confortá-lo, mas cada vez que
fazia menção de se aproximar, Mog erguia a mão para a deter. – Queres
que vá outra vez chamar o médico?
Mog abanou a cabeça.
– Agora só Deus o pode salvar, e não me parece que esteja para aí
virado. O único homem que alguma vez amei, e vai tirar-mo.
Voltou-se e regressou ao quarto, fechando a porta e deixando Belle
abalada até ao âmago por aquelas palavras.
Garth morreu pouco depois das sete da manhã. Belle estava sentada na
escada para o caso de Mog a chamar, e ouviu uma espécie de longo ester-
tor que cessou bruscamente. Segundos mais tarde, ouviu Mog gritar. O
som de um coração despedaçado.
Jimmy, que estava no quarto, chamou-a.
Belle entrou e encontrou-o sentado na cama.
– Penso que acaba de morrer – disse, aproximando-se dele. Os olhos
de Jimmy encheram-se de lágrimas e Belle abraçou-o e apertou-o contra o
peito. – Tenho tanta pena.
Enquanto o abraçava e ele soluçava com a cara escondida no peito
dela, perguntou-se que mais poderia ser-lhes tirado. Jimmy era um in-
válido, e agora Garth partira. Não queria saber se seriam ou não capazes de
continuar a gerir o pub, era-lhe indiferente que os Alemães ganhassem a
guerra ou que nunca mais ninguém na aldeia lhe dirigisse a palavra. A per-
spetiva de Mog ter de continuar a viver sem Garth era a mais triste e a mais
cruel de todas as coisas.
CAPÍTULO 26

–N ão pareces nada bem, filho – disse Mog a Jimmy depois de terem


fechado a porta do pub nas costas dos últimos convidados para o
velório de Garth. Eram oito e meia da noite, e apesar de comovida por ter
aparecido tanta gente no funeral, estivera com receio de que nunca mais se
fossem embora.
– Sempre a pensar nos outros – disse ele, e estendeu a mão para pegar
na dela. – Perdeu o seu marido, cuidou de toda a gente aqui esta tarde e
agora está preocupada comigo.
– Acho que nasci para me preocupar. – Mog esboçou um sorriso triste
e inclinou-se para lhe beijar a cabeça; Jimmy, sentado na cadeira de rodas,
abraçou-a desajeitadamente. – Não sei como vamos conseguir governar-
nos sem o Garth.
– Havemos de arranjar maneira – disse Belle, olhando em redor en-
quanto amontoava pratos e copos numa bandeja. Mas quando olhou para
Jimmy, viu que Mog tinha razão: não parecia nada bem. Aproximou-se
dele e virou a cadeira para poder ver-lhe melhor a cara. – Estás a suar, e
muito pálido. Sentes-te bem?
– Não é nada. O funeral fez-me compreender como sempre dependi
tanto do Garth e o muito que ele significou para mim – respondeu ele. – Tu
também não estás com muito bom aspeto. Andaste a correr de um lado
para o outro durante todo o dia, e eu só estou a suar porque está calor aqui
dentro.
Belle e Mog entreolharam-se. Não estava calor no pub; na realidade,
até estava frio, pois tinham aberto as janelas para deixar sair o fumo do
tabaco.
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– Acho que é melhor ires para a cama, Jimmy – disse Belle gentil-
mente. – Tiveste um dia muito cansativo. Vou fazer-te um chocolate
quente.
– Vou para a cama se a Mog também for – declarou Jimmy. – Quase
não dormiu desde que o Garth adoeceu.
– Não posso ir para a cama, há demasiado que fazer – respondeu Mog,
indignada.
– Eu trato disto – disse Belle, pondo fim à discussão. – O Jimmy tem
razão: não dormiste como deve ser. Vão os dois para a cama. Vou fazer
chocolate quente para ambos e já o levo para cima.
Empurrou a cadeira de Jimmy até à escada e ajudou-o a levantar-se
para poder subir os degraus da maneira habitual. Mog pegou nas muletas e
subiu atrás dele. Enquanto os observava, Belle reparou que Jimmy se
movia mais devagar do que era habitual. Normalmente, subia a escada
quase tão depressa como ela.
Uma pontada de medo atravessou-lhe o coração. Tinham tomado todas
as precauções que o médico aconselhara: Jimmy nem sequer estivera perto
do tio, ela e Mog tinham fervido a roupa da cama, e as chávenas, copos e
tudo o mais que Garth usara ou tocara fora lavado em água a ferver. Mas
as pessoas tinham falado da epidemia durante toda a tarde, e havia quem
soubesse de famílias em que só um dos membros contraíra a doença, en-
quanto noutras tinham sido todos contagiados. Ninguém parecia saber
como se espalhava, e ninguém conhecia uma cura. Em certas zonas de
Londres tinham morrido dezenas de pessoas, noutras a maioria dos doentes
recuperara.
Mas a epidemia não se circunscrevia à Inglaterra e à Europa: alastrara
a todo o mundo, segundo os jornais. A única coisa em que toda a gente
parecia estar de acordo era que nem as crianças nem os velhos eram at-
ingidos. Matava sobretudo adultos entre os dezoito e os cinquenta e cinco
anos.
Belle levou as canecas de chocolate quente para cima um pouco mais
tarde. Mog já estava na cama, e parecia muito pequena e vulnerável com o
cabelo solto.
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– Sempre pensei que teria o Garth a meu lado até ser muito, muito
velha – disse, e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. – Não consigo ima-
ginar como é que vou continuar sem ele.
– Não sei o que dizer – admitiu Belle. – O Garth era tão forte, tão
cheio de vida, nunca esteve doente um dia que fosse antes disto. Mas ter-
me-ás sempre a mim, Mog. Não vais ficar sozinha.
– É bom saber – disse Mog, e tentou sorrir. – Mas vai ver o Jimmy.
Ficou muito abalado com a morte do tio, como se não tivesse já problemas
de sobra.
Belle foi encontrar Jimmy sentado na beira da cama, com o colarinho
da camisa meio desabotoado e espetado junto à orelha. A única coisa que
despira fora o casaco. Belle pousou a caneca em cima da mesa de
cabeceira, acendeu a luz e correu as cortinas.
– Não me sinto bem – disse ele, e estendeu a mão para ela.
Belle pegou nela e esfregou-a entre as suas. Jimmy tinha os olhos
pesados e a testa coberta de gotas de suor.
– Estás só cansado – disse, a tentar convencer-se a si mesma de que
era verdade. – Deixa-me ajudar-te a despir e a meter-te na cama.
Normalmente, ele nunca a deixava ajudá-lo. Desde que regressara da
casa de convalescença, sempre fizera questão de vestir-se e despir-se em
privado, sobretudo porque não queria que ela visse o que lhe restava do
braço e da perna. Cedera um pouco quando a deixara aplicar-lhe álcool
cirúrgico no coto da perna, mas nem uma única vez ela o tinha visto nu.
Ao princípio, fora Garth que o ajudara a entrar e a sair do banho, até
conseguir fazê-lo sozinho.
Naquele momento, porém, deixou-a desabotoar-lhe a camisa, baixar-
lhe os suspensórios e desapertar as calças, levantando-se o suficiente para
ela lhas despir, e depois as ceroulas.
Se ele a tivesse deixado ajudá-lo daquela maneira desde o início, ela
teria notado como os cotos do braço e da perna tinham sarado bem. Não
tinham nada de repelente nem eram nada em que tivesse tido medo de to-
car, e o mesmo acontecia com as cicatrizes na barriga e nas nádegas. Mas
não era o momento de dizer fosse o que fosse; percebeu que ele mal tinha
consciência de que estava nu da cintura para baixo, e isso só por si era sin-
al de que estava doente.
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Ajudou-o a vestir o pijama e obrigou-o a beber o chocolate quente, e
em seguida aconchegou-lhe a roupa da cama.
– Agora dorme – disse, e acariciou-lhe a testa como se ele fosse uma
criança pequena. – Vou estar lá em baixo a arrumar, mas se precisares de
alguma coisa chama.
Deixou a porta aberta e a luz do corredor acesa e desceu a escada.
Estava tudo demasiado silencioso. Normalmente, àquela hora, o pub
estaria cheio de gente e de barulho. O estrondear das vozes, as gargalha-
das, o arrastar dos bancos no soalho de madeira e o tilintar dos copos en-
cheriam a casa toda, do primeiro piso à cave. Até ter adoecido, a presença
de Garth fora imensa; a sua voz tonitruante, os seus passos pesados e o seu
tamanho pareciam ocupar todo o espaço. Mog costumava dizer que quando
entrava pela porta da rua sabia sempre se ele estava em casa ou não.
Belle entrou no pub para fechar as janelas e deteve-se um instante para
olhar em redor. Quando Garth estava atrás do balcão, dominava o lugar.
Os espelhos que cobriam a parede nas suas costas duplicavam o efeito, a
largura dos seus ombros, a espessa cabeleira ruiva. Jimmy descrevera
muitas vezes como vira o tio inclinar-se por cima do balcão e agarrar um
arruaceiro pela garganta só com uma mão. Não havia muitos homens sufi-
cientemente corajosos para lhe fazerem frente; quase sempre recuavam,
atemorizados.
No entanto, aquela feroz reputação era apenas uma fachada. Garth era
gentil e terno para com aqueles de quem gostava, e Belle ouvira vários ho-
mens contarem durante o velório, nessa tarde, como o tinham visto enfiar
uma nota de dez xelins no bolso de alguém que tinha perdido o emprego,
ou tinha um filho doente ou qualquer outro problema. Muitas vezes dava
empadas ou sanduíches àqueles que suspeitava de passarem fome.
Belle lembrava-se de, quando era criança, as pessoas de Seven Dials o
julgarem um bruto, mas a verdade era que acolhera Jimmy quando a mãe
dele morrera e não hesitara em oferecer a Mog e a Annie um sítio onde
ficar depois de a casa delas ter ardido.
Tinha sido o amor de Mog que o amaciara e fizera vir ao de cima o
que tinha de melhor, e o amor dele por ela que lhe dera a capacidade de se
afirmar em vez de continuar a ser o ratinho que sempre fora. Mog sempre
sonhara ter a sua própria casa, adorava cozinhar, limpar e tratar de pessoas,
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e tinha um dom especial como fada do lar que transparecia por todo o lado
em cores suaves, calor e conforto.
Até no pub se notava a influência dela, apesar de Garth sempre o ter
defendido ferozmente como seu domínio exclusivo. Os metais a brilhar, o
chão esfregado, o balcão impecável e os copos cintilantes eram obra sua.
Havia sempre uma lareira acesa no inverno, e o sofá que lhe ficava ao lado
ostentava almofadas feitas por ela. Apesar de naquele momento não haver
nada debaixo da cúpula de vidro no extremo do balcão, em qualquer outro
dia estaria cheia de empadas caseiras.
Era demasiado cedo para pensarem sequer em quando poderiam reab-
rir o pub, mas o instinto de Belle dizia-lhe que embora ela e Mog provavel-
mente conseguissem, entre as duas, pô-lo a funcionar, sem a enorme
presença de Garth atrás do balcão para manter os clientes na ordem, de-
pressa tudo se desmoronaria.
Acabou de fazer a limpeza, varreu o chão, arrumou os copos lavados
atrás do balcão, fechou e trancou as janelas e voltou à cozinha. Nessa man-
hã chegara uma carta de condolências de Lisette, a mulher de Noah, e
como não tivera na altura tempo para a ler como devia ser, pegou nela e
leu-a outra vez.
Lisette dizia que Noah estava em França e que por isso não poderia ir
ao funeral, mas que o esperava de volta em breve. Sabia que ele havia de
querer ir vê-los e oferecer a sua ajuda, pois tinha consciência de que seria
difícil gerirem o pub sozinhos.
Era uma carta cheia de ternura e sinceridade. Noah e Jimmy tinham-se
tornado grandes amigos no tempo em que andavam por França à procura
dela, e Belle nutria um grande afeto por Lisette, pela bondade que lhe
demonstrara aquando da sua terrível provação em Paris.
Desde então, tinham subido na vida. Noah era um jornalista altamente
respeitado e Lisette a esposa perfeita, mãe de Jean-Philippe, o filho que já
tinha quando casara com ele, e agora de Rose, uma menina de três anos.
Lisette governava a sua bela casa em St. John’s Wood como se tivesse nas-
cido na riqueza e no privilégio. No entanto, nem o dinheiro nem a posição
tinham mudado qualquer deles; tinham escrito mal souberam que Jimmy
fora ferido, e Belle sabia que apareceriam logo que Noah regressasse a
Inglaterra e haviam de querer ajudar em tudo o que pudessem.
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Não escrevera a Noah a respeito da morte de Étienne. Habituado à
morte e à destruição como devia estar depois de tanto tempo como corres-
pondente de guerra, ficaria de certeza muito triste por saber que perdera o
amigo. Mas fora mais para poupar os sentimentos de Jimmy; se Noah es-
crevesse ou telefonasse e quisesse falar sobre Étienne, isso só serviria para
voltar a despertar os ciúmes de Jimmy, que ainda agora a interrogava de
vez em quando a respeito do tempo que passara em Paris, e embora ela, na
altura, nada tivesse feito com Étienne de que devesse envergonhar-se, re-
ceava que, ao defender-se, acabasse por trair de alguma maneira os seus
sentimentos por ele.
De um modo geral, Jimmy tornara-se uma pessoa de convívio muito
mais fácil depois de o Dr. Towle ter falado com ele. Continuara a praticar
com a perna artificial, e chegara mesmo a deslocar-se até algumas lojas
mais próximas. E muitas vezes ria como costumava rir.
Mas ainda havia dias em que revertia ao azedume dos primeiros tem-
pos e a tratava mal. Bastava que ela se arranjasse um pouco melhor para
ele lhe perguntar aonde ia. Continuava a recusar qualquer tentativa para
fazerem amor e quando ela abordava o assunto, remetia-se a um silêncio
obstinado.
A morte de Garth tinha sido um choque terrível para ele. Fora-se com-
pletamente abaixo e ficara inconsolável. Dizia que queria muito ter dito a
Garth quanto o apreciava, que tinha sido para si muito mais do que um pai.
Também lamentava não lhe ter feito companhia no pub naqueles últimos
meses, sabendo como isso lhe teria agradado.
Tudo o que Belle podia dizer era a verdade: que Garth se orgulhava
muito dele e o amava como a um filho. Sabia que aquela morte ia trazer
problemas acrescidos para Jimmy. Não podia ocupar o lugar do tio, e isso
ia fazê-lo sentir-se ainda mais inútil.

Ao ouvir um estrondo vindo do quarto, Belle levantou-se de um salto e


correu escada acima. Encontrou Jimmy caído no chão, ao lado da cama.
– Que aconteceu? – perguntou, mas ao inclinar-se para o ajudar a
levantar-se e o descobriu encharcado em suor, percebeu imediatamente que
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devia ter querido ir à casa de banho e se esquecera de que só tinha uma
perna.
Jimmy estava demasiado confuso até para tentar pôr-se de pé com a
ajuda dela, de modo que Belle correu à casa de banho para ir buscar o ba-
cio que lá estava. Então, içando-o até o deixar sentado na beira da cama,
disse-lhe que urinasse para dentro dele.
Quando ele acabou, obrigou-o a beber um pouco de água e tornou a
enfiá-lo na cama.
– Não tentes voltar a levantar-te, chama por mim – disse. – Vou estar
aqui ao pé de ti.
Passou a noite sentada no cadeirão de braços, embrulhada numa
manta, mas de hora a hora, ou sempre que o ouvia mexer-se, levantava-se,
limpava-o com a esponja húmida, porque estava a arder em febre, e dava-
lhe um pouco de água. Apesar de estar cheia de medo e se sentir muito
sozinha, estava contente por Mog não ter acordado.
Foi um alívio ver os primeiros sinais da aurora no céu e ouvir o
chilrear das aves algures ali próximo. Mas a mesma claridade que tanto a
animara horrorizou-a ao revelar o rosto de Jimmy cinzento e encovado.
– Bebes mais um bocadinho de água, por mim? – perguntou quando o
viu agitar as pálpebras, como que a querer abrir os olhos.
– Deixa-me – rouquejou ele.
– Não, Jimmy, tens de tentar lutar contra isto – disse ela, passando-lhe
o braço por baixo dos ombros e soerguendo-o para poder beber.
Então ele abriu os olhos, e quando a luz incidiu neles pareceram ouro
derretido, como tinham parecido da primeira vez que ela o vira em Seven
Dials, com quinze anos.
– Não posso. Estou cansado de lutar. Vais ter uma vida melhor sem
mim.
– Não vou, Jimmy, preciso de ti – suplicou ela. – Podemos ter uma
vida boa, o nosso lugar é junto um do outro.
– Já tivemos todo o bem que podíamos ter – disse ele, e a sua voz soou
mais clara, os olhos fixos nos dela como que desafiando-a a interrompê-lo.
– O homem que amavas morreu em Ypres, muito antes de aquela granada
me ter transformado num inválido. Mesmo que tivesse regressado inteiro,
não teria sido o Jimmy que conhecias: a porcaria, a brutalidade, o fedor
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dos cadáveres, a lama e o barulho dos canhões já o tinham matado. Já não
acredito em coisa nenhuma, nem em rei, nem em pátria, nem em Deus. Já
não tenho nada dentro de mim.
– Talvez agora penses assim, porque estás doente e o teu tio acaba de
morrer – soluçou Belle, apavorada pela verdade que ecoava nas palavras
dele, mas desesperada por fazê-lo acreditar no contrário. – Todos os
horrores por que passaste ficaram para trás. Vê o que eu passei em Paris!
Pensei o mesmo que tu, que nunca esqueceria e nunca mais voltaria a ser
feliz. Mas fui, porque tu nunca desististe de me procurar, e quando regres-
sei fizeste com que voltasse a sentir-me inteira. Eu posso fazer o mesmo
por ti.
– Não, não podes. Tudo o que viver comigo te fará é puxar-te para
baixo – disse ele, e a voz tornou-se-lhe outra vez mais fraca. – Deixa-me
ir, Belle, recorda-me como eu era.
Ela enlaçou-o com os dois braços, apertou-o contra o peito e chorou.
Sentiu o enorme calor que emanava dele, e isso fê-la afastar-se e voltar a
deitá-lo. Jimmy tinha os olhos fechados e a respiração laboriosa. Ela
desabotoou-lhe o pijama e começou a lavá-lo com a esponja embebida em
água fria.
– Não vou deixar-te ir – disse, determinada. – Amo-te, e a Mog tam-
bém, e precisamos de ti. Podemos fazer-te esquecer a guerra, vamos
mudar-nos para a beira-mar, vamos arranjar o melhor fabricante de mem-
bros artificiais do país para te ajudar. Continuas a ser o Jimmy com quem
casei, eu sei que sim.
A voz de Mog, vinda da porta, interrompeu-a.
– Que posso fazer para ajudar?
Belle voltou a cabeça.
– Não entres. Mas podes ir chamar o doutor Towle?
Mog respondeu que sim, e Belle ouviu-a descer a escada, e depois o
som da porta lateral a abrir-se e fechar-se.
Minutos mais tarde, Jimmy foi sacudido por um espasmo e, antes que
Belle conseguisse chegar-lhe a bacia à boca ou sequer ajudá-lo a levantar-
se, vomitou. O vómito saiu-lhe da boca num jorro amarelo-esverdeado,
bilioso e fétido, que se espalhou pela almofada e por cima dele. Belle
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retirou a almofada, e preparava-se para lhe despir o casaco do pijama
quando notou outro cheiro e percebeu que ele também tinha defecado.
Sabia que aquilo acontecera a Garth diversas vezes, mas até àquele
momento não imaginara como conseguira Mog, uma mulher tão pequena,
despi-lo, lavá-lo e mudar os lençóis da cama, tudo sozinha. Já tinha lidado
com casos daqueles no Royal Herbert, mas nunca sozinha.
Cerrou os dentes, puxou as roupas da cama para trás, despiu-lhe o pi-
jama e usou-o para limpar o maior. Correu a buscar lençóis lavados ao
armário do corredor, e água quente à casa de banho, e lavou-o em cima do
lençol dobrado. Jimmy gemia baixinho, começava a delirar, e quando
acabou de o lavar, Belle prendeu um lençol lavado de um dos lados da
cama, fê-lo rebolar para cima dele, conseguiu puxar a dobra e entalou o
lençol à volta do colchão.
Tinha finalmente voltado a tapá-lo com as mantas, sem tentar vestir-
lhe um pijama lavado, quando Mog regressou.
– O doutor disse que vinha logo que pudesse – informou, da porta. –
Primeiro tem de ir ver outro doente. Vou levar a roupa suja para baixo e
fazer-te uma chávena de chá.

Eram quase nove quando o médico chegou, e durante esse tempo Belle
precisara de mudar a cama mais duas vezes. Começara a chover, e com as
janelas fechadas sabia que o quarto devia cheirar como o pátio de uma
quinta.
O Dr. Towle estava despenteado, com a barba por fazer e os olhos
avermelhados. Claramente, também ele passara a maior parte da noite a pé.
Mas mesmo assim conseguiu sorrir a Belle e apresentar as suas condolên-
cias antes de examinar Jimmy.
– Disse-me Mrs. Franklin que o seu marido adoeceu pouco depois do
funeral do tio, ontem à tarde – afirmou, perguntando em seguida quanto
tempo tinham demorado a febre e os vómitos a aparecer.
– Não podemos levá-lo para o hospital? – perguntou Belle.
– Receio que não haja camas disponíveis em parte alguma – respondeu
o médico. – E mesmo que houvesse, sujeitá-lo a uma deslocação agora só
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serviria para agravar o estado em que já se encontra. Infelizmente, Mrs.
Reilly, já está a fazer tudo o que é possível fazer para o ajudar.
– Vai morrer? – sussurrou ela. Jimmy parecia estar inconsciente, mas
não podia ter a certeza.
O Dr. Towle fez um gesto que implicava que estava nas mãos de Deus.
– Cerca de um terço dos pacientes que observei conseguiu recuperar,
mas nenhum deles tinha desenvolvido febres tão altas como o seu marido.
Com qualquer outra doença, a juventude e a força são uma grande vant-
agem, mas com esta parece acontecer exatamente o contrário.
– Não podemos perdê-lo também a ele! – Belle olhou para o médico,
horrorizada. – Não há nada que possa dar-lhe?
– Bem gostaria que houvesse – disse ele, com uma expressão sombria.
– Tente fazê-lo beber água morna com um pouco de brandy. Lave-o com a
esponja, mantenha o quarto quente mas bem ventilado. É tudo o que posso
aconselhar. Volto a passar logo à noite para ver como ele está.
Durante todo esse dia, Belle lutou para obrigar Jimmy a beber, e
quando o líquido lhe escorreu pelos cantos da boca porque ele não queria
ou não conseguia engolir, passou a usar um conta-gotas de vidro que foi
buscar ao armário dos medicamentos para lhe espremer um pouco de água
misturada com brandy por entre os lábios cerrados. Jimmy tão depressa
perdia como recuperava a consciência, entrava em delírio e dizia coisas
sem sentido. Mas, de vez em quando, pronunciava algumas palavras que
ela conseguia compreender.
«Olhei tantas vezes para a tua fotografia que ela acabou por estalar»
foi uma dessas coisas. Belle sabia que estava a referir-se à fotografia dela
tirada no dia em que tinham casado. Dera por falta dela depois de ele ter
partido para França. «Os outros homens diziam que nenhuma mulher podia
amar um ruivo» foi outra.
Mas sobretudo dizia os nomes de amigos que tinha feito na tropa, e
embora ela não soubesse quem eram, estava contente por ele estar a pensar
nos bons tempos.
O Dr. Towle voltou nessa noite, como prometera, elogiou Belle por ter
usado o conta-gotas e pareceu satisfeito por saber que Jimmy não voltara a
vomitar.
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– Esta doença não apresenta um padrão definido – disse. – Alguns pa-
cientes que parecem estar às portas da morte conseguem recuperar. Outros
que dão a impressão de não estar assim tão mal acabam por morrer. É ex-
tremamente frustrante e quem me dera que houvesse mais qualquer coisa
que pudesse fazer.
– A sua visita é um conforto – respondeu Belle. – Quando ele está
sossegado, como agora, tenho esperança.
– Consegue aguentar mais uma noite com ele, Mrs. Reilly? Parece es-
gotada. Posso tentar arranjar uma enfermeira para a ajudar.
– Penso que é melhor ser só eu a cuidar do meu marido – respondeu
Belle, a lembrar-se da autêntica fera que ele lhe tinha enviado quando per-
dera o bebé.
– Bem, tente então dormir um pouco enquanto ele está tranquilo –
disse o médico. – Agora tenho de ir, tenho mais dúzias de doentes para vis-
itar. Mas voltarei de manhã, e esperemos que tenha havido algumas
melhoras.
Belle desceu à cozinha para um jantar tardio de pão e queijo que Mog
lhe tinha preparado, mas mal acabou de comer voltou para junto de Jimmy.
Conseguiu dormitar no cadeirão durante cerca de uma hora, mas ao
acordar encontrou-o novamente delirante.
Voltou a limpá-lo com a esponja, verteu-lhe um pouco de água com
brandy na boca, mudou os lençóis que estavam encharcados em suor e ur-
ina e tentou confortá-lo enquanto ele divagava incoerentemente.
– Não conseguia encontrar o nosso objetivo – disse a dada altura,
apertando-lhe a mão com tanta força que a magoou. – Não via nada e
escorregava na lama, e caí em cima dos cadáveres.
Belle calculou que estava a recordar o último ataque. Dizia palavras
que não tinham qualquer significado para ela: barragem progressiva, very
lights, tia Sally e Forby. Mas pouco importava que não fizessem sentido
para ela; tinha a sensação de que ele julgava estar a falar com outro
soldado.
– Um homem foi cortado ao meio por um estilhaço – disse Jimmy
noutra ocasião. – A metade de baixo continuou a correr por um instante.
– Chiu – dizia-lhe ela, e lavava-lhe a testa com água fria. – Agora estás
em casa, nunca mais terás de ver essas coisas.
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Por volta das duas da manhã, ele ficou lúcido durante algum tempo.
Virou a cara para ela e tentou sorrir.
– És tu, Belle! Pensei que estava a sonhar. Disse aos rapazes que tinha
de manter-me vivo para voltar para ti. E voltei.
– Sim, voltaste, e agora tens de beber um pouco disto para te pores
bom – disse ela, e ofereceu-lhe um copo de água. Jimmy até conseguiu le-
vantar a cabeça sozinho e beber um ou dois goles antes de voltar a cair na
almofada.
Fechou os olhos e então Belle sentiu que tinha dobrado a esquina e es-
tava a dormir, de modo que voltou ao cadeirão. Cerca de uma hora mais
tarde tornou a levantar-se ao ouvi-lo fazer um estranho som estrangulado
com a garganta. Aproximou um pouco mais o candeeiro e viu que a cara
dele se tornara mais escura, como acontecera à de Garth.
– Oh, por favor, não! – exclamou. Procurou-lhe o pulso e verificou que
estava mais fraco, e quando lhe pousou a mão na testa sentiu-a escaldar.
Começou a lavá-lo com a esponja, com gestos frenéticos, enquanto falava
com ele e lhe suplicava que voltasse. Mas não teve resposta. Jimmy entre-
abria os olhos de vez em quando, mas nem sequer tentava falar.
– Jimmy, tens de acabar com isto – disse na voz firme que usava para
falar com os soldados na ambulância. – Podes melhorar, tens de melhorar.
Fá-lo por mim, não me deixes sozinha.
De repente, Mog estava junto dela. De pequena estatura como era,
parecia encher o quarto de determinação.
– Vá lá, Jimmy – disse. – Não apoquentes a Belle desta maneira. Nós
as duas precisamos de ti. Amamos-te.
Ele abriu os olhos.
– Amo-vos às duas – disse, num murmúrio rouquejante. – Cuidem
uma da outra, não posso ficar mais tempo.
Belle olhou para Mog, horrorizada, e viu pela expressão dela que sabia
que ele estava a morrer.
– Nunca to tinha dito, mas penso em ti como meu filho – disse Mog. –
E orgulho-me muito de ti!
Ele tentou sorrir, mas foi apenas um levíssimo movimento dos lábios.
– Foi como uma mãe para mim – sussurrou. – Não deixe a Belle ficar a
chorar por mim. Mantenham-se juntas.
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– Estou aqui, Jimmy – disse Belle. – E estou a dizer-te que tens de lut-
ar contra isto.
Jimmy virou os olhos para ela e agitou a mão como se quisesse
levantá-la para lhe tocar no rosto.
– Minha Belle, minha maravilhosa Belle – disse. – Peço desculpa por
tudo, mas é melhor assim.
Belle pegou-lhe na mão e beijou-lhe os dedos.
– Não tens de pedir desculpa, e não é nada melhor assim – disse, com
a voz entrecortada e as lágrimas a caírem-lhe pela cara.
Sentiu a mão dele ficar flácida entre os seus dedos e procurou-lhe o
pulso. Não o encontrou.
– Oh, Mog! – gritou.
Foi Mog quem pegou na mão de Jimmy e a pousou no lençol. Fechou-
lhe os olhos e beijou-o na face.
– Adeus, filho – murmurou. – O Garth e a tua mãe estão à tua espera.
– Não, Jimmy! – soluçou Belle. Escorregou até ficar de joelhos no
chão, com a cabeça apoiada no peito dele. – Havia tanto mais que eu
queria dizer-te.
As duas mulheres ficaram ali durante algum tempo, as duas a chorar, e
então Mog pôs-se de pé e obrigou Belle a levantar-se, embalando-a contra
o peito como costumava fazer quando ela era pequena.
– De noite parece tudo pior – disse suavemente. – Mas ele tinha razão,
foi melhor assim. Detestava sentir-se tão impotente. Sabia que as coisas
nunca iam melhorar. Agora vem para a cama comigo. Não podemos fazer
nada até haver luz.
CAPÍTULO 27

B elle ouviu alguém bater à porta lateral quando ela e Mog estavam sen-
tadas na cozinha, mas ignorou o som. Há uma semana que Jimmy
fora a enterrar, e desde então as pessoas não tinham parado de bater à
porta. Muito ocasionalmente era alguém a oferecer ajuda e solidariedade,
mas a maioria das vezes era só para perguntar quando voltaria o pub a ab-
rir. Havia um letreiro pregado na porta a avisar que o estabelecimento es-
tava fechado devido à morte dos proprietários, mas isso não parecia ser o
suficiente para dissuadir os interessados.
Tanto Belle como Mog estavam a ter dificuldade em aguentar o dia a
dia. O tempo pesava-lhes, sem terem ninguém de quem cuidar. Sentiam-se
vazias e assustadas, e não sabiam verdadeiramente para onde se virar. As
perguntas constantes só serviam para tornar tudo ainda pior, recordando-
lhes que havia decisões a tomar.
As pancadas voltaram a soar, agora mais fortes.
– Pode ser o doutor Towle – disse Mog.
Belle pôs-se de pé com relutante lentidão. Talvez Mog tivesse razão;
no funeral, o médico dissera que passaria dentro de uma semana para ver
como estavam.
– Sim, sim, ja lá vou – murmurou, enquanto se encaminhava para a
porta.
Mas não era o médico: era Noah, que tirou o chapéu ao vê-la e sorriu,
hesitante.
– Oh, meu Deus! – exclamou ela. – Noah! Que surpresa!
Não o via há pelo menos três anos, mas apesar do casaco cinzento-
claro impecavelmente cortado, do colete, das calças às riscas e dos sapatos
feitos à mão que falavam do seu êxito, o rosto rosado e ainda arrapazado
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tinha uma expressão de tamanha compaixão e simpatia que Belle foi como
que transportada àquela época em Paris em que ele fizera tanto para a
ajudar. O simples facto de o ver fê-la imediatamente sentir-se melhor.
– Espero não ter vindo em má altura… Estava em França e só recebi a
tua carta ontem, quando cheguei – disse. – Nem sei dizer-te como lamento
não ter cá estado para te apoiar a ti e à Mog quando mais precisavam.
Tanto eu como a Lisette chorámos pelas duas quando lemos a tua carta, e
tivemos muita pena de não termos podido dizer um último adeus ao Garth
e ao Jimmy.
A sinceridade dele comoveu-a, e foi como um bálsamo.
– Nem eu queria que viesses cá e arriscasses ser infetado – disse. –
Mas estou muito contente por te ver. Não temos aberto a porta a ninguém,
mas ainda bem que desta vez o fizemos. Entra.
Quando a porta se fechou, Noah passou os braços à volta de Belle e
abraçou-a com força.
– Eu sei que não é suposto um cavalheiro tomar estas liberdades –
disse, num tom brincalhão. – Mas sabes que sempre te considerei como se
fosses da família.
Belle retribuiu o abraço e beijou-o no rosto, que cheirava a creme de
barbear com aroma a sândalo.
– Se tivesse podido escolher um irmão, escolhia-te a ti – disse, com lá-
grimas de emoção a subirem-lhe aos olhos. – Vamos para a cozinha? A
Mog acabou de cozer pão.
Mog apareceu à porta da cozinha, com o avental e a cara enfarinhados.
– Oh, Noah! – exclamou, e correu a abraçá-lo. – É tão bom ver-te.
Ainda hoje de manhã estávamos a dizer que tu saberias o que devíamos
fazer.
– Querida Mog – disse ele, enquanto a abraçava. – Tenho tanta pena
que tenhas perdido o Garth. Sempre pensei que ainda o veria quando ele já
fosse muito velho. Foi um golpe tão cruel para ti e para a Belle perderem
os vossos maridos. Como foi que aguentaram dois funerais?
Tanto por causa do medo que as pessoas tinham do contágio como do
seu próprio desgosto, Belle e Mog tinham decidido que o funeral de Jimmy
seria uma cerimónia muito simples. Tinham servido chá e bolo às poucas
pessoas que tinham insistido em aparecer, mas o número dos que tinham
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estado presentes na igreja e dos que tinham deixado cartas de condolências
e flores era bem elucidativo de como Jimmy fora apreciado.
– Bastante bem, até um dia depois do Jimmy – respondeu Mog, a
limpar os olhos ao avental. – Mas desde então tem sido horrível.
Noah olhou para Belle, que assentiu a confirmar. Não havia nada para
preencher o vazio que os homens tinham deixado. Estava tudo demasiado
sossegado, demasiado arrumado. Até o pub fechado parecia uma censura.
Mas mesmo que sentissem que tinham de o reabrir, havia formalidades
relacionadas com o luto que era preciso observar. Não seria bem visto duas
mulheres que acabavam de enviuvar trabalharem numa taberna.
Mog fizera notar que mesmo que quisessem voltar a abrir, nenhuma
delas tinha força para trazer as barricas da cave, ou qualquer conhecimento
válido a respeito dos vários géneros de cerveja ou de como deviam ser
tratados, porque sempre fora Garth que se ocupara dessa parte do negócio.
Só naquele dia Mog se sentira com forças para cozer pão. Até então,
tinham-se limitado a depenicar a comida que ficara do chá que se seguira
ao funeral de Jimmy, e nenhuma delas tinha apetite.
A presença de Noah na cozinha era como uma luz que se tivesse
acendido. Mog fez chá, colocou o pão acabado de cozer, ainda quente do
forno, em cima da mesa, foi buscar a manteiga e o queijo e afadigou-se en-
quanto contava a Noah como tinham sido as coisas para as duas.
Noah sempre fora um excelente ouvinte. Enquanto Mog falava e servia
o chá, ele assentia com a cabeça, absorvendo tudo.
– Conta-me como foi depois de o Jimmy ter regressado de França –
pediu a Belle, passado algum tempo. – Há de ter sido muito difícil para os
dois.
Belle fez o seu relato o mais sucinto possível. Ela e Mog tinham falado
daquilo vezes sem conta durante toda a semana, e estavam agora no ponto
em que não queriam voltar ao assunto.
– Fala-nos tu da Lisette, da Rose e do Jean-Philippe – disse, depois de
lhe ter contado o mínimo dos mínimos. – Estamos a precisar de coisas
alegres.
– Arrendámos uma moradia no Devon, para fugir de Londres – contou
ele. – Achámos que as crianças precisavam do ar do mar, campos verdes e
menos tristeza à sua volta. Infelizmente, não pude estar sempre com elas,
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tive de ir para França. Mas o Jean-Philippe aprendeu a nadar enquanto eu
estive fora e foi bom ver-lhes as faces brozeadas e a Lisette com um ar
mais relaxado, quando voltei. Ela queria vir hoje, mas eu disse-lhe que era
melhor vir sozinho.
– Nem eu quereria que ela viesse cá passado tão pouco tempo – afirm-
ou Belle. – Uma mãe tem de manter-se saudável pelos filhos.
– A Lisette não tem medo do contágio. – Noah esboçou um meio sor-
riso. – Fez muita questão de que eu vos dissesse que não foi por isso que
não veio e vos convidasse a voltarem comigo e deixarem que ela cuide das
duas durante algum tempo.
– É muito generosa – disse Mog, com o lábio a tremer. – Casaste com
uma das boas, Noah.
– Todos nós casámos. – Noah suspirou. – Sem a influência do Garth e
do Jimmy, no passado, não estaria onde hoje estou, e não teria a Lisette.
Nem preciso de vos dizer como gosto de vocês.
– Sempre foste um mestre da palavra – disse Belle, com um sorriso
carinhoso. Noah nunca sofrera da habitual reticência masculina em dizer o
que lhe ia no coração. Mas era um homem que acompanhava sempre as
suas palavras com ações, e ela sabia que qualquer conselho que lhes desse
naquele dia seria bom.
– Dizem que não sabem para onde se hão de virar – continuou Noah, a
olhar de uma para a outra. – Enquanto vinha para cá, calculei que fosse
esse o caso, e tenho algumas sugestões que talvez possam ajudar.
– O verdadeiro problema é o pub – disse Mog, desanimada. – Não
sabemos durante quanto tempo é suposto mantermos o luto. E não estou a
falar só de vestir de preto, trata-se também de saber quando será aceitável
voltar a abrir a porta. Somos ambas perfeitamente capazes de servir ao bal-
cão, e sabemos alguma coisa a respeito da maneira de ordenar cervejas e
outras bebidas. Mas há muito mais que não sabemos, e o pub precisa de
um homem forte ao leme.
– Sim, claro que precisa – concordou Noah. – Podiam resolver a maior
parte dos vossos problemas contratando um gerente. Desse modo, nen-
huma das duas teria de aparecer no pub. Mas deixem-me dizer-vos uma
coisa, a convenção do luto está também ela praticamente morta. Quase
toda a gente no país chora a morte de alguém. As viúvas têm de continuar
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a trabalhar para alimentarem os filhos, e as pessoas não podem dar-se ao
luxo de gastar o pouco dinheiro que têm em roupas pretas. Compreendo
que ambas considerem apropriado e decente vestirem de negro durante al-
gum tempo e não serem vistas em lugares públicos. Mas, muito sincera-
mente, só os muito velhos, com uma visão muito limitada das coisas, es-
perariam que respeitassem todas essas observâncias nos tempos que
correm.
Fora também essa a opinião de Belle, mas Mog ofendera-se quando ela
a expusera e insistira em que passassem as duas a vestir de preto. Mas
Noah podia dizer-lhe coisas como aquela; para Mog, ele era a fonte de to-
do o conhecimento.
– Um gerente? – disse Mog. – Não tinha pensado nisso. Não será de-
masiado caro?
– Se mantiverem o pub fechado é que não terão qualquer rendimento –
respondeu Noah. – Posso ajudar-vos pondo o anúncio e entrevistando os
candidatos.
– Sim, mas seria muito fácil para um gerente enganar-nos – objetou
Belle. – Sabes como é, Noah, os homens que trabalham neste ramo nem
sempre são os mais honestos. O próprio Garth conhecia os truques todos.
Noah assentiu, a concordar.
– Penso que a verdadeira pergunta que têm de fazer a vocês mesmas é
se querem sequer continuar aqui.
Belle e Mog trocaram um olhar.
– Eu não, particularmente – disse Belle. – Mas claro que tudo isto per-
tence agora à Mog. É ela que tem de decidir.
Mog estava claramente confusa.
– Eu também não quero continuar aqui, depois de tanta tristeza. Mas se
me fosse embora, sentiria que estava a trair a confiança do Garth. Ele
amava esta casa.
– Amava-te mais a ti – fez Noah notar. – Sei que não se importaria
nada se a vendesses. Lembra-te do que ele pensava a respeito de mulheres
e pubs!
Tanto Belle como Mog conseguiram esboçar um débil sorriso.
– Se pudesse, ele nunca deixaria ninguém que vestisse saias transpor
aquela porta – disse Belle.
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– Bem, acabou por ceder um pouco nesse aspeto – observou Mog. –
Servi ao balcão ao lado dele durante a maior parte da guerra. Só porque ele
não podia pagar a um empregado, e no fim acabou por deixar os soldados
trazerem as mulheres e as namoradas.
– Estamos então de acordo em que ele não esperaria que vocês as duas
continuassem a gerir o pub? – perguntou Noah. – E penso que também
sabemos que daria voltas na sepultura se o deixassem falir. Nesse caso,
porque não vender, Mog? Podiam comprar outro pequeno negócio de que
gostassem e que soubessem ambas gerir. Talvez a Belle pudesse voltar a
fazer chapéus? Uma casa de chá? Um pequeno hotel?
– Adorava ter uma casa de chá – admitiu Mog. – Uma dessas casinhas
bonitas com um jardim onde pudéssemos servir chá durante o verão.
Belle sorriu. Não era a primeira vez que Mog falava naquilo, e possuía
sem dúvida todos os talentos necessários para ter êxito. Além disso, era
bom voltar a ouvi-la falar com entusiasmo sobre qualquer coisa.
– E não ias ter saudades das amigas que fizeste aqui? – perguntou.
– Que amigas? – respondeu Mog, com uma nota de amargura. – As
mulheres que me desprezaram quando leram aquelas coisas a teu respeito?
Só voltaram a mudar de atitude mais tarde, quando me tornei útil às suas
diversas causas.
– Foi um episódio vergonhoso – concordou Noah. – E é outra ex-
celente razão para fazer as malas e mudar de sítio. A menos, claro, que am-
bas sintam que têm de estar perto do lugar onde o Garth e o Jimmy estão
sepultados.
– O Garth costumava dizer que essas coisas eram disparates sentiment-
alistas – respondeu Mog tristemente. – E se o Jimmy tivesse sido enterrado
em França, a Belle não poderia visitar a campa dele.
– Assim sendo, não há nada que as impeça. Penso que é preciso terem-
nos crescido os dentes neste negócio para ser verdadeiramente bom nele,
para não falar de ser tão casmurro como o Garth era. Diria que vocês as
duas se sentiriam muito mais felizes numa atividade mais feminina.
– De certeza que não ia gostar de limpar a sanita do pátio das traseiras
todos os dias até ao resto da minha vida – disse Mog, e fez uma careta. Por
um momento, pareceu voltar a ser a Mog dos velhos tempos.
Noah sorriu.
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– Então, querem que contacte alguns agentes para tratar da venda?
Claro que podiam ser vocês as duas a fazê-lo, mas há o perigo de, ao ver-
em duas mulheres, eles tentarem intimidá-las para conseguir um preço
mais baixo.
Belle olhou interrogativamente para Mog, que hesitou apenas um
instante.
– Sim, Noah, agradeço-te que trates disso. Quanto mais depressa ven-
dermos melhor.
Belle levantou-se da cadeira e abraçou-a.
– É muito corajoso e sensato da tua parte – disse. – Podemos arrendar
um pequeno apartamento para viver enquanto decidimos para onde quere-
mos ir e o que queremos fazer.
– Mais vale cedo do que tarde – sentenciou Noah. – Quanto mais
tempo o pub estiver fechado, menos atraente será para um potencial com-
prador. Blackheath é uma boa zona, com um serviço de comboios fiável.
Apostaria a minha reputação em como vai tornar-se um sítio muito na
moda quando a guerra acabar.
– E isso será em breve? – perguntou Belle; Noah havia de saber a ver-
dade verdadeira, e não acreditava que lhe fosse dar uma das versões ideal-
izadas que os jornais publicavam.
– Diria que antes do Natal – respondeu ele. – Perdeu ímpeto, há de-
masiados milhões de mortos, e os Alemães estão tão desmoralizados como
nós. Agora chamam à terceira batalha de Ypres, aquela em que o Jimmy
foi ferido, batalha de Passchendaele, do nome de uma qualquer desgraçada
aldeia completamente destruída que ainda não conseguiram tomar. Gostar-
ia que todo este episódio ficasse conhecido como a Atrocidade de
Passchendaele. Se estivesse na minha mão, mandava chicotear o general
Haig por ter mandado a nata da juventude britânica e da Commonwealth
ser feita em pedaços pelas bombas ou afogada na lama. Foi, e continua a
ser, um sacrifício inútil e estúpido.
– Estiveste lá? – perguntou Belle. A paixão com que dissera aquelas
palavras parecia confirmá-lo.
– Sim, estive na estrada de Menin, entre tanques calcinados, homens,
cavalos e mulas mortos, e testemunhei os espantosos e aterradores bom-
bardeamentos. Quando os obuses explodiam na lama levantavam géisers
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que se erguiam trinta metros no ar, levando consigo pedaços de cadáveres.
Vi milhares de homens que pareciam formigas, vergados sob o peso das
mochilas, a tentar correr naquele atoleiro sob um fogo assassino, e mesmo
assim segurando as espingardas com os braços levantados enquanto as
balas os ceifavam. Por vezes, eram precisos quatro maqueiros para trans-
portar um homem numa distância de trinta metros, tão espessa era a lama.
Houve feridos que ficaram quatro dias com água pelo pescoço, no meio
dos mortos, antes de serem socorridos. E enquanto isto acontecia, os gen-
erais bebiam chá em chávenas de porcelana, a salvo na retaguarda, e
planeavam enviar ainda mais homens para o matadouro.
Belle tapou a cara com as mãos, horrorizada.
– Escrevi uma peça a contar a verdade, mas o jornal não a publicou. –
Noah franziu os lábios, num esgar de nojo. – Mas quando a guerra acabar,
hei de contar tudo num livro. Será um testemunho do horror, da barbarid-
ade e da insensatez desta guerra. E talvez faça as viúvas, as mães, os pais,
os irmãos e as irmãs de dezenas de milhares de homens como o Jimmy
compreenderem como eles foram incrivelmente corajosos.

Um pouco mais tarde, Mog pediu licença e deixou-os, dizendo que


tinha coisas que fazer lá em cima. Belle sentiu que era uma maneira dip-
lomática de lhe dar algum tempo para falar a sós com Noah.
– Como é que te sentes verdadeiramente agora? – perguntou ele,
quando Mog já não podia ouvi-los.– A Lisette contou-me que te tinhas
queixado de como o Jimmy se tornou difícil depois de voltar para casa.
– Para te dizer a verdade, não sei muito bem como me sinto – admitiu
Belle. – Terrivelmente triste, claro. Não parece justo o Jimmy ter passado
por tudo aquilo, e ser ferido, e então, quando começava a conseguir lidar
com a situação, morrer de gripe.
«Mas não te vou mentir, Noah. Tinha-se tornado muito difícil viver
com ele, sobretudo ao princípio. Sempre de mau humor, dizia-me coisas
horríveis, e não me deixava aproximar. O meu futuro parecia-me bem
negro. Por vezes, sinto-me aliviada por ter acabado. Mas sentir isso faz-me
sentir terrivelmente culpada.»
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– Calculo como deves estar confusa – disse Noah, num tom cheio de
compreensão. – No dia em que tu e o Jimmy casaram, acreditei verdadeira-
mente que a vossa vida ia ser feliz. Tu tinhas tido mais do que o teu quin-
hão de infelicidade, e com o Jimmy, a Mog e o Garth a teu lado, pensei
que não ia ter de voltar a preocupar-me contigo. Mas esta maldita guerra!
Ninguém lhe escapou incólume.
«Não acredito que haja muitos homens que tenham passado pelas
batalhas, como o Jimmy passou, e que não tenham sido mudados pelo que
viram. E depois, voltar a casa sem um braço e uma perna! Eu senti-me
aterrorizado, Belle! E tudo o que tinha de fazer era abrigar-me e observar.
O cheiro, a imundície, o barulho… era uma cena do Inferno a que se jun-
tava o terror de não saber quando se ia ser feito em pedaços.»
Fez uma pausa, a olhar para ela.
– Mas tu fizeste tudo o que alguém podia ter feito por ele. Amaste-o e
cuidaste dele. Agora chegou a altura de pensares em ti.
Belle não conseguiu responder; a compaixão dele roubava-lhe a voz.
– Estás pálida e magra, Belle. Agora tens de ser boa para ti mesma –
continuou Noah. – Tinha sugerido que fossem para minha casa, mas, de-
pois de as ver às duas, penso que será mais benéfico irem descansar para
perto do mar. Recuperar energias. Pensar no futuro.
Belle recomeçou a chorar, e Noah aproximou mais a cadeira da dela e
passou-lhe o braço pelos ombros.
– Passaste por mais do que qualquer outra pessoa que eu conheça. O
Étienne disse-me certa vez que já em criança eras manipulada por terceir-
os. E tinha razão. Mas agora chegou o momento de acabar com isso, de de-
cidir o que queres fazer. Ainda és uma mulher nova, com a vida inteira
pela frente.
A referência a Étienne provocou uma nova avalancha de lágrimas. Era
ele que ela queria, mas também isso lhe tinha sido negado.
– Lembras-te de eu te ter escrito a dizer que tinha sido um soldado
francês que salvara o Jimmy? Foi o Étienne! – balbuciou.
– O Étienne? – perguntou Noah. – Como é isso possível? Não
compreendo.
– Aqui há tempos, o Jimmy recebeu uma carta de um antigo camarada
de regimento, e nessa carta o amigo dizia-lhe que o seu salvador fora um
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tal sargento Carrera. Tinham-lhe concedido a Croix de Guerre por ter elim-
inado sozinho um ninho de metralhadora alemão e morrido como um
herói.
– Morto? – arquejou Noah. – Oh, não. Também ele?
– Receio que sim. Foi por causa da condecoração que ficaram a saber
todos os pormenores.
Noah franziu a testa.
– Tens a certeza de que era o Étienne e não outro homem com o
mesmo apelido?
– O amigo do Jimmy dizia que era um homem que tinham conhecido
perto de Verdun, em 1916. O Jimmy descreveu-mo, e por aquilo que me
disse na altura percebi que era ele. Além disso, é tudo tão típico do
Étienne, desobedecer às ordens para levar o Jimmy até às linhas francesas.
E o Jimmy sempre disse que o homem o tinha tratado pelo nome.
Não ficou surpreendida ao ver os olhos de Noah encherem-se de lágri-
mas: sabia como ele tinha gostado de Étienne, e o tinha admirado. E sentiu
um imenso alívio por poder falar dele com alguém que conhecia tão bem
como ela o seu valor.
– O Jimmy não te contou que o tinha encontrado em Verdun?
– Não, mas a verdade é que nunca chegou a saber o nome do sargento
francês. Mas é claro que o Étienne sabia o dele. Segundo o Jimmy, fez-lhe
perguntas acerca de onde vivia em Londres, e coisas assim.
– O Étienne sempre teve o hábito de não abrir o jogo. Recebi um par
de cartas dele, no início da guerra – disse Noah. – Fiquei surpreendido por
ele ter sobrevivido a Verdun, não foram muitos os franceses que o con-
seguiram. Estamos sempre a falar das baixas britânicas, mas os Franceses
sofreram ainda mais. O exército deles perdeu um quarto dos seus efetivos.
Sempre pensei que ele era indestrutível. O que é uma estupidez, claro, nen-
hum homem o é.
– Também eu o pensava, Noah – disse ela, e pousou-lhe a mão no
braço. – Escuta, nunca disse isto ao Jimmy nem à Mog, mas encontrei-o
em França. Foi procurar-me ao hospital.
Contou resumidamente a Noah como aquilo acontecera.
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– Disse-me que ia indicar-te como parente mais próximo. É claro que
pode ter-se esquecido, mas não é costume os soldados serem lembrados
destas coisas antes de uma grande batalha?
– Sim, é. Mesmo que não tenham mais nada além de um relógio ou um
par de peúgas, o comandante da companhia obriga-os a anotá-lo. Se o
Étienne o fez, eu devia ter sido informado da sua morte.
Belle não tinha pensado naquilo.
– Bem, suponho que os Franceses não sejam tão organizados como
nós. Com um tão grande número de baixas, deve ser difícil. E talvez o
comandante dele não tenha passado a informação a alguém que soubesse
escrever em inglês.
Noah anuiu.
– Sim, isso podia atrasar o processo. Dizia na sua última carta… foi
em abril, acho eu… que esperava que quando a guerra acabasse, eu levasse
a Lisette e as crianças até Marselha. Queria que víssemos a quinta. Eu não
conseguia imaginá-lo no meio de galinhas e de porcos. Mas a verdade é
que ele era um homem cheio de surpresas. Mas porque haveria de indicar-
me como parente mais próximo? Com certeza não tencionava deixar-me a
quinta. Sabia que eu não percebo nada de agricultura.
Belle apercebeu-se de que, mal fosse notificado a respeito da morte de
Étienne, Noah ficaria ainda mais confundido pelo facto de ele lhe ter deix-
ado a quinta a ela.
– Acho que tencionava deixar-ma a mim.
Noah ficou a olhar para ela por um instante, e então franziu a testa.
– Porque faria ele uma coisa dessas, Belle? O Jimmy não o teria
achado estranho? Para não dizer suspeito?
– Sim, suponho que teria. – Belle sentiu o sangue ruborescer-lhe o
rosto por causa da maneira como Noah estava a olhar para ela. – Mas o
Étienne disse que tu eras a única pessoa que conhecia em quem podia con-
fiar para tratar do assunto, e que saberias explicar ao Jimmy que não era
estranho nem suspeito porque ele era meu amigo e me tinha salvado em
Paris.
– É natural que o Étienne visse as coisas dessa maneira, mas duvido
que o Jimmy tivesse concordado – disse Noah, pensativo. – E não sei
muito bem se eu próprio concordaria. Ao fim e ao cabo, lembro-me do que
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sentias por ele quando partimos de Paris, e sempre suspeitei de que o senti-
mento era recíproco. O que foi que sentiste quando voltaste a vê-lo?
Belle tinha esquecido como Noah podia ser intuitivo, e anos de
jornalismo tinham-lhe apurado essa capacidade.
– Voltaste a apaixonar-te por ele.
Não era uma pergunta, era uma afirmação, e Belle não podia negá-la.
– Sim – disse, num fio de voz. – Deus me perdoe, sim.
Fez-se um silêncio que só o tiquetaque do relógio no corredor
perturbava.
– Pensaste em deixar o Jimmy?
– Não! Bem, talvez tenha perguntado a mim mesma durante algum
tempo se seria capaz de o fazer. Foi um momento de loucura, a minha
amiga tinha morrido, eu estava tão triste. E acho que me deixei levar
quando o Étienne disse que, de uma maneira ou de outra, haveríamos de
acabar juntos. Mas ele voltou para a frente, e o Jimmy foi ferido e eu vim
para casa com ele.
– Deves ter passado por um turbilhão – disse Noah, numa voz baixa e
tão impregnada de compreensão que ela sentiu que tinha de admitir como
fora horrível.
– Sim, nem sequer sei como o descrever. – Suspirou. – Escrevi ao
Étienne na noite em que soube que o Jimmy tinha sido ferido. Disse-lhe
que não podia voltar a contactar-me. Ele só respondeu para dizer que com-
preendia e para nos desejar felicidades, a mim e ao Jimmy.
«Claro que agora sei que cumpriu a sua palavra porque estava morto.
Mas na altura senti-me esmagada pela culpa. Até me convenci de que o
facto de o Jimmy ter sido ferido era um castigo para mim. Tentei muito
nunca mais voltar a pensar nele, mas era muito difícil, com o Jimmy a ser
tão frio e a tratar-me tão mal.»
Noah ficou como que absorto nos seus pensamentos durante algum
tempo. Acendeu um cigarro, e Belle olhou nervosamente para ele, a
perguntar-se o que lhe iria na cabeça.
– O mais espantoso de tudo é ele ter salvado o Jimmy! – disse Noah,
de repente. – Se o tivesse ignorado, teria ficado com o caminho livre para
chegar até ti. Mas ele sempre teve o seu próprio código de honra; sei que
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se estivesse num aperto, era ele o homem que gostaria de ter a meu lado. E
não contaste nada disto à Mog?
– Não, como podia contar? Estive tentada a ir falar com a Lisette
quando cheguei. Sentia-me tão mal, com tanta vergonha do que tinha feito,
e senti que ela era a única pessoa que poderia compreender. Mas não fui
capaz. Achei que era melhor apagá-lo do meu espírito e concentrar-me em
reconstruir a minha vida com o Jimmy.
– Continuaste então a sentir o mesmo por ele, mesmo depois de
saberes que tinha morrido? Deve ter sido duro, sobretudo com o Jimmy
naquele estado de espírito.
– Sim, foi – admitiu ela. – O mais duro de tudo foi que o Jimmy não
largava o tema, como um cão agarrado a um osso. Mas agora acabou-se,
estão os dois mortos. E eu tenho de apanhar os cacos da minha vida e
começar de novo.
Ouviram Mog descer a escada e Noah mudou de assunto, voltando à
sua sugestão inicial de que tirassem umas pequenas férias.
– Seria agradável. – O rosto de Mog iluminou-se. – Podíamos ir para
Brighton. Sempre quis lá ir.
Noah ficou mais cerca de uma hora, e antes de partir perguntou a Mog
se sempre queria que avançasse com a tentativa de encontrar um compra-
dor para o pub. Mog devia ter pensado muito a sério no assunto quando es-
tava no primeiro piso, pois disse imediatamente que sim.
– Tens o testamento do Garth? – perguntou ele.
Mog respondeu que sim e perguntou-lhe se queria vê-lo.
– Deixou-me tudo a mim, exceto algum dinheiro que legou ao Jimmy
e à Belle.
– Nesse caso, tens de levá-lo ao advogado dele – explicou Noah. –
Tem de ser validado antes de poderes vender a propriedade. Mas o
advogado explica-te isso tudo. Ora bem, precisam de algum dinheiro para
compor as coisas?
– Não, obrigada, Noah, estamos bem – respondeu Mog. – O Garth
tinha sempre algum dinheiro de parte, para uma emergência. Não confiava
muito em bancos.
– Se precisarem de mais, é só dizer.
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Quando se preparava para sair, perguntou a Belle se tinha estado re-
centemente com a mãe.
– Não, ela nem sequer se deu ao incómodo de responder quando lhe
escrevi a dizer que o Jimmy tinha sido ferido. Mandou uma caixa de
chocolates no Natal, mas nem um bilhete a acompanhar. Depois, em fever-
eiro, recebi uma carta curtíssima a perguntar por que motivo não tinha ido
vê-la. Respondi que não tinha tempo para viajar até à outra ponta de Lon-
dres com um marido inválido a meu cargo. Desde então, não voltei a saber
dela. Não lhe dissemos nada a respeito das mortes do Garth e do Jimmy.
– O meu conselho é que continues a não dizer – recomendou Noah,
com um leve sorriso. – Os parentes têm o hábito de sair dos seus esconder-
ijos quando alguém morre. Se bem me lembro, a Annie não é do género de
aparecer por aí, a menos que queira alguma coisa.
– Os nossos parentes são-nos impostos. Graças a Deus, podemos
escolher os amigos – disse Belle, e riu. – E tu tens sido o melhor dos ami-
gos, Noah.
Noah despediu-se com um beijo, recordando-lhes que ele e Lisette es-
tavam à distância de um telefonema se quisessem falar sobre qualquer
coisa e que eram sempre bem-vindas se resolvessem visitá-los.
– Vou arranjar um agente que fique perto daqui e voltarei quando eles
quiserem avaliar a propriedade – disse, já à porta. – Até lá, vão para fora e
descansem.

Três semanas depois de Noah as ter visitado, Belle e Mog voltaram ao


Railway após dez dias passados em Brighton. O agente a quem Noah
pedira que procurasse um comprador para a propriedade encontrara al-
guém muito interessado no negócio. Só faltava agora que o advogado de
Garth dissesse a Mog que tinha o direito legal de avançar com a venda.
– É agradável não fazer nada durante algum tempo, mas acho que
ainda não estou preparada para uma vida de ócio – comentou Mog, en-
quanto punha a chaleira ao lume. Olhou em redor e franziu a testa. – Meu
Deus, está escuro aqui dentro! Nunca tinha reparado, mas suponho que de-
pois do nosso belo quarto com vista para o mar, tão cheio de luz, qualquer
outro sítio pareceria escuro.
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Belle sorriu. Mog recuperara o gosto pela vida durante as suas curtas
férias. Falava muito de Garth e de Jimmy, mas de uma maneira positiva,
como se tivesse acabado por se conformar com o facto de terem morrido.
Mas também falava muito do futuro, a querer meter o nariz em casas de
chá, a criticar a maneira como faziam os bolos e a enumerar os melhora-
mentos que faria se o negócio fosse seu. Também tinham examinado anún-
cios de venda de casas, conversando alegremente a respeito de onde
gostariam de viver. Mog preferia um lugar algures no campo, mas Belle
achava que uma pequena povoação com algum comércio seria preferível
para elas.
No entanto, durante toda a viagem de regresso, no comboio, Mog
falara de como ia dar ao pub e à casa uma boa limpeza, ao ponto de Belle
pensar que tinha mudado de ideias e queria ficar. Gostara de caminhar pelo
passeio público, em Brighton, achara o pontão encantador e adorara ir ao
teatro e aos espetáculos de música. Mas era evidente que tinha saudades
das suas tarefas domésticas. Nos últimos dias da estada em Brighton, Belle
apanhara-a várias vezes a passar os dedos pelo corrimão da escada, para
ver se tinha pó. Torcera o nariz à aldraba de latão da porta principal, que
não fora limpa, e começara a criticar o jantar. Mas o comentário a respeito
de a cozinha ser escura sugeria que seria ainda mais feliz a tratar das tare-
fas domésticas noutro sítio qualquer.
– Nesse caso, temos de certificar-nos de que no sítio para onde nos
mudarmos, seja onde for, não nos falte luz – disse.
Mog olhou para ela, com a cabeça de lado, como um passarinho.
– Estás desejosa de sair daqui, não estás?
Belle pensou que chegara o momento de falar com toda a franqueza.
– Estou – admitiu. – Aqui só consigo sentir tristeza, fico insensível a
tudo o mais. E não acredito que isso vá mudar enquanto não fecharmos a
porta pela última vez.
– O Jimmy fez-te passar um mau bocado, eu sei. – Mog suspirou. –
Tentei falar com ele sobre esse assunto várias vezes, mas não me quis
ouvir. Tens razão, é melhor ir para outro lado e tentarmos recordar só os
bons momentos que aqui tivemos, não os maus.
Belle abraçou-a. Não eram necessárias palavras. Como sempre, Mog
era forte, amorosa e compreensiva. E ambas sabiam que para onde quer
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que fossem e o que quer que fizessem, podiam ser felizes desde que est-
ivessem juntas.

– Importas-te de dar uma vista de olhos a esse monte de correio? – pe-


diu Mog um pouco mais tarde, a apontar para a pilha de envelopes que
apanhara à entrada e pousara em cima da mesa. – Vou fazer chá e uma lista
das mercearias de que precisamos.
Belle começou a examinar a correspondência. Havia mais cartas de
condolências para ela e para Mog de pessoas que só recentemente tinham
sabido da morte de Garth e de Jimmy. Algumas contas, uma enorme quan-
tidade de publicidade a tudo e mais alguma coisa, desde cadeiras e mesas
para o pub a copos e novas cervejas. E, no meio de tudo aquilo, uma carta
de Vera, enviada de França.
Belle escrevera à amiga quando estava em Brighton e informara-a da
morte de Garth e de Jimmy, mas aparentemente as cartas das duas tinham-
se cruzado, porque Vera estava a planear regressar à Nova Zelândia.
«Para mim chega», leu Belle.

Estou exausta, tenho furúnculos no pescoço. Pareço uma


velha e a verdade é que não consigo continuar a aguentar toda es-
ta miséria que me rodeia. Os homens morrem como moscas por
causa desta gripe espanhola. O hospital foi bombardeado diversas
vezes, conduzir de noite sem luzes é um pesadelo. Já fiz a minha
parte, agora quero ir ver a minha mãe e o meu pai, sentar-me a
olhar para o mar azul e não ter responsabilidades. Parece tão
egoísta. E suponho que é. Seja como for, quando receberes esta
carta já irei a caminho de Inglaterra. Só posso aí estar três ou
quatro dias, antes de embarcar de regresso a casa em Southamp-
ton. O meu plano é ir diretamente para Londres, e gostava muito
de ficar contigo, se puderes acomodar-me. Senão, arranjo um
hotel barato aí perto. Nem sequer penses em arranjar trabalhos
por causa de mim. Ver-te será o melhor bálsamo que me poderiam
dar, e espero que ver-me também te anime.
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A tua amiga que te adora, Vera

Belle gritou de alegria. A carta estava datada de uma semana antes,


pelo que era muito provável que Vera chegasse no dia seguinte.
– Boas notícias? – perguntou Mog.
– Sim. A Vera vai passar por cá antes de regressar à Nova Zelândia!
Mal posso esperar por voltar a vê-la.
Mog sorriu afetuosamente.
– Fico contente. Uma amiga para te fazer rir e recordar-te de que ainda
és nova é exatamente aquilo de que estás a precisar neste momento.
CAPÍTULO 28

V era fez uma careta apalhaçada quando Belle lhe abriu a porta.
– Espero que tenhas recebido a minha carta – disse. – Se não rece-
beste, tens dois segundos para fechar a porta.
Belle riu.
– Recebi, e fiquei encantada por saber que vinhas – disse, e estendeu a
mão para a mala da amiga. – Mas desconfio que não recebeste a minha,
que se deve ter cruzado com a tua no correio.
– O quê, aquela em que dizias que não me lembrasse de aparecer à tua
porta? – perguntou Vera, enquanto entrava para o corredor.
– Essa mesmo – respondeu Belle. Mas, consciente de que tinha de con-
tar à amiga o que acontecera a Garth e a Jimmy antes de a apresentar a
Mog, pousou a mala, voltou a abrir a porta e arrastou Vera para o passeio.
– É justo. Gostei de voltar a ver-te, nem que fosse só por um segundo
– disse Vera, mas o sorriso morreu-lhe nos lábios ao reparar na expressão
ansiosa de Belle. – Vim em má altura?
– Não, não é nada disso, mas preciso de te contar o que aconteceu
antes de voltarmos a entrar. Estava na carta que não recebeste. O Garth e o
Jimmy morreram, vítimas da gripe, com menos de uma semana de
intervalo.
Vera quase deixou cair o queixo.
– Foi há quatro semanas. Já ultrapassámos o pior do choque… bem,
pelo menos aprendemos a aceitar o facto.
– Posso ir-me embora – disse Vera, alarmada. – Lamento muito. Não
quero vir incomodar num momento destes.
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– Não precisas de te ir embora. A Mog ficou tão feliz como eu por
saber que vinhas. – Belle agarrou o braço de Vera, para dar ênfase às suas
palavras. – Um pouco de alegria será bom para ti e para mim.
Vera ficou a olhar para ela por um instante.
– Nem posso acreditar. Tenho tanta pena, Belle – disse. – Oh, meu
Deus! Poderia ter chegado em pior altura?
Belle sorriu.
– Chegas em muito boa altura. Só queria ter-te escrito mais cedo para
vires avisada. Não quero que te sintas constrangida. Anda, vem conhecer a
Mog.
Vera ainda estava hesitante quando Mog avançou para a receber.
– Lamento muito a sua perda, Mrs. Franklin – disse. – A Belle acaba
de me dizer.
– E a mim disse-me como foi uma boa amiga para ela em França – re-
spondeu Mog e, abrindo os braços, avançou para abraçar Vera. – É muito
bem-vinda, minha querida. E trate-me por Mog.
Só então Belle se sentiu mais descontraída. Mog gostava de ter alguém
para apaparicar, e sabia que Vera estava mais do que recetiva a um pouco
de tratamento maternal.

Já em França, Belle observara como Vera era capaz de cativar as pess-


oas. Era em parte a sua cara animada e sardenta, o seu grande sorriso e o
seu irreverente sentido de humor, e em parte o interesse que mostrava por
tudo e mais alguma coisa. Quando contava uma história, pintava um
quadro com palavras, e também era uma boa ouvinte, uma dessas raras
pessoas capazes de fazer o seu interlocutor sentir-se a criatura mais fascin-
ante do mundo.
Depois do jantar, Belle acendeu a lareira na sala de estar do primeiro
piso. Setembro fora quente, e agora, em outubro, o tempo continuava
ameno durante o dia, mas arrefecia muito à noite.
Era bom estar sentada à frente da lareira a conversar; fazia-lhe lembrar
os tempos antes de Jimmy partir para a guerra. Nessa altura, os domingos
eram especiais porque o pub fechava. Comiam um lauto jantar de carne as-
sada e subiam até à sala para relaxar e conversar. Garth e Mog quase
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sempre adormeciam, mas mais tarde jogavam às cartas e Garth divertia-os
com o relato dos mexericos que ouvira no pub ao longo da semana.
Mog ficava atenta a cada uma das palavras de Garth, ria de todas as
suas graças, mas, naquele momento, era sob o fascínio de Vera que se en-
contrava. Belle sentiu vontade de abraçar a amiga por estar a trazer Mog
para fora de si mesma, a contar-lhe histórias divertidas acerca do hospital,
ou da sua família na Nova Zelândia. Mog adorou o facto de terem uma
padaria, e as duas discutiram formas de fazer bolos e cozer pão com uma
paixão quase idêntica. Mais tarde, Mog falou da morte de Garth, uma coisa
que talvez não tivesse sido capaz de fazer com Belle, e Vera, porque tinha
visto tantos homens vitimados pela gripe espanhola, conseguiu convencê-
la de que tinha verdadeiramente feito por Garth tudo o que era possível
fazer.
Por volta das oito, Mog foi para a cama, mas antes de se retirar sugeriu
que, no dia seguinte, levassem Vera a Trafalgar Square e ao Palácio de
Buckingham, para assistir ao Render da Guarda.
– Podíamos ir àquele sítio novo de que falava o jornal. A Lyons
Corner House – disse. E então olhou para Belle e sorriu. – E não vamos
vestir de preto. Tenho a certeza de que o Garth não havia de querer que
parecêssemos dois velhos corvos.
– Ajudaste-a muito – disse Belle, depois de Mog sair e fechar a porta.
– Voltámos ontem da beira-mar e ela andou muito mais animada enquanto
lá estivemos, mas hoje esteve como costumava estar antes de eu ir para
França. Obrigada.
– Achei-a um tesouro – afirmou Vera. – Ela e a minha mãe iam dar-se
às mil maravilhas. São incrivelmente parecidas, de várias maneiras. Mas
fala-me de ti, Belle. A história toda. Sei tudo a respeito do Garth, mas nada
acerca de ti e do Jimmy.
Belle contara-lhe alguma coisa nas suas cartas, mas sem nunca dar
grande realce aos problemas que estava a ter com Jimmy. Ali na sala,
porém, começou a abrir-se cada vez mais, com Vera a aprofundar certos
pontos, a insistir, até que, por fim, foi capaz de deitar tudo cá para fora: a
fúria, a dor, a solidão e o desapontamento que sentira, e também o remorso
por causa de Étienne.
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– Foi horrível teres ficado a saber dessa maneira! – exclamou Vera. –
Sem ninguém com quem falar, a esconder tudo dentro de ti. Espanta-me
como não enlouqueceste.
– Mereci tudo o que me aconteceu – disse Belle tristemente. – Quando
penso em todas as noites em que fiquei acordada a pensar no Étienne e a
desejá-lo, como posso ficar magoada por o Jimmy nunca mais ter querido
fazer amor comigo?
– Nunca?
Belle abanou a cabeça.
– Nem uma única vez. Convenci-me de que se conseguisse fazer
renascer essa parte, ficaríamos bem. Mas ele não queria. Zangava-se
comigo quando tentava forçá-lo. No fim, acabei por desistir. E no entanto
amava-o, Vera; o que sentia por ele era completamente à parte dos meus
sentimentos pelo Étienne. Ele pediu-me desculpa quando estava a morrer,
e eu sei que foi por me ter rejeitado.
– Que estranho o Étienne tê-lo salvado – disse Vera, pensativa. – Sabia
quem o Jimmy era, e mesmo assim salvou-o. Diria que foi por saber que
nunca mais seria capaz de voltar a olhar-te nos olhos se não o fizesse.
– Talvez. A ironia é que o Jimmy preferia não ter sido salvo. Perguntei
muitas vezes a mim mesma como me sentiria se ele tivesse morrido e eu
ficasse livre para estar com o Étienne. Não aconteceu, e talvez tenha sido o
melhor.
Vera estendeu a mão para limpar uma lágrima da face de Belle.
– Não vou permitir que te continues a entregar a esse sentimento de
culpa. Fizeste o que devias com o Jimmy. Ninguém poderia ter feito mais.
E agora? A guerra vai acabar em breve. Podes começar um novo capítulo
da tua vida, e tens de te certificar de que, faças o que fizeres, é por ti, e não
por outra pessoa qualquer.
– Um velho amigo disse-me mais ou menos a mesma coisa. A Mog vai
vender o pub, uma vez que não podemos nem queremos geri-lo. Quer uma
casa de chá.
– Aqui em Blackheath?
– Não, queremos mudar-nos logo a seguir, mas ainda não sabemos
para onde.
– Porque não vão para a Nova Zelândia?
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Belle riu.
– Não sejas tonta. Não podíamos fazer uma coisa dessas.
– Porque não? Um verdadeiro recomeço, um lugar cheio de beleza,
montes de espaço e de oportunidades. Falamos inglês, na realidade a maior
parte de nós tem ascendência inglesa. Iam adorar. Casava-as às duas num
abrir e fechar de olhos.
– Quando tu própria ainda não casaste? – observou Belle, com uma so-
brancelha erguida.
– Na altura queria outras coisas, sobretudo aventura. Mas depois do
que vi em França, estou mais do que disposta a contentar-me com o que a
minha mãe tem: um homem bom, filhos, paz de espírito e bons amigos à
minha volta.
– A Nova Zelândia atrai-me muito – admitiu Belle. – Quando voltei
para aqui, costumava sonhar acordada com essas coisas de que falavas: ir à
pesca de barco, o sol, o mar azul-turquesa. Em Brighton o mar era cin-
zento, e muito frio.
– Os meus pais teriam muito gosto em alojá-las às duas até
conseguirem instalar-se – disse Vera. – A Mog podia ter uma casa de chá
em Russell, tu podias voltar a fazer chapéus, ou receber os hóspedes. A
minha mãe está sempre a dizer que precisamos de uma retrosaria. Quando
as mulheres precisam de tecidos, linhas ou botões, têm de mandar vir tudo
de Auckland e esperar imenso tempo pelo vapor.
– A Mog não havia de querer ir para o outro lado do mundo.
– Pois eu aposto que queria. Tem uma alma aventureira.
Belle riu.
– O máximo de aventura para a Mog é arriscar uma nova receita.
– Julgo que ela é capaz de te surpreender. Pelo que vi hoje, diria que
estaria disposta a alinhar fosse no que fosse, desde que estivesses com ela.
O que é que tens em Inglaterra que te prenda?
Belle pensou por um instante, mas não lhe ocorreu coisa alguma.
Tinha uma mãe, mas não se importaria nada se nunca mais voltasse a vê-
la. Os seus únicos verdadeiros amigos eram Noah e Lisette, mas esses tin-
ham a sua família e a sua vida. A ideia de viver num sítio onde o seu pas-
sado nunca mais fosse trazido à baila parecia-lhe muito sedutora.
– Tu queres ir, não queres? – espicaçou-a Vera.
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– Talvez – respondeu Belle, cautelosa.
Desviaram a conversa para o hospital em França. Belle queria saber
das pessoas com quem lá travara amizade.
– O capitão Taylor morreu da gripe – disse Vera. – O David arranjou
uma namorada, uma enfermeira chamada Charlotte West.
– Aquela que estava na Enfermaria M, com um sinal de nascença na
cara?
– Essa mesmo. Nenhuma beldade, mas divertida a valer. O David está
completamente embeiçado por ela. A Sally foi mazinha, como de costume:
disse que estavam bem um para o outro, uma vez que são os dois
anormais.
– Se há alguém anormal é ela – disse Belle, com uma gargalhada. –
Fico feliz por ele, é um bom homem, e vai melhorar muito depois de um
pouco de paixão.
– Eu espero ter alguma, e quanto mais depressa melhor – declarou
Vera, descarada. – Quero ser louca e temerária, como tu e a Miranda eram.
– Talvez tenhas uma oportunidade durante a viagem de regresso a casa
– riu Belle.

No dia seguinte, apanharam o comboio para Charing Cross. A manhã


estava fria mas límpida. Belle e Mog tinham posto de parte as roupas de
luto, mas escolhido indumentárias cheias de discreta dignidade. Belle
usava um fato cintado cinzento-claro, que não vestia desde antes de ir para
França, e um chapéu cinzento com rosas de veludo cor-de-rosa de um dos
lados. Mog optara por um casaco de lã lilás-escuro por cima de um vestido
malva mais claro, a sua adorada estola de raposa e um chapéu enfeitado
com penas roxas.
Belle dera a Vera um casaco de brocado verde-esmeralda que lhe pare-
cia demasiado frívolo para uma viúva mas perfeito para a sua amiga ruiva.
Complementou-o com um chapéu que não fora vendido quando encerrara a
loja, uma vaporosa construção de tule e veludo num tom mais suave de
verde.
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Vera estava entusiasmada. Todas as suas roupas, e tinha muito poucas,
eram simples e práticas, e, segundo dissera, já não podia sequer olhar para
elas. Confidenciara a Belle, ainda em França, que as mulheres de Russell
não se preocupavam minimamente com a moda, talvez por ser um lugar
tão afastado dos grandes centros. Mas estar em França, e com a influência
de Belle e Miranda, despertara-lhe o interesse por roupas. Anunciou que
tencionava comprar um vestido novo e uns sapatos mais elegantes para
poder atrair a atenção de um oficial do navio na longa viagem de regresso
a casa.
Há muito tempo que Belle e Mog não visitavam o West End de Lon-
dres, e se os edifícios não tinham mudado, tudo o resto à volta deles
mudara. No Strand e na área em redor de Trafalgar Square, dezenas de
automóveis tinham substituído as centenas de fiacres, coches e carroças de
que se lembravam. Quatro anos de guerra tinham feito com que tudo pare-
cesse cansado; refletia-se nos rostos das pessoas e nas montras das lojas.
Era enorme o número de homens de uniforme, em casa de licença ou de re-
gresso a França, e em cada esquina parecia haver um mutilado de muletas
ou um cego a vender qualquer coisa, desde fósforos a atacadores de sapa-
tos e jornais.
No exterior de Charing Cross, uma fila de ambulâncias esperava para
recolher os feridos que chegavam de comboio. Belle e Vera detiveram-se
para ver duas mulheres erguerem uma maca para uma delas, uma pungente
recordação dos seus tempos em França. Já tinham visto, na estação, uma
banca de chá com duas senhoras bem vestidas a atender, que fizeram Belle
pensar em Miranda e lhe deixaram um nó na garganta.
– Temos de sair daqui – disse Mog num tom firme, talvez consciente
do que Belle estava a pensar. – Queremos que a Vera regresse a casa com
boas recordações de Londres.
Vera ficou fora de si de entusiasmo quando, ao descerem o Mall, viu o
Palácio de Buckingham à sua frente.
– Nem posso acreditar que estou finalmente a vê-lo de verdade – disse.
– Tínhamos uma fotografia dele, na escola, e eu costumava imaginar como
seria por dentro.
Belle não pôde impedir-se de recordar o dia em que Jimmy a levara a
visitar o palácio. Tinha quinze anos, na altura – apenas oito anos antes –,
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mas pareciam-lhe vinte por causa de tudo o que acontecera entretanto. A
recordação daquele dia maravilhoso com ele na neve tinha-lhe servido de
arrimo depois de ser raptada.
Enquanto ela e Mog apontavam para St. James Park, Clarence House e
outros pontos de interesse com uma componente histórica, Belle teve a
sensação de que Jimmy estava perto, a incitá-la a pôr de lado o passado e
planear um futuro completamente novo.
Pousou a mão na de Mog e sorriu-lhe.
– Que tal irmos a Seven Dials, mais tarde, dizer um último adeus? –
sugeriu.
Mog apertou-lhe a mão e assentiu.
Foi quando estavam na nova e muito imponente Lyons Corner House
que Belle levantou a questão da Nova Zelândia. Estavam as três cansadas,
tinham caminhado o que lhes parecera quilómetros, e visto muita coisa. No
entanto, fora a última paragem, Seven Dials, para ver o Ram’s Head – o
antigo pub de Garth um pouco mais abaixo na mesma rua que o bordel de
Annie, onde Belle tinha nascido – que mais profundamente as afetara a
todas.
Vera conhecia a maior parte da história, como o bordel fora consumido
num incêndio e como Garth acolhera Mog e Annie para viverem com ele e
Jimmy. Mas ver as ruas sujas e estreitas, a pobreza e privação de Seven Di-
als depois do esplendor e da majestade dos palácios, dos parques reais e da
abadia de Westminster, fora um enorme choque para ela.
Para Belle e Mog, mil e uma recordações acorreram em catadupa,
tanto boas como más, quando, do outro lado da rua, olharam para o Ram’s
Head e viram como era na realidade miserável e pequeno. E não fora men-
or o abanão que sentiram ao aperceberem-se de como tinham chegado
longe e do muito que tinham mudado desde aqueles dias.
Viram prostitutas a espreitar às portas, e indicações de que havia tantos
bordéis como antigamente, se não mais. Também as crianças esfarrapadas
que lhes gritavam a pedir uma moeda eram as mesmas, como o eram os
cães vadios, os velhos sentados a chupar nos seus cachimbos e os bêbedos
que caminhavam aos tropeções pela rua.
Não se tinham demorado muito, só uma breve paragem em frente do
Ram’s Head. Mog derramara algumas lágrimas e falara a Vera da primeira
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vez que Garth a beijara e lhe dissera que a amava. Quando atravessavam
Covent Garden, Belle pensara no Jimmy de dezassete anos a segurar-lhe na
mão e os dois a correrem e escorregarem pelas ruas geladas, e em como
fora bom encontrar um verdadeiro amigo.
E Jimmy fora o melhor dos amigos. Sem a obstinada persistência com
que ele a procurara, teria provavelmente morrido em Paris. E ele e o tio
tinham amado Mog e cuidado dela.
Pelo menos, podia com verdade dizer que tinham sido amigos até ao
fim e que ele ocuparia sempre um lugar especial no seu coração. Mas
agora tinha de deixar de torturar-se com o que podia ter sido e com os er-
ros que cometera e começar uma nova vida.
Estavam as três entusiasmadíssimas por irem à Lyons Corner House,
no Strand. Propriedade dos Liptons, os reis do chá, que tinham deixado a
sua marca abrindo aqueles estabelecimentos com vários pisos, era muito
moderna e elegante. No primeiro andar vendiam-se chocolates, bolos,
biscoitos e flores, mas cada um dos restaurantes dos patamares superiores
tinha um tema diferente, com músicos a tocar.
Tinham escolhido um dos do primeiro piso que era, na realidade, mais
uma casa de chá e também vendia gelados especiais. As empregadas
serviam-nos com o chá, acompanhados por pequenas sanduíches, scones e
bolos variados dispostos em doceiras de louça com três andares.
– A Vera sugeriu que podíamos ir viver para a Nova Zelândia – disse
Belle repentinamente. – O que é que dizes a isso, Mog?
Mog estava a servir o chá, e ficou tão surpreendida com a pergunta que
encheu de mais a primeira chávena.
– Não sei – respondeu. – Estás a falar a sério?
– Nunca falei tão a sério – respondeu Belle. Pegou na chávena que
tinha extravasado, bebeu um pequeno gole e voltou a deitar-lhe dentro o
chá que se derramara para o pires. A Corner House estava cheia de gente, e
tinha uma encantadora atmosfera romântica, com um senhor de casaca a
tocar piano, e havia dezenas de homens de uniforme com as respetivas es-
posas e namoradas. – Gostaste de tudo o que a Vera te contou ontem. Podi-
as ter lá a tua casa de chá, ou uma retrosaria, o que achasses que fazia mais
falta quando lá chegássemos. A Vera disse que podíamos ficar em casa dos
pais dela até nos instalarmos.
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– E se calhar até podiam conseguir passagens subsidiadas – interveio
Vera. – O que é que tem a perder, Mog? Pode sempre voltar para cá, se
não gostar.
– Se todos os neozelandeses são assim tão simpáticos, não ia querer –
disse Mog. – Mas, e a minha mobília? Tenho algumas coisas de que não
quero desfazer-me.
Belle soube, pela pergunta, que Mog gostara da ideia. Sorriu a Vera, e
então começou a contar a Mog muito mais.
Ficaram na Lyons mais de duas horas, a conversar acerca de tudo,
desde o tempo que fazia na Nova Zelândia a que roupas usar, se lá se usava
o mesmo dinheiro que em Inglaterra, tudo e mais alguma coisa. Só quando
a empregada lhes perguntou, num tom bastante seco, se gostariam de ir
jantar a um dos outros restaurantes se aperceberam de como o tempo tinha
voado.
– Vamos ter de falar com o Noah sobre este assunto – disse Mog, en-
quanto pagava a conta. – Ele há de saber como devemos tratar disto.
– Então queres ir? – perguntou Belle quando iam a sair, agarrando o
braço de Mog.
– Bem, parece ser muito mais empolgante do que Tunbridge Wells.
Sempre pensei que gostaria de fazer uma longa viagem de barco.
– Suponho que não ver querer arranjar passagens antes do fim da
guerra – disse Vera. – Ainda há o perigo de ser bombardeado ou tor-
pedeado. Eu vou num navio de tropas e ajudarei a cuidar dos feridos dur-
ante a viagem. Mas toda a gente diz que pode haver um armistício de um
momento para o outro.
Durante a estada em Brighton, Belle e Mog tinham ouvido mais ou
menos a mesma coisa. Mas há quatro anos que as pessoas diziam que a
guerra ia acabar antes do Natal, de modo que não queriam alimentar de-
masiadas esperanças enquanto não houvesse um anúncio oficial.
– Não podíamos ir já, de qualquer modo, primeiro temos de deixar os
nossos assuntos resolvidos – observou Mog. – Mas é uma perspetiva
maravilhosa.
Nessa noite, depois de Mog ter ido para a cama, Belle e Vera voltaram
ao assunto.
– Mal posso acreditar que a Mog ficou tão entusiasmada – disse Belle.
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– Acho que foi ter voltado a Seven Dials que a decidiu – comentou
Vera, pensativa. – Reparei que houve momentos em que pareceu horroriz-
ada, como se estivesse a pensar que podia acabar por ter de regressar para
lá.
– Talvez – admitiu Belle. – Quando vender o pub, vai ser a primeira
vez em toda a vida que tem mais do que alguns xelins a que possa chamar
seus. Também está consciente de que tem a responsabilidade de fazer com
que isto resulte. Penso que ela acredita que as coisas podem ir bem mais
longe na Nova Zelândia. Achas que podem?
– Eu diria que muito mais longe – respondeu Vera. – O meu pai é de
opinião que vai haver uma espécie de boom económico no país quando a
guerra acabar. Não imediatamente, claro, mas nos próximos dois ou três
anos. Russell é uma terra pequena, Belle, e tem um passado chocante, mas
essa história torna-a atraente para os visitantes. E depois há a vela, a pesca
e a maravilhosa paisagem. O meu pai é um homem de vistas largas.
Começou a padaria com pouco mais do que nada e foi-a construindo pouco
a pouco; se ele achar que vão aparecer turistas para passar férias, eu estaria
disposta a arregaçar as mangas. Mas se acharem Russell demasiado
sonolenta para vocês as duas, podem sempre ir para Auckland, Wellington
ou Christchurch.
Belle sorriu à amiga. Vera tinha operado um pequeno milagre nela e
em Mog: fizera-as sair de si mesmas e dera-lhes esperança.
– Vou ter tantas saudades tuas quando te fores embora – disse, e
suspirou. – Animaste-nos às duas, deste-nos tanto em que pensar. Nem sei
como agradecer-te.
– Não vamos dizer adeus, apenas au revoir. – Vera sorriu. – Seja como
for, ainda temos amanhã.

No outro lado de Londres, em St. John’s Wood, Noah estava no seu


gabinete a datilografar um artigo para uma revista quando Lisette entrou.
Engordara um pouco depois do nascimento de Rose, mas continuava a ser
uma mulher muito bonita com o seu lustroso cabelo negro, a pele clara e
macia e as suas feições delicadas. Noah sempre achara que ela era a
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personificação da elegância francesa, e naquele dia, com o seu vestido às
riscas castanhas e creme, estava de comer e chorar por mais.
– Vens distrair-me? – perguntou.
– Queres ser distraído? – perguntou ela, com o seu delicioso sotaque
francês.
– Por ti, sempre – responde ele, e estendeu os braços para ela se lhe
sentar no colo.
Lisette despenteou-lhe o cabelo com os dedos.
– Estás a precisar de o cortar – disse. – Parece um matagal.
Noah riu.
– Foi só isso que vieste dizer-me?
– Não. Estava a pensar no Étienne. Que provas há de que morreu?
– O Jimmy recebeu uma carta de um antigo camarada a dizer que lhe
tinham dado a Croix de Guerre.
– Sim, percebi isso, mas os Ingleses parecem pensar que os Franceses
só recebem essa condecoração quando morrem em combate. Mas não é
verdade.
– Não é? Com certeza o homem que recebeu a carta deve saber se o
Étienne sobreviveu.
– Como? Tu, melhor do que ninguém, sabes como as histórias são dis-
torcidas e aumentadas de cada vez que são contadas – observou Lisette. –
Se o Étienne tivesse recebido uma tão alta condecoração por ter morrido,
penso que o exército francês teria entrado imediatamente em contacto con-
tigo. Essa medalha é muito especial, representa uma grande honra.
– Não temos forma de saber se o Étienne chegou a dizer a alguém que
eu era a pessoa que devia ser contactada. O exército francês chegou at-
rasado à frente de Ypres, o ataque já tinha sido adiado por causa disso. Tu,
minha querida esposa, não fazes a mínima ideia da confusão que reina nes-
tas alturas. Até os planos mais bem gizados vão por água abaixo.
– Penso que devias tentar obter uma confirmação, ainda assim. Se ele
morreu, há assuntos de que é preciso tratar. Mas se está vivo, não con-
tactará a Belle porque pensa que ela está a cuidar do Jimmy. Não tem
maneira de saber que ele morreu.
– Alguma vez te disse que és uma mulher muito inteligente e sensata,
além de muito bonita? – perguntou Noah.
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– Não as vezes suficientes – respondeu ela, e beijou-lhe a ponta do
nariz. – A Belle e a Mog estão a fazer planos para o futuro e, pelo que me
contaste, a Belle já sofreu muito por causa do Étienne. Se ele morreu, en-
tão a quinta de Marselha deve ser para ela, e se estiver vivo, talvez ela
deva ir ter com ele.
– E se estiver vivo mas gravemente ferido como o Jimmy estava? Não
seria ainda pior para ela?
– Por acaso devemos ser nós a decidi-lo? – Lisette arqueou interrogat-
ivamente uma negra sobrancelha. – E tu, Noah, és amigo dele. Não queres
saber se precisa de ajuda?
– Bem, sim. Até tu levantares a questão, não duvidei sequer de que est-
ivesse morto. Amanhã vou fazer umas quantas investigações. Mas não de-
vemos dar falsas esperanças à Belle. Isto fica só entre nós até termos a cer-
teza de um cenário ou de outro.
Lisette segurou-lhe a cara com as duas mãos e beijou-o nos lábios.
– Je vais garder l’espoir d’un regroupement romantique, mon chéri.
CAPÍTULO 29

D e uma ponta à outra de Londres, o repicar dos sinos celebrava o fim


da guerra. As pessoas tinham saído para a rua, a gritar, a rir e a
abraçar-se, numa explosão de alegria partilhada.
Apesar de felizes e aliviadas por o pesadelo ter finalmente terminado,
e de terem saído cedo para juntar as suas vozes às da multidão em festa,
Belle e Mog, como tantas outras mulheres que haviam perdido maridos,
filhos ou irmãos, não se sentiam com ânimo para grandes festejos.
Tinham passado o dia a separar e embalar coisas, e, feito isto, tinham-
se sentado junto à lareira e falado dos bons tempos antes da guerra. No dia
seguinte, 12 de novembro, deixariam o Railway para sempre.
Um cavalheiro chamado Charles Wyatt queria comprá-lo, e uma vez
que estava desejoso de começar a trabalhar o mais depressa possível, Mog
resolvera arrendar-lhe o estabelecimento, como medida temporária, até to-
dos os aspetos legais relacionados com a herança estarem resolvidos.
Nessa altura, o antigo advogado de Garth agiria em sua representação para
assinar os contratos finais e transferir para ela o dinheiro da venda.
Graças a Noah e ao seu conhecimento do mundo dos negócios, tudo
correra da melhor maneira, e Mog ficaria a receber uma renda até à venda
definitiva. Mr. Wyatt estava encantado por poder instalar-se, e Mog e Belle
podiam mudar-se sabendo que o edifício ficara em boas mãos. Wyatt já
comprara toda a existência do pub e da cave e a maior parte do mobiliário.
Mog e Belle tinham decidido que a Nova Zelândia era o lugar onde
queriam viver. Depois da partida de Vera, tinham discutido o assunto horas
a fio. Curiosamente, era Mog quem mais queria ir; dizia que nunca tivera
uma aventura em toda a sua vida e nunca estivera num navio, excetuando
os barcos que navegavam no Tamisa.
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Belle apresentara-lhe muitos contra-argumentos: Mog podia enjoar
durante toda a viagem, podia achar aborrecido viver numa terra pequena e
isolada, sem teatros, grandes lojas, transportes públicos e mercados. Não
porque ela própria não quisesse ir, mas queria ter a certeza absoluta de que
Mog sabia no que se ia meter.
Mog limitava-se a rir.
– Só fui ao teatro duas ou três vezes em toda a minha vida. A verdade
é que a passei quase toda fechada em casa, a cozinhar e a limpar. Quero
ver lugares novos, experimentar comidas que nunca provei. Adoro a ideia
de começar de novo.
Noah ficara muito chocado quando elas lhe tinham comunicado o que
tencionavam fazer. Dissera que lhe parecia um pouco drástico e sugerira
que esperassem mais um par de anos. Mas quando se apercebera da de-
terminação das duas, acabara por admitir que estava a ser egoísta, porque
sabia que ia ter saudades delas. Concordava que a Nova Zelândia seria um
país muito agradável onde viver, sem invernos demasiado rigorosos, e que
lhes faria bem deixar o passado para trás. Mas obrigara Mog a prometer
que, uma vez resolvidos os aspetos financeiros, poria algum dinheiro de
lado para o caso de quererem regressar.
Todas as posses preferidas de Mog, objetos que ela e Garth tinham
comprado ou lhes tinham sido oferecidos como prendas de casamento, in-
cluindo uma cadeira com espaldar de veludo capitoné, a máquina de cos-
tura, um toucador de mogno ricamente lavrado, a cómoda e a cama de cas-
al, ficariam guardados num armazém até poderem ser despachados para a
Nova Zelândia. Belle conservara apenas pequenas recordações, além dos
moldes de chapelaria e da máquina a vapor.
De momento, iam mudar-se as duas para um bonito apartamento em
St. John’s Wood. Pertencia a um amigo de Noah que viajara para a
América e estava desejoso de ter alguém de confiança a tomar conta da
casa. Se tudo corresse de acordo com o planeado, partiriam para a Nova
Zelândia em fevereiro.
– Já não me lembrava de como esta casa pode ser gelada – resmungou
Mog, pondo um xaile à volta dos ombros e chegando-se para mais perto da
lareira. – Mas a partir de amanhã vamos ficar bem aquecidas. Imagina-nos
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a viver numa casa com aquecimento em todas as divisões. Nunca tinha
visto uma coisa assim.
Belle sorriu. O prédio para onde iam mudar-se tinha na cave uma
caldeira que enviava água quente para os radiadores de todos os aparta-
mentos. Mog achava aquilo miraculoso, e não conseguia acreditar que não
seria chamada a alimentar a caldeira.
– Uma cozinha cheia de luz e uma enorme casa de banho com água
sempre quente – recordou-lhe Belle. – Nem nos vamos conhecer a nós
mesmas. E poderemos ver mais vezes a Lisette e as crianças.
– Tens a certeza de que não queres ir ver o que se passa lá fora? – per-
guntou Mog, a apontar com o polegar para a janela. O barulho tinha vindo
a crescer ao longo do dia, à medida que mais pessoas da rua se juntavam
para uma festa. Também houvera pancadas desferidas na porta do pub,
apesar do papel afixado a explicar por que razão estava encerrado. Parecia
estranho ouvir tanta agitação; Blackheath era, regra geral, um lugar muito
pacato.
Belle fez uma careta.
– Tenho. Está frio, e prefiro ficar aqui contigo a recordar os bons
tempos.
Mog sorriu.
– Tivemos muitos – disse. – O meu casamento, e depois a abertura da
tua loja. Lembras-te de quando toda esta sala estava cheia de chapéus, pen-
as e flores artificiais? E depois houve o teu casamento. O Garth estava tão
bêbedo que tive de o deixar lá em baixo a noite toda.
Belle riu. Tinham tentado carregá-lo para cima, mas ele era demasiado
pesado.
Recordou também aquela primeira noite de amor com Jimmy. Ele es-
tava tão nervoso que tivera ela de ajudá-lo a despir-se. Jimmy enfiara-se à
pressa na cama, para esconder a sua nudez, mas ficara a vê-la tirar as
roupas com uns olhos cheios de maravilhado espanto.
– O teu corpo é tão bonito – dissera, num tom tão reverente que lhe
pusera lágrimas nos olhos. – Como foi que tive a sorte de ter um tal
tesouro?
– Porque – respondera ela, enquanto vertia em duas taças o champanhe
da garrafa que resgatara no pub e lhe estendia uma – alguém lá em cima
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sabe como tu és um homem bom e eu posso ser uma menina má, e decidiu
que tinhas de salvar-me.
Enquanto bebia o champanhe, ele estendera a mão para lhe acariciar os
seios. Belle receara que Jimmy a agarrasse à bruta e a fizesse recordar mo-
mentos do passado que queria muito esquecer. Mas o toque dele fora delic-
ado e erótico, e ela ficara imediatamente excitada. Quando se enfiara na
cama e os corpos dos dois se tocaram, ele gemera de prazer e enlaçara-a
com os braços.
– Há meses que ando a imaginar este momento – dissera, antes de a
beijar.
A primeira vez fora selvagem e furiosa, mas ao mesmo tempo havia
ternura em cada carícia, amor em cada beijo. E apesar de ter acabado de-
masiado depressa para ela, sentira que aquilo fora apenas os hors d’oeuvre
e que o banquete ainda não tinha começado.
E como tivera razão. Na vez seguinte, ele concentrara-se apenas em
proporcionar-lhe prazer, o ritmo fora lento e sensual, e ele tapara-lhe a
boca com a mão porque ela estava a fazer demasiado barulho.
Mais tarde, aquilo tinha-os feito rir perdidamente, e tinham puxado o
edredão para cima da cabeça, para que Mog e Garth não os ouvissem.
Belle duvidava que alguma vez na vida voltasse a sentir a mesma alegria.
Ou a mesma tristeza, quando a guerra os mudara aos dois para sempre.

Mog tinha ainda muitos momentos em que chorava por causa de


Garth. Mas o entusiasmo de ir começar uma nova vida na Nova Zelândia, e
o fazer das malas e as muitas outras coisas de que era preciso tratar aju-
davam a distraí-la. Afirmara corajosamente, quando fechara a porta do
Railway pela última vez, que não ia chorar mais, só sorrir das boas re-
cordações que Garth lhe deixara.
Continuavam a saber de vizinhos vitimados pela gripe, e era assusta-
dor ler nos jornais que a epidemia alastrara ao mundo inteiro. Mas, naquele
dia, o fim da guerra era o único tema em todas as bocas. O racionamento,
os bombardeamentos e todas as outras provações tinham sido postos de
lado porque em breve os homens que tinham sobrevivido começariam a
voltar.
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A 12 de janeiro de 1919, Noah chegou tarde a casa. Lisette estava sen-


tada na sala, ao pé da lareira acesa, a remendar uma roupa.
– É muito tarde – disse. – Mas conservei-te o jantar quente. Tiveste
sorte?
– Nenhuma – respondeu ele, desanimado. – Mais uma falsa pista.
Detesto dizer-te isto, Lisette, mas a tua gente não sabe dar contas de nin-
guém. Nem sequer de um dos seus heróis.
Tinham recebido confirmação, uma semana antes do Natal, de que
Étienne estava vivo quando fora condecorado. O comunicado incluía o
louvor que dizia exatamente porque recebera a condecoração, e os factos
referidos tinham ocorrido no dia em que ele salvara Jimmy. Noah tencion-
ara contar a Belle a tempo de ela poder falar com Mog, explicar-lhe o que
Étienne significava para ela, para depois poderem celebrar todos juntos o
Dia de Natal.
Mas então, dois dias mais tarde, recebera uma carta do comandante do
batalhão de Étienne a informá-lo, como parente mais próximo, de que o
sargento Carrera estava dado como desaparecido e presumivelmente morto
em combate. Isto acontecera em finais de outubro, mas não havia qualquer
explicação para o facto de Noah não ter sido informado mais cedo.
Ver tão grandes esperanças criadas e logo esmagadas tão pouco depois
tinha sido terrível. Não fora o facto de Lisette ter feito notar que Étienne
estava apenas «presumivelmente» morto e Noah teria desistido de uma vez
por todas.
Lisette não vira os campos de batalha. Como a maior parte das pessoas
que não tinham assistido à carnificina, imaginava que os mortos eram to-
dos dispostos em filas muito bem alinhadas, as respetivas identidades devi-
damente anotadas, e em seguida sepultados com orações.
Noah sabia que não era assim. Centenas de homens tinham sido de tal
maneira despedaçados pelos rebentamentos que os seus corpos se tinham
dispersado em todas as direções. Outros tinham-se enterrado tão fundo na
lama que passara a ser essa a sua sepultura. Muitos mortos nem sequer
possuíam qualquer espécie de identificação. E como um oficial superior
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dissera a Noah: «Estão mortos, não podemos ajudá-los. Temos de
concentrar-nos em salvar os feridos que ainda podem sobreviver.»
Mas Lisette teimava em afirmar que Étienne podia estar gravemente
ferido num hospital, ou que podia ter sido feito prisioneiro. Exortava Noah
a não dizer nada a Belle, por enquanto, e que passado o Ano Novo tentasse
descobrir mais qualquer coisa.
Tanto Noah como Lisette estavam ansiosos por saber a verdade antes
que Belle e Mog reservassem passagens. Mas os dias passavam e os reit-
erados esforços de Noah não davam em nada. Fez vários telefonemas e es-
creveu dezenas de cartas, mas as cartas não tinham resposta e ao telefone
encaminhavam-no sempre para outra pessoa qualquer.
E então Belle reservara passagens para a Nova Zelândia, e agora, à
medida que o dia da partida se aproximava, Belle e Mog não falavam de
outra coisa que não fosse comprar um baú de viagem e discutir que roupas
deviam levar e quais deviam deixar. Mog tinha comprado tecidos, linha e
botões suficientes para fazer vestidos para metade da população feminina
de Russell.
Naquele dia, Noah tivera uma reunião com um funcionário da Cruz
Vermelha que tratava da questão dos prisioneiros de guerra. Tudo o que
esse homem lhe pudera dizer fora que era muito mais provável que Étienne
estivesse morto do que vivo, mas que ia investigar o assunto.
– A França está num caos, Noah – disse Lisette, para o acalmar. – Há
um número enorme de desaparecidos, como tu bem sabes. Alguns solda-
dos foram para casa, outros ainda têm deveres a cumprir. Mas as tuas
cartas vão passar de mão em mão, e um dia hão de chegar às de alguém
que saiba o que aconteceu.
– Mas a Belle parte de Inglaterra dentro de um mês. Têm passagens
marcadas. E se eu descubro que ele está vivo e ela já partiu?
Na realidade, já não acreditava que Étienne estivesse vivo. Um homem
podia optar por desaparecer se tivesse alguma coisa a esconder, mas
Étienne era um herói de guerra, e se tivesse sobrevivido àquele último
ataque, alguém saberia.
Lisette aproximou-se dele e passou-lhe os braços pelo pescoço.
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– Não importa se ela já tiver partido. Se ele estiver vivo e for metade
do homem que penso que é, irá reclamá-la – disse. – Agora vem comigo e
come o teu jantar.

– Não chores, querida – disse Mog a Belle enquanto o HMS Stalwart


levantava âncora e começava a afastar-se lentamente do cais de Southamp-
ton. – Podemos sempre voltar, se não gostarmos. Mas tu e eu somos feitas
de boa massa. Havemos de construir uma vida boa para as duas, vais ver.
Belle limpou as lágrimas com as costas da mão e sorriu-lhe.
– Não estou triste por ir. Vou ter saudades do Noah, da Lisette e das
crianças, mas não há mais ninguém. É que isto lembra-me quando parti
para França com a Miranda.
Não era estritamente verdade. Tinha pensado em Miranda antes, re-
cordando como as duas estavam entusiasmadas quando o barco zarpara de
Dover. Mas o que na realidade a fazia chorar era pensar na viagem de
Nova Iorque para Nova Orleães com Étienne. Bebera a sua primeira taça
de champanhe com ele na noite do seu décimo sexto aniversário,
convencera-se de que estava apaixonada por ele e tentara seduzi-lo. Havia
uma espécie de ironia no facto de, passados tantos anos, estar noutro navio,
agora para viajar até ao outro lado do mundo, e, apesar de morto, ele con-
tinuar a dominar os seus pensamentos.
– Vamos desfazer as malas e tornar o nosso camarote mais confortável
– sugeriu Mog. – Aqui fora está frio suficiente para gelar a teta de uma
bruxa.
Dessa vez, Belle riu. Não ouvia Mog usar aquela expressão desde que
tinham saído de Seven Dials e ela decidira tornar-se uma senhora.

– Só mais dois dias e estamos lá. – Belle suspirou. – Mal posso esperar
por caminhar numa rua, entrar numa loja, ver relva e árvores. E não vai ser
tão bom não ter de ouvir mais pessoas queixarem-se?
Já era abril, e tinham passado por todo o género de condições meteor-
ológicas. A primeira tempestade da viagem, no golfo da Biscaia, fora o
batismo de fogo para Mog, com ondas do altura de campanários a
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abaterem-se sobre o navio. Mas apesar de ter ficado verde, Mog não
chegara verdadeiramente a enjoar.
Tinha havido ventos tão fortes que era impossível caminhar sem ser
agarrada às grades da amurada do navio. Chovera granizo, com pedaços do
tamanho de berlindes a martelarem os conveses com um barulho de
metralha, caíra chuva diluviana e nevoeiro cerrado, e por vezes o sol era
tão forte que em poucos minutos queimava qualquer pedaço de pele
exposta.
À medida que se aproximavam do equador, o calor sufocante tornara
impossível dormir à noite, e também houvera tempestades tropicais.
Agora, porém, o tempo estava mais fresco, ainda abafado no camarote,
mas agradável para passear no convés, quando o vento amainava.
O tédio fora a maior das provações. Os dias pareciam intermináveis,
sem nada que fazer. Ambas tinham levado material para bordar e tricotar,
tinham lido livros, tinham jogado às cartas, tinham esperado pelas re-
feições, mas era o facto de se sentirem fechadas e a falta de exercício físico
que as impedia de gozar o que deviam ter sido umas relaxantes férias.
Havia, claro, muitos outros passageiros com quem conversar: um
grupo de oficiais, todos eles feridos, mas não com tanta gravidade que pre-
cisassem de estar confinados à enfermaria do navio, cerca de quarenta
emigrantes como elas próprias, e alguns neozelandeses que estavam em
Inglaterra quando a guerra estalara e tinham sido obrigados a ficar por
causa dos perigos que uma viagem por mar envolvia naquelas circunstân-
cias. Mas embora a maior parte daquelas pessoas fosse suficientemente
agradável para entreter uma ou duas horas de conversa, nenhuma delas era
muito, muito interessante, e algumas eram até francamente aborrecidas.
Com tudo isto, Belle e Mog, aprisionadas juntas num espaço tão limitado,
acabavam com alguma frequência por chocar. Ambas tinham de fazer um
esforço concertado para dar à outra alguma privacidade e isolamento.
Agora, porém, a viagem estava a chegar ao fim e as irritações passadas
tinham desaparecido. Mog mostrava-se positivamente estouvada, a namor-
iscar com os tripulantes e a sorrir a toda a gente.
Desembarcaram em Auckland com o sol a brilhar no céu. Para elas,
era como um dia de primavera em Inglaterra, e parecia-lhes estranho
pensar que ali era outono. A pequena pensão que encontraram a cerca de
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oitocentos metros do cais era uma bonita casa de madeira, e do quarto que
lhes deram via-se o mar.
Iam ficar cinco dias em Auckland antes de embarcarem no Clansman
com destino à baía das Ilhas, e o prazer de poderem finalmente caminhar
em terra firme era quase inebriante. Todas as pessoas que encontravam
queriam falar com elas a respeito de Inglaterra. Até as nascidas na Nova
Zelândia pareciam ter pais ou avós ingleses ou escoceses. Eram todas
amistosas e prestáveis, sempre prontas a sugerir lugares a visitar, explicar
os costumes locais ou dar conselhos sobre coisas que talvez precisassem de
comprar na cidade porque não conseguiriam encontrá-las em Russell.
Contavam-lhes histórias sobre os Maoris e a sua cultura, um tema que elas
achavam fascinante e sobre o qual nada sabiam. E depois havia as histórias
acerca das dificuldades que os primeiros colonos tinham tido de enfrentar
ao desembarcarem dos barcos de emigrantes, no século anterior. E toda a
gente lhes oferecia sinceras condolências pela morte dos maridos.
De muitas maneiras, a Nova Zelândia não era assim tão diferente de
Inglaterra. Não tinha os edifícios muito antigos, havia muito menos gente,
e não tinham visto lugar algum a que se pudesse verdadeiramente chamar
um bairro degradado, embora os habitantes locais assim os considerassem.
O clima era semelhante, as pessoas tinham o mesmo género de crenças e
prioridades. Mas também ali, no outro lado do mundo, a gripe espanhola
fizera vítimas. A dona da pensão disse-lhes que tinham morrido cerca de
seis mil e setecentas pessoas, mas que, felizmente, todas as que conhecia e
tinham sido contagiadas tinham sobrevivido. Contou-lhes como os trans-
portes públicos tinham deixado de circular por receio de espalhar a doença,
e que carroças, comboios e camiões tinham sido usados como carros
funerários.
Também os efeitos da guerra eram ali muito semelhantes aos que se
tinham registado em Inglaterra. Milhares de neozelandeses tinham-se
alistado pelas mesmas razões que os jovens ingleses, e um grande número
deles morrera. E, tal como em Inglaterra, viram nas ruas de Auckland ho-
mens com membros a menos, cegos e desfigurados. Disseram-lhes que a
maioria daqueles homens, no total mais de quatro mil e quinhentos, tinha
sido ferida em Gallipoli. Outros dois mil e setecentos tinham morrido. Mas
não era tudo: outros tantos tinham sido feridos em França e ainda não
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tinham sido repatriados. Apesar de a maior parte das famílias ter perdido
pelo menos um dos seus membros, os neozelandeses pareciam encarar o
facto com um enorme estoicismo e orgulharem-se muito da coragem dos
seus homens. Belle e Mog ficaram igualmente comovidas pela pena e
solidariedade que todos eles pareciam sentir pelos Britânicos, por terem
tido de suportar não só um número esmagador de mortos e feridos, mas
também os bombardeamentos, a escassez de comida e o racionamento.
– Sinto que cheguei ao lugar onde era suposto viver – disse Mog uma
noite, quando estavam a preparar-se para se irem deitar. – Não adoras o
facto de as pessoas daqui não parecerem ter um cabo de vassoura enfiado
no cu?
Esta fez Belle rir à gargalhada. Mog referia-se à aparente ausência de
distinções de classe. Belle não tinha bem a certeza de ser essa a atitude
geral; afinal, estavam a viver num meio de gente vulgar. Mas esperava que
acontecesse o mesmo em Russell, pois lembrava-se de Vera ficar sempre
surpreendida e divertida com o snobismo das outras condutoras em França.
– É melhor não usares muito a palavra «cu» por estes lados até con-
hecermos melhor as pessoas – avisou.

Quando o Clansman entrou na baía das Ilhas, Belle e Mog ficaram


boquiabertas face à espetacular beleza da paisagem. Vera tinha-lhas
descrito, e em Auckland tinham visto fotografias do lugar, mas a realidade
era ainda mais espantosa. O mar era realmente azul-turquesa, e a água tão
límpida que podiam olhar para baixo e ver os peixes. As árvores das três il-
has eram de um verde intenso e desciam mesmo até à beira-mar.
Tinham visto golfinhos durante a viagem; aproximavam-se e brin-
cavam à volta da proa do vapor, erguendo a cabeça luzidia acima da água e
abrindo a boca como que num sorriso de boas-vindas, e isso comovera
Belle e Mog quase até às lágrimas. Também tinham visto uma enorme
baleia à distância, e tudo isto fora muito emocionante, visões que nunca
tinham esperado contemplar. No entanto, ver aberta à frente delas aquela
magnificente baía que deixava na sombra todas as maravilhas que a
viagem no HMS Stalwart lhes oferecera era verdadeiramente
impressionante.
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– Se não pudermos ser felizes aqui, não seremos felizes em parte al-
guma – disse Mog, e limpou uma emotiva lágrima do canto de um olho.
Enquanto o barco se aproximava do cais de Russell, viram uma grande
multidão à espera. Já lhes fora dito que o Norte não tinha estradas em con-
dições e que o vapor era a única maneira de lá chegar. O Clansman era a
linha que todas as semanas ligava a povoação ao resto do mundo. Levava
não só passageiros mas também o correio, abastecimentos e outros bens.
Fora ali que tinham desembarcado os primeiros colonos europeus, e a cid-
ade estivera em tempos para ser a capital da Nova Zelândia, mas acabara
por ser preterida a favor de Auckland devido ao seu isolamento.
– Lá está a Vera! – exclamou Belle, de dedo esticado. – Como terá sa-
bido que chegávamos hoje?
– Bem, parece que a cidade inteira vem para o cais quando o barco
chega – observou Mog. – Mas olha para aquelas casinhas tão bonitas!
Parece um quadro!
Era, de facto, um quadro. Um aglomerado de pequenas casas de
madeira brancas ou beges que mais pareciam casas de bonecas. Atrás da
povoação, erguiam-se as colinas cobertas de arvoredo, como que a formar
uma muralha protetora, e à frente das casas estendia-se uma estreita faixa
de areia branca. Dezenas de pequenos barcos balouçavam presos aos res-
petivos ancoradouros e as gaivotas descreviam grandes e ruidosos círculos
no céu, à espera de roubar uma refeição fácil aos pescadores.
Vera saltitava de alegria ainda antes de todas as amarras ficarem pres-
as e de a prancha de desembarque ter sido fixada no cais. Trazia um
vestido verde estampado e tinha os caracóis ruivos soltos sobre os ombros
e a brilhar ao sol. Ao lado dela estava uma mulher mais velha, baixa e
forte, que calcularam ser a mãe.
Finalmente, as pessoas começaram a desembarcar, e elas juntaram-se à
fila. Já lhes tinham dito que o baú e o resto da bagagem seriam colocados
no cais depois de todos os passageiros terem desembarcado.
– Belle! Mog! – gritou Vera, enquanto abria caminho à força por entre
a multidão que enchia o cais. – Bem-vindas a Russell!
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Tinham chegado a Russell por volta das quatro horas e o resto da tarde
passou como se tivessem entrado numa festa onde não conhecessem nin-
guém mas descobrissem que eram as convidadas de honra. Vera e a mãe,
Mrs. Reid, que disse imediatamente querer que a tratassem por Peggy,
levaram-nas para a padaria da família, onde Mr. Reid – Don, como pediu
que lhe chamassem – estava a amassar uma montanha de massa para o pão
do dia seguinte. Interrompeu a tarefa para plantar um beijo na face de Mog
e outro na de Belle, pediu desculpa por ter as mãos todas enfarinhadas e
disse que considerassem aquela casa como se fosse delas.
Peggy era uma dessas mulheres capazes de fazer dez coisas em simul-
tâneo e ainda falar ao mesmo tempo. Enquanto punha a mesa para o chá,
gritou pela porta das traseiras a um homem que fosse na carroça buscar a
bagagem ao cais. Tirou da despensa um tarte extremamente apetitosa, com
um padrão em treliça na parte de cima, cortou cinco enormes fatias e acres-
centou uma colher de mostarda a cada uma delas. Perguntou-lhes como
tinha corrido a viagem desde Auckland enquanto fazia um bule de chá, e
os pires e as chávenas apareceram em cima da mesa quase que por um
truque de prestidigitação.
– Muito bem, vamo-nos sentar – disse. – Não vou estar com cerimóni-
as com vocês, porque pelo que a Vera me contou já as considero como
família. Isto é só para as aconchegar, mas ao jantar vamos ter umas pess-
oas que estão mortas por as conhecer.
Vera revirou os olhos, o que Belle interpretou como sendo uma silen-
ciosa mensagem a dizer que sabia que a mãe era um pouco cansativa no
primeiro contacto, mas que em breve iria acalmar.
Don entrou na cozinha, depois de ter lavado a farinha das mãos e
tirado o avental, e o seu sorriso era tão quente como a padaria.
– A Vera contou-nos como a receberam em Londres – disse. – Está
toda contente por virem viver para cá, mas olhem que vão achar isto muito
sossegado, em comparação com Londres.
– Gostamos de sossego – respondeu Mog, e levou à boca um pedaço
de tarte. – Oh, meu Deus, isto está uma delícia! – exclamou.
– Ficámos felizes por sair de Londres – explicou Belle. – Não havia
nada que nos prendesse lá. Isto aqui é muito bonito, e tencionamos tentar a
nossa sorte.
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– Amanhã levo-as a dar uma volta pela terra – prometeu Peggy. – Não
as vai cansar, faz-se em meia hora. E pelo caminho mais comprido. – Riu,
fazendo estremecer o farto seio.
Belle riu também. Teve a impressão de que o riso era algo que havia
em abundância naquela casa.
Mal tinham acabado de beber o chá e comer a deliciosa tarte quando as
pessoas começaram a chegar: primeiro o casal que geria a estação de cor-
reios, Frieda e Mike Lamb; explicaram que tinham ambos nascido em
Inglaterra mas viajado para a Nova Zelândia com os pais quando ainda
eram crianças. Andavam os dois pelos quarenta e poucos anos e tinham-se
conhecido na escola, em Christchurch.
– É bom ter pessoas novas a vir viver para cá – disse Frieda, enquanto
pousava em cima da mesa uma travessa com salsichas cozinhadas. – Os
nossos pais, lá em Christchurch, acharam que éramos malucos quando
decidimos mudar-nos para Russell. Disseram que era muito bom para
umas férias, mas que não tardaríamos a ficar fartos. Mas já cá estamos há
dez anos e ainda não tivemos tempo para nos aborrecermos.
Depois disto, começaram a chegar mulheres em rápida sucessão, cada
uma com um prato de comida. Vera explicou que era costume, quando
havia uma festa ou reunião. Também explicou que os homens apareceriam
mais tarde, depois da «bebedeira das seis». Quando Belle e Mog se en-
treolharam, intrigadas, explicou que, em toda a Nova Zelândia, os pubs
fechavam às seis da tarde, uma lei que pretendia fazer com que os homens
ficassem em casa com a família, depois do jantar. Mas acrescentou, a rir,
que tudo o que conseguia era que bebessem o mais que podiam naquela úl-
tima hora, de modo que adormeciam mal chegavam a casa.
No entanto, embriagados como muitos deles estavam, apareceram, e
Belle perguntou-se como iria alguma vez conseguir lembrar-se de que
homem era marido de que mulher, ou até o nome de quem quer que fosse,
tantos eram os convidados. Todos queriam saber o que tencionavam ela e
Mog saber, e cada um tinha uma opinião diferente a respeito do género de
negócio que mais falta fazia. O vestido de Belle foi admirado por todas as
mulheres, apesar de a ela lhe parecer vulgar, simples algodão cinzento com
uma fina risca branca, uma indumentária discreta para usar no dia a dia e
ideal para viajar, e feita por Mog. Mas comparado com as roupas que as
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mulheres dali usavam parecia de facto elegante, apenas porque lhe as-
sentava na perfeição. Os vestidos delas eram informes, e Belle suspeitou
de que os compravam já prontos a usar, ou eram arranjados por alguém
com conhecimentos muito rudimentares do ofício de modista. Calculou
que a maior parte daquelas mulheres não tinha a mínima noção de moda, e
passou-lhe pela cabeça que talvez aquilo pudesse ser uma boa oportunid-
ade para ela e para Mog.
A festa extravasou para o pátio das traseiras, mas foi só quando
começou a escurecer e Peggy e Don acenderam candeias de azeite que
Mog e Belle se aperceberam de que não havia eletricidade em Russell. Não
fizeram qualquer comentário, em parte por sentirem que tinham a
obrigação de saber que não a haveria num lugar tão remoto, mas sobretudo
porque não lhes fazia verdadeiramente a mais pequena diferença. Ambas
tinham crescido com candeias de azeite, e mesmo em casa nunca tinham
progredido ao ponto de comprar um ferro ou um fogão elétrico, como
tantas pessoas tinham feito. Mais preocupante foi descobrir que só havia
latrinas exteriores, um eco do passado que teriam preferido dispensar.
Já de noite, foram acesas e espalhadas pelo pátio, dentro de boiões de
compota, mais candeias de azeite, alguém deu corda a um gramofone,
tocou-se uma jiga irlandesa e um homem mais velho divertiu toda a gente
com uma entusiástica exibição de dança.
– Que te parece Russell até agora? – perguntou Vera quando final-
mente conseguiu um momento a sós com Belle. – Demasiada confusão de-
masiado cedo, suponho. Eu bem sugeri que adiássemos a festa um ou dois
dias, para vos dar tempo de se instalarem. Mas, como já deves ter re-
parado, a mã faz tudo depressa.
– Estamos as duas comovidas pela receção – respondeu Belle. – E
também gosto que seja tudo tão informal. São todos muito simpáticos.
– É possível que em breve mudes de opinião a esse respeito e con-
sideres que são apenas abelhudos – disse Vera. – Não digas a ninguém a
não ser a mim qualquer coisa que não queiras que a povoação inteira saiba.
E a minha mãe é uma das piores nesse aspeto, de modo que ficas avisada.
– Não lhe falaste do meu passado?
– Claro que não – atalhou Vera. – Tudo o que me contaste em França é
para ficar entre nós. Disse-lhe que a Mog era governanta na pensão da tua
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mãe e que foi ela quem te criou. Também lhe disse que tinhas aprendido
chapelaria em Paris. Podes confiar em mim, Belle, dou muito valor às tuas
confidências, nunca as revelarei seja a quem for.
Belle agradeceu-lhe e garantiu-lhe que confiava nela, e então
perguntou-lhe se tinha tido notícias dos irmãos.
– Da última vez que soubemos deles, estavam à espera de embarcar
num navio de tropas. Como não soubemos mais nada, é porque devem vir
a caminho. Estamos todos tão agradecidos por terem conseguido sobre-
viver. O Spud foi ferido em Ypres, mas nada de grave, um estilhaço num
braço. Quanto ao Tony, dizia que o pior que lhe tinha acontecido tinham
sido as ferroadas das pulgas. Portanto vão conhecê-los em breve, mas por
enquanto ficam com o quarto deles, que a mã passou as últimas semanas a
arranjar para vocês.
Já passava da meia-noite quando foram finalmente para a cama. O
quarto era espaçoso, com duas camas, ambas cobertas por colchas de retal-
hos de cores vivas. Como no resto da casa, a mobília era velha e usada,
mas tinha qualquer coisa de muito confortável. As paredes tinham sido re-
centemente pintadas de verde-claro, havia um pano bordado em cima da
mesinha junto à janela, e em cima do pano uma jarra com flores brancas
que pareciam margaridas.
O baú de viagem e a restante bagagem tinham sido levados para o
quarto, e enquanto tirava da mala as camisas de noite, Mog olhou para
Belle, que estava a despir-se, e sorriu.
– Tomámos a decisão certa, já me sinto em casa. Mas vamos arranjar
um sítio para vivermos bem depressa, está bem?
Belle sabia exatamente o que ela queria dizer. Mog queria estar
rodeada das suas coisas, cozinhar as suas refeições e ter uma porta que
pudesse fechar para ficar sozinha quando lhe apetecesse. Peggy e Don
eram as pessoas mais simpáticas que se poderia imaginar, mas saltava à
vista que iam tornar-se cansativos.
– Queres o teu ninho – disse, carinhosamente. – Não te preocupes,
amanhã deixaremos bem claro que é essa a nossa principal prioridade.
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No dia seguinte, e com indisfarçável orgulho, Peggy mostrou-lhes a
cidade. Primeiro, foram a Christ Church, a igreja mais antiga da Nova
Zelândia, e à esquadra de polícia, que tinha em tempos albergado a
alfândega mas que parecia ser um edifício demasiado bonito para usar com
qualquer desses objetivos. Viram a fábrica de conservas de peixe, junto à
praia, e ficaram algum tempo a observar os barcos de pesca regressarem
com a safra do dia. O pub Duke of Marlborough, mesmo junto à beira-mar,
era impressionantemente grande para uma cidade tão pequena, e Peggy
levou-as a visitar a pensão de Mr. e Mrs. Clow, logo ao lado. O pedaço de
terreno baldio entre York Street, onde os Reid tinham a sua padaria, e
Church Street continuava a ser conhecido como o pântano, apesar de lá ter-
em sido construídas duas casas e servir de pastagem a algumas vacas.
Peggy explicou-lhes que nos velhos tempos, quando Russell era conhecida
como o Inferno do Pacífico por causa da selvajaria dos baleeiros que lá
iam beber, só havia algumas tabernas e barracas junto à costa, e para além
delas nada exceto mangal até às arborizadas colinas que rodeavam o
povoado.
A verdade era que não havia muito que ver além da estação de cor-
reios, que vendia alguns produtos, a padaria dos Reid, uma loja que vendia
tudo e mais alguma coisa, o talho, um pequeno hotel e várias oficinas.
Peggy agitara a mão na direção de um grupo de barracas na parte traseira
da povoação e dissera: «Ali vivem os nativos.» Belle vira, durante o pas-
seio, bastantes pessoas de pele escura, algumas das quais tinham
cumprimentado a sua anfitriã, mas ela não as apresentara. Estava desejosa
de saber como era a relação entre os Maoris e os colonos, mas achou mel-
hor não perguntar a Peggy, pensando que Vera lhe daria uma visão mais
equilibrada.
Estavam de regresso à padaria quando Mog reparou numa pequena
casa em Robertson Street que parecia abandonada, e interrogou Peggy a re-
speito dela.
– Quem lá vivia era o Jack Phillips, o sapateiro. Morreu há dois anos.
– Está então para venda ou arrendamento? – inquiriu Mog.
– É perguntar ao Henderson, o advogado. Ele há de saber.
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Uma vez que Peggy tinha de voltar à padaria para render Vera, que es-
tava a trabalhar com o pai desde manhã cedo, Belle disse que queriam falar
imediatamente com Mr. Henderson e pediu-lhe que lhes dissesse como
chegar até ele.
– Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje – disse Mog jovial-
mente, enquanto Peggy lhes indicava a casa.
– Não pareceu muito entusiasmada – observou Belle, quando ela se
afastou. – Porque será?
– Podes perguntar à Vera, mais logo – respondeu Mog. – Mas aposto
que ela é do género de gostar de ter montes de pessoas à sua volta e está
um pouco desapontada por já estarmos a falar de arranjar uma casa no se-
gundo dia que cá passamos.

Vinte minutos mais tarde, Mog e Belle tinham a chave da casa vazia e
estavam a abrir a porta. Como todos os edifícios da povoação, aquele era
de madeira. O exterior era pobre, a precisar urgentemente de reparação e
de uma pintura. Os degraus que davam acesso à porta da frente estavam a
apodrecer e, quando abriram a porta, o cheiro a mofo fê-las franzir o nariz.
Quatro outras portas abriam para o pequeno vestíbulo quadrado, no qual
tinha início uma estreita escada. A divisão à esquerda fora a oficina do sap-
ateiro. Ainda estava juncada de pedaços de cabedal espalhados pelo chão e
continha uma forma de sapateiro e uma comprida bancada de trabalho.
Mas tinha duas janelas, como todas as divisões do piso térreo, uma voltada
para a frente a outra para o lado, o que proporcionaria uma boa iluminação
depois de os vidros serem lavados. A da direita tinha sido uma sala de es-
tar, atravancada com uma mobília velhíssima. Ao fundo, do lado esquerdo,
havia um quarto, também tão cheio de mobílias velhas que era quase im-
possível lá entrar, e do lado direito uma cozinha, antiquada e muito suja.
Mas com uma porta que dava para um quintal, que parecia ter sido bem
cuidado até à morte de Mr. Phillips: havia arbustos, roseiras e uma
pequena horta, tudo afogado pelo mato e pelas ervas daninhas.
O piso superior era constituído por uma única e ampla divisão com
duas janelas no teto, uma em cada extremo. Excetuando uma velha cama
de ferro com uma enxerga manchada, estava completamente vazia, pelo
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que assumiram que o proprietário tinha vivido durante muitos anos no an-
dar de baixo.
– Consigo viver com a latrina exterior – disse Mog, apesar de estar a
torcer o nariz. – Mas o que não aguento é ter de ir buscar água à bomba lá
fora. E a mobília é toda para queimar. Mas a casa é espaçosa e clara. E os
soalhos parecem em bom estado. – Deu um salto, para ilustrar o que
afirmava.
– Suponho que podemos construir uma casa de banho nas traseiras ou
num dos lados, e um canalizador deverá ser capaz de trazer água também
para a cozinha – disse Belle, pensativa. – E podíamos mandar fazer um al-
pendre ao longo da parte da frente. E pôr uma dessas vedações de tabuin-
has brancas. Ficaria muito bonito. E podíamos usar a oficina: tu para fazer
vestidos, eu para fazer chapéus, e também podíamos vender artigos de
retrosaria.
Estavam a olhar uma para a outra, a especular, quando ouviram Vera
chamar.
– Vem cá acima – gritou Belle.
Vera subiu os degraus a correr.
– Costumava vir cá montes de vezes quando era miúda. Mister Phillips
fazia sapatos para toda a gente – disse, ofegante. – A mulher era simpática,
estava sempre a apaparicar-nos porque eles não tinham filhos. Morreu
antes da guerra. A casa está com um aspeto horrível.
– Mas tem possibilidades – declarou Mog, com o rosto pequeno a bril-
har de entusiasmo. – Mister Henderson acaba de nos dizer que recebeu
uma carta do sobrinho que herdou a casa a dizer que aceitará qualquer
coisa por ela porque está a precisar do dinheiro. Vou ter de fazer uma
oferta.
– Bem, mais ninguém a vai querer. Ficou toda a gente muito em baixo,
depois da guerra e da gripe, e ninguém tem dinheiro disponível.
Era a primeira vez em toda a sua vida que Mog tinha dinheiro, muito
mais dinheiro do que alguma vez sonhara. Mas mesmo assim não
tencionava gastá-lo precipitadamente.
– Vai ser muito difícil arranjar alguém para fazer umas reparações? –
perguntou. – Precisamos de uma casa de banho e de um fogão na cozinha
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para termos água quente. E todo o exterior e o telhado precisam de ser
impermeabilizados.
– Vai haver homens a fazer fila à porta para conseguirem o trabalho –
respondeu Vera. – Mas no que precisam de pensar é se querem ficar em
Russell. Não estão cá há tempo suficiente para terem a certeza.
– Soube que queria cá ficar no instante em que pus o pé fora do barco
– disse Mog. – Sinto que é o lugar certo para mim. Mas não posso falar
pela Belle. Vocês, os jovens, precisam de estar num sítio onde aconteça
mais qualquer coisa.
Vera olhou interrogativamente para Belle.
– É isso que sentes?
– Como disseste, não estamos cá há tempo suficiente para eu ter se-
quer pensado nisso. Mas gosto de paz e sossego. De qualquer modo, é a
Mog quem tem dinheiro para comprar a casa, não eu – acrescentou, com
um encolher de ombros. – A decisão é dela.
– Sim, sou eu que tenho de decidir se compro ou não a casa – disse
Mog. – Mas o que estava a tentar dizer é que isso não significa que tu ten-
has de ficar aqui amarrada, Belle. Será a tua casa, mas tens de planear o
que queres fazer com a tua vida. Detestava pensar que tinhas ficado
comigo por sentires que era a tua obrigação.
Belle olhou para ela de testa franzida.
– Mas planeámos criar um negócio juntas.
– Eu sei, e gostaria muito que acontecesse, claro que sim. Mas aqui
não há homens novos, Belle. Não quero que acabes transformada numa
velha solteirona. Gostava de ver-te casar outra vez.
– Então vais ter de esperar que as galinhas tenham dentes – declarou
Belle, com uma gargalhada. – Nunca mais vou amar outro homem.
– Também eu penso o mesmo, agora. Mas isso é porque só somos
viúvas há poucos meses. Eu estou a ficar velha, mas tu és nova e bonita. O
Jimmy não havia de querer que passasses o resto da tua vida sozinha.
– A Mog não tem razão quando diz que aqui não há homens novos –
interveio Vera. – Os meus irmãos vão voltar em breve, e há mais um par
de rapazes que também devem vir. Mas não te vejo a apaixonares-te por
nenhum deles. Olha para mim, sou um exemplo do que acontece às flores
de Russell! Já sou considerada uma velha solteirona!
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– Nesse caso, talvez vocês as duas devessem desandar para Auckland
– disse Mog.
Vera riu.
– Estou muito tentada a fazer isso mesmo. A mã dá comigo em doida.
Já era suficientemente mau antes de eu ir para França, mas tornou-se muito
pior desde que voltei. Não quero ficar a trabalhar para todo o sempre na
padaria.
E começou a cantar uma canção que dizia: «Como é que vou mantê-
los na quinta depois de terem visto Paris?»
Belle riu à gargalhada.
– Estás a inventar isso?
– Nem pensar. Uns americanos do hospital costumavam cantá-la.
Tinham-na ouvido num musical em Nova Iorque antes de embarcarem
para França. E também a ouvi num gramofone. Parece que é muito popular
na América. Mas essa é outra coisa que vais descobrir aqui: estamos muito
isolados do resto do mundo. Música, arte, livros novos, não chegamos a
saber nada da maior parte dessas coisas.
– A mim não me faz diferença – disse Mog.
Vera suspirou e fez um ar envergonhado.
– Arrependo-me de não as ter avisado, mas é que, sabem, eu própria só
me apercebi depois de voltar, e nessa altura já vocês vinham a caminho.
Mog passou um braço pelos ombros de cada uma das raparigas e
puxou-as para si.
– Pois bem, agora estamos cá, e eu gosto. Mas se é demasiado aborre-
cido para vocês as duas depois de terem visto Paris, então têm de encontrar
um lugar de que gostem mais.
– Não vou sair daqui a correr sem primeiro tentar a sério – disse Belle,
num tom cheio de firmeza. – Também gosto deste lugar, e antes de
começarmos a considerar alternativas, olhemos objetivamente para o que
podemos fazer aqui.
Passaram cerca de uma hora a dar a volta à casa, e Mog fez uma lista
das reparações que tinham de ser feitas.
– Vou pensar nisto durante uns dias – disse, enquanto fechava a porta
depois de saírem. – Preciso de saber quanto vale e quanto vão custar as
obras antes de decidir.
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Abril fundiu-se em maio e elas mal se apercebiam da rapidez com que


o tempo passava. Mog gostava de ajudar Don na padaria, partilhara com
ele algumas receitas de bolos e estava encantada por descobrir que o
produto acabado não só se vendia bem como as pessoas voltavam para
comprar mais. Com a ajuda de Vera, conseguira um orçamento para todas
as obras que tinham de ser feitas na antiga casa do sapateiro, e depois de
ter pesado tudo muito bem e chegado a uma decisão, ofereceu a Mr.
Henderson cem libras pela propriedade. Meio à espera de vê-lo mostrar-se
afrontado por um valor tão baixo, ficou surpreendida quando o advogado
aceitou a proposta sem hesitar e se ofereceu ainda por cima para incluir no
negócio todos os custos legais da transação.
Belle começou a pintar aguarelas, e embora por vezes o frio não convi-
dasse a ficar longas horas sentada na praia, gostava tanto de pintar o mar e
os barcos que nem dava pelo incómodo. Muitas vezes, quando estava a
pintar, apercebia-se de que em nenhuma outra altura da sua vida se sentira
tão relaxada e tranquila. Mesmo durante o período antes de Mog e Garth se
casarem, quando ela e Mog tinham vivido num quarto em Blackheath en-
quanto Garth tratava da compra do Railway, houvera sempre tensão. Na al-
tura, a causa fora o facto de estarem ambas a esforçar-se por se tornarem
senhoras, de modo a serem aceites pela aldeia. Depois abrira a loja, e isso
fora um motivo de ansiedade. Tinha sido muito feliz, casada com Jimmy, a
fazer chapéus, a ver o seu negócio crescer, mas nunca tivera longos per-
íodos de preguiçoso ócio, como tinha ali.
A guerra cobrara um pesado tributo a toda a gente, independentemente
de profissões e circunstâncias pessoais, com o medo de perder entes
queridos, o desgosto quando isso acontecia, o racionamento, os bom-
bardeamentos e todas as outras provações, incluindo o horror da gripe que
surgira no fim. Mas tudo isso pertencia agora ao passado. Tinha lido num
jornal que aquela fora «a guerra que acabara com todas as guerras».
Esperava que sim. Também sentia que ela e Mog tinham finalmente encon-
trado um lugar onde podiam ser elas próprias, onde não precisavam de fin-
gir que eram senhoras da sociedade ou ter receio de expressar as suas opin-
iões. Ali, podiam pôr para sempre de lado os desgostos e a dor do passado.
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Spud, Tony e dois outros jovens de Russell chegaram finalmente a


casa em finais de maio, e a cidade inteira juntou-se aos festejos. Os dois
irmãos mais novos de Vera eram, na maneira de ser, muito parecidos com
ela: extrovertidos, simpáticos e amistosos, com um enorme sentido de hu-
mor. Eram ambos muito mais altos do que ela, e tinham cabelo castanho,
mas os mesmos olhos azuis. Toda a gente observou que tinham partido de
Russell rapazes e voltado homens.
Peggy ficou horrorizada ao descobrir que aquilo a que Spud chamara
alguns arranhões no braço e na perna direitos eram na realidade feias cica-
trizes, mas Spud riu-se delas e fez notar que tivera muita sorte por as feri-
das não terem gangrenado, uma vez que caíra na lama e lá ficara longas
horas antes de ser levado para o posto médico.
Mog e Belle tinham tencionado adiar a mudança para a nova casa até
que o fogão que tinham encomendado em Auckland chegasse e fosse in-
stalado, mas o regresso dos rapazes fê-las mudar de ideias. A casa de
Peggy e Don começava a ficar sobrelotada, e parecia injusto pedir a Spud e
a Tony que dormissem no chão da sala, por muito que eles afirmassem não
se importar.
As tábuas estragadas da casa já tinham sido substituídas e o telhado ar-
ranjado, o que a tornara pelo menos à prova de chuva. A limpeza fora um
trabalho duro e sujo; tinham queimado o lixo e deixado a mobília e outros
objetos que não pretendiam conservar no exterior, para que quem quisesse
pudesse levá-los. Para grande delícia das duas, a maior parte desaparecera
num dia. Mas conservaram a robusta mesa de cozinha de madeira de cauri
que, uma vez esfregada a preceito e liberta de anos de sujidade, ficara
ótima, e a armação de ferro da cama, que Belle e Vera esfregaram com
palha de aço e pintaram de branco. Conservaram também duas cadeiras de
cozinha, uma cómoda e a bancada de trabalho. Mog enviou um telegrama a
Noah, a pedir-lhe que mandasse despachar logo que possível a mobília que
deixara armazenada.
As paredes interiores da casa eram de tábuas ensambladas forradas a
tela de rede. Tinham-lhes dito que a estucagem não era um método prático
em casas de madeira e, de qualquer modo, a tela suportava muito melhor o
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papel de parede. No piso térreo, havia grandes buracos no revestimento de
tábuas, mas como a grande divisão ao cimo das escadas estava intacta,
contrataram um homem para a forrar com o único papel de parede
disponível na loja. Era bastante baço, azul-claro com um padrão de volutas
em bege, mas uma vez aplicado tornava-se surpreendentemente agradável.
Com o chão forrado com o linóleo encomendado a uma loja de Auckland e
um novo colchão, que viria no Clansman, planeavam viver na divisão su-
perior enquanto as obras continuassem no resto da casa.
Spud e Tony tencionavam arranjar trabalho nos barcos de pesca ou na
fábrica de conservas, mas, de momento, ficaram mais do que felizes por
ganharem algum dinheiro ajudando o carpinteiro que trabalhava na casa de
Mog a construir o alpendre, a fazer armários e prateleiras para a cozinha e
a substituir as tábuas estragadas e a cobertura de tela das paredes.

– Bem, cá estamos na nossa casa, finalmente – disse Mog na noite de 2


de junho, quando ambas se preparavam para se enfiarem na cama de ferro
que iam ter de partilhar.
À luz da candeia de azeite, a divisão parecia muito agradável, com as
bonitas persianas de correr de pano bege que Mog fizera para as janelas,
um par de tapetes de trapos, oferta das mulheres da cidade, no chão de
linóleo e a cama feita com lençóis, mantas e um edredão que tinham
levado de Inglaterra, no baú.
– Adoro a Peggy, mas vai ser bom não acordar todas as manhãs a
ouvi-la gritar com o Don – disse Belle enquanto vestia a camisa de dormir.
– E o fogão chega esta semana. Não vamos continuar a ter de ir lá jantar.
– Devias ter vergonha – ralhou Mog. – A Peggy e o Don são pessoas
generosas e adoráveis. Há alturas em que consegues ser muito mazinha.
Belle sorriu. Sabia que Mog sentia exatamente o mesmo, e que na real-
idade, para ela fora ainda pior, pois tinha saudades de cozinhar e era quem
tinha de ouvir Peggy tagarelar o dia inteiro a respeito de coisa nenhuma.
– Bem, vou fazer-lhe um bonito chapéu de domingo, para compensar a
minha maldade – disse.
– Mudando de assunto – respondeu Mog, a franzir os lábios como cos-
tumava fazer sempre que reprovava qualquer coisa. – Apanhamos o
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Clansman para Auckland um dia destes para ir escolher algumas peças de
mobília? Segundo a Peggy, é melhor não encomendar sofás ou cadeirões
por catálogo, porque por vezes são duros como pedra.
– Hum. – Belle pensou por um instante. – Acho que era melhor ficar-
mos aqui até a casa estar quase pronta, e então vermos o que mais faz falta.
Tecido para cortinas, por exemplo, e eu preciso de alguns materiais para
fazer chapéus. Vamos lá ficar uma semana, de modo que o melhor é trazer
de uma só vez tudo o que acharmos que vai ser necessário.
Enfiaram-se na cama e Belle apagou a candeia.
– É bom não ouvir o Don a ressonar – disse, no escuro. – Ressonava
tão alto que a casa toda estremecia.
Mog pousou-lhe uma mão no braço.
– Tu, minha querida, estás a ficar insuportável. Precisas de um
namorado.
Belle riu.
– Vais encomendar-me um por catálogo?
– Anota aquilo que queres e eu vejo se têm algum adequado em stock
– respondeu Mog, com riso na voz. – Portanto, vai dormir e sonha com ele.
Belle ficou acordada durante muito tempo depois de Mog ter adorme-
cido, a compilar mentalmente uma lista de especificações, como Mog sug-
erira. Pensou em pô-la por escrito de manhã, para a fazer rir.
Alto, esbelto, cabelo louro, olhos azuis… à medida que desbobinava
para si mesma as características físicas, apercebeu-se de que estava na real-
idade a descrever Étienne. Só de pensar na noite que tinham passado juntos
fê-la sentir um desejo tão intenso que a deixou com lágrimas nos olhos.
Sabia que não era mulher para viver uma vida de castidade; queria ser ab-
raçada, ser beijada, saborear o êxtase do ato do amor. Mog tinha razão: es-
tava a tornar-se insuportável, e aquele era o motivo.
Vera tinha-lhe dito que, no verão, Russell recebia um número muito
grande de visitantes que iam pescar, mas o mais certo era a maior parte ser
casada. Spud gostava dela, e Belle bem vira a maneira como ele a olhava,
mas achava-o demasiado inocente, mesmo que conseguisse ultrapassar o
óbice de um homem com uma alcunha tão tola. Tinha ouvido Tony, o
irmão, falar com ele a respeito de uma prostituta francesa com que tinha
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estado. Ficara claramente fascinado pela experiência, mas a maneira depre-
ciativa como falara da rapariga fizera-a encolher-se.
Não tinha a mínima dificuldade em manter o comportamento esperado
de uma viúva num ambiente social, mas se alguma vez encontrasse um
homem que pudesse amar, sabia que nunca seria capaz de esconder-lhe o
seu passado. Jimmy fora uma raridade na medida em que o aceitara, mas
até ele caíra na tentação do desdém depois de ter sido ferido.
Pensou que a possibilidade de vir a conhecer um homem tão con-
hecedor do mundo e da vida, e tão capaz de não fazer julgamentos, como
Étienne – e que, como ele, fosse generoso, divertido e um amante maravil-
hoso – era tão improvável como acordar no dia seguinte e encontrar um
elefante no quintal. Por isso, talvez o melhor fosse aceitar que já tivera a
sua dose de paixão e resignar-se a tornar-se uma velha solteirona.
CAPÍTULO 30

A s obras na casa avançaram muito mais depressa a partir do momento


em que Mog e Belle se mudaram para lá e passaram a estar presentes
para incitar os homens. O fogão chegou e foi devidamente instalado por
um especialista que vivia em Paihia, do outro lado da baía. Tinha não só
um tanque para armazenar a água que aquecia, mas também um cano que
ligava o abastecimento de água exterior ao novo lava-louça e um outro que
descarregava a água suja na fossa exterior. Este técnico disse que teria
muito gosto em voltar quando ampliassem a casa para fazer as ligações à
casa de banho.
O alpendre foi feito com madeira de cauri, com a balaustrada pintada
de branco. Tinham sido montados armários, um dos quais com gavetas, na
cozinha, e a chaminé fora limpa para poderem acender o lume quando est-
ivesse frio. Mas continuavam à espera dos papéis de parede para as di-
visões do piso térreo que tinham mandado vir de Auckland, bem como da
mobília de Mog, enviada de Inglaterra.

Foi a prometida chegada do papel de parede que fez Belle deslocar-se


até ao cais no dia em que o Clansman aportou. A maioria das pessoas da
povoação ia esperar o barco todas as semanas, não necessariamente por es-
tar à espera de qualquer coisa, ou de alguém, mas apenas porque era um
elo de ligação com o mundo exterior.
Naquela tarde, porém, chovia intensamente, e nem sequer Peggy, que
raramente falhava uma semana, tinha aparecido. Belle usava uma com-
prida gabardina preta que comprara na loja, um chapéu de oleado e um par
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de botas de borracha, porque a chuva transformara as ruas de terra em
autênticos lamaçais.
Gostava da baía com qualquer espécie de tempo, e enquanto de pé, no
cais, olhava para o mar agitado, tão plúmbeo como o céu que o cobria,
pensou que tinha uma beleza dramática que era, à sua maneira, tão fascin-
ante como à luz do sol. A chuva funcionava como uma cortina translúcida,
tornando tudo difuso para lá de umas poucas centenas de metros, e ela
ouvia o som dos motores do Clansman cada vez mais perto, mas ainda não
avistava o vapor.
Era provável que houvesse outras pessoas que estivessem à espera de
bens ou produtos atentas àquele som. Talvez aguardassem, abrigadas, que
o barco acostasse para se aproximarem. Era até possível que não se dessem
ao incómodo de o fazer por causa da chuva; ao fim e ao cabo, os artigos
seriam guardados no armazém da companhia e levantados mais tarde,
quando parasse de chover, ou até no dia seguinte. Fora o que Mog a acon-
selhara a fazer, acrescentando que o papel de parede não era uma necessid-
ade imediata.
Mas, por qualquer razão, Belle sentira-se compelida a deslocar-se até
ao cais.
O som dos motores do Clansman soava cada vez mais alto. Belle ol-
hou na direção de onde ele vinha e pareceu-lhe distinguir uma sombra es-
cura através da cortina de chuva. E então, de repente, lá estava ele, com a
chaminé a vomitar fumo, e conseguiu até ver os tripulantes no convés a
prepararem-se para a acostagem.
Sorriu para si mesma, a recordar como ela e Mog tinham passado
quase toda a viagem desde Auckland encostadas à amurada. Tinham visto
o mar abrir-se em ondas debruadas a branco enquanto a proa do barco
fendia as águas azul-esverdeadas. Tinham rido de si mesmas por se deixar-
em fascinar pelo espetáculo quando ainda poucos dias antes acabavam de
fazer uma longa viagem marítima, mas aquilo era mais forte do que elas.
Queriam ver cada centímetro da costa daquela nova terra a que tinham
chegado.
Os motores foram desligados e o barco deslizou em direção ao cais
guiado pelas experientes mãos do comandante Farquahar. Um dos
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membros da tripulação saltou para terra, gracioso e ágil como um cabrito-
montês, para ajudar a prender as amarras.
Nem mesmo então os passageiros fizeram menção de desafiar a chuva,
aglomerados sob o precário refúgio oferecido pelo castelo de proa. Todos
exceto um homem que, protegido por um comprido impermeável e um
chapéu de aba larga, se mantinha sozinho junto à amurada, com uma
pequena mala na mão.
Estava a olhar diretamente para Belle, e ela desejou conseguir vê-lo
melhor, pois devia ser alguém que conhecia da povoação. Mas a chuva
fustigava-lhe a cara, e a dele era uma mancha indistinta.
A prancha de desembarque foi baixada e presa, e, de repente, as pess-
oas avançaram para sair no barco. Ocorreu então a Belle que decorreria
ainda algum tempo, talvez mais de uma hora, antes que a caixa com o pa-
pel de parede fosse descarregada. Sentia as roupas a ficarem húmidas por
baixo da gabardina, talvez devido à água que escorria do chapéu de oleado
ou se infiltrava pelas costuras dos ombros, e começava a ter frio. Mas al-
guma coisa a impediu de dar meia-volta e regressar a casa.
Mr. e Mrs. Brewster, que conhecera na sua primeira noite em Russell,
surgiram a correr pelo cais, vindos do barco. Mr. Brewster tentava manter
um chapéu de chuva sobre a cabeça de ambos.
– À espera de alguém, Mrs. Reilly? – gritou ele.
– Não, vim só levantar uma encomenda – respondeu Belle. E então, re-
cordando que Peggy lhe dissera que o casal se deslocara a Auckland duas
semanas antes por causa do nascimento iminente do primeiro neto, pergun-
tou: – O que foi que ela teve, menino ou menina?
– Um belo rapaz – gritou Mrs. Brewster. – A mãe e o filho estão bem,
e nós estamos contentes por estar de volta.
Passaram apressados, e outras pessoas passaram também. Sorriu a al-
gumas que conhecia, mas havia outras que nunca tinha visto. Junto ao
barco, a tripulação e outros funcionários da companhia estavam já a
descarregar grades de galinhas, usando uma segunda prancha de desem-
barque, e aquilo que pouco antes fora um lugar deserto e silencioso
transformara-se num formigueiro de atividade.
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O homem do chapéu de aba larga avançava ao longo do cais, e a pos-
tura ereta e o passo quase felino eram tão característicos de Étienne que
Belle sentiu um aperto no peito.
Afastou o chapéu de oleado da cara e limpou a chuva dos olhos. Ele
deteve-se, a olhar para ela, e então levantou o chapéu e sorriu.
Era um vulgar cumprimento, mas só um homem que ela em tempos
conhecera tinha um sorriso assim.
– Étienne? – balbuciou.
– Belle – disse ele, continuando a aproximar-se, agora mais depressa, e
quando tirou o chapéu, ela viu o cabelo louro que tão bem conhecia, o
rosto anguloso, os olhos azuis.
Julgou que era a imaginação a pregar-lhe partidas. Étienne estava
morto! Como podia ser ele? Mas era tão real como ela, a caminhar na sua
direção.
Naquele segundo, compreendeu porque era que nos romances as mul-
heres desmaiavam de choque, apesar de sempre ter achado a ideia ridícula.
O coração batia-lhe tão depressa que pensou que ia rebentar. Era mesmo
ele.
– Imaginei-te a receberes-me à luz do sol, com o teu vestido mais
bonito – disse ele, com aquele sotaque francês que lhe ficara gravado no
espírito. – Não enfiada numa gabardina debaixo de chuva e tão pálida que
parece que vais desmaiar.
– Sinto-me a desmaiar, do choque – respondeu ela, numa voz que
tremia. – Disseram-me que tinhas morrido em França.
– Então o Noah não te disse que conseguiu encontrar-me?
Ela só foi capaz de abanar a cabeça.
– Não estavas aqui à minha espera?
– Não, vim só levantar uma encomenda.
Havia pessoas a passar por eles de ambos os lados. A chuva con-
tinuava a cair numa densa cortina, e Belle levantou a mão para tocar na
face de Étienne. Estava fria, coberta por um pequeno restolho de barba,
mas ao tocar-lhe soube de certeza que não estava a sonhar.
Ele pegou-lhe na mão e beijou-lhe as pontas dos dedos.
– Já te tinha dito que desafiaria fogo, inundações e todos os perigos
para estar contigo – disse, com uma voz que tremia. – Por favor, diz-me
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agora se tens alguém, ou se já não sentes o mesmo por mim, e eu volto a
embarcar naquele barco e vou-me embora.
Nunca nada em toda a sua vida fora tão comovente como aquelas pa-
lavras. Havia tanta coisa que lhe queria perguntar, mas ao mesmo tempo a
única coisa verdadeiramente importante era que ele estava vivo e tinha
vindo do outro lado do mundo para a procurar.
Levou a mão que segurava a dela aos lábios e beijou-a.
– Não há mais ninguém. Roubaste-me o coração, em França, e ainda o
tens. Mas não podemos ficar aqui à chuva. Vem comigo. Falamos pelo
caminho.
– O Noah encontrou-me em fevereiro e disse-me que acabavas de sair
de Inglaterra – disse ele enquanto começavam a percorrer o caminho ao
longo da praia. – Pensei que ele te tinha escrito a contar, mas uma vez que
não escreveu, é melhor explicar. Não morri no dia em que o Jimmy foi
ferido; aparentemente, o amigo dele que o informou achava que os
Franceses só condecoravam os seus mortos. Na altura, estava vivo e bem
vivo. O Noah soube disto… julgo que disse que foi pouco antes do
Natal… mas então, um par de dias mais tarde, recebeu uma carta a dizer
que eu estava dado como desaparecido em combate, presumivelmente
morto.
– Porque foi que ele não me disse nada disso? – Belle abanou a
cabeça, confusa. – Eu e a Mog estivemos com ele no Natal.
– Sim, ele disse-me. Parece que ele e a Lisette acharam que não fazia
sentido dizer-te fosse o que fosse enquanto não tivessem a certeza. Por isso
decidiram confirmar primeiro os factos. A Lisette achava que eu podia ter
sido feito prisioneiro.
– E foste?
– Não. Só fui ferido em Passchendaele. Por vezes há enganos quando
um ferido não é levado para o posto de primeiros socorros por gente do seu
regimento. Eu fui recolhido por maqueiros canadianos, despiram-me o uni-
forme porque estava cheio de lama, os meus objetos pessoais transviaram-
se e ninguém informou o meu regimento porque assumiram que era um
quebequense.
– Isso é horrível! Não podias dizer-lhes quem eras?
450/474
– Aquilo era uma loucura total. – Étienne encolheu os ombros. – Tan-
tos homens gravemente feridos, muito poucos médicos e enfermeiros, e na
altura eu não percebi o que eles pensavam. A única coisa que me in-
teressava era o facto de estar outra vez quente e seco, e numa cama. Tudo
se teria esclarecido rapidamente, se eu não tivesse apanhado a gripe.
Puseram-me numa enfermaria de quarentena, e parece que delirei durante
vários dias.
– Mas recuperaste – disse ela, ofegante. – Isso é maravilhoso!
Étienne riu.
– Sim, foi o que achei. Fiquei muito debilitado e fui para Marselha,
para recuperar. Antes de ir, pedi ao médico do hospital que informasse o
meu regimento, mas parece que também nessa parte alguém se enganou. A
guerra acabou, a França estava num caos, havia milhares de desaparecidos,
e eu estava em casa de uns amigos, não na minha quinta, e tudo isto fez
parte das razões por que o Noah não conseguia encontrar-me morto nem
vivo.
– Mas ele nunca me disse que ia tentar descobrir se tinhas verdadeira-
mente morrido. O que foi que o levou a pensar que talvez não tivesses?
– Contaste-lhe que eu tinha dito que ia dá-lo como parente mais próx-
imo. Ele sabia que os exércitos de todos os países tratam normalmente de
contactar essa pessoa quando algum soldado morre ou é dado como desa-
parecido. Foi isso que o fez desconfiar. Mas não te falou das suas suspeitas
porque não queria dar-te falsas esperanças.
– Não percebo porque não enviou um telegrama ou escreveu quando
soube que estavas vivo. Já recebemos um carta dele desde que cá estamos.
Étienne voltou-se para ela e acariciou-lhe a face.
– Esperava que ele te dissesse. Talvez a Lisette tenha pensado que ser-
ia mais romântico desta maneira. Talvez ele tenha achado que poderia
causar problemas com a Mog. Disse-me que ela gostava muito do Jimmy.
– Gostava, e vai ser difícil explicar-lhe porque foi que vieste.
– Podes dizer que a encomenda de que estavas à espera não chegou, de
modo que me levantaste a mim.
Belle riu.
– A encomenda era papel de parede. Ela havia de dizer que não és
grande coisa para colar nas paredes!
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Étienne sorriu.
– Nesse caso, vou ter de me esforçar por conquistá-la. – Calou-se dur-
ante um instante, com um ar preocupado. – A verdade é que não pensei em
muito mais do que encontrar-te, Belle. Mas agora que estou aqui, e sei que
não tiveste oportunidade de preparar a Mog, temos de ter muito cuidado
com os sentimentos dela.
No choque da chegada dele, Belle não tinha sequer considerado a
questão. De repente, teve medo da reação de Mog se lhe aparecesse em
casa com um estranho. Além disso, não tinham um quarto de hóspedes.
– Penso que é melhor ficar num hotel – disse ele. – Há algum na
cidade?
– O Duke of Marlborough é já ali. – Belle apontou para o pub, a pou-
cos metros de distância. – Se tiverem um quarto livre, será a melhor
solução. Vai lá perguntar… Não posso ir contigo, aqui não permitem a en-
trada a mulheres nos bares. Mas espero por ti um pouco mais abaixo.
Étienne entrou no pub e Belle continuou a caminhar mais alguns met-
ros e deteve-se, à espera. Tinha o coração a martelar-lhe o peito e o choque
provocava-lhe uma ligeira náusea, mas estava no sétimo céu.
Étienne estava vivo, o seu amor atravessara metade do mundo para a
procurar. Apetecia-lhe gritar de alegria.
Mas não podia dar-lhe o acolhimento que ele merecia. Mog não era
parva. Dissessem eles o que dissessem, saberia que nenhum homem faria
uma viagem daquelas para ver uma mulher, a menos que a amasse. Inter-
rogaria e insistiria até que Belle admitisse toda a verdade, e apesar de
Étienne ter salvado a vida de Jimmy, era muito provável que se voltasse
contra ele por uma questão de lealdade familiar.
Étienne saiu do pub minutos mais tarde para dizer que acabava de ar-
rendar um quarto.
– Se achas que é melhor para ti falares com a Mog sozinha, esta noite,
posso ficar aqui agora e encontramo-nos amanhã – disse.
Belle pensou por um instante.
– Não, isso seria ainda mais suspeito – acabou por dizer. – Ninguém
nesta cidade deixaria um velho amigo sozinho no dia da sua chegada. E é
isso que tu és, Étienne, um velho e querido amigo.
Ele suspirou e fez um ar preocupado.
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– Acho que ela vai perceber que somos mais do que isso.
– Talvez, mas tem muitas razões para te estar agradecida, por me teres
resgatado em Paris e salvado o Jimmy. Promete-me só que, por mais que
ela sonde, não admitirás que passámos a noite juntos em França. Diremos
que foste ao hospital uma vez, mas só isso.

Quando, nessa noite, foi para a cama com Mog, depois de Étienne ter
regressado ao seu quarto no pub, Belle pensou que o encontro tinha corrido
muito bem.
Mog ficara espantada ao ver aparecer-lhe em casa o homem de quem
tanto ouvira falar no passado e que julgava morto. Por momentos, ficara a
olhar para ele de boca aberta, mas depressa recuperara e começara a dis-
parar perguntas. Porque não escrevera a avisar? Não seria um pouco es-
tranho fazer uma viagem tão grande movido por um capricho? Tencionava
ficar na Nova Zelândia? E porque fora dado como morto, afinal?
Étienne enfrentara o interrogatório com gentil encanto. Primeiro, ex-
plicara como fora ferido, e depois apanhara a gripe, e expusera as razões
que tinham levado Noah a convencer-se de que morrera.
– Eu e o Noah mantivemo-nos sempre em contacto depois de a Belle
ter voltado para junto de vocês – dissera, contando-lhe toda a história. –
Foi através dele que soube que tinham mudado para Blackheath e que a
Belle tinha casado com o Jimmy. Foi uma coincidência extraordinária ter
encontrado o Jimmy em França. Ele disse coisas que me fizeram perceber
quem era, e se estivéssemos sozinhos, talvez lhe tivesse dito quem eu era,
mas uma tal conversa era impossível estando ele com outros homens.
– Extraordinário também foi o facto de estar presente no sítio onde a
granada rebentou com ele – dissera Mog, secamente.
– Nem por isso. franceses e ingleses combatiam muitas vezes lado a
lado – respondera ele, ignorando o sarcasmo. – Tenho a certeza de que ele
lho disse. Na altura, pareceu-me ter visto o Jimmy na noite anterior, à dis-
tância. Talvez isso significasse que estava inconscientemente à procura
dele. Não vou fazer comentários a esse respeito, mas julgo que ele deve
ter-lhes dito como foram as coisas naquele dia, com a chuva e um nevoeiro
tão cerrado que não se via nada a mais de um par de metros de distância.
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Os nossos soldados e os britânicos misturaram-se durante o ataque porque
tínhamos de contornar as enormes crateras feitas pelos obuses. Devo ter
visto mais de cem homens mortos ou feridos naquele dia, ingleses e
franceses. Mas quando aquele foi atingido tão perto de mim e o capacete
caiu na lama, reconheci-o e ajudei-o.
– Porquê? – perguntara Mog. – O Jimmy disse-nos que não era per-
mitido ajudar os feridos.
– Por causa da Belle, claro – respondera ele, e encolhera os ombros. –
Se houvesse maqueiros por perto, tê-los-ia chamado. Mas eles não podiam
sair da trincheira debaixo de fogo tão intenso, e eu não podia deixá-lo
naquele buraco cheio de água.
Depois disto, Mog mostrara-se muito mais simpática. Servira o guis-
ado de borrego que tinha feito para o jantar e fora ela que lhe contara como
tinham lidado com os ferimentos de Jimmy e, finalmente, como ele e
Garth tinham morrido vitimados pela gripe.
Pela maneira como Mog falara com Étienne, Belle convencera-se de
que não achara nada de suspeito no aparecimento de um velho amigo. Mog
confiava totalmente no discernimento de Noah, e uma vez que fora ele o
causador de tudo aquilo, isso significava que Étienne devia ser bem
recebido.
Tinham então falado a respeito da casa, e dos planos que ela e Belle
tinham feito para criar um negócio de modista, chapelaria e retrosaria. A
única pergunta que Mog disparara pela segunda vez fora sobre as razões
que o tinham levado a viajar até à Nova Zelândia.
– Mais ou menos as mesmas que a vocês as duas – respondera ele,
com um encolher de ombros muito gaulês. – A quinta tinha sofrido muito
durante a minha ausência, e em França continua a haver demasiada dor e
raiva. Perdemos muito mais homens do que os Britânicos. Eu já andava a
pensar num novo começo num sítio qualquer. Então, quando o Noah en-
trou em contacto comigo e me contou tudo o que lhes tinha acontecido e
que tinham emigrado para aqui, a Nova Zelândia pareceu-me um bom
lugar para recomeçar. O clima da ilha do Norte não é muito diferente do de
França. Posso comprar uma quinta aqui, ou dedicar-me à pesca, que é
outra coisa de que gosto. De que outra maneira havia eu de começar senão
indo para um sítio onde já tinha uma velha amiga?
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Étienne deixara-as pouco depois, e quando Belle o acompanhara à
porta, ele puxara-a para fora e beijara-a. Fora exatamente como o primeiro
beijo no hospital, uma chama a inflamar-se dentro dela. Belle soubera en-
tão que a parte mais difícil de tudo aquilo seria esconder os seus sentimen-
tos por ele. Não iam poder ter o namoro casto e prolongado que se esper-
ava de uma viúva recente. Ela queria-o já, queria estar nua nos seus braços,
mergulhar no êxtase com ele.
– Amanhã havemos de arranjar forma de ficarmos sozinhos –
sussurrou-lhe junto ao pescoço, enquanto lho beijava. – Amo-te, Belle, e
juntos vamos contornar todos os obstáculos.
Belle voltara para dentro e encostara-se à porta fechada, para se re-
compor antes de enfrentar as inevitáveis perguntas de Mog.
Não havia verdadeiros obstáculos. Eram os dois livres, embora
houvesse aquelas hipócritas ideias a respeito da viuvez a que as pessoas
davam tanta importância. Belle não se importava realmente que as pessoas
a vissem como uma pega leviana que dançava em cima da campa do
marido enrolando-se com um francês, mas preocupava-a a possibilidade de
qualquer comportamento menos próprio se refletir negativamente em Mog.

– Não é nada como o imaginava – disse Mog, enquanto se enfiavam na


cama.
– Como era, então, que o imaginavas?
– Classe baixa – respondeu Mog. – Com ar de bandido!
Belle riu.
– Bem, tem ar de duro. Tive um medo de morte dele, quando o con-
heci em Brest.
– Sim, não deve ser nada bom vê-lo virado do avesso. Mas também
tem um lado suave, encantador.
Belle estava deliciada por ser esta a opinião de Mog a respeito de
Étienne. Apagaram a candeia e Mog ficou calada. Mas Belle sentiu que ela
estava a pensar, e não a dormir.
– Tiveste um caso com ele lá em Paris?
A pergunta pareceu encher a escuridão do quarto.
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Belle sabia que Mog estava a referir-se ao período depois de Étienne a
ter salvado das mãos de Pascal, não ao que acontecera em França um ano
antes.
– Não, claro que não – respondeu, com verdade.
– Mas apaixonaste-te por ele?
Era tentador negá-lo, sobretudo no escuro, quando a sua expressão não
poderia traí-la. Mas Mog não merecia que lhe mentisse.
– Sim – admitiu. – Mas ele nunca me disse que sentia o mesmo por
mim, e não passou disso.
– Eu soube que havia qualquer coisa quando voltaste a casa. Não fa-
lavas muito dele, mas eu tinha um pressentimento. Porque foi que casaste
com o Jimmy?
– Porque o amava, e porque éramos as pessoas certas um para o outro.
– Mas voltaste a ver o Étienne. Foi enquanto estavas no hospital?
– Sim, ele foi procurar-me depois da morte da Miranda. Conhecia o
namorado dela.
– E tu voltaste a apaixonar-te por ele?
– Não, foi uma visita de amigo, nada mais.
Seguiu-se um longo silêncio, e Belle esperou que Mog não tivesse
mais perguntas a fazer.
– Não penses que consegues enganar-me – disse no escuro a voz que
tantas vezes a admoestara quando era criança. – Não te esqueças de que
trabalhei num bordel a maior parte da minha vida. Vi centenas de homens
no seu pior, e de vez em quando no seu melhor. Aprendi a decifrar o signi-
ficado das expressões das caras deles. Só a maneira como um homem anda
diz-me coisas que a maioria das mulheres nunca saberia. E sei que o
Étienne te ama. Também sei que dormiu contigo. Vi-o nos olhos dele.
Belle ficou rígida de tensão. Mog nunca fora uma prostituta, era apen-
as criada no bordel de Annie. Nunca lhe passara pela cabeça que aquela
mulher que tomara conta dela desde bebé, como se fosse sua filha, pudesse
ter adquirido uma tal profundidade de conhecimento apenas observando os
outros.
– Agora diz-me quando foi. Apostaria que foi logo a seguir à Miranda
ter morrido.
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No passado, Mog costumava usar muitas vezes a expressão «certifica-
te de que os teus pecados te encontram». Belle soube que chegara o mo-
mento da verdade.
– Sim – sussurrou –, foi. Uma noite, e então ele voltou para a frente.
Eu sei que não devia tê-lo feito. Deus sabe o que sofri de remorsos desde
então.
– E então o Jimmy foi ferido e tu voltaste para casa?
– Sim.
Belle ficou calada, à espera do «Como foste capaz?», seguido de uma
lista das virtudes de Jimmy.
Mas não aconteceu. Mog virou-se para ela e colocou um braço à volta
dela.
– Eu soube que alguma coisa tinha acontecido quando chegaste. Vi
tanta dor nos teus olhos, e não podia ser só por causa dos ferimentos do
Jimmy. Mais tarde, quando ele voltou para casa, vi-te derrotada quando
começou a tratar-te com frieza. Aposto que achaste que era o que merecias.
Belle começou a chorar.
– Escrevi ao Étienne antes de partir de França e disse-lhe que nunca
mais poderia vê-lo e que ele não devia tentar entrar em contacto comigo.
Tentei fazer o Jimmy feliz, mas não consegui.
– Ninguém consegue fazer os outros felizes, são eles que têm de o con-
seguir sozinhos – sentenciou Mog. – Detestava a maneira como ele te
tratava, e disse-lho, muitas vezes. Mas ele estava fechado no seu inferno
privado e penso que tinha perdido a capacidade de sentir fosse o que fosse
pelos outros.
– Mas isso não desculpa o facto de eu lhe ter sido infiel. Fiz aquilo que
fiz quando ele ainda estava bem.
– Tê-lo-ias deixado se ele não tivesse sido ferido?
– Não sei. Pensei esperar até que a guerra acabasse, e então dizer-lhe
que já não o amava. Mas continuava a acreditar naquela parte do «até que
a morte nos separe» e duvido que tivesse sido capaz de o magoar assim
tanto. Sabes, nunca deixei de o amar, apesar do que sentia pelo Étienne.
– E no dia em que o Jimmy recebeu aquela carta a dizer que tinha sido
o Étienne que o tinha salvado e que tinha morrido. Como foi que te
sentiste?
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– Como se me tivessem arrancado o coração do peito – sussurrou
Belle.
O braço de Mog apertou-a com mais força.
– Minha pobre querida. Quem me dera que me tivesses contado.
– Não estás zangada comigo? Não achas que é bem-feito?
– Que direito tenho eu de julgar? Suponho que se me tivesses dito a
verdade quando regressaste de França, eu te teria dito todo o género de
coisas más. Amava o Jimmy, ele tornara-se como um filho para mim. Mas
agora sei, no fundo de mim mesma, que fomos nós, eu e o Garth, que te
empurrámos para aquele casamento. Eu queria tanto que tivesses um
homem bom e decente que te adorasse, e por isso ignorei a vozinha que me
dizia que vocês não eram exatamente perfeitos um para o outro. Convenci-
me de que estava só a encaminhar-te na direção certa. E vocês foram fel-
izes até tu teres perdido o bebé, por isso acreditei sinceramente que tinha
feito o que devia.
«Mas esta noite, quando vi a maneira como tu e o Étienne olhavam um
para o outro, como os olhos dos dois brilhavam, senti a paixão que há entre
ambos. Tu e o Jimmy podem ter tido um bom casamento, mas nunca foi
assim. Penso que o Étienne é o teu destino.»
– És tão boa. – Belle suspirou. – Tinha tanto medo de que te envergon-
hasses de mim.
– Como podia eu envergonhar-me de alguém que pôs as suas próprias
necessidades de lado para cumprir a sua obrigação para com o marido?
Ouvi algumas coisas horríveis a teu respeito, Belle. Mas tu mantiveste-te
ao lado dele, e cuidaste dele até ao fim. É isso que conta.
– E agora o que é que faço?
Mog riu.
– Eu sei o que fazia. Amanhã metia-me naquele ferry com ele, ia até
Paihia e procurava um lugar qualquer afastado para ficar até se esgotarem
um ao outro a fazer amor.
– Mog! – exclamou Belle.
– Foi assim comigo e com o Garth, quase não saímos do quarto do
hotel durante toda a lua de mel. Claro que vão estar a pôr o carro à frente
dos bois. Mas não queremos alarmar a boa gente de Russell antes de po-
dermos combinar um casamento e tornar tudo decente.
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– Onde é que vais dizer às pessoas que estou, e como vais explicar o
Étienne?
– Alguma coisa me há de ocorrer – respondeu Mog. – Agora seca es-
sas lágrimas e vê se dormes. Vais ter de te levantar cedo para lavar a
cabeça, tomar um banho e pores-te bonita para ele.
CAPÍTULO 31

M og sorriu enquanto via Belle escovar o cabelo acabado de lavar.


Estava tão bonita, vestindo apenas uma combinação de renda que
lhe chegava vários centímetros acima dos joelhos, com os escuros caracóis
caídos em cascata sobre os ombros e uma expressão sonhadora no rosto.
– O que é que vais usar hoje? – perguntou. – Não outra vez aquela
coisa cinzenta horrorosa, espero.
– Céus, não! Pensei que talvez o vestido malva que a Lisette me ofere-
ceu – respondeu Belle. – É elegante sem ser demasiado ousado, e não tem
associadas velhas recordações.
– Boa escolha. E tens o chapéu de palha com flores que fica bem com
ele.
– Ontem à noite não te agradeci por seres tão compreensiva – disse
Belle, voltando-se para Mog e abraçando-a. – Não sei o que faria sem ti.
Consegues sempre fazer-me sentir melhor em relação a tudo.
Mog retribuiu o abraço e engoliu as lágrimas que ameaçavam afluir-
lhe aos olhos. Afirmara muitas vezes esperar que Belle voltasse a encontrar
um homem especial, mas não contara que acontecesse tão depressa. O
medo dela era que Étienne quisesse levá-la para longe, pois não estava a
imaginá-lo a tencionar estabelecer-se em Russell.
Era um homem difícil de decifrar. Um solitário, sentia, corajoso e de-
terminado, mas com um passado sombrio. Sabia que, na noite anterior, se
tinha esforçado por mostrar o melhor de si, escolhendo cuidadosamente as
palavras, e tinha de admitir que aquele sotaque francês era encantador.
Mas não conseguira ver para lá das boas maneiras e do bom aspeto.
Não lhe chamaria bonito; o rosto era demasiado ossudo e os olhos
azuis demasiado gelados, mas mesmo assim faria palpitar o coração de
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muitas mulheres. Lembrou-se de Noah ter dito certa vez que era um
homem que ninguém gostaria de ter como inimigo. A marca da cicatriz na
cara falava de lutas com facas em becos escuros e de perigo.
No entanto, aqueles olhos de gelo derretiam-se quando ele olhava para
Belle, e até salvara Jimmy por ela, e por isso Mog sabia que não tinham
nada a temer dele.
– Serve? – perguntou Belle algum tempo mais tarde, quando entrou na
cozinha onde Mog estava a lavar umas peças de roupa.
Mog voltou-se do lava-louça, e Belle pareceu-lhe uma imagem de um
postal com o seu vestido malva e o chapéu de palha. A excitação punha-lhe
um ligeiro rubor nas faces e um brilho nos olhos.
– Estás muito bonita. Agora desanda!

Étienne descia os degraus do Duke of Marlborough no preciso instante


em que Belle dobrou a curva do caminho junto à praia. Deteve-se a olhar
para o mar; não a tinha visto.
Belle puxou para as pernas a saia do vestido e escondeu-se atrás de
uma árvore para o observar. O sol brilhava e o grosso das poças de água
deixadas pela chuva já tinha secado. Perguntou-se se ele estaria a pensar
em alugar um barco para a levar para qualquer lado, porque o mar estava
calmo como um lago.
O fato escuro e o colete a condizer do dia anterior tinham sido sub-
stituídos por um blazer azul-escuro e calças e colete cinzento-claros, com
um lenço de pescoço em vez da gravata. Estava demasiado bem vestido
para um lugar onde a maior parte dos homens só se arranjava ao domingo,
para ir à igreja. Chamou-o, e voltou a esconder-se atrás da árvore.
Riu ao ouvi-lo correr na sua direção. Esperou até ele quase passar pelo
seu esconderijo e então saltou para a frente com um «Bu!»
Étienne riu.
– Não devias fazer isso a um velho soldado – disse, e agarrou-lhe as
duas mãos, com um sorriso quase tão rasgado como a baía. – Com os meus
reflexos fulminantes, podia ter-te dado um tiro.
– Dormiste bem? – perguntou ela.
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– Nem por isso. Sonhei contigo, de modo que mal consegui descansar.
Como foram as coisas com a Mog depois de eu ter vindo embora?
– Achou que não és boa peça e mandou-me ter contigo e dizer-te que
te metesses no Clansman e voltasses para Auckland.
Ainda a segurar-lhe as mãos, Étienne apoiou as costas contra a árvore.
– E vais obedecer-lhe? – perguntou, com uma sobrancelha arqueada.
– Uma vez disseste-me que me matavas se tentasse fugir – disse ela, a
fazer um enorme esforço para não rir.
– Não me parece que tenhas trazido esse vestido tão bonito para seres
morta com ele. – Étienne largou-lhe uma das mãos para lhe tocar ao de
leve na cara. – Para onde vamos? Disseram-me que um homem a que
chamam o Velho Tom poderia deixar-se convencer a levar-nos até Paihia.
– É curioso dizeres isso, porque por acaso até trouxe comigo umas
coisas para passar a noite fora – disse ela maliciosamente, mostrando-lhe
um pequeno saco de palha. – A Mog disse que diria a quem perguntasse
que tínhamos ido visitar uns parentes teus franceses que vivem lá.
Étienne sorriu.
– Então fui aprovado?
– Isso depende do teu comportamento futuro – respondeu Belle, a
pestanejar. – Talvez precises de voltar ao Duke para ir buscar a navalha de
barba e uma camisa lavada. Diz-lhes que não sabes quanto tempo vais es-
tar ausente.
– Gardez au chaud pour moi pendant cinq minutes – disse ele e, dando
meia-volta, correu para o pub.

Belle continuou a caminhar devagar, passando pelo pub em direção ao


cais. Estava tão feliz que só lhe apetecia dançar e cantar, e muito contente
por não haver por perto ninguém para lhe perguntar aonde ia.
Alguém havia de ter dito a alguém que chegara um francês no barco e
estava instalado no Duke. Em Russell era assim. Discutiriam porque teria
vindo, quem poderia conhecer, tudo o que fosse fora do vulgar era bom
como tema de conversa. Mas se a tivessem visto com ele, as coscuvilheiras
e os coscuvilheiros já não largariam o assunto.
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Mog fora muito esperta ao lembrar-se de que havia uma pequena
comunidade francesa a viver em Paihia. Sem dúvida diria distraidamente a
Peggy que Étienne era um velho amigo de Jimmy que viera cumprimentá-
las antes de ir visitar os parentes. E então acrescentaria que levara Belle
para lhe dar uma oportunidade de conhecer a comunidade francesa.
Quando Vera ouvisse o nome do visitante, ia cair para o lado. Belle
bem desejava ter podido falar com ela e explicar, mas Mog prometera
chamá-la à parte e contar-lhe a história toda.
O Velho Tom era homem de poucas palavras. Estava sentado no seu
barco de pesca, a remendar as redes, e quando Étienne lhe perguntou se
podia levá-los a Paihia, concordou sem fazer perguntas.
Tinha apenas cinquenta anos, mas chamavam-lhe assim para o distin-
guir de um outro Tom que era mais novo. Arrumou num canto a rede de
pesca, limpou um dos bancos e estendeu a mão para ajudar Belle a
embarcar.
Na baía, estava frio e muito vento. Belle tirou o chapéu e embrulhou-
se no xaile. Os dedos de Étienne insinuaram-se por baixo dele e encon-
traram os dela, e este contacto fê-la vibrar. Estava cheia de ansiedades:
onde iriam ficar, como regressariam e até se seria sensato lançar-se de
cabeça naquela aventura sem ter a certeza de quais eram as intenções dele.
Mas o barulho do vento e do motor do barco era demasiado forte para
permitir conversas, de modo que se deixou ficar sentada, com os dedos en-
trelaçados nos dele, a contemplar a vista, e pensou, como sempre, que a
baía das Ilhas devia ser um dos lugares mais belos do mundo.
Paihia não era tão bonita e aconchegada como Russell. Espraiava-se ao
longo da costa, talvez por haver espaço suficiente para construir as casas
mais afastadas. No entanto, saber que ninguém ali os conhecia era só por si
um atrativo.
Étienne entrou na estação de correios para perguntar se sabiam de al-
guma vivenda que pudessem arrendar por uns dias. Pediu a Belle que es-
perasse na rua porque, disse, não gostava de ter público quando contava
mentiras.
Reapareceu a sorrir e com um papel na mão.
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– Parece que estamos com sorte. Esta Mrs. Arkwright toma conta de
duas ou três casas usadas para férias. Posso ir falar com ela agora, vive
mesmo ao virar da esquina.
Mais uma vez, não quis que Belle o acompanhasse, sugerindo-lhe que
se entretivesse a ver lojas.
Demorou mais de uma hora, e Belle começava a ficar preocupada.
Então, de repente, viu-o aparecer na estrada junto à costa.
– O que foi que levou tanto tempo? – perguntou. – Estava a ficar
preocupada.
– Mrs. Arkwright quis mostrar-me a casa, e quando lá chegámos quis
fazer a cama, e mudar as toalhas, e eu não pude fazer nada. Mas já tenho a
chave e podemos ir para lá agora. Só precisamos de comprar algumas
provisões.
– Como é a casa? – perguntou Belle enquanto voltavam para trás a
caminho da mercearia.
– Logo vês quando lá chegares.
– Foi muito cara?
Ele levou o dedo ao nariz, para dar a entender que não tinha nada com
isso.
Depois de comprarem um saco de mercearias, Étienne guiou-a até ao
fim da estrada da costa, onde se erguia uma colina muito arborizada. Met-
eram por um estreito caminho entre as árvores.
– Voilà – disse, quando chegaram a uma clareira. Apontou para uma
pequena casa de madeira pintada de branco, construída com as costas vira-
das para o flanco da colina. Alguns degraus davam acesso a um alpendre
de onde se via o mar.
– Que sítio tão bonito! – exclamou Belle. Era completamente isolado,
rodeado de árvores. Quando subiram ao alpendre para abrir a porta da
frente, não conseguiu sequer ver o telhado de outra casa.
Étienne pousou o saco de mercearias para abrir a porta, mas antes que
Belle tivesse tempo de pensar em mover-se, pegou-lhe ao colo e levou-a
para dentro. Então pousou-a no chão e beijou-a.
No mesmo instante, Belle esqueceu a razão, a contenção e até a pre-
ocupação por a porta continuar aberta. O beijo da noite anterior despertara
sentimentos que já nem se lembrava de alguma vez ter experimentado, e
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naquele momento tinha fome dele. Enquanto Étienne a beijava, ela enfiou-
lhe as mãos por baixo do casaco, frustrada por não conseguir passar o cós
das calças para lhe tocar a pele porque o colete e os suspensórios se lhe in-
terpunham no caminho. Apertou-se despudoradamente contra ele, en-
quanto a língua de Étienne lhe entrava na boca e a inflamava ainda mais.
Ele tirou-lhe o chapéu e o xaile, atirou-os para o chão, com os dedos a
tentarem, frenéticos, desapertar os botões das costas do vestido. Fê-lo
deslizar pelos ombros dela o suficiente para libertar os seios, inclinou-se e
apertou um mamilo entre os lábios.
Ela gemeu de prazer e tentou despir-lhe o casaco, mas estava demasi-
ado avassalada pelas ondas de desejo escaldante que a percorriam para o
conseguir. Ele levantou-lhe a saia do vestido e procurou com os dedos de-
baixo do saiote, afastando as cuecas para o lado, até encontrar a entrada do
sexo dela, já quente e húmido. Ela manteve a cabeça dele apertada contra
os seios e gritou que o queria já.
Não tinha sequer visto a cama nem reparado em qualquer pormenor do
interior da casa onde se encontravam, e quando ele a empurrou contra a
parede, deixando de a acariciar apenas o tempo suficiente para desapertar
as calças, tanto se lhe dava que estivessem num palácio como numa
pocilga.
Ele agarrou-lhe as nádegas com as mãos, levantou-a no ar e baixou-a
sobre o pénis ereto, mantendo-a apertada contra a parede, beijando-a en-
quanto a penetrava. Foi um frenesi para os dois, sexo cru e duro, do género
que Belle costumava ver nos becos de Nova Orleães e que a fazia sentir
tanta pena das raparigas que se lhe sujeitavam.
Mas ela não precisava de pena: queria-o com a mesma fúria, e todo o
seu corpo parecia estar a fundir-se no dele.
Chegou ao orgasmo no que lhe pareceu uma questão de segundos,
antes dele, e ouviu a sua própria voz gritar-lhe o nome.
Étienne seguiu-a de perto, os dedos a cravarem-se nas nádegas dela, o
hálito como fogo no ombro nu dela, e rugiu quando atingiu o clímax.
Então afrouxou o torno em que a prendia e deixou-a deslizar para baixo até
tocar com os pés no chão.
– Não era para ser assim – murmurou, com a cabeça escondida no om-
bro dela. – Era para ser lento e belo.
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Belle sentia o suor escorrer-lhe pela cara e por entre os seios. Tinha as
pernas transformadas em gelatina e se não estivesse apoiada contra a
parede talvez tivesse caído.
– Podemos fazê-lo lento e belo mais tarde – ofegou. – Para já, escald-
ante e rápido era o que eu queria.
Ele ergueu a cabeça e olhou para ela, beijou-lhe os lábios, o nariz e a
testa.
– Tens as faces muito coradas, e nunca me pareceste tão bonita como
neste momento.
– Posso sentar-me antes que caia? – perguntou ela, e acariciou-lhe a
cara com ambas as mãos. Também nunca ele lhe parecera tão bonito como
naquele momento. Podia tocar na marca da cicatriz, adorava os lábios
cheios, o nariz orgulhoso, as sobrancelhas louras. Mas, acima de tudo, ad-
orava os olhos dele; eram como o mar, por vezes tão frios, escuros quando
se zangava, mas naquele momento, apesar de o quarto estar escuro porque
as cortinas continuavam corridas, entrava luz suficiente pela porta aberta
para ver que eram azuis como um céu de verão, e suavizados pelo amor.
Compuseram as roupas e Belle foi arrumar as mercearias. Étienne ab-
riu as cortinas, e só então ela viu que a pequena casa era o refúgio perfeito.
Estava mobilada de forma simples, apenas com um lava-louça, uma mesa e
cadeiras, um pequeno fogão à frente do qual havia um tapete, um par de
cadeirões e a louça e os tachos dispostos em prateleiras. Mas estava tudo
impecavelmente limpo, e a outra divisão era um quarto onde havia apenas
uma cama e uma cómoda.
– A água é da chuva e vem de um tanque – explicou Étienne, abrindo a
torneira para demonstrar. – A casa de banho é lá fora. Vi uma grande celha
de zinco pendurada da parede. E há uma arrecadação com lenha para o
fogão.
– Tenho aqui tudo o que preciso – disse ela, e enlaçou-o com os
braços.
Étienne acendeu o fogão enquanto Belle saía para o alpendre para
apreciar a vista do mar por cima das copas das árvores. Conseguia avistar
Russell do outro lado da baía, mas bem podia estar a um milhão de quiló-
metros de distância. Nunca em toda a sua vida se sentira tão feliz. Não
havia culpa, agora, nem remorso, nem sequer preocupação com o futuro.
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Como Mog dissera, estar com Étienne era o seu destino, e talvez tivesse
sido necessário passar por todas as coisas más que lhe tinham acontecido
no último ano para apreciar como era bom o que tinha agora.
Mais tarde, depois de uma chávena de chá e uma sanduíche, foram
para a cama. Dessa vez despiram-se primeiro – Étienne até pendurou o
vestido dela, para que não se amarrotasse – e fizeram amor de uma
maneira lenta e bela.
Belle passou suavemente as pontas dos dedos pelas cicatrizes dele; a
do ombro, que tinha visto em França, começava a esbater-se, mas a mais
recente, na coxa esquerda, estava ainda muito lívida.
– Tive sorte por não me ter atingido o joelho e não ter gangrenado –
disse ele. – Os ferimentos nos joelhos normalmente deixam a pessoa a
coxear.
– Doeu muito?
– Não quando aconteceu. Coxeei de regresso às nossas linhas durante
algum tempo, a usar a espingarda como bengala. Mas devo ter desmaiado
devido à perda de sangue. Mal me lembro de os maqueiros me terem recol-
hido. Foi só quando me cortaram o uniforme, no posto de primeiros socor-
ros, que começou a doer, e nessa altura doeu como o diabo.
– Sabias que tinhas apanhado a gripe?
– Não propriamente. Só que me sentia muito mal, cheio de calor e a
tiritar ao mesmo tempo. Não me lembro de muito mais, só de pensar que tu
estavas lá.
– Eu? – riu Belle.
– Sim. Mas como eras quando eu enjoei no navio a caminho da
América. Quando comecei a ficar um pouco melhor, uma das enfermeiras
perguntou-me quem era a Belle. Devo ter chamado por ti.
– Fico contente por saber que estavas a pensar em mim – disse ela, e
beijou-lhe as cicatrizes.
– Disseram-me que todos os outros homens que foram levados para a
mesma enfermaria que eu tinham morrido. Não sei porque foi que sobre-
vivi; parecia não haver qualquer razão para isso.
Mais tarde choveu, mas o tamborilar no telhado e o vento nas árvores
só fazia com que o interior parecesse ainda mais aconchegante. O fogão
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aquecia toda a casa, Belle acendeu uma candeia de azeite e os dois juntos
improvisaram um jantar com pão, queijo e uma lata de sopa.
Étienne vestia apenas as calças, Belle apenas a combinação. Ele abriu
a garrafa de vinho que tinha comprado e fez um brinde.
– Ao nosso longo e feliz futuro juntos – disse, entrechocando o copo
com o dela. Bebeu um gole de vinho e fez uma careta. – Sou capaz de ter
de plantar a minha própria vinha, se isto é o melhor que se consegue arran-
jar por aqui.
– Serias capaz? – perguntou ela.
– Talvez, com a terra apropriada. O clima ajuda.
– E a tua quinta em França? O que foi que lhe fizeste?
– O Noah comprou-a. Ainda não tive tempo de te dizer, mas ele foi
procurar-me a Marselha.
– Foi? Que homem maravilhoso. E a mim nem uma palavra!
Étienne sorriu.
– É um verdadeiro amigo. Sabes, nessa altura já tinha descoberto que
me tinham mandado para casa antes do fim da guerra. Mas como não rece-
beu resposta à carta que enviou para a quinta, foi procurar-me. Seguiu-me
o rasto até à casa dos amigos que me tinham albergado, e depois fomos
juntos para a quinta.
– E disse que queria comprá-la?
– Foi amor à primeira vista. Tentei dissuadi-lo, mas ele disse que a
Lisette queria fazer férias em França e queria que a Rose falasse francês
tão bem como o Jean-Philippe. Argumentou que se eu viesse procurar-te, a
quinta só ia ficar ainda mais cheia de mato. E disse que ia mandar construir
uma casa melhor. Mas que eu seria sempre bem-vindo, sozinho ou contigo.
– Então e agora? O que é que vais fazer aqui?
– Para já, vou fazer amor contigo até pedires misericórdia. – Étienne
sorriu. – E depois vamos ter de casar para salvar a tua reputação.
– Não é costume fazer o pedido de casamento antes de fazer amor? –
riu ela.
– Casas comigo, minha maravilhosa Belle? – perguntou ele, pegando-
lhe na mão.
– Logo que seja possível tratar disso – respondeu ela. – Amo-te,
Étienne, não há nada que deseje mais.
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Ele levantou-se e contornou a mesa para a abraçar.
– Percorremos ambos um longo caminho desde aquele dia em Brest
em que te levei num navio para a América. Sabias que comecei a amar-te
quando cuidaste de mim enquanto estive doente?
– Não começaste nada!
– Não de uma maneira física! Eras demasiado nova e vulnerável, mas
tão cheia de coragem. Ter-te deixado em Nova Orleães é uma das coisas de
que mais me envergonho em toda a minha vida. Depois disso, nunca mais
saíste dos meus pensamentos.
– Tinhas de me deixar lá, eu sabia, também eu estava sempre a pensar
em ti. Mas tu tinhas um casamento feliz?
– Sim, amava a Elena, mas penso que o nosso casamento era muito
parecido com o teu. Crescemos juntos, e eu pensava que o que tínhamos
era tudo o que se podia esperar. Mas nunca foi como contigo.
– Diz-me a verdade, começaste a gostar de mim depois de me teres
salvado em Paris? Eu sei que falámos disto no hospital, mas preciso de
saber mais.
Ele segurou-lhe a cara com ambas as mãos e olhou-a nos olhos.
– Sim, sabia que te amava, e sentia que tu me amavas a mim, mas não
era a altura certa para falar disso. Tinhas sido muito magoada por homens,
pensei que precisavas de tempo para sarar. Mas foi mais do que isso. Eu
tinha feito tantas coisas más, pensei que não era suficientemente bom para
ti.
– Como pudeste pensar tal coisa? Tinhas-me salvado a vida! – Os
olhos encheram-se-lhe de lágrimas. – Se me tivesses dito! Só um sinal teria
feito toda a diferença.
– Disse, mas como um cobarde disse-o em francês, na estação, e esper-
ei que tu compreendesses o suficiente. Mas que podia eu fazer? Tu ias vol-
tar para casa, para o Jimmy, eu sabia pelo Noah o que ele sentia por ti.
Mesmo que fosse capaz de pôr os meus verdadeiros sentimentos numa
carta, teria sempre medo de que o Jimmy também a lesse. Por isso
escrevia-te como amigo na esperança de que soubesses ler nas entrelinhas.
Belle suspirou, a recordar como o seu coração cantava sempre que re-
cebia uma carta dele, só para ficar desapontada ao descobri-la tão fria e
formal.
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– Então tu escreveste a dizer que ias casar com o Jimmy e eu soube
que não tinha mais hipóteses. Disse a mim mesmo que serias feliz com ele
– continuou Étienne tristemente. – Mas isso não me impedia de pensar em
ti. Foi por isso que fui à tua loja, tinha de ver com os meus próprios olhos
que eras feliz. Nunca esperei voltar a saber de ti, e muito menos ver-te,
mas então aconteceu aquele encontro casual com o Jimmy, em França.
– Foi muito estranho – disse ela.
– Agora acredito que foi o destino. Vi que ele era um bom homem,
forte e com princípios. Gostei dele, e da maneira como falava de ti.
– O que foi que ele disse?
Jimmy tinha-lhe contado a sua versão, e ela queria saber se coincidia
com a de Étienne.
– Contou-me que tinhas sido atacada na loja e perdido o bebé. Disse-
me que estava arrependido por se ter alistado quando a sua obrigação era
estar em casa contigo. Tive ciúmes dele, e ao mesmo tempo fiquei satis-
feito por teres casado com um homem tão decente.
– Mas mesmo assim foste procurar-me ao hospital.
– É verdade. Não consegui resistir quando soube da morte da tua
amiga. Era só para te ver, não ia à espera de mais nada. Mas quando te vi e
te beijei, foi como ter sido apanhado por um turbilhão.
– Sim, eu senti o mesmo – admitiu ela. – Uma espécie de loucura que
varreu toda a razão e até a noção do dever e da moralidade.
Étienne sentou-se, puxou-a para o colo e limpou-lhe uma lágrima da
face.
– Tê-lo-ias deixado por mim, se ele não tivesse sido ferido? –
perguntou.
– Sinceramente, não sei. Talvez o remorso, e o facto de te desejar
tanto, tivessem acabado por me levar a fazê-lo, apesar de na altura sentir
que não era capaz. Mas o que foi que te levou a salvá-lo, Étienne? Diz-me
a verdade.
Ele deixou escapar um profundo suspiro.
– Tenho de admitir que, por um instante, estive tentado a deixá-lo lá.
Mas embora deixá-lo morrer me tivesse aberto o caminho para chegar até
ti, no fundo sabia que não seria capaz de viver com isso. Claro que, na al-
tura, não tive verdadeiramente tempo para pensar nos motivos por que o
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fazia. Mas depois fiquei contente porque, ao menos uma vez, tinha feito o
que era certo.
«Mas não acabou ali, Belle. Quando me escreveste a dizer como ele
estava mal, e que era o fim para nós os dois, desejei tê-lo lá deixado. Não
só porque poderia ter-te, mas também por causa do que ia ser a tua vida a
ter de cuidar dele. Vi tantas esposas e mães obrigadas a lidar com os seus
feridos, a pobreza e as dificuldades, e vi-os descarregarem nelas as suas
frustrações. Foi o que aconteceu contigo?»
Ela queria negá-lo, por lealdade para com Jimmy, mas compreendeu
que Noah já lhe devia ter contado.
– Por vezes. Digamos que já não era o homem com quem tinha casado.
Ficaram ambos em silêncio durante algum tempo. Foi Étienne a
quebrá-lo.
– Penso que é tempo de falarmos sobre nós e o nosso futuro – disse,
fazendo deslizar as mãos ao longo das pernas dela.
– Isso não é falar – ralhou Belle. – Como é que vais ganhar a vida
aqui? As escolhas são muito limitadas.
– As escolhas só são limitadas para um homem sem imaginação. –
Étienne sorriu. – Pescar, tratar de uma quinta, construir casas, sei fazer
quase tudo, e também tenho algum dinheiro. Do que estava a falar era de
casarmos e de onde vamos viver. Mas vamos para a cama e falamos de
tudo isso mais confortavelmente.

Belle acordou quando a manhã raiava. Étienne dormia profundamente,


aninhado contra as costas dela, com um braço a rodeá-la. Tinham feito
amor durante horas, e recordar algumas das coisas eróticas que ele fizera
pôs-lhe as faces em fogo. Sempre pensara que sabia mais a respeito de ho-
mens e de sexo do que qualquer outra mulher, mas descobrira que estava
enganada. O amor erguia o ato acima dos truques mecânicos que aprendera
no passado e transformava o sexo numa coisa bela e fantástica. Serge, o
amante perfeito que fora contratado em Nova Orleães para a iniciar nas
artes do amor, despertara-lhe a sexualidade com a sua perícia. E no ent-
anto, apesar de ter sido uma experiência excitante e satisfatória, a ausência
de amor tornara-a vazia. Jimmy tinha todo o amor para lhe dar, fora um
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amante entusiasta antes da guerra, mas nunca deixara de ser um tanto ini-
bido, a despeito dos encorajamentos dela.
Étienne não tinha inibições. Era escaldante e compreendia as mul-
heres, capaz de ser selvagem quando era o momento e gentil quando não
era. Levara-a numa viagem de emoções, luxúria e paixão num tapete
voador, mas eram os doces momentos de ternura, quando ele procurava
apenas dar-lhe prazer, que tocavam qualquer coisa no mais fundo dela e a
faziam chorar. Não obstante toda a sua experiência, nunca antes sentira
aquilo.
Estava dorida de tanto sexo, como ficara depois da noite que tinham
passado juntos em França, mas era uma sensação boa. Deslizando por
baixo do braço dele sem o acordar, pegou na combinação que ficara caída
no chão, vestiu-a e escapuliu-se do quarto.
Ainda havia brasas acesas no fogão, de modo que ela acrescentou mais
lenha e saiu para o alpendre. O sol erguia-se no horizonte, lançando dardos
de luz dourada por entre as nuvens ainda cinzentas. Belle sentiu um nó
apertar-lhe a garganta ao contemplar a beleza da baía, com o seu mar azul-
prateado riscado de ouro pelos raios de sol e o verde-escuro das árvores a
toda a volta.
A imensidão do cenário à sua frente parecia dizer-lhe que era ali que
ela e Étienne tinham o seu lugar. Sentira, mal chegara à Nova Zelândia,
que aquela era uma terra que acolhia de braços abertos os que tivessem
força, determinação, coragem e imaginação. Agora, com Étienne a seu
lado, sentia que nada era impossível, nem sequer ter um filho dele.
Voltou-se e viu-o à porta, só com uma toalha a cingir-lhe a cintura.
Tinha o cabelo despenteado e uma leve sombra de barba escurecia-lhe o
rosto. As cicatrizes do ombro e da coxa ficariam como uma recordação in-
delével dos horrores da guerra, tal como a velha cicatriz na cara lhe re-
cordaria a parte menos honrosa do seu passado.
Também ela tinha cicatrizes, ainda que invisíveis. Duas pessoas com
defeitos que, juntas, conseguiriam realizar tudo aquilo a que se
propusessem.
Étienne aproximou-se da balaustrada do alpendre, passou um braço
pela cintura dela e contemplou a vista. O sol tinha subido um pouco mais e
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um comprido fiapo branco de nuvem atravessava a baía de um lado ao
outro.
– Adoro o início da manhã – disse ele. – Até em Verdun havia nesta
hora uma beleza que nos dava esperança de que o dia que começava ia ser
melhor do que o anterior. Mas quando olho para toda esta magnificência
contigo, sei que Deus está do nosso lado.
Belle sorriu. As palavras dele pareciam ecoar o que ela própria estava
a pensar.
– O que é que vamos fazer hoje?
– Caminhar, explorar, pensar em como vamos fazer a nossa fortuna
aqui. Ver se há alguma terra boa para plantar vinha. Comprar peixe para o
jantar.
– Disseste-me que um dia haveríamos de estar juntos, e tinhas razão.
Por isso talvez contigo tudo seja possível.
– Ter peixe para o jantar é uma certeza absoluta – respondeu ele, a
apontar para um barco de pesca na baía. – Mas a vinha e a fortuna podem
demorar um pouco mais de tempo.
AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar e acima de tudo, a Glen Fisher; sem o seu conheci-


mento da Primeira Guerra Mundial, as obras que me indicou e o seu
entusiasmo por este livro, talvez nunca o tivesse começado.
Li uma quantidade enorme de livros na minha pesquisa, demasiados
para os referir um a um, mas particularmente notáveis foram The First Day
on the Somme, de Martin Middlebrooke, The First World War, de John
Keegan, e Voices of the War, de Peter H. Liddle.
Os livros de Lyn Macdonald, Somme, They called it Passchendaele e
The Roses of No Man’s Land ajudaram-me a compreender muito melhor o
contexto mais vasto. Recomendo qualquer destas obras a quem queira
saber mais sobre a Primeira Guerra Mundial.
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